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1

Vazio.
Era assim que se sentia Vena em seu grande palácio nas estrelas, tinha de tudo o que queria, poder, riqueza,
beleza, e mesmo assim sentia que lhe faltava algo que não era capaz de entender.
A Deusa era simplesmente magnífica e radiante, seu corpo possuía as mais belas curvas já vistas, a pele clara e
macia com pequenas pintas negras dava a ela um ar de graça, as sardas em seu rosto se assemelhavam as
estrelas, seu longo cabelo tinha as cores do arco-íris e seus fios seguiam seu humor, quando estava alegre,
brilhava nos tons de azul, índigo e violeta, ao ficar triste seu cabelo perdia a cor e estendia-se em um completo
cinza, morto. Sua boca portava o mais belo tom de vermelho e seus olhos verdes brilhavam como dois
pequenos faróis em meio ao oceano.
Enquanto se banhava em um rio próximo ao palácio, Vena mantinha sua cabeça na escuridão de seus
pensamentos, sentia cada gota de água que passava por seu corpo, o vento lhe acariciava o rosto no tempo que
tentava a todo custo entender a peça que lhe faltava, porém tudo era escuro, dentro e fora.

- Tens de tudo Vena, és rica e poderosa, o que lhe falta é algo que não compreendera ainda, tu és cega e
aceita-te assim, esquecera que onde tu se banhas era sangue, onde tu se deitas era carne e onde tu olhas era
claro. - A voz rouca soava como um sussurro ao ouvido de Vena. Procurava o que lhe dizia aquilo em todo lugar,
mas encontrava-se sozinha no rio, era a única coisa viva naquele espaço.
Vena saiu do rio com a voz ecoando em sua cabeça, procurava entender o que lhe dizia, porém nada podia
compreender.

“​Onde tu se banhas era sangue”.


O tempo caia fora de seu palácio. As gotas escorriam pelo telhado e derramavam aos litros na cor vermelha. Era
sangue.
A cada trovão ela podia enxergar pela janela a silhueta de um homem, estava ajoelhado, completamente
ensanguentado, olhava diretamente para seu rosto, balbuciava sons que eram encobertos pelo barulho da
chuva, sua barba longa esvoaçava. Após poucos segundos ele estava no chão, morto, a luz dos trovões era a
única luz presente na vida de Vena e agora a mesma anunciava a morte.
O céu se abria a cada trovão, as gotas de chuva pareciam cada vez mais densas e viscosas, a linda roupa de
renda de Vena apresentava-se completamente vermelha, a ventania fazia seus cabelos balançarem loucamente
enquanto corria para ver o homem, porém ela nunca pararia de correr já que ele não se encontrava mais lá, já
que sua roupa nunca teve o tom vibrante do sangue e ela nunca saíra de seu palácio. Vena acordou em sua
cama, completamente exausta.

“Onde tu se deitas era carne”


Nada daquilo acontecera, mas era tão real que acabava sendo difícil de acreditar que era apenas um pesadelo.
O desespero, o vento, o sangue, tudo era tão vívido, tão genuíno. Ao acordar, olhou pela janela e viu que o
tempo continuava o mesmo de sempre, escuro, frio e inexpressivo.

“Onde tu olhas era claro”


2
- ​Vena​ v​ enha comer, largue um pouco estes livros, você passa o dia todo aí. - Dizia Artère, seu pai.

- Já vou pai, apenas espere alguns minutos. - A voz de Vena estava excitada.
A filha única do Deus Artère e da Deusa Cuore, invejados até mesmo pela própria Morte, completava seus 16
anos no exato dia. Vena acordara cedo e debruçava-se sobre seus livros, seus pais preparavam a maior festa
que já fora vista, banhada a vinho e comida em abundância, os melhores bardos e menestréis estavam
presentes para tocar em sua festa.

- Coma e se arrume garota, hoje é seu grande dia, não vai querer que os convidados pensem que você é
apenas uma criança indefesa. - Cuore sempre encorajava a filha a ser forte, sentia o poder dentro dela.
Vena não disse uma única palavra durante o almoço, estava faminta já que passara o café da manhã inteiro em
seu quarto com a cara nos papéis. A festa começaria em poucas horas e não podia conter a alegria em seu
rosto. 16 anos. Poderia enfim se sentir livre, era forte e sábia, orgulhosa e bela. Seu destino era feito por suas
próprias mãos, nem mesmo a Morte se aproximaria dela sem autorização.
A garota foi levada a seu quarto novamente, a espera dela, um vestido branco e longo da cor das nuvens que
pairavam abaixo de seus pés, uma coroa feita de ouro e esmeraldas era adornada com rosas e margaridas, um
perfume que remetia ao cheiro da relva e de pequenas ervas. ​“Ficarei deslumbrante” ​pensava Vena.
Ela estava certa, Vena era a mais bela moça no grande salão da festa, seus cabelos estavam reluzentes, o azul
iluminava a sala, ao entrar todos paravam de comer e beber para vê-la, as jovens princesas, deusas e condessas
lhe atiravam olhares de inveja, seu corpo esguio maravilhava até a si própria.
- Ela será a mais bela mulher destas estrelas. – Sussurravam Artère e Cuore em sintonia.

Os bardos davam a todo o lugar um clima angelical, era como se estivesse regado por uma aura de beleza e
maravilha. Enquanto andava, cada passo de Vena seguia o ritmo da música. Descalço passando pelo carpete
vermelho que levava a seus pais, sentia os fios lhe encobrir os dedos.

- À Vena, a futura mais poderosa Deusa de todas as estrelas! - Dizia Artère em alto tom.
- À VENA! - Respondia o salão em coro.

A coroa encontrava-se em sua cabeça, brilhava tanto quanto seus olhos. A música estava alta, todos os Deuses
dançavam.

- Linda Deusa, conceda-me esta dança. - A voz suave e calma de Plamani, Deus dos ares, ressoou em
seus ouvidos como uma brisa.
Ela não teve tempo de responder, já se encontrava dançando em seus braços, não havia por que negar, afinal
ela sempre esperou por aquele momento. A música ao fundo era quase imperceptível, Vena conseguia sentir
até mesmo a respiração em seus pulmões, seu corpo inteiro estava em êxtase.
O vinho estava maravilhoso, a comida, Vena não podia negar, que era a melhor que já comera durante toda sua
vida, aquilo era real e era lindo, era dela. Sentada do lado de fora do grande salão seus lábios tocavam os de
Plamani, o frio da noite era ignorado por seu corpo e a música ao fundo estava calma, acompanhava o
momento. O seu momento.

Silêncio.

A música cessara.
3
Vena acordava e seguia dia após dia sua rotina. Tomava o café da manhã, se banhava no rio e logo após
adentrava em sua biblioteca e ficava ali por várias horas, procurando significado a o que a voz lhe dissera.

Sozinha, no silêncio permanente que lhe assombrara a vida toda, Vena repetia cada letra em sua cabeça.
Escrevia e apagava a fala várias vezes, sabia dizer de ponta a ponta, com a mesma entonação, cada letra que
havia passado por seus ouvidos. Procurava algo relacionado em todos os livros que tinha, estava acabando com
suas opções.
Recostado em um canto encontrava-se um velho livro, a capa possuía um rasgo que quase a dividia no meio.
Vena o pegou e dele caiu uma pequena placa de ouro e prata, há muito tempo talvez houvesse algo escrito
nela, porém agora era ilegível. No livro, diversas pinturas de Vena mostravam sua evolução desde o
nascimento, as folhas estavam todas amarelas e manchadas de sangue, mas as cores do arco-íris eram
destacadas em cada fio de seu cabelo.

Havia também duas pinturas de um homem e uma mulher juntos. Eram altos, os olhos verdes como jade e a
pele clara, o homem possuía uma longa barba branca que se estendia até a cintura, a mulher tinha uma
expressão alegre e serena. ​“Quem são essas pessoas?”.
Continuou a folhear o livro, algumas páginas a frente Vena se encontrava pintada com uma coroa em sua
cabeça e um longo vestido branco. Ela tinha lembranças desse momento, nada antes disso existia em sua
cabeça, era somente escuridão. Escuro como o dia lá fora, escuro como as manchas de sangue no livro, escuro
como seus olhos na última pintura.
Seus olhos estavam pretos como obsidiana, o colorido cabelo se encontrava cinza, a pele estava murcha,
parecia duzentos anos mais velha, tinha uma aparência completamente diferente daquilo que ela realmente
era, estava monstruosa.

Os pensamentos de Vena eram um grande ponto de interrogação, não conseguia compreender nada daquilo
que se passava em sua frente.
4
- TODOS PRA FORA AGORA! - Gritava Artère ao ver a cópia monstruosa de sua filha se materializando no
salão.

Os gritos podiam ser escutados a estrelas de distância, Vena corria em direção a eles. A multidão se movia
como os ventos. Artère e Cuore procuravam a filha a todo custo mesmo ela estando diante deles, pelo menos
uma versão dela.
Vena estava em frente a porta principal quando entendeu o que se passava. Deuses explodiam e deixavam
manchas de sangue por todo o salão, algumas condessas mortais que estavam presentes se reduziam a
pequenos montes de enxofre e cinzas. O Deus Caput, conhecido por controlar mentes e corpos, sentia-se
completamente descontrolado junto a todos outros. Logo tudo se reduziria a carne e sangue, enxofre e cinzas.
A versão monstruosa de Vena olhava diretamente em seus olhos, conseguia quase que ler a mente da jovem
Deusa. Vena fora arremessada até sua cópia, como se dezenas de guerreiros a puxassem de uma só vez, a cada
tentativa de resistência aquilo se tornava mais forte.

Os olhos do demônio eram petrificantes, Vena encontrava-se a um metro de distância de seu rosto, o seu verde
jade havia se tornado musgo, seus fios de cabelo morriam pouco a pouco, pela primeira vez na vida ela
experimentava o medo.
As duas flutuavam sobre uma fumaça escura, o frio tomava conta do salão, os pais de Vena não conseguiam
emitir qualquer som, seus poderes e força eram nulos, nada o que tentassem fazer afetaria a coisa, era algo
maligno, orgulhoso. A Morte era incapaz de causar mais horror em uma mente como aquilo.
Vena se via na completa escuridão, estava do lado de fora do palácio, o vento soava como um tornado, nem
mesmo Plamani, ou o que restara dele, seria capaz de conter aquilo. Artère e Cuore acompanhavam a coisa
aonde ela ia. A ​Lune, ​que iluminava o céu naquela noite​, se apagou no instante em que o primeiro Deus virou
um amontoado de carne.

- O que queres para libertar minha filha? Por favor não a mate, lhe damos de tudo o que precisar. -
Suplicava Cuore reconhecendo a grandeza daquilo que pairava a sua frente.

A cada segundo Vena era consumida por si mesma, se tornava apenas um único corpo, a névoa preta
aumentava em torno das duas como se quisesse esconder dos pais o inferno que se passava no rosto de sua
filha. Os olhos verdes estavam negros, lágrimas de sangue escorriam por todo seu rosto, o cabelo estava
completamente cinza, o corpo não era mais velho e morto, era jovem e belo, Vena estava nua, renascida.
Artère se via de joelhos, seu orgulho nunca o fez curvar a ninguém, agora se ajoelhava perante sua própria
filha.
O som dos ossos se partindo e da pele sendo rasgada perturbava a mente da Deusa que continuava dentro de
seu corpo, era incapaz de controlar o que fazia, aquela coisa parasitava e controlava tudo. Cuore e Artère
estavam jogados ao chão, as costelas arrancadas e as vértebras transformadas em pó, a linda pele de Cuore
havia virado um retalho de pano, já o velho Deus se enforcava com sua própria barba, o sangue escorria por seu
pescoço enquanto arrancava cada fio.
Vena tentava retornar ao comando de seu corpo, como se fosse uma segunda personalidade em um monte de
carne, não acreditava que todos estavam mortos, ela havia feito aquilo, não merecia ficar viva e escondida em
sua própria mente, queria se punir, prender aquilo onde quer que fosse.
Não conseguia, a morte pra ela não era uma opção, o comando de Vena estava entregue a seu segundo eu, sua
outra parte, só lhe restava esperar.
5
O tempo ficava cada vez pior, a tempestade que se aproximava deixava o ar mais eletrizado, os fios de Vena
saltavam do penteado. Fora do palácio a escuridão é total, a luz apenas se encontrava dentro do palácio e nos
relâmpagos, quando não chove o mundo fora é como um vácuo, escuro e frio.
Ao sair da biblioteca, Vena tentava ligar os pontos, entender a relação entre tudo que estava se passando. A
voz, o sonho, suas falhas memórias, o livro, a pequena placa de ouro. Tudo aquilo tinha que ter uma ligação,
tinha que ter um resultado, uma solução.
O sono derrubou Vena, estava ficando exausta de tanto pensar, sua vida que antigamente era apenas calmaria
de repente virara um redemoinho de mistério e medo.
Vena dormiu em sua cama macia como as nuvens, o vento forte que entrava pela janela fazia com que tecidos
de seda balançassem sobre seu rosto, estava inquieta. Em sono profundo Vena sonhava. Uma mulher de pele
clara, corpo esguio, se encontrava no mesmo lugar em que o homem de seu outro sonho, ajoelhada e
completamente ensanguentada. Vena corria em direção a mulher, o sangue que chovia mudara para uma
densa névoa negra, os trovões se transformaram em gritos de horror, a ventania era inexistente porque o ar
era pesado desta vez.
Pedaços de carne humana mostravam o caminho até o corpo da mulher que, da mesma maneira, desaparecera.
Vena não acordou desta vez. Os gritos de horror corriam em sua direção.
- VOCÊ FEZ ISSO VENA! FAÇA COM QUE VOLTE AO NORMAL! - Um velho homem olhava diretamente
para Vena e gritava, segundos depois a névoa o cobria novamente.
- TEU ORGULHO ACABOU COM A LUZ, VOCÊ TROUXE O FRIO E A ESCURIDÃO. - Outra voz berrava, desta
vez uma mulher que estava às costas da Deusa.
- SEUS OLHOS DEVEM DAR LUGAR AO VAZIO, SEUS CABELOS DARÃO VIDA AO NOVO MUNDO, NADA
DEVERA SOBRAR DE VOCÊ, JOVEM GAROTA! - A velha voz atiçava lembranças de Vena, Os, Deus do
conhecimento, era irmão de algum parente seu.
Onde estavam essas pessoas? Por que Vena vivia sozinha naquele palácio? Por que tudo era escuro? POR QUE?
COMO?
6
Vena acordou, sua cama estava completamente molhada de suor, a chuva inundava o quarto, a janela
continuava deixando com que o vento uivasse. As vozes não cessavam, continuavam gritando as suas costas, as
silhuetas das pessoas apareciam e desapareciam em instantes.
A Deusa corria pela tempestade, gritando por socorro, seu rosto mostrava desespero.

“SEUS OLHOS DEVEM DAR LUGAR AO VAZIO, SEUS CABELOS DARÃO VIDA AO NOVO MUNDO, NADA DEVERA
SOBRAR DE VOCÊ, JOVEM GAROTA!”

“TEU ORGULHO ACABOU COM A LUZ, VOCÊ TROUXE O FRIO E A ESCURIDÃO!”

-​ SOCORRO! POR FAVOR, O QUE QUER QUE FOR EU FAÇO. APENAS ME DEIXE EM PAZ!
Quase que instantaneamente, após o suplico de Vena, o céu chorou suas últimas gotas de chuva, as vozes
deram seu último grito de apelo, a mente de Vena retornou ao comum.
- Vena, teu corpo deverá dar vida ao novo mundo. Teu orgulho e ego mataram a todos que você
conhecia, sua mente se tornou duas, dentro de você há algo tão poderoso e mal que nem mesmo conseguiria
imaginar. Você não morrerá, muito pelo contrário, cada parte do seu corpo viverá para sempre. O seu destino
estava definido desde seu nascimento, o universo sempre esteve presente nos seus fios de cabelo, Vena. - A
mesma voz que falara com ela no rio saia de vários lugares agora.
- Você tem poder suficiente para transformar tudo que tem em algo novo, algo vivo. - A voz continuou. -
Sabe o que fazer, nunca terá sua memória novamente para que não sofra por seus atos, era inconsciente e
terrível. Você deve mudar tudo agora, pagar pelo que fez. Vá em frente Vena, dê vida ao que você destruiu.
A voz ecoou por alguns segundos no horizonte, Vena tentava a todo custo lembrar do seu passado, mas era
impossível, a maldade e o terror do que foi feito nunca poderia permanecer na mente de uma jovem Deusa, e
algo tão poderoso quanto Cuore e Artère, tão sábio como Os, entendia isso.

Pelo mesmo caminho, Vena correu de volta ao palácio, foi para a cama, queria ter os últimos minutos de sono.
O quarto alagado e com um odor peculiar de suor nunca esteve mais receptivo. Vena apagou. Era a última vez
que sonharia.
7
Durante a noite tudo voltaria ao normal, tudo que foi transformado em cinzas ressurgiria como uma fênix.
Vena não sentiria dor, não sofreria, o que lhe restava era acreditar que o seu belo corpo daria vida a um belo
mundo.
Os fios de cabelo da Deusa se soltavam aos poucos, o vento os levava em direção ao infinito, cada um deles
dava vida a dezenas de mortais. Os dois olhos de Vena apresentavam luz ao lugar que por muitos anos fora
apenas escuridão.

Seu sangue dava lugar a rios e oceanos tão azuis quanto seu cabelo em dias alegres. Seus pulmões agora
transportavam a chuva em enormes nuvens. Seus ossos se quebraram e criavam em volta de si enormes
montanhas, capazes de resistir a ira de qualquer coisa.
As plantas nasciam naturalmente para embelezar a terra e os mares. As sardas e pintas iluminavam a noite
como pequenas estrelas.
Seu coração estava no centro de tudo, batendo, transportando a alma de Vena para cada animal, cada planta,
cada humano. Era o núcleo, era vivo.

Vena continuava viva.

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