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Um homem se agarrou à mesa da sala de jantar e se levantou, jogando-se numa das cadeiras

com todo seu peso. Estava cansado, suado, sangrando e já havia sujado todo o chão de
vermelho. Tanto faz agora, não tem ninguém para reclamar disso…

Olhava para o lustre acima de sua cabeça com milhares de pensamentos passando por sua
mente. Não esperava que as coisas acabassem dando tão errado, confiava em sua seita e
acreditava que alcançariam a vitória.

Umas duas horas antes, estava junto de seus colegas da seita, lutando bravamente contra os
membros da Seita da Lua Nova, que haviam sido seus inimigos desde sempre. Mas a Seita da
Lua Nova acabou se dando melhor.

Foi uma emboscada bem-feita e bem-arquitetada que lhes garantiu a vitória, o que fez a Seita
dos Mil Sóis — da qual ele fazia parte — ser derrotada. No fim, o único que conseguiu
escapar foi ele, Rajiv — a última fagulha de luz do sol de sua seita.

Não se orgulhava de ter fugido, mas não queria morrer; um medo incessante da morte o
dominou ao ver o quanto estavam ferrados pela estratégia de seus inimigos. Acreditava que
estavam na melhor e — num piscar de olhos — foram para pior.

Mas pelo menos iria morrer; sim, não tinha chance de sobreviver aos ferimentos no seu
corpo, então esperava ter o perdão de seus colegas, tendo em vista que não fugiu ileso, não os
abandonou; logo iria encontrá-los.

— Não morrerei como um herói, mas me lembrarei de vocês, meus amigos… — sussurrou, e
seus olhos se fecharam como as cortinas de um teatro anunciando o fim da peça.

A luz do lustre já o havia feito esquecer de tudo; estava hipnotizante, relaxante. Era como se
Deus o estivesse observando e o curando, não seu corpo, mas sua alma. “Você ficará bem,
filho”, era o que sentia ouvir.

A luz ainda manteve-se acesa mesmo através das suas pálpebras, mas de repente começou a
brilhar mais e mais, até ele não poder ver nada além de branco puro.

Onde estou?, perguntou-se ao abrir os olhos.

Já não estava mais escorado na cadeira, nem sangrando; já não sentia mais dor, nem suava. A
mesa de jantar havia sumido junto com as cadeiras. Agora a sala de jantar toda havia sumido.
Tudo o que via era branco.

Estava num quadro deixado por pintar. Branco, mas não como a neve ou como as nuvens; era
branco como a ausência de tudo.

— Olá?! — gritou, mas sem sinal nenhum de vida.


Olhou para suas mãos, notou que o tom moreno de sua pele era a única coisa que destoava do
espaço branco. Mas, de repente, percebeu:

— Eu estou… transparente!? — Aos poucos, sua pele estava transparecendo com o fundo
esbranquiçado. — Onde… Onde diabos eu estou?! — berrou. — O que está acontecendo?!

E então se apagou. O espaço branco foi substituído por preto, e agora ele era a única luz num
mar de escuridão.

Que sensação estranha…, notava ao perceber que flutuava. Não conseguia pisar em nada,
apalpar nada; era um espaço vazio. E então…

— Huh! O que…?

Um garoto de pele clara e cabelo loiro flutuava um pouco longe de onde ele estava. Parecia
dormindo ou desacordado. De repente, o corpo do homem foi sendo atraído para o corpo do
garoto.

— Huh!?

Notou algo escorrendo dos olhos do garoto: um líquido que carregava sua dor. As lágrimas
eram respostas às mágoas ressentidas durante sua vida; a pressão de carregar o legado da sua
família.

O único e último filho de sua mãe. Seu pai, após viúvo, despejou todo o destino da família ao
garoto.

O homem da seita tomou a sua dor, tocando o núcleo d’alma um do outro, correlacionando
seus pensamentos, misturando suas essências… até enfim se afastarem e Rajiv ser
arremessado para a escuridão profunda…

— Hah… — suspirou ao sentir o ar entrando pelas narinas. — Estou… vivo?

Sua visão foi presenteada com um belo céu azul. De canto de olho, viu que estava rodeado
por árvores. Mais do que isso, não sentia dor, não sentia seu sangue vazando. Pelo contrário,
sentia-se inteiro e mais leve, como se estivesse mais magro.

Começou a levantar, até notar a finura de suas mãos; ainda eram mãos de homem, mas bem
mais magras do que se lembrava.

Que estranho…, pensou ao perceber que usava roupas bem diferentes do habitual. Em vez do
clássico hanfu preto com um sol vermelho no peito — uniforme padrão de sua seita —, usava
um espécime de robe branco que estava todo sujo.
— Que coisa horrorosa! — soltou e então notou, ao levantar o olhar: — Uma estrada… Não
me lembro de ter visto uma estrada como essa próximo à nossa seita…

A estrada à sua frente parecia levar para fora da floresta, então logo começou a andar por ela.

No céu, nuvens pretas se dissipavam. Deve ter recém chovido, imaginou, até acabar
molhando seu pé ao pisar numa poça. Droga! Por que eu estou descalço?!

A poça refletiu seu rosto, dando-lhe a visão de um garoto que havia recém visto.

Que isso?! Apertou suas bochechas com as mãos, e o reflexo então confirmou: Esse é o meu
rosto! Como?! Incrédulo, continuou tocando sua face..

Enfim aquietou-se por um momento. Eu estou com o rosto… daquele garoto…, pensou e
começou a correr rumo ao fim da estrada de terra. Quando terminou, deparou-se com uma
grande cidade e com diversas pessoas andando para lá e para cá.

Coçou seus olhos, mas a visão continuou a mesma. Após um breve momento, encontrou-se
andando entre as pessoas. Seus olhos não se desviavam delas.

— Túnicas… Essas pessoas estão usando túnicas — sussurrava. — E as casas são feitas de
tijolos…

De onde veio, as casas eram feitas de madeira — um belo aspecto naturalístico. Então essas
estruturas mais… pedregulhosas… não agradavam seus olhos. Além disso, alguns ferreiros
martelavam seus equipamentos do lado de fora, o que não era lá muito agradável aos ouvidos.

Eu devo estar longe de onde nasci. Tenho que procurar por alguém, passou a buscar com os
olhos alguém que lhe aparentasse ser educado o suficiente para ajudá-lo. Foi então que sentiu
um toque em seu ombro.

— Arthur, que surpresa vê-lo aqui! — chamou uma garota ruiva. — Como está sua mãe?
Tenho que visitá-la qualquer dia desses.

— Ah! — saltou para longe, assumindo uma posição defensiva. Normalmente, ele sentiria a
energia de alguém antes que pudesse tocá-lo. — Quem é você?!

A garota olhou para os lados, notando que havia pessoas os encarando com escárnio. Então
logo se voltou ao homem: — Como assim, seu maluco? Sou sua prima, Elize!

— Prima?... — soltou e passou a refletir: Então… eu estou em outro corpo? Como isso é
possível?

— Arthur! — chamou ela.


— Desculpe-me, Elize… Eu só estou cansado… — mentiu enquanto se aproximava da prima
de Arthur. — Por acaso, não teria ouvido o nome Rajiv Van Libertria…, prima Elize?

— Hum? Não. Por que a pergunta? Você está estranho hoje.

— Nada não… — desviou o assunto e pôs-se a pensar: Se não conhecem meu nome,
provavelmente estou mesmo longe de casa. Mas o quão longe?

— Aliás, o que houve com seus sapatos?

— Huh… perdi eles.

— Hum…

É difícil fingir intimidade com alguém que nunca vi na vida, pensou Rajiv e logo perguntou à
Elize: — Então, onde nós estamos exatamente?

A garota levantou a sobrancelha: — Você não sabe?

— Só responda a pergunta! — gritou.

— Sério Arthur! O que tá acontecendo contigo? Tá mais burro que o normal.

Eu tô num corpo com fama de burro, que ótimo. Sinto que não serei respeitado.

— Olha lá — Elize apontou para um estabelecimento com uma placa em que estava escrito
“Perna de Porco”. — É a sua taverna favorita, e você sabe onde fica a sua taverna favorita,
não é, Arthur?

— Claro! Claro que eu sei.

— Onde, então?

— Eh…

— Meu… Deus… Você não se lembra mesmo? Você deve ter sofrido alguma maldição.
Venha comigo! — pegou Rajiv pela mão. — Vou te levar à Serena.

— Calma, eu não estou amaldiçoado coisa nenhuma!

— Se você não estiver amaldiçoado, ou você desenvolveu amnésia, ou você não é meu
primo.
— Quê?! Puff, não seja tola! É claro que sou seu primo. Tipo, não tem como eu não ser, não
é?

— Uh… — encarou-o seriamente — isso… foi bem estranho… Agora estou realmente
preocupada. Venha! — obrigou-o a segui-la.

— Ei! — chamou alguém. — Ô, bunda mole!

Elize parou de andar ao ouvir. Logo alguém se aproximou, acenando de leve para os dois e
levantando sua mão esquerda, revelando o que segurava:

— Ô, panaca, não quer seus sapatos de volta? Hahaha!

Logo Rajiv percebeu: Esses sapatos… Ele que pegou? Então eu não estava originalmente
descalço!

— Vamos! Quero ver se consegue pegar de volta, moleque…

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