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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PAULO EDUARDO ALVES DA SILVA

ACESSO à JUSTIÇA, LITIGIOSIDADE

e o modelo processual civil brasileiro

São Paulo

janeiro de 2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PAULO EDUARDO ALVES DA SILVA

ACESSO à JUSTIÇA, LITIGIOSIDADE

e o modelo processual civil brasileiro

Tese de Livre-docência apresentada à


Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo
(FDRP/USP), Edital n. 42/2017,
Departamento de Direito Privado e
Processo Civil (DPP)

São Paulo

janeiro de 2018

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho, por


qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de
pesquisa e estudo, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

Alves da Silva, Paulo Eduardo



Acesso à justiça, litigiosidade e o modelo processual civil
A472a brasileiro / Paulo Eduardo Alves da Silva. -- Ribeirão Preto,
2018.
290 p.

Tese (Livre-docência - Departamento de Direito Privado e
Processo Civil) -- Faculdade de Direito de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo, 2018.

1. ACESSO À JUSTIÇA. 2. LITIGIOSIDADE. 3. DIREITO


PROCESSUAL CIVIL. 4. PESQUISA EMPÍRICA EM
DIREITO.

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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A meus pais, José Reinaldo e Rosa Maria, que um dia


se conheceram nesta mesma Universidade, há quase
cinquenta anos, e que desde então constroem juntos o
amor, a igualdade e a solidariedade.

E, como não poderia deixar de ser, à Cláudia, à Sofia e ao Joaquim,


que enfrentaram um outro país e outra língua para me acompanhar nas
pesquisas, que souberam me esperar nos longos dias e noites de
trabalho, e com quem aprendo todo dia algo mais sobre a vida.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
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AGRADECIMENTOS

A construção deste estudo é resultado de alguns anos de experiências e reflexões


sobre os problemas da justiça no Brasil e o potencial, muitas vezes desperdiçado, do
direito processual na oferta de soluções. Neste período, diferentes projetos e pessoas
contribuíram para as reflexões. Não conseguirei mencioná-las todas. As pesquisas e
projetos desenvolvidos junto ao IPEA forneceram o impulso inicial, o que se deve
sobretudo à liderança de Alexandre dos Santos Cunha. Os dois períodos como Visiting
Scholar junto a centros de pesquisa nos Estados Unidos - o Global Legal Studies da
Universidade de Madison/WI e o Center for Socio Legal Studies da Universidade da
California/Berkeley - ampliaram o repertório teórico e o potencial crítico das reflexões –
menção devida, entre outros, a Marc Galanter e Sumudu Atapattu no primeiro e a Calvin
Morril, Rosann Greesnpan, Lauren Edelman, Jonathan Simon Robert Kagan e Stephen
Burbank no segundo. Ambas essas experiências não teriam sido possíveis sem o apoio da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. Os encontros
científicos da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED) e da Law and Society
Association (LSA), bem como os cursos conduzidos junto aos programas de graduação
da FDRP/USP e pós-graduação da FD /USP ofereceram oportunidades para o debate
coletivo e a organização de ideias e argumentos. A rica e atualizada biblioteca do
professor Cássio Scarpinella Bueno foi de inestimável ajuda nas pesquisas, como também
o Serviço de Biblioteca e Documentação da FDRP, nas pessoas de Milena Celere e Tamie
Lança. Daniela Gabbay e Diogo Coutinho ofereceram qualificada leitura e pertinentes
sugestões em trechos chave. E uma equipe de orientandos e orientandas prestou valioso
apoio na revisão, pesquisa bibliográfica e organização da documentação - Elisa Vanzella
de Lucena, Natália Batagim de Carvalho, Rafael Bessa Iamamura, Flávia Passeri do
Nascimento.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
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“Most analyses of the legal system start at the rules end and work
down through institutional facilities to see what effect the rules
have on parties. I would like to reserve that procedure and look
through the other end of the telescope. Let’s think about the
different kinds of parties and the effect these differences might have
on the way the system works”

Marc Galanter, 1974

Todo fenómeno jurídico, aún antes de serlo, es um fenómeno


social. El proceso no constituye una excepción.

J. C. Barbosa Moreira, 1989

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LISTA DE TABELAS

FIGURA 1: PIRÂMIDE COM OS ESTÁGIOS DE TRANSFORMAÇÃO DAS DISPUTAS (REPRODUÇÃO)


FIGURA 2: PIRÂMIDE DE DISPUTAS CONFORME A NATUREZA DOS CONFLITOS (REPRODUÇÃO)
FIGURA 3: A “ÁRVORE” DO SISTEMA DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS
FIGURA 4: O “PAGODE” DE DISPUTAS CHINÊS, COM VARIAÇÃO POR PERFIL DE RELACIONAMENTO
PESSOAL DAS PARTES
FIGURA 5: QUANTIA DE ARTIGOS JURÍDICOS COM “ACESSO À JUSTIÇA” NO TÍTULO, NO
IUSDATA/FDUSPO, ENTRE 1985 E 2015
FIGURA 6: SUBTEMAS ABORDADOS NOS ARTIGOS JURÍDICOS COM TÍTULO “ACESSO À JUSTIÇA”,
PUBLICADOS ENTRE 1985 E 2015, NA BASE IUSDATA/FDUSP
FIGURA 7: SUBTEMAS ABORDADOS NOS ARTIGOS COM TÍTULO “ACESSO À JUSTIÇA”, PUBLICADOS
ENTRE 1985 E 2015, NA BASE INTEGRADA SIBI/USP
FIGURA 8: PERCENTUAL DE PESSOAS QUE TIVERAM SITUAÇÃO DE CONFLITO, ENTRE 2004 E 2009,
NA POPULAÇÃO DE 18 ANOS OU MAIS DE IDADE, POR NÍVEL DE INSTRUÇÃO, SEGUNDO
AS REGIÕES DO PAÍS - 2009
FIGURA 9: PERCENTUAL DE PESSOAS QUE TIVERAM SITUAÇÃO DE CONFLITO, ENTRE 2004 E 2009,
NA POPULAÇÃO DE 18 ANOS OU MAIS DE IDADE, POR CLASSE DE RENDIMENTO MENSAL
DOMICILIAR PER CAPITA, SEGUNDO AS REGIÕES DO PAÍS - 2009
FIGURA 10: ÍNDICES DE CONFIANÇA NAS INSTITUIÇÕES, COM DESTAQUE PARA O JUDICIÁRIO – 1O
SEM. 2016
FIGURA 11: ÍNDICES DE CONFIANÇA NA JUSTIÇA, COM SUBÍNDICES DE PERCEPÇÃO E DE
COMPORTAMENTO, POR ENTREVISTADOS QUE JÁ UTILIZARAM E QUE NÃO UTILIZARAM
O JUDICIÁRIO – 2O. SEMESTRE DE 2015
FIGURA 12: PERCENTUAIS DE RESPOSTAS DE AUTOPERCEPÇÃO DE RESPEITO ÀS LEIS EM GERAL – 1O
SEM. 2016
FIGURA 13: PERCENTUAIS DE ENTREVISTADOS QUE RESPONDERAM QUE “CONCORDAM MUITO” OU
“CONCORDAM POUCO” COM AS AFIRMAÇÕES LISTADAS – 1O SEM. 2015
FIGURA 14: PERCENTUAIS DE ENTREVISTADOS QUE RESPONDERAM SER “PROVÁVEL” OU “MUITO
PROVÁVEL” HAVER PUNIÇÃO PARA CADA UMA SITUAÇÕES LISTADAS – 1O SEM. 2015
FIGURA 13: DISTRIBUIÇÃO DE PESSOAS DE 18 ANOS OU MAIS DE IDADE QUE TIVERAM SITUAÇÃO
DE CONFLITO, ENTRE 2004 E 2009, POR TIPO DE ENCAMINHAMENTO DADO AO
CONFLITO MAIS GRAVE, SEGUNDO AS REGIÕES DO PAÍS – 2009
FIGURA 10: DISTRIBUIÇÃO DAS PESSOAS COM MAIS DE 18 ANOS QUE TIVERAM SITUAÇÃO DE
CONFLITO, ENTRE 2004 E 2009, POR ÁREA DA SITUAÇÃO DE CONFLITO MAIS GRAVE,
SEGUNDO AS REGIÕES DO PAÍS - 2009
FIGURA 11: SETORES COM MAIOR PERCENTUAL DE LITÍGIOS JUDICIAIS NO BRASIL, NO TOTAL E POR
RAMOS DA JUSTIÇA - 2012
FIGURA 12: LITIGANTES COM MAIOR PERCENTUAL DE LITÍGIOS JUDICIAIS NO BRASIL, NO TOTAL E
POR RAMOS DA JUSTIÇA - 2011
FIGURA 13: LITIGANTES COM MAIOR PERCENTUAL DE LITÍGIOS JUDICIAIS NO BRASIL, NO TOTAL E
POR RAMOS DA JUSTIÇA – 2012
FIGURA 14: TIPOS DE BAIXA EM AÇÕES DE EXECUÇÃO FISCAL NA JUSTIÇA FEDERAL COM BAIXA EM
2009
FIGURA 15: TIPO DE REPRESENTANTE JUDICIAL DAS PARTES NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS DE
CINCO CAPITAIS DO PAÍS, EM 2012
FIGURA 16: QUANTIDADE DE PÁGINAS DE PEÇAS PROCESSUAIS APRESENTADAS POR PARTES COM
OU SEM ADVOGADO, NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS DE CINCO CAPITAIS DO PAÍS, EM
2012
FIGURA 17: MODOS DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS E IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS

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LISTA DE ABREVIATURAS

ADR – Alternative Dispute Resolution


CF – Constituição Federal da República
CJLP – Civil Justice Litigation Project
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPC – Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 2015)
CPC/39 – Código de Processo Civil de 1939
CPC/73 – Código de Processo Civil de 1973 (Lei 6859, de 1973)
CSLS – Center for Studies of Law and Society, da Universidade da Califórnia/Berkeley
DSD – Dispute Design System/Desenho de Solução de Disputas
DPC – Direito Processual Civil
ENAJUD – Estratégia Nacional de Não Judicialização
EUA – Estados Unidos da América
FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICJBrasil – Índice de Percepção da Confiança na Justiça da Fundação Getúlio Vargas
IPCLBrasil – Ïndice de Percepção do Cumprimento da Lei, da Fundação Getúlio Vargas
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
FDRP – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP
FD – Faculdade de Direito da USP
JEC –Juizado Especial Cível
JEF – Juizado Especial Federal
LM – Lei de Mediação (Lei 13.140, de 2015
LSA – Law and Society Association
MASC – Métodos Alternativos de Solução de Conflitos
MJ – Ministério da Justiça
NJP – Negócios Jurídicos Processuais
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
ProCon – Fundação Procon
REED – Rede de Pesquisa Empírica em Direito
SAL – Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
SIPS – Sistema de Indicadores de Percepção Social, do IPEA
Sistema de Indicadores de Percepção Social
SRJ – Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça
STF – Supremo Tribunal Federal’
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo
USP – Universidade de São Paulo


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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................ 12
I – Litigiosidade e acesso à justiça ......................................................................... 20
1. Premissas teóricas e metodológicas para a regulação jurídica da
litigiosidade ............................................................................................ 21
1.1. O acesso à justiça como eixo teórico da litigiosidade ............................... 28
1.2. As perspectivas analíticas do acesso à justiça .......................................... 31
1.3. Acesso institucional à justiça: a desigualdade e as “três ondas” .............. 37
2. Direito, desigualdade e jurisdição ................................................................. 44
2.1. O direito não é neutro .............................................................................. 45
2.2. A litigiosidade de massa não é novidade .................................................. 49
3. O acesso substancial à justiça ....................................................................... 56
3.1. O sistema processual premia a litigância .................................................. 57
3.2. Judicialização não é litigiosidade .............................................................. 63
4. O acesso à justiça que antecede a judicialização ........................................... 69
4.1. O direito regula a sociedade por meio dos processos judiciais ................ 72
4.2. A justiça que está no processo ................................................................. 75
4.3. A construção social da legalidade e justiça ............................................... 78
4.4. Sistemas sociojurídicos de solução de disputas ....................................... 81
5. Jurisdição e o direto processual no contexto de litigiosidade ........................ 86
II. O acesso à justiça civil e litigiosidade no Brasil ................................... 92
1. Leis e teorias sobre o acesso à justiça no Brasil ............................................. 94
1.1. As “três ondas” no Brasil – da ideia às leis ............................................... 96
1.2. Produção teórica em acesso à justiça - da ideia às doutrinas ................ 102
1.3. O “acesso à justiça” na legislação recente – da idéia a uma “outra ideia” e
uma nova lei .................................................................................................. 108
2. Retrato do acesso à justiça no Brasil – o potencial de litigiosidade ............. 117
2.1. Potencial de litigiosidade e capacidade para o exercício de direitos ..... 121
2.2. Percepção de justiça e comportamento de judicialiação ....................... 127
2.3. Percepção de cumprimento das leis e judicialização .............................. 133
3. Retrato do acesso à justiça no Brasil - a judicialização da disputas ............. 138
3.1. A competição pelo uso do Judiciário e o controle da litigiosidade ......... 141
3.2. O perfil da judicialização no Brasil e o desigual acesso à justiça ............ 143
3.3. O mito da litigância excessiva – como litigam as pessoas comuns ......... 150
3.3.1. Os devedores réus em execuções fiscais ................................................................... 152
3.3.2. As partes que litigam nos juizados especiais cíveis ................................................... 155
3.3.3. Os pensionistas que buscam os juizados especiais federais ..................................... 160
4. Algumas notas a partir dos dados sobre a litigiosidade no Brasil ................ 167
III – Litigiosidade e acesso à justiça no processo civil brasileiro ........................... 169
1. O modelo processual civil brasileiro ........................................................... 176
1.1. Modelos de justiça e processo – divisão de trabalho, graus de formalismo
e autoridade decisória .................................................................................. 177
1.2. Legislação processual civil no Brasil e seus vetores axiológicos ............. 179
1.3. Características dos modelos processuais civis brasileiros – sofisticação
técnica, publicismo e desformalização ......................................................... 184
2. A nova legislação processual civil – eficiência, privatismo e
desformalização .................................................................................... 187
2.1. O processo civil entre a justiça e a eficiência ......................................... 190
2.1.1. Gerenciamento de processos judiciais – ou, das boas ou más relações entre o
“direito e a gestão” ................................................................................................................ 193
2.1.2. Valorização formal da jurisprudência – um peculiar regime de unificação de decisões
judiciais ............................................................................................................................... 202

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2.2. Protagonismo das partes e “privatismo" processual .............................. 216


2.2.1. “Justiça consensual” – a resolução consensual de disputas no contexto do acesso à
justiça no Brasil ................................................................................................................... 221
2.2.2. Convenções e negócio jurídico processuais – desafios de um modelo processual
privatista ............................................................................................................................. 233
3. Desafios do acesso à justiça na nova legislação processual: eficiência,
liberdade e desigualdade ...................................................................... 247
Conclusão - acesso à justiça e litigiosidade no processo civil brasileiro ................ 254
Referências ......................................................................................................... 275

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Introdução

É uma tarefa árdua para qualquer ordenamento jurídico encontrar as regras


socialmente mais adequadas para disciplinar a solução das disputas entre os cidadãos. É
improvável que algum já tenha conseguido encontrar a forma ideal, a equação perfeita
entre a forma e a função dos processos. Ainda assim, não faltam tentativas. Algumas
relativamente bem-sucedidas, outras um pouco menos. Periodicamente, novas formas são
propostas, discutidas, implantadas, avaliadas e revistas.

O direito processual é a área do direito responsável pelas regras, procedimentos


e instrumentos de que os litigantes se valerão para encaminhar suas disputas, bem como
de que julgadores farão uso para lhes encontrar uma solução justa. Nessa importante
missão, o direito processual é guiado por diferentes vetores sociais, políticos, jurídicos,
econômicos e por suas próprias premissas científicas. Em épocas e contextos em que as
transformações sociais são mais intensas e perceptíveis, o arranjo dos valores que
inspiram o desenho das regras processuais torna-se instável. A dificuldade de encontrar
o desenho das regras é ainda maior e a probabilidade de êxito, reduzida. Nesses
momentos, é mais do que nunca preciso que se tenha clareza quanto à referência de
orientação do direito processual.

O conjunto de valores que compõem o ideal que se denominou de “acesso à


justiça” é um dos mais influentes vetores do direito processual em sistemas jurídicos
contemporâneos nos últimos cinquenta anos. Ele se destaca por oferecer resposta aos
desafios típicos das organizações sociais contemporâneas e por desfrutar de rara
unanimidade no debate jurídico. Talvez por isso, seja invocado para justificar distintas
medidas e reformas legais e para reunir impulsos valorativos de diferentes naturezas. Nem
tudo, porém, cabem nas ideias que deram origem ao conceito de acesso à justiça. Em
alguns casos, o termo é usado para buscar legitimar argumentos e valores bastante
distintos daqueles que motivaram a sua origem.

A litigiosidade, por sua vez, aqui definida como a propensão de uma dada cultura
a reivindicar justiça em situações de violações de direitos, é crescente nas sociedades
contemporâneas. Tem relação direta com o direito processual e com o acesso à justiça.
As formas de solução das disputas, as regras dos processos e dos julgamentos, em última
análise, servem para canalizar a litigiosidade de uma dada sociedade. A busca por justiça

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precisa encontrar meios adequados para ser devidamente encaminhada e


satisfatoriamente respondida. A diversidade das possíveis violações a direitos exige uma
carta mais ou menos complexa de formas processuais. Nesse sentido, um grau alto de
litigiosidade exigirá correspondente amplitude de acesso da população à justiça, que será
instrumentalizado pelo conjunto de formas processuais. Litigiosidade, acesso à justiça e
formas de solução de disputas estão, portanto, diretamente relacionados. Mas quais os
termos dessa relação? E, com ela em mente, qual o melhor desenho processual em uma
sociedade?

O Brasil acaba de instituir um novo marco regulatório da resolução das disputas,


integrado pelo novo Código de Processo Civil (Lei federal n. 13.105, de 2015) e, em
menor medida, pela Lei de Mediação (Lei federal n. 13.140, do mesmo ano). Este estudo
visa compreender como a relação entre litigiosidade, acesso à justiça e formas processuais
foi equacionada pelo novo sistema processual civil brasileiro, mais precisamente pelo
arranjo valorativo que o sustenta. A questão central que o orienta estudo diz respeito ao
grau da interação entre aqueles elementos – o acesso à justiça, a litigiosidade e as formas
de solução de disputas – no novo quadro normativo. O CPC e a Lei de Mediação tendem
a promover o acesso à justiça no Brasil? O arranjo de valores que sustenta os seus
principais mecanismos corresponde às necessidades e o perfil da litigiosidade da
sociedade brasileira? Em que medida isso acontece, se de fato acontece? O quadro de
princípios que decorre da nova legislação brasileira atende aos preceitos de acesso à
justiça e, ao mesmo tempo, é adequado para atender à litigiosidade observada
concretamente no país?

Mais do que uma abstrata necessidade de adequação teórica, o que está por detrás
da pergunta da pesquisa são, afinal, a efetividade e a eficácia que se pode esperar,
concretamente, da nova legislação. O desenho das regras de resolução de disputas é, como
mencionado, sempre muito difícil e, não raro, menos bem-sucedido do que o esperado. O
trabalho diário de advogados e advogadas, juízes e juízas e, principalmente, a vida de
pessoas e de empresas, dependem dessas regras e dos resultados de justiça que elas
podem, ou não, produzir. Por isso, entender se uma legislação processual tem potencial
para se efetivar como caminho para a justiça, se será eficaz em promover uma disputa
isonômica, se conseguirá dar vazão à litigiosidade da sociedade e, afinal, se promoverá

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acesso à justiça significa, em última análise, saber se o país pode contar com um sistema
jurídico que zela por justiça e a produz.

O objetivo do estudo, portanto, é o de compreender o rearranjo de valores que


está à base da nova legislação e, com isso, discutir o seu potencial de efetividade no país.
Nos debates que o antecederam, o novo Código de Processo Civil foi anunciado como
solução para a crise da justiça brasileira. Ele reduziria o volume dos processos nos
tribunais em percentuais ousados, agilizaria a tramitação dos processos, aumentaria a
eficiência ao sistema e, afinal, promoveria o sonhado acesso à justiça. Muitas dessas
promessas compunham a estratégia de aprovação da lei, e foram redimensionadas tão
logo isso aconteceu. Independentemente disso, em termos realistas, o novo Código
efetivamente instituiu um repertório de novos instrumentos e um rearranjo
principiológicos com potencial para reconfigurar o modelo processual civil brasileiro.
Porque muitas mudanças são inéditas, não se conhece ao certo seus efeitos, nem se
realmente se efetivarão. Não se tem certeza, ademais, se são essas as alterações
necessárias diante do quadro da litigiosidade no Brasil. Este estudo pretende sistematizar
elementos que possam auxiliar na compreensão das mudanças promovidas pela nova
legislação processual e na sua aplicação concreta, de modo a explorar sua eficácia em
termos de acesso à justiça.

Metodologicamente, a triangulação dos três elementos anunciados no título e


nesta introdução comporá a estrutura analítica do estudo. Litigiosidade, acesso à justiça e
o direito processual serão conceitos conhecidos individualmente e, então, contrapostos e
entrelaçados entre si. O objeto sobre o qual será testada a articulação entre eles é a nova
legislação processual civil brasileira. Dito simplesmente, compreenderemos o que se
entende, afinal, por acesso à justiça; conheceremos aspectos da realidade da litigiosidade
no Brasil e analisaremos o modelo processual civil brasileiro, com atenção especial para
a nova legislação.

A hipótese que, em termos científicos, orientará a investigação é a de que o


arranjo de valores à base da nova legislação processual, se mudou o modelo processual
brasileiro, não necessariamente ampliou as condições para o acesso à justiça. Além disso,
tomou em consideração um cenário que não corresponde ao da realidade da litigiosidade
no Brasil e as necessidades da sociedade em termos de justiça civil.

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A estrutura formal do trabalho reflete a sua estrutura analítica. A primeira parte


estabelece as premissas teóricas, a segunda parte retrata a realidade do problema no Brasil
e a terceira parte analisa, com base nas anteriores, o sistema institucionalizado de regras.
Assim, fontes teóricas, empíricas e legislativas compõem uma análise articulada, em que
o conteúdo de um é referência para o exame do outro. Cada um dos elementos que
compõem o triângulo analítico proposto possui uma natureza distinta, o que demandará
ser identificado por informações de natureza igualmente distinta. O acesso à justiça,
apesar de representar um problema bastante concreto, é um ideal concebido teoricamente.
Assim, será definido pelo conjunto de interpretações e abordagens teóricas a seu respeito.
O perfil da litigiosidade no Brasil é, por sua vez, um fenômeno empírico, razão pela qual
será descrito a partir de dados empíricos especialmente sistematizados para este fim. E o
modelo processual civil brasileiro, em particular a nova legislação, são instituições
normativas, que serão apresentadas a partir de material legislativo e doutrinário
respectivos.

O acesso à justiça, objeto da primeira parte do trabalho, é, como adiantei, um


termo ao qual se tem conferido diferentes significados. Está na pauta de diferentes linhas
de pesquisa, em diferentes áreas do conhecimento – o direito processual, a sociologia do
direito, as ciências sociais, as ciências políticas, a antropologia do direito, eventualmente
a economia. Em cada uma das áreas, é objeto de abordagem por linhas específicas – na
ciência jurídica, por exemplo, é conceito chave em estudos da criminologia, reforma dos
sistemas judiciais, resolução alternativa de conflitos, garantias processuais, assistência
judiciária gratuita, processos coletivos, juizados especiais, entre outros. Há variadas
abordagens e distintos objetos de investigação sob a luz conceitual do acesso à justiça.
Considerando os objetivos da investigação, por adotar uma linha específica de estudos
em acesso à justiça – aquela de onde nasceu a proposta das “ondas renovatórias” de
Cappelletti e Garth por ocasião do relatório geral do Projeto Florença (1978). O relatório
do Projeto Florença é a referência para a seleção das fontes teóricas – inclusive porque
adotou o termo “acesso à justiça”, o que não acontece em outros estudos utilizados,
conquanto trabalhem com as mesmas ideias que o compõem. A pesquisa relativa àaquela
literatura cobre o período anterior e posterior ao trabalho de Cappelletti e Garth e procura
rastrear suas influências e acompanhar para onde caminhou a linha teórica após a sua
marcante publicação.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A litigiosidade, mais precisamente o perfil da litigiosidade no Brasil, que ocupa


a segunda parte do trabalho, é, em si, resultado de uma construção teórico e empírica
complexa. Aproveitando o fato de que recentemente passamos a produzir pesquisa
empírica em direito, este estudo organiza um “mosaico” do retrato da realidade da justiça
no Brasil por meio dos dados disponíveis. A seleção das peças reunidas no retrato,
também não exauriente, atendeu a diferentes critérios, geralmente baseados na literatura
sobre acesso à justiça do capítulo 1. O estudo quis enfatizar que o acesso à justiça é um
problema que envolve toda a sociedade e que, portanto, vai além do se tem chamado por
“crise do Judiciário”. Por isso, além dos dados gerais sobre estrutura judicial e
movimentação processual, recorre a relatórios a mobilização social por direitos, a
percepção e comportamento das pessoas em relação à justiça o perfil subjetivo dos
litígios. Além de relatórios oficiais, os dados sistematizados neste estudo provêm de
trabalhos feitos por universidades, centros de pesquisa e pesquisadores e pesquisadoras
independentes. Os objetos são distintos, mas articulados a perspectivas integrantes do
ideal de acesso à justiça, segundo definido na literatura de referência. O eixo que liga os
dados é o perfil da litigiosidade no Brasil, a partir do seu dado mais geral até o
comportamento dos litigantes em juízo, passando pela confiança das pessoas na Justiça e
a competição pelo uso privilegiado do serviço público oferecido pelo Judiciário.

Apresentadas e apreendidas a teoria e a realidade, a investigação volta-se à lei.


Para situar a legislação processual civil brasileira recente e dimensionar a reconfiguração
que provocou no modelo de justiça, o estudo recupera as características mais evidentes
dos sistemas processuais que já vigoraram no Brasil. Então, centra o olhar nos valores e
tendências da lei, ilustrados por algumas principais novidades – a valorização da
jurisprudência, a resolução consensual de disputas, as convenções processuais e o
gerenciamento de processos judiciais. Porque o objetivo é identificar as premissas e
tendências que influenciaram a reforma, a análise é feita no nível dos valores que
orientaram o legislador. Não se trata de uma análise dogmática, porque não é este o
objetivo. A doutrina processual brasileira já tem produzido excelentes trabalhos com esta
finalidade e perfil. Também não é um trabalho de crítica ao texto da lei, porque o desenho
das normas jurídicas é tão somente a etapa inicial de construção do acesso à justiça, sem
capacidade de, por simples canetada legislativa, mudar realidades complexas. Este estudo
assume uma outra incumbência, que se acredita igualmente necessária para os resultados
do sistema: identificar como o rearranjo de valores altera o quadro de princípios vigentes

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

e, assim, qual orientação cabível para o uso e aplicação dos novos mecanismos;
compreender a sua função e seus motivos, suas possibilidades, vantagens e desvantagens,
seus prováveis efeitos, o cenário que comporão e, principalmente, os beneficiados pelas
mudanças. Por este caminho, organiza um panorama que esclarece e orienta os operadores
e aplicadores das novas regras, a quem agora compete explorar-lhes o potencial e extrair-
lhes os resultados esperados. Na análise dos mecanismos processuais da nova lei, para
identificar as tendências e valores neles subjacentes, o trabalho recorre a uma síntese das
conclusões levantadas nos capítulos anteriores, na forma de “postulados” e “indicadores
de acesso à justiça”. Ambos resultam de um esforço de síntese das principais explicações
teóricas e achados empíricos levantados na pesquisa, e serviram para a avaliação do
potencial de impacto dos mecanismos instituídos pela nova lei em relação aos critérios
de acesso à justiça e características da litigiosidade no Brasil.

Alguns termos e conceitos ganham sentidos específicos neste trabalho, de forma


a refletirem as ideias articuladas na argumentação construída. “Litigiosidade” foi
entendida como a propensão dos indivíduos de uma dada cultura a reivindicar justiça
diante de situações de violação de direitos, o que inclui desde as disputas de interesses
que ocorrem diariamente no âmbito social até os litígios formatados nos processos
judiciais, sob a apreciação do Judiciário. “Litigância” está ligada à litigiosidade, mas seu
sentido aqui usado reflete algo mais concreto, como as ações (sociais e judiciais) e os
comportamentos adotados nas disputas por justiça. “Litigância judicial”, particularmente,
se refere ao comportamento de levar disputas ao Judiciário e, nesse sentido, também
indica o nível geral de procura pela justiça oficial e o volume de processos decorrente.
Desta forma, o argumento que aponta haver muitos processos judiciais no Brasil estaria
ligado ao fenômeno aqui identificado por “litigância judicial”, não pela “litigiosidade”.
Esta exprime fenômeno mais amplo, situado no âmbito social e estatal, que se reflete ou
não em processos na Justiça – i.e, na “litigiosidade judicial”. Os termos “disputa”,
“conflito” e “litígio” são usados segundo critérios similares, embora aqui haja menor
preocupação com sua diferenciação. Em princípio, “disputas” acontecem no âmbito da
sociedade, “litígios” no âmbito das instituições do sistema oficial de justiça e “conflitos”,
em ambos. Este critério não foi seguido à risca, de modo que, nos casos em que não havia
risco de equívocos, os termos foram usados indistintamente, conforme o melhor estilo de
redação para a ocasião. Os usos dos termos “envolvidos”, “interessados”, “partes” e
“litigantes” também segue critérios similares: nas disputas havidas na sociedade, temos

17
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

“envolvidos”, “interessados” e, inclusive “partes”; já “litigantes” são as partes do litígio


judicializado. “Políticas judiciárias” é o termo aqui usado genericamente para designar
todas as políticas públicas voltadas a aperfeiçoar a promoção de justiça à sociedade, seja
por meio do aperfeiçoamento das leis, dos órgãos, dos procedimentos ou do arranjo social
e, tenham elas natureza administrativa (v.g., as “metas” do CNJ), ou legislativa (o próprio
CPC). O termo “jurisdição” continua restrito ao poder, função ou atividade estatal de
resolução das disputas, mas passa a abranger também os acordos, ao lado dos provimentos
adjudicatórios. “Sistema de justiça” é mais amplo do que “jurisdição”, usado para
identificar o sistema composto por todos os órgãos que atuam em torno da promoção da
justiça, judiciais ou extrajudiciais. “Atores do sistema de justiça” são os agentes públicos
e privados que atuam nos diferentes órgãos, permanente ou episodicamente – juiz, partes,
advogados, defensores públicos, promotores, procuradores, servidores de cartório,
peritos, mediadores, oficiais de justiça, servidores do INSS, etc. “Instituições” não são
apenas os órgãos do sistema, mas todo o conjunto de regras, procedimentos, formas,
práticas sedimentadas no sistema, expressamente normatizadas ou não.
“Institucionalizar” ou “institucionalizados” reflete a qualidade adquirida pelas práticas e
fenômenos sociais esparsos quando passam a integrar o sistema oficial de justiça. Por
exemplo, a atividade de conduzir uma disputa para a resolução consensual foi, na nossa
experiência, institucionalizada como “mediação” e, recentemente, ganhou novo grau de
institucionalização com a incorporação ao sistema oficial de justiça. Por fim, embora
tenha limitado o uso da “jurisdição”, ampliei o conceito de “processo” para designar, além
dos processos judiciais, todo tipo de relação entre interessados na resolução de uma
disputa, no âmbito estatal ou privado. Assim, há processo judicial, processo
administrativo, processo arbitral, processo de mediação e, inclusive, processos sociais de
resolução de disputas, inclusive quando desenhados em caráter ad hoc. Esse conjunto
consubstancia o que defino como o “macrossistema integrado de solução de disputas”,
composto pelo sistema de justiça, dentro do qual está a jurisdição, e o que chamei de
“sistema social” de justiça, integrado pelos processos exclusivamente privados, sociais e
comunitários – a negociação, a mediação privada, o serviço de atendimento ao
consumidor.

Ao final de cada capítulo há um item conclusivo parcial e, ao final dos três


capítulos, um capitulo de considerações conclusivas. Como as principais conclusões da
investigação decorrem do quadro geral de dados teóricos, empíricos e institucionais

18
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

sistematizados e, como os argumentos fundamentais terão sido adiantados pontualmente


no decorrer dos três capítulos, o capítulo final oferece um resumo articulado dos
anteriores, que recupera e realça os postulados e os indicadores de acesso à justiça, os
argumentos e as conclusões principais. Na conclusão, são ensaiados apontamentos,
recomendações e propostas para a aplicação da nova legislação e para uma agenda de
pesquisa no tema.

19
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

I – Litigiosidade e acesso à justiça


A legislação processual brasileira foi incumbida, entre outras responsabilidades,
de oferecer instrumentos para lidarmos com um fenômeno típico das sociedades
contemporâneas: a quantidade cada vez maior e mais frequente de disputas de interesses
entre cidadãos e grandes corporações, normalmente encaminhadas para os sistemas
estatais de justiça. A “litigiosidade”, como o temos chamado por aqui, é observada em
diferentes países do mundo moderno e é aceitável afirmar que decorre tanto da
configuração de massa das sociedades contemporâneas quanto das limitações do modelo
de Estado nascido no pós-guerras. Após períodos seguidos de lutas por reconhecimento
de direitos desde o fim do século XVIII, as sociedades ocidentais se organizaram a partir
de cartilhas de interesses e situações de vantagem formatadas como direitos subjetivos
(TAYLOR, 1997; LIMA LOPES, 2004). O chamado “Estado de bem-estar social”
incumbiu-se não apenas de garantir, mas de promover a realização desses direitos. O
modelo de produção de capital e o avanço tecnológico sem precedentes permitiram que
pessoas e organizações se relacionassem com mais frequência e amplitude, formando
vínculos jurídicos muito mais difusos do que os liames individuais do período anterior.
O resultado, como reflete Galanter, é a inescapável constatação de que “não viveremos
em um mundo livre de problemas” e, como hoje é mais fácil identificarmos causas de
eventos que antes imputávamos à fatalidade do destino, a reivindicação por direitos
perante os órgãos incumbidos de solucioná-los é mais frequente (GALANTER, 2010, p.
125).

Segundo a teórica processual clássica, uma das funções da jurisdição seria a de


tratar a “patologia” que os litígios representariam (CARNELUTTI, 2002). Baseada nisso,
a legislação processual sempre regulara as formas pelas quais se admite a judicialização
das disputas. Em um contexto de litigiosidade de massa, entretanto, é possível que esse
papel seja modificado: em vez de tratar os conflitos, encaminha-os a soluções paralelas
e, em vez de regular as formas de tratamento, desregula-as. O legislador brasileiro de
2015 intentou essa mudança por meio de dois sequenciais diplomas, nos quais ele
diversifica os tipos de solução das disputas e os órgãos competentes (v.g., a mediação e a
conciliação e os Cejuscs; arts. 3o, 165 e 166 do CPC e Lei de Mediação, passim),
generaliza julgamentos por precedentes (v.g., a improcedência liminar do pedido e os
pronunciamentos judiciais com efeitos persuasivos; arts. 332 e 927 do CPC,

20
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

respectivamente), cria mecanismos para decisão em massa e julgamentos por amostragem


(v.g., os recursos repetitivos, o incidente de resolução de demandas repetitivas e o
incidente de assunção de competência; arts. 924, 976 e 947 do CPC, respectivamente),
reduz ainda mais o controle formal sobre os procedimentos oficiais (arts. 188 e 277 do
CPC) e divide com as partes o poder de direção do processo e desenho dos procedimentos
(vg., o negócio jurídico processual e o calendário processual, arts. 190 e 191 do CPC).

As novidades trazidas pelo CPC de 2015 e pela Lei de Mediação buscam


promover, em suma, desjudicialização dos litígios, desformalização dos processos e a
disponibilização das regras processuais. Essas tendências, entretanto, não são novas,
como também não é o próprio fenômeno da litigância de massa. Como explicam os itens
a seguir, encontramos análises teóricas identificando-o na década de 1960 e, a partir delas,
observamos a construção de toda uma linha de estudos em torno do eixo do acesso à
justiça e da resolução de disputas. Analisando-a em perspectiva, identificamos um
movimento que oscila dos canais mais formais e institucionais para uma noção de
legalidade e justiça construída em e pela própria sociedade. Este capítulo apresenta os
principais elementos dessa linha teórica por meio da evolução do conceito de acesso à
justiça, que tem servido de referência para as reformas legislativas processuais pelas
últimas três décadas.

1. Premissas teóricas e metodológicas para a regulação jurídica da


litigiosidade

O fenômeno da litigiosidade parece ser, numa mirada genérica, tão complexo


quanto contingencial. Ele ocorre em diferentes contextos, possui características que
variam conforme os cenários sócio, político e jurídico locais e formas complexas o
suficiente para dificultarem qualquer tentativa de descrição singular.

Trata-se, em verdade, de um fenômeno social antes de ser propriamente jurídico.


E é no campo amplo das ciências sociais que encontramos elementos para identifica-lo
com mais precisão. As principais teorias nessa área, sob diferentes enfoques e
profundidades analíticos, dedicaram algum espaço para a descrição das interações

21
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

marcadas por conflitos de interesses nas sociedades modernas1. A antropologia jurídica


também oferece uma leitura detalhada e profunda do fenômeno a partir do olhar de
comunidades locais e seus métodos de resolução de disputas2. Especificamente no campo
jurídico, a sociologia do direito e a teoria geral do processo analisam e sistematizam as
regras e formas institucionais de solução de conflitos3. Todos esses campos do
conhecimento trabalham com fenômenos correspondentes aos quais podemos, hoje,
identificar como “litigiosidade”.

A teoria processual clássica se construiu sobre a premissa de que os litígios


seriam uma “patologia social”, da qual a jurisdição se incumbiria de eliminar4. Carnelutti,
em lições básicas sobre o processo e a justiça, deixou isso muito claro:

(...) a lide é uma situação perigosa para a ordem social. A lide não é ainda um
delito, mas contém seu germe. Entre lide e delito existe a mesma diferença que
há entre perigo e dano. Por isso litigiosidade e delinquência são dois índices
correlativos de não civilidade: quanto mais civil e civilizado for um povo,
menos delitos serão cometidos e menos litígios surgirão em seu seio
(CARNELUTTI, 2002, p. 26)

Essa ideia provavelmente deita raízes na teoria social de Durkheim, mais


precisamente na sua distinção entre “fisiologia” e “patologia social”, apresentada

1
Cada um dos clássicos da sociologia atribui um papel próprio para o direito na organização da sociedade,
o que permite derivar explicações sobre os conflitos de interesses e os modos de resolve-los. Seria preciso
uma outra oportunidade para construí-las. Nesse momento, será suficiente diferenciar a visão
instrumentalista de Durkheim, para quem o direito é um índice do grau de solidariedade observado em
diferentes sociedades; a visão estruturalista de Marx, para quem o direito comporia uma superestrutura que
moldaria os modos de produção e a relação do capital com o trabalho; e a visão racionalista de Weber, para
quem o direito seria uma sistematização de procedimentos predefinidos e órgãos hierarquicamente
estruturados (COTTERELL, 2004). O conceito de lide como fato social patológico é, como explico a seguir,
de inspiração “durkheimniana”. Mas a organização geral dos sistemas de justiça contemporâneos e o
próprio estilo e conteúdo do direito processual de matriz romano-germânica apresentam predominância de
traços da racionalidade weberiana.
2
A antropologia enfatiza aspectos culturais das diferentes organizações sociais e uma das suas principais
lições é a relativização dos nossos conceitos de “civilidade” e “desenvolvimento”. A partir de descrições
densas de relações pessoais e coletivas, os modos de produção e a organização social e política de
civilizações distantes, os antropólogos do direito relevaram ao mundo ocidental formas diferentes e não
menos justas ou efetivas de regulação (MALINOWSKY, 2003). A questão específica das formas de
resolução de disputas é um dos assuntos de maior destaque nesses estudos (NADER, 1990; CHASE, 2005).
3
Nesses campos, as referências são muitas – entre europeus (Luhman, Teubner, o próprio Cappellletti, e
Santos), norte-americanos (Galanter, Garth, Abel, Festiner, Silbey, Sandefur) e os autores latino americanos
de sociologia do direito e em teoria geral do processo – cuja menção específica deixo de fazer porque seria
incompleta e faria injustiça a importantes autores e autoras deixados de lado. Parte desses autores comporá
a referência teórica que conduz o argumento construído neste estudo.
4
A ideia de que a disputa de interesses seria uma “patologia social” aparece em diferentes autores
processuais clássicos. Carnelutti, a quem se atribui o conceito de “lide”, considera-a não exatamente um
delito, mas algo que “contém o seu germe” ( 2002, p. 26). A fonte sociológica da ideia parece ser a distinção
que Durkheim fazia entre fatos sociais normais e fatos sociais patológicos.

22
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

originalmente em 1893 . Os “fatos sociais normais” seriam “os que são ou que devem
ser”, ao passo que os “fatos sociais patológicos” seriam “os que deveriam ser de outro
modo” (2007, p. 50). O critério diferenciador entre uma e outra figura seria, segundo
Durkheim, o seu grau de generalidade e o estágio de desenvolvimento da sociedade em
questão: “fato social é normal com relação a um tipo social dado, considerado numa fase
dada do seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa
espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução” (2007, p. 65). Os
fenômenos patológicos são, assim, os que se distinguem do tipo geral ou médio.

O direito processual se construiu sobre a premissa da lide como “patologia


social” e a litigiosidade como “índice de não civilidade” (CARNELUTTI, 2002). E a
legislação processual assumiu o controle do tratamento de tal patologia, por meio das
formas pelas quais as disputas de interesses seriam “tratadas” pela jurisdição. As
primeiras edições do clássico “Teoria Geral do Processo”, por exemplo, usavam o
argumento e, inclusive, termos durkheimnianos para apresentar o “conflito de interesses
e lide”, explicando que:

tais conflitos de interesses, por si e em si mesmos, pertencem à fisiologia da


vida social, pois constituem consequência natural da convivência e, na maioria
das vezes, resolvem-se sem prejuízos para os valores humanos. Quando, no
entanto, excepcionalmente, conduzem à violência e à desordem, passam ao
campo da patologia social (CINTRA, GRINOVER E DINAMARCO, 1975,
p. 7, g.n.).

A despeito da inquestionável influência de Durkheim para a teoria social


contemporânea (COHN, 2005), a ideia de “patologia social” não conta com adesão da
teoria social contemporânea. Seu principal argumento se apoia sobre uma idealização de
sociedade evoluída e integrada, sem conflitos ou tensões internas, que praticamente não
corresponde à realidade das sociedades contemporâneas. Como explica um de seus mais
importantes intérpretes:

[Durkheim] tendia a idealizar as sociedades que considerava integradas,


ignorando as tensões e conflitos dentro delas, ao mesmo tempo em que via as
realidades de sua própria sociedade somente como desvios patológicos de seu
futuro estado normal, idealmente integrado. (LUKES, 2005, p., 47).

Os critérios para diferenciar o fato normal do patológico – a generalidade, o


estágio desenvolvido e a normalidade – não são claramente identificáveis na maior parte
das sociedades contemporâneas. Pelo contrário. A ampla ocorrência de disputas de
interesse – ora intensificada pelo fenômeno que chamou de “litigiosidade de massa” –

23
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

diminui a distância entre o que “geral” (no sentido de médio, comum) e o “patológico”.
Com isso, o argumento da lide como patologia social perde muito do seu fundamento e
os postulados teórico processuais construídos sobre essa premissa demandam algum
aggiornamento.

A identificação de algo como um “fato social”, normal ou patológico, é


circunstancial. Depende, entre outros fatores, do momento histórico e o grau de
desenvolvimento de uma dada sociedade. Decorrência lógica é a necessidade de constante
acompanhamento das descrições das sociedades contemporâneas feitas pelas ciências
sociais. Isso vale para as ciências em geral e, principalmente, para o direito e,
particularmente, para o direito processual. Os tipos de disputas sobre interesses mais
frequentes, os atores envolvidos, o comportamento de buscar o Judiciário, a escolha por
determinados instrumentos processuais, a função do aparato processual nas estratégias de
cidadãos, empresas e órgãos do governo e a intensidade com que o utilizam, entre outros
elementos, são fatores que condicionam a forma e a função das técnicas processuais. E
são fatores que variam de tempos em tempos e tipos de sociedades, de sorte que é
inescapável a necessidade de acompanha-los, sobretudo quando as mudanças sociais são
frequentes, intensas e radicais.

Há um outro modo de olhar para a litigiosidade, que realça suas consequências


positivas para a organização social. É suficiente desenvolvida, por exemplo, a teoria
segundo a qual o conflito apresenta um caráter sociologicamente positivo, vital para a
coesão social propriamente - a “sociação”, não pela sua desintegração - a “dissociação
(SIMMEL, 1983). Nessa linha, a sociedade só é completa quando há conflitos; a unidade
social não se alcança pela eliminação dos conflitos, mas, do contrário, pela sua
ocorrência.

“a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de


quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e
competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. Mas essas discordâncias
não são absolutamente meras deficiências sociológicas ou exemplos negativos.
Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas de forças sociais e
positivas e apenas na medida em que aqueles fatores negativos não atrapalhem.
Esta concepção comum é bem superficial: a sociedade, tal como a
conhecemos, é o resultado de amas as categorias de interação [harmonia e
desarmonia, associação e competição], que se manifestam desse modo como
inteiramente positivas” (SIMMEL, 1983, p. 124).

A pretensão de uma sociedade harmônica, livre da “patologia social” que seriam,


para Durkheim, os conflitos, é simplesmente irreal.

24
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

“Um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso, uma “união” pura


(Vereinigung) não só é empiricamente irreal, como não poderia mostrar um
processo de vida real”. (SIMMEL, 1983, p. 124).

A conscientização do papel social do conflito abre perspectivas para as ciências


sociais, inclusive e especialmente ao direito. Ainda segundo Simmel, “todas as formas
sociais aparecem sob nova luz quando vistos pelo ângulo do caráter sociologicamente
positivo do conflito” (idem, p. 123).

O litígio judicial é um dos mais evidentes exemplos. Liberto da pecha de “fato


social patológico”, a judicialização das disputas de interesse é indicativo de
desenvolvimento social e emancipação política. A propensão de uma dada comunidade -
mais precisamente, de uma dada cultura - a reivindicar seus interesses e direitos, seja por
meio dos próprios conflitantes ou mediante a intervenção de terceiros mais ou menos
institucionalizados, é um claro indicativo de exercício de cidadania.

Mais do que isso, a litigiosidade judicial serve à própria função elementar do


direito, na medida em que propicia um eficaz meio de regulação jurídica da sociedade
(KAGAN, 2003).

Apesar do “caráter sociologicamente positivo do conflito” e o potencial que a


litigância judicial oferece em termos de cidadania e efetividade do direito, o debate em
torno de políticas públicas judiciárias insiste em emprestar ao termo “litigiosidade” a
conotação anterior, de “patologia social”. O termo é utilizado de forma limitada, para
designar o quadro que resulta da propensão ao litígio, identificado concretamente pelo
volume de conflitos institucionalizados em um dado país ou comunidade. Ao mesmo
tempo, cresce o uso do termo, acompanhado pela designação “de massa” – “demandas de
massa”, “litigiosidade de massa”, “litigância de massa”, etc. 5.

A relevância que adquiriu o tema da “litigiosidade” tem uma razão prática


imediata, de caráter organizacional, nem sempre atrelada à importância política e social

5
Não se desconhece que são fenômenos distintos, a litigiosidade e a litigância. O primeiro seria a propensão
à reivindicação de direitos na Justiça, tal qual explicado no texto acima. A litigância pode designar o mesmo
fenômeno, mas também serve para identificar o grau de litígios concretamente formalizados (v.g., “uma
alta litigância”), bem como o comportamento das partes envolvidas (“v.g., “o réu adotou um
comportamento litigante”). Para os fins deste estudo, adoto o termo litigiosidade para designar aquele
primeiro sentido de propensão à reivindicação de direitos, principalmente quando qualificado pela sua
intensidade e difusão que marcam as sociedades contemporâneas (“litigiosidade de massa”). E reservo
apenas o termo “litigância” para designar esses dois últimos significados, de litígios concretizados e
comportamento das partes.

25
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

que lhe atribui a teoria social contemporânea. O volume muito maior de demandas da
sociedade impõe aos sistemas de justiça a árdua missão de lhes oferecer uma resposta
equivalentemente satisfatória, o que é praticamente impossível dentro dos limites formais
e capacidade estrutural disponível.

A litigiosidade de massa se materializa em grandes quantidades de processos


judiciais que preenchem quase integralmente a pauta dos tribunais (cf. dados no cap. 2,
infra) e exige consideração especial de todo o sistema de justiça e da ciência processual.
Não há tanta certeza sobre qual deva ser a forma da tutela jurídica prestada aos casos de
massa ou, antes disso, se seria mesmo o caso de sua contenção pelo sistema jurídico
processual. A legislação processual civil brasileira foi incumbida de regula-la e criou
alguns mecanismos com essa função. Resta avaliar para onde eles podem nos conduzir.

O conhecimento sobre a litigiosidade no Brasil pode tomar emprestado o


caminho trilhado por estudos feitos a partir de fenômenos correlatos, ainda que sob outras
denominações. O conceito de acesso à justiça e as análises sobre resolução de disputas
(“dispute resolution studies”), por exemplo, possuem literatura suficiente para nos
permitir identificar traços da litigiosidade e os elementos da sua manifestação
contemporânea e entender qual o potencial e limites da regulação jurídico-processual.

A articulação entre dados teóricos e empíricos permite uma visão mais fiel do
fenômeno da litigiosidade. A fonte teórica será composta pelas contribuições de linha
teórica da sociologia do direito que se inicia em estudos sobre desigualdade e pobreza,
transita pelos estudos sobre acesso à justiça e solução de disputas e desemboca em
análises sobre a consciência jurídica de uma dada comunidade. A fonte empírica se
limitará a dados sobre o sistema de justiça brasileiro, uma vez que a litigiosidade é um
fenômeno que, embora típico de sociedades de consumo contemporâneas, varia a partir
dos traços locais. Este capítulo é dedicado a apresentar as fontes teóricas que auxiliam a
entender o que é a “litigiosidade de massa” e avaliar a eficácia do tratamento que lhe é
dado pela legislação processual recente. O capítulo seguinte tratará de apresentar um
quadro a partir de dados empíricos sobre a justiça no Brasil.

Uma outra justificativa metodológica, relativa à escolha e ao modo de uso do


repertório teórico adotado, precisa ser feita. A opção por utilizar determinada linhagem
teórica, no caso a da sociologia jurídica norte-americana produzida a partir da década de
1960, não significa que esta literatura ofereça as respostas definitivas para o problema da

26
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

litigiosidade ou do acesso à justiça e, sobretudo, que as respostas por ela oferecidas sejam
precisas para explicar o fenômeno no Brasil. Trata-se, tão somente, de uma opção
metodológica pautada na utilidade funcional das contribuições teóricas. Elas são aqui
invocadas com a função de ajudar a entender o problema objeto da pesquisa, porque
oferecem interpretações que podem ser analisadas e testadas – e, eventualmente,
refutadas, se o caso brasileiro assim exigir. Isso não significa que outras escolas teóricas
não ofereçam respostas igualmente úteis para enfrentar o problema posto nesta tese. O
próprio direito processual clássico, produzido pela matriz romano-germânica na virada e
início do século XX, é repleto de leituras e análises se não mais, igualmente ricas e
complexas em relação às da literatura sociojurídica americana dos últimos cinquenta
anos6. Ambas escolas, inclusive, compartilham parte substancial do seu objeto de
trabalho: o desenho do instrumento apto a processar e resolver com justiça os conflitos
surgidos no tecido social. Diferenciam-se, naturalmente, quanto aos conceitos
construídos por cada uma e talvez pelo maior ou menor âmbito de consideração – a
sociologia jurídica trabalha com conflitos formalizados e aqueles localizados fora do
sistema formal de justiça, ao passo que o direito processual se concentra prioritariamente
nos primeiros. Também se diferenciam pela época em que foram produzidos -
respectivamente, em cada uma das duas metades do século passado - e, por isso, pelo
perfil de sociedade com que trabalham – em um caso, uma sociedade em processo de
industrialização e, no outro, uma nascente sociedade de massa, em incipientes redes e já
sob influência da revolução tecnológica. Tais diferenças permitem que este estudo realce
aspectos da litigiosidade no Brasil às vezes menos destacados pela literatura nacional, o
que também justifica a escolha daquela literatura como referencial teórico.

Por fim, como o texto revelará, as duas linhagens teóricas, a sociologia jurídica
norte-americana e o nosso direito processual, comungam um ponto comum em suas
trajetórias evolutivas, o que lhes proporciona mais correspondências do que à primeira
vista se imagina. Uma parte considerável do instrumental processual desenvolvido pela
literatura processual brasileira nas últimas três décadas se inspirou, como se sabe, nas
chamadas “ondas renovatórias” de acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1878), as quais,

6
Para citar três exemplos, as análises feitas por Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Piero
Calamandrei - para ficar apenas nos italianos – são ricas de elementos para compreender a litigância nas
sociedades e suas formas de resolver conflitos por meio do Estado.

27
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

por sua vez, foram inspiradas em estudos da sociologia jurídica norte-americana das
décadas de 1960 e 19707. Este capítulo também detalha como isso aconteceu.8

1.1. O acesso à justiça como eixo teórico da litigiosidade

Pelo menos dois grandes temas podem ajudar a compreender e a encaminhar o


problema da litigiosidade de massa. O primeiro é o do acesso à justiça (access to justice),
apresentado neste item, e o segundo o da solução de disputas (dispute resolution),
explorado no item seguinte. Juntos, eles oferecem uma rica chave teórica para descrever
e avaliar um dado sistema de justiça e seu aparato processual.

Ao analisar a litigância nas sociedades contemporâneas, Galanter (2005 e 2009)


sistematizou três correntes de estudos a partir da década de 1970: o que ele chama de
“dispute perspective in legal studies”, os chamados métodos “ADR” (alternative dispute
resolutions) e o acesso à justiça propriamente. A primeira se concentrara, diz ele, no
estudo de como as disputas são construídas na sociedade e como o direito, as leis e os
tribunais as recebem e processam dentro do sistema de justiça. A corrente dos “métodos
alternativos de solução de conflitos” teria derivado da anterior para oferecer outros
caminhos para o tratamento das disputas surgidas na sociedade; essa, segundo ele, logo
ganhou adesão prática e se tornou a corrente mais disseminada dentre as três. A corrente
do acesso à justiça, propriamente, ganhou respeito e presença institucional, avançou e
estabeleceu conexões com o movimento de “direitos humanos” e as políticas de incentivo
à mobilização por direitos, representados pelos desenhos variados de assistência jurídica
públicos e privados (“legal aid”, no original).

Na literatura jurídica nacional, predomina o uso abrangente do termo “acesso à


justiça”, designativo dos três sentidos retratados por Galanter: ora se refere a “legal aid”,

7
Referências e mais detalhes sobre o assunto no corpo do capítulo.
8
Como adiantei, o referencial teórico adotado tem mera função de inspirar as análises aqui construídas e
não exclui que outros caminhos, com referenciais teóricos próprios, possam conduzir uma investigação
sobre o mesmo objeto. E se cada caminho eventualmente conduzir a resultados distintos, não há risco de
que uma delas, ou ambas, estejam equivocadas. Prefiro pensar que, desta forma, tanto mais rico ficará o
leitor, municiado de diferentes perspectivas pelas quais possa construir suas próprias conclusões a respeito
de tamanho complexo problema das sociedades contemporâneas.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

ora a “dispute perspective”, ora a outros tantos sentidos equívocos e nem sempre
compatíveis entre si. Trato disso mais adiante.9.

A ideia de “acesso à justiça” parece adequada para a incursão no problema da


litigiosidade. Se esta é, como argumentei acima, um fenômeno essencialmente social –
com projeção jurídica, seja dito -, o acesso à justiça, ao menos de um ponto de vista
institucional, remete a um ideário em torno do qual se alojam os vários modos pelos quais
uma dada sociedade resolve seus conflitos. É difícil dizer se há alguma relação causal
entre ambos – se, por exemplo, o ideário de acesso à justiça gera litigiosidade ou, por
outro lado, se o grau de litigiosidade de uma comunidade credita o ideal de acesso como
um bem politicamente valorado. Mas parece evidente que ambos representam fenômenos
correspondentes, não raro similares e até mesmo, conforme a perspectiva adotada,
parcialmente idênticos.

Tal qual “litigiosidade”, o significado atribuído ao termo “acesso à justiça” varia


conforme a época, a perspectiva teórica ou mesmo a conveniência política10. Podemos
encará-lo, como fez Fontainha (2009), como um problema e como um movimento. Como
problema, ele sintetiza a dificuldade em concretizar a ordem jurídica, ainda maior para
cidadãos em piores condições jurídicas, financeiras e sociais. Os elementos que
caracterizam a ‘crise da justiça e do processo’, discutidos anteriormente, são
manifestações do acesso à justiça como problema. Já como movimento, ele reúne toda
uma articulação política e teórica voltada a minimizar os efeitos das desigualdades sociais
e jurídicas que caracterizam o acesso à justiça como problema.

A obra de Cappelletti e Garth (1978) é, sem dúvida, um marco neste movimento.


Mas, como veremos, não é pioneira nem o encerra. A sistematização que esses autores
oferecem situa-se em uma linha mais longa de estudos, anteriores e posteriores a eles,

9
Neste estudo, mantenho o uso indistinto do termo “acesso à justiça” para contemplar os diferentes estudos
sobre disputas e formas de resolvê-las, cobrindo as três categorias organizadas por Galanter e ainda outras,
sistematizadas por outros autores e autoras. Embora essa generalização seja imprecisa cientificamente, ela
facilitará a interlocução em torno dos problemas da litigiosidade. A exposição das linhas teóricas no corpo
do capítulo deixará claro as diferentes acepções, o que, espero, incentivará a discriminação do conceito e o
seu uso mais preciso.
10
Para recorrer a um exemplo simples e atual, há algumas décadas, a falta de “acesso à justiça” foi apontada
como o principal problema de sistemas de justiça de diferentes países (CAPPELLETTI; GARTH, 1978);
atualmente, não é incomum o argumento de que o excesso de acesso à justiça, incentivado exageradamente
nas últimas décadas, seria a causa dos problemas da Justiça no Brasil.

29
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

alguns filiados à tradição processual europeia e outros a movimentos de “Law and


Society” anglo-saxões. A trajetória desses estudos, ao menos no nosso passado recente11,
remonta, naquela literatura, ao início do século XX, com a famosa invocação de Roscoe
Pound sobre as causas da insatisfação popular com a justiça, em 190612. E alcançou seu
ápice, ao menos em países desenvolvidos do mundo ocidental, entre as décadas de 1960
e 198013. Nem sempre, esses trabalhos adotaram o nome “acesso à justiça”, como fizeram
Cappelletti e Garth em 1978, mas, em geral, enfrentavam o mesmo problema da
promoção de justiça nas sociedades contemporâneas.

No Brasil, por pelo menos três décadas desde 1985, o discurso de juristas e
políticos ocupados com o aperfeiçoamento do sistema de justiça civil fez uso do termo
“acesso à justiça”. Isso, porém, está longe de significar que todos caminhavam na mesma
direção e sentido. A adesão ao termo foi tão intensa quanto diversos os significados
representados. A referência sempre fora a obra de Cappelletti e Garth (1988), mas as
leituras variavam substancialmente: ingresso em juízo; tratamento isonômico das partes;
assistência jurídica gratuita; garantias de ampla defesa e participação no processo; tutela
de novos direitos; visão instrumental das formas e do processo; ordem jurídica justa;
correspondência do processo ao direito material; efetividade da tutela; e, a partir da
década de 1990, celeridade da prestação jurisdicional; administração da justiça; eficiência
do sistema de justiça; gestão da máquina judiciária; previsibilidade das decisões;
segurança jurídica para a sociedade, entre outros. Todas reivindicavam ser o caminho
legítimo para promover o “acesso à justiça” e, assim, angariar adesão para as propostas
que geralmente traziam. Nem sempre eram realçadas as diferenças entre as leituras de
acesso à justiça nem a incompatibilidade que, não raro, havia entre suas premissas e
objetivos. O que importava, mesmo, era o “acesso à justiça”, seja lá o que isso quisesse
significar.

11
Sem considerar os movimentos anteriores com finalidades similares, cíclicos na história da civilização,
como P.C.P. Carneiro sistematiza (CARNEIRO, 2007).
12
Posteriormente publicadas como Pound, R. “The Causes of Popular Dissatisfaction with the
Administration of Justice”, Baylor Law Review, v. 8, n. 1, 1956.
13
Muitos fatores históricos, políticos e sociais poderiam explicar este lapso temporal. Para uma noção geral,
podemos identifica-lo entre o movimento de expansão de liberdades civis que tomou conta da Europa e
Estados Unidos em meados da década de 1960 e, na outra ponta, a reação conservadora representada pelos
governos de M. Thatcher e R. Reagan, no Reino Unido e Estados Unidos, respectivamente. No Brasil, o
movimento aportou vinte anos depois, por conta do atraso social e político do regime militar entre 1964 e
1985. A produção teórica e legislativa brasileira da década de 1980 e parte de 1990 é declaradamente
inspirada no movimento de acesso à justiça.

30
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Mas, afinal, o que é acesso à justiça? De onde vem a ideia e o que ela traz
consigo? Para uma compreensão que nos permita avaliar a posição e o sentido dado pelas
recentes reformas legislativas processuais no Brasil, será preciso conhecer algumas
dessas outras análises sobre o tema. Os itens seguintes apresentam, inicialmente, a análise
de Cappelletti e Garth e, em seguida, trabalhos que os inspiraram e trabalhos que foram
produzidos durante as décadas de 1980 e 1990 sobre a problemática da justiça e os
métodos de resolução de conflitos.

1.2. As perspectivas analíticas do acesso à justiça

A produção de conhecimento sobre como as sociedades resolvem suas disputas


de interesses e direitos é vasta e razoavelmente diversa. O conceito de acesso à justiça é
uma das suas mais influentes chaves de leitura. Ele está presente em pelo menos duas
grandes linhas teóricas do direito, a do direito processual dos sistemas de raiz romano-
germânica e a da sociologia jurídica de sistemas de raiz anglo-saxã14.

Na literatura sociojurídica norte-americana, é possível rastrear os trabalhos em


acesso à justiça e solução de disputas já na década de 1960, em um contexto sociopolítico
peculiar dos EUA - a chamada “era dos direitos civis”, do ativismo judicial e da litigância
estrutural (FISS, 1979). Durante a década de 1970 e o início da década de 1980, os estudos
em acesso à justiça diversificaram seus objetos, sofisticaram suas análises e enriqueceram
suas explicações. Nesta época, como se sabe, foram colhidas as experiências
sistematizadas no Projeto Florença que culminaram na tese do “acesso à justiça” de
Cappelletti e Garth. A década de 1980 também registra, nos EUA, o surgimento de uma
política de acesso à justiça baseada em “métodos alternativos de solução de disputas”, ou
“ADR” na sigla original, que ocupou a pauta e se disseminou para todo o mundo nas

14
O campo do sociolegal studies não pode ser equiparado à nossa “sociologia jurídica”, embora haja uma
grande área de convergência de fontes ou de temas de interesse. A perspectiva metodológica, a natureza
(conceitual ou pragmática) dos objetos de estudo e a integração com outras disciplinas jurídicas parecem-
me diferenciá-los. Este traço torna mais fácil e menos problemático articular as análises da “sociolegal
studies” aos estudos e à teoria do direito processual. Não poucos problemas, teorias, conceitos e, inclusive,
autores lhes são comuns. Para citar alguns, Mauro Cappelletti e Bryant Garth podem ser integrados em
ambas “áreas”, Marc Galanter e David Trubek iniciaram suas carreiras em direito processual e sistema de
justiça, Oscar Chase também articula bem o direito processual com perspectivas “sociolegal” – no seu caso,
na vertente da “legal anthropology”. Olhando bem, os teóricos processuais alemães do final do século XIX
e os italianos do início do século XX, como Chiovenda e Calamandrei, exploram problemas muito comuns
a alguns da linha de solução de disputas da “sociolegal studies” - a partir, naturalmente, de contextos sociais
bem distintos.

31
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

décadas de 1990 e 2000. Durante esse período, o tema do acesso à justiça esteve um tanto
esquecido, mas retornou com intensidade revigorante na transição para 2010
(ALBISTON e SANDEFUR, 2013).

Durante essa trajetória, o tema do acesso à justiça recebeu conotações distintas


das originais, embora ainda fosse dirigido ao mesmo conjunto geral de problemas, as
mesmas premissas e questões centrais: qual o papel do direito na regulação das disputas
que ocorrem na sociedade e quais as formas para ele fazer isso.

A análise do papel do direito na sociedade atravessou três distintas perspectivas,


nesse mesmo período, identificadas pelo que Edelman e Galanter (2015) chamam de
estudos regulatórios (regulatory studies), procedimentais (procedural studies) ou
constitutivos (constitutive studies). Os estudos do primeiro eixo consideram o direito
como um conjunto de regras formais e informais com a função de concretizar políticas
públicas. Os do segundo eixo encaram o direito como um sistema de instrumentos,
práticas, recursos e estratégias a serem operados em busca de uma dada finalidade. Juntos,
os estudos dos dois primeiros eixos fundaram os postulados sobre os quais aquela
literatura vê a relação entre direito e sociedade.

O primeiro desses postulados seria o de que o sistema jurídico é antes de tudo


plural - o sistema formal é acompanhado por sistemas informais de regulação e resolução
de disputas, o que a teoria sintetizou como “pluralismo jurídico”. O segundo, de que o
direito formal apresenta baixo grau de realização em concreto – a famosa lacuna, ou
“gap”, entre o direito nos livros, “law in books”, e o direito em funcionamento, o “law in
action”, o que nos estudos processuais identificamos por “inefetividade do sistema”. O
terceiro, de que os processos informais se estabelecem à “sombra” do sistema formal de
direitos, mas sob influência de normas sociais, e se tornam relevante espaços de disputa
paraestatal - a tese da existência de uma “shadow justice”, portanto15. O quarto, os

15
O termo “shadow justice” (em tradução literal, “justiça sombra”) remete inicialmente a uma projeção da
regulação jurídica estatal oficial sobre iniciativas e mecanismos comunitários ou extraoficiais de solução
de disputa – como os “Neighborhood Justice Centers” que Christine Harrington estudou e que inspiraram
a criação do termo (HARRING1985). Nesse sentido, “à sombra da Justiça”. O fenômeno específico
estudado por Harrington e que caracteriza a “shadow justice” é o que ela chama de “delegalization” de
poderes estatais para os chamados mecanismos “alternativos” de solução de disputas. A delegalização
resultaria na menor formalidade que caracteriza esses mecanismos e que, segundo ela argumenta, não
reduziria, mas ampliaria, o controle estatal sobre as condutas e a resolução de disputas. Evidentemente, o
termo “shadow” também possui a conotação de algo marginal, obscuro, o que também caracterizaria as

32
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

litigantes não são iguais em experiência, recursos e condições e isso determina o resultado
de acesso e exige do direito mecanismos de mobilização jurídica e promoção de isonomia
- a teoria sobre as vantagens dos “que têm” (os “haves”) e dos jogadores repetitivos
(“repeat players”)16. E, por fim, a conclusão de que os sistemas de solução de disputas se
iniciam no âmbito social e se estendem aos mais altos níveis do âmbito jurídico
institucional - os estudos que explicam como funciona a “pirâmide da disputa” (“dispute
pyramid”).

A perspectiva analítica chamada de “constitutiva” é identificada em estudos mais


recentes que exploraram a função simbólica que o direito exerce na sociedade, como
formas que evocam e replicam significados e entendimentos comuns17. Os aspectos
culturais do direito em cada comunidade se integram ao estudo da lei e dos
procedimentos. A ênfase é deslocada, do direito formal, para os modos pelos quais ele
conforma o pensamento e os comportamentos sociais – não necessariamente por meio de
regras formais, mas pela construção do conjunto de significados jurídicos que, com um
grau bem maior de efetividade, afetam e condicionam potencialmente o comportamento
dos indivíduos. Um dos seus principais recursos teóricos é o conceito de “legal
consciousness”, que sugere haver um processo de “construção social do sentido jurídico”,
responsável não apenas para criação das regras, mas principalmente pela sua legitimação
e efetivação na sociedade. Nessa perspectiva, o problema de efetividade da tutela
jurisdicional, por exemplo, tão caro à teoria processual, dependeria menos do desenho de
um instrumento tecnicamente perfeito ou da estrutura e capacidade de um órgão, do que
da internalização do sentido da regra na consciência social. Isso não significa que, para
esses estudos, o direito tenha perdido espaço na sociedade – pelo contrário. O direito está
muito mais enervado nas engrenagens sociais do que antes se considerava; e justamente

políticas de delegalização e institucionalização das alternativas ao Judiciário. Neste sentido, “justiça


sombria”. O pano de fundo dessas políticas, segundo relaciona Harrington, seria o mesmo fenômeno do
“judicial management” que observamos atualmente no sistema brasileiro, por exemplo, ocasionado pela
premência imposta pela crise de capacidade dos tribunais de lidarem com a quantidade de processos que
lhes são encaminhados – outra característica contemporânea nossa. V. HARRINGTON, C. B. Shadow
Justice – The Ideology and Institutionalization of Alternatives to Courts. Westport, Greenwood Press, 1985.
16
Um dos itens seguintes é dedicado a explicar os conceitos de “haves” e “repeat player” e como eles
obtêm as vantagens estratégias mencionadas genericamente nesse parágrafo.
17
Pierre Bourdieu (2002) está entre as melhores referências para a ideia do papel simbólico do direito na
sociedade e é uma das que a literatura sociojuridica norte-americana recente costuma adotar, dentre a teoria
social de matriz europeia

33
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

por isso, não mais se circunscreve às formas estatais oficiais18. O direito está presente nas
organizações sociais, em seus mecanismos de autorregulação, e na sociedade em geral,
conformando a consciência jurídica e a experiência de indivíduos e grupos – uma ideia
que enfatiza a construção de significados jurídicos (“meaning making”) por cada um
desses atores ou grupos sociais.

Rebecca Sandefur (2008), especialista no estudo contemporâneo do acesso à


justiça, constrói uma sistematização correspondente a de Galanter e Edelman (2015) para
organizar a produção específica sobre esse tema. Segundo ela, os estudos em acesso à
justiça podem focar o comportamento e funcionamento do sistema (behavioural studies)
ou a percepção de justiça e legalidade das pessoas (perceptive studies). Os primeiros
buscam, segundo ela, descrever como agem as partes e os atores do sistema. Os segundos
descrevem como as pessoas avaliam a justiça a partir de suas experiências. Variam os
tipos de estudos alocados em cada categoria conforme o quê buscam e como olham para
seus objetos.

Os estudos “comportamentais” podem ser organizados conforme o ponto de


partida da análise: olhar o funcionamento do sistema “de baixo para cima”, quando foca
nos sujeitos de direito e no comportamento dos atores do sistema (juízes, advogados,
defensores, promotores, servidores, etc.), ou de “cima para baixo”, quando a análise se
concentra nas leis, nos processos e na organização do sistema de justiça –
respectivamente, “bottom up” e “top down perspectives”. Os primeiros buscam descrever
como as pessoas se comportam diante das leis e conflitos – reivindicando mais
determinados direitos e outros, menos -, e também como os próprios “operadores” do
sistema (juízes, advogados, servidores, etc.) atuam em seu contexto diário19. Já os estudos
que adotam uma perspectiva “de cima para baixo” (“top-down perspective”) buscam
saber como o desenho institucional e dos procedimentos e a organização geral do sistema

18
A ideia de “legal endogeinity”, explorada por Lauren Edelman (2016), é um bom exemplo de como o
direito continua presente na perspectiva constitutiva, dentro da regulação das organizações sociais privadas.
19
Segundo Sandefur (2008), dentro da perspectiva comportamental de baixo para cima de estudos sobre o
acesso à justiça, há aqueles que focam nos “problemas legalizáveis ou judicializáveis” (“justiciable
problems”), no sentido de saber como as pessoas respondem diante de problemas comuns); outros nos
“métodos de processamento das disputa” (“dispute processing” - como os problemas comuns já
identificados como violações se transformam ou não em demandas e como são processados); e outros ainda
sobre as necessidades jurídicas (“legal needs” - como as pessoas mobilizam as formas legais, como procurar
um advogado por exemplo, e do que precisam para fazerem isso).

34
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de justiça podem dificultar ou, em outros casos, viabilizar o acesso à justiça e a redução
da desigualdade.

Aparentemente, os temas em acesso à justiça que nos são mais familiares se


enquadram na classe dos “estudos comportamentais de cima para baixo” (“top down
behavioural studies”). Como exemplo, os trabalhos sobre a complexidade dos
procedimentos judiciais, as regras para a atuação dos advogados, juízes, servidores e
outros atores institucionais (os chamados “gatekeepers”), a disponibilização de serviços
jurídicos à sociedade, entre outros20. Os estudos sobre procedimentos diferenciados de
solução de conflitos (destaque para os MASC21), bem como os estudos sobre assistência
jurídica (capacidade das partes de dispor de advogados, mecanismos públicos ou privados
de assistência judiciária, amplitude da cobertura dos programas de auxílio, etc.22) também
compõem essa classe. Pelo próprio modo como coloca suas perguntas, estudos desse tipo
geralmente chegam à conclusão de que há uma disparidade entre o que é previsto em lei
e as experiências das pessoas - o chamado “gap” entre o “law in books” e o “law in
action”. A efetividade do sistema jurídico é um dos conceitos mais trabalhados a partir
desses estudos. Segundo avalia Sandefur (2008), eles geralmente não conseguem avançar
muito além disso.

Em ambas classificações, de Edelman e Galanter (2015) e a de Sandefur


23
(2008) , há uma premissa importante: as análises e as propostas para o acesso à justiça
podem ter natureza mais institucional, no sentido de aperfeiçoar leis ou os órgãos do
sistema, ou mais social ou cultural, no sentido de se tentar qualificar os cidadãos para
uma vida mais ordenada e o exercício mais profícuo de seus direitos. O acesso à justiça
de Cappelletti e Garth (1978), por exemplo, adota manifesta perspectiva institucional e

20
Há ainda estudos que tentam conectar as perspectivas “de cima para baixo” e “de baixo para cima” ,
como por exemplo, aqueles sobre como serviços são providos ao que as pessoas esperam ou demandam de
serviços legais.
21
A respeito do debate formado na literatura sobre os ADR (ou MASC, em português), Sandefur (2008)
avalia que ambas correntes oferecem equações simplistas entre envolvimento de advogados e uso de
procedimentos adversarias contra retração da litigância e resultados presumidos.
22
Segundo a mesma estudiosa (SANDEFUR, 2008), a maioria desses trabalhos é focada exclusivamente
na questão dos custos, com pouca ou nenhuma atenção a quem recebe os serviços ou que trabalhos jurídicos
eles envolvem; uma limitação metodológica que restringiria os resultados possíveis.
23
Há uma forte correspondência entre elas, ainda que não integral. O que Galanter e Edelman (2015)
chamam de regulatórios ou procedimentais parecem corresponder à categoria dos estudos sobre o
funcionamento do sistema de Sandefur (2008) (comportamentais, em um dos sentidos). E o que aqueles
chamam de perspectiva constitutiva pode se equiparar ao que Sandefur (2008) chamada de estudos de
percepção.

35
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

normativa. As três ondas de “renovação” do acesso à justiça preveem a instituição de


novos direitos, novos órgãos, novos procedimentos ou novos mecanismos de assistência
jurídica. Outros estudos, anteriores e posteriores a Cappelletti, adotam um olhar não
exclusivamente institucional para o acesso à justiça e a efetividade do sistema jurídico. A
visão institucional do acesso à justiça, como bem percebe Sandefur (2008), parte de uma
premissa bastante otimista quanto ao papel do direito na transformação das situações
materiais – que inclui a crença de que ele resolveria o complexo problema da
(des)igualdade, o que oculta uma das polêmicas mais caras à sociologia em geral e à
sociologia do direito em particular, a dos limites e possibilidades do direito atuar na
sociedade e o papel que ele pode e deve assumir.

Os itens seguintes deste capítulo resgatam e sistematizam histórica e


tematicamente teorias sobre o acesso à justiça e a solução de disputas produzidos naquela
literatura desde a década de 1960. Além de apresenta-las, cada item tenta enfatizar a
conclusão mais relevante e também mais pertinente para esta nossa pesquisa. Pela
influência extraordinária que o Projeto Florença teve no Brasil, a perspectiva e as
conclusões de Cappelletti e Garth (1978) são tomadas como referência e iniciam a
apresentação das outras teorias sobre acesso à justiça e resolução de disputas. Em seguida,
são apresentados os estudos anteriores e que lhe serviram de base e, então, os estudos
posteriores, que aprimoraram a reflexão sobre o problema para além do diagnóstico feito
no final da década de 197024. Os problemas que enfrentam não são outros do que aqueles
que o legislador processual civil brasileiro tem enfrentado nas últimas décadas: a
inefetividade do sistema; a universalidade da tutela jurisdicional; a morosidade do
processo; o formalismo processual; a litigância de massa e repetitiva; insegurança
jurídica; o volume de processos nos tribunais; a divisão de tarefas (e de poderes e deveres)
entre o juiz e as partes; a gestão da justiça; a flexibilização dos procedimentos; e,
sobretudo, os métodos ditos alternativos de solução de conflitos.

24
De modo geral, as análises de Cappelletti e Garth (1978), quanto as anteriores de Carlin, Howard e
Messinger (1966) e a de Galanter (1974), e também os estudos sobre as disputas feitos a partir do “Civil
Litigation Research Project” (Projeto de pesquisa sobre litigância cível) (1980 e 1981), todos apresentados
logo adiante, podem ser enquadrados na classe dos estudos comportamentais sobre o acesso à justiça. Os
três primeiros com viés mais de cima para baixo (as “três ondas”, “uma nova teoria da jurisdição”, as
vantagens do “litigante repetitivo”, etc.), e os do CLRP, a partir de um viés de baixo para cima (a
transformação social de uma violação em um litígio formalizado).

36
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

1.3. Acesso institucional à justiça: a desigualdade e as “três ondas”

A busca por uma sociedade justa e igual é muito antiga e não parece próxima de
resultados satisfatórios, pelo contrário25. Na nossa experiência recente, o problema da
redução das desigualdades sociais por meio do direito reaparece no final da década de
1970 e início de 1980, sob a denominação de “acesso à justiça”, a partir das análises que
Mauro Cappelletti e Bryant Garth fizeram sobre os dados do “Projeto Florença em Acesso
à Justiça”26. Este projeto levantou informações sobre sistemas de justiça e aparatos
processuais de diferentes países, filiados a diferentes tradições jurídica, europeus ibéricos,
anglo-saxões, escandinavos, do antigo bloco europeu oriental, asiáticos e latino-
americanos.

Os levantamentos foram feitos por pesquisadores e professores locais sob


coordenação de Cappelletti e Garth (1978) e resultaram em quatro volumes publicados a
partir de 1978. O primeiro dos volumes do Projeto Florença foi precedido de um relatório
geral com as premissas teóricas, a síntese das “barreiras” ou “obstáculos” ao acesso à
justiça e a famosa sistematização das “três ondas” de promoção do acesso, além de um
prognóstico de tendências e uma breve chamada para os riscos e limites da ideia. Este
sumário é que foi traduzido e publicado no Brasil em 1988 e, ainda que fosse apenas uma
apresentação sintética, tornou-se a principal referência teórica, de uso dogmático
inclusive, sobre o tema do acesso à justiça no país27.

25
Desnecessário listar aqui os vários dados que confirmam o crescimento da desigualdade no Brasil e no
mundo, assim como as teorias que tentam explicar por que, a despeito do desenvolvimento tecnológico, as
sociedades são cada vez mais desiguais – a mais popular talvez seja a obra do francês Thomas Piketty
(2013), mas está longe de ser a única. No Brasil, o dado mais significativo nesse aspecto talvez seja a nossa
desonrosa décima posição entre os países mais desiguais do mundo (índice Gini, da ONU, de 0.515), à
frente apenas de seis países africanos, o Haiti, a Colômbia e o Paraguai – dado que condiz com a projeção
do IDH com a inclusão dos índices de desigualdade social, segundo a qual o Brasil despencaria nada menos
que 19 posições (UNDP, 2016)
26
O problema da desigualdade sempre compôs a fundamentação última da teoria do direito porque
condicionante do próprio conceito de justiça. É difícil identificar apenas uma linha teórica que sirva de
referência. Especificamente na teoria processual brasileira, Pinheiro Carneiro faz uma síntese histórica da
ideia equivalente ao que hoje chamamos por acesso à justiça, que, segundo ele, remonta às civilizações
antigas e perpassa toda historia da civilização moderna (CARNEIRO, 2007).
27
A sistematização das propostas de Cappelletti e Garth (1978) em “três ondas” facilitou que se tornassem
a receita típica de reformas em países periféricos, particularmente no Brasil. Recentemente, Bryant Garth
comentou em artigo que “[s]eu trabalho de quarenta anos atrás com Mauro Cappelletti em Acesso à Justiça
parece muito mais vivo aqui no Brasil do que nos Estados Unidos”. E, para ilustrar, ele arrematou: “a cada
semana, a tradução para o português do relatório geral do Projeto Florença, de Gracie Northfleet, é citada
em pelo menos alguns artigos ou livros novos no Brasil” (GARTH, 2016, pp. 13 e 15; tradução livre). A
extraordinária e longeva repercussão daquele trabalho no Brasil pode sugerir algo sobre o modo como nossa
produção jurídica e nossas políticas judiciárias compreenderam a ideia de “acesso à justiça”.

37
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O destaque da tese de Cappelletti e Garth (1978) é a identificação dos obstáculos


e a sistematização de “três ondas” renovatórias do acesso à justiça. Os obstáculos,
segundo eles, seriam: i) os custos do processo judicial, sobretudo para as causas menores;
ii) a capacidade das partes, sobretudo aquelas com menos recursos jurídicos e financeiros;
e iii) as dificuldades de proteger os interesses difusos. A fim de supera-los, os sistemas
descritos desenvolveram iniciativas que os autores organizaram em “três ondas”
renovatórias: 1) a “legal aid for the poor” (assistência jurídica para os pobres), 2) a
“representation of diffuse interests” (representação dos interesses difusos) e 3) uma
“broader conception of access to justice” (concepção mais ampla do acesso à justiça).

A “primeira onda” de acesso à justiça trouxe as tentativas de criação de um


sistema viável e confiável de assistência judiciária gratuita à população sem condições de
contratar advogados particulares. As experiências registradas pelo Projeto variaram do
sistema básico em que o advogado particular presta o serviço gratuitamente e pede
reembolso ao Estado (sistema “judicare”) aos modelos mais aprimorados de estruturas
estatais de assistência jurídica e as iniciativas de seguros para custas de litígios. A
“segunda onda” foi a das inovações processuais para viabilizar a representação de
interesses difusos, algo absolutamente anômalo sob os parâmetros tradicionais de direitos
e ações individuais. O desafio era, além de normatizar a tutela jurídica desses interesses,
conceber instrumentos processuais suficientes para incentivar e também controlar a ação
por representação para a defesa desses interesses - que são, ao mesmo tempo, de todos e
de ninguém em especial28. A última “onda” era uma convocação genérica para se repensar
todo o sistema jurídico e processual a partir da ideia ampla de acesso à justiça. Inspirava-
se em iniciativas de desformalização e diversificação dos processos e procedimentos de
solução de conflitos e também em experiências de resolução alternativa de conflitos e
propunha a criação de órgãos, atores e procedimentos diferenciados adequados aos novos
direitos e novos conflitos das sociedades contemporâneas29.

28
“C’est tout et c’est rien” (“isso é tudo e não é nada”, tradução nossa), escreveu Roger Perrot, como
anotam Cappelletti e Garth (1978, p. 194).
29
Segundo as palavras dos autores, “From Access to Legal Representation to a Broader Conception of
Access to Justice. A New "Access-to-Justice Approach", [o que contemplaria um] “full panoply of
institutions and devices, personnel and procedures, used to process, and even prevent, disputes in modem
societies.”. Tradução livre:Do acesso à representação legal a um conceito mais amplo de acesso à justiça.
Uma nova abordagem do acesso à justiça contemplaria um arsenal inteiro de instituições e dispositivos,
atores e procedimentos, voltados para processar, e ainda prevenir, disputas na sociedade moderna
(CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 222).

38
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O trabalho de Cappelletti e Garth (1978) parece ter três marcas metodológicas,


pelo menos: a preocupação com a neutralização dos efeitos da desigualdade das partes na
Justiça; a adoção de uma análise interdisciplinar socioprocessual baseada em investigação
empírica; e a referência conclusiva apontada para um modelo processual inquisitorial, em
que as amarras do formalismo seriam esgarçadas pela atitude interventiva do juiz. Além
disso, três premissas enquadram a tese - uma de organização política, outra de perspectiva
teórica e outra de finalidade social. Politicamente, o pano de fundo é a transformação do
perfil padrão dos Estados ocidentais do século XX – da passividade liberal do século
anterior ao ativismo do Estado de Bem Estar. Teoricamente, suas análises se alinham à
perspectiva metodológica do “realismo jurídico”, desenvolvida no início do século XX,
principalmente nos EUA, que se opunha à tradicional abordagem formalista e
dogmatizante que caracterizava o direito já há alguns séculos30. E, nada menos
importante, toda a sua construção é movida pela preocupação com os efeitos letais que a
desigualdade social projeta sobre a eficácia de instrumentos jurídicos. O que foi chamado
de “legal poverty” é descrito em tons que sugerem ser este o mais perigoso sabotador de
sistemas jurídicos inteiros, por comprometer, não importa o quão perfeitas suas técnicas,
o seu escopo maior de garantir (promover, distribuir) justiça à sociedade
(CAPPELLETTI; GARTH, 1978b; JOHNSON, 1974).

A premissa da finalidade social e a neutralização das desigualdades parece o


mais importante para o argumento de Cappelletti e Garth (1978) - ainda que não tenha
recebido igual espaço e peso nos debates que se seguiram. Alguns indícios deixam isso
claro. Primeiro, o fato da assistência jurídica para os pobres encabeçar as “três ondas”, e
os “obstáculos” ao acesso se resumirem, essencialmente, a consequências da disparidade
entre as partes. Na explicação sobre a barreira dos “custos judiciais”, o argumento que se
destaca é o que eles consomem parte substancial do benefício pretendido em juízo,
sobretudo em conflitos de menor valor, o que torna inócua a previsão legal dos direitos
porque inviável sua reivindicação judicial. Na explicação sobre a barreira da baixa
“capacidade das partes”, os autores recorrem ao hoje clássico argumento de Galanter
(1974) de que partes com maiores recursos (financeiros, organizacionais e intelectuais) e

30
“Scholarship was typically formalistic, dogmatic, and aloof from the real problems of civil justice”.
Tradução livre: A academia foi tipicamente formalista, dogmática e alheia aos reais problemas da justiça
cível. (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 183, tradução nossa).

39
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

experiência de litigância (os “jogadores repetitivos ou habituais”) têm vantagens


adicionais descomunais sobre aqueles com menos recursos e experiência (os
“participantes eventuais”), e isto afeta sensivelmente os resultados dos processos mais do
que a própria lei, o direito das partes e a justiça do caso em si. Ambos esses obstáculos, e
os argumentos que os acompanham, derivam da premissa de que a desigualdade jurídica
e financeira das partes enviesa os resultados do processo e, portanto, compromete a
obtenção de justiça.

O conceito de “legal poverty” e a importância que atribuem à “igualdade” das


partes nas relações jurídicas e nas relações processuais (nítida influência de Galanter,
1974) são os pilares do seu argumento. Em apertado resumo, a ideia de acesso à justiça é
equiparada à efetividade do sistema jurídico, que por sua vez está condicionada à
igualdade das partes. Se não há igualdade, não há acesso efetivo e o sistema todo é
ineficaz porque não terá produzido justiça. Diversos trechos do texto, desde seu início até
o último parágrafo, deixam isso muito claro31. Em outros trechos, é direta a crítica ao
modo como o modelo político liberal e a teoria jurídica formalista-dogmática lidam com
o problema da desigualdade social e seus efeitos sobre a justiça:

Aliviar a pobreza legal (ou jurídica) – a incapacidade de muitas pessoas


utilizarem o direito e suas instituições – não era uma preocupação do Estado
(liberal). Justiça, assim como outras commodities no sistema laissez-faire,
poderia ser adquirida apenas por aqueles que pudessem arcar com seus custos
(…) (CAPPELLETTI; GARTH, p. 193, tradução nossa).32

31
“Primeiro, o sistema precisa ser igualmente acessível a todos; depois, ele deve levar a resultados justos
individual e socialmente” (p. 182), “Acesso à justiça formal, não efetivo – igualdade formal, não efetiva –
era tudo que o que era procurado no Estado liberal burguês do século XIX, aqui criticado (p. 183). “No
contexto de determinado Direito substantivo, eficiência ótima poderia ser expressa como uma total paridade
de armas (...) isso se é verdade que igualdade efetiva diante da Lei, e não meramente formal, é o ideal básico
de nossa época” (p. 186, tradução nossa). No original: “First, the system must be equally accessible to all;
second, it must lead to results that are individually and socially just.” (p. 182) “Formal, not effective, access
to justice - formal, not effective, equality - was all that was sought [no Estado liberal burguês do século
XIX, aqui criticado].” (p. 183) “Optimal effectiveness in the context of a given substantive law could be
expressed as complete "equality of arms”, (...)”. (p 186) “(...) if it is true that effective, not merely formal,
equality before the law is the basic ideal of our epoch (…)” (p 186).
32
No original, “Relieving "legal poverty"- the incapacity of many people to make full use of the law and
its institutions - was not the concern of the [liberal] state. Justice, like other commodities in the laissez-faire
system, could be purchased only by those who could afford its costs (...)” (p. 193).

40
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O debate teórico frequentemente assume o modelo irreal de dois (ou mais)


lados iguais no processo, limitados apenas pelos argumentos jurídicos que
advogados habilidosos podem reunir (idem, p. 185, tradução nossa) 33

A preocupação com os efeitos da desigualdade sobre a justiça também aparece


na escolha do referencial teórico. Cappelletti e Garth (1978) articulam um diálogo entre
processualistas preocupados com a efetividade da Justiça e sociólogos do direito norte-
americanos da primeira geração do movimento de “Law and Society”, que estudavam a
mudança social por meio da mobilização da população por direitos, o seu “acesso à
justiça”34. Ambos olhavam para os sistemas de justiça e os processos de resolução de
disputas fincados na perspectiva da efetividade da justiça por meio da equalização das
capacidades dos cidadãos35. Termos como desigualdade (“inequality”), transformação
jurídica (“legal change”), mobilização por direitos (“legal mobilization”), justiça para
os pobres (“justice for the poor”) e resolução de disputas (“dispute resolution”) compõem
o repertório elementar da “Law and Society”, tal qual “acesso à justiça”, “efetividade”,
“morosidade processual” e “instrumentalidade do processo” compunham o da nossa
teoria processual36. Além disso, nenhum deles buscava conceber técnicas jurídicas
hígidas e perfeitas, como era comum nos estudos processuais da tradição europeia
continental. A preocupação com a regularidade técnico-processual cedia importância ao
escopo substancial de justiça na sociedade. E sua metodologia, sob efeito do realismo
jurídico, privilegiava os estudos empíricos em detrimento da abordagem dogmático-

33
No original, “Theoretical discussions [...assumes...] the frequently unrealistic model of two (or more)
equal sides in court, limited only by the legal arguments that the skilled advocates can muster.” (p. 185).
34
O trabalho de Cappelletti e Garth (1978) se funda, de um lado, em teóricos processuais já clássicos, como
F. Klein, P. Calamandrei, F. Baur, J. Jolowicz, V. Vigoritti, R. Perrot, Y. Tanigushi o próprio Cappelletti
e, de outro, em estudos de J. Carlin, J. Howard, A. Chayes, M. Olson, E. Johnson Jr., M. Zander, M.
Galanter, D. Trubek, A. Sarat, W. Felstiner, R. Abel – os mesmos que deram origem à “Law and Society”.
Na matriz teórica europeia, um caminho similar parece ter sido trilhado com a interlocução entre
sóciojuristas e processualistas preocupados com o papel das formas na promoção de justiça. A discussão
original parece estar em Weber e Hegel, mas este diálogo ficou mais explícito com os estudos de Niklas
Luhmann sobre a legitimação por meio de procedimentos - que, como se sabe, influenciaram a teoria
instrumentalista do processo sistematizada no Brasil por Cândido Dinamarco.
35
Alguns objetos de estudo lhes eram comuns: os interesses coletivos, os processos de interesse público,
os meios alternativos de solução de conflitos (“ADR”), a litigiosidade repetitiva, o perfil e atuação das
partes, juízes e advogados, entre outros.
36
As ideias desta escola remontam às reflexões do realismo norte-americano da década de 1920 e da
jurisprudência sociológica (“sociological jurisprudence”) da mesma época e tomam corpo nos EUA na
década de 1970 e 1980, com a “Law and Society”. Não se trata, convém registrar, de estudos em “sociologia
jurídica” tal qual a entendemos. Os debates da “Sociological Jurisprudence”, que inspirou a “Law and
Society”, estão mais próximos da teoria e filosofia do direito, ao passo que os debates em resolução de
disputas (“dispute resolution”) da “Law and Society” focam objetos comuns aos nossos estudos em direito
processual – embora sob perspectiva e métodos inteiramente distintos como explico no texto.

41
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

formalista tradicional das áreas tradicionais do direito37. A perspectiva epistemológica


dos trabalhos de base – e da própria obra de Cappelletti e Garth – é, portanto, mais
sociológica-jurídico-processual do que política ou exclusivamente jurídica. Compõem
um campo específico que aproxima direito processual e sociologia jurídica - algo como
uma “sociologia processual”38.

Outra marca forte da tese de Cappelletti e Garth (1978) é a presunção implícita


de que o empoderamento do juiz seria um caminho recomendado para neutralizar os
efeitos da desigualdade entre as partes, promover efetividade e o acesso à justiça. Os
“poderes do juiz” são lembrados em muitos trechos do argumento dos autores, ora para
justificar, ora para instrumentalizar a promoção do acesso à justiça. Superar os malefícios
de um modelo liberal adversarial, em que a justiça dependia menos do direito e mais da
qualidade das partes e desempenho dos seus advogados, significava uma evolução sem
precedentes no direito processual – legitimado pelo novo paradigma político do Estado
de Bem-Estar Social e a sua ideia de um Estado (juiz) intervencionista, ativo. Na teoria
processual, as ideias de Franz Klein, que inspiraram códigos processuais de diversos
países por todo o século XX, desde o da Áustria em 1895,39 parecem ser a influência
determinante do “acesso à justiça”. Desformalização, concentração de atos processuais,
relação direta entre juiz e partes, livre avaliação das provas e ativismo judicial são
algumas de suas propostas.40 Na teoria jurídica americana, as ideias de Roscoe Pound,

37
Cappelletti e Garth (1978) se baseiam em relatos de experiências concretas coletadas nos diversos países
que compuseram o Projeto Florença, um objeto e um método eminentemente empírico - ainda sem os
requintes técnicos de investigação que detém hoje a pesquisa empírica em direito.
38
Em alguns sistemas educacionais, eles compõem um campo autônomo da ciência jurídica - que não se
confunde, convém registrar, com a Process Sociology (Sociologia do Processo) de Norbert Elias, por
exemplo.
39
Em tradução livre: “Quando implementado na Áustria pelo pioneiro Zivilprozessordnung de 1895, 150
reformas ajudaram a fazer procedimentos cíveis, nas palavras do notável processualista Franz Klein,
‘simples, baratos, rápidos, e acessíveis aos pobres’” . No original: “When implemented in Austria by the
pioneering Zivilprozessordnung of 1895,150 such reforms helped make civil proceedings, in the words of
the noted proceduralist Franz Klein, ‘simple, inexpensive, quick, and accessible to the poor’"
(CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 228).
40
“Tomadores de decisão ativos podem ajudar muito os litigantes não representados por advogados. Mesmo
os críticos de juízes ativos, em geral, reconhecem a necessidade de ativismo em casos de pequenas
reivindicações. Reformas modernas também tendem a provover o ativismo judicial, relativizando regras a
respeito de provas e permitindo, por exemplo, na Suécia e na Inglaterra, uma grande discrição em encontrar
procedimentos compatíveis aos tipos de reclamação” (tradução nossa). No original: “Active decision-
makers can do much to help litigants unrepresented by lawyers. Even critics of active judges in general
acknowledge the need for activism in small claims adjudication. Modern reforms also tend to promote
judicial activism by relaxing rules of evidence and by permitting, for example in Sweden and England,
great discretion in matching procedures to the types of claims”. (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 247).

42
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

aproximadamente da mesma época parecem ser a inspiração. Sua famosa chamada para
as causas da insatisfação popular com a justiça, de 190641, e suas críticas aos desvios
causados pelo modelo adversarial de justiça (“a sporting theory of justice”) culminaram
em recomendações para a concepção de instrumentos jurídicos e processuais mais
efetivos socialmente e aberturas do sistema para a figura de um juiz menos passivo do
que aquele da tradição da common law42.

Visto de uma perspectiva mais ampla e com o auxílio do repertório atual, o


“acesso à justiça” de Cappelletti e Garth (1978) apresenta algumas limitações. Em
comparação a outras possíveis análises sobre o acesso à justiça, a de Cappelletti e Garth
(1978) tem natureza eminentemente institucional, baseada, como avalia Sandefur (2008),
em uma boa dose de otimismo com relação ao papel do direito na sociedade. O direito,
particularmente o direito processual e o sistema de justiça, é o instrumento escolhido para
promover o acesso à justiça. Ainda que os autores reconheçam as limitações desta visão43,
ela determina a natureza e o teor das propostas que eles oferecem, todas de natureza
jurídico-institucional: oferta de aparatos públicos ou privados para assistência jurídica;
ampliação da tutela de direitos e interesses; e instituição de novos e variados
procedimentos conforme os tipos de conflitos. O limite, neste caso, é o próprio potencial
do direito e das instituições na promoção de igualdade social e justiça. Nem todos os
conflitos da sociedade são perfeitamente traduzíveis em termos jurídicos e nem todo
processo consegue oferecer resultados efetivos de justiça pela atuação da lei. A
inefetividade da jurisdição segue como um problema não resolvido.

41
O seu discurso na conferência anual da American Bar Association em 1906 é apontado entre as origens
do realismo jurídico norte-americano e como fundamento para as escolas da “sociological jurisprudence”
e, já na segunda metade do século XX, da “Law and Society”. Pound, R. “The Causes of Popular
Dissatisfaction with the Administration of Justice”, Baylor Law Review, v. 8, n. 1 , 1956.
42
As ideias de Klein e também de Pound influenciaram a legislação processual brasileira em diferentes e
relevantes momentos de sua evolução. O CPC de 1939, que é a primeira legislação processual
essencialmente brasileira (no sentido de romper a ainda existente influência das Ordenações portuguesas,
de ter sido criada já na República e de ter retomado o padrão de legislação federal unificada), é todo
construído a partir da premissa de que o juiz precisa assumir o controle sobre o processo para minimizar os
males do formalismo e das “chicanas processuais” com que partes mais favorecidas asseguravam um
resultado que não teriam por justiça. Na década de 1980 e 1990, os temas dos poderes do juiz, da oralidade,
da desformalização e, inspirados em Cappelletti e Garth, do acesso à justiça retornam à pauta por meio das
reformas feitas na legislação processual “eminentemente técnica” de 1973.
43
“Deve-se reconhecer que as reformas judiciárias e processuais não são suficientes para substituir reformas
políticas e sociais” (tradução nossa). No original: Judicial and procedural reforms, it must be recognized,
are not sufficient substitutes for political and social reform” (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 289)

43
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A tese do “acesso à justiça” de Cappelletti e Garth (1978) nasceu de um feliz


encontro de uma linha teórica processual europeia progressista com uma promissora
escola jurídica nascente em um país de tradição anglo-saxã. Com o tempo, cada uma das
linhas seguiu seus caminhos e enfrentou suas questões a partir de novas hipóteses, tendo
chegado a novas análises e outras conclusões. Acompanhar como essas ideias foram
incorporadas aos sistemas jurídicos e os passos seguintes deste desenvolvimento teórico
é um passo necessário para avaliar as políticas recentes de justiça no Brasil e o rumo que
toma nosso contencioso judicial civil a partir de agora.

2. Direito, desigualdade e jurisdição

Bryant Garth costuma narrar com entusiasmo a fase de sua carreira em que
trabalhou com Mauro Cappelletti no Projeto Florença, do qual nasceu a tese das “três
ondas renovatórias do acesso à justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1978). Algumas
curiosidades que ele rememora, embora pareçam frugais, podem ajudar a entender a
trajetória da ideia de acesso à justiça e sua relação com os estudos sobre o problema da
litigiosidade. Uma delas é a dos trabalhos que estavam sobre a mesa de Mauro Cappelletti
quando de um dos primeiros encontros presenciais dos dois para discutir o projeto.
Segundo Garth (2016, p. 271),

“Nesse momento, Mauro tinha na mesa dele dois artigos, que haviam acabado
de ser escritos e que foram enviados para ele. Um, de autoria de David Trubek
e Marc Galanter, chamado “Schollars in self-estrangement”, sobre direito e
desenvolvimento e outro, de Marc Galanter, “Why the ‘have’s’ come out
ahead”44.

Trubek e Galanter, professores da Universidade de Wisconsin, em Madison, nos


Estados Unidos, são fundadores e expoentes referenciais da escola que cresceu sob o
nome de “Law and Society” e hoje reúne especialistas em direito de diversas áreas e de
todos os continentes45. David Trubek manteve e ainda mantém uma interlocução intensa

44
“Entre o direito e sociedade: entrevista com Bryant Garth”. Entrevista concedida a Fernando Fontainha,
Izabel Muñez e Paulo Eduardo Alves da Silva, publicado na Revista de Estudos Empíricos em Direito, v.
3, n. 2, junho de 2016, p. 267-287, doravante “Fontainha, Nuñez e Silva, 2016”.
45
A associação científica “Law and Society Association” (<http://www.lawandsociety.org>) reúne
pesquisadores e organiza a produção na área. Vale a pena visitar seus sítio eletrônico, notadamente os links
para os congressos anuais, para uma noção da diversidade e amplitude de temas jurídicos cobertos nos
estudos dos seus associados. Na década de 1970, a associação se iniciava e os estudos sobre métodos de
resolução de disputas e acesso à justiça, desenvolvidos por sociólogos, juristas em geral e processualistas
em particular, compunham parte substancial da agenda de pesquisa da área.

44
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

com a América Latina, particularmente com o Brasil, iniciada nos projetos do CEPED
(Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito) na década de 1970 e retomados há
cerca de dez anos na mesma linha de “direito e desenvolvimento”46. Marc Galanter
construiu sua carreira em contato acadêmico com a Ásia, especialmente a Índia, e não se
tornou tão conhecido diretamente no Brasil. Ao menos não diretamente, porque, segundo
a narrativa de Garth, o referencial trabalho de Galanter, considerando um dos trabalhos
com maior impacto na teoria jurídica norte-americana nos últimos quarenta anos, foi uma
influencia direta na concepção do Projeto Florença.

A inspiração dos estudos sobre litigância e acesso à justiça de Cappelletti na Law


and Society norte-americana sugere que algumas das ideias que ele sistematizou no
relatório geral do Projeto Florença, extraordinariamente famoso no Brasil, integram uma
linha de estudos mais extensa, que nascera antes e prosseguira depois do projeto. Os
trabalhos apresentados nos itens seguintes são referenciais nesta literatura. Pela influência
sobre o acesso à justiça de Cappelletti e Garth e pela influência desses sobre as políticas
judiciais brasileiras das últimas três décadas, esses trabalhos podem ajudar a
compreendermos o problema da litigiosidade no Brasil. Exploro inicialmente os dois
trabalhos anteriores a Cappelletti e Garth (1978) – o próprio Galanter, de 1974, e, antes
dele, o trabalho de Carlin, Howard e Messinger, em 1966, considerados ambos as
matrizes de toda a linha de estudos naquela área. Em seguida, organizo as teses sobre
acesso à justiça e resolução de disputas que nasceram depois do Projeto Florença até as
iniciativas mais atuais.

2.1. O direito não é neutro

Estudos sobre o problema posteriormente chamado de acesso à justiça já


apareciam em trabalhos da década de 1960. Na literatura norte-americana, um dos mais
significativos é o “Civil Justice and the Poor – issues for sociological research”, de
Jerome Carlin, Jan Howard e Sheldon Messinger, publicado em 196647. Os autores,

46
Seria inglório querer listar aqui alguns trabalhos de Trubek. Sua produção é vastíssima. Pela importância
que tem para o direito processual, a escolha recai sobre “The Handmaiden’s Revenge: On Reading and
Using The Newer Sociology of Civil Procedure”, de 1988, em que organiza uma nova perspectiva
epistemológica para o estudo do direito processual.
47
Este artigo compunha o primeiro número do primeiro volume da Law and Society Review, publicação
atualmente mais influente da área. Carlin, J. E.; Howard, J. & Messinger, S. L.“Civil justice and the poor:
issues for sociological research”, Law and Society Review, JSTOR, 1966, pp. 9-89.

45
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

vinculados a um projeto da Universidade da California/Berkeley, sistematizaram as


dificuldades para a promoção de justiça e organizaram uma agenda de pesquisa a partir
da relação entre direito e pobreza (law and poverty) no âmbito civil. Suas análises
serviram de fundamento e guia para toda uma linha de estudos sobre resolução de disputas
e o sistema de justiça.

Os autores enfatizaram uma premissa importante, desconsiderada pelos estudos


de matriz positivista: o direito não é um instrumento neutro48. A despeito da natureza
instrumental e técnica do direito e das leis, é ilusória a sua ambição por neutralidade.
Sempre há alguma diferenciação nas leis, em sua criação ou aplicação, e nas próprias
circunstâncias fáticas que envolvem as pessoas em litígio. Isso coloca sob risco as
promessas de justiça. As leis, os processos e o funcionamento geral dos órgãos de justiça
tendem invariavelmente a favorecer determinado tipo de litigante em detrimento de
outro49. Segundo eles, “o pobre, não menos que o rico, enfrenta problemas de natureza
jurídica, e eles estão sujeitos, mais do que os ricos, às injustiças resultantes da operação
dos sistemas econômicos e governamentais” (CARLIN; HOWARD; MESSINGER,
1966, p. 85, tradução livre)50.

A desigualdade social em Carlin, Howard e Messinger (1966), diferentemente


da perspectiva institucional que Cappelletti e Garth adotariam em 1978, não é apenas uma
premissa do argumento. Eles carregam-na por todo o discurso e deixam muito clara a sua
influência determinante na composição da ideia de acesso à justiça. O sistema de justiça,
pelas suas próprias características, seria, argumentam esses autores, menos aberto à
atuação de partes mais “pobres”. A inércia característica desses órgãos (passivity) e a
maior suscetibilidade de serem influenciados por setores mais poderosos da sociedade
(captivity), somadas à falta de estrutura financeira, material e humana e, no que toca ao
direito processual, à ausência de mecanismos efetivos de tutela (deficient remedies),

48
No original: “It has long been argued that the law is not not a neutral instrument” (CARLIN; HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 12).
49
Segundo eles, “ricos” em detrimento de “pobres”, sem detalhar exatamente que pessoas se enquadrariam
em uma ou outra categoria.
50
No original: “(...) the poor no less than the rich have legal problems, that they are even more likely than
the rich to suffer injustices resulting from the operation of our economic and governmental systems.”

46
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

intensificam os efeitos da desigualdade já existente entre diferentes grupos da sociedade,


de diferentes condições econômicas51.

A diferenciação que o direito (e o sistema de justiça) faz conforme o tipo de


litigante não é necessariamente voluntária nem facilmente perceptível. Nas leis, ela pode
aparecer, conforme exemplos dados pelos autores, por meio da previsão de requisitos
desiguais para a configuração de situações de vantagem de duas categorias jurídicas
contrapostas - como locadores e inquilinos, bancos e tomadores de empréstimos,
fornecedores e consumidores. Como, ordinariamente, essas categorias polarizam “ricos”
e “pobres”, o tratamento diferenciado a uma delas pode reproduzir e intensificar
desigualdades sociais, produzindo injustiças em vez de justiças. As sanções por
descumprimento de obrigação de reparar danos estruturais do imóvel, por exemplo, que
são responsabilidade do locador, não são equivalentes àquelas cominadas à
impontualidade no pagamento dos alugueis, pelo inquilino: a primeira não chega a
desobrigar o inquilino do pagamento do aluguel, ao passo que a segunda é motivo para o
despejo.

De modo similar, a distribuição de competências entre áreas específicas do


direito, argumentam os autores, também pode esconder e intensificar uma diferenciação
de classes que acaba por interferir no resultado final de justiça. Questões conjugais ou
familiares similares, ou ainda relativas a adolescentes, por exemplo, podem receber
tratamento do direito de família em alguns casos e, em outros, mais comuns a indivíduos
e famílias pobres, podem se tornar casos de assistência e controle social pelo governo.
Em outras palavras, um mesmo problema social pode receber enquadramentos jurídicos
distintos, como uma questão de direito de família, de direito assistencial ou criminal,
segundo a condição social dos envolvidos. O apoio financeiro que o Estado oferece a
determinados setores da sociedade, outro exemplo dos autores, pode ser enquadrado
como assistência social ou como um sistema de subsídios ou isenções fiscais. Se a essas
categorias corresponderem diferentes estratos sociais (por exemplo, o “pobre” recebe

51
O artigo também analisa os caminhos para o incremento de capacidade dos “pobres” operarem o sistema
jurídico – analisando, basicamente, o conceito de representação jurídica (legal representation). Este debate
comporá toda uma linha posterior de discussão sobre a “legal competence”, que passa pela primeira onda
de Cappelletti e Garth, a assistência jurídica (legal aid), e vai desembocar nos modelos públicos ou privados
de assistência jurídica – no Brasil, as Defensorias Públicas e, mais recentemente, a advocacia probono.

47
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

assistência social e o “rico” recebe subsídios), o direito estaria a serviço de reproduzir e


intensificar uma diferenciação social e limitando suas possibilidades de produzir justiça.

Pode-se argumentar, naturalmente, que esta análise trata indistintamente


categorias que, do ponto de vista jurídico, são diferentes e, por esta razão e não pela
diferenciação social, recebem tratamento jurídico correspondentemente diverso. O ponto
dos autores, porém, é outro. O mais relevante para eles é que a diferenciação compromete
irremediavelmente os resultados de justiça que o sistema como um todo busca alcançar.
Se a diferenciação jurídica decorrer de uma diferenciação social (de classes, raça, gênero,
etc.), e não de uma imparcial atribuição de direitos e obrigações, a justiça do direito estará
originalmente enviesada e esse pode ser considerado ineficaz para o fim que foi criado.
Além da questão social, o que está em jogo é a própria efetividade do sistema jurídico.

O direito processual é especialmente sujeito ao risco de diferenciação levantado


por Carlin, Howard e Messinger (1966). Em razão da sua redobrada natureza técnica -
um instrumento em função de outro instrumento, o próprio direito material -, seus
resultados dependem, em grandíssima medida, das habilidades e capacidades daqueles
que o operam. Tanto que, prosseguem os autores, a diferenciação jurídica (“de iure
biases”) é intensificada pelas circunstâncias fáticas relativas às partes (“de facto biases”).
Ainda que as leis proporcionassem isonomia absoluta entre os sujeitos, as suas diferentes
capacidades jurídicas e financeiras desequilibrariam a disputa judicial que, ao final,
produziria desigualdade nos resultados da aplicação das leis52.

O funcionamento dos órgãos de justiça também pode reproduzir desigualdades


sociais que neutralizam e desviam os objetivos de justiça do sistema jurídico. Este seu
efeito reverso manifesta-se principalmente pela “inaptidão do pobre para integrar e
participar dos órgãos jurídicos”53, o que, por sua vez, “reforça a indisposição dessas

52
Em suas palavras, no original: “De facto bias is pervasive because so many correlates of poverty such
as indi- gency, ignorance or insecurity can serve as barriers to justice. In essence it is bias by default. It
represents a failure of the law to take into acount the differential capacity of rich and poor to realize the
protections and benefits wich the law provides” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 22). Em
tradução livre: capacidade diferenciada de ricos e pobres alcançarem as proteções e benefícios providos
pela lei.
53
No original: “inability of the poor to become effective constituents of legal agencies” (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 29).

48
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

instituições em atender as necessidades e interesses dos pobres”54 (CARLIN, HOWARD;


MESSINGER, 1966, p. 29). Pessoas menos favorecidas teriam menos condições de
operar as formas da burocracia legal e, por isso, não conseguiriam os benefícios que as
leis lhes asseguram e ainda enfrentam uma indisposição extra por parte dos órgãos
formalmente responsáveis pela aplicação da lei – no âmbito jurisdicional e
administrativo55.

Os resultados de justiça que são esperados do sistema jurídico dependem,


portanto, da neutralização dos efeitos da pobreza em si. Esse seria um desafio de ordem
social, não apenas jurídico. Entretanto, se o direito é reduzido a instrumento meramente
reativo diante dessa situação, ele não só não neutraliza os efeitos da desigualdade social,
como a promove e intensifica56. Ainda que o problema original esteja no âmbito social,
ele é capaz de inviabilizar os próprios resultados almejados pelo direito e, mais do que
isso, impor-lhe um resultado diametralmente oposto ao que justifica a sua própria
existência. O direito, portanto, em especial o direito processual, estariam longe de serem
instrumentos neutros e isso explicaria o seu baixo grau de efetividade.

2.2. A litigiosidade de massa não é novidade

O mais surpreendente na análise de Carlin, Howard e Messinger (1966) não é,


todavia, o argumento da não neutralidade do direito, mas a sua atualidade, sobretudo no
Brasil. Ao explicarem os efeitos perversos que a administração da justiça pode gerar
particularmente aos pobres, os autores listam, em 1966, pelos menos três fenômenos que,
entre nós, foram percebidos apenas recentemente e passaram a pautar nosso debate sobre
as políticas de justiça: o aumento do volume de processos; a litigância de massa; e a
padronização dos julgamentos.

Sobre o cenário da justiça americana da década de 1960, os autores constatam


que o aumento da população, somado ao perfil político do Estado de bem-estar social

54
No original, “reinforces the reluctance of these institutions to serve the needs and interestes of the poor”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 29).
55
O trabalho de Bárbara Gomes Lupetti Baptista (BAPTISTA, 2013) traz relatos interessantíssimos de
como a imparcialidade, e a igualdade, anunciadas em lei e em teoria são distorcidas na dinâmica concreta
dos juízos.
56
No original, uma “affirmative force for change, not simply a reactive process” (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 29)

49
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

(Welfare State), ocasionariam um aumento inédito do volume de processos judiciais57.


Somado à gradativa especialização das varas, a administração da justiça se transformaria,
em suas palavras, em um “empreendimento de larga escala”, em que casos são
“processados em massa” por meio de “procedimentos mecânicos padronizados”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 30 e 31)58.

Como consequência desse cenário, argumentam os autores, o Judiciário se vê


incumbido de novas tarefas e o perfil da jurisdição se modifica em relação ao seu modelo
tradicional. Tribunais passam a reproduzir o perfil assistencialista dos governos de Estado
de bem-estar social: a justiça, para além de uma disputa entre direitos, é um serviço a ser
provido à sociedade - tal qual saúde, educação e a assistência social. Litígios demandam,
mais do que uma decisão justa por um julgador imparcial, um “tratamento” por parte de
um juiz-administrador. Chega-se, na teoria, a utilizar o conceito de “reabilitação”
(rehabilitation), utilizado para tratamentos de saúde, como função dos processos judiciai.
E nasce a ideia de que a jurisdição deve se comprometer sobretudo com uma “solução
satisfatória” para as partes, geralmente por meio de acordos, e, apenas secundariamente,
com a preservação de direitos ou a punição por violações de direitos59.

A ênfase no caráter de serviço e de atividade da jurisdição, prosseguem esses


autores, impõe-lhes um padrão gerencial de funcionamento e controle. Por um lado,
aumenta a pressão pela accountability das cortes em relação às suas despesas, o que,
internamente, se reflete na proliferação de regras e tarefas administrativas e no que eles
chamam de explosão de trabalho burocrático (paperwork explosion). Os funcionários dos
tribunais passam a se ocupar predominantemente com rotinas de registro e arquivamento
de papéis – segundo afirma um funcionário entrevistado para um relatório de comissão
de acompanhamento, “50 a 60% do [seu] tempo é caso gasto em “atividades burocráticas”

57
Para ilustrar, eles destacam, o volume de processos nos tribunais de Los Angeles aumentara em mais de
três vezes entre 1928 a 1954 (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966).
58
No original, “a large scale enterprise”, “mass processing of cases” e “standardized mechanical manner”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, pp. 30 e 31).
59
Outro estudo referência que constrói uma correspondência similar a essa, embora parta da perspectiva
das então nascentes agências administrativas de regulação de serviços públicos (agências de regulação), é
o “Administrative Justice”, de Phillipe Nonet, publicado em 1968.

50
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

(bookkeeping). “Eu pensei que seria capaz de ajudar as pessoas, mas eu era um burocrata
(bookkeeper), diz ele”60.

Em resposta às pressões do alto volume de processos (metropolitan caseload) e


a fim de expandir o alcance do controle judicial (stretching the judge’s reach),
prosseguem os autores, torna-se comum juízes delegarem atividade decisória para o seu
pessoal administrativo. Com isso, não fica claro quem, por quem, por que e como as
decisões são tomadas, e o controle que a sociedade e as partes poderiam fazer sobre essas
decisões por meio dos mecanismos de revisão fica prejudicado. O papel do juiz, nas
palavras dos próprios autores, se reduz à certificação e assinatura de decisões de outros61
. Como se ainda faltasse algo para fazer o paralelo com o debate atual sobre a Justiça no
Brasil, os autores destacam por fim a crescente falta de recursos de que disporiam os
tribunais neste novo cenário (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966)

Poucas descrições se encaixam tão bem ao sistema de justiça brasileiro atual e


aos debates que motivaram e caracterizam a nossa nova legislação processual como a de
Carlin, Howard e Messinger (1966). Aumento vertiginoso do volume de processos,
litigância de massa, procedimentos padronizados, tratamento dos litigantes por meio do
consenso62, gerencialismo judicial, controles sobre produtividade dos juízes e servidores,
recursos humanos dedicados a funções meramente registrais (bookkeepers), delegação de
poder decisório e deficiência de recursos. Não tentarei, aqui, entender como diagnósticos
cinquenta anos distantes podem ter tamanha correspondência ao nosso contexto atual;
menos ainda tentarei entender por que, mesmo com todas essas advertências, não
havíamos previsto a situação em que nos encontramos. Meu foco são, agora, os

60
Relatos colhidos em audiências públicas e em entrevistas feitas no âmbito de uma comissão para apurar
os resultados do programa de assistência pública do estado de Nova Iorque, em 1962 (Moreland Comissio
on Welfare Of Findings Of The Study Of The Public Assistance Program And Operations Of The State Of
New York), transcritos por CARLIN, HOWARD e MESSINGER, 1966, p. 41-44 (tradução livre). No
original: “Pressures from the legislature and the public for strict accountability of money spent contribute
to an immense proliferation of administrative rules and regulations relative to the decisions of public
assistance workers and a corresponding increase in paper work which further restricts the capacity of
welfare agencies to serve the needs of their poor clients. The burdens imposed by this "paperwork
explosion" are critically noted in the Moreland Commission Report: "From my own experience and
research", said one witness at our public hearing, "50 to 60 cent of a caseworker time is spent on
bookkeeping. I thought I would be able to help people, but I was a bookkeeper." (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 44)
61
No original, “jugde does little more than rubber-stamp the decisions of others”, (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 40)
62
O texto usa o termo “reabilitação” (rehabilitation), que tem uma conotação ainda mais forte em termos
do papel terapêutico conferido à jurisdição (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 35)

51
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

prognósticos que esses autores fizeram a partir do quadro que observam. E eles levam a
uma nova teoria da jurisdição de do processo.

Diante desse diagnóstico, Carlin, Howard e Messinger (1966) propõem o


redesenho institucional da Justiça em torno da formulação de uma “nova teoria da
jurisdição”. Eles escolhem o direito processual, ainda que não com esse nome, para essa
tarefa. A “adjudication”, que podemos entender aqui como “jurisdição”, seria o eixo
dessa agenda de pesquisas.

O conceito de jurisdição, na sua proposta, não se limita ao poder e atividade


exercida no processo judicial. Refere-se também aos outros processos de solução de
conflitos com função regulatória, como o processo administrativo, por exemplo. Suas
palavras são suficientemente esclarecedoras:

Tradicionalmente, nós enxergamos os tribunais com o lugar do exercício da


jurisdição. Este processo, no entanto, pode acontecer em outros lugares, mais
especificamente em instâncias administrativas antes de chegar a tribunais
especializados. Nós precisamos estudar a jurisdição em suas muitas instâncias
e explorar as formas que ela assume. Estudos a respeito dos tribunais são
insuficientes; estudos sobre a jurisdição em outros contextos são igualmente
inadequados. O desafio imediato, aqui ou em qualquer outro espaço na
sociologia da lei, é formular questões que irão facilitar a investigação empírica
e o desenvolvimento de uma teoria sociológica. Neste caso, o que é preciso é
uma teoria da jurisdição.63 (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p.
53, tradução livre, grifo nosso)

A sua teoria é construída sobre o embate de valores que, já naquela época,


comprimia a jurisdição: a necessidade, essencial ao sistema, de proteger as garantias
processuais e promover o acesso à justiça e, por outro lado, a pressão por eficiência,
tratamento padronizado, segurança jurídica, operabilidade dos tribunais64. O direito

63
No original, “we have conventionally seen courts as the site of adjudication. This process, however, may
take place elsewhere, most particularly in administrative settings before specially constituted tribunals. We
need to study adjudication in its many settings and we need to explore the forms it takes. Studies of courts
are insufficient; studies of adjudication in other contexts are similarly inadequate. The immediate task, here
as elsewhere in the sociology of law, is to formulate questions that will facilitate empirical inquiry and the
development of sociological theory. In this case what is needed is a theory of the adjudicative process.”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 53, grifo nosso)
64
Primeiro, questões sobre jurisdição envolvendo os pobres surgem frequentemente de configurações
administrativas, assim como de judiciais, em que os casos são comumente processados sem os benefícios
do sistema adversarial ou das tradicionais garantias procedimentais. Em alguns tribunais, a presença desses
arranjos é entendida como um prejuízo à produção eficiente de decisões rotineiras; em outros, há um
abandono virtual desses procedimentos como se tais fossem incoerentes com os objetivos da corte. Em suas
palavras:"First, issues for adjudication involving the poor frequently arise in administrative as well as
judicial settings, where cases are commonly processed without the benefit of an adversary system or
conventional procedural safeguards. In some tribunals the presence of these arrangements is thought to

52
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

processual é redimensionado a partir desse embate. O volume de casos e a pressão pela


eficiência dos tribunais reduz as oportunidades para o contraditório e a condução do
processo pelas partes. As garantias processuais perdem importância65, o auxílio de
advogados é menos comum, as oportunidades de manifestação das partes são reduzidas66
e o uso de ferramentas recursais é menos frequente (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966).67

O modelo processual, na sua teoria, torna-se menos adversarial do que o padrão


naquele sistema. Na common law, o modelo adversarial de justiça tem importância técnica
e política. As partes, e não o juiz, têm o poder de controlar o andamento do processo. A
premissa é a de que a iniciativa e o debate das partes esclarecem melhor a verdade dos
fatos e auxiliam no convencimento do juiz. A redução do caráter adversarial, portanto,
reduziria acurácia na apuração dos fatos e, portanto, levaria a julgamentos menos justos.
Paralelamente, a condução dos processos pelo órgão judicial, nesse contexto, aos poucos
se reduziria ao mero enquadramento, em geral prematuro, do caso em um dos casos-

disrupt the efficient production of routinized decisions; in others there is a virtual abandonment of such
procedural devices as being inconsistent with the purposes of the tribunal.” (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 53)
65
Algumas varas de infância e juventude (juvenille courts), relatam os autores, deixam de notificar as partes
e de designar audiências nas quais elas seriam ouvidas. Em suas palavras, “nas cortes de família e infância
e juventude, nas agências assistência social e procedimentos de acordo, decisões que afetam os direitos dos
pobres não se baseiam usualmente em um argumento razoável ou em um determinado conjunto de regras,
e há pouca preocupação em preservar ou estabelecer procedimentos que assegurem os direitos individuais”.
No original: “In juvenile and family courts, in welfare agencies and commitment proceedings, decisions
affecting the legal rights of the poor are usually not based upon reasoned argument or a determinate set of
rules, and there is little concern for preserving or establishing procedures for safeguarding individual
rights.” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 36).
66
Segundo os autores, uma reação hostil de muitos juízes, especialmente nas cortes de trânsito, a pedidos
por uma audiência formal. No original: “hostile reaction of many judges, particularly in traffic courts, to
demands for a formal hearing.” (CARLIN, HOWARD e MESSINGER, 1966, p. 29).
67
Na vara da infância da cidade de Nova Iorque, por exemplo, 92% de todos os réus não foram
representados por advogados durante o ano de 1959. Holbrook relata que, na época de seu estudo, 95% dos
acusados de delinquência juvenil de Los Angeles não tinham advogado. (...) E o controle judicial desses
procedimentos nas primeiras instâncias por meio da apelação é virtualmente inexistente. Entre 1959 e 1969,
de aproximadamente 20 mil adolescentes julgados delinquentes ou negligenciados em Nova Iorque apenas
quatro casos foram objeto de recurso”. No original: “In the Children's Court in New York City, for example,
92 per cent of all respondents during 1959 were not represented by counsel; Holbrook reports that at the
time of his study 95 per cent of juveniles in Los Angeles did not have counsel” (p. 38). Dados relativos a
1962. E, “Control over judicial proceedings in lower-level tribunals through appellate review is virtually
absent. In 1959-60, out of nearly 20,000 adolescents adjudged delinquent or neglected in New York City
only 4 cases were appealed.” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 38). Dados publicados em
1965.

53
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

padrão para o qual já haja uma interpretação cabível sobre os fatos68 (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966).

Os elementos componentes da persuasão racional do juiz são reescalonados.


Segundo os autores, é maior a propensão dos juízes se ancorarem, em vez de testemunhas
e documentos, em laudos técnicos não jurídicos, elaborados por um corpo de auxiliares
judiciais - assistentes sociais, médicos, psiquiatras, etc. Como não são considerados
provas no sentido estrito, esses elementos estão menos sujeitos à impugnação das partes.
Somado a isso, alegações e depoimentos das partes com mais recursos para conduzir o
processo, sobretudo o Poder Público, teriam, segundo eles, maior peso no convencimento
do magistrado (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966).

O quadro descrito por Carlin, Howard e Messinger (1966) para a justiça norte-
americana das décadas de 1960 e 1970 tem mais de um ponto de contato com a justiça
brasileira, atual e a de algum tempo atrás. Os temas cujo aprofundamento os autores
recomendam coincidem, em parte, àqueles estudados pelo direito processual de matriz
romano-germânica (civil law) nas décadas de 1980 e 1990. São eles: a passividade que
caracteriza a justiça civil, responsável por sua ineficácia, ante a natureza inquisitorial da
justiça criminal; os tipos de tutela disponíveis e a sua inaptidão para inibir violações
constantes e coletivas/de classe; o contexto politico do sistema de justiça e incapacidade
dos pobres operarem de forma eficaz o sistema jurídico.

A diferença, no caso, é que, na teoria desses autores, tais temas seriam abordados
a partir de um modelo de justiça civil adversarial, enquanto, no nosso caso, foram
desenvolvidos sob uma perspectiva mais inquisitorial, inclusive no âmbito cível. Em
alguma medida, pode nos ser mais fácil discutir o aumento dos poderes do juiz – tema
que, de fato, protagonizou o debate na década de 1990 – do que a internalização de uma
litigância coletiva ou o contexto político que enquadra o sistema de justiça – temas com

68
Depender unicamente do tribunal para desenvolver e apresentar os fatos pode restringir as informações
e encorajar a rotulagem prematura do caso para tentar encaixa-lo em um padrão familiar no esforço de
tentar ordenar o conjunto de fatos em uma teoria. No original: “Reliance solely on the court for developing
and presenting the facts may restrict information and encourage a premature labeling of the case “to tray
to fit i tinto a familiar pattern in an effort to order the mas of facts around a tentative theory” (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 29).

54
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

os quais não estamos absolutamente resolvidos e que, por isso, retornam nas décadas de
2000.

A correspondência do seu diagnóstico é ainda maior com o cenário atual da


justiça brasileira. Explosão de litígios, processamentos mecânicos, tarefas burocráticas de
registro e certificação, decisões padronizadas, delegação de atividade jurisdicional são
alguns dos fenômenos que as pesquisas recentes acusaram existir na justiça brasileira69.

O modelo recém implantado no Brasil, entretanto, não corresponde


integralmente à teoria da jurisdição proposta por aqueles autores. Lá, o que foi
considerado um novo modelo de justiça, de caráter “gerencial” e consensual, implicou
em mudanças nas características do modelo processual tradicional, que sempre fora
adversarial. Como será detalhado no capítulo 3, a reforma brasileira atual, embora tenha
se dado em cenário com traços comuns ao descrito por aqueles autores, aproximou-se do
modelo de justiça e processo adversarial, do qual os sistemas processuais de common law
tem se afastado70.

Nossa legislação recente, tal qual o diagnóstico de Carlin, Howard e Messinger


(1966), também investe em gerencialismo e consensualismo, mas o nosso ponto de
partida está em outro extremo, o de um modelo predominantemente inquisitorial. O
enfraquecimento das garantias processuais e as novas fontes do convencimento judicial
são observáveis em ambos cenários – o do diagnóstico daqueles autores e o nosso atual.
Ocorre que apenas uma redução do caráter adversarial, o que é o caso deles, mas não é o
nosso caso, justificaria o enfraquecimento de garantias das partes. O reescalonamento dos
elementos de convicção judicial parece um ponto de encontro: lá, as provas produzidas
pelas partes perdem espaço para aquelas produzidas pelos órgãos auxiliares eventuais (no
caso, os peritos); ao passo que, na nossa mudança, o juiz é quem delega seus poderes
instrutórios a essas pessoas – como também delega o poder jurisdicional aos servidores
administrativos, que elaboram decisões padronizadas, característica identificada em
ambos os cenários.

69
O capítulo 2 deste trabalho abordará essas questões com mais profundidade.
70
As reformas do processo civil inglês e norte-americano, baseadas no “case management”, são um
exemplo. Faço uma discussão parecida em “Gerenciamento de Processos Judiciais” (2010) sobre o que
significa o ativismo judicial em modelos inquisitoriais e adversariais.

55
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O elemento destacado naquela teoria que está menos presente nas reformas
processuais brasileira da década de 1990 e na atual é o que os autores chamam
“incapacidade de os “pobres” operarem o sistema de justiça”. Considerando que se trata
da premissa do seu principal argumento (o direito desfavorece os pobres), a sua ausência
nas reformas brasileiras não é pouco importante. Isso talvez esteja relacionado ao caráter
exclusivamente institucional da nossa concepção de acesso à justiça, limitada a
aperfeiçoamentos formais e pouco ciosa dos elementos materiais que compõem a ideia.
O item seguinte discute essa questão.

3. O acesso substancial à justiça

O chamado de Carlin, Howard e Messinger em 1966 sensibilizou estudiosos de


diferentes áreas e sistemas jurídicos, inclusive o próprio Projeto Florença, de Cappelletti
e Garth (1978). Aqueles autores, diferentemente desses, adotavam uma perspectiva por
assim dizer substancial para análise do acesso à justiça. A variável determinante do
acesso à justiça, nessa perspectiva, é a qualidade das partes e as características do conflito,
em detrimento de um desenho institucional perfeito, um sistema eficaz ou um processo
eficiente, como nas propostas de Cappelletti.

A perspectiva substancial do acesso à justiça, contudo, não impediu aqueles


autores e os que os seguiram de oferecem propostas detalhadas de redesenho
organizacional e processual. Pelo contrário. Propostas dessa natureza são discutidas e
apresentadas nesses trabalhos, com a peculiaridade de serem desenhadas a partir das
disputas e da condição das partes, e não por ditames técnicos ou de eficiência
organizacional71.

Naquela literatura, olhar para o acesso à justiça a partir das características das
partes e das disputas tornou-se tanto ou até mais importante do que pensá-lo pelo viés das
instituições, órgãos e técnicas. Toda uma linha de estudos sob essa ótica se desenvolveu

71
As propostas de Cappelletti e Garth (1978) doze anos depois até que são semelhantes às de Carlin,
Howard e Messinger (1966). Ambos partem da premissa de que a relação entre direito e pobreza condiciona
o problema da efetividade (“effecting legal equality becomes at some point a poblem of effecting social
equality”, cf. CAPPELLETTI e GARTH, 1978, p. 28). E ambos propõem mecanismos pelos quais pobres
conseguiriam suplantar o déficit de capacidade jurídica por meio de processos coletivos e de representação
legal, bem como desenhos processuais próprios para os litígios de massa. A diferença parece ser mesmo de
perspectiva analítica: Cappelletti e Garth (1978) adotam uma perspectiva institucional do acesso à justiça
e Carlin, Howard e Messinger (1966) o que chamamos de perspectiva substancial para análise desse
problema.

56
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

naquela literatura, algumas especialmente influentes - inclusive fora dos EUA,


particularmente na Europa e Ásia. Antes mesmo do Projeto Florença, Marc Galanter
publicou o “Why “the haves” come out ahead”, que se tornou o artigo mais citado na
literatura da Law and Society internacional. Quase concomitante ao Projeto Florença, o
Civil Justice Litigation Project (CJLP), da American Bar Foundation, inaugurou os
estudos sobre as disputas de interesses pré judicialização. Ambos reforçaram a
perspectiva substancial de análise do acesso à justiça, com foco ora nas características
das partes, ora nas disputas que as envolvem. Este item todo é dedicado a apresenta-los.

3.1. O sistema processual premia a litigância

O acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1978) adotou uma tipologia das partes
que merece atenção especial, não somente pelo seu impacto científico, mas também pela
grande correspondência com a realidade da Justiça brasileira. Trata-se da famosa
classificação entre “litigantes habituais” ou “repetitivos” e “litigantes eventuais”, ou
“jogadores habituais” e “participantes esporádicos”. Concebida por Marc Galanter em um
trabalho publicado inicialmente em 1974, a tipologia se tornou referência para uma
infinidade de outros estudos nas mais diferentes áreas, nos últimos quarenta anos72.
Embora pouco conhecido no Brasil, é inquestionável a sua relevância para os nossos
estudos sobre justiça e processo73.

72
Why the" haves" come out ahead: Speculations on the limits of legal change
Law & society review, 1974, 9, 95-160. Este artigo foi considerado o décimo-terceiro artigo de revista
jurídica mais citado em todos os tempos (SHAPIRO, 1996, p. 751). Foi traduzido para híndi, alemão,
espanhol, chinês, francês e português. E aprece em um sem número de decisões judiciais norte-americanas.
Cappelletti e Garth (1978), por exemplo, se referem a ela cerca de vinte cinco vezes somente no relatório
geral introdutório.
73
Como explico no início deste capítulo, o “litigante repetitivo” de Galanter não tem o mesmo sentido que
a nossa “litigiosidade repetitiva”. Aquele é o litigante que participa de muitos processos judiciais; essa é o
fenômeno de haver vários litígios sobre uma mesma questão geralmente jurídica. Na litigiosidade repetitiva
há, é verdade, um litigante repetitivo: as empresas de telecomunicações e os bancos nos litígios de consumo;
o governo nos litígios previdenciários e execuções fiscais. Mas os fenômenos não se identificam
principalmente por conta da perspectiva com que olhamos para cada fenômeno. Galanter (1974) está
preocupado com a justiça que o sistema produz, o que faz com que ele identifique um foco de desigualdade
(portanto, injustiça) nas vantagens do litigante repetitivo. O debate sobre litigiosidade repetitiva no Brasil,
cujas conclusões foram acolhidas pelo legislador processual civil, está preocupado com o volume de
processos nos tribunais, o que induz a crer que o proponente das ações judiciais, , que geralmente é o
“participante eventual”, não o “jogador habitual”, seria responsável pela aumento da litigiosidade. Retomo
este argumento mais adiante. De todo modo, importante realçar que, embora relacionados, os fenômenos
não são totalmente idênticos.

57
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O objetivo de Galanter (1974) ao escrever seu artigo era relativamente simples.


Ele pretendia entender um pouco mais sobre como o direito, ao mesmo tempo em que
cria, limita o seu próprio potencial de produzir justiça e mudança social. Seu problema,
portanto, não é outro senão o que chamamos, na teoria processual de matriz romano-
germânica (civil law), por “efetividade” do direito, do processo ou da tutela jurisdicional.
Para tanto, ele se coloca, como ele próprio diz, “do outro lado do telescópio”: em vez de
partir dos objetivos de uma dada lei e perquirir como ela é aplicada pelas instituições
jurídicas, ele parte das diferenças entre os litigantes e indaga que resultados elas
conseguem obter a partir de uma mesma lei. Mais especificamente, buscava “refletir
acerca dos diferentes tipos de partes e do efeito que essas diferenças podem ter no modo
pelo qual o sistema funciona.”74

A variável determinante no seu modelo analítico é, como em Carlin, Howard e


Messinger (1966), as diferenças das partes. Para ele, contudo, o que as caracteriza não
seria o fato de serem “pobres” ou “ricas”, mas a experiência com o sistema jurídico. Os
jogadores habituais não necessariamente são as partes com mais recursos financeiros ou
mais elevada posição social – embora, ele reconhece, essas posições costumam coincidir.
São eles os mais experientes em litígios judiciais (ou em qualquer outro processo jurídico
formal) e esse “detalhe” lhes assegura uma vantagem desproporcional e progressiva, a
ponto de neutralizar o próprio escopo de justiça do sistema como um todo (GALANTER,
1974).

A assimetria das partes se daria em termos de capacidade de operação jurídica,


decorrente ou não de diferenças sociais ou econômicas. Alguns litigantes, simplesmente
porque já passaram por alguma experiência prévia com litígios judiciais, desfrutam de
uma desproporcional posição de vantagem em relação àqueles que nunca litigaram
judicialmente. Vantagem esta que não se justificaria do ponto de vista jurídico ou de
justiça e que, mesmo assim, é determinante dos resultados dos processos judiciais. O
litigante experiente pode não ser o titular do direito material em questão e, ainda assim,
sair do processo em uma situação melhor do que a que entrou, ou melhor do que a que
obteve o litigante eventual, ainda que o direito material lhe assista.

74
Como fica claro, trata-se de uma típica perspectiva “de baixo para cima” (bottom-up) de estudos sobre o
acesso à justiça, na linguagem de Sandefur (2008). Trecho acima traduzido por Ana Carolina Chasin, em
versão ainda não publicada.

58
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Os litigantes repetitivos, ou jogadores habituais, por já terem litigado


anteriormente, desenvolvem um conhecimento que lhes permite estruturar suas
transações materiais de modo a otimizar suas vantagens. Eles desenvolvem expertise e
têm acesso fácil e direto a especialistas em diferentes áreas, o que lhes proporciona
ganhos de escala e baixo custo inicial para dar início e conduzir um processo. Eles
também estão em posição de desenvolver relações informais com servidores e julgadores
e de conhecer como funcionam internamente os órgãos - algo que o litigante inaugural
ignora completamente. Seu conhecimento acumulado lhes permite jogar com as
probabilidades, adotando estratégias que lhes assegurem somatória positiva de resultados
em uma série longa de disputas, ainda que perca algumas delas. Os jogadores habituais
também conseguem diferenciar e trabalhar para obter não apenas o resultado tangível do
processo, que seria o bem da vida em litígio, mas também um resultado menos tangível,
mas eventualmente até mais valioso, que seria a consolidação de jurisprudência ou a
disposição do julgador em casos semelhantes futuros. Eles também têm perspectiva e
capacidade de atuação além do processo judicial, para alterar as regras materiais ou
processuais no âmbito legislativo ou administrativo aplicáveis aos seus casos mais
corriqueiros - o que está completamente fora do escopo e das possibilidades do
participante eventual, focado exclusivamente na arena judicial e no resultado individual
e imediato do seu único caso (GALANTER, 1974).

O problema em que Galanter (1974) joga luz não é apenas a evidente injustiça
em relação aos casos individuais – o que, em si, bastaria para justificar o seu argumento
– mas o funcionamento às avessas do sistema, que não apenas não produz justiça, como
perpetua e aumenta a injustiça75. Esse argumento é um passo adiante em relação a Carlin,
Howard e Messinger (1966): o sistema de justiça e de processo não apenas não seria

75
O que fica bastante claro no trecho: O que essa análise faz é definir uma posição de vantagem na
configuração dos litigantes e indicar como aqueles com outras vantagens tendem a ocupar essa posição de
vantagem e, assim, têm suas outras vantagens reforçadas e aumentadas. Essa posição de vantagem é um
dos caminhos em que o sistema legal formalmente neutro, quando entre aqueles que têm e aqueles que não
têm, pode perpetuar e aumentar as vantagens dos primeiros. No original: “What this analysis does is to
define a position of advantage in the configuration of contending parties and indicate how those with other
advantages tend to occupy this position of advantage and to have their other advantages reinforced and
augmented thereby. This position of advantage is one of the ways in which a legal system formally neutral
as between“haves” and “have-not” may perpetuate and augment the advantages of the former.”
(GALANTER, 1974, tradução livre, p. 103-104)

59
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

neutro, como atuaria em favor de determinado tipo de litigante. E, muito pior do que isso,
atuaria muitas vezes em sabotagem à vontade da lei e aos escopos do sistema jurídico.

O direito processual tradicionalmente pressupõe que o direito seria um


instrumento neutro e que os litigantes agem todos da mesma maneira, de sorte que
bastaria o desenho da melhor técnica e sua aplicação uniforme para se chegar a uma tutela
jurisdicional justa e efetiva. Galanter (1974) deixa claro que os processos têm
configurações diferentes, com consequências variadas em termos de comportamentos dos
litigantes. Na sua análise, há quatro tipos básicos de processos judiciais: aqueles que
envolvem apenas participantes eventuais (casos de divórcio, por exemplo); aqueles
propostos por jogadores habituais contra participantes eventuais (segundo ele, o tipo mais
frequente e o que recebe processamento em massa); aqueles propostos por participantes
eventuais contra jogadores habituais (geralmente casos indenizatórios, em que o autor se
preocupa com o ganho e o réu com o risco do precedente); e, por fim, aqueles que envolve
apenas jogadores habituais - raros porque, segundo ele, tais partes dificilmente resolvem
seus conflitos nos tribunais.

O processamento em massa, portanto, estaria ligado a características das partes


e das disputas. Os litígios do segundo e terceiro tipo, entre diferentes tipos de litigantes,
tendem a receber processamento padronizado e em massa, e os do primeiro e ultimo tipos,
entre os mesmos tipos de litigantes, desfrutariam de tratamento individualizado 76. Ou
seja, se as partes têm diferentes tamanhos e são estranhas entre si, processamento em
massa; se semelhantes, grandes ou pequenas, tratamento personalizado.

O grau de litigiosidade judicial teria menos a ver com o comportamento natural


das pessoas, ou com um suposto traço cultural de litigância, e mais com a existência ou
não de mecanismos informais de controle entre as partes. Se há alguns desses
mecanismos, como o pertencimento ao mesmo grupo social ou empresarial, as partes em
disputa recorrem menos a processos judiciais para solucionar seus conflitos. De modo
similar, se há alguma relação entre as partes, mas essa não tem perspectiva de valor futuro,
mais provável que sua disputa seja judicializada (GALANTER, 1974, p. 113).

Dentre as propostas para neutralizar os efeitos das diferenças das partes sobre o

76
Segundo classificou Galanter, o que não necessariamente corresponde ao cenário brasileiro dos casos de
divórcio, guarda e alimentos, por exemplo

60
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

resultado da justiça, o advogado, em si um “jogador habitual”, tem destaque na análise


de Galanter. Entretanto, a mera presença de um representante profissional não seria
suficiente para balancear a assimetria e resolver o problema. A diferente qualidade dos
profissionais e as características do mercado e da relação advogado-cliente falam mais
alto do que o mero fato de ambas as partes estarem assistidas por profissionais com
formação jurídica. Fatores como a qualificação dos advogados que mais comumente
atendem litigantes eventuais, o custo de preparação e condução de um caso, a dificuldade
de estabelecer relacionamentos individuais e de longa duração com os clientes e,
inclusive, o fato de os clientes desses advogadores serem, na realidade, também o próprio
fórum e os intermediários que lhes levam os clientes (ou seja, não há uma relação direta
advogado-cliente, como costuma acontecer com o litigante habitual) dificultariam que o
advogado, naturalmente um litigante repetitivo, conseguisse neutralizar as desvantagens
de seus clientes litigantes eventuais77.

Os órgãos judiciais e as regras de direito material e processual teriam condições


de minimizar as vantagens estratégicas dos litigantes repetitivos, mas, na prática,
funcionam em sentido inverso, ampliando suas vantagens (GALANTER, 1974).

A inércia e o congestionamento dos órgãos judiciais são mais sentidos pelos


participantes eventuais do que os jogadores habituais, dada a importância que o caso,
porque único, tem para aqueles. Os custos e entraves procedimentais também são menos
pesados para os litigantes com conhecimento e recursos porque são diluídos em escala,
pelo volume de casos que usualmente conduzem. A sobrecarga de trabalho nos órgãos de
justiça, outro traço também encontrado na Justiça brasileira, também amplia as vantagens
dos litigantes habituais, na medida em que produz uma pressão implícita para que as
partes negociem e celebrem acordos, em vez de demandarem seus direitos. Na resolução
consensual, os litigantes experientes podem, com auxílio de especialistas e o
conhecimento acumulado, diferenciar casos com probabilidade de vitória ou de derrota,
e trabalhar os resultados que maximizem seus ganhos ou minimizem seus prejuízos. Os
litigantes habituais teriam, portanto, mais condições de avaliar, estrategicamente, quando
é conveniente litigar ou quando a melhor saída é um acordo que não contenha o risco de

77
Esse argumento ajudou a desenvolver uma interessante linha de estudos sobre os perfis dos advogados,
suas relações com os clientes e os efeitos sobre os resultados da justiça. Os trabalhos de John Heinz e
Edward Laumann (1982), iniciados com um levantamento sobre os advogados de Chicago, tornaram-se
referência para discutir essa problemática. Nesse sentido, também: Heinz et. al, 1998 e Heinz et al, 2005.

61
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

um precedente desfavorável – o que uma derrota produziria.

Apesar do seu custo e complexidade, o processo judicial ainda seria, segundo


Galanter (1974), uma arena mais acessível ao participante eventual do que os processos
legislativo, administrativo ou político – situação que depende da penetração dos órgãos
de justiça em todas localidades do país, o que não é regra no Brasil. A reforma das leis
também poderia neutralizar a assimetria entre os litigantes, mas geralmente não consegue
fazer isso porque é, por natureza, conservadora de uma situação de desigualdade pré-
existente. Modificar as leis em algum sentido que minimize vantagens indevidas de um
determinado tipo de litigante é um processo custoso, geralmente suportável apenas pelo
próprio litigante repetitivo ou resultado de uma mobilização social extraordinária. Além
disso, as regras jurídicas são naturalmente complexas e apenas serviços profissionais com
qualidade e em quantidade suficiente têm condições de extrair-lhes vantagens78.

O direito processual, nesse sentido, pode ser determinante do balanceamento


entre as vantagens estratégicas dos diferentes tipos de litigantes. O “formalismo” das
regras processuais - no sentido da padronização e predefinição das ações possíveis das
partes - pode, por um lado, mitigar o uso estratégico do processo pelo litigante habitual.
Por outro, a complexidade dessas mesmas regras - um outro sentido de “formalismo”,
portanto -, assim como o seu custo e a necessidade de serviços jurídicos especializados,
torna a litigância judicial menos acessível do que possa a princípio parecer. Suas palavras
são suficientemente esclarecedoras do potencial ambíguo do processo judicial como
estratégia de reforma:

A litigância judicial (...) tem um sabor de igualdade. As partes são “iguais


perante à lei” e as regras não permitem que elas utilizem todos os seus recursos
na disputa, mas que procedam dentro dos limites das formas processuais.
Portanto, o litígio é uma arena particularmente tentadora para “os que não
têm”, inclusive para aqueles que buscam mudar as leis (…)79

A litigância judicial pode não ser uma fonte direta de transformação do direito
para os “que não têm”. A complexidade, os investimentos em serviços

78
No original: “Finally, the rules are sufficiently complex and problematic (or capable of being problematic
if sufficient resources are expended to make them so) that differences in the quantity and quality of legal
services will affect capacity to derive advantages from the rules” (GALANTER, 1974, p. 124).
79
No original: “Litigation, on the other hand, has a flavor of equality. The parties are “equal before the
law” and the rules of the game do not permit them to deploy all of their resources in the conflict, but require
that they proceed within the limiting forms of the trial. Thus, litigation is a particularly tempting arena to
“have-nots”, including those seeking rule change. (…) (GALANTER, 1974, p. 135).

62
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

jurídicos e os custos (maiores em órgãos sobrecarregados) fazem com que o


questionamento de leis seja caro. Demandantes esporádicos, que esperam por
resultados palpáveis, menos provavelmente tentarão promover mudanças nas
leis aplicáveis ao caso. A montagem de um caso teste para promover “rule
change” é uma iniciativa impensável para o participante eventual de um litígio
judicial.” (GALANTER, 1974, p. 135, tradução livre)80

A judicialização e as formas processuais, portanto, podem assumir um papel


ambíguo na neutralização das diferenças entre os litigantes. A jurisdição é uma arena em
que os participantes eventuais têm as melhores chances de diminuir suas desvantagens de
saída, mas o processo judicial, porque complexo, especializado e custoso, torna-se um
instrumento cujo uso pleno fica restrito a apenas alguns poucos atores, com experiência
e recursos aptos a operá-lo.

3.2. Judicialização não é litigiosidade

No início da década de 1980, uma outra linha de estudos centrou-se nas disputas
que acontecem na sociedade e que não necessariamente são judicializadas. Como as
anteriores, a análise das disputas (dispute perspective) (GALANTER, 2005) compartilha
a visão substancial do acesso à justiça e oferece esclarecimentos importantes para se
entender o fenômeno da litigiosidade nas sociedades contemporâneas. O principal deles
é o de que os processos judiciais representam apenas uma fração das disputas que
acontecem na sociedade.

O marco dessa linha de estudos foi o “Civil Litigation Research Project” (CLPJ),
um projeto destinado a levantar dados sobre a litigância civil em todo os Estados Unidos,
desenvolvido entre o final da década de 1970 e o início da de 198081. O projeto, resume
David Trubek (1980, pp. 495-497), um dos seus diretores, adotou como pressuposto a
hipótese de que:

A litigância civil é somente um aspecto da atividade de solução de disputas, e


que os litígios civis deveriam ser estudados a partir de um quadro mais amplo.
Este quadro emprega uma perspectiva conceitual que inclui tribunais e outras

80
No original, Litigation may not, however, be a ready source of rule-change for “have-nots”. Complexity,
the need for high inputs of legal services and cost barriers (heightened by overloaded institutional facilities)
make challenge of rules expensive. OS claimants, with high stakes in the tangible outcome, are unlikely to
try to obtain rule changes. By definition, a test case litigation deliberately designed to procure rule-change
is an unthinkable undertaking for an OS. (…)” (idem).
81
Projeto encomendado pelo Departamento de Justiça dos EUA e desenvolvido pelos programas das
Universidades de Wisconsin/Madison e da Universidade do Sul da Califórnia.

63
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

instituições de solução de disputas e abrange todas atividades desde a origem


até o término da disputa (Tradução livre)82.

A riqueza dos dados coletados no CLPJ rendeu dezenas de trabalhos científicos


sobre variados problemas – tais como, os motivos pelos quais uma demanda é proposta
ou não proposta, as percepções das pessoas comuns acerca dos seus conflitos e os modos
de resolvê-los, os custos das litigância e o jogo de incentivos e desincentivos a litigar, o
papel dos juízes e tribunais na resolução de conflitos, a viabilidade de resolver conflitos
por meio da jurisdição, arbitragem ou negociações, o papel dos advogados nas resoluções
de conflitos e o efeito do sistema de honorários advocatícios e custas judiciais, entre
tantos outros83.

Uma das mais relevantes análises até hoje feitas a partir dos dados do CLRP é a
de William Felstiner, Richard Abel e Austin Sarat, três dos coordenadores do projeto.
Publicada em 1980 com um sugestivo título, “The emergence and transformation of
disputes: naming, blaming, claming”, seu argumento era o de que o processo judicial é
resultado de um longo processo social de transformação de uma violação de direitos em
uma demanda. Esse processo se iniciaria pela identificação de uma violação sofrida
(perceived injury), a sua nomeação (naming), a responsabilização do suposto culpado
(blaming) e, então, a formulação de uma reclamação (claming) – que pode ser à parte
violadora ou a um terceiro, informal ou formal, privado ou público.

O processo de transformação gradual de uma violação sofrida em uma


reclamação formal é determinado por circunstâncias de ordem pessoal e institucional,
pode ter causas diferentes e produz importantes consequências para o sistema social e
jurídico. Até que chegue à jurisdição e se transforme em um processo judicial, o conflito
atravessa diversas etapas, nas quais os envolvidos terão algum tipo de contato. A relação
jurídica que constitui o processo judicial seria apenas a ponta de um iceberg de processos
menos formais de solução do conflito. E as variadas circunstâncias que levam algumas e

82
No original: “The project assumes that civil litigation is but one aspect of dispute-processing activity,
and that civil jutice issues should be studied in a broad dispute-processing framework. This framework
employs a conceptual perspective which includes courts and other dispute-processing institutions and
covers all activities from inception to termination of a dispute.”
83
Herbert Kritzer (ano) divulgou um levantamento dos trabalhos publicados com base no projeto,
“Bibliography on publications and papers of the Civil Litigation Research Project”, disponível em <
https://faculty.polisci.wisc.edu/kritzer/research/clrpbib.htm>, acesso em Julho de 2017. No início da
década de 1980, mudanças de cenário político levaram ao desmantelamento deste projeto.

64
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

não outras disputas a serem judicializadas são altamente determinantes, entre outras
coisas, do volume de processos judiciais nos tribunais – com que tanto tem se preocupado
o legislador processual brasileiro. Quanto mais se conhecer essas circunstâncias
extrajudiciais, mais possível antever e controlar o fluxo e o volume de processos
judiciais84.

Segundo a análise de Felstiner, Abel e Sarat (1980), são muitos os fatores da


transformação de uma violação sofrida em uma disputa e, então, em uma demanda. A
percepção da vítima de que sofrera uma violação e a resistência do suposto violador em
atender voluntariamente à sua reclamação seriam os dois principais. Eles seriam
influenciados por outros fatores, como os objetivos gerais que as partes possam ter com
a disputa (que não precisam ser jurídicos, nem monetários), seus interesses pessoais, sua
ideologia, a interação que tenham em seus respectivos grupos sociais, entre outros.

Fatores institucionais também determinariam a transformação das disputas em


demanda. Entre eles, o papel dos representantes das partes - especialmente, os advogados
-, as próprias instituições de resolução das disputas - como a jurisdição e o processo
judicial e, também, os métodos menos formais de negociação, mediação e arbitragem.
Advogados influenciam esse processo de diferentes maneiras e momentos, desde o modo
como aconselham seus clientes ou potenciais clientes, passando por como definem o
conflito (o naming é comumente feito pelo advogado), à intensidade e qualidade com que
assistem seus clientes, perpassando o grau do apoio que lhes dão. Instituições de
resolução de conflitos influenciariam a transformação das disputas conforme suas
características estruturais e operacionais. O modo como uma lei define uma violação e
suas sanções, a forma como uma lei processual estabelece os procedimentos de
contraditório e produção de provas, as regras que delimitam os pedidos e causas de pedir,
os tipos de provimentos jurisdicionais cabíveis em cada caso (nem sempre se trata de
dinheiro...) são alguns exemplos. No âmbito do funcionamento das instituições, a

84
Um recente estudo no Brasil adotou esta perspectiva para o levantamento de dados sobre litigiosidade e
causas da morosidade, tendo criado uma imagem muito funcional de um mapa do fluxo de um conflito
dentro e fora do Judiciário, bem como um conceito interessante de “filtros” que seriam inseridos em pontos-
chave deste fluxo para conter eventual enxurrada de processos judiciais. Cf. GABBAY, D.; CUNHA, L.
(orgs.), 2012.

65
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
LS10CH07-Albiston ARI 17 September 2014 11:4

experiência prévia que uma parte tenha tido com a Justiça ou algum outro processo de
resolução,Dispute
a demora,
resolution os custos, a percepção de justiça que formou, etc., são outros.
outside of Settlement before
litigation adjudication
(DROL)
A figura abaixo ilustra os estágios do processo de transformação de uma disputa
Adjudication

em um uma demanda até Legal


a sua postulação judicial (adjudication). O formato piramidal
claim

sugere que, a cada estágio,Dispute:


uma parte dasresolution
disputas avança e outra não. No entorno da
Dispute

No resolution through
pirâmide, há os processos paralelos de resolução de disputas – desde a mera resiliência
Access provided by University of California - Berkeley on 12/14/15. For personal use only.

alternative
Annu. Rev. Law. Soc. Sci. 2014.10:105-131. Downloaded from www.annualreviews.org

normative
Injuries systems
Claiming:
that do not
da vítima, disputes
àbecome
submissãoConfront
a ask
sistemas
for remedyjurídicos paralelos (na linha do pluralismo jurídico), a
other party,

processos de resolução alternativos


Blaming: (que eles chamam de “DROL”, talvez porque na
Identify responsible party

época o acrônimo ADR ainda não eram conhecidos como hoje) e os acordos realizados
Naming:
Perceived injury
em juízo, antes da sentença.
Unperceived injurious experiences
Figura 1: Pirâmide com os estágios de transformação
Figure 1
das disputas (reprodução)
The dispute pyramid, with inverted triangles that represent alternative avenues or processes through which
Solução do
potential disputes may proceed
(Miller & Sarat 1980).
tutela
conflito fora da jurisdicional
or pursue alternative routes to resolution. The focus,
jurisdição
however, is on the Acordo antes do
legal path and the factors
that lead to attrition from it at each level of disputing.
julgamento
Indeed, the very concept of dispute itself tends to focus on the narrow precipitating events
demanda
that gave rise to the individual disagreement, rather than the fundamental structural features of
society or the long-term social processes that generate judicial
conflict (Cain & Kulcsar 1981). In this
view, claiming, or claim propensity, becomes a function of personality traits rather than larger
structural forces (see Vidmar & Schuller 1987), perhaps reflecting the primarily behavioralist and
disputa (sem
individualistic approaches that were in fashion at the time the CLRP findings were published.
The failure of subsequent work to address mediating resolução) Solução do
mechanisms or organizational contexts of
disputes, however, left many rich theoretical traditions in the social sciences offconflito por
the table when it
Violações que
came to understanding dispute resolution. reivindicação (solicitar sistemas legais
We argue that the não se tornam providência à parte
sliced-off triangles of attrition excluded from the pyramid may tell us the most
alternativos
about the social process of dispute
disputas resolution (see contrária)
Figure 1). These triangles represent dispute
resolution outside the litigation process, or DROL for short. DROL includes recognized injuries
that do not become disputes, disputes resolved responsabilização (atribuir
through alternative normative systems, and settle-
ment before adjudication, as well as many other responsabilidade à parte
outcomes. The undertheorized and understudied
contrária)
www.annualreviews.org • The Dispute Tree and the Legal Forest 107
nomeação (perceber uma violação a
direito)

violações de direito não percebidas pelas


vítimas

Fonte: Albiston, Edelman e Milligan, 2014, reprodução com tradução livre.

A partir da representação figurativa da pirâmide, outros estudos descreveram


variados processos de transformação das disputas em processos judiciais. Dois critérios
foram então explorados: os estágios pelos quais uma violação passa antes de ser
judicializada (i.e, a violação em si, a configuração da disputa, o ato de reclamação, a
decisão de buscar um advogado, a intervenção do Judiciário e a obtenção da tutela
jurisdicional), e também a natureza das disputas (por ex., indenização pessoal, casos de
consumidor, cobranças, casos de discriminação, disputas sobre propriedade, disputas
envolvendo o governo, questões de divórcio e aluguel).

66
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A principal conclusão desses estudos é a de que a natureza das disputas afeta os


estágios percorridos até a judicialização. Uma vasta quantia de violações ocorre na
sociedade, parte das quais chega a ser reivindicada à parte contrária, das quais uma menor
parte é levada pelas vítimas a advogados ou outros atores intermediários e, enfim, uma
outra pequena parcela se formaliza em processos institucionalizados de resolução de
conflitos – como mediação, arbitragem e processo judicial (MILLLER; SARAT, 1981).

Uma análise estatística dos dados do CJLP (1981) chegou a dois principais
resultados. Primeiro, os números revelaram que os relatos de violações de direitos
acontecem menos do que se supunha (apenas 41,6% dos respondentes relataram terem
sofrido uma violação (grievance), mas, quando ocorrem, geram alto nível de litigiosidade:
71,8% das disputas se transformaram em reclamações (claims) e em 62% delas a parte
contrária firmou resistência. O recurso a advogados revelou-se baixo (23%), mas ainda
assim o dobro do recurso aos tribunais (11%).

Os dados também confirmaram que conflitos de diferentes naturezas têm


diferente propensão a serem judicializados. Os casos de danos pessoais, por exemplo (os
torts), reportaram baixa ocorrência no geral, mas, quando acontecem, geram altas taxas
de reclamação (claim), poucos acordos e alto uso de advogados. Já os casos de
discriminação registraram o perfil oposto: poucas pessoas reportam a violação (14%);
dentre esses, poucos reclamam formalmente (29%), a parte contrária quase sempre resiste
(78%) e é menos provável o êxito da demanda. Perfil similar demonstraram os casos
envolvendo direitos civis então recém estatuídos.

A diferenciação dos processos de judicialização a partir da natureza das


demandas permitiu a representação por diferentes formas piramidais, algumas de base
mais larga (sugerindo que essas disputas mais comumente vencem o estágio inicial, de
identificação e nomeação de uma violação) e vértices mais estreitos (sugerindo que a
judicialização é um estágio residual entre todas as disputas). Ou o inverso: bases estreitas,
sinalizando uma dificuldade de identificação e nomeação da violação ou vértices largos,
sugerindo uma alta judicialização daquele tipo de disputa.

67
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 2: Pirâmide de disputas conforme a natureza dos


conflitos (reprodução)

GRIEVANCES I CLAIMS I AND DISPUTES: ASSESSING THE ADVERSARY CULTURE 61

Court Filings 50
Lawyers 103

ClaIms 718
Grieva1ces 1000

RGURE 1It.. A Dispute Pyramid: The General Pattem (No. per 1000 Grievances)

Tort Discrimination

Court FHings 38 8 451


'--Y.. 116 29 588
Disputes 201 216 765
ClaIms 857 294 879
Grieva1ces 1000 1000 1000

GourD

DiIpuUIs
Cblims
' - -_ _ _ _ _...Jo ••• Grieva'Ices

Tort Discrimination

FIGURE 11. Dispute Pyramids: 1'InI Deviant PatternS (lb. per 1000 GrievenON)

Fonte: most
While Millertort
e Sarat, 1981,
claims reprodução.
resulted in a vances, and the width cf the pymmid shows
compromise agreement, other claims were the proportions that make the successive
much more likely to have all-or-nothing transitions 10 claims, disputes, lawyer use,
A figuraToacima
outcomes. indica
some extent this que,
reflectsnathe média, naquele
and litigation FJgUre contexto,
18 presentsdentre
three con-as violações
nature cf many problems. Dr example, trasting pattems-the disputing pyramids fOr
percebidas, 72%disputes
property eram involving
efetivamentepennission objeto
to de reclamação;
torts, post-divorce, and45% se transformaram
discrimination grie- em
build are not amenable to compromise. vances.
disputas (ou
Someseja, a reclamação
opposing não surtiu
parties were tmlikely to offer efeito pois
'B:I::ts showa parte
a clear contrária
pattern. Mltresistiu
cf those em atendê-
anything: more than half cf all discrimination with grievances make claims (85.7 percent),
la), 10% foram encaminhadas
(58.0 percent) and tenant a(55.0 um(a) advogado(a)
percent) and most eclaims apenas are 5% foram resisted
Irt fonnally judicializadas. Já
claimants failed to obtain any redress at alL (76.5 percent result in immediate agree-
I
a análise decomposta
Such claimants arepela natureza
apparently das disputas,
in a particular- ment). As ilustrada pelas
a result, disputes diferentes
are relatively rare pirâmides,
I
ly weak bargaining position and also rmy (23.5 percent cf claims). Where they occur,
t
sugere
t que
lackcasos de recourse
effective indenizaçãoto any civil (torts)however,
thirrl-party eram 1avvyeI:s
facilmente identificados
are available, accessible, e objeto de
remedy system. \\b shall take up this point and are, in fact, oflen employed (Sl.9 per-
J
reclamação e comumente levadas a um advogado,
again. mas não
cent). Moreover, these transformavam
same can be said fOr the em disputas
employment cf courts (at least in compari-
f
formais eSummary
menos ainda judicializadas porque, sonprovavelmente,
with other problems). The as overall
partespicture
se compunham
!
antes disso.
f
\\b Jácancasos de divórcio
visualize. the processe of questões
generation through the metaphor ofa pyra-
is cf a· remedy system that minimizes fonnal
dispute posteriores
conflict but uses ao divórcio, como
the courts when
in those relatively rare cases in which con-
guarda de filhos
necessary

t-
e regimemidde(seevisitas,
proporção

passavam
Figure lA). At the basefacilmente
are grie- fiict

de casos judicializados (MILLER; SARAT, 1981).


por todas as etapas, alcançando grande
is unavoidable.

i .
Um dos grandes achados desse estudo foi o perfil dos casos de discriminação,
que são largamente percebidos como violação, mas muito pouco reclamados. Nos casos
em que a vítima reclama, a parte contrária geralmente resiste à imputação de
responsabilidade e muitos casos se transformam formalmente em disputas. Ainda assim,
o recurso a advogados é muito menor do que nos outros casos, e é ainda menor a
proporção de casos judicializados. Os casos de discriminação, portanto, seriam aqueles

68
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

menos prováveis de serem judicializados, o que está distante de significar acesso à justiça,
pelo contrário. As vítimas não se sentem estimuladas a reivindicar direitos, acusados
recusam-se a reconhecer que tenham praticado discriminação e o caminho da
institucionalização, pelo advogado ou o juiz, não é utilizado.

Os diferentes perfis de litigiosidade, na verdade, são um traço cultural e


temporal. Os dados dessa pesquisa se referem a um determinado cenário e dificilmente
são transplantáveis a outras épocas e, sobretudo, a outros países. Ainda assim, a
constatação, por exemplo, de que o grau de litigância pode ser menor do que o senso
geral, de que as instituições formais são acionadas em uma parte pequena dos casos, de
que muitas violações sequer são manifestadas pelas vítimas e que, principalmente, alguns
tipos de violações são menos demandas e mais resistidas que outras são conclusões que
abrem a perspectiva para compreensão de cenários de litigiosidade de outros países.

Enfim, o projeto CJLP abriu as perspectivas para o estudo do problema do acesso


a justiça em mais amplas dimensões. De um ponto de vista metodológico, reposicionou a
análise fora do sistema jurídico formal e o seu aparato institucional, o que prontamente
exigiu dos estudos sobre o problema da Justiça todo um novo repertório analítico e de
técnicas de pesquisa - desde o tratamento estatístico de dados relativos a fenômenos
jurídicos até os complexos estudos de comportamento e percepcão dos atores sociais e do
sistema de justiça.

A perspectiva substancial do acesso à justiça, sugerida por Carlin, Howard e


Messinger em 1966 e ampliada e detalhada por Galanter em 1974, parece evidenciada
empiricamente pelos dados do CJLP e as análises científicas que lhe seguiram. O acesso
à justiça e o grau de litigiosidade de um dado país depende não apenas de desenhos
institucionais mais ou menos favoráveis, mas de um complexo de fatores que vão desde
a percepção das pessoas sobre suas questões até a natureza do conflito em questão – e,
por extensão, ao próprio perfil dos envolvidos.

4. O acesso à justiça que antecede a judicialização

Após mais de uma década de um relativo ostracismo na agenda das políticas


públicas e na literatura, o tema do acesso à justiça retorna à pauta das pesquisas em direito
nos anos 2000. Estudos sobre a prestação de serviços jurídicos e sobre a experiência da
população com a Justiça são retomados com a iniciativas do governo federal norte-

69
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

americano de “expandir pesquisas e estratégias de inovação para eliminar a disparidade


entre a necessidade e a disponibilidade de assistência jurídica de qualidade”
(ALBINSTON; SANDEFUR, 2013, p. 101-102). Um inédito programa federal específico
para acesso à justiça (Access to justice) é implantado no âmbito do Departamento de
Justiça dos EUA, já em 2010. A iniciativa governamental é acompanhada por programas
organizados por associações civis de âmbito nacional, como o Legal Services
Corporation e a American Bar Foundation85.

Os estudos atuais em acesso à justiça adotam as premissas dos das décadas de


1960 e 1970, mas a experiência construída em todo o período narrado acima permite-lhes
incorporar uma visão um tanto mais complexa e sofisticada acerca das possibilidades e
estratégias de abordagem, no âmbito da pesquisa e das políticas públicas. O deslocamento
do foco dos estudos sobre acesso à justiça para as resoluções de disputas ocorridas fora
do sistema jurídico formal, uma das marcas do CJLP no início de 1980, abrira um novo
leque de perguntas para as investigações, aproveitadas pelos estudos mais recentes. Se o
processo de solução de conflitos é iniciado ainda na sociedade antes de se tornar

85
Como sintetizaram Catherine Albinston e Rebecca Sandefur (2013, p. 101-102) em um relativamente
recente artigo: “Access to Justice (A2J) research is in the midst of a renaissance. A new crop of evaluation
studies have joined a broader body of contemporary research investigating the delivery of legal services
and public experience with civil justice. A growing number of stakeholders regard this new research with
serious interest. For example, in 2010, the Obama administration established for the first time an Access
to Justice Initiative within the Department of Justice.4 The Access to Justice Initiative is charged in part
with “[e]xpand[ing] research on innovative strategies to close the gap between the need for, and the
availability of, quality legal assistance.”5 Similarly, in its 2012 strategic plan, the Legal Services
Corporation committed to using “robust assessment tools” in identifying and promoting best practices in
legal services delivery.6 Three years ago, the American Bar Foundation, a leading national center for
sociolegal research, established an A2J research initiative.7 In December 2012, that initiative, with the
sponsorship of the National Science Foundation, convened researchers and field professionals to identify
and develop an A2J research agenda.8 This is an exciting time for people who care about access to justice.”
Em tradução livre: A pesquisa sobre acesso à justiça está em meio a um renascimento. Uma nova safra de
estudos avaliativos se juntou a um abrangente corpo de pesquisa contemporânea investigando a prestação
de serviços jurídicos e a experiência pública com a justiça cível. Um crescente número de pessoas-chave
olha para essa nova linha de pesquisa com interesse. Por exemplo, em 2010, a administração OBAMA
estabeleceu, pela primeira vez, uma iniciativa de Acesso à Justiça dentro do Departamento de Justiça. A
Iniciativa de Acesso à Justiça é encarregada de expander a pesquisa sobre estratégias inovadoras para fechar
a lacuna entre a demanda e a disponibilidade de assistência legal de qualidade. De igual modo, no plano
estratégico de 2012, a Associação de Serviços Legais se comprometeu a usar robustas ferramentas de
avaliação na identificação e promoção das melhores práticas de prestação de serviços jurídicos. Três anos
atrás, a American Bar Foundation, um dos principais centros norte-americanos de pesquisa sociolegal,
estabeleceu um projeto de pesquisa sobre acesso à justiça. Em dezembro de 2012, esta iniciativa, sob o
apadrinhamento da National Science Foundation, convocou pesquisadores e profissionais da área a
identificar e desenvolver uma agenda de pesquisa em acesso à justiça. Este é um período excitante para as
pessoas que se importam com acesso à justiça”.

70
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

propriamente judicial, como é este processo na sociedade? Como a sociedade resolve suas
disputas? O que ela acha justo? Afinal, a sociedade é em si litigiosa?86

A ideia de justiça passa a ser definida em função das inúmeras experiências das
pessoas envolvidas, e o problema do acesso à justiça passa a ser analisado a partir dos
processos internos das sociedades. O acesso à justiça não acontece apenas pelas
instituições formais do sistema, os órgãos judiciais e procedimentos legais, mas pela ótica
e experiência do jurisdicionado. A sua experiência pode ser muito mais significativa e
determinante de um nível desejado de justiça do que o mais apurado, técnico e perfeito
desenho de lei ou procedimento judicial.

Sob essas premissas, a American Bar Foundation, responsável por impulsionar


e financiar algumas das mais relevantes pesquisas e políticas de justiça nos EUA nas
décadas anteriores – sob coordenação, por anos, do próprio Bryant Garth -, institui um
projeto de pesquisa e políticas de acesso à justiça em âmbito nacional. A atual
coordenadora do projeto, a Professora Rebecca Sandefur, da Universidade de Illinois,
adota uma nova definição de acesso à justiça, que enfatiza o caráter mais subjetivo do que
institucional. Para ela, “acesso à justiça é uma perspectiva sobre as experiências que as
pessoas têm com a justiça civil, organizações e instituições.” (SANDEFUR, 2008, p. 340,
grifos nossos). O destaque às experiências das pessoas, e não a um ou outro desenho
institucional ou processual, exemplifica o tom da abordagem contemporânea do problema
do acesso à justiça.

A profusão de estudos a partir dessa linha é ampla e variada, o que dificulta


alguma sistematização, ainda que para fins didáticos. Vou me ater a duas linhas: os
estudos sobre o papel dos procedimentos na composição da percepção de justiça das
pessoas - a chamada “justiça procedimental” (procedural justice); e aqueles sobre como
a experiencia diária das pessoas com o direito constrói o seu sentido de legalidade - a
chamada “consciência jurídica” (legal counsciousness) e a construção social da
legalidade. Embora tenham objetos, métodos e conclusões distintas, e sejam
desenvolvidas por grupos distintos, ambas linhas esclarecem aspectos pouco abordados
sobre a litigiosidade nas sociedades e, o que mais nos interessa, dá indícios de quais os

86
Parte dessas perguntas já eram feitas mesmo antes das descobertas do Civil Litigation Research Project,
mas foi a partir da década de 1980 que elas se incorporam à linha de estudos sobre acesso à justiça e métodos
de solução de disputas

71
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

métodos mais adequados para resolver suas disputas. Conhecendo como o direito está
presente nas ações diárias das pessoas – onde nascem os conflitos – e como elas entendem
que suas disputas devem ser resolvidas, é possível isolar os elementos para um desenho
das regras dos processos e normas de funcionamento dos órgãos do sistema de justiça.

Para articular as duas linhas, parto de uma pergunta frequentemente feita


naqueles estudos e que tem sido repetida com frequência no debate brasileiro: afinal,
aquela sociedade e a nossa são realmente litigantes? Qual a função da litigiosidade
judicial em uma sociedade?

4.1. O direito regula a sociedade por meio dos processos judiciais

A importância do direito e, por extensão, dos processos judiciais na regulação


da sociedade norte-americana sempre foi destacada como um traço típico daquela
cultura87. O Brasil possui características sociais e tradição jurídica completamente
distintas daquela, mas é difícil negar o crescimento da influência do direito e dos tribunais
na vida social e política do país nas ultimas décadas88. Na verdade, praticamente todas as
sociedades modernas assistem ao aumento da presença do direito na sua vida social,
política e econômica (GALANTER, 1992). Esse fenômeno, somado ao menor uso de
instâncias comunitárias de resolução de disputas, resulta na maior propensão das pessoas
a recorrerem aos processos judiciais para resolver suas disputas. Mas isso seria suficiente
para classificar essas sociedades como demasiadamente litigantes, ou mais litigantes do
que aquelas que as antecederam? Seria correto afirmar que as pessoas optam facilmente
pela disputa por direitos e deixam de tentar resolver pacificamente suas disputas? Qual
percentual de disputas que acontecem na sociedade consegue ascender ao topo da
“pirâmide” de Miller e Sarat (1981)?

Robert Kagan, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, sintetizou


um termo para descrever o estilo litigante judicial da sociedade norte-americana, o

87
Desde as anedotas sobre os advogados, os filmes e séries sobre casos judiciais famosos, até a definição
de uma acirrada e polêmica eleição presidencial, os processos judiciais e as decisões dos juízes são
componentes bastante presentes na cultura cívica daquele país. Aliás, Tocqueville, um observador externo
da incipiente organização política norte-americana no início do século XIX, já destacava o peculiar papel
do Judiciário naquele país. (TOCQUEVILLE, 2005).
88
Os exemplos são variados: os direitos do consumidor; a chamada judicialização da política; a litigância
de massa; a transmissão das sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal;, o combate à corrupção; a
escolha de ministros de tribunais superiores; entre outros.

72
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

“legalismo adversarial” ou “normatização adversarial” (adversarial legalism)89. Segundo


sua avaliação, “em nenhuma outra democracia, a litigância judicial é tão frequentemente
empregada” para contestar políticas e práticas públicas e privadas de variada natureza
(KAGAN, 2003, p. 7, tradução livre). Kagan destaca a função regulatória dos litígios
judiciais. Para ele, os processos judiciais são mais uma etapa do jogo amplo da regulação
da sociedade que o direito performa. Os processos judiciais ajudam o direito regular a
sociedade ao possibilitar que determinadas políticas governamentais e privadas sejam
debatidas e avaliadas publicamente. No caso dos EUA, com um padrão de litigância
peculiarmente alto, o direito chega a depender dos processos judiciais para conseguir
regular a sociedade. Como o modelo processual daquele sistema é adversarial, o sistema
jurídico como um todo depende, em última análise, da iniciativa de litigância dos
cidadãos90.

Esse jogo de regulação pela litigância judicial é bastante complexo, com idas e
vindas em termos das possibilidades e restrições do uso de processos judiciais em
determinadas matérias.91 E, o que pode nos interessar diretamente, o jogo de incentivo e
restrições à litigância judicial é determinado por variações nos modelos e formas de
solução das disputas admitidos – ou seja, pelos modelos processuais adotados.

Os modelos processuais, segundo Kagan (2003), podem variar segundo dois


critérios: maior ou menor espaço para ação dos próprios litigantes; e maior ou menor rigor
formal dos métodos utilizados. Modelos mais hierárquicos ou autoritários opõem-se aos
mais participativos e modelos mais formais opõem-se a modelos informais (cf. Tabela no
item 1.1 do cap. 3, infra). O processo judicial de tradição romano-germânica, por

89
Conceito pelo qual Kagan quer identificar as atividades de elaboração e implementação de políticas
públicas e de resolução de disputas que acontecem por meio de uma litigância judicial dominada por
juristas/advogados. Trata-se, portanto, de atividades que vão além da de resolução de disputas e mais além
ainda do que o processo judicial. Sem prejuízo, elas são operacionalizadas por meio das demandas judiciais,
que criam para o Judiciário a oportunidade de resolver disputas e regular políticas públicas. No original:
“policymaking, policy implementation, and dispute resolution by means of lawyer-dominated litigation”.
(KAGAN, 2003, p. 3)
90
Impossível não fazer a relação com o debate de Calamandrei sobre a natureza do direito de ação no início
do século XX. Trata-se, ele pergunta, de um mecanismo para proteger direitos subjetivos das partes
litigantes (privado, portanto) ou uma oportunidade que se abre ao Estado para promover a paz e ordem
sociais?
91
Kagan (2003) avalia casos criminais e o controle da criminalidade, casos cíveis de indenização pessoal e
as restrições impostas ao tort law system, e a regulação pública, por exemplo, do embate entre
desenvolvimento e proteção ambiental.

73
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

exemplo, enquadra-se dentre os modelos hierárquicos e formais, típicos de Estados


burocráticos legalistas de matriz weberiana92. A negociação e a mediação estão no outro
extremo do quadrante, como exemplos de modelos participativos e informais. Entre os
dois extremos, há uma opção mista, hierárquica mas informal – cujo exemplo são os
processos adjudicatórios em que a decisão não segue critérios legais: na Europa Oriental,
decisões sobre benefícios assistenciais por painéis de médicos; ou, no Japão, casos de
indenização por acidentes de trânsito resolvidos por autoridades policiais. Completa o
quadrante, o modelo do “legalismo adversarial” norte-americano, dependente de
participação das partes como a negociação e a mediação, mas mais formal que essas
(KAGAN, 2013, p. 10).

A interpretação de Kagan (2003) sobre a litigiosidade nos EUA deixa claro que
a iniciativa e participação dos cidadãos na resolução de disputas são determinantes do
perfil do modelo processual e, afinal, da efetividade do direito como instrumento de
regulação social. Mas, diferentemente do sugerira a pirâmide de disputas de Miller e Sarat
(1981), a análise de Kagan permanece centrada nos métodos institucionalizados de
solução de disputas – a negociação privada seria o menos institucionalizado. Kagan não
oferece saída à ponderação de que os métodos institucionalizados têm potencial limitado
para produzir justiça porque são operados diferentemente por partes em desiguais
condições – como já argumentavam Carlin, Howard e Messinger em 1966 e Galanter em
1974.

Além disso, ainda que consideremos os quatro modelos de solução de disputas


de Kagan (processo inquisitorial, processo adversarial, processos administrativos e
processos de negociação e mediação privados), restaria uma pergunta essencial: qual
deles seria o mais adequado em uma determinada situação? Aqueles com maior ou menor
participação dos envolvidos? Aqueles com regras mais ou menos rígidas?

Respostas a essas perguntas - que, adianto, variam conforme o contexto social e


jurídico - podem ser garimpadas em estudos que ampliaram o objeto para além dos
métodos institucionalizados de solução de disputas e observaram as percepções e
experiências das pessoas com questões jurídicas em seu a dia. Tratam-se de estudos que

92
Segundo Kagan (2003) um modelo burocrático legalista de inspiração weberiana, adotado em toda
Europa continental.

74
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Galanter e Edelman (2015) classificaram como “estudos constitutivos” (constitutive


studies), a sua terceira categoria depois dos estudos regulatórios e os procedimentais. E
que Sandefur (2008) classificou como os “estudos de percepção” (perceptive studies),
em oposição aos “estudos comportamentais” (behavioral studies) (v. item 1, supra).
Neles, a métrica de justiça, explica Sandefur, é a avaliação das pessoas acerca da sua
própria experiência. Elas são indagadas, por meio de surveys, sobre o quão justo
determinadas situações hipotéticas lhes parecem se se sentem satisfeitas com os
resultados obtidos nos casos de que participaram93 e que peso dão à justiça procedimental
dos casos em relação à justiça das decisões94. Esses estudos buscam entender como o
direito acontece, afinal, na vida das pessoas e como o conjunto dessas experiências
constitui um sentido coletivo do que seja ou não justo. O acesso à justiça e efetividade do
sistema, em última análise, condicionam-se a esse senso coletivo.

Ainda que não foquem, diretamente, em descrever como o sistema formal


funciona ou deva funcionar, esses estudos abrem novas possibilidades para se pensar
como o direito deve regular a sociedade e, o que mais nos interessa, como devem ser os
métodos para resolver os conflitos de interesse entre seus membros. Suas conclusões
podem inspirar análises, por exemplo, sobre se a solução de disputas deve acontecer por
decisão ou acordo, se o processo deve cooperativo ou contraditório, se as regras devem
ser rígidas ou flexíveis, se o processamento deve ser individual ou em massa, se os
julgamentos devem ser totais ou por amostragem - entre outras opções feitas pelo
legislador processual brasileiro recentemente (cf. cap. 3).

4.2. A justiça que está no processo

A consciência de que a disputa se inicia na sociedade induz a perguntas do tipo:


o que as pessoas entendem justo em uma resolução de disputas? Qual sua percepção sobre
justiça? Paralelamente, outro eixo de perguntas se dirige a entender como a sociedade
pratica, experimenta, vivencia o direito. Apenas quando ela litiga em juízo, ou há direito
em suas atividades diárias? Se há, que direito seria esse? Ele é determinado pelo Direito?

93
Como os estudos que Hazel Genn e sua equipe têm feito nas últimas décadas no Reino Unido. Conferir
Genn et al 1999, Genn e Patterson, 2001; Pleasence, 2006.
94
Cujo exemplo são os estudos da escola chamada “procedural justice” (justiça procedimental), que
combina instrumental e análises da psicologia social. V. LIND e TYLER, 1988; TYLER, 1990, 1988, 2005;
THIBAULT e WALKER, 1973.

75
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

As formas oficiais os influenciam? Iniciarei pelas perguntas dirigidas a entender como as


pessoas veem a justiça nos processos que participam, questão que agrega à linha de
estudos denominada “justiça procedimental”.

A percepção das pessoas sobre a justiça é determinada por aspectos


procedimentais tanto quanto ou até mais do que os aspectos substanciais. As pessoas
tendem a legitimar (e, supostamente, a cumprir) uma decisão porque reconhecem que ela
foi produzida de forma legítima. Ao menos é o que concluem, em massa, os estudos da
linha da “justiça procedimental”, iniciados, na literatura jurídica norte-americana, na
década de 1970 por Thibault e Walker e avançados consideravelmente na década de 1980
e 1990 por Lind e Tyler95. O mais ilustrativo exemplo de como os cidadãos avaliam a
justiça procedimental são as narrativas de pessoas que, mesmo tendo sido desfavorecidas
pela decisão, consideram-na justa porque foram ouvidas96.

Segundo esses estudos, os métodos de resolução de disputas menos formais são


considerados, pelos participantes, mais justos do que aqueles mais formais. Réus avaliam
a mediação e a transação penal como mais justa do que as correspondentes sentença
judicial (TYLER, 1997). As características dos métodos menos formais que mais
satisfazem a percepção de justiça das pessoas seriam quatro: a participação nos processos
(no sentido de serem ouvidos e de contribuírem com a condução do caso), a neutralidade
da autoridade envolvida no processo, a sua credibilidade e, por fim, o tratamento recebido
(com respeito e dignidade, independente do resultado obtido). A credibilidade condiciona
a valorização da participação – ser ouvido é muito importante, mas deixa de ser se aquele
que ouve (a autoridade) não tem credibilidade. A credibilidade chega a ser mais
determinante da legitimidade e a efetividade da decisão que a neutralidade. Por fim, a
possibilidade das autoridades decisoras exporem as justificativas das decisões é

95
Tratam-se de pesquisas situadas no que foi chamado de linha psicologia social, que aplica questionários
e realiza experimentos para diagnosticar os significados de ações sociais para as pessoas. V. LIND e
TYLER, 1988; TYLER, 1990, 1988, 2005; THIBAULT e WALKER, 1973.
96
Essa é a principal pergunta de pesquisa da linha de estudos em “justiça procedimental” e também o seu
principal resultado. Os estudos iniciais, de Thibault e Walker (1973), realizaram experimentos direcionados
a testar a hipótese da satisfação das pessoas com as decisões tomadas de forma justa, confirmando-a. Os
estudos que o seguiram realizaram acompanhamentos de casos reais e chegaram a conclusões parecidas.
Para uma apresentação da “justiça procedimental” e indicação desses estudos, V. TYLER, 1988.

76
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

considerada pelas pessoas um dos melhores caminho para incrementar sua credibilidade
(TYLER, 2004).

A tese da justiça procedimental amarrou-se a uma âncora teórico-filosófica


convincente e conseguiu se projetar para o debate atual sobre os métodos de solução de
disputas. Já em 1974, Thibault e Walker invocavam a teoria da justiça de Rawls,
particularmente à explicação sobre como se estabelecem os princípios de justiça, como
matriz filosófica da justiça procedimental97. É certo que Rawls pouco tratou da justiça ou
de resolução das disputas, mas a ideia de um princípio geral de justiça que orienta as
deliberações democráticas foi bem apropriado pela tese da justiça procedimental98.

A justiça procedimental também serviu como resposta, já na década de 1990, às


críticas feitas aos chamados métodos alternativos de solução de disputas (ADR), acusados
de promoverem uma justiça menor do que aquela provinda da aplicação da lei pela
jurisdição (FISS, 1984). Ao sugerir que as pessoas identificam justiça à informalidade
dos métodos e que atribuem importância destacada à participação dos envolvidos, a tese
da justiça procedimental serviu como resposta do movimento em prol dos ADR à crítica
de que eles careceriam de legitimidade e ofereceriam uma “justiça de segunda categoria”
(TYLER, 2004, p. 445).

O peso dos procedimentos na percepção de justiça das pessoas, contudo, não é


uma conclusão uniforme nem absoluta. Ainda que ser ouvido por um decisor crível e
imparcial seja em tese importante, a perceção de justiça das pessoas estaria condicionada,
em ainda maior grau, às próprias características da sociedade e dessas pessoas. Embora
os estudos da área concluam não haver variação nos resultados entre, por exemplo,
diferentes etnias ou diferentes ideologias (TYLER, 2004), seus próprios autores
reconhecem que o contexto social gera variações de percepção de justiça entre diferentes
grupos. Os critérios que caracterizam a justiça procedimental em um caso concreto podem
variar conforme o grupo social e as pessoas envolvidas. Por exemplo, em conflitos

97
Os princípios gerais de justiça são estabelecidos, segundo ele, a partir da definição de um estado inicial
de justiça, que, embora fundado em um conhecimento apenas parcial das particularidades envolvidas,
considera um conhecimento geral sobre a sociedade, economia, política e direito – “o véu da ignorância”,
como ele consagrou a metáfora (RAWLS, 2008)
98
A tese da justiça procedimental se expandiu para a literatura jurídica europeia, que a submeteu a crivos
analíticos igualmente sofisticados – como, por exemplo, as noções correspondentes nas teorias da
legitimação pelo procedimento de Luhman e da ação comunicativa de Habermas (RÖHL e MACHURA,
1997).

77
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

interpessoais, a participação e o fato de serem ouvidos é importante para os envolvidos


considerarem justo o processo, ao passo que em outros tipos de casos, o critério mais
importante pode ser algum outro, como a imparcialidade do julgador. Outros dois
exemplos enfatizam o peso da categoria social dos envolvidos na sua percepção de
justiça: em casos que envolvem grupos distintos, as pessoas prestam atenção ao
favorecimento pessoal que uma proposta de acordo pode produzir; e, em conflitos
envolvendo pessoas do mesmo grupo social, a questão das mesmas oportunidades de
participação pesa mais na avaliação da justiça do resultado (TYLER, 2004)99.

Portanto, em princípio e em tese, as pessoas tendem a considerar mais justos os


métodos informais, porque conseguem ser ouvidos. Mas, em determinados casos e
conforme a comparação com a parte contrária, os litigantes podem achar que o processo
formal é o mais justo. Em outros casos, elas podem preferir negociar quando se sentem
em vantagem. Esta variação de possíveis percepções e expectativas de justiça parece-me
um ponto extremamente importante para a análise do cenário brasileiro, considerando o
perfil da nossa litigância, como veremos no capítulo 3.

4.3. A construção social da legalidade e justiça

O deslocamento da questão do acesso à justiça para fora do sistema jurídico


oficial coincide com novas interpretações da relação entre o direito e a sociedade
contemporânea – e, para o que nos interessa, o desenho de formas de resolver as disputas
entre seus membros.

Sob a premissa do pluralismo jurídico (SANTOS, 1977 e 1985; MERRY, 1988).


e inspiração nas leituras da antropologia jurídica sobre como diferentes culturas
concebem e operam seus instrumentos jurídicos (MALINOWSKY, 2003; NADER, 1990;
CHASE, 2005), a literatura sociojurídica desenvolveu o argumento de que uma
“consciência jurídica” (legal consciousness) seria determinante do grau de efetividade do
direito. A sociedade se pauta, segundo essa tese, por um senso jurídico informal e
invisível, mas bastante determinante de suas ações. As regras jurídicas, formais e

99
Este dado, convém registrar, corresponde ao que anteviram os primeiros estudos sobre acesso à justiça
(especialmente, Carlin, Howard e Messinger, 1966 e Galanter, 1974). Também se encaixa ao argumento
recente de Sandefur (2008), de que os litigantes integram grupos sociais diferentes em termos de classe,
raça e gênero, e esses elementos, mais do que uma ideia genérica de “pobreza”, interferem nos resultados
de justiça que podem obter pelo processo.

78
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

informais, estão presentes nas “atividades diárias” das pessoas e conformam o seu sentido
de justiça, num processo que temos identificado por aqui como “construção social da
legalidade” (RICCIO, 2004). O movimento é complexo e de duplo sentido: as práticas
diárias constroem coletivamente um sentido jurídico que, ao fim, afeta a interpretação e
a aplicação do direito formal nos órgãos institucionais (SILBEY, 2005).

O termo legal consciousness apareceu incidentalmente antes de compor, anos


depois, um eixo teórico autônomo naquela literatura. Em 1984, David Trubek atribuía
essa denominação a "todas as ideias sobre a natureza, função e operação do direito que se
tenha na sociedade em um dado período”100. Em 1990, Austin Sarat, que havia composto
a ideia da “pirâmide de disputas”, descreveu como o direito e a justiça apresentam-se e
são apreendidos diferentemente entre cidadãos e estratos sociais distintos (SARAT,
1990). Em 1998, Susan Silbey e Patricia Elwick publicam um referencial livro sobre o
lugar do direito no cotidiano das pessoas101. O tema se firma na literatura sociojurídica
norte-americana e parece influenciar os estudos sociojurídicos mais recentes, que se
propõem a explicar como o sentido jurídico se manifesta em diferentes contextos fáticos
e tipos de disputas e, então, como essas experiências constroem um padrão que
condiciona e regula esses próprios contexto (EDELMAN, 2016).

As linhas de estudo em “justiça procedimental” (procedural justice) e de


“consciência jurídica” (legal consciousness), embora alinhados a matrizes teóricas
distintas, compartilham a função de descrever os sensos de justiça na sociedade. O
argumento de que as pessoas são diferentemente afetadas pelo direito já aparecia em
Carlin et al. (1966) e Galanter (1974), mas não se tinha até então detalhado como isso
acontece. A hegemonia das abordagens regulatórias e procedimentais durante as décadas
anteriores – visão que Sandefur (2008) chamaria de comportamental de cima para baixo
(v. item 1, supra) - permitiu a expansão de instrumentos destinados a reduzir os
obstáculos ao acesso e a incrementar as capacidades organizacionais das partes. Mas não
ofereciam conhecimento sobre as diferenças entre os litigantes e como elas afetam a

100
No original, “all the ideas about the nature, function and operation of law held by anyone in society at
a given time" (TRUBEK, D. Where the Action Is: Critical Legal Studies and Empiricism, 36 Stan. L. Rev.
575, 592,1984, apud SARAT, 1990).
101
Patricia Ewick and Susan Silbey, The Common Place of Law: Stories From Everyday Life,Chicago:
University of Chicago Press, 1998.

79
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

litigiosidade em diferentes grupos sociais, o que os estudos sobre os modos de


“construção social da legalidade” tentam fazer.

As abordagens comportamentais/institucionais pressupunham, por absurdo que


soe, que os “desiguais” eram um grupo social homogêneo e as desigualdades os afetariam
do mesmo modo e intensidade, de sorte que o mero aperfeiçoamento de órgãos e
procedimentos eliminasse igualmente os obstáculos de acesso a todos eles. Geralmente,
identificam “desiguais” a um mesmo grande grupo de “pobres” – ou das pessoas
enquadradas como tal. Como argumenta Sandefur (2008), o acesso à justiça não uma
questão que atinge apenas um determinando estrato ou grupo social. A classe média, diz
ela, também sofre com restrições de acesso à justiça. Na medida em que aqueles estudos
focavam em um único grupo, o dos “pobres”, seu potencial explicativo era limitado por
não comparar desigualdades entre grupos distintos102.

Os diferentes grupos sociais assimilam o direito formal conforme os seus


objetivos e as suas características permitem. E, a partir disso, reconstroem os sentidos da
regulação jurídica internamente, condicionando a efetividade e o potencial da lei. Esse
fenômeno da internalização de sentidos jurídicos que acontece por esse complexo
processo reflete-se em uma processo recentemente chamado de “legal endogeinity”, “um
processo pelo qual o significado da lei é formatado pelas ideias amplamente aceitas na
arena social que o direito procura regular”103. Lauren Edelman, da Universidade da
Califórnia/Berkeley, o descreve com precisão nas relações sociojurídicas do ambiente de
trabalho. Um dos seus focos é justamente as resoluções de disputas conduzidas
internamente pelas empresas – como os comitês ad hoc de sindicância, os canais de
ouvidoria, a mediação feita pelos departamentos de recursos humanos e os ombudsmen.
Todos eles, ela argumenta, mimetizam processos jurídico-processuais oficiais, mas
escondem, por detrás dos elementos jurídicos incorporados formalmente, o senso de
regulação próprio das estruturas que os sustentam. A resolução consensual de disputas,
por exemplo, se é organizada pelas empresas, reproduz a racionalidade econômica,
eficientista e gerencial que anima a sua atividade. Por mais que os processos exteriorizem

102
A análise do acesso à justiça a partir de diferentes grupos sociais é talvez a principal proposta de Sandefur
(2008). E, para tanto, ela busca os conceitos clássicos da sociologia, classe, raça e gênero, como
instrumental analítico chave para analisar acesso à justiça.
103
“a process through which the meaning of law is shaped by widely accepted ideas within the social arena
that law seeks to regulate.” (EDELMAN, 2016)

80
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

princípios e regras espelhados no direito formal e adotem técnicas consagradas pela


literatura jurídica especializada, os resultados de justiça que conseguem alcançar se
limitam aos valores que compõem aquela racionalidade, ao seu senso de legalidade
(EDELMAN, 2016).

4.4. Sistemas sociojurídicos de solução de disputas

A constatação de que o direito está presente, informal e diluído, nas atitudes e


práticas diárias das pessoas, compondo uma espécie de “consciência jurídica” coletiva
(legal consciousness) permitiu a elaboração de descrições mais complexas da resolução
de disputas nas sociedades contemporâneas. A figura da “árvore de disputas” é uma delas,
apresentada em aperfeiçoamento da metáfora da “pirâmide de disputas”, concebida no
início da década de 1980.

A “pirâmide das disputas” pressupõe um eixo linear central em torno do qual os


vários métodos de solução de disputas são classificados. A referência é a jurisdição e o
processo judicial e, supostamente, as disputas escalam os graus que levariam até a
jurisdição estatal. Ainda que nem todas disputas se transformem em processo judicial,
elas o têm como referência de trajetória. Negociações e acordos são celebrados em função
do risco ou do custo de um eventual litígio judicial. Há, nesta imagem, uma presunção de
que a justiça em estado puro estaria no topo da pirâmide, como resultado dos instrumentos
formais estatais de jurisdição.

Se, contudo, o direito está presente nas práticas individuais em toda a sociedade
e se esta regula-se por meio de um processo complexo de “construção social da
legalidade”, o sistema de resolução de disputas não poderia ser representado por uma
figura com um único eixo central escalonado, como a da pirâmide. Seria o caso de
representeá-lo por uma outra figura. Com essa premissa, Katherine Albiston, Lauren
Edelman e Joy. Milligan (2014) conceberam a interessante figura de uma “árvore das
disputas”, que parece ser um rico recurso analítico para explicar a resolução de disputas
na chamada “sociedade em redes” (CASTELLS, 2007).

O sistema de resolução de disputas das sociedades contemporâneas, integrado


pelos métodos institucionalizados e aqueles realizados “à sua sombra”, estruturam-se,
argumentam as autoras, em um feixe de canais individuais, próximos e influenciáveis,

81
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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade


e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
social phenomena in these triangles are important for understanding legal mobilization outside
of legal forums, remedies for legal wrongs, and perceptions of justice, not to mention the links
among “dispute processing methods and inequality, collective action, and structural imbalances”
porém autônomos. A figura abaixo, uma reprodução artística utilizada pelas autoras, (Kidder 1980, p. 720). Morrill et al. (2010) offer a noteworthy revision to the dispute pyramid
metaphor that speaks to these weaknesses. In their multidimensional model, perceived rights vi-
olations may result not only in formal legal action but also in quasi-legal action (such as using

ilustra a ideia. a formal organizational complaint procedure) or extralegal action (such as direct confrontation,
appeals to the media, consulting friends and family, or even prayer). Although their approach is a
significant improvement over the dispute pyramid approach, we advocate abandoning the pyramid
metaphor altogether to capture better the nature of disputes and dispute handling in society.
We propose a new metaphor for the dispute resolution process: the dispute tree (see Figure 2).
Figura 3: A “árvore” do sistema de resolução de disputas
Rather than narrowing to a single point at the top, the dispute tree grows many branches from
Access provided by University of California - Berkeley on 12/14/15. For personal use only.
Annu. Rev. Law. Soc. Sci. 2014.10:105-131. Downloaded from www.annualreviews.org

Fonte: “Tree of life”, de John Benko, em


Figure 2
The dispute tree. Reproduced with permission from the artist, John Benko.
Albiston, Edelman e Milligan, 2014
108 Albiston · Edelman · Milligan

A “árvore das disputas” possui, em lugar de um tronco central, um feixe de


canais reunidos dos quais brotam ramos e, deles, bifurcam outros ramos menores. Sob a
“árvore”, há estrutura reflexa também de múltiplos canais com ramos radiculares
menores. Sua peculiaridade são os vários canais paralelos, que evocam o caráter orgânico
dos métodos de solução de disputa, em substituição ao monobloco de estágios lineares da
“pirâmide”. O feixe central, como se intui, seria o caminho padrão de resolução de
conflitos, similar aquele representado pela pirâmide – mas que não se resume a um único
método oficial, como a jurisdição estatal. Ele contém algumas opções prioritárias, longe
de ser um único caminho necessário ou preferido.

A “árvore das disputas” contempla os métodos estatais, paraestatais e privados


de solução dos conflitos. Os ramos adjacentes representam possíveis encaminhamentos
via processos “quasi-legais”, paralegais ou totalmente privados. Os “ramos” paralelos
reproduzem características similares às dos ramos do feixe central – ou seja, os métodos
paraestatais mimetizam aspectos e formas do processo judicial (feixe central), mas têm
características próprias marcantes. Podem ser, por exemplo, processos estatais
extrajudiciais ou processos arbitrais privados, que compartilham com o processo judicial
a natureza adjudicatória e uma estrutura formal de contraditório, mas podem não estar
sujeitos à mesma densidade formal e ter a flexibilidade de processos privados.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Os métodos ditos alternativos de resolução de disputas - como a mediação,


conciliação e negociação - também seriam ramos paralelos ao feixe central que,
diferentemente dos adjudicatórios, teriam brotado de um outro ponto do tronco e
carregam outras características – no caso, a resolução consensual do conflito. A “árvore”
também possui outros tantos ramos derivados dos intermediários, que representariam
métodos híbridos entre os adjudicatórios e os consensuais – como a avaliação de terceiro
neutro, os chamados “mediation-arbitration” (“med-arb”), “baseball arbitration” e toda
a rica flora de combinações da literatura em ADR. E ramos novos podem germinar ainda
mais distantes do feixe central e resultar em métodos totalmente alheios ao sistema
jurídico oficial - como as práticas de acordos privados, mobilização social por direitos,
reivindicações e negociações coletivas, mecanismos de cooperação, entre tantos outros
encaminhamentos possíveis que as pessoas conferem às suas disputas104.

A figura da “árvore das disputas” também explica a diferente eficácia de cada


método. Normalmente, os ramos não têm todos o mesmo desenvolvimento e podem gerar
produtos diversos: alguns chegam a produzir “frutos”, enquanto outros produzirão
“flores”. Os “frutos”, comparam as autoras, seriam resultados materiais obtidos pelo
processo, como um acordo financeiro ou uma sentença condenatória. As “flores” seriam
resultados simbólicos de justiça, como uma imagem perante a opinião publica, o
reconhecimento de culpa da parte contrária, um pedido formal de desculpas, ou mesmo a
satisfação pessoal de ter sido ouvido publicamente. Determinadas disputas exigem
resultados materiais, ao passo que outras são bem servidas por resultados simbólicos.
Embora nem todos sistemas jurídicos considerem essa diferença, ela é bem captada na
prática pelos litigantes, o que se reflete em seus variados comportamentos processuais e
no perfil geral da litigância (EDELMAN; MILLIGAN, 2014).

A figura da “árvore” tem, como se percebe, algumas evidentes vantagens em


relação à da “pirâmide” de disputas. Ela admite uma plêiade quase ilimitada de métodos
de resolução de conflitos e não apenas um punhado de três ou quatro modalidades padrão.
Ela também facilita a classificação dos métodos sob critérios variados o suficiente para
contemplar todas as possíveis combinações de características - públicos e privados,

104
Inclusive, estão no texto rituais religiosos como a reza. Esta opção, que também surpreendeu as autoras,
foi mencionada não poucas vezes nas respostas aos questionários aplicados a população sobre como tentam
resolver seus conflitos de interesses. Rezando, muitas pessoas responderam.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

formais e informais, adjudicatórios ou consensuais, avaliativos ou facilitativos,


individuais ou coletivos, materiais ou simbólicos, entre outras. Bem como, admite
equacionar níveis intermediários de efetividade e considera o uso dos processos para fins
muitas vezes diversos do que prevê a lei – o que as pesquisas de percepção dos litigantes
indicam em seus resultados.

A ilustração da “árvore” também pode ser expandida, como sugerem as autoras,


para uma “floresta” de métodos de solução de disputas, com espécies variadas conforme
o tipo de conflito ou perfil de partes. A “floresta” representaria um macrosistema de
resolução de disputas. Determinadas disputas adequam-se bem a “árvores” de “ramos
públicos e adjudicatórios”, outras a “árvores” com mais “ramos consensuais”, outras a
apenas “ramos privados”. Há disputas que dependem de “árvores” com “ramos rígidos”,
outras precisam de “ramos flexíveis” e outras ainda a “árvores” com ambos tipos de
ramos. As “florestas” compõem-se de árvores de uma ou outra espécie conforme o cultivo
da cultura local, da época ou do cenário. Determinados países têm solo propício para
alguns tipos de “florestas” (uma certa combinação de métodos e processos de solução de
conflitos), outros recebem melhor “florestas” de outras características – “florestas
públicas” ou “florestas privadas”, para ficar no exemplo elementar (EDELMAN;
MILLIGAN, 2014).

A representação figurativa de um sistema de resolução de conflitos é específica


a cada ordem jurídica e social. Cada sociedade, em cada época, possuirá uma figura
adequada para representar as formas como resolve disputas entre seus membros. A figura
da “árvore de disputas”, embora admita múltiplos modelos e combinações locais, é
adequada para retratar sistemas jurídicos mais complexos, mas pode não representar
fielmente aqueles mais elementares. O cenário jurídico norte-americano, por exemplo, é
composto de uma plêiade considerável de métodos de resolução de disputas. Os tipos
originais de ADR de Sander (1976) se difundiram em outros tantos métodos e acrônimos
– o “early neutral evaluation” (ENE), o “mediation-arbitration” (med-arb), a “baseball
arbitration”, o “online dispute resolution” (ODR), o “internal dispute resolution” (IDR),
etc. É, portanto, plenamente concebível representá-los pela figura da “árvore de disputas”.
Outros sistemas, que já não se confortavam na figura de uma “pirâmide de disputas” do
CJLP, podem também não ser bem representados pela figura de uma “árvore” - ao menos
não uma árvore assim frondosa e ramificada.

84
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Estudos empíricos sobre a resolução de disputas praticada em cada sociedade


podem sugerir figuras adequadas para representar os respectivos sistemas. Um exemplo
é a descrição que Michelson faz do sistema de justiça chinês (2007), diferente da
“pirâmide” e da “árvore” de disputas que descrevem o sistema norte-americano.
Michelson invoca a arquitetura do “pagode chinês” para ilustrar os dados de um survey
feito com 3.000 residentes em seis províncias chinesas. O “pagode” é uma construção
típica oriental que lembra uma sobreposição de casas, cada uma com seus telhados. Cada
andar pode ter um tamanho maior ou menor, independente do seu nível. Diferentemente
da “pirâmide”, seu formato não é necessariamente triangular, com base mais larga que o
topo. Alguns são assim; outros podem ter sobreposição de níveis com a mesma dimensão,
como um prédio de apartamentos. A sugestão da figura, neste caso, é de que não há a
gradativa eliminação das disputas conforme ascendem os níveis, típica do cenário norte-
americano; as disputas passam por todos os níveis até o método final de resolução. Em
outros tipos de construção, os primeiros níveis podem ser mais estreitos que os
intermediários, e esses mais amplos que os superiores. Esse parece ser o formato
representativo da resolução de disputas na China, segundo os dados de Michelson.

Os dados coletados por Michelson (2007) sugerem um “pagode” com perfil


peculiar: nível de base mais estreito que o segundo nível maior e repentino afunilamento
crescente, com leve ampliação no nível final. Nas figuras abaixo, a lista com percentuais
e a primeira figura à esquerda representam o perfil médio do sistema chinês de resolução
de disputas. A figura à direita contém as variações específicas conforme as naturezas das
disputas. Variações regionais também alteram este padrão.

Figura 4: O “pagode” de disputas chinês, com variação por perfil de


468 —–AMERICAN SOCIOLOGICAL REVIEW

CLIMBING THE DISPUTE PAGODA—–467


relacionamento pessoal das partes


Fonte: Michelson, 2007.

Os encaminhamentos mais frequentes dados às disputas são também próprios do
país. NaFigure
figura1. Baseline
acima, Dispute Pagoda,
a lista comRural China, 2002
percentuais da direita indica que as disputas na China

percent) was precisely double the proportion S4.) Among households with even more polit-
of grievances that went to legal channels (2 per- ical connections,
Figure 2. Dispute Pagodas the bulges above “village
by Political Connections, Rural China, 2002 85
cent). Moreover, the “legal system” category leader” are of considerably greater prominence.
Note: Not all dispute pagodas total 100.0 percent owing to rounding error. “Connection to Village Leader” refers
to families that contain a village leader. “Connections to Village Leader and Higher-Level Cadre” refers to families
included many instances of approaching admin- Of allthat
grievances reported by households with
contain a village leader and that maintain close relations with and frequent contact to an outside relative work-
ing as a higher-level cadre.
istrative offices: of all grievances in this cate- both a village leader and a close relationship
gory, 63 percent went to court, 31 percent went with an outsideeconomic
by contextual relativeconditions,
in higher politicalernment
this effect office,office (Model 1). Relations with out-
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

são objeto de resiliência pela vítima (33.1%), de negociação bilateral (46,8%), de


resolução por meio das relações informais das partes com membros do governo (7,3%),
pela intervenção do líder da vila (6,3%) ou do agente oficial da vila (3,6%), da policia
(1,1%) e, no topo, os atores do sistema de justiça - advogado, tribunal ou oficial de justiça
(1,8%) (MICHELSON, 2007).

A despeito da presença estatal que caracteriza o modelo político chinês, as


negociações privadas são, segundo Michelson (2007), o encaminhamento mais comum
das disputas – o que já caracteriza a figura do “pagode”: a base (da resiliência, 33% dos
casos) é mais estreita que o “primeiro andar” (negociação bilateral, com 47%).

O peso das relações pessoais e a importância tradicional do líder comunitário


local também diferenciam aquele sistema – mais até do que elementos considerados
determinantes, como educação e condição econômica. Segundo Michelson (2007), na
China, famílias com algum parente com cargo público exploram esta relação para resolver
conflitos e dependem menos do sistema geral de resolução de disputas. Da mesma forma,
relações com o líder local, com os agentes administrativos reginais ou com agentes
políticos condicionam o uso dos métodos de solução de conflitos – por exemplo: pessoas
com alguma relação com o líder local, exploram este método mais do que outros; pessoas
com alguma relação com agentes administrativos regionais, levam suas disputas para
órgãos administrativos; e pessoas com alguma relação com agentes políticos, concentram
suas disputas em tribunais, advogados e oficiais de justiça.

Em ambas ilustrações, da “árvore” e do “pagode”, assim como na anterior, da


“pirâmide”, as disputas de interesses são objeto de uma regulação articulada entre
processos sociais e processos oficiais. As disputas sempre nascem no âmbito social e
perpassam níveis de resolução que variam conforme variável conforme a cultura local e
as facilidades institucionais. A jurisdição estatal, nessa perspectiva mais ampla, é apenas
um dentre os métodos utilizados. E o fenômeno da litigiosidade está muito longe se fazer
suficientemente representado e compreendido pela quantidade de processos judiciais.

5. Jurisdição e o direto processual no contexto de litigiosidade

O mapeamento de estudos sobre justiça e resolução de disputas evidenciou que


a produção teórica sobre o problema do acesso à justiça - ou melhor, o conjunto de ideias
em torno do tema é variado e complexo. É muito mais amplo e variado do que o relatório

86
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

geral do Projeto Florença publicado no Brasil em 1988, que tomamos como referência,
quase sempre exclusiva, para pensar o nosso acesso à justiça. Os trabalhos anteriores e
posteriores a obra de Cappelletti e Garth oferecem outros tantos elementos úteis para
compreender a litigiosidade no Brasil e avaliarmos o nosso modelo de regulação
processual.

As perspectivas teóricas apresentadas podem ser organizadas em três categorias:

a) leituras institucionais dos métodos de resolução de disputas: focam sua


análise nos órgãos e dos procedimentos instituídos e fazem propostas de
reforma que buscam o seu aperfeiçoamento técnico; o melhor exemplo seria
o próprio Projeto Florença e as “ondas renovatórias” do acesso à justiça de
Cappelletti e Garth (1988).
b) leituras sociais sobre o problema do acesso à justiça: propõem-se a explicar
o problema a partir das características das disputas e dos litigantes; fazem
propostas de capacitação das pessoas para a mobilização por direitos (com o
fim de reduzir as desigualdades entre elas); são exemplos, ainda que não
exclusivos desta perspectiva, os trabalhos pioneiros de Carlin, Howard e
Messinger (1966) e os de Marc Galanter (1974) sobre os perfis de litigantes,
bem como aqueles sobre disputas e níveis de resolução – desde os nascidos
do Civil Justice Litigation Project no início de 1980 (Felstiner, Sarat, Abel e
Austin e Miller) até os mais recentes (Albiston, Edelman, Milligan e
Michelson);
c) leituras culturais sobre os sentidos de justiça: deslocam o olhar para as
experiências das pessoas com disputas e regras jurídicas e descrevem como
essas experiências compõem a função simbólica do direito como instrumento
de regulação social; são exemplos os estudos sobre “consciência jurídica” de
Susan Silbey (1998) até os mais recentes sobre legal endogeinity de Lauren
Edelman (2016).

87
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Essa classificação tem mera função didática105, mas pode também servir como
um instrumental analítico para avaliar os nossos repertório teórico e marcos regulatórios
das disputas em comparação aos de outros sistemas.

Coincidentemente ou não, a classificação corresponde à sequência cronológica


dos estudos: a primeira categoria se concentra nas décadas de 1960 e 1970; a segunda,
nas décadas de 1980 e 1990; e a terceira, nas décadas de 2000 e 2010. Isso pode sugerir
que a compreensão do problema do acesso à justiça evolui a cada período, com
correspondente aperfeiçoamento técnico das respectivas propostas. Se isso for verdade, a
teoria jurídica e as políticas públicas de justiça no Brasil, pautadas na ideia de acesso à
justiça do Projeto Florença, publicado inicialmente em 1978, estariam defasadas em
algumas décadas em relação àquelas explicações.

Vista hoje, a perspectiva de Cappelletti e Garth (1978) é eminentemente


institucional. Os problemas de acesso à justiça são enfrentados por propostas de alteração
de leis materiais, processuais e de organização da Justiça, na ilusão de que isso daria conta
de toda a complexidade do problema. Comparando-a às leituras anteriores e posteriores,
a proposta das “três ondas renovatórias” parece limitada. Como sintetizou Sandefur
(2008) trinta anos depois, são propostas que creditam ao direito um potencial reformador
da sociedade extraordinário, nem sempre factível com o problema elementar de baixa
efetividade da ordem jurídica.

Entretanto, a limitação das propostas de Cappelletti e Garth (1978) pode estar


ligada mais ao modo como são lidas e utilizadas do que ao seu próprio conteúdo. As
recomendações institucionais sintetizadas pela figura das “três ondas” estão sedimentadas
sob a mesma premissa também encontrada nos outros estudos – e que, por isso, parece
compor o núcleo essencial da ideia de acesso à justiça. O direito não é neutro e a sua
capacidade de produzir justiça depende da redução das desigualdades sociais; caso
contrário, ele funcionará em sentido inverso ao esperado, surtindo um efeito contrário, de
aumentar as desigualdades e produzir injustiças. A argumentação de Carlin, Howard e

105
Essa classificação tem função didático-explicativa e analítica-instrumental. Não é e nem pretende ser
precisa. Autores que oferecem leituras “sociais” fazem propostas institucionais e também avançam para
análises “culturais” do problema do acesso à justiça. O critério de classificação é a perspectiva
aparentemente predominante em cada análise, sendo certo que as abordagens se combinam em um mesmo
trabalho. Ainda assim, não deixa de ser um instrumental útil para avaliar outras leituras sobre o problema,
no caso, as que fazemos na literatura brasileira.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Messinger no distante 1966, somada ao repercutido artigo de Galanter em 1974, são


suficientemente esclarecedores e convincentes de como isso se opera na realidade.
Cappelletti e Garth (1978) tinham consciência disso e estruturam sua tese sob a premissa
da redução das desigualdades sociais para a otimização da efetividade do direito.

A leitura feita da tese de Cappelletti e Garth (1978), contudo, embora motivada


pela essência do problema - a desigualdade que compromete a efetividade da justiça -
priorizou as propostas institucionais sintetizadas nas “três ondas” renovatórias. As
reformas legislativas e as políticas públicas, consequentemente, adotaram um receituário
eminentemente instrumental: a concessão de direitos no âmbito material e a estruturação
de instrumentos organizacionais e processuais para viabilizar o seu acesso ao sistema
formal de justiça. A legislação processual brasileira das décadas de 1980 e 1990 são um
bom exemplo. A ideia de acesso à justiça, nesta leitura, aproxima-se da de acesso a órgãos
do sistema de justiça – o que foi percebido, entre nós, por Kazuo Watanabe já na década
de 1980, ao propor pensarmos em termos de “acesso à ordem jurídica justa”
(WATANABE, 1985).

As políticas institucionais de acesso à justiça tiveram um resultado


extraordinário. É difícil imaginar como seria o sistema jurídico brasileiro, por exemplo,
sem o instrumental construído a partir das “três ondas”: tutela jurídica em matéria
ambiental; ação civil pública; direitos do consumidor; proteção especial à criança e
adolescente; regras de controle de práticas de concentração de mercado; juizados
especiais cíveis, criminais e federais; assistência judiciária; defensorias públicas;
arbitragem; conciliação; mediação; entre outros.

Entretanto, a leitura institucional do acesso à justiça tem potencial limitado para


a compreensão do problema, o que ficou mais evidente com o tempo. Embora o relatório
oferecesse mecanismos potencialmente aptos – como a tutela dos interesses coletivos -, a
perspectiva meramente institucional limitou, por exemplo, os elementos para se
compreender o fenômeno da litigiosidade de massa e para elaborar propostas para regular
o novo perfil de jurisdição e resolução de disputas dele decorrente. A limitação sequer
pode ser atribuída ao desconhecimento, à época, dos problemas de acesso à justiça que
vieram a afligir das sociedades contemporâneas. Ambos, a litigiosidade e esse novo perfil
da jurisdição, eram previstos com impressionante acerto antes mesmo do acesso à justiça
de Cappelletti e Garth. A descrição que Carlin, Howard e Messinger fazem em 1966, por

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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

exemplo, é surpreendentemente atual: tribunais com perfil assistencialista; ideia de


“tratamento” dos conflitos em lugar da de julgamentos imparciais; aumento
“metropolitano” do acervo de processos; pressão pela accountability das cortes em
relação às suas despesas; proliferação de regras e tarefas administrativas nos tribunais;
uma explosão de trabalhos burocráticos nos fóruns (“paperwork explosion”); delegação
de tarefas decisórias para o pessoal administrativo; juízes transformados em carimbadores
(à época, não eletronicamente) de decisões de outros; deficiente motivação das decisões;
juízes administradores de conflitos; sistema direcionado para promover a “solução
satisfatória” para as partes (geralmente por meio de acordos) em vez da preservação de
direitos ou a punição por violações; e, para fechar, crescente falta de recursos nos
tribunais.

À época, Carlin, Howard e Messinger (1966) sugeriram a elaboração de uma


nova teoria da jurisdição, o que não chegou a se concretizar. Sistemas jurídicos foram
reformados estruturalmente e a teoria sociojurídica avançou substancialmente, mas, no
âmbito jurídico processual, ainda há aparentemente dessintonia entre as explicações
teóricas, as políticas públicas judiciais e o problema concreto de acesso à justiça. As
teorias com que lidamos oferecem explicações e inspiram reformas que não dão conta da
complexidade do problema. O quadro sugere um aggiornamento sobretudo de natureza
teórica.

Os estudos sobre o acesso à justiça produzidos nas décadas seguintes a


Cappelletti e Garth (1978) chegaram a outras três grandes descobertas que nossas
políticas de justiça não internalizaram totalmente. A primeira, de que o processo judicial
é somente o estágio final de um longo processo de solução das disputas no campo social
(FELSTINER, ABEL; SARAT, 1981). As disputas nascem na sociedade e, desde então,
são submetidas a métodos mais ou menos aprimorados e justos de resolução (MILLER;
SARAT, 1981). Em alguns casos, a jurisdição não é sequer o estágio final a que todos
conflitos chegariam, mas uma das possíveis vias de resolução de disputas disponíveis às
partes (ALBISTON, EDELMAN; MILLIGAN, 2014).

A segunda seria a de que o acesso à justiça está na sociedade, não no Estado. A


justiça está menos para um produto empacotado entregue pelo Estado mediante
provocação e após um rito preestabelecido do que para o resultado coletivo de
experiências diárias das pessoas. A percepção de justiça e de legalidade é uma construção

90
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

social. O acesso à justiça depende, nesse sentido, menos de um corpus instituído de leis
e formas jurídicas e mais dessas experiências. Seria preciso, portanto, conhecê-las. Por
outro lado, a percepção de justiça das pessoas é constituída, em grande medida e
surpreendentemente, pela forma dos julgamentos – por elementos processuais, em ultima
análise. Ter voz, ser ouvido por um terceiro neutro, com credibilidade evidente e ser
tratado com respeito e dignidade podem pontuar mais na experiência de justiça das
pessoas do que sua opinião sobre o acerto ou o erro da decisão proferida ou sobre os
termos do acordo celebrado (THIBAULT; WALKER, 1973; TYLER, 1988). O
contraditório não apenas legitima formalmente o procedimento, como consubstancia o
próprio sentido de justiça das pessoas.

A terceira está mais para uma lembrança de que frequentemente nos esquecemos
do que para uma descoberta que ignorávamos. O sistema jurídico é que depende da
litigiosidade, não o contrário. Os litígios judiciais são um eficaz instrumento regulatório,
tanto quanto ou mais do que a lei e as políticas públicas. Um processo judicial abre para
o direito a oportunidade de discutir publicamente e deliberar sobre práticas e políticas
privadas e públicas concretas. A atividade legislativa oferece oportunidade semelhante,
mas não tem a vantagem de trabalhar sobre um cenário concreto. Seu potencial de regular
eficazmente a sociedade depende de um grau satisfatório de adesão voluntária aos
comandos abstratos. A jurisdição, diferentemente, contribui com a atividade regulatória
do Estado com uma eficácia potencial maior. E a litigiosidade é que lhe permite
desempenhar o papel que justifica a sua existência, suas despesas e o seu papel na
sociedade.

A incorporação dessas conclusões aos estudos sobre as formas de resolução de


disputas abre novas perspectivas para se pensar a teoria da jurisdição e do direito
processual em um contexto de litigiosidade. Antes, porém, seria preciso conhecer o
contexto concreto de acesso à justiça no Brasil.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
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II. O acesso à justiça civil e litigiosidade no Brasil


O capítulo anterior apresentou um panorama da evolução dos estudos sobre o
problema do acesso à justiça em uma determinada literatura sociojurídica – no caso, a
law and society norte-americana - com o objetivo de expandir o repertório analítico para
a avaliação dos desafios da resolução de disputas em sociedades contemporâneas,
particularmente no Brasil. Para que aquelas conclusões sejam melhor aproveitadas ao
nosso debate e, eventualmente, em nossas políticas de justiça é preciso adequa-las ao
nosso sistema de justiça. Este capítulo dedica-se a essa tarefa por meio da apresentação
de três conjuntos de dados: as questões que mobilizaram nosso debate teórico em acesso
à justiça (a teoria); a evolução do panorama normativo pertinente (a lei); e os dados sobre
a litigância judicial no Brasil (a “realidade”106).

A sistematização teórica do capítulo anterior nos lembrou que a ideia de acesso


à justiça foi originalmente concebida com a função de minimizar a interferência das
desigualdades sociais sobre o escopo de promoção de justiça. Advertiu-nos que o direito
e o processo judicial - os métodos de solução de disputas, em geral - não são neutros
como usualmente supomos. E, por fim, explicou-nos que as políticas de acesso à justiça
em outros países, inicialmente restritas aos canais institucionais formais (a jurisdição e o
processo civil, por exemplo), deslocaram-se no sentido de canais sociais informais de
resolução de conflitos e, em seguida, para as experiências das pessoas com disputas de
interesses e direitos. Da tipologia dos litigantes às ideias de “justiça procedimental” e
“construção social da legalidade”, passando pelas metáforas da “pirâmide” e da “árvore”
das disputas, esses recursos analíticos descreveram a evolução da compreensão do acesso
à justiça nos diferentes sistemas de solução de disputas, e podem servir de referência para
a regulação da litigiosidade no Brasil.

Os estudos e as políticas em acesso à justiça no Brasil, por seu turno, não


parecem olhar para essa problemática com a mesma profundidade e complexidade
analítica. A teoria jurídica e a nossa legislação concentram-se sobretudo nos canais

106
Ciente da advertência epistemológica de que qualquer descrição da “realidade” não passa de uma
representação, condicionada à visão do observador e moldado por seu discurso. A propósito, veja-se
explicação de Álvaro Pires (2014). A “realidade” da Justiça e do processo no Brasil apresentada neste
capítulo é construída a partir dos dados empíricos disponíveis e ganha este nome mais para se diferenciar
das categorias anteriores, da teoria e da lei, do que pela pretensão de exprimir em absoluto a realidade.

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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

institucionais de acesso à justiça - o sistema oficial de justiça, a jurisdição e o processo


judicial. E os dados empíricos oficiais, que apenas recentemente passaram a ser
sistematizados no Brasil, geralmente se limitam a diagnósticos quantitativos gerais sobre
a movimentação de processos nos tribunais – o que, ficou claro, representa uma parte do
fluxo de acesso à justiça.

Parece haver, portanto, uma discrepância entre o que nossas teorias e nossas leis
consideram como “acesso à justiça” e, por um lado, a profundidade com que o problema
é analisado em outras matrizes teóricas e, por outro, o perfil da resolução de disputas no
Brasil. Essa discrepância, eis meu argumento, parece interferir nas noções de “litigância
de massa”, “litigiosidade repetitiva” e fenômenos relacionados - comprometendo, assim,
o potencial da legislação e das políticas de justiça, criadas para as “combater” sem
compreendê-las suficientemente. O resultado vai desde a inaptidão dos atores do sistema
de justiça para lidar com os instrumentos da nova legislação até sua completa ineficácia
e baixa efetividade em termos de produção de justiça material107.

Este capítulo visa apresentar essas discrepâncias entre o acesso à justiça


considerado em teoria, prescrito em leis e aquele que (não) acontece na “realidade”
brasileira. Dados de natureza normativa e dados empíricos são as fontes das informações
aqui sistematizadas. Os dados empíricos, embora ainda não cheguem ao diagnóstico
completo da resolução de conflitos no Brasil, ensaiam um “mosaico” bastante
esclarecedor da nossa situação108. Articulados ao repertório teórico, ambos podem servir
para inspirar o desenho de políticas e práticas judiciárias potencialmente mais efetivas.

A sistematização das referências teóricas e normativas é feita em caráter


ilustrativo. A intenção não é detalhar nem exaurir os aportes teóricos e os dispositivos
legais relacionados ao problema da pesquisa. Basta, para o argumento construído neste

107
Qualquer política pública, legislativa ou não, provoca, além do seu efeito regulatório ordinário, um jogo
de incentivos e desincentivos a práticas consideradas desejadas e indesejadas. Aferir, por exemplo, se a
nossa legislação processual civil recente alcançará seus propósitos (se será “efetiva”, como dizemos em
teoria processual), depende de adotarmos uma referência comparativa de como é, atualmente, utilizada a
jurisdição e como são resolvidas as disputas na sociedade. Esse é um dos objetivos desse capítulo.
108
Parte relevante dos dados apresentados foram produzidos em pesquisas de que participei como
coordenador ou como pesquisador. Juntas, elas reproduzem uma linha de investigações que trilho desde
2004, aproximadamente, voltada a compreender os problemas da justiça brasileira e, com base neste
conhecimento, conjecturar proposições normativas em direito processual e organização judiciária. As
respectivas referências aparecerão ao longo da exposição.

93
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

capítulo, apresentar os traços gerais da sua evolução e os aspectos mais destacáveis na


compreensão de acesso à justiça em que se baseiam.

A seleção dos dados empíricos aqui apresentados, também não exaustiva, guiou-
se por algumas perguntas. Qual seria, afinal, o perfil da litigiosidade no Brasil? Que
disputas alcançam o nível da jurisdição oficial - e, portanto, comporiam o objeto da
regulação legislativa processual? Quem são os litigantes judiciais no Brasil? Quais são os
“jogadores habituais” e os “participantes eventuais”? Pensando no desenho do sistema,
como é o fluxo no “macrosistema formal e informal de resolução de disputas” no Brasil?
Que figura melhor o representaria? E, por fim, que elementos compõem nossas
experiências de “construção social da legalidade”? O que a população espera em termos
da justiça que se pode oferecer por meio dos métodos de solução de disputas? As
respostas que puderem ser ensaiadas para essas perguntas contribuirão para
identificarmos diretrizes e princípios adequados para regular os métodos de solução de
disputas no Brasil – objeto do capítulo final.

1. Leis e teorias sobre o acesso à justiça no Brasil

O modo como lidamos com o problema do acesso à justiça e a litigiosidade no


Brasil depende, inicialmente, de como os compreendemos. As “ondas renovatórias” do
acesso à justiça, de Cappelletti e Garth (1978), têm sido a nossa mais influente referência
para compor esse conceito, quando não a única. E parece ter sido bastante efetiva, ao
menos do ponto de vista do aperfeiçoamento institucional. Analisando o nosso quadro
normativo, é possível dizer que o Brasil “surfou” satisfatoriamente as “três ondas”, e que
muito provavelmente elas contribuíram com a melhor distribuição de justiça na
sociedade. Atualmente, o problema do acesso à justiça parece migrar para o
enfrentamento de novos desafios, impostos pelo fenômeno da litigiosidade judicial
exercida em grandes escalas - “litigiosidade de massa”. Para avaliar a mudança e enfrentar
esses desafios, convém compreender a trajetória do que se tem entendido por acesso à
justiça no Brasil.

O assunto do acesso à justiça é introduzido no cenário acadêmico e político


brasileiro no final da década de 1970, motivado pelo processo de abertura política e por
meio principalmente das áreas da sociologia do direito e o do direito processual. O
movimento de renovação institucional tendente a reconstruir a democracia após duas

94
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

décadas de regime ditatorial, inspirou-se nas tendências jurídico-filosóficas e


sociojurídicas então evidentes, dentre as quais se destacavam o “pluralismo jurídico” e o
próprio “acesso à justiça”. O pluralismo jurídico inspirou autores importantes da
trabalhos da sociologia do direito brasileira sobre o acesso à justiça (FALCÃO, 1984;
CAMPILONGO, 1991)109, e as propostas de Cappelletti (1978 e 1988) inspiraram o
desenho do novo quadro constitucional e processual brasileiro. Curiosamente, alguns dos
principais autores no tema eram próximos, pela língua ou pela filiação teórica, à tradição
jurídica brasileira. O português Boaventura de Souza Santos desenvolvera sua tese sobre
o pluralismo jurídico, em Yale, a partir de estudos de casos feitos no Rio de Janeiro nos
anos 70 (SANTOS, 1977, 1980 e 1985). Mauro Cappelletti, por sua vez, descendia de
qualificada linha de processualistas italianos, como Piero Calamandrei e Giuseppe
Chiovenda, cujas reflexões impactaram decisivamente o direito processual brasileiro.

Os resultados porventura limitados desse movimento em termos de justiça


substancial e redução das desigualdades sociais não podem ser imputados às fontes
teóricas, mas talvez à maneira como as lemos e as implementamos. As “ondas
renovatórias” de Cappelletti e Garth (1978), como explicado no capítulo anterior,
parecem ter sido utilizadas mais como um receituário dogmático do que como uma
perspicaz explicação teórica, o que de fato eram. As premissas que lhe davam base não
receberam repercussão e deixamos de acompanhar a sequência do debate a respeito.
Como o capítulo anterior deixou evidente, a discussão sobre o acesso à justiça compõe
uma ampla linha teórica, que começa antes e prossegue depois do Projeto Florença. O
debate processual brasileiro sobre o “acesso à justiça” raramente incorporou outras vozes
além de Cappelletti e Garth e pouco expandiu a análise para além das chamadas “três
ondas renovatórias”, sintetizadas no relatório geral que abre o primeiro dos seus quatro
volumes110. De algum modo isso se refletiu na efetividade do instrumental processual
então instituído e, hoje, nas opções disponíveis para lidar com o problema, ainda presente.

109
Eliane Junqueira (1996) explica como a ideia de pluralismo jurídico, em vez do estado de bem-estar
social, e os trabalhos de Boaventura de Souza Santos compuseram a matriz para as pesquisas sobre o acesso
à justiça e, com isso, a própria consolidação da sociologia jurídica no Brasil.
110
Exceção merecedora de nota é o estudo de Pinheiro Carneiro (1999) sobre o tema. Eliane Junqueira, em
1996, reconstruiu, de modo bastante esclarecedor, a trajetória do tema na sociologia do direito sem se
limitar a Cappelletti e Garth. Mais recentemente, o trabalho de Dierle Nunes e Ludmila Teixeira (2013).
Na literatura jurídico-processual, são inúmeros os trabalhos a respeito, alguns deles mencionados durante
o texto.

95
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Somado a isso – este é o meu segundo argumento -, a nossa compreensão do que


seja “acesso à justiça”, porque limitada e superficial, tornou-se frágil e, em trinta anos,
sucumbiu quase imperceptivelmente a um significado que, na verdade, é o seu oposto.
Na década de 1990, o debate sobre a reforma do sistema de justiça e da legislação
processual incorporou um discurso que desviou as ideias que motivaram a tese de
Cappelletti e Garth (1978 e 1988). E, atualmente, o termo “acesso à justiça” é invocado
para justificar reformas baseadas em premissas tão variadas quanto são os tipos de
propostas feitas para estancar a “crise da Justiça brasileira”.

Exemplos de usos variados do termo “acesso à justiça” nas políticas públicas e


na produção teórica nacional ajudam a entender o modo profuso como adotamos esse
ferramental analítico. A seguir, veremos dois desses exemplos: a produção legislativa
processual inspirada no “acesso à justiça” e um panorama das abordagens teóricas da
produção jurídica (particularmente, a processual) e sociológica111.

1.1. As “três ondas” no Brasil – da ideia às leis

As propostas de Cappelletti e Garth (1978) tornaram-se receita típica de políticas


judiciárias em países periféricos, particularmente no Brasil112. Recentemente, Bryant
Garth (2016) comentou que “[s]eu trabalho de quarenta anos atrás com Mauro Cappelletti
em Acesso à Justiça parece muito mais vivo aqui no Brasil do que nos Estados Unidos”.
Para ilustrar, ele arrematou: “a cada semana, a tradução para o português do relatório
geral do Projeto Florença, de Gracie Northfleet, é citada em pelo menos alguns artigos ou
livros novos no Brasil” 113. A extraordinária e longeva repercussão daquele trabalho no

111
Por um encadeamento cronológico, os subitens deste capítulo invertem a ordem dos três elementos
representativos do nosso quadro de justiça: primeiramente a lei; em seguida, as teorias; e, novamente, as
leis mais recentes.
112
Para uma síntese de como o acesso à justiça influenciou a legislação de países de common law, civil law
e o Brasil, particularmente, inclusive com comentários sobre outros estudos do Projeto Florença além do
relatório geral traduzido e publicado Brasil, v. Pinheiro Carneiro (2003). Fernando Fontainha, em trabalho
de início de carreira, sob orientação de Leonardo Grecco (2002), analisou as contribuições de Cappelletti e
Garth a partir da situação da justiça no Brasil. Alexandre Veronese (2007) explica como o conceito e as
práticas nele baseadas foram apropriadas pelas instituições do sistema oficial de justiça. Mais recentemente,
Aluisio Mendes e Larissa Pochman da Silva (2015) oferecem uma leitura atualizada do trabalho de
Cappelletti e Garth.
113
Tradução livre. No original, “my work on Access to Justice with Mauro Cappelletti forty years ago seems
much more alive here in Brazil than in the United States” e ““every week the Gracie Northfleet translation
into Portuguese of the General Report of the Florence Access-to-Justice Project is cited at least a couple
of times in a new Brazilian article or book.” Garth (2016, p. 12-23).

96
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Brasil pode sugerir algo sobre o modo como nossa produção jurídica e nossas políticas
judiciárias compreenderam e trabalharam a ideia de “acesso à justiça”.

O relatório geral do “Projeto Florença” foi traduzido e publicado em 1988 pela


editora Sérgio Fabris, a partir de tradução da então professora e procuradora do Ministério
Público Federal, Ellen Gracie Northfleet. Desde então, o termo “acesso à justiça” ocupa
o imaginário e a retórica jurídica de políticas públicas e reformas legislativas, ilustra
petições e decisões judiciais e ocupa agendas de pesquisa em direito, ciências políticas e
sociais. As “três ondas” de promoção do acesso tornaram-se referência obrigatória e, até
hoje, as experiências narradas no Projeto são apresentadas em tom de novidade para
sugerir novos desenhos para o sistema de justiça114.

A lista dos instrumentos processuais e judiciários inspirados nas “três ondas” do


acesso à justiça é ampla e variada. Difícil identifica-los senão exemplificativamente. No
impulso da “primeira onda”, a garantia assistência judicial gratuita, prevista desde a
Constituição de 1934 e regulada em 1950, foi substancialmente reforçada pela
Constituição de 1988, em seu artigo 5o, inc. LXXIV. Na mesma linha, as Defensorias
Públicas foram instituídas com o fim explícito de promover assistência jurídica aos
“necessitados”. O Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública
estruturam a tutela coletiva – característica da “segunda onda”. Os juizados especiais, as
reformas legislativas da década de 1990 e a conciliação e mediação judiciais
correspondem à sua “terceira onda”. Há ainda outros tantos instrumentos jurídicos
normatizados sob a justificativa das “ondas” de Cappelletti e Garth (1988).

114
A mais recente parece ser a ideia de um ombudsman para a resolução interna de disputas no âmbito dos
grandes litigantes. A Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM) promoveu em 2014 uma
palestra do Professor de direito privado alemão Klaus Hopt sobre o sistema de ombudsman da associação
de bancos alemães, instituída em 1992 e que recebeu, em todo o período, 70 mil requerimentos, dos quais
4.141 foram admitidos e, desses, 50% foram considerados favoráveis aos clientes, 32,3% aos bancos e em
16,35% houve acordos. A admissão dos requerimentos feitos pelos clientes depende de prévia avaliação do
próprio setor bancário e o pronunciamento do ombudsman é vinculante aos bancos se a questão é de até
cinco mil euros. Até recentemente, os ombudsmen do sistema bancário alemão eram nomeados
exclusivamente pelos próprios bancos. Cf. http://www.enfam.jus.br/2014/02/ministros-stj-prestigiam-
conferencia-de-professor-alemao-sobre-ombudsman-de-bancos-privados/, acessada em outubro de 2017.
A ideia parece ter convencido os ministros do Superior Tribunal de Justiça presentes à apresentação. Em
janeiro de 2017, por ocasião do relançamento da Estratégia Nacional de Não Judicialização (ENAJUD),
um programa de não judicialização desenvolvido no âmbito do Ministério da Justiça, o Ministro João
Noronha destacou, entre os instrumentos extrajudiciais de solução de disputas, o ombudsman. <
http://www.justica.gov.br/noticias/lancamento-da-estrategia-de-nao-judicializacao-de-conflitos-reune-
setores-publico-e-privado>, acesso em novembro de 2017.

97
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Antes mesmo do Projeto Florença, ideias correspondentes ao que Cappelletti e


Garth (1988) chamaram de “acesso à justiça” já eram conhecidas do sistema jurídico
brasileiro, sob outros nomes. Pinheiro Carneiro (2003) rastreia a presença dessas ideias
na legislação brasileira e identifica, no século XX, uma fase inicial de sedimentação por
meio das Constituições de 1934 e de 1946, que consagraram direito sociais, estabeleceram
um paradigma intervencionista que caracteriza o Estado de Bem-Estar Social e abriram
espaço para uma legislação que concretizava o acesso. A regulação das relações
trabalhistas na Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, e a Lei de Assistência
Judiciária de 1950 são exemplos deste período115.

Na década de 1960, enquanto os Estados desenvolvidos assistiam ao movimento


de expansão dos direitos civis que se consolidaria, na década seguinte, no discurso de
acesso à justiça, o Brasil estancava, com o regime ditatorial, o quadro normativo de que
dispunha desde a primeira metade do século XX, e retrocedia os avanços democráticos
então alcançados116. Isso explica a diferente aplicação que o acesso à justiça pode ter nos
países então chamados de “primeiro mundo” e nos países ainda em transição democrática,
como o Brasil e outros países latino-americanos: enquanto naqueles, o ideal serviu para a
tutela jurídica de minorias, nesses foi preciso para oferecer direitos básicos a uma maioria
então alijada de processos de participação pública (JUNQUEIRA, 1996).

Entre 1978 e 1990, um conjunto variado de normas foi incorporado ao


ordenamento na tentativa de recompor o modelo institucional democrático que se perdeu
com a ditadura. Aspectos do acesso à justiça pode ser identificado em muitas dessas leis.
A Emenda Constitucional n. 11/1978 (que revogou os atos institucionais de exceção), a
Lei de Anistia (n. 6883/79), o movimento “Diretas Já” e a Assembleia Constituinte

115
Segundo ele sintetiza, “a noção de acesso à justiça como atividade caritativa, como favor prestado aos
mais pobres única e exclusivamente no campo da litigância, do processo, e em especial na área penal, foi a
tônica dominante durante grande parte do século atual, que, nos países em desenvolvimento como o Brasil,
retrata o ideário do Estado Liberal (a igualdade meramente formal), tendo praticamente como ressalva única
de monta a criação da justiça do trabalho” (PINHEIRO CARNEIRO, 2003, p. 37). Vale registrar, a esse
respeito, a ponderação de Eliane Junqueira (1996, p. 390) de que o acesso à justiça no Brasil não focava no
atendimento dos direitos decorrentes do Estado de bem-estar social, mas de direitos sociais básicos ainda
não assegurados, como saúde e moradia. Diferentemente de Pinheiro Carneiro, que sugere tendências
similares na década de 1930, essa autora localiza o movimento propriamente chamado de acesso à justiça
a partir da década de 1970, identificando que, nesta época, moradia e saúde não eram, como ainda não são,
uma realidade para setores expressivos da população brasileira.
116
Na avaliação de Pinheiro Carneiro, “as normas da Carta de 1946 e todo o seu sistema de divisão de
poderes foram profundamente afetados por força de atos institucionais que se sucederam a partir de 9 de
abril de 1964, com o estabelecimento da ditadura militar no Brasil, que perdurou por vinte anos, com novos
retrocessos”. (PINHEIRO CARNEIRO, 2003, p. 39).

98
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

culminaram em um novo texto constitucional repleto de ideias que se pode identificar


como ligadas ao “acesso à justiça”.

No nível infraconstitucional, uma sequência de leis mudou a cara do sistema


processual e de justiça brasileiros, em diferentes áreas. Em 1984, a experiência gaúcha de
órgãos e procedimentos simplificados para litígios considerados “menores” é
generalizada a todo o país (Lei 7.244/85); em 1985, a legislação cria uma ação judicial
específica para a defesa de bens coletivos (Lei da Ação Civil Pública, Lei 7.347/85); em
1989, a lei confere proteção jurídica especial para portadores de deficiência (Lei
7.853/89) e um primeiro instrumento para defesa do que depois foi chamado de
“interesses individuais homogêneos” (Lei 7.913/89). Em 1990, duas leis sistematizam
direitos e instrumentos especiais para balancear relações consideradas assimétricas: as
de consumo (CDC, Lei 8.078/90) e as envolvendo crianças e adolescentes (ECA, Lei
8.069/90). Em 1994, é instituído um novo modelo executivo de decisões judiciais,
baseado em mecanismos de coerção e procedimento diferenciado (nova redação do artigo
461 do CPC). Em 1995, uma nova lei para os juizados de pequenas causas (JECs, Lei
9.099/95) e no ano seguinte, a arbitragem privada é consagrada com eficácia executiva
equivalente à da jurisdição (LA, Lei 9.307/95).

Alguns aspectos da retomada do acesso à justiça no sistema jurídico brasileiro


após o regime ditatorial merecem nota. A primeira é a natureza institucional das
propostas, fundadas na nossa tradicional crença no aperfeiçoamento técnico processual
para a reforma do sistema de justiça. Pinheiro Carneiro (2003, pp. 41-43) destaca o estado
de atraso sociojurídico do direito processual da época, justificativa para que as políticas
de acesso à justiça nele se concentrassem. Nas suas palavras, aquele direito processual
era “individualista”, “tecnicista”, “elitizado” e “conservador”. Individualista porque
pautado por uma ideia de igualdade formal, “sem qualquer compromisso maior com o
efetivo acesso das camadas mais pobres e das coletividades”. Tecnicista porque “sem
maior preocupação com as finalidades sociais e políticas (...) para realizar justiça”.
Elitizado “porque caro, distante, misterioso e desconhecido, verdadeira arena na qual os
mais ricos, preparados e com melhores advogados obtêm os resultados mais positivos”.
Conservador porque “afastado das ruas, da sociedade, (...) utilizado com enfoque

99
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

117
conceitual técnico-científico, estagnado no tempo” . Nem mesmo o “notável avanço
científico e apuro técnico do Código de Processo Civil de 1973”, segundo ele, teria sido
suficiente para reduzir as apontadas deficiências do nosso sistema de justiça. Ainda que
o tecnicismo seja considerado uma deficiência da legislação, o aperfeiçoamento técnico
processual tem sido o caminho inarredável para o acesso à justiça.118

A segunda e talvez mais relevante nota sobre nosso caminho rumo ao acesso à
justiça é a profusão de diferentes, não raro opostos, vetores valorativos ou
principiológicos na sequência de reformas. Algumas leis buscaram ampliar a cobertura
jurídica sobre interesses ou pessoas, enquanto outas tentaram simplificar procedimentos
e racionalizar os órgãos. Em princípio, não há qualquer incompatibilidade entre elas, mas,
com o tempo, a mesma lei que assegurava novos direitos e permitia a novos sujeitos os
reivindicarem à Justiça também lhes desviava a busca desses direitos para canais paralelos
e menos formais, nem sempre dotados do mesmo padrão de garantias processuais dos
métodos tradicionais – crítica que se fez à época aos juizados especiais e, mais
recentemente, à mediação judicial. A simplificação processual era justificativa suficiente
para essa opção legislativa e serviu como resposta implícita às críticas. Ampliar direitos
era um desejo tão legítimo quanto simplificar processos, embora na prática esta equação
nem sempre fosse compatível e, por isso, nem sempre resultasse nos níveis esperados de
efetividade.

A oposição de valores da legislação inicial em acesso à justiça também se nota


pela convivência anômala entre a ampliação dos poderes do juiz no processo, quase uma
constante nas reformas processuais das últimas décadas, e a delegação de poder
jurisdicional para organismos e entes privados – como decorre da arbitragem e dos
métodos alternativos de resolução de conflitos em geral. Ainda que seja possível
argumentar retoricamente pela compatibilização entre essas tendências, elas caminham
em sentidos opostos. Em última análise, torna-se difícil de se sustentar uma tal profusão

117
Curioso notar que a correspondência com as conclusões de Carlin, Howard e Messinger (1966) e Marc
Galanter (1974) feitas no âmbito da literatura sociojurídica norte-americana décadas antes. A ligação entre
elas e o diagnóstico de mazelas da nossa teoria processual feito por Pinheiro Carneiro (2003) parece ser
mesmo, pela análise das suas referências bibliográficas, a obra de Cappelletti e Garth (1978 e 1988).
118
Apoiando-se em Barbosa Moreira, esse autor realça a convivência possível entre a busca da efetividade
e a apuração da boa técnica: “quando porventura nos pareça que a solução técnica de um problema elimina
ou reduz a efetividade dos processos, desconfiemos, primeiramente, de nós mesmos”, escreveu Barbosa
Moreira, anotado por Pinheiro Carneiro (2003, p. 43).

100
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de valores potencialmente conflituantes: mais direitos vs. menos formas; mais litígios vs.
menor capacidade estrutural judiciária; mais poderes do juiz vs. maior delegação de
jurisdição119.

Na década de 1990, os valores que guiaram as reformas legislativas já eram


diferentes dos daquelas do final de 1970 e de 1980. A premissa de que a simplificação
procedimental é um caminho para o acesso à justiça - uma leitura aliás superficial da
terceira “onda” de Cappelletti e Garth (1988) – somou-se ao clamor geral para o combate
ao que foi chamado de “morosidade da Justiça” e, já naquela década, todas as atenções e
vozes estavam concentradas na “celeridade” dos processos. O caminho escolhido, mais
uma vez, foi a das reformas processuais e o incremento dos poderes do juiz. A
generalização de uma tutela antecipada, pelo artigo 273 do CPC de 1973, redigido pela
Lei 8.952/94, é o melhor exemplo, mas longe de ser o único. Do ponto de vista do que
hoje se considera o grande problema da Justiça brasileira - o volume de processos - , fica
fácil perceber o caráter paliativo daquela novidade: antecipava-se efeitos da tutela
principal, mas o processo ainda não estava resolvido, e precisava prosseguir até uma
solução definitiva – ainda que, do ponto de vista prático, as partes já não demonstravam
tanto interesse no processo quanto tinham na concessão ou não da tutela antecipatória120.

Resulta desse quadro que, por um lado, a mobilização pelo combate à


morosidade da Justiça por meio da simplificação processual continuou na década de 1990,
com ainda mais intensidade, e adentrou os anos 2000. Não raro, se fez acompanhar por
redução de garantias processuais das partes. Por outro lado, as novas ferramentas
processuais não aliviaram a sensação de demora e ainda trouxeram uma outra angústia,

119
A questão da relação entre mais ou menos formalidades nos procedimentos judiciais e a maior ou menor
participação das pessoas nos processos é uma das mais delicadas questões para o desenho de políticas
judiciárias. Na perspectiva de Cappelletti e Garth, menos formalidades é um caminho para o acesso à
justiça. Mas isso nem sempre é verdadeiro, sobretudo nos casos em que a disputa envolve partes em situação
de assimetria e a forma pode servir para equaliza-las de algum modo, protegendo a parte em situação
vulnerável. Por outro lado, as formalidades processuais privilegiam o acesso daqueles atores com
conhecimento técnico mais apurado. Os dados sobre os juizados especiais cíveis e federais, apresentados
no final deste capítulo, servirão para ilustrar um pouco mais essa complexa discussão. Para um aprofundado
debate sobre as vantagens e principalmente as desvantagens do informalismo na resolução de disputas, ver
a clássica coletânea organizada em dois volumes por Richard Abel, “The Politics of Informal Justice”,
Nova Iorque, Academic Press, 1981 (ABEL, 1981a) .
120
Instituída, como se dizia, como forma de inverter o ônus do tempo do processo em favor da parte que
aparentava ter razão, o mecanismo passou a ser utilizado com tal frequência que a litigância judicial se
resumia quase que exclusivamente a uma disputa por decisões liminares e efeitos suspensivos de agravos
de instrumento – o que produziu efeitos contrários inclusive do ponto de vista da celeridade, dado o aumento
exponencial do volume de recursos desse tipo nos tribunais.

101
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

bastante sentida pouco tempo depois: o acúmulo de processos nas varas e tribunais. A
essa altura, porém, as ideias originais sobre o acesso à justiça já não teriam o mesmo
espaço nos debates legislativos. Quando muito, o termo serviria como recurso teórico de
novas propostas, já bastante esvaziado do seu sentido original.

1.2. Produção teórica em acesso à justiça - da ideia às doutrinas

A produção teórica nacional que adota o termo “acesso à justiça” começa no


final da década de 1970 com o próprio desenvolvimento da sociologia do direito no Brasil
e ganha espaço na teoria processual. Em ambas áreas, os trabalhos adotam uma
perspectiva institucional, preocupada com o aperfeiçoamento dos órgãos e procedimentos
formais de resolução de disputas, o que pode ter relação com as limitadas opções hoje
disponíveis para regular a litigiosidade de massa. Ainda assim, há diferenças entre as
abordagens. Na sociologia jurídica, os estudos sobre acesso à justiça parecem valorizar
aspectos substanciais do conceito, como os problemas da desigualdade e da cidadania121.
No direito, predominam temas técnico-processuais e uma abordagem de caráter
dogmático.

O tema do acesso à justiça aparece no bojo do processo de abertura política


movido pela necessidade de incrementar o exercício democrático de participação social
(JUNQUEIRA, 1996). Sobre a premissa do pluralismo jurídico122, estudos descrevem
ordens jurídicas informais e tentam explicar como os movimentos sociais coletivos, então

121
A recuperação do papel da cidadania no acesso à justiça é objeto do trabalho de Marjorie Corrêa Marona,
tese de doutoramento apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais sob orientação do professor
Leonardo Avritzer. Além de devolver ao conceito o componente emancipatório politico, o trabalho expõe
as limitações da concepção jurídico formal liberal e invoca o elemento da localização espacial como
componente do acesso à justiça – por meio do uso da técnica das cartografias. Cf. MARONA, M. C. (2013)
Acesso à qual justiça: a construção da cidadania para além da concepção liberal. Tese de Doutoramento,
Universidade Federal de Minas Gerais (orientação Leonardo Avritzer).
122
Segundo define Sally Marry, pluralismo é “uma situação em que dois ou mais sistemas jurídicos
coexistem no mesmo campo social.” (no original, a situation in which two or more legal systems coexist in
the same social field; p. 870). O pluralismo jurídico é um conceito desenvolvido a partir da constatação
empírica de que, paralelamente aos sistemas jurídicos oficiais, a sociedade, nos seus mais ou menos amplos
campos, cria e estabelece autonomamente regras de convivência. O dado curioso nas pesquisas é que, não
raro, essas regras se sobrepõem às oficiais. Nos EUA, o clássico estudo de S. Macaulay sobre os contratos
informais da cadeia do setor automobilístico evidenciou que, para eles, o direito, inclusive os contratos
formais, eram um instrumento regulatório distante e não utilizado, ao passo que as negociações informais,
inclusive comprometimentos verbais e simbólicos, detinham muito mais eficácia regulatória
(MACAULAY, 1963). No Brasil, os estudos de Boaventura de Souza Santos sobre o “direito” aplicado nas
comunidades de favelas no Rio de Janeiro também se situa na linha do pluralismo jurídico (SANTOS,
1977).

102
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

renascentes, lidavam com um Judiciário estruturado para processar direitos individuais


(JUNQUEIRA, 1996, p. 391)123. As conclusões levantadas ajudam a compor um
repertório de reformas institucionais para o Poder Judiciário voltadas à ampliação do
acesso à justiça, listadas no item anterior124.

No direito, a produção teórica parece acompanhar as reformas legislativas e


concentram-se nos períodos antecedente e sequente à Assembleia Nacional Constituinte.
Uma busca simples em bases de periódicos científicos125 indica que os primeiros
trabalhos com “acesso à justiça” no título datam de 1985 e a sua quantidade cresce até
2003, com quedas pontuais em 1997, 1998 e 2002. Um pico registrado entre 1994 e 1995
parece atrelado às reformas processuais da época - sobretudo a Lei 8.952/1994, que
instituiu a tutela antecipada, audiência de conciliação e a tutela específica das obrigações
de fazer e não fazer (respectivamente, artigos 273, 331 e 461 do antigo CPC). Um outro
pico registrado em 2013 e 2014 pode estar relacionado aos debates sobre o projeto do
novo CPC. A tabela abaixo ilustra a sequencia histórica.126

123
Exemplificativamente, os estudos de casos em invasões urbanas no Rio de Janeiro (SANTOS, 1977) e
Recife (FALCÃO, 1984). Mais referências em Junqueira, 1996.
124
Vale menção o argumento de Nunes e Teixeira (2013, p. 48) de que, em verdade, “muitas dessas
“novidades, aliás, já povoavam nosso universo jurídico bem antes que uma palavra sobre o acesso fosse
pronunciada em solo brasileiro.” Ideias representadas por expressões como “interesse público” e
“finalidade social da lei” já compunham o discurso jurídico desde a década de 1930, de modo que o papel
intervencionista e socialmente comprometido da jurisdição, presentes no ideário de acesso à justiça, já eram
conhecidas.
125
A base de dados de periódicos Iusdata, organizada pela Faculdade de Direito da USP, indica um total
de 257 ocorrências de artigos cujos títulos contem o termo “acesso à justiça”. Este número cresce
consideravelmente, para 696 ocorrências, se considerado o termo como “assunto” dos artigos.
126
Evidente que um outro determinante fator afeta esta análise: o próprio aumento na produção de artigos
jurídicos no período. A análise que se faz desses dados, portanto, serve a uma visão geral e aproximada da
importância do tema na produção jurídica nacional, mas não deve ser tomado como medição precisa, o que
não é objeto deste estudo.

103
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 5: Quantia de artigos jurídicos com “acesso à justiça” no título, no


Iusdata/FDUSPO, entre 1985 e 2015

Q u a n t i a d e a r t i g o s j u r í d i c o s c o m " a c e s s o à j u s t i ç a "
n o t í t u l o , n o I U S D A T A / F D U S P , e n t r e 1 9 8 5 e 2 0 1 5

20

15

10

0
1 9 8 51 9 8 71 9 8 91 9 9 11 9 9 31 9 9 51 9 9 71 9 9 92 0 0 12 0 0 32 0 0 52 0 0 72 0 0 92 0 1 12 0 1 32 0 1 5

Fonte: elaboração própria com dados do Iusdata/FDUSP

O direito processual ocupa papel de destaque na produção jurídica em acesso à


justiça. Embora variem os assuntos dos artigos, predominam temas de natureza
processual: “direito processual”; “garantias processuais”; “tutelas de urgência”;
“morosidade”; “processos específicos”; e, mais recentemente, “informatização/processo
eletrônico”. Entre os menos representados, está o da “litigiosidade repetitiva”. Também
têm presença destacável os temas da “justiça do trabalho”, “interesses coletivos” e
“cidadania”. Logo em seguida, “Defensoria Pública”, “juizados especiais”, “conciliação”
e uma categoria genérica aqui chamada de “partes vulneráveis” - que concentra casos de
discriminação por deficiência, classe, gênero e raça, e cuja representatividade cresce se
considerados os artigos sobre “igualdade e inclusão”. O tema dos “métodos alternativos
de resolução de conflitos” destaca-se quando somado com “MASC” e “arbitragem” e
artigos sobre “conciliação”. A figura abaixo ilustra a sequencia de subtemas mais
frequentes nos artigos jurídicos do período.

104
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 6: Subtemas abordados nos artigos jurídicos com título “acesso à


justiça”, publicados entre 1985 e 2015, na base Iusdata/FDUSP

acesso à justiça
direito processual
justiça do trabalho
interesses coletivos
cidadania
partes vulneráveis
juizados especiais
Defensoria Pública
conciliação
informatização/proc. eletrônico
direitos humanos
custas judiciais
tutelas de urgência
garantias processuais
assistência judiciária
morosidade processual
meio ambiente
MASCs
juízes e tribunais
direito penal
consumidores
advocacia pública
processo e ideologia
processo de execução
principios constitucionais
Ministério Público
ensino e pesquisa
efetividade do processo
arbitragem
jurísprudência
igualdade e inclusão
direitos fundamentais
América Latina
urbanismo
reforma do Judiciário
processo do trabalho
poder público
Poder Judiciário
democracia
terceiro setor
segurança pública
processo administrativo
litigiosidade repetitiva
justiça eleitoral
ética
direito previdenciário
direito constitucional
direito concorrencial
cooper. internacional
controle de constitucionalidade

0 5 10 15 20 25 30
Fonte: elaboração própria com dados do Iusdata/FDUSP

Nas ciências sociais em geral, a variação temática também existe, mas é menor127
e apresenta diferenças importantes: são mais frequentes os temas ligados a aspectos

127
A busca, nesse caso, foi realizada na base de dados do sistema integrado de bibliotecas de toda a
Universidade de São Paulo (Sibi/USP) e apontou a quantia de 256 trabalhos (artigos e outros materiais)

105
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

substanciais do acesso à justiça, como “assistência judiciária”, “cidadania, “direitos


humanos”, “Poder Judiciário” e “direitos fundamentais” - os três primeiros, vale
registrar, apresentavam baixa frequência nos artigos jurídicos. Curiosamente, os temas
“desigualdades sociais” e “interesses coletivos” são menos representados na base geral.
A figura abaixo detalha os subtemas dos trabalhos sobre acesso à justiça nas ciências
sociais.

Figura 7: Subtemas abordados nos artigos com título “acesso à justiça”,


publicados entre 1985 e 2015, na base integrada Sibi/USP

acesso à justiça
justiça
assistência judiciária
direito processual civil
cidadania
direitos humanos
direito
Poder Judiciário
direito constituicional
direitos fundamentais
efetividade
arbitragem
administração da Justiça
solução de conflitos
sistema judiciário
Ministério Público
direitos e garantias individuais
acesso aos tribunais
psicologia social
psicologia forense
interesse coletivo
Interdisciplinaridade
desigualdades sociais
bioética
serviços farmacêuticos

0 20 40 60 80 100
Fonte: elaboração própria com dados do Sibi/USP

Mais do que uma simples diferença entre áreas do conhecimento e seus


respectivos institutos, a variação temática dos artigos com “acesso à justiça” em seus
títulos sugere haver uma compreensão distinta sobre o significado do conceito: à literatura

com o tema “acesso à justiça” nos seus títulos. Excluídas as ocorrências disponíveis nas bibliotecas das
faculdades de direito (objeto do gráfico anterior), a quantidade total cai para 186 trabalhos. As bases são
diferentes e organizadas de modos diferentes, o que explica por que, no caso, a base do sistema integrado
de bibliotecas, que contempla a base da faculdade de direito, apresenta menos ocorrências (256) do que as
da base da própria faculdade de direito (257). Além da importância que ganhou o tema no Brasil, esse dado
confirma que a discussão está longe de ser exclusivamente jurídica – como, aliás, sugeriram as referências
usadas por Cappelletti e Garth (v. cap. 1).

106
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

dogmática jurídica, é uma questão meramente processual; à literatura sociojurídica, está


entre o direito e a cidadania.

A despeito das diferenças, ambas as áreas parecem priorizar uma perspectiva


institucional de trato do acesso à justiça. Nos da sociologia jurídica, inclusive, observa-
se uma leve mudança de enfoque em tal direção. Os estudos iniciais, sobre casos de
invasões urbanas em grandes centros (SANTOS, 1977; FALCÃO, 1984) descreviam um
fenômeno de mobilização coletiva por necessidades sociais básicas, como moradia e
saúde. Como denomina Eliane Junqueira (1996), tratava-se de uma perspectiva de
“acesso coletivo à justiça”, com trabalhos que indagavam como populações excluídas da
tutela jurídica estatal resolvem a carência por direitos sociais básicos128. Ainda não se
tratava, com explica essa autora, de construir procedimentos simplificados e alternativas
para “uma explosão de direitos” – tendência verificada posteriormente em trabalhos
jurídicos –, mas de analisar como os movimentos sociais então renascentes lidavam com
um Judiciário estruturado para tutelar direitos individuais (1996, p. 391). Já na década de
1980, os estudos sobre invasões urbanas abrem espaço para estudos sobre práticas
“judiciais” da política (vg., OLIVEIRA, 1985), juizados informais de conciliação
(SANTOS, 1989), serviços jurídicos dos sindicatos e associações profissionais
(CAMPILONGO, 1991). O olhar migra do “direito no asfalto” para o direito no sistema
de justiça e o acesso à justiça não é mais visto como uma reivindicação coletiva, mas um
exercício individual de direitos, como sintetiza Junqueira (idem).

As políticas nascidas dessa vertente de estudos incorporaram a mesma natureza


institucional. Ao analisarem o funcionamento de canais não judiciais de resolução de
disputas – alguns estatais, como os órgãos administrativos e as delegacias de polícia,
outros sociais, como as organizações civis e comunitárias – aqueles estudos ajudaram a
compor um conjunto de recomendações para o aperfeiçoamento do Judiciário. Na época,
a meta era aprimorá-lo para que recebesse uma parcela maior da população do que a que
então o procurava. Segundo dados do IBGE/PNAD da época (1988), a população não
procurava o Judiciário com frequência, o que se imputava à falta de capacidade para
mobilizar direitos ou por mera opção de não o utilizar (JUNQUEIRA, 1996). Pouco

128
Enquanto em outros sistemas jurídicos, o acesso à justiça nasce impulsionado pela efetivação dos direitos
sociais - típica do Estado de bem-estar social, como explicam Cappelletti e Garth (1988) -, no Brasil a
motivação seria a proteção a direitos sociais básicos, como moradia e saúde (JUNQUEIRA, 1996).

107
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

tempo depois, reformas legislativas criaram estruturas judiciárias menos formais e mais
abertas a demanda desses estratos sociais, cujo exemplo mais significativo são os juizados
informais de conciliação (JICs, anos 1980), expandidos para os juizados de pequenas
causas (1984) e, então, convertidos nos juizados especiais cíveis e criminais (Lei
9.099/95), que alteraram o perfil da litigância judicial no país (v. item 3.3, infra).

A produção teórica nacional em “acesso à justiça”, por essa breve análise,


adotara uma perspectiva institucional e instrumental de análise do problema, em
contraposição a debates que se exploravam questões substanciais envolvendo os direitos
em litígio e as partes envolvidas129. Concentrou-se na estruturação de formas processuais
e no aprimoramento dos órgãos de Justiça130. Isso aconteceu com mais ênfase na produção
jurídica, mas também é um traço das demais ciências sociais envolvidas com o tema.

1.3. O “acesso à justiça” na legislação recente – da idéia a uma “outra


ideia” e uma nova lei

A diversidade temática que cabe sob o conceito de acesso à justiça é ampla o


suficiente para permitir o distanciamento das ideias originais a ponto de, inclusive, uma
contraposição a elas. Este parece o caso das reformas legislativas realizadas a partir da
década de 1990 no Brasil. As políticas judiciárias baseadas em reformas da legislação

129
Merece atenção a relação que Nunes e Teixeira (2013, p. 52) fazem entre a vertente intervencionista e
de comprometimento social identificada no ideário de acesso à justiça e a corrente metodológica
instrumentalista formada na teoria processual, segundo os autores, “marco predileto dos estudos que
envolvem o acesso à justiça no Brasil”. Há premissas comuns em ambas linhas teóricas, como o papel mais
ativo do juiz e o escopo socio-político-jurídico da jurisdição. A preocupação exclusiva com “celeridade”,
“efetividade” e desformalização”, que os autores imputam ao instrumentalismo, não parece descrever a
totalidade da corrente e também não compõe a linha teórica do acesso à justiça, como mostrará a segunda
parte deste capítulo. A perspectiva instrumentalista chama a atenção para a importância do processo se
preocupar com a o direito material e, assim, com algo mais próximo de justiça substancial do que as formas
jurídicas. E acesso à justiça nasceu de uma preocupação com a desigualdade social projetada sobre a Justiça.
É possível, eis meu argumento neste capítulo, que o modo como ambas suas premissas foram assimiladas
no discurso e políticas judiciárias privilegiou seu caráter institucional, o que explicaria a preocupação quase
exclusiva com o funcionamento do sistema de justiça.
130
Nunes e Teixeira (2013, p. 52) transcrevem esclarecedor argumento de Calmon de Passos a este respeito:
“A pergunta que cumpria fosse feita – quais as causas reais da crise do Judiciário – jamais foi formulada.
Apenas se indagava - o que fazer para nos libertarmos da pletora de feitos e de recursos que nos sufoca?”
Sua crítica é dirigida à instrumentalidade do processo, o que não é objeto de discussão neste estudo. Mas a
sua perspicaz ponderação vale muito a atenção.

108
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

processual, iniciadas em 1980, prosseguiram nas décadas seguintes131 e culminaram, já


nos 2010, nos debate em torno de um novo código, que acabou aprovado em 2015. É
possível que, como resultado desse processo, o novo CPC tenha construído um conteúdo
de “acesso à justiça” consideravelmente distinto das ideias originais.

O novo CPC (Lei 13.105/2015), junto com a Lei de Mediação (LM, Lei
13.140/2015), podem ter conferido nova feição à litigância judicial no Brasil. Eles
representam a mais recente etapa de um trajeto de quatro décadas de tentativas de
aprimorar a atividade jurisdicional e equacionar o acesso à justiça no país132. E talvez seja
uma das mais significativas. Embora a maior parte do Código e a sua estrutura geral não
tenham sofrido alterações substanciais (ALVES DA SILVA, 2015), é inegável que suas
novidades determinarão como será, a partir de agora, a resolução formal de conflitos
cíveis no país. Resta saber sobre as suas implicações para a realização do acesso à justiça,
uma pergunta um tanto atropelada nos debates legislativos que antecederam as mudanças.

Do ponto de vista formal, o termo “acesso à justiça” não é recorrente nas


justificativas do novo Código, nem nos debates doutrinários a respeito. Pelo contrário. A
menção ao termo não existe no seu texto e é rara na Exposição de Motivos133. Nas
audiências públicas que rodaram o país para receber comentários sobre versões prévias
do texto, há uma ou outra menção ao termo, geralmente para fazer comparação com
outros princípios processuais aos quais se reivindicava espaço. Por exemplo, o ato da
presidência do Senado Federal que instituiu a comissão de juristas incumbida de elaborar
o texto do anteprojeto, assinado por José Sarney, faz menção ao termo “acesso à justiça”
para destacar a paridade com o princípio da razoável duração do processo:

Considerando que tanto o acesso à justiça quanto a razoável duração do


processo adquiriram novo verniz ao serem alçados à condição de garantias
fundamentais previstas constitucionalmente,(...). (Ato do Presidente do

131
Na década de 2000 é a vez da reforma dos procedimentos executivos, pelas Leis 11.232/05 e 11.382/06,
que consagraram o modelo executivo inaugurado em 1994 (direto e integrado de medidas de coerção) ao
estenderem-no aos ritos da execução por quantia. V. Alves da Silva (2006).
132
É certo que a Lei de Mediação é uma manifestação evidente da “segunda onda” de acesso à justiça e
integra o mesmo movimento recente de reforma da Justiça brasileira, o que justificaria que este capítulo se
dedicasse a analisa-la. Opto, contudo, por não a analisar neste item. Os artigos do CPC que admitem e
estimulam a resolução consensual de conflitos são suficientes, aqui, para apresentar a tendência de
resolução consensual. O capítulo 3 apresentará alguns aspectos da Lei de Mediação.
133
No texto do CPC, contam-se 6 (seis) ocorrências, indiretas, ao termo “acesso à justiça”, sendo que apenas
1 (uma) no texto da Exposição de Motivos, 1 (uma) nos Considerando do Ato que institui a Comissão, 1
(uma) no curriculum de um dos membros da Comissão que elaborou o Anteprojeto e 3 (três) como menções
por oradores que participaram das audiências publicas.

109
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Senado que institui a Comissão de Juristas, 2009, transcrito na Exposição de


Motivos do NCPC, p. 285, grifos nossos)

A locução comparativa utilizada deixa claro o recado: neste Código, o acesso à


justiça não será orientação axiológica hegemônica e deve compor com as demais
garantias fundamentais do processo, sobretudo o princípio da razoável duração,
incorporado por meio de emenda constitucional em 2005. Em paridade, ambos hão de
pautar o novo Código e, assim, o funcionamento geral do sistema processual e de justiça.

Segundo a nova lei, os problemas que afetam a distribuição de justiça no Brasil


correspondem àqueles que inspiraram a tese de acesso à justiça de Cappelletti e Garth na
década de 1970: a demora, o custo e a complexidade dos processos judiciais. A Exposição
de Motivos do Código faz uma menção ao termo “acesso à Justiça”134 em uma de suas
notas de rodapé. Ao estilo daqueles autores e de Boaventura (SANTOS, 1989), o texto
lista o que se entendia por obstáculos ao acesso: “a duração do processo, seu alto custo e
a excessiva formalidade”135. Aqui a mensagem também parece evidente: no caso
brasileiro, a ideia de acesso à justiça há de ser medida a partir dos elementos tempo, custo
e simplicidade formal. A justiça advirá de processos menos custosos, menos formais e
mais rápidos.

A identificação desses elementos como aqueles que comporiam a ideia


“contemporânea” de acesso à justiça é fruto de uma concepção eficientista que passou a
ocupar o conceito. O problema dos obstáculos à efetivação da tutela jurídica, que
caracterizava a premissa original, foi substituído pelo da “explosão da litigiosidade”136, a
demandar uma total reorganização dos métodos de trabalho dos tribunais. A reforma
gerencial chega ao Judiciário (NUNES e TEIXEIRA, 2013) e o exercício jurisdicional é
premido pela racionalidade gerencial (ALVES DA SILVA, 2010). Como sintetizam

134
Seguindo orientação da literatura especializada, como já explicado previamente neste trabalho, uso
“justiça”, em minúsculo, para designar o valor, o bem, o ideal de justiça. E “Justiça”, em maiúsculo, para
designar o Poder Judiciário ou, mais genericamente, o sistema organizado de justiça.
135
“Trata-se, portanto, de mais um passo decisivo para afastar os obstáculos para o acesso à Justiça, a que
comumente se alude, isto é, a duração do processo, seu alto custo e a excessiva formalidade.” Exposição
de Motivos do NCPC, pagina 14, nota de rodapé n. 8.
136
O argumento da “explosão de litigiosidade” como fator impeditivo da universalização do acesso à justiça
é antigo. O discurso de Warren Burger (1982) na década de 1980 já o anunciava para justificar o
“retrenchment” frente à era dos direitos civis que marcou o período anterior. Não faltam estudos
evidenciando a fragilidade do argumento (v.g., GALANTER, 1983; SARAT, 1984; GALANTER, 1986);
outros mais recentes situam-no historicamente em um movimento mais amplo de mudanças no perfil e
atuação do Estado e funcionamento das organizações (MATTEI, 2007; MORRIL, 2017).

110
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Nunes e Teixeira (2013, p. 128), com apoio de Mattei (2007), “dos escombros de uma
responsabilidade estatal abandonada, a temática [do acesso à justiça] ressurge sob a
insígna da “crise da eficiência”.

O Anteprojeto do novo CPC inclui menção expressa às “necessidades sociais”


que condicionariam os escopos de justiça do processo judicial e, subentende-se, de todo
o Código. Diferentemente, porém, do que Cappelletti e Garth (1988) sugeriram como
“necessidades sociais”, sintetizadas pelas ideias de igualdade e efetividade da justiça, as
do novo código têm caráter meramente formal. Segundo o texto da Exposição, “[o] novo
Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais célere, mais justo,
porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo.” (g.n.) “Processo
justo”, explicam as digressões usadas na Exposição, seria aquele resultante da
observância das garantias constitucionais do processo, em síntese da cláusula do devido
processo legal137. E “necessidades sociais” são definidas como aquelas em função das
regras de direito material, não somente das de direito processual138. A justiça civil,
portanto, é que resulta de processos justos, que seriam justos porque observam as
garantias constitucionais e porque atendem às “necessidades sociais” – que, por sua vez,
seriam aquelas refletidas nas regras de direito material. A explicação parece instrumental
e autorreferenciada. E o é. “Necessidades sociais” e “justiça” são definidos em função do
conteúdo da norma material, não de algum valor substancial de justiça, como a igualdade.

Os debates parlamentares e doutrinários que acompanharam a aprovação da lei


especificaram outras justificativas que nortearam o legislador. Algumas delas
contrapõem-se, em certa medida, aos sentidos outrora conferidos para o conceito de
acesso à justiça. Diferentemente do que se ouvia nas décadas anteriores, por exemplo, a
tônica predominante nessas falas não parece ser a de ampliar o serviço de Justiça a
conflitos e partes por ela não atendidos, mas a de conformar este atendimento às

137
Em clara referência à obra Instituições de direito processual civil de Dinamarco (2009).
138
A Exposição faz referência a Dinamarco e Barbosa Moreira: “Atentando para a advertência, acertada,
de que não o processo, além de produzir um resultado justo, precisa ser justo em si mesmo, e portanto, na
sua realização, devem ser observados aqueles standards previstos na Constituição Federal, que constituem
desdobramento da garantia do due process of law (DINAMARCO, 2009)”, nota de rodapé n. 6 da
Exposição de Motivos do Código. “Lembrando, com BARBOSA MOREIRA (2001), que “não se promove
uma sociedade mais justa, ao menos primariamente, por obra do aparelho judicial. É todo o edifício, desde
as fundações, que para tanto precisa ser revisto e reformado. Pelo prisma jurídico, a tarefa básica inscreve-
se no plano do direito material” (Por um processo socialmente efetivo, p. 181)”, nota de rodapé n. 7 da
Exposição de Motivos.

111
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

capacidades estruturais do sistema139. A justificativa da “redução do volume de


processos nos tribunais”, por exemplo, ocupa um lugar no discurso legitimador da
reforma processual que, há algumas décadas, era ocupado pelas chamadas para “redução
da litigiosidade contida” e dos “conflitos não jurisdicionalizados”.

A mudança da referência valorativa do legislador processual parece legítima. A


redução do volume de processos nos tribunais, assim como a observância da lei e das
garantias processuais constitucionais, pode ser uma exigência inescapável, sem a qual o
sistema travaria e sequer seria possível considerar a ideia de “acesso à justiça”140. Sem
prejuízo, a efetividade e a eficácia da nova legislação dependem de se ter claro se o
sentido de “acesso à justiça” que adota é ou não diferente daquele original, que norteou
as mudanças legislativas anteriores. Disso depende a sua aplicação e os seus resultados.

Nesse sentido, o conteúdo interno do novo CPC revela indicativos de um


reposicionamento das metas de reforma do sistema, com reflexos sobre o sentido de
acesso à justiça do código141. Seu texto é extenso e variado, mas não é preciso um exame
pormenorizado para que suas características e diferenças em relação às leis anteriores
fiquem claras. Algumas de suas regras, sobretudo aquelas dispostas como suas “normas
fundamentais”, traduzem o espírito e o corpo de princípios que o dirigem e serão
suficientes para encontrar o seu sentido de acesso à justiça.

Em linhas gerais, quatro aspectos parecem caracterizar este Código, e, com isso,
contribuir com o tipo de acesso à justiça que ele privilegia: a redistribuição de tarefas
entre juiz e partes; a diversificação da tutela entre decisões e acordos; a ênfase na
instrumentalidade das formas; e o papel atribuído à jurisprudência. Respectivamente, o
código horizontaliza a relação juiz-partes, consagra a tutela jurisdicional prestada por
meio de acordos, reduz consideravelmente o papel das formas e expande drasticamente o
efeito vinculante de decisões de tribunais.142 Explico-os a seguir.

139
Fernando Cais (2016) identifica o dilema como o “paradoxo do acesso à justiça”.
140
Os dados sobre volume de processos nos tribunais, que analisaremos mais adiante, reforçam este
argumento.
141
Se isso é verdade, recai sobre a ciência jurídica a incumbência de tentar entender as nuances e
implicações desta mudança de rumos. E, particularmente, ao direito processual perguntar-se se, afinal, a
nova legislação mantém, amplia ou restringe o acesso à justiça no país e o que isso implica em médio e
longo prazo para o perfil da jurisdição e do processo no país.
142
A Exposição de Motivos do Código apresenta-o por meio de outros objetivos da Comissão que elaborou
o primeiro texto: “1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição

112
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Se, como diz Barbosa Moreira (1989), o direito processual regula a “divisão de
trabalho entre as partes e o juiz”, parece-me relevante que o código tenha redimensionado
a relação entre eles, reposicionando seus poderes, deveres, ônus e faculdades processuais.
Geometricamente, uma figura triangular é usada para representar a relação jurídica
processual desde que identificada na origem da ciência processual alemã (BULLOW,
1868). Durante o século XX, o polo que ocupa o vértice do triângulo processual ganhou
proeminência por meio de leis que valorizaram a atuação e os poderes do juiz –
compondo, então, um triângulo do tipo isósceles. No novo CPC, a figura que representa
a relação processual seria a de um triângulo quase equilátero, em que o protagonismo
processual é compartilhado entre juiz e partes.

Diversos dispositivos do Código sugerem um novo jogo entre poder estatal e


liberdade das partes no processo civil. A norma fundamental da cooperação processual
(art. 6º), as exigências para a motivação suficiente das decisões judiciais (arts. 9o a 11), a
possibilidade da flexibilização do procedimento e das partes celebrarem negócio jurídico
processual (art. 190 e 191), entre outros. Em lugar da doutrina da ampliação dos “poderes
do juiz” que vigorava desde a primeira metade do século XX, passa a viger uma
orientação de cooperação dele com as partes, e delas entre si; em vez de ônus e faculdades
das partes, poderes e “liberdades” para a definição do procedimento cabível ao seu caso;
em vez de uma decisão imposta pelo juiz, a possibilidade de uma decisão acordada pelas
partes.

O novo Código, articulado com a Lei de Mediação, diversificaram o conteúdo e


as formas da tutela jurisdicional ao instituírem um “sistema multiportas” de solução de
conflitos, em que o acordo obtido por meio de mediação judicial é um resultado tão
possível e desejado quanto a atuação da lei pelas decisões judiciais. A declaração oficial
de direitos pelo Estado-juiz, nas suas diferentes cargas de eficácia (predominantemente
declaratória, constitutiva, condenatória e, inclusive mandamental e executiva), deixa de

Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática
subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas,
como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo
considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização
daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais
coesão”. Esses objetivos também servem para caracterizar o novo Código. Opto, contudo pelos elementos
apresentados no texto porque entendo que representam melhor o resultado final do texto, enquanto esses
representam os objetivos quando da elaboração do texto. De todo modo, como se verá, há boa dose de
correspondência entre as duas listas.

113
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

ser o padrão exclusivo de provimento jurisdicional e passa a dividir esse papel, ao menos
na lei, com as declarações privadas de direitos e obrigações derivadas de acordos de
vontade. E essa solução consensual, que comumente é responsabilidade das partes e seus
advogados, passa a ser incumbência também do Estado, do juiz e de todos atores do
sistema, a quem cabe promovê-la e estimulá-la (arts. 2o e 3o do NCPC).

Nesse modelo, o acesso à justiça não é apenas um resultado que nasce da


atividade promovida pelo juiz no processo, mas pela concorrência das atividades
desempenhadas por todas as partes. Acesso à justiça também não seria aquele que resulta
da imposição de uma decisão estatal que atua a vontade concreta da lei, mas da autonomia
de vontade das partes.

Nesse sentido, a importância da “forma” no exercício da jurisdição e na


regularidade do processo foi relativizada com mais intensidade, na linha do que já vinha
acontecendo sob a tendência metodológica instrumentalista. Sob a justificativa de
conferir praticidade e privilegiar a função elementar do sistema de “resolver problemas
concretos”, a lei processual abriu mão da rigidez e da indisponibilidade do procedimento
legal e abriu a possibilidade de as partes flexibilizarem-no para que atenda às
circunstancias do caso (art. 190). A flexibilização do procedimento, pelos mecanismos
do negócio jurídico processual (art. 190) e calendário processual, avança dois níveis em
relação ao o regime anterior, em que ao legislador competia exclusivamente o desenho
dos procedimentos. Pelo novo Código, as partes, em acordo, e o juiz, em cooperação com
elas, podem redefini-lo. Já quanto ao regime de nulidades processuais, a lei insiste na
realização efetiva do princípio da instrumentalidade das formas, adicionando ao critério
da finalidade do ato (art. 277) o do prejuízo para a parte como condição da sua anulação
(art. 282). Segundo a Exposição de Motivos, vige a intenção de “dar todo o rendimento
possível a cada processo em si mesmo considerado” (BRASIL, ano, p).

Por outro lado, o código valoriza a segurança jurídica, recomenda à jurisdição


que funcione organicamente e que a jurisprudência seja estável tanto quanto possível.
Para que isso aconteça, a lei subtrai do juiz parte da sua liberdade de convencimento e
julgamento dos casos concretos, condicionando-a ao entendimento jurisprudencial
dominante, alçada à categoria de fonte formal do direito. Os mecanismos que fazem a
vinculação de decisões judiciais aos entendimentos dos tribunais regionais e superiores
generalizam-se para além de hipóteses já existentes, inauguradas nas reformas da década

114
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de 2000 com as súmulas vinculantes e impeditivas de recursos, mas que eram até então
excepcionais (entre todos, arts. 926 e 927).

Entre essas quatro características do novo CPC, duas não são exatamente
estranhas à visão de acesso à justiça proposta por Cappelletti e Garth (1988). O sistema
multiportas de resolução de conflitos e a desformalização dos procedimentos compunham
o repertório de experiências narradas no Projeto Florença e integravam respectivamente
a segunda e terceira ‘ondas’. Produzir justiça por meio de acordos e flexibilização das
formas já eram recomendações da época para promover o acesso à justiça. Por outro lado,
a primeira e última tendências acima destacadas – redistribuição da condução do processo
do juiz às partes e padronização dos julgamentos – parecem divergir do que aqueles
autores entendiam como acesso à justiça. Como discutido no capítulo anterior, o
incremento dos poderes do juiz no processo, bem diferentes no modelo de civil law e no
de common law, e o ativismo judicial eram o principal caminho para promoção do acesso
à justiça em Cappelletti e Garth (cf. cap. 1). Quanto à segurança jurídica e valorização da
jurisprudência, embora se possa argumentar que estivem presentes em Cappelletti e
Garth, não desfrutavam do protagonismo que lhes foi conferido pela legislação processual
atual.

A principal diferença, porém, entre a ideia de “justiça” do novo código e a de


acesso à justiça de Cappelletti e Garth está nos elementos ausentes, não naqueles
presentes. A premissa e o escopo da tese de Cappelletti e Garth era o controle dos efeitos
da desigualdade social sobre a efetividade do sistema jurídico (cf. cap. 1). Nessa linha, a
primeira “onda” renovatória do acesso à justiça era a promoção da assistência jurídica aos
necessitados (“legal aid for the poor”) e a segunda onda era a expansão da cobertura
jurídica a interesses não suficientemente protegidos, especialmente aqueles de pertinência
coletiva. Nenhum desses elementos parece presente na legislação processual recente, em
seus debates preparatórios ou em seu próprio texto. Aparentemente, a legislação adota
elementos que apontam no sentido oposto.

O novo Código aproxima-se dos modelos de justiça e processo chamados de


adversariais, em que as partes assumem responsabilidade pela atividade desenvolvida no
processo (v. capítulo 3, infra). Trata-se de um modelo mais participativo, com uma
tonalidade “liberal”, em oposição ao modelo inquisitorial, em que o juiz exerce esse
protagonismo. A justificativa dos modelos inquisitoriais é a esperança de que o controle

115
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

judicial proporcione níveis mais desejados de verdade real e de contraditório substancial


– balanceando, se preciso, eventual deficiência postulatória de uma das partes.
Contrariamente, legislações que se aproximam de modelos adversariais, como o NCPC,
pressupõem um menor risco de que a assimetria entre os litigantes comprometa os
resultados de justiça material do processo. Em outras palavras, modelos adversariais não
dão igual relevância ao risco de que os fatores desigualdade e assimetria entre as partes
comprometam os resultados de justiça do caso, o que era justamente a premissa fundante
e escopo último do acesso à justiça de Cappelletti e Garth (cf. cap. 1). Não parece que o
NCPC tenha ignorado por completo essa recomendação. Mas o fato de instituir um
modelo mais próximo dos adversariais potencializa o risco de que desigualdades
materiais interfiram na efetividade da tutela jurisdicional.

Sobre a assistência judiciária gratuita, derivação da primeira onda de acesso à


justiça de Cappelletti e Garth e contemplada no Brasil desde a década de 1950, suas regras
foram disciplinadas com maior rigor no novo Código, sob o argumento de se evitar
situações de abuso que são relatadas casuisticamente. O Código oferece, por exemplo,
uma lista específica de despesas cobertas, impõe condições e ressalvas para a concessão
e o exercício, prevê a cobertura parcial, a substituição da assistência pelo parcelamento
das despesas processuais e a revogação do benefício (arts. 98 e 100). Já a tutela dos
interesses coletivos, expoente da segunda onda de Cappelletti e Garth, também não
recebeu do código um grande incentivo institucional. O artigo 333 do projeto, que previa
a conversão de ações individuais em coletiva, foi vetado. Esse mecanismo visava o
controle do que a teoria chamou de “demandas pseudo-individuais” - pedidos que,
embora formulados e processados individualmente, pudessem, e talvez devessem, ser
processados coletivamente por compartilharem uma mesma origem comum143. Ao
permitir a conversão pelo juiz de demandas individuais em coletivas, a regra vetada
funcionaria justamente como controle do fenômeno chamado de “litigiosidade
repetitiva”144. Em seu lugar e com a mesma finalidade, o legislador investiu em um

143
Um dos mais ilustrativos exemplos são as dezenas de milhares de ações propostas, nos anos 2000, para
impedir a cobrança de tarifa básica de assinatura de telefonia fixa. Naquela ocasião, o STJ chegou a discutir
a possibilidade de suspensão das ações individuais para processamento de uma única, ou algumas, ações
coletivas, o que se entendeu impossível por violar, em ultima análise, o princípio dispositivo e a inércia
jurisdicional. Houve muitos recursos nos tribunais sobre esses casos; indico, exemplificativamente, o RESP
n. 911.802/RS.
144
Objetivo, aliás, que é do processo coletivo em geral, direcionado ao tratamento “molecularizado” das
demandas, em lugar do tratamento “atomizado”.

116
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

arrojado sistema de “julgamentos por amostragem”, em que a decisão de questão jurídica


em um caso individual é estendida a outros casos que versem sobre a mesma matéria
(melhor exemplo, o incidente de resolução de demandas repetitivas, IRDR, art. 976).
Ambos, o processo coletivo e o IRDR, servem para regular um mesmo fenômeno
concreto, que é a profusão de demandas individuais similares, que poderiam ser tratadas
coletivamente. Diante das duas opções, o código optou por privilegiar a coletivização do
julgamento, pelo IRDR, em vez da coletivização do processamento, pelas ações coletivas
(COSTA, 2015). Por um lado, poupa o sistema judicial do trabalho de reunião e
processamento dessas ações. Por outro, subtrai o contraditório processual que seria
desempenhado em uma ação coletiva por um legitimado extraordinário com presunção
de adequada representatividade (art. 82, CDC). Do ponto de vista do acesso à justiça, a
opção do código parece ser a menos recomendável, inclusive do ponto de vista do que a
Exposição de Motivos entendeu como “processo justo”, aquele que observa as garantias
constitucionais do processo.

2. Retrato do acesso à justiça no Brasil – o potencial de litigiosidade

O maior desafio de qualquer novo marco normativo, quais sejam seus


referenciais teórico-ideológicos, é ser minimamente efetivo – vale dizer, alcançar, em
alguma medida, os resultados de regulação pretendidos. O Brasil parece depositar na
recente legislação processual civil a esperança de minimizar efeitos do que se considera
a “crise da justiça e do processo”. Sua exposição de motivos argumenta que ela geraria
um processo “mais justo, porque mais rente às necessidades sociais”145. Atender a essa
expectativa depende, antes de tudo, de conhecer um pouco mais sobre ambos, a combatida
“crise da justiça” e as tais “necessidades sociais”.

Um dos controles que se pode ter sobre o grau de efetividade alcançado por uma
alteração legislativa é feito no momento de sua concepção, a partir da qualidade técnica
da proposta e dos argumentos que justificam a inovação. Trata-se, neste caso, de um
controle abstrato, pelo cotejamento do perfil da inovação implantada aos objetivos que se
deseja alcançar. Não se sabe, ao certo, como funcionarão os novos mecanismos e nem se

145
Exposição de Motivos do Comissão do Anteprojeto de Lei, p. 3 (BRASIL, 2010).

117
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

conseguirão ser de fato internalizados nas práticas existentes. Algumas novas leis, não
raro, sequer se efetivam socialmente.

Um outro tipo de controle sobre efetividade legislativa pode ser exercido a partir
de algum contexto fático de que se dispõe naquele momento. Via de regra, este
cotejamento é feito a partir de experiências já construídas em outros sistemas jurídicos
que os tenham implantado anteriormente. Trata-se de uma análise de traço empírico, mas,
especificamente, com predominante viés histórico comparativo, que projeta os resultados
da inovação a partir de outros contextos temporais e espaciais. Nesses casos, segundo
recomendação doutrinária qualificada, há sempre o risco de “rejeição do transplante” pelo
novo organismo no qual a inovação é implantada (BARBOSA MOREIRA, 2004). Entre
a imprecisão das projeções hipotético-abstratas e o “risco de rejeição” das análises
histórico-comparativas, o cotejamento feito a partir das características do próprio sistema
em que a nova lei será implantada parece uma excelente opção. Há, ainda aqui, uma
projeção de cenário típica das análises abstratas, somada ao olhar empírico do exame
histórico-comparativo. Mas há também uma determinante diferença: o contexto fático
sobre o qual incide a análise abstrata é composto das características do próprio sistema
em que a inovação será implantada - um transplante interno, do próprio “organismo” que
receberá o transplante.

O exame de adequação às características dos sistemas de justiça e de processo


brasileiros parece-me, portanto, o melhor caminho para aferir o potencial das reformas
legislativas recentes. E, nessa seara, são dois os tipos de dados que servem para retratar a
Justiça no Brasil e orientar as políticas judiciárias e reformas legislativas: aqueles sobre
estrutura, gestão e funcionamento do próprio Judiciário e aqueles outros sobre o perfil
das disputas e dos litigantes que chegam a ele. O Brasil, felizmente, já dispõe de dados
do primeiro tipo, o que tem servido para subsidiar a criação de novas leis. Mas ainda é
pequena a atenção que recebem os dados do segundo tipo.

O quadro geral da Justiça brasileira é, em síntese, de muitos processos, poucos


juízes, muitos advogados, muitas faculdades de direito e uma máquina judiciária
burocratizada (BRASIL, 2007 e 2011). O Brasil processa anualmente cerca de 102
milhões de processos judiciais, 74 milhões dos quais em efetiva tramitação (BRASIL,
2016, p. 42). Em 2016, houve aumento de 5,6% de casos novos, com aumento também
de casos pendentes, agora em 79,7 milhões (BRASIL, 2017). Integramos um exército de

118
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

1 milhão de advogados e advogadas146, 450 mil servidores e servidoras judiciais e 17 mil


juízes e juízas (idem). Esse retrato é muito mais completo do que o de quinze anos atrás
e tem se mostrado eficaz no desenho de políticas de gestão judiciária, sobretudo aquelas
consistentes em programas cíclicos de metas de desempenho – as chamadas ‘metas
nacionais do Poder Judiciário ’, editadas pelo CNJ desde 2009147.

Ocorre que esses dados ainda não captam toda a complexidade que envolve o
problema da justiça no Brasil e as políticas neles baseadas, além de parciais, tem eficácia
limitada no tempo. Em geral, seus efeitos são de ordem quantitativa, com resultados
menores, senão opostos, do ponto de vista da qualidade das decisões; e se concentram nas
fases imediatamente seguintes à da implantação, com redução do seu potencial nos anos
seguintes (ALVES DA SILVA, 2014). Os programas de metas de desempenho, por
exemplo, surtiram o desejável aumento sequencial da produtividade dos magistrados
(CNJ, 2016), resultado estacionou em 2016 e não acompanhou o aumento da entrada de
processos (CNJ, 2017)148. Com isso, a previsão atual, a despeito dessas políticas, ainda é
de piora no quadro geral - estabilização da produtividade, aumento da demanda, leve
aumento do estoque e do congestionamento, manutenção da duração dos processos. Na
melhor hipótese, o quadro de “crise da justiça” permaneceria inabalado.

A alternativa seria pensar em reformas da Justiça com base em dados que


descrevem aspectos qualitativos das disputas e da justiça material que é (ou não)
produzida, em complemento à descrição de quantidades de processos e da estrutura
judiciária disponível149. Seguindo a recomendação teórica (cf. cap. 1), seria o caso de

146
Dados sobre quantidade de advogados do país conforme o Cadastro Nacional de Advogados da OAB,
segundo notícia divulgada no portal Consultor Jurídico, em 18 de novembro de 2016: “Total de advogados
no Brasil chega a 1 milhão, segundo a OAB”, <https://www.conjur.com.br/2016-nov-18/total-advogados-
brasil-chega-milhao-segundo-oab>, acesso em novembro de 2017. A quantia de 1.240 faculdades de direito
no país foi apresentada em 2010 pelo então Conselheiro do CNJ Jefferson Kravchychyn, segundo noticiado
no blog de notícias jurídicas “Leis e Negócios”, de Marina Diana
<http://leisenegocios.ig.com.br/index.php/2010/10/13/brasil-e-campeao-em-faculdades-de-direito/>,
acesso em Novembro de 2017. O portal do Guia do Estudante reproduz o número em 16/05/2017: “Brasil
tem mais cursos de Direito do que todos os outros países do mundo juntos”,
<https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/brasil-tem-mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-
outros-paises-do-mundo-juntos/>, acesso em novembro de 2017.
147
Informações em <"http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/sobre-as-metas">, acesso em
outubro de 2017.
148
Na edição de 2017 do Justiça em Números, a produtividade de juízes caiu levemente, mas a de servidores
aumentou. Também aumentou o volume de processos entrados (CNJ, 2017).
149
Infelizmente, esse não é o tipo de dado que se se tem priorizado produzir no Brasil. Os dados oficiais de
que dispomos atualmente, porque seguem padrões internacionais de organização de dados sobre tribunais,

119
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

saber mais sobre como disputas nascem na sociedade e desaguam na forma de processos
nos tribunais, sobre o perfil dos conflitos submetidos à apreciação judicial no Brasil e o
comportamento dos litigantes envolvidos e, mais amplamente, o que a população espera
e como ela vê o sistema de justiça no Brasil. As respostas, embora não sejam absolutas
nem uniformes, ajudariam a compor um quadro esclarecedor dos limites e do potencial
das políticas judiciárias, inclusive e especialmente da nova legislação processual em vigor
no Brasil150.

A percepção e o comportamento das pessoas em relação a seus direitos seriam


em maior medida determinantes do grau e tipo de litigiosidade judicial do que a legislação
processual ou as políticas de gestão judiciária conseguiriam controlar. E a qualidade da
justiça prestada por meio dos processos judiciais dependeria, em resumo, de se conhecer
o que acontece fora dos palácios da Justiça e além da dogmática processual151.

Este item visa apresentar um “mosaico” de dados da Justiça e do processo no


Brasil para tentar pensar em alternativas de regulação processual a partir do referencial
teórico sistematizado no primeiro capítulo. A ideia original de acesso à justiça, segundo
esclarecido, sustenta-se sobre a premissa de que a desigualdade social pode inviabilizar
as pretensões de justiça do sistema jurídico (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966;
GALANTER, 1974, CAPPELLETTI; GARTH, 1978). A partir disso, três foram os
caminhos explorados naquela literatura para a promoção do acesso à justiça: i) estruturar
direitos, métodos de resolução de disputas, instrumentos processuais eficazes e órgãos de
justiça eficiente; ii) capacitar a população para o conhecimento, o exercício e, quando
preciso, a reivindicação de seus direitos; e iii) identificar o senso coletivo de justiça nas
práticas diárias dos cidadãos e desenvolver a legalidade a partir dele. Essas três
dimensões, que identifico como “perspectiva institucional”, “perspectiva social” e
“perspectiva cultural”, podem ser ilustradas por meio de dados sobre a estrutura do

priorizam informações sobre insumos e produção, geralmente de natureza quantitativa, com pouco
detalhamento sobre a natureza das disputas em trâmite na Justiça brasileira, e menos ainda sobre as pessoas
que protagonizam esses processos.
150
Ainda que parcial, descontínuo ou eventualmente incoerente, essas respostas oferecem um quadro muito
mais rico, nítido e cientificamente confiável do que impressões gerais traçadas sem tanto critério a partir
de pontos de vistas singulares – o tal do “achismo” ou o “impressionismo”, como se costuma classifica-las.
Como sempre advertira Barbosa Moreira, “o impressionismo, que na arte frutos saborosíssimos, em direito
é uma das piores pragas que devemos temer” (2004, p. 12)
151
Uma perspectiva de análise situada, portanto, um ou dois passos mais ampla do que a que olha apenas
para processos judiciais. Cf. excelente discussão sobre métodos de medir o acesso à justiça no Brasil em
Oliveira e Cunha, 2016.

120
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

sistema de justiça brasileiro, a capacidade da sociedade em reivindicar direitos e o que a


teoria chamou de construção social da legalidade.

Neste estudo, a seleção dos dados e a estrutura da exposição são adaptados para
privilegiar o que Sandefur (2008) chamou de perspectiva bottom up (de baixo para cima)
de análise do acesso à justiça: ênfase em dados sobre disputas e litigantes, em detrimento
dos dados sobre estrutura e funcionamento do sistema (v. cap. 1). Serão privilegiados os
dados sobre a natureza das demandas judiciais, o perfil dos conflitos e dos litigantes, as
preferências dos atores do sistema quanto ao uso de diferentes instrumentos processuais
e a estrutura e movimentação judiciária.

A sequência da apresentação é montada de forma a acompanhar o percurso de


um conflito dentro de um “macrossistema de solução de disputas” - normalmente iniciado
na sociedade e que avança em direção às instituições oficiais de justiça (v. capítulo 1).
Assim, inicialmente exploro dados sobre a percepção de justiça da população, a sua
capacidade de reivindicar direitos e a propensão a judicializarem suas disputas; em
seguida, descrevo que tipos de disputas e de litigantes ocupam o Judiciário no Brasil e,
por fim, qual o comportamento processual que costumam adotar. Os dados utilizados
provêm de relatórios de pesquisas sobre o sistema de justiça brasileiro – algumas são
oficiais, outras fruto da produção de grupos de pesquisa; algumas de que participei como
pesquisador, outras como mero leitor interessado. O objetivo, enfim, é o de construir um
retrato da litigância judicial no Brasil a partir da perspectiva do jurisdicionado e, só então,
avaliar os instrumentais processuais adequados para o encaminhamento da litigiosidade
na nossa sociedade.

2.1. Potencial de litigiosidade e capacidade para o exercício de direitos

Uma explicação sobre a litigiosidade no Brasil que tem ganho crescente atenção
no debate teórico e que parece ter sido reconhecida pela nova legislação processual é a
de que a sociedade brasileira recorreria, além do que seria razoável, à intervenção judicial
para resolver suas disputas de interesses e direitos152, e que o sistema oficial de justiça
não teria capacidade de atender a essa demanda. O argumento parece plausível do ponto

152
Como tem sido bastante repetido recentemente, caracterizamo-nos no Brasil como uma cultura jurídica
de litigância, dependente da sentença judicial – a chamada “cultura da sentença”, como magistralmente
sintetizou Kazuo Watanabe (2005).

121
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de vista do volume e processos judiciais e do contingente de potenciais litigantes no


Brasil.

Neste momento, somos estimados em 207.753.975 brasileiros e brasileiras, com


aumento de uma unidade a cada vinte segundos (IBGE, 2017153). Empresas privadas,
públicas e do terceiro setor somavam, segundo o IBGE, a quantia de 5,1 milhões (IBGE,
2004) e, segundo um levantamento privado, a quantia de 16 milhões de empresas ativas
em 2016154. Esse contingente de pessoas físicas e jurídicas são sujeitos de direitos e
obrigações e rotineiramente protagonizam as mais profusas relações jurídicas. Conforme
tais relações se estremeçam e ensejem disputas de interesses, e conforme essas disputas
sejam ou não encaminhadas adiante, haverá um volume maior ou menor de processos
judiciais. Independente de chegarem realmente às portas da Justiça, essas disputas serão
encaminhadas a algum método de resolução ou amargarão a resiliência da vítima. Se uma
pequena parte do contingente das disputas de interesses havidas na sociedade brasileira
for encaminhada ao Judiciário, argumenta-se, o sistema oficial de justiça pode vir a
colapsar. As reformas legislativas da última década parecem apostar nesse argumento.

Por outro lado, haverá sempre o risco de que, se o nível de resiliência diante de
situações de conflito for muito grande, a própria sociedade pode vir a colapsar, diante de
um insuportável desarranjo de relações sociais e jurídicas materiais. Há menos dados
concretos para atestar a veracidade dessa tese, sobretudo quanto à Justiça brasileira, mas
também é muito difícil argumentar que ele seja improvável. As regras mais básicas de
convivência social se ancoram nessa premissa. E não é de outra fonte em que nasce e se
legitima a própria ideia de acesso à justiça. As políticas judiciárias das décadas de 1980
e 1990 reconheceram o risco do colapso de integração social, como denotam os discursos
que reivindicavam a “redução da litigiosidade contida” (WATANABE, 1985).

É difícil comparar a plausibilidade de cada um desses discursos, o do colapso do


Judiciário ou o do sistema social. Na verdade, ambos estão condicionados a variáveis
externas, sob as quais o sistema jurídico não tem o mesmo controle. Dentre elas, estaria
a natureza das disputas havidas na sociedade, os respectivos envolvidos, o tipo de
encaminhamento que lhes é comumente dado e o comportamento de litigância dos

153
Projeção dinâmica da população do Brasil e das unidades da Federação. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/, acesso em 19 de julho de 2017, 12:37hs.
154
Informações do site <empresometro.com.br> , acesso em agosto de 2017.

122
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

disputantes. A sociedade brasileira é mesmo muito litigante? Há realmente muitos litígios


judiciais considerando o total de disputas travadas na sociedade? Quem judicializa suas
disputas no Brasil? E como se comportam dentro do processo judicial? Como é o uso dos
instrumentos processuais? Os dados disponíveis a esse respeito ainda são escassos e,
porque raros, tornam-se especialmente úteis para o debate.

Na linha da identificação das disputas havidas na sociedade, uma iniciativa


marcante foi a inclusão, em 1988 e em 2009, de perguntas sobre vitimização e acesso à
justiça na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), organizada
periodicamente pelo IBGE. Em 1988, houve um primeiro levantamento desse tipo. Em
2009, a experiência se repetiu por meio de um convênio do IBGE com o CNJ155. Seus
resultados, de representatividade nacional, são reveladores.

Contrariamente ao discurso comum, a litigiosidade no Brasil é, segundo o


IBGE/PNAD (2010), bem menor do que se anuncia. E está concentrada em estratos
específicos da população. Entre 2004 e 2009, período de referência da pesquisa, menos
de 10% da população brasileira relatou ter se envolvido em conflito de interesses ou
direitos, dos quais uma pequena parte chegou ao Judiciário. Mais precisamente, o
percentual de 9,4% das pessoas acima de 18 anos envolvera-se em alguma situação de
conflito – o que equivale a 12,6 milhões de pessoas, dos quais 51% eram homens e 49%
mulheres. Há considerável variação regional. A região Sul apresentou os maiores
percentuais (11,4%) e a região Norte, os menores (6,5%). Em todas, o percentual de
homens é maior que o de mulheres – no total, 10,1% e 8,7%, respectivamente (IBGE,
2010).

Na análise dos dados, três fatores foram identificados como determinantes do


envolvimento em situações de conflito: a idade; a escolaridade; e a renda. O perfil com
maior frequência foi o de homens acima de 40 anos, com ensino superior completo e
renda acima de 5 salários mínimos. Detalhadamente, pessoas entre 40 a 49 anos de idade

155
IBGE, “Justiça e vitimização”. In: PARTICIPAÇÃO político-social 1988: Brasil e grandes regiões, Rio
de Janeiro: IBGE, 1990, v.1. Pesquisa Suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio
de Janeiro: IBGE, 1990. v. 1. Pesquisa Suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. A
edição de 2009 pesquisou pouco menos de 400 mil pessoas em quase 154 mil domicílios e, como na edição
anterior, as perguntas específicas desse suplemento buscavam identificar se alguém daquele domicílio,
maior de 18 anos de idade, se envolvera em alguma situação de conflito nos cinco anos anteriores (de 2004
a 2009) e, se sim, que tipo de conflito e quais os encaminhamentos dados e soluções. De modo geral, trata-
se de levantamento de tipo similar àqueles elaborados na transição para a década de 1980 no âmbito do
Civil Litigation Research Project, cujos dados foram apresentados no capítulo 1.

123
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

são as que mais se envolvem em situações de conflito (11,3%), seguidos das de 35 a 39


anos (10,9%) – na soma, 22,2% entre pessoas de 35 a 50 anos. Aqueles com mais de 50
anos envolvem-se em disputas em proporção similar àqueles entre 25 e 34 anos - 9,7%
para cada estrato. Jovens, entre 18 e 24 anos, aparecem bem abaixo, com apenas 5% do
envolvimento em disputas. As regiões seguem, em geral, esse mesmo perfil nacional
(IBGE, 2010).

Dentre as variáveis apontadas, a escolaridade parece ser a que mais


uniformemente afeta a litigância. Em todas as regiões, pessoas com ensino superior
completo encabeçam a lista de envolvimento em situações de conflito (entre 11,1% no
Norte e 15,9 no Sul e Centro Oeste). Pessoas sem qualquer instrução tem as mais baixas
representações, entre 4,3% no Norte e 8,2% no Centro Oeste. A figura abaixo ilustra os
dados sobre escolaridade e envolvimento em situações de conflito em cada região do país
(IBGE, 2010). Percebe-se um certo padrão nos dados das regiões.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
_______________________________________ Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil 2009

Figura 8: Percentual de pessoas que tiveram situação de conflito, entre 2004


e 2009, na população de 18 anos ou mais de idade, por nível de instrução,
segundo
Gráficoas
25regiões do país
- Percentual - 2009que tiveram situação de conflito, no período de
de pessoas
referência de 5 anos, na população de 18 anos ou mais de idade,
por nível de instrução, segundo as Grandes Regiões - 2009
%

15,9
15,9
15,4
14,4

13,7

12,7
11,6

11,3
11,3

11,3
11,1

10,9
10,9
10,7

10,5
10,5

10,2
10,0
9,9
9,7

9,6

9,6

9,4

9,4
9,2
9,0

9,0
8,6

8,5
8,3

8,2

8,2
7,7

7,4

7,4
7,0

6,6
6,4
6,3

5,6
5,3
4,3

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Sem instrução Médio completo ou equivalente

Fundamental incompleto ou equivalente Superior incompleto ou equivalente

Fundamental completo ou equivalente Superior completo ou equivalente

Médio incompleto ou equivalente

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2010.
Ao analisar a existência de conflito segundo as faixas de rendimento mensal
domiciliar per capita, verificou-se que nas faixas mais altas estavam os maiores
percentuais de pessoas que tiveram situação de conflito no período. Entre aqueles
Interessante conclusão foi a de que políticas de incentivo ao acesso de grupos
com rendimento inferior a ¼ do salário mínimo, o percentual foi de 8,3%; na faixa
específicos
de 4 a àmenos
justiçadepodem alterar
5 salários esse quadro.
mínimos, foi de O efeito
14,1% da renda,
e acima de 5em geral similar
salários mínimos,ao oda
percentual atingiu 15,9%. Destaca-se, ainda, que os domicílios com rendimento acima
escolaridade, apresenta
de 5 salários mínimosvariações que sugerem
apresentaram a eficácia
os maiores de políticas
percentuais de acesso
de pessoas à justiça.
que tiveram
em situação de conflito em todas as regiões. Na Região Nordeste chegou a 18,4%.

Gráfico 26 - Percentual de pessoas que tiveram situação de conflito, no período 124


de referência de 5 anos, na população de 18 anos ou mais de idade,
por classes de rendimento mensal domiciliar per capita,
segundo as Grandes Regiões - 2009
%
,4
Gráfico 25 - Percentual de pessoas que tiveramALVES da SILVA,
situação Acessono
de conflito, à justiça,
período litigiosidade
de
e o modelo
referência de 5 anos, na população de 18 anos processual
ou mais civil brasileiro, 2018.
de idade,
por nível de instrução, segundo as Grandes Regiões - 2009
%
Pessoas com renda acima de 5 salários mínimos são as que mais litigam no Brasil,

15,9
15,9
15,4
14,4
respondendo por 15,9% dos conflitos (entre 12,3% no Norte a 18,4% no Nordeste) –

13,7

12,7
11,6

11,3
11,3

11,3
11,1

10,9
10,9
grupo que tradicionalmente coincide com os grupos de maior renda. Contrariamente,

10,7

10,5
10,5

10,2
10,0
9,9
9,7

9,6

9,6

9,4

9,4
9,2
9,0

9,0
8,6

8,5
8,3

8,2

8,2
pessoas com menor renda são as que menos litigam, mesmo descontadas as diferenças

7,7

7,4

7,4
7,0

6,6
6,4
6,3

5,6
5,3
regionais. No Norte e Nordeste, a menor representação é o grupo sem renda (até ¼ do
4,3
salário mínimo; 5,4%), ao passo que no Sudeste, no Sul e no Centro Oeste, a menor
representação
Brasil é de dois grupos,
Norte de renda entre 1 a 2Sudeste
Nordeste salários e de renda
Sul entre 2Centro-Oeste
a 3 salários.
Sem instrução Médio completo ou equivalente
Ocorre que, e eis a diferença de destaque, a posição
Fundamental incompleto ou equivalente
do grupo do extremo oposto,
Superior incompleto ou equivalente

o das pessoas sem renda, assume


Fundamental completo ouaequivalente
terceira posição em três completo
Superior das cinco regiões (Sudeste,
ou equivalente

Sul e Centro Oeste),


Médio logo depois
incompleto dos grupos líder, das pessoas com maior renda (acima
ou equivalente

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
de 4 ou acima de 5 salários mínimos). A explicação mais provável parece ligada ao efeito
Ao analisar a existência de conflito segundo as faixas de rendimento mensal
das políticas de incentivo ao acesso à justiça direcionadas a estratos sociais específicos,
domiciliar per capita, verificou-se que nas faixas mais altas estavam os maiores
como as de assistência
percentuais judiciária
de pessoas gratuita.situação
que tiveram A facilitação do acesso
de confl à justiça aEntre
ito no período. esse aqueles
estrato
com rendimento inferior a ¼ do salário mínimo, o percentual foi de 8,3%; na faixa
da população teria permitido a canalização de uma demanda anteriormente reprimida por
de 4 a menos de 5 salários mínimos, foi de 14,1% e acima de 5 salários mínimos, o
deficiente educação
percentual atingiue 15,9%.
baixa renda. A figura
Destaca-se, abaixo
ainda, quedetalha o envolvimento
os domicílios em conflitos
com rendimento acima
de 5 salários mínimos apresentaram os maiores percentuais de pessoas que tiveram
conforme a renda média dos respondentes.
em situação de conflito em todas as regiões. Na Região Nordeste chegou a 18,4%.

Figura 9: Percentual de pessoas que tiveram situação de conflito, entre 2004


Gráficona
e 2009, 26população
- Percentual de
de pessoas
18 anosque
ou tiveram
mais desituação
idade, de
porconflito,
classe no
deperíodo
rendimento
de referência de 5 anos, na população de 18 anos ou mais de idade,
mensal domiciliar per capita, segundo as regiões do país - 2009
por classes de rendimento mensal domiciliar per capita,
segundo as Grandes Regiões - 2009
%
18,4

16,8

16,6
15,9

15,5
15,1
15,2

15,0
14,1

14,0

14,0

13,1
13,0
12,9
12,7
12,7
12,5

12,3
11,9

11,8
11,7

11,4
11,2

11,0
10,8

10,5
10,2

10,2
10,1

9,7
9,4
9,5

9,1
9,0

8,9

8,7
8,7
8,6
8,3
8,0

8,0
7,3
7,1

6,8
6,5
5,8
5,5
5,4

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Sem rendimento a menos de 1/4 do De 1/4 a menos de 1/2 salário mínimo


salário mínimo (1)
De 1/2 a menos de 1 salário mínimo De 1 a menos de 2 salários mínimos

De 2 a menos de 3 salários mínimos De 3 a menos de 4 salários mínimos

De 4 a menos de 5 salários mínimos Com 5 salários mínimos ou mais

Fonte:
Fonte: IBGE, IBGE,
Diretoria PesquisaCoordenação
de Pesquisas, Nacional por Amostra
de Trabalho de Domicílio,
e Rendimento, 2010.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Nota: Exclusive as pessoas cuja condição na unidade domiciliar era pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado
doméstico.
(1) Inclusive as pessoas moradoras em unidades domiciliares cujos componentes recebiam somente em benefícios.

125
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Conjugados, esses dados renovam as hipóteses para explicação da litigiosidade


no Brasil. Em primeiro, o fenômeno pode não ser tão amplo e enraizado na cultura
brasileira como se tem afirmado, uma vez que a taxa de envolvimento em conflitos de
menos de 10% da população não pode ser considerada alta - sobretudo diante da
complexidade das sociedades contemporâneas somada, no nosso caso, ao alto grau de
desigualdade156. Em segundo, parece válida a relação entre litigiosidade formal,
conhecimento sobre direitos e exercício de atividade econômica, o que sugere que seu
aumento é uma consequência natural de estágios mais avançados de desenvolvimento157.
No Brasil, o envolvimento formal em conflitos é maior entre pessoas no ápice da
atividade econômica e com grau maior de escolaridade. Em terceiro e nada menos
importante, o acesso à justiça no Brasil reproduz a desigualdade que caracteriza a
sociedade brasileira. A litigiosidade cível parece relacionada à maior renda e escolaridade
e a criminal, à cor e menor renda158.

Os dados também confirmam, como foi dito, que políticas judiciárias podem
afetar a capacidade de as pessoas mobilizarem seus direitos e, portanto, o quadro geral de
litigiosidade. Políticas de assistência judiciária à população carente, por exemplo,
aparentemente promoveram algum equilíbrio ao desigual acesso à justiça que os dados
apontam existir. Contrariamente, eventuais políticas no sentido inverso, como a restrição
à assistência judiciária, poderiam neutralizar os ganhos obtidos.

A litigiosidade, como tem ficado claro, apresenta um componente social


integrado ao seu aspecto jurídico. A maior ou menor propensão de uma sociedade à
reivindicação de direitos resultará em maior ou menor litigiosidade. E se a preferência
das pessoas for pelo encaminhamento das suas disputas de interesses ao Judiciário, maior
será a litigância judicial. Por isso, a regulação da litigiosidade precisaria tomar em conta
as características e os graus de mobilização formal por direitos da sociedade.

156
Características que parecem diferenciar as capacidades das pessoas de diferentes estratos sociais
identificarem determinados fatos como violações de direitos, como sugerido pelos estudos sobre o “naming,
blaming and claiming”, de Felstiner, Abel e Sarat (1980), apresentado no item 3.2 do capítulo anterior.
157
Há diversos estudos sobre a questão. Destaco, mais recentemente, o “Litigation as a Measure of Well-
Being”, de T. Eisenberg, S. Kalantry e N. Robinson, com as referências nele incluídas (2013).
158
No âmbito criminal, os dados sobre vitimização e segurança confirmam haver uma relação entre
qualidade da parte e o tipo de disputa: roubos e furtos atingem mais pessoas mais jovens e com mais renda;
a agressão física vitimiza, em grau consideravelmente maior, jovens, negros e população sem rendimentos
(PNAD, 2009).

126
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

2.2. Percepção de justiça e comportamento de judicialiação

Percepção e comportamento são dimensões que não se confundem. Embora


possa haver alguma relação entre elas, isso nem sempre acontece. No caso da litigiosidade
no Brasil, a percepção das pessoas quanto à confiança na Justiça não parece determinar o
comportamento de procura pelo Judiciário, em geral ascendente.

A capacidade de mobilização formal por direitos está relacionada à percepção


das pessoas sobre as leis e a Justiça e o seu comportamento de demandar judicialmente.
A litigiosidade e, particularmente, a judicialização são, em tese, afetadas pelo grau de
confiança das pessoas na lei e na justiça na medida em que esses fatores influenciam o
cumprimento voluntário das leis, a mobilização por direitos e o tipo de encaminhamento
das disputas (CUNHA & OLIVEIRA, 2017). Se o acesso à justiça, como é hoje definido,
corresponde ao resultado das experiências pessoas com a justiça (SANDEFUR, 2009), a
confiança nas leis e no sistema de justiça matizam o seu retrato concreto em uma dada
sociedade. Similarmente, é presumível uma maior adesão social às regras jurídicas - vale
dizer, maior efetividade do ordenamento jurídico - quando as pessoas confiam na lei e na
justiça.

Os sensos de justiça e de legalidade podem se manifestar sob diferentes aspectos


em cada sociedade, sendo igualmente variados os dados capazes de representa-los. Na
literatura conhecida, estudos tentam descobrir, por exemplo, por que as pessoas cumprem
as leis, se confiam na lei e na Justiça, por que cooperam entre si, qual importância
conferem à justiça do processo frente à justiça da decisão, como elas regulam suas
atividades diárias, como se comportam diante da lei e diante de um conflito, entre tantos
outros (cf. primeiro capítulo).

No Brasil, temos alguns estudos a esse respeito. Recorro a três tipos: aqueles
sobre confiança na Justiça (FGV, 2016159 e IPEA, 2010 e 2011160); outros sobre respeito
à lei (FGV, 2015161); e os que apontam os motivos para a escolha do Judiciário

159
Índice de Percepção da Confiança na Justiça (ICJ), realizado periodicamente pela FGV. Os dados aqui
apresentados são do relatório do 1o semestre de 2016 (FGV, 2016) e, em alguns casos indicados no texto,
do relatório do 2o semestre de 2015 (FGV, 2015).
160
“Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) - Justiça”, publicado pelo IPEA em 2010 e 2011.
Os dados aqui apresentados são de ambos os relatórios, IPEA, 2010 e IPEA, 2011.
161
Relatório IPCL/FGV, 2015 - “Índice de Percepção e Confiança na Lei”. Os dados aqui utilizados são do
relatório do 1o semestre de 2015 (FGV, 2015)

127
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

(IBGE/PNAD 2010162). O conjunto desses dados sugere um argumento fundamental para


esse debate: no Brasil, o cumprimento das leis é baixo, como também é baixa a confiança
na Justiça, mas isso não quer dizer que os brasileiros não contem com o Judiciário para
resolver seus conflitos.

Em termos de confiança da população, o sistema oficial de justiça do Brasil não


conta com boa avaliação. Os estudos indicam uma nota geral baixa, de 4,55 em 10 (IPEA,
2010), e pouca credibilidade junto à população: nota de confiança em 4,9 em 10 e taxa
relativa de confiança de 29% (FGV 2016). O índice de 4,9/10 é puxado para baixo
principalmente por conta da opinião ruim que a população tem sobre como o Judiciário
presta seu serviço – atribuindo-lhe a nota 3,4/10, composta pelos fatores confiança,
rapidez, custos, acesso, independência, honestidade e capacidade para desempenhar sua
atividade (FGV, 2016, pp. 03 e 10). Já o percentual de confiança no órgão poder
Judiciário, em 29%, é apurado em relação à confiança depositada em outras instituições,
como as Forças Armadas (59%), a Igreja (58%), a imprensa (37%), as redes sociais
(23%), a Presidência da República (11%), o Congresso Nacional (10%) e os partidos
políticos (7%). Os dados são referentes a 2016 e costuma sofrer alterações pontuais a cada
ano. O gráfico abaixo destaca a posição subintermediária do Judiciário nesse ano, que em
geral é próxima da dos anos anteriores.

162
Suplemento “Vitimização e Acesso à justiça” na edição de 2010 da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio, PNAD, do IBGE. Dados desse relatório foram apresentados no item 2 deste mesmo capítulo.

128
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 10: Índices de confiança nas instituições, com destaque para o


Judiciário – 1o sem. 2016

Fonte: FGV, Relatório ICJBrasil, 1o sem 2016.

A baixa confiança da população brasileira na Justiça, contudo, não pode ser


interpretada no sentido de que as pessoas não procuram ou não dependam do Judiciário
quando precisam resolver uma disputa. E nem que aquelas pessoas que já utilizaram o
sistema arrependam-se ou tenham menos confiança do que aqueles que nunca o
utilizaram. Percepção e comportamento são medidas distintas, assim como confiança e
dependência em relação à instituição. Os dados sobre confiança no Judiciário expressam
a opinião da população sobre como entendem que é prestado o serviço de justiça pelo
Estado. É uma combinação entre o retrato idealizado de Justiça composto na percepção
das pessoas com o resultado de experiências concretas que elas eventualmente já tiveram.
Ambos, percepção e comportamento, competem para compor a nota de confiança (FGV,
2016, p. 3).

No caso brasileiro, a percepção de baixa confiança não resulta no


comportamento de menor busca do Judiciário para solução de conflitos. Quando esses
subíndices são muito distintos, isso pode significar que as pessoas, embora tenham uma
opinião ruim sobre a Justiça, busquem o sistema oficial para resolver seus conflitos. Esse
parece ser o caso do Brasil, segundo esses dados. No levantamento do índice de confiança
na Justiça medido pela FGV, o subíndice de comportamento - que mede a chance das

129
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

pessoas procurarem o Judiciário para resolver suas disputas – alcançou surpreendentes


8,6, ante os 3,4/10 do subíndice de confiança - que mede apenas a opinião a respeito
(FGV, 2016).

A experiência prévia com o Judiciário, por sua vez, parece sim afetar a percepção
e o comportamento das pessoas. Embora haja alguma divergência quanto a isso, os dados
atuais sugerem que as pessoas que já utilizaram o Judiciário têm mais confiança e
recorrem a ele mais facilmente do que os que nunca o utilizaram. Na edição de 2015 do
relatório (FGV, 2015), o índice de confiança é maior entre aqueles que já participaram de
processos judiciais (4,7 contra 4,1/10). E o comportamento consistente em recorrer ao
Judiciário para resolver os conflitos também é maior entre aqueles que já o utilizaram
previamente (8,5 contra 8,1). Inclusive a opinião da população sobre a Justiça também é
maior dentre aqueles que já o utilizaram (3,0 contra 2,4). No comparativo do gráfico
abaixo, os três índices são maiores entre os que já utilizaram o Poder Judiciário163.

Figura 11: Índices de Confiança na Justiça, com subíndices de percepção e


de comportamento, por entrevistados que já utilizaram e que não utilizaram
o Judiciário – 2o. semestre de 2015

Fonte: FGV, Relatório ICJBrasil, 2o. sem. 2015.

163
É certo que, por outro lado, o relatório “SIPS-Justiça” do IPEA (2010) aponta o oposto: a nota geral
dada à Justiça brasileira é maior entre aqueles que nunca a utilizaram (4,86) e, entre aqueles que já a
utilizaram, é maior entre os que figuraram como réus (4,43) do que entre os autores (3,79) dos processos.
Ainda assim, haveria uma diferença entre a opinião e o comportamento, que pode ser de buscar o Judiciário
ainda que não confie nele. Ademais, esses dados costumam sofrer alguma variação conforme o ano. O dado
registrado pelo IPEA é de 2010 e, inclusive, condizem com dados da FGV que, em 2012, apontavam um
cenário um tanto distinto – confiança e percepção menores entre aqueles que já utilizaram o Judiciário
(FGV, 2012).

130
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A variação entre grupos sociais também parece interferir na relação entre


percepção e comportamento de judicialização. De modo geral, a avaliação da Justiça é
baixa em diferentes setores da população (FGV, 2016; IPEA, 2011). Alguns dados
sugerem não haver grandes variações segundo idade, renda e escolaridade (FGV, 2016)
164
. Outros, porém, apontam alguma variação em termos de regiões, renda, escolaridade,
etnias e idades (IPEA, 2010 e 2011). De todo modo, a avaliação é negativa na
generalidade dos grupos (IPEA, 2011). Ainda assim, o comportamento consistente em
submeter disputas à Justiça é mais em alguns grupos do que em outros.

De modo geral, excepcionando-se a avaliação da população autodeclarada negra,


os grupos sociais considerados mais vulneráveis atribuíram as notas mais altas à Justiça.
Entrevistados das classes D e E deram notas mais altas e os da classe C, as mais baixas165.
Similarmente, analfabetos deram notas mais altas e pessoas com escolaridade média, as
notas mais baixas. Respondentes autodeclarados pardos e morenos atribuíram notas
maiores, seguidos de brancos, amarelos e, com notas mais baixas, autodeclarados negros
e de cor preta. Dentre as regiões, entrevistados do Centro-oeste, Norte e Nordeste deram
notas mais altas que os das regiões Sul e Sudeste. Finalmente, mulheres atribuíram notas
mais altas e pessoas mais jovens e pessoas mais velhas atribuíram notas maiores do que
pessoas entre 36 e 50 anos (IPEA, 2010).

Diversamente, o comportamento consistente em acionar o Judiciário parece


concentrado nos grupos sociais considerados os menos vulneráveis. O PNAD/IBGE de
2009 já havia revelado que idade, a escolaridade e a renda acompanham o mais frequente
envolvimento em disputas (v. item 2.1, supra). Em geral, pessoas entre 35 e 50 anos,
escolaridade alta e renda acima de 5 salários mínimos relataram mais envolvimento em
conflitos; e, contrariamente, jovens entre 18 e 24 anos, pessoas sem qualquer instrução e
com menor renda relataram menor envolvimento em conflitos (idem). A edição de 2016
do índice de confiança na Justiça da FGV também traz dados que diferenciam o uso do
Judiciário segundo grupos sociais, com destaque para o grau superior de escolaridade,
46% de respostas positivas (FGV, 2016). Completando o quadro, a avaliação da

164
Em um dos relatórios, registrou-se a atribuição de nota à Justiça brasileira levemente maior entre pretos
e pardos, mas o dado não se revelou estatisticamente significativo (IPEA, 2010, p. 10) – embora possa ser
indicador de outras hipóteses relacionadas à importância da autoridade judicial entre diferentes raças.
165
Naquele caso, a divisão entre as classes foi a seguinte: classe E, renda familiar mensal até 2 salários
mínimos; classe D, entre 2 e 5 salários mínimos; classe C, entre 5 e 10 salários mínimos; casses B, entre 10
e 20 salários, e A, renda familiar mensal acima de 20 salários mínimos.

131
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

percepção social de Justiça feita pelo IPEA apresenta dados correspondentes, mais
detalhados. Perguntados sobre quem procurariam primeiro para resolver um problema,
pessoas com renda mais alta e com maior idade (acima de 45 anos) apontaram a Justiça
estadual em primeiro lugar (IPEA, 2011).

Contraintuitivamente, o comportamento consistente em acionar a Justiça para


resolver disputas é maior entre os grupos com percepção de menos credibilidade e
desempenho. Grupos que conferiram notas baixas à Justiça - como as classes C, A e B e
pessoas entre 36 e 50 anos – são algumas das que mais frequentemente judicializam suas
disputas. As pessoas físicas que relataram mais envolvimento em disputas, segundo o
IBGE/PNAD, são homens, acima de 40 anos, com ensino superior completo e renda
acima de 5 salários mínimos (IBGE, 2009; cf. item 2.1, supra) – categorias que atribuíram
tanto notas intermediárias quanto baixas à Justiça segundo os dados do IPEA.
Escolaridade e renda também geraram uma relação invertida, embora de forma menos
saliente, entre boa avaliação e maior uso da Justiça.

A propensão à judicialização também varia, além do perfil das partes, conforme


a natureza das disputas. No relatório de percepção social do IPEA (2011), a judicialização
tende a ser maior para os casos envolvendo “crime e violência” e surpreendentemente
menor nos casos envolvendo “empresas com as quais fez negócio”, “cobrança de
impostos ou outros conflitos com o fisco”, “vizinhança”, “pessoas com as quais já fez
negócios”, ou “previdência, assistência social ou demandas por direitos sociais”. Já no
levantamento mais recente da FGV, excluídos os casos de direito penal, que não
compõem a pesquisa, os motivos que mais frequentemente levaram os entrevistados a
procurar o Judiciário foram direitos do consumidor, relação de trabalho e relações com o
poder público (FGV, 2016, p. 14).

Esses dados também apontam uma parcial divergência entre o que as pessoas
relatam ser as disputas mais propensas à judicialização e o que os tribunais efetivamente
encontram nos processos judiciais. Curiosamente, os assuntos considerados menos
propensos à judicialização no levantamento de percepção do IPEA, quais sejam
“empresas com as quais fez negócio”, “cobrança de impostos ou outros conflitos com o
fisco”, “vizinhança”, “pessoas com as quais já fez negócios”, ou “previdência, assistência
social ou demandas por direitos sociais” (2011), são alguns dos assuntos mais recorrentes
nos tribunais, segundo os dados do CNJ: trabalhistas/previdenciárias,

132
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

cíveis/obrigacionais e de consumo, fiscais, de família e criminais e eleitorais (cf. item 2.2,


supra). Parecem ser distintas a percepção do cidadão acerca das disputas que deve
submeter à Justiça e a do Judiciário com relação aos assuntos mais frequentes em seus
processos – o que não deveria acontecer, dado que o que o Judiciário processa o que a
sociedade lhe submete à apreciação. De toda forma, esta parece ser uma questão que
demanda dados complementares que permitam fazer uma análise mais esclarecedora.

2.3. Percepção de cumprimento das leis e judicialização

Uma outra dimensão que afeta a litigiosidade judicial é o grau de respeito às leis
e de cumprimento das regras. Teoricamente, há uma relação entre esses fatores no sentido
de que a litigiosidade tende a ser menor quando há respeito às leis, já que seria maior o
cumprimento voluntário das regras. O caso brasileiro, mais uma vez, parece colocar em
xeque essa relação. O conhecimento sobre as leis é muito baixo e o senso de respeito às
leis parece contraditório, no sentido de que um discurso disseminado de autoridade da lei
convive com um discurso oposto, de descumprimento. A consequência é que a litigância
judicial parece onerada com uma responsabilidade regulatória extraordinária. A lei não
consegue desempenhar a atividade de regulação preventiva e, nos casos concretos, esse
encargo é transferido para os processos de resolução de disputas. O resultado é o maior
uso do processo judicial e o aumento dos litígios judicializados.

Os dados apontam que o brasileiro conhece pouco as leis e que se divide quanto
a segui-las. Levantamento recente sobre a percepção de cumprimento das leis revela que
84% das pessoas disseram conhecer “um pouco”, “quase nada” ou “nada” as nossas leis
(FGV, 2016, p. 20). Não obstante, quase metade dos brasileiros (46%) diz que segue
“muito” as leis e, diversamente, a maioria declarou seguir pouco ou nada as leis – 40%
declararam seguir “pouco” e 15% respondeu seguir “nada” ou “quase nada”. O gráfico
abaixo ilustra esses percentis. Embora o seguir “muito” pareça majoritário, a soma das
outras categorias, que sugerem em última análise não cumprimento, é maior (55%).

133
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 12: Percentuais de respostas de autopercepção


de respeito às leis em geral – 1o sem. 2016

Fonte: FGV, Relatório ICJBrasil, 1o sem 2016.

É também notável o grau nada desprezível de leniência diante de hipóteses de


descumprimento das leis. A ideia do “jeitinho”, difundida na antropologia nacional (DA
MATTA, 1991), parece caracterizar o nosso senso de justiça e legalidade. Dentre os
respondentes, 80% e 81% disseram “concordar” ou “concordar muito” com afirmações
do tipo “é fácil desobedecer a lei no Brasil” e “sempre que possível as pessoas escolhem
dar um ‘jeitinho’ ao invés de seguir a lei”. Em sentido correspondente, a maioria (56%)
reconheceu concordar que “existem poucas razões para uma pessoa seguir a lei no Brasil”.
O gráfico abaixo ilustra essas informações (FGV, 2015).

Figura 13: Percentuais de entrevistados que responderam que


“concordam muito” ou “concordam pouco” com as afirmações
listadas – 1o sem. 2015

Fonte: FGV, Relatório IPCL Brasil, 1o sem 2015.

134
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A aprovação social das condutas parece ter, além da própria autoridade da lei,
um efeito sobre a propensão ao seu cumprimento voluntário. Dentre as situações
hipotéticas usadas no questionário, as de “levar itens baratos de uma loja sem pagar por
eles” e “dirigir depois de consumir bebida alcoólica” foram consideradas condutas com
alta reprovação social (89% e 86%), ao passo que “atravessar a rua fora da faixa de
pedestre” e “comprar CD e DVD piratas” foram consideradas menos reprovadas
socialmente (57% e 56%). De forma correspondente, essas categorias foram
consideradas respectivamente as mais e menos prováveis de sofrerem alguma punição:
81% e 80% para as duas primeiras e 43% e 41% para as duas últimas. Como conclui o
relatório, “quanto maior a desaprovação social diante da realização de uma conduta,
maior é a possibilidade de a lei ser cumprida” (FGV, 2015, p. 26).

Figura 14: Percentuais de entrevistados que responderam ser “provável” ou


“muito provável” haver punição para cada uma situações listadas – 1o sem. 2015

Fonte: FGV, Relatório IPCLBrasil, 1o sem 2015.

Decompondo-se as respostas por características de grupos sociais específicos, os


dados apontam que a percepção do cumprimento das leis, que reúne opinião e
comportamento das pessoas, aumenta com a idade – jovens têm uma percepção de que o
cumprimento das leis é menor do que os mais velhos (FGV, 2015, p. 13). E grupos de
renda mais baixa têm uma percepção de que o cumprimento de leis é mais alto do que os
grupos de renda alta sentem ser (IDEM, p. 14). Especificamente, jovens e pessoas de
renda e escolaridade média-alta são os que mais concordam com afirmações do tipo “é
fácil desobedecer às leis” e de que se deve “dar um jeitinho” quando necessário (IDEM,
p. 21). Novamente aqui, a “construção social da legalidade” varia conforme os grupos

135
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

sociais: reservadas as exceções, grupos socialmente mais vulneráveis percebem com mais
intensidade a autoridade e o cumprimento das leis do que grupos menos vulneráveis.

Os dados sobre percepção de cumprimento das leis aqui trazidos sugerem que a
litigância judicial no Brasil tem poucas chances de se ver aliviada por um eventual
incremento da efetivação voluntária do ordenamento. O brasileiro conhece pouco as leis
e menos da metade das pessoas diz que segue as leis – percentual que pode ser ainda
menor, considerando a superestimação das respostas a esse tipo de pergunta. Não
bastasse, a conduta de desobediência legal é naturalizada e facilmente justificável pelas
pessoas. Diante desse cenário, mecanismos de coerção social ou os comportamentos de
cumprimento voluntário tem baixa probabilidade de diminuir ou compensar a
litigiosidade. Se assim for, isso enfraqueceria o argumento de que procedimentos que
dependem de cumprimento voluntário, como aqueles cujas regras ou decisões são
definidas pelos próprios litigantes, seriam mais efetivos do que aqueles impostos pela lei.

Paralelamente, a leniência social com situações de desobediência legal cria


situações de incerteza regulatória e dubiedade punitiva que também desembocam na
forma de litigiosidade judicial. A coerção social, segundo se induz pelos dados, parece
exercer um papel regulatório importante, mas que se limita a apenas diferenciar situações
em que a desobediência legal conta com a anistia social – ilustrado principalmente pela
justificação dada ao “jeitinho” – daquelas em que a reprovação social impõe menor
espaço para o descumprimento da lei. Como a linha que separa a anistia da reprovação
não está bem estabelecida, isso geraria um incentivo para a judicialização. A coerção
social faz o papel de filtro entre as leis cujo cumprimento se deve exigir e aquelas cuja
desobediência seria justificável. E a litigância é invocada para os casos em que a coerção
social não foi suficientemente clara ou eficaz no seu recado de diferenciação.

No Brasil, como sintetizam Cunha e Oliveira (2017), o respeito à lei é


influenciado menos pelo desenho de regras jurídicas e previsão de sanções do que pelo
contexto particular de respeito a lei e à autoridade legal. Elementos como a moralidade
pessoal, o controle dos pares e a confiança na honestidade das autoridades compõem este
contexto. Por consequência, argumentam as autoras, a desigualdade social e econômica e
alta concentração de renda podem ser mais determinante dos comportamentos de respeito
e cumprimento à lei do que o seu mais perfeito desenho técnico ou o acompanhamento
da mais pesada sanção.

136
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Além da desigualdade social, a legitimidade depositada nas autoridades legais e


judiciárias afetam o grau de respeito às leis. E, neste ponto, há um dado que contribui
para compor o perfil da litigiosidade no Brasil. No Brasil (CUNHA et al., 2016), a
autoridade judicial detém um grau de legitimidade sensivelmente maior do que a
autoridade policial – vale dizer, o cumprimento de comandos proferidos por uma
autoridade policial é menor (46%) do que quando o comando provém de um juiz (77%)
(CUNHA E OLIVEIRA, 2017). Este dado, que é diferente do observado em outros países
– no caso, nos EUA, precisamente em Chicago, em que os percentuais são
respectivamente de 84% e 74% (TYLER, 2006), permite induzir que, em situações de
violações de direito, o brasileiro tende a procurar o Judiciário, mais do que a Polícia, por
exemplo.

A litigância judicial, portanto, pode ser a alternativa que resta para assegurar um
grau mínimo de justiça e coesão social diante do quadro geral de desconhecimento da lei
formal, incerteza da coerção social e leniência com a desobediência legal. Isso vale para
a vítima individual de violações, mas também para o próprio sistema regulatório do
Estado. Aquela, em caso de violação de direitos, não pode contar com a segurança do
cumprimento voluntário da lei. E o Estado não consegue compartilhar o papel de
regulação jurídica com os mecanismos de coerção social.

Ocorre que a responsabilidade regulatória que recai sobre a litigância judicial


nem sempre é claramente compreendida, tanto pelo Estado quanto pela sociedade. A
judicialização, porque é um comportamento no extremo oposto ao de leniência com o
descumprimento das leis, tende a ser reprimido socialmente, em vez de ser incentivado
como meio para a atuação da lei. A naturalização dos comportamentos de
descumprimento das leis (dimensionada, segundo os dados acima, em 81%) pode
facilmente se transformar em um contraincentivo à mobilização por direitos, de sorte que
o ato da reivindicação (claiming) de que fala a teoria em solução de disputas (v. cap. 1)
se torna mais difícil de ser concretizado. Nos casos mais graves, o contraincentivo provém
das próprias políticas judiciárias estatais, por mais paradoxal que possa parecer, uma vez
que ele é teoricamente o maior interessado no cumprimento das leis. O obstáculo afeta a
generalidade dos grupos sociais, mas tende a ser mais intenso para aqueles grupos menos
habituados a recorrer ao sistema oficial.

137
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

3. Retrato do acesso à justiça no Brasil - a judicialização da disputas

Há diferentes explicações para justificar a percepção, hoje em dia comum, de


que a população brasileira seria demasiadamente litigante. A primeira é, naturalmente, o
grande volume de processos judiciais nos tribunais, que passam dos 100 milhões (CNJ,
2017). A segunda é o dado que aponta que a mobilização por direitos, quando acontece,
é intensa: embora o envolvimento em conflitos não chegue a 10% da população e se
concentre em determinados grupos sociais (v. item 2.1, supra), o grau de resiliência é
baixo (7,3%). Vale dizer, as pessoas quando se consideram em um conflito, levam-no
adiante em 92,7% dos casos (IBGE, 2010). Por fim, parece haver uma preferência da
população brasileira, voluntária ou não, por encaminhar os conflitos aos canais
institucionais estatais, particularmente o Poder Judiciário. O encaminhamento de
conflitos à Justiça comum, Juizados Especiais e Polícia acumula 76% dos casos. O
encaminhamento do conflito a canais organizados pela própria sociedade, como o Procon,
sindicatos, associações e amigos ou parentes não chega a 10% das respostas. A Justiça
comum é a preferência da maioria - 57,8%, na média. Os juizados especiais são buscados
em apenas 12,4% dos casos, seguidos pela Polícia (6,6%), Procon (3,9%). Sindicatos ou
associações aparecem menos do que um amigo ou parente (1,5% contra 2,4%) (IBGE,
2010).

A figura abaixo ilustra a preferência da população brasileira pelos canais estatais


de resolução de disputas, notadamente o Poder Judiciário.

138
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
_______________________________________ Características
ALVES da SILVA,da vitimização e do acesso
Acesso à justiça, à justiça no Brasil 2009
litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura
Gráfico13:
28 - Distribuição
Distribuição dasde pessoas
pessoas de de 18 anos
18 anos ou mais
ou mais de que
de idade idade que situação
tiveram tiveram
situação de no
de conflito, conflito,
períodoentre 2004 ede
de referência 2009, porpor
5 anos, tipo de de
busca encaminhamento
solução e forma dedado ao
buscar
solução
conflito mais para asegundo
grave, situação de
as conflito
regiõesmais grave– em
do país que se envolveram,
2009
segundo as Grandes Regiões - 2009
%

63,2
59,2
57,8

56,6
55,9

51,6
15,8

14,5

14,4
12,4

11,5

10,4
9,8
8,8

8,8

8,3
8,2
8,0

7,9

7,4
7,3

6,8
7,0
6,6

6,6
6,3
5,7
5,7

5,7
5,4
4,5
4,1
3,9

3,9
3,7
3,6
2,9
2,7
2,4

2,1

1,8

1,7
1,6

1,6
1,5

1,5

1,5
1,2

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Justiça Juizado especial Polícia Procon Amigo ou parente

Sindicato ou associação Outra Não buscaram solução

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2009. Por mais que a
No período de cinco anos, das 11,7 milhões de pessoas que buscaram solução
judicialização de disputas pareça alta no Brasil, há outras considerações que merecem
para o conflito, 5,8 milhões (49,2%) tiveram sua causa solucionada, e 5,9 milhões
atenção antes da
(50,8%) instituição
ainda de mecanismos
não solucionada. O Pde controle
ROCON da litigiosidade.
foi apontado mais frequentemente na
solução dos conflitos solucionados no período, 69,4%. Por outro lado, a justiça teve
Em primeiro lugar, o envolvimento das pessoas em conflitos e a mobilização por
o maior percentual de indicação dos conflitos não solucionados, 56,5%.
direitos não necessariamente é e nem sempre é considerado um comportamento
Gráfico
patológico. Pelo 29 - Distribuição
contrário. das pessoas
Eles refletem de 18 anos oulegalmente
o comportamento mais de idade que tiveram
previsto para uma
situação de conflito, no período de referência de 5 anos, por forma de buscar
solução
situação de violação para
dea situação
direitos dee conflito mais grave
evidenciam um em que se envolveram,
considerável segundo
grau de a
cidadania.
existência de solução para a situação de conflito mais grave em que se envolveram
Perceber-se vítima de uma violação, seja porBrasil que -caminho
2009 isso aconteça, não é em si um
comportamento oportunista,
Total doloso ou ilegítimo. É uma atitude que50,8
o direito espera que
49,2

aconteça para que o ordenamento jurídico se efetive integralmente166. Pela mesma razão,
Procon 69,4
resistir a uma reivindicação injusta de direitos é igualmente
30,6 legítimo. Em ambos os casos,
64,6
o sistema de justiça deve
Outra trabalhar com a possibilidade e a normalidade desses
35,4

comportamentos, nãoouoparente
Amigo contrário. O comportamento ordinário dos cidadãos não
64,0deve ser
36,0
considerado um fator de risco de colapso do sistema oficial de justiça. Ao
Juizado especial
55,6 menos, não o
44,4
comportamento do cidadão médio. 51,9
Polícia
48,1
47,7
Sindicato ou associação 52,3

166
litigiosidade e causas das morosidade elaborado43,5
O estudo de casos sobre aJustiça pela Fundação Getúlio Vargas
56,5
com o Conselho Nacional de Justiça, em 2009, deparou-se com o delicado desafio de classificar como %
oportunista ou mero exercício de direitos as ações de advogados, da mídia ou das partes na vindicação a
direitos. Embora resultem em um aumentoSolucionada do volume de processos nossolucionada
Ainda não tribunais, não é simples classifica-
las como condutas oportunistas quando estão, em si, buscando tutela a direitos que o ordenamento confere.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
V. Gabbay 2009.
e Cunha, 2010.

139
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Em segundo, o comportamento de litigar judicialmente é, do ponto de vista da


ação social, um ato mais complexo do que em geral supõe a teoria jurídica. Ele exige
algum grau de mobilização que não se consegue nem se restringe facilmente, por mera
disposição legal. Segundo um dos estudos analisados no capítulo 1, o ato de reivindicar
um direito - o claiming - depende, antes, da vítima compreender que possui esse direito
e que ele fora violado - o naming -, seguido da imputação de responsabilidade ao violador
- o blaming (FESTINER et al, 1980). Desconhecemos como a população brasileira se
comporta em cada uma dessas etapas. Mas não é improvável pensar que, em não poucos
casos, as violações são sequer percebidas e, ainda que o sejam, nem sempre valerá investir
o custo patrimonial, pessoal ou político de reivindicar publicamente direitos. Os dados da
figura anterior sugerem, na linha da “pirâmide”, na “árvore” ou no “pagode chinês” das
disputas (v. capítulo 1) -, que o fluxo de resolução de disputas no Brasil seria representado
por uma figura de base muito mais larga do que afunilamento brutal que vem em seguida,
de cerca de 9 vezes (9,7% de envolvimento em disputas). E, a partir de então, a figura
seguiria quase que linearmente até o topo da litigância judicial (70,2% de
encaminhamento a órgãos do Judiciário, somando-se justiça comum e juizados especiais).
Ou seja, ainda que o “claiming” e o “blaming” pareçam intensos, e dirigidos ao sistema
oficial de justiça, o “naming” pode estar abaixo da média desejável para sociedades
desenvolvidas.

Em terceiro, ainda não temos muita clareza sobre os fatores que levam o
brasileiro a litigar judicialmente. Os dados recentes sugerem alterações no volume total
de processos sem uma razão específica aparente. Em 2015, por exemplo, a quantidade de
processos entrados sofreu uma retração de 4,2%, seguida de aumento da ordem de 5,6%
no ano seguinte (CNJ, 2016 e CNJ 2017). Na teoria, o que desencadeia pedidos de
intervenção judicial são os comportamentos das pessoas em relação seus direitos e em
relação a suas obrigações. A grande questão é, e sempre foi, diferenciar, dentre esses, os
legítimos e os ilegítimos. Em um ponto da cadeia social, há aqueles que não demandam
seus direitos quando poderiam e que deixam de oferecer resistência quando isso seria
legítimo. Em outro ponto, há aqueles que demandam direitos que sabidamente não têm
ou que resistem injustificadamente a demandas legítimas de direitos. O desafio imposto
às políticas judiciárias não é, portanto, a de controlar a demanda por direitos conforme o
que o sistema pode receber, mas a de saber quais desses tipos de comportamento ele tem

140
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

admitido e quais ele deve admitir. Em última análise, não é apenas uma questão de
capacidade estrutural, mas de opção política.

Considere-se, por fim, a crescente concorrência pelos espaços dos fóruns e


tribunais, discutida no item seguinte.

3.1. A competição pelo uso do Judiciário e o controle da litigiosidade

Embora o encaminhamento judicial seja maioria (70,2%), ele se refere aos 10%
da população que identificaram um conflito e o levaram adiante. Esse percentual tende
naturalmente a aumentar. Como avalia Galanter (2005), nós não viveremos em um mundo
livre de disputas e a consciência de que sofremos uma violação de direitos aumenta em
proporção inversa à nossa paciência para suportá-los. Natural e ordinariamente, a
reivindicação de direitos aumentará.

A competição pelo uso do serviço público de justiça, além de crescente e


inevitável, é desigual. O comportamento de judicializar litígios é diferente conforme os
grupos sociais (v. item seguinte) e a disputa que travam pelo acesso ao Judiciário pode
ser ilustrada pelo que acontece nos juizados especiais cíveis.

Os juizados especiais estão entre as novidades institucionais mais importantes


das últimas décadas em termos de acesso à justiça167. Embora incoerente, é compreensível
que eles sejam hoje acusados de sediar o que se tem chamado de litigiosidade repetitiva.
Como acontece nos demais órgãos de justiça, o acesso está concentrado por alguns tipos
de litigantes, o que induz à impressão de litigância excessiva e intensifica a competição
pelos espaços dos fóruns.

Pesquisa feita em cinco capitais do país revelou, como era de se esperar,


presença majoritária de demandas consumeristas, propostas por pessoas físicas contra
pessoas jurídicas. Porém, além do perfil padrão, os dados revelaram uma presença menor,

167
Não seria exagero afirmar que os juizados estão entre as novidades institucionais mais importantes das
últimas décadas em termos de acesso à justiça. Eles reúnem diferentes características que o qualificam ao
posto - a desformalização, a simplificação procedimental, a resolução consensual, a cobertura a novos
direitos, o empoderamento das partes, entre outras. Quando implantados, ganharam imediata adesão da
população e assumiram destaque na organização da justiça. Paralelamente, contudo, os juizados entraram
na zona de ataque das críticas à litigiosidade repetitiva e da legislação que a acompanha – exemplo mais
evidente foi a inclusão dos juizados no âmbito de aplicação do incidente de resolução de demandas
repetitivas do novo CPC (art. 985, I).

141
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

mas nada desprezível, de demanda apenas entre pessoas físicas e de pessoas jurídicas
contra pessoas físicas – estas, geralmente de cobrança168 e aquelas, sobre as mais variadas
questões que pode existir entre dois cidadãos, como explica o trecho abaixo:

As entrevistas realizadas durante a pesquisa parecem confirmar a existência de


demandas “domésticas” entre pessoas físicas. No juizado SP Penha, por
exemplo, um dos entrevistados, juiz, declarou ter percebido, após ser
transferido àquele juizado, que os processos traziam matérias diferentes das
que costumava ver nos juizados em que trabalhara anteriormente. Segundo ele,
pareciam mais comuns neste juizado demandas envolvendo o “açougueiro”, o
“mecânico”, o “marceneiro”(...). Um relato parecido aconteceu no juizado BE
Guamá. Um dos entrevistados, assessor de juiz com considerável experiência,
contou que muitas demandas começaram por ocorrências um tanto peculiares:
há muitos anos - ele relata - um chefe de família dividira o seu terreno, então
bem servido de quintal, a filhos e genros e constrói casas para alojar as suas
famílias. Posteriormente, essas casas são “vendidas” a outras famílias, o que
obriga todos a uma convivência muito próxima (praticamente, não há muros)
entre estranhos. Com o tempo, esta convivência gera conflitos de variada
natureza naquele juizado. O entrevistado lembra um deles, bastante trivial: em
um desses terrenos compartilhados, todo domingo, ainda de manhã, uma das
famílias “compra lá meia dúzia de cerveja e um quilo de linguiça, liga o som
em volume alto, chama alguns amigos e começa o churrasco”, que termina
apenas à noite, ainda com o som ligado. Após alguns domingos, o conflito
entre as famílias é inevitável. Segundo ele, não é incomum haver processos
naquele juizado baseados em narrativas como essas. (BRASIL, 2015, p 30)

Esses conflitos, consideradas pelo relatório como “comuns” e “domésticos”,


foram identificados com mais frequência em juizados localizados em bairros periféricos
das capitais pesquisadas, com população com renda média intermediária e baixa
(BRASIL, 2015, p. 31). A sua descrição acompanha uma constatação quase nostálgica de
um tipo de disputa que talvez tenha inspirado a própria ideia de juizados de pequenas
causas (small claims courts).

Já nas disputas majoritárias, entre consumidor e fornecedor, os dados registram


a predominância de instituições financeiras como rés, seguidas por empresas seguradoras,
do comércio, telefonia e concessionárias de serviços públicos (BRASIL, 2015, p. 34).
Porque, via de regra, são empresas com atuação em todo território, parte substancial dos
litígios deriva de políticas centralizadas, de âmbito nacional. Como descreve o relatório:

“A distribuição irregular parece ser o único elemento comum quando se


comparam os ramos de atividade das empresas rés. Na verdade, isso parece
natural decorrência da presença dessas empresas em todo o território nacional,
indistintamente, e da natureza de massa que caracteriza suas atividades. Fica
evidente, pelos dados e nesta conclusão, o quão amplos, difusos e indistintos

168
Pesquisas anteriores sobre os juizados especiais, no Brasil e em outras literaturas, também identificaram
a presença de demandas de pessoas jurídicas contra pessoas físicas, sinalizando o uso dos juizados como
mecanismo de cobrança de dívidas.

142
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

podem ser os efeitos das políticas e da atuação dessas empresas sobre os


respectivos mercados e, no caso, sobre o movimento judiciário dos juizados
especiais cíveis.” (p. 36, grifos nossos).

A litigiosidade, nesses casos, possui origem comum169, derivada da atuação


regional ou mesmo nacional de órgãos de estado ou empresariais, o que levaria a uma
outra hipótese para explicar a percepção da litigiosidade: o fenômeno que se tem
identificado como “judicialização em massa”, “litigância de massa” ou repetitiva seria,
na verdade, consequência de políticas centralizadas e de amplo espectro; práticas ou
políticas governamentais ou empresariais “de massa” que, segundo os demandantes,
violariam seus direitos. Seriam, alegadamente, “violação em massa de direitos
subjetivos”, menos do que “litigância de massa” ou “litigiosidade repetitiva”170.
Novamente, a perspectiva adotada para olhar para o problema compõe a percepção de
litigiosidade que guia a construção e condiciona a efetividade das políticas públicas de
justiça.

No outro extremo, disputando espaço com os “litigantes repetitivos”, um


contingente disperso de 1 em cada 10 cidadãos tenta, uma vez ou outra, levar seus
conflitos para apreciação judicial. Encontram um ambiente já tomado por processos
judiciais, conduzidos burocraticamente por servidores desmotivados e pressionados para
o cumprimento de metas de produtividade.

O problema da litigiosidade, em suma, impõe um desafio suplementar ao sistema


em termos de acesso à justiça, na forma de uma dificílima decisão política: quais litígios
devem ocupar a agenda do Poder Judiciário e quais terão de ser resolvidos de outros
modos?

3.2. O perfil da judicialização no Brasil e o desigual acesso à justiça

A natureza dos conflitos é outra informação indispensável para se entender a


litigiosidade no Brasil. E, nesse aspecto, outra opinião de senso comum perde parcial
fundamento. A litigiosidade no Brasil é menos homogênea e repetitiva do que

169
Não à toa, “origem comum” é o critério adotado pela lei brasileira para identificar os chamados interesses
individuais homogêneos (art. 81, CDC), que estão na base desse mesmo problema da litigiosidade
repetitiva. Tratarei disso no próximo capítulo.
170
A imagem para o argumento é de Alexandre dos Santos Cunha, do IPEA, em palestra intitulada
“Efetividade da Justiça: desafios, impactos e soluções”, proferida no Congresso Estadual de Magistrados
de Santa Catarina, em 01/11/2014.

143
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

frequentemente se afirma, e isso fica evidente quando o fenômeno é visto pelo ponto de
vista das disputas e pessoas envolvidas. Alguns tipos de conflitos parecem mais
Vitimização e Justiça 2009 _______________________________________________________________________
frequentes em determinados estratos sociais do que em outros.

Os conflitos mais frequentes para a população brasileira são, ainda segundo o


Áreas de conflito
IBGE/PNADAs(2009), os de
áreas que natureza trabalhista
representavam (23,3%),
os maiores seguidos
problemas parados de família
a população (22%),
brasileira
171
em situação
consumidor (17,1%de )conflito também
e criminal foramMenos
(12,6%). investigadas pela são
frequentes pesquisa. Os relativos
conflitos resultadosa
mostraram que as áreas trabalhista, de família e criminal, alcançaram os maiores
impostos ou tributação (1,2%) e terras ou moradia (4,8%). Os dados regionais mudam só
percentuais, respectivamente: 23,3%, 22,0% e 12,6%. O gráfico, a seguir, mostra a
a alternância das primeiras
distribuição das áreasposições:
de conflno
ito Norte, Nordeste
por Grandes e Centro-Oeste,
Regiões. família
Os conflitos é mais
trabalhistas
registraram o maior percentual na Região Sudeste, 24,8%; os de família, na Norte,
representativa que a área trabalhista (IBGE, 2009). A figura abaixo representa as
29,9% e os criminais, na Norte e Centro-Oeste, respectivamente 15,8% e 15,7%.
naturezas dos conflitos mais comuns em cada região do país.
Gráfico 27 - Distribuição das pessoas de 18 anos ou mais de idade que tiveram situação
Figura 10: Distribuição das pessoas com mais de 18 anos que tiveram
de conflito, no período de referência de 5 anos, por área da situação de conflito
situação de conflito,
mais grave ementre
que se2004 e 2009,segundo
envolveram, por área da situação
as Grandes Regiõesde- 2009
conflito mais
grave,
% segundo as regiões do país - 2009
29,9

25,1

24,8

23,8
23,3
23,3

23,2

22,6
22,0

20,8

20,6

18,7
15,8

15,7
14,3
12,6

12,4
12,1
10,9

10,9

10,8
10,5
10,4

9,7
9,7

9,5
9,2
9,2
8,6

8,7
8,5

8,2
8,2

8,0
7,7
7,4

6,7

6,7
6,6

6,6
6,3

5,4
5,1
4,9
4,8

4,7

4,6
4,1

1,6
1,5
1,2

1,1
0,6

0,5

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Serviços de água,
Trabalhista Família Criminal Outra
luz ou telefone

Benefícios do INSS Bancos ou instituições Terras ou Impostos ou


ou previdência financeiras moradia tributação

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2010.


Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.

Analisando
O perfil os grupos
das disputas etários, as
judicializadas pessoas
é similar aode 18 a 24pelo
descrito anos de idade
IBGE. tiveram
A edição do
os maiores percentuais de situação de conflito na área de famíla (27,8%) e na
relatório “Justiça em Números” de 2016, do CNJ, conseguiu esboçar uma primeira
criminal (23,3%). Entre as pessoas de 50 anos ou mais de idade, os conflitos que
descrição dos assuntos
envolviam mais recorrentes
a área trabalhista nos tribunais:
apresentaram trabalhista;
o maior percentual cível;seguido
(21,2%), fiscal;
172
pelos conflitos
consumidor; que envolviam
e previdenciário os benefícios são
. Especificamente, do Instituto
casos deNacional
rescisão do
de Seguro
contratoSo-
de
cial - INSS ou previdência (19,0%)

Busca da solução do conflito


171
Reuniram-seDasna categoria “consumo”
12,6 milhões os conflitos
de pessoas deenvolvendo
18 anos bancos
ou maise instituições
de idade financeiras
que tiverame os
relativos a serviços de água, luz ou telefone.
172 situação
Tarefa de 2007
iniciada em conflito,
com a 92,7% (11,7
unificação milhões)
de tabelas buscaram
de classes solução,
processuais sendo
(Res. CNJ que 57,8%
n. 46/2007).
recorreram principalmente à justiça e 12,4% ao juizado especial. O predomínio
dessas duas instâncias foi também constatado nas Grandes Regiões do País, com
144
destaque para a Sul, onde a busca da solução dos conflitos, via justiça, atingiu
63,2%. Já o juizado especial teve o maior percentual de busca na Norte, 15,8%.
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

trabalho e verbas rescisórias (11,75%), relativo a obrigações e contratos (4,61%), dívida


ativa (4,10%), responsabilidade do fornecedor com dano moral (3,94%), responsabilidade
civil com dano moral (3,94%), alimentos (1,97%), seguidos por dano moral do
empregador, títulos de crédito, auxílio doença previdenciário e tutela específica/tutela
antecipada (CNJ, 2016).

Em 2017, os resultados são similares, com o aparecimento da categoria


“eleitoral”, totalizando quase 8% dos processos. Compartilhados por áreas da Justiça, os
casos mais comuns na esfera estadual são os cíveis relativos a obrigações e contratos
(3,83%) e responsabilidade do fornecedor/dano moral (3,46%). Na Justiça federal, são os
casos previdenciários relativos a benefícios/auxílio-doença (1,21%) e os relativos à dívida
ativa (0,96%). Na Justiça do Trabalho, os casos de rescisão/verbas rescisórias (11,51%).
Na eleitoral, os casos sobre candidaturas (2,85%) e sobre cargos (1,96%) (CNJ, 2017, p.
155).

Os perfis de disputas judicializadas (CNJ, 2016 e 2017), em suma, refletem os


de disputas em geral na sociedade (IBGE, 2010). A principal diferença é o aparecimento
de conflitos de natureza fiscal e previdenciária, que envolvem o próprio Estado, e os
eleitorais, que envolvem pretensos agentes públicos.

Há pelo menos três pontos a destacar na análise do perfil dos litígios


judicializados. O primeiro é o de que demandas judiciais refletem diferentes relações
jurídicas materiais e, portanto, variadas relações sociais. Os tipos de litígios judicializados
escondem diferentes tipos de disputas havidas na sociedade. Demandas trabalhistas
nascem de um tipo de conflito, distinto dos de família por exemplo, por sua vez distintos
dos de consumo e ainda mais diversos do que os criminais. Alguns nascem em relações
jurídicas privadas, outros envolvem relações públicas; alguns envolvem população com
renda acima da média e outros afetam população com renda abaixo da média. Quando
analisadas pela quantidade geral de processos judiciais, essas diferenças tendem a ser
desconsideradas, o que compromete, já de início, a efetividade das políticas judiciárias
assim pensadas.

O segundo ponto é que a variação dos tipos de litígios judicializados reflete uma
correspondente variação dos grupos sociais comumente envolvidos. Os dados sobre
distribuição etária dos envolvidos em conflito confirma a diferenciação entre os tipos de
litigantes. Jovens entre 18 e 24 anos, por exemplo, reportaram conflitos

145
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

predominantemente na área de família e criminal; e pessoas com mais de 50 anos


reportaram conflitos trabalhistas e previdenciários. Esses dados parecem reforçar a
relação entre natureza das disputas e o perfil social dos envolvidos, que geralmente escapa
aos dados quantitativos gerais - e que demandam consideração de qualquer política
pública de justiça que se pretenda efetiva.

Por fim, a presença marcante de disputas de uma determinada natureza nos


órgãos de justiça revela que aquela relação social (econômica, política ou meramente
social) não está conseguindo regular-se de forma autônoma, apenas com uso das regras
materiais. Se o Judiciário recebe muitas demandas consumeristas é um claro sinal de que
consumidores e fornecedores não têm conseguido encontrar um equilíbrio em suas
relações. O mesmo acontece com demandas previdenciárias, trabalhistas, obrigacionais,
fiscais, de família e, inclusive, criminais. O direito oferece dois instrumentos regulatórios
à sociedade, o direito material e o direito processual. Se e quando o primeiro não é
suficiente para oferecer respostas observadas comumente pelos atores sociais envolvidos,
um ou ambos recorrem ao direito processual, exercido junto aos órgãos de justiça. Se
determinadas relações sociais aparecem com frequência nos processos judiciais, há um
problema de regulação jurídica daquele setor. Interpretar essa situação como um
comportamento patológico do ator social envolvido é deixar de olhar para a evidente falha
do sistema regulatório estatal – uma reação que, por conveniência ou mera falta de visão,
será invariavelmente inefetiva porque não terá compreendido o problema posto.

O discurso que sugere haver um fenômeno de litigiosidade repetitiva no Brasil


funda-se na percepção de que os processos judiciais, além de volumosos, tratam, em boa
medida, das mesmas questões jurídicas173. A diferente natureza das disputas e litígios
judicializados depõe contra esse argumento. Dentro de cada classe processual, há tipos
específicos de litígios, o que faz parecer menos homogênea a litigiosidade. A edição de
2017 do “Justiça em Números” chegou a identificar “grande diversificação de assuntos”
na Justiça estadual - o que é significativo, já que ela concentra 67% de todo o estoque
nacional. A distribuição de casos entre os tribunais estaduais e regionais também não é
uniforme; determinados assuntos são mais comuns do que outros em alguns tribunais.

173
Aliás, este é o dos critérios para o cabimento do incidente de resolução de demandas repetitivas, segundo
o NCPC, art. 976, inciso I: “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma
questão unicamente de direito”.

146
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Segundo os dados, casos criminais predominam nos órgãos de segundo grau, direito
tributário na justiça comum e consumidor nos juizados especiais (CNJ, 2017, p. 164) e
“os principais assuntos cadastrados no TJ-BA, TJ-MA e TJ-PE diferem dos casos mais
recorrentes nos outros tribunais” (idem, p. 168)174. Por mais que, do ponto de vista de
cada tribunal ou órgão de justiça isoladamente, o cenário seja o de muitos processos sobre
as mesmas questões jurídicas, do ponto de vista do conjunto de todos os tribunais, o
cenário é de diversidade de matérias e pessoas envolvidas – o que é um elemento a ser
sopesado pelas políticas de uniformização de entendimentos jurisprudenciais.

Por outro lado, a concentração de litigantes que representam apenas alguns


setores sociais contribui para a percepção da litigiosidade como homogênea e repetitiva.
Se a diversificação de conflitos e assuntos processuais sugere que a litigiosidade judicial
é heterogênea, a presença frequente de um mesmo grupo de grandes litigantes faz parecer
homogêneo o contingente de processos judiciais.

Em 2011, o CNJ organizou e divulgou, em caráter inédito, um relatório sobre o


perfil da litigância no Brasil, com identificação dos atores sociais que seriam os mais
frequentes litigantes do sistema de justiça. Os resultados surpreenderam. Na primeira
edição, referente a 2010, o relatório sugere que o setor público federal e os bancos
respondiam, à época, por quase 80% da litigância no país (38% cada). Na Justiça estadual,
que registra o maior contingente de processos judiciais no país (79,8% de casos
pendentes), os bancos representavam 54% dos casos. Na Justiça federal, o setor público
federal ocupava 77% dos casos e os bancos, 19%. E na Justiça do trabalho, cada um
representava 27% e 21%, respectivamente, seguidos do setor da Indústria, com 19%. Em
2012, uma segunda edição deste relatório trouxe percentis menores de participação dessas
entidades, as quais, contudo, ainda figuravam como os mais frequentes litigantes. Setor
público, bancos e empresas de telefonia respondem por 35,5% do total de processos
ingressados no período (janeiro a outubro de 2011). A tabela abaixo sintetiza os dados
gerais referentes ao relatório publicado em 2012, estratificado por ramo da Justiça.

174
Os diagramas apresentados nessa edição do Relatório, bem como a ferramenta interativa, permitem
discriminar as demandas mais comuns em cada tribunal. V. http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-
justica-em-numeros.

147
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Tabela 1 - Listagem dos dez maiores setores contendo o percentual de processos em relação ao total ingressado entre 1º de janeiro
e 31 Figura
de outubro de11:
2011Setores
por Justiça. com maior percentual de litígios judiciais no Brasil, no
Setores dos Cem Maiores Litigantes
Ordemtotal e por ramos da Justiça - 2012
Total Justiça Estadual Justiça Federal Justiça do Trabalho
1 SETOR PÚBLICO FEDERAL 12,14% BANCOS 12,95% SETOR PÚBLICO FEDERAL 83,19% INDÚSTRIA 2,03%
2 BANCOS 10,88% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 9,25% BANCOS 9,60% SETOR PÚBLICO FEDERAL 1,84%
3 SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 6,88% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 4,85% CONSELHOS PROFISSIONAIS 2,76% BANCOS 1,78%
4 SETOR PÚBLICO ESTADUAL 3,75% SETOR PÚBLICO FEDERAL 3,11% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 0,56% SERVIÇOS 1,44%
5 TELEFONIA 1,84% TELEFONIA 2,38% OAB 0,41% COMÉRCIO 0,93%
6 COMÉRCIO 0,81% SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,93% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 0,14% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 0,86%
7 SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,74% COMÉRCIO 0,92% SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,06% ASSOCIAÇÕES 0,80%
8 INDÚSTRIA 0,63% INDÚSTRIA 0,44% OUTROS 0,06% TELEFONIA 0,60%
9 SERVIÇOS 0,53% SERVIÇOS 0,42% EDUCAÇÃO 0,04% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 0,45%
10 CONSELHOS PROFISSIONAIS 0,32% TRANSPORTE 0,18% SERVIÇOS 0,02% TRANSPORTE 0,40%
Elaboração: Departamento
Fonte: CNJ,de Pesquisas
2012 Judiciárias/ CNJ.

ÉAoportuno
concentração
considerar queda
estelitigância judicial
resultado corrobora no país
as recentes é tamanha
pesquisas queo excesso
realizadas sobre pode de serlitigância
expressa
no Poder
2
em uma lista
Judiciário . composta por um punhado de atores públicos e privados. Na primeira edição
desse relatório, a estudo
Em relação ao lista sobre
era osencabeçada por:realizado
100 maiores litigantes INSS; Caixa
em 2010, mesmoEconômica Federal;
considerando a mudança União;na
na metodologia
Fazenda Nacional;
coleta dos Banco
dados (naquela ocasiãodo Brasil; oBanco
considerou-se estoque deBradesco;
processos e nãoBanco
os casosItau; Banco Finasa;
novos ingressados de janeiro aBrasil
outubro de
Telecom; Telemar.
2011), notou-se que osNa segunda
setores que mais edição
demandaramdodorelatório, houve
Poder Judiciário alguma
mantiveram-se alteração
no ranking total dena posição
maiores litigantes,
dessas conformeentidades, mas2, aoseguir.
verificado na tabela quadro geral era similar. As tabelas abaixo ilustram,
respectivamente, a lista dos maiores litigantes da primeira e segunda edições do relatório
1. ÉLISTAGEM
relevante consignar,
DOS 100noMAIORESentanto, a LITIGANTES
presença de alterações pontuais nos dados de 2011. Aos serem considerados apenas os
do CNJ.
casosApresenta-se,
novos, o Setorabaixo,
Públicoa listagem
Municipaldos
passou
100 amaiores
figurar na 3ª posição,
litigantes. Essadesbancando o Setor Público
lista está subdividida Estadual.
em quatro Outras
outras, mudançasos
que detalham
maiores litigantes nacionais e de acordo com o ramo de justiça. O ranking nacional foi elaborado a partir da compilação de todos os
processosFigura 12: Litigantes
enviados pelos tribunais federais, com maior
trabalhistas percentual
e estaduais ao CNJ, de comlitígios judiciais
classificação nodos Brasil, nonade
acordodignas
com adeparticipação
nota referem-se à 6ª posição
percentual ocupada,
em relação em 2011,
aos cem pelo Comércio,
primeiros. que naposterior
edição anterior da pesquisa cem primeiros,
não constava
total e por ramos da Justiça - 2011
Tabelalistagem de dos
1 - Listagem maiores litigantes.
100 maiores Alémcontendo
litigantes disso, oépercentual
relevantedefrisar a 8ª posição
processos em relaçãoocupada pelo setor
aos 100 maiores industrial,
litigantes já que na edição anterior
da Justiça.
Cem Maiores Litigantes
Rank
Nacional Justiça Federal Justiça do Trabalho Justiça Estadual
INSS - INSTITUTO INSS - INSTITUTO
ESTADO DO RIO GRANDE
1 NACIONAL DO SEGURO 22,33% NACIONAL DO SEGURO 43,12% UNIÃO 16,73% 7,73%
2 DO SUL
Vide Pesquisas da FGV/SP, PUC/PR, UFRGS e IPEA contratadas pelo CNJ/DPJ e disponíveis no endereço eletrônico: http://www.cnj.jus.br/programas-de-
SOCIAL SOCIAL
CEF - CAIXA ECONÔMICA CEF - CAIXA ECONÔMICA INSS - INSTITUTO NACIONAL DO
2 a-a-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnj-academico
FEDERAL
8,50%
FEDERAL
18,24%
SEGURO SOCIAL
6,41% BANCO DO BRASIL S/A. 7,12%

3 FAZENDA NACIONAL 7,45% FAZENDA NACIONAL 15,65% CEF - CAIXA ECONÔMICA FEDERAL 5,29% BANCO BRADESCO S/A 6,70%
Página 8 de 33 INSS - INSTITUTO
GRUPO CEEE - COMPANHIA
4 UNIÃO 6,97% UNIÃO 12,77% 5,22% NACIONAL DO SEGURO 5,95%
ESTADUAL DE ENERGIA ELÉTRICA
SOCIAL
ADVOCACIA GERAL DA
5 BANCO DO BRASIL S/A. 4,24% 1,75% BANCO DO BRASIL S/A. 4,82% BANCO ITAÚ S/A 5,92%
UNIÃO
ESTADO DO RIO GRANDE FUNASA - FUNDAÇÃO BRASIL TELECOM
6 4,24% 0,79% TELEMAR S/A 4,31% 5,77%
DO SUL NACIONAL DE SAÚDE CELULAR S/A
INCRA - INSTITUTO
NACIONAL DE PETROBRÁS - PETRÓLEO
7 BANCO BRADESCO S/A 3,84% 0,48% 3,80% BANCO FINASA S/A 4,08%
COLONIZAÇÃO E REFORMA BRASILEIRO S/A.
AGRÁRIA

EMGEA - EMPRESA
8 BANCO ITAÚ S/A 3,43% 0,47% FAZENDA NACIONAL 3,29% MUNICÍPIO DE MANAUS 3,81%
GESTORA DE ATIVOS

IBAMA - INSTITUTO
BRASILEIRO DO MEIO
BRASIL TELECOM
9 3,28% AMBIENTE E DOS 0,47% BANCO ITAÚ S/A 2,89% MUNICÍPIO DE GOIÂNIA 3,76%
CELULAR S/A
RECURSOS NATURAIS
RENOVÁVEIS

BACEN - BANCO CENTRAL BANCO SANTANDER


10 BANCO FINASA S/A 2,19% 0,39% BANCO BRADESCO S/A 2,81% 3,14%
DO BRASIL BRASIL S/A

Fonte: CNJ, 2011 Página 5 de 25

148
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Figura 13: Litigantes com maior percentual de litígios judiciais no Brasil, no


Tabela 3 - Listagem dos 100 maiores litigantes contendo o percentual de processos em relação ao total de processos ingressados
entre 1º de Janeiro e 31 de outubro de 2011 no 1º Grau (Justiça Comum).
Ordem
total e por ramos da Justiça – 2012
Cem Maiores Litigantes no 1º Grau
Consolidado das três Justiças Justiça Estadual Justiça Federal Justiça do Trabalho
CNA - CONFEDERAÇÃO DA
INSS - INSTITUTO NACIONAL INSS - INSTITUTO NACIONAL INSS - INSTITUTO NACIONAL
1 4,38% 3,09% 34,35% AGRICULTURA E PECUÁRIA 0,72%
DO SEGURO SOCIAL DO SEGURO SOCIAL DO SEGURO SOCIAL
DO BRASIL
CEF - CAIXA ECONÔMICA
2 B.V. FINANCEIRA S/A 1,51% B.V. FINANCEIRA S/A 2,04% FAZENDA NACIONAL 12,89% 0,64%
FEDERAL
CEF - CAIXA ECONÔMICA
3 MUNICÍPIO DE MANAUS 1,32% MUNICÍPIO DE MANAUS 1,79% 12,71% UNIÃO 0,56%
FEDERAL
ESTADO DO RIO GRANDE DO PETROBRÁS - PETRÓLEO
4 FAZENDA NACIONAL 1,20% 1,57% UNIÃO 11,51% 0,47%
SUL BRASILEIRO S/A
EBCT - EMPRESA
ESTADO DO RIO GRANDE DO MUNICÍPIOS DE SANTA ADVOCACIA GERAL DA
5 1,17% 1,53% 2,01% BRASILEIRA DE CORREIOS E 0,36%
SUL CATARINA UNIÃO
TELÉGRAFOS
RECEITA FEDERAL DO
6 UNIÃO 1,16% BANCO BRADESCO S/A 1,26% 1,20% BANCO BRADESCO S/A 0,31%
BRASIL
IBAMA - INSTITUTO
MUNICÍPIOS DE SANTA BRASILEIRO DO MEIO BANCO SANTANDER BRASIL
7 1,13% BANCO ITAUCARD S/A 1,13% 1,19% 0,28%
CATARINA AMBIENTE E DOS RECURSOS S/A
NATURAIS RENOVÁVEIS
OAB - ORDEM DOS
8 BANCO BRADESCO S/A 0,99% BANCO ITAÚ S/A 1,07% 1,02% VALE S/A 0,26%
ADVOGADOS DO BRASIL
INMETRO - INSTITUTO
AYMORÉ CRÉDITO
CEF - CAIXA ECONÔMICA NACIONAL DE METROLOGIA,
9 0,95% FINANCIAMENTO E 1,06% 0,89% BANCO DO BRASIL S/A 0,25%
FEDERAL NORMALIZAÇÃO E
INVESTIMENTO S/A
QUALIDADE INDUSTRIAL

BANCO SANTANDER BRASIL CONSELHO REGIONAL DE


10 BANCO ITAUCARD S/A 0,85% 1,01% 0,71% FAZENDA NACIONAL 0,24%
S/A CONTABILIDADE

TELESP -
FAZENDA PÚBLICA DO CONSELHO REGIONAL DE
11 BANCO ITAÚ S/A 0,82% 0,99% 0,68% TELECOMUNICAÇÕES DE 0,24%
ESTADO DE SÃO PAULO ENFERMAGEM - COREN/RS
SÃO PAULO S/A

INCRA - INSTITUTO
BANCO SANTANDER BRASIL FUNCEF - FUNDAÇÃO DOS
12 0,80% MUNICÍPIO DE GOIÂNIA 0,95% NACIONAL DE COLONIZAÇÃO 0,50% 0,22%
S/A ECONOMIÁRIOS FEDERAIS
E REFORMA AGRÁRIA

Fonte: CNJ, 2012


O conjunto dos dados apresentados nesse item ajuda-nos a entender que a
Página 15 de 33

litigiosidade no Brasil está longe de ser um fenômeno amplo ou homogêneo – e, por isso,
talvez menos repetitivo do que se anuncie. O volume reportado de envolvimento em
conflitos é baixo se comparado ao tamanho da população (menos de 10%) e ao volume
total de processos judiciais em trâmite no Judiciário (cerca de 74 milhões de processos
judiciais). Quando há conflitos, a litigância não é distribuída de modo homogêneo.
Alguns tipos de conflitos são mais frequentes e alguns perfis de pessoas se destacam
dentre os usuários do sistema.

O argumento da existência de uma litigiosidade repetitiva parece ligado a uma


percepção setorizada. A questão é saber em que medida essa percepção é realista e
correspondente à percepção geral da população - vale dizer, se ela realmente corresponde
ao perfil da litigância judicial em todo o país ou apenas a percepção de atores específicos
da sociedade.

Os dados até aqui trazidos sugerem que o fenômeno da litigiosidade no Brasil


pode não ser tão amplo e homogêneo como se argumenta. Dos conflitos que acontecem
na sociedade, em só uma parte as vítimas percebem a violação a seus direitos e, dentre

149
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

esses, uma parte ainda menor chega a ser judicializada. Esse volume, que aparece para os
tribunais como muito grande e repetitivo, é menor do que seria se a maioria das violações
de direitos fossem judicializadas. O volume de litígios judicializados também é
relativamente heterogêneo - vale dizer, nem tão repetitivo - quando se considera aos tipos
de relações jurídicas e grupos sociais especificamente envolvidos. Por outro lado, o que
parece homogêneo, concentrado e volumoso é participação dos litigantes mais frequentes
no Brasil, com presença e atuação em todo o território nacional, geralmente no polo
passivo dos processos e perfeitamente enquadráveis como “jogadores habituais” ou
“litigantes repetitivos” na terminologia consagrada por Galanter (1974). Considerando
essas características, o controle da litigiosidade, processual ou não, no Brasil teria de
enfrentar, preliminarmente, a difícil seleção dos privilegiados a ocupar a pauta e a atenção
do Judiciário.

3.3. O mito da litigância excessiva – como litigam as pessoas comuns

É comum, no debate legislativo atual, atribuir a litigiosidade a um suposto


comportamento excessivamente litigante das partes. Termos como “litigância excessiva”,
“litigância abusiva” ou mesmo “litigância predatória” têm sido usados com crescente
frequência. Segundo o argumento, litigantes abusariam das ações judiciais e instrumentos
processuais disponibilizados na legislação, o que geraria um grau anormal de litigância e
um volume descomunal de processos nos tribunais.175 Na mesma linha, a legislação
processual recente incluiu dentre seus objetivos a regulação da litigiosidade, o que tem

175
O fenômeno é muito mais complexo e merecer aprofundamento em estudo específico. Ele é observável
desde a consolidação de um argumento que aponta existir uma “indústria do dano moral” no Brasil, seguido
pela reação oposta pelos tribunais brasileiros no julgamento de demandas consumeiristas, distinguindo o
do “mero aborrecimento” não indenizável (v. a respeito, “Justiça faz esforço para não alimentar indústria
do dano moral”, notícia publicada no sítio eletrônico especializado Conjur, em 08 de fevereiro de 2015,
“https://www.conjur.com.br/2015-fev-08/justica-faz-esforco-nao-alimentar-industria-dano-moral, acesso
em janeiro de 2018. Passa por políticas judiciárias de redução do volume de processos nos tribunais por
meio do controle do “uso atípico do Poder Judiciário (a esse respeito, v.g., o laborioso trabalho
desempenhado pelo “Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas”, o Numopede, do Tribunal de
Justiça de São Paulo,
<http://www.tjsp.jus.br/PublicacaoADM/Handlers/FileFetch.ashx?id_arquivo=77180>, acesso em janeiro
de 2018). E alcança, mais recentemente, espaço dentre as operações da Polícia Federal com
acompanhamento midiático, como a “Operação Temis”, que investiga possíveis casos de fraudes judiciais
nas ações judiciais que pleiteiam indenização por expurgos inflacionários, e que ocasionou recente prisão
de advogados envolvidos (v.
https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/operacao-temis-cumpre-mandados-de-prisao-contra-
advogados-em-ribeirao-preto.ghtml, acesso em janeiro de 2018).

150
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

feito por meio da contenção do uso de instrumentos processuais e redução do volume de


feitos (v. cap. 3, infra)176.

Visto de perto, porém, o comportamento das pessoas comuns na Justiça não


parece ser abusivo. Muito pelo contrário, como sinalizam os dados apresentados a seguir.
A proporção de cumprimentos voluntários é alta, o uso de meios de defesa e recursos não
é frequente como se anuncia e as partes comuns estão abertas para os acordos. Em
paralelo, nem sempre os litigantes preferem abrir mão das formalidades processuais,
sobretudo quando litigam contra adversários mais poderosos – o que é o perfil de processo
padrão na Justiça brasileira, como revelam os dados do item anterior.

A análise do comportamento processual dos litigantes que acessam o Judiciário


oferece novos elementos para se pensar a regulação da litigiosidade no Brasil. E, nesse
aspecto, os dados revelam um comportamento de litigância que desmente o discurso mais
recente de reforma. Em não poucos casos, os dados registram atitudes que podem indicar
respeito às leis e à autoridade da Justiça. Em outros, é certo, uma litigância que pode ser
considerada abusiva. O desafio das políticas judiciárias é diferenciar um e outro
comportamento.

Os elementos para descrever os comportamentos processuais de litigantes


judiciais ainda parecem ser aqueles propostos por Galanter (1974). Segundo ele, há dois
tipos de litigantes: aqueles com experiência no uso das instituições (repeat players,
“jogadores habituais”) e aqueles que as usam eventualmente (one-shooters, “participantes
eventuais”). As vantagens estratégicas de que dispõem os primeiros neutralizam os
esforços dos segundos e os próprios escopos de justiça e igualdade da lei, da jurisdição e

176
Curioso que exatamente o mesmo discurso, inclusive com os mesmos termos e recursos persuasivos,
componha o “senso comum” sobre a litigiosidade nos EUA, país cujo sistema jurídico nos exportou as
tendências de controle da litigância e alguns instrumentos instituído no CPC. Segundo sintetiza Rhode
(2014, p 38),
“a população americana tem uma visão distorcida tanto dos problemas de litigância
quanto das razões que o perpetuam. O senso comum é o de que a culpa é de
demandantes ardilosos, advogados gananciosos e uma cultura de litigância. A mais
comum recomendação decorre diretamente desse diagnóstico: tornar a litigância
menos lucrativa e fazer com que as partes sucumbente arquem com os custos. Mas
essas analises superficiais descrevem mal nossos problemas e direciona mal nossas
respostas.” (No original, “the American people gests a distorted picture of both
litigation-related problems and the forces that perpetuate them. The conventional
wisdom is that fault lies with conniving claimants, rapacious lawyers, and a
contentious culture. The most popular prescriptions follow directly from that
diagnosis: make litigation less profitable and make losers pay its costs. But such
superficial analyses misdescribe our problems and misdirect our responses”).

151
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de qualquer outro mecanismo de regulação social. Dentre as vantagens do “jogador


habitual”, Galanter (1974) destaca o acúmulo de conhecimento, a expertise, o acesso a
especialistas, o ganho de escala e o custo inicial baixo, as relações informais que constrói
com servidores e juízes, o reconhecimento dos outros e o valor de sua reputação, a
possibilidade de jogar com as probabilidades e criar estratégias de menor perda e maior
ganho, o planejamento de resultados a longo prazo, a possibilidade de trabalhar para
formar precedentes favoráveis, entre outros tantos (v. cap.1).

As categorias do “jogador habitual” e “participante eventual” são tipos ideais.


Na prática, os litigantes judiciais adotam comportamentos mais próximos ou mais
distantes das categorias. Os três litígios mais comuns na Justiça brasileira polarizam esses
litigantes – os processos que envolvem relações de consumo nos JECs, as demandas
previdenciárias nos JEFs e as execuções fiscais (CNJ, 2017). Os dados disponíveis sobre
esses litígios sugerem um conjunto despadronizado e contraintuitivo de comportamentos
processuais, sobretudo por parte dos participantes eventuais. Conhecê-los ajudará a
compreender melhor os pontos sensíveis da litigância judicial no Brasil e desmistificará
alguns argumentos de senso comum a respeito da litigiosidade.

3.3.1. Os devedores réus em execuções fiscais

O comportamento processual dos litigantes em execuções fiscais pode se dizer


nacionalmente representativo. Essas ações compõem nada menos do que 38% do total de
processos judiciais no Brasil, 75% dos processos de execução pendentes. Também
oferecem uma perspectiva privilegiada para analisar os problemas de efetividade da
jurisdição, já que registram a marca recorde de 91% de taxa de congestionamento (CNJ,
2017, p. 111). Ainda, permitem acompanhar o aumento crescente da litigiosidade judicial
– o último relatório anual aponta leve decréscimo na quantia de casos novos de execução
fiscal, mas ele é pontual; a série histórica permanece com o registro de seguidos aumentos
anuais (idem).

O perfil dos processos de execução fiscal aponta conclusões surpreendentes


sobre o comportamento de devedores na Justiça. Segundo levantamento de âmbito
nacional feito pelo IPEA em 2009, as execuções fiscais federais se extinguem
predominantemente por pagamento integral da dívida (34%), seguido a alguma distância
pela baixa por prescrição (27,7%). Quando há citação pessoal, o pagamento sobe para

152
20 ALVES da SILVA, Acesso à Relatório
justiça, de
litigiosidade
Pesquisa
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

para 45% nos casos em que houve citação pessoal.12 Vale destacar, entretanto, que a extinção por prescrição
45% (IPEA, 2011, p. 20). Desnecessário frisar, a primeira hipótese representa o êxito da
ou decadência é o segundo principal motivo de baixa, respondendo por 27,7% dos casos. Em seguida, vem o
execução, e a segunda,
cancelamento o seu
da inscrição completo
do débito (17%) e fracasso. O julgamento
a extinção sem gráfico abaixo
do méritoilustra
(11,5%).asCausas
hipóteses
menoresde
de baixa incluem a remissão (8%), o julgamento de embargos favoravelmente ao devedor (1,3%), o julgamento
extinção das execuções federais, com destaque para as barras dos pagamentos e a da
de objeção de preexecutividade favoravelmente ao devedor (0,3%) e o declínio de competência (0,2%). Ao
prescrição ou decadência
final, 12,3% das sentenças edede cancelamento
execução da dívida.
fiscal são recorridas, em regra pelo exequente.

Figura
GRÁFICO 14:4 Tipos de baixa em ações de execução fiscal na Justiça Federal com
baixa em 2009
Distribuição dos processos de execução fiscal segundo o motivo da baixa

Elaboração própria.
Fonte: IPEA, 2011
Os motivos de baixa dos processos de execução fiscal demandam algumas reflexões. A primeira diz res-
peito aos dois principais motivos de baixa. É curioso observar que o volume de executivos fiscais extintos por
A quantidade
pagamento dee decadência
ou prescrição execuções fiscais extintas
é praticamente o mesmo,por
o quepagamento, primeira de
indica que a probabilidade coluna
o execu-no
tivo fiscal obter êxito ou fracassar absolutamente é quase idêntica.
gráfico acima, é bastante alta, principalmente se for considerado que são poucos os casos
A segunda
que conseguem diz respeito
avançar nasespecificamente à extinção por pagamento.
etapas do procedimento Desagregando-se
executivo: as modalidades
não há citação em 39%de
pagamento, tem-se que a quitação do débito em parcela única, perante o exequente ou o juízo da execução,
dos casos,
ocorre em apenas
em 41,3% dos15% seadesão
casos. A conseguiu alguma penhora
e fiel cumprimento a programa ede1/6 das penhoras
parcelamento da dívidafeitas chega
representam
a hasta36,3% das ações
pública. extintas por
Desses, pagamento.casos
raríssimos Contrariamente
alcançam ao senso comum, o grau dede
a expropriação respeito
bensaos
doprogramas
devedor
de parcelamento mostra-se extraordinariamente elevado: 64,4% dos executados que aderem a programas de
para cumprimento forçado da obrigação inadimplida. Ainda assim, os processos de
parcelamento cumprem integralmente com as obrigações pactuadas em pelo menos um dos casos.
execução fiscal alcançam um percentual de mais de 30% de satisfação da dívida (IPEA,
O que é surpreendente, no que diz respeito às modalidades de pagamento, é a pouca informação existen-
2011, tep.nos
19autos
e 20).
sobre quem, de que modo e quanto pagou ao exequente. Em regra, os juízes não têm qualquer
preocupação em verificar se a informação prestada pelo exequente é verdadeira, ou seja, se realmente houve o
O resultado
pagamento positivo
e qual o valor das execuções
efetivamente pago. Por esta fiscais
razão, em federais
20,9% dos convive
casos não secom
sabe a um resultado
modalidade de
pagamento adotada, e em 37,1% dos processos não consta qualquer informação
oposto, completamente negativo, que é a extinção por prescrição e a decadência – terceira sobre o valor efetivamente
apurado. Considerando-se apenas os casos em que esta informação encontra-se presente, pode-se afirmar que
coluna do gráfico acima. A chance de sucesso de uma execução fiscal, portanto,
cada ação de execução fiscal resulta na arrecadação média de R$ 9.960,48 em principal e R$ 37,69 em custas
praticamente equivale
judiciais (para a dedeseu
uma mediana completo
zero). Levando-sefracasso. E oosque
em conta apenas define
executivos se extintos
fiscais um caso concreto
por pagamen-
to, este valor sobe para R$ 23.751,18 em principal e R$ 100,83 em custas judiciais (para uma mediana de
culminará em um ou outro desses fins parece ser o comportamento adotado pelo réu: o
R$ 1.942,05 em principal e R$ 10,64 em custas judiciais).
pagamento voluntário da dívida ou a resistência aos atos executivos com a meta de obter,
em longo prazo,como
12 . Consideraram-se a pagamento,
prescrição intercorrente
para a produção (LEF,
deste dado, todos os casos em que asart. 40;
sentenças CPC,referiam-se
dos processos art. aos921).
seguintes Os
eventos:réus em
pagamento
(sem especificação), expropriação, conversão em renda, adjudicação e cumprimento de programa de parcelamento.
execuções fiscais podem tanto adotar o comportamento de devedores contumazes, que
seria o uso exauriente dos instrumentos de defesa e impugnação, quanto um

153
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

comportamento cívico desejável: o pagamento da obrigação objeto da execução.


Considerando o senso comum sobre comportamento de devedores em juízo, é
surpreendente que essa segunda opção seja até mais frequente do que a primeira.

O comportamento consistente em satisfazer voluntariamente a execução não


parece sugerir litigância abusiva, contrariamente ao que se costuma atribuir aos devedores
no Brasil. O resultado ambicionado em qualquer execução é o pagamento, naturalmente.
Isso, contudo, não torna presumível que esse seja o mais comum motivo de baixa em uma
execução forçada. A hipótese elementar para explicar o fenômeno seria a de que o
executado simplesmente não sabia da sua dívida ou, se sabia, não fora suficientemente
cobrado antes do ingresso em juízo. Se for assim, o processo judicial de execução terá
desempenhado uma função diferente daquela para a qual foi instituído, qual seja o
cumprimento forçado da obrigação.

O dado também sugere, portanto, que o procedimento da execução, a despeito


de todo o seu custo e recursos envolvidos, tem servido como instrumento de coerção do
devedor, uma estratégia de negociação ou um mero ato de notificação da existência da
dívida - ao que uma simples correspondência seria eficaz. Tendo tido conhecimento da
existência de uma ação judicial de execução contra si, o devedor saldaria a obrigação
inadimplida de imediato - no caso do ajuste de um programa de parcelamento ou de
pagamento voluntario -, ou no curso do processo - no caso da adjudicação ou conversão
em renda. Dentre os tipos de pagamento observados empiricamente, a modalidade de
parcela única e a adesão a programas de parcelamento são as mais comuns –
respectivamente, 41% e 36% dos casos. E, no caso dos programas de parcelamento, o
índice de cumprimento integral chega a 64% dos casos (IPEA, 2011, p.20).

Em confirmada essa hipótese, a utilização indevidamente do processo judicial


partiria do próprio desenho processual, não dos litigantes, como se costuma apontar. As
entrevistas realizadas na pesquisa e as análises dos dados coletados apontam que sim.

O uso das ferramentas processuais pelos litigantes registrado na pesquisa


também é mais baixo do que argumenta o senso comum, de que devedores judiciais têm
comportamento abusivo de litigância. Nas execuções fiscais, a frequência do uso de meios
de defesa e impugnação não é alta, e a respectiva taxa de êxito não passa dos 20%. Em
todas as execuções fiscais analisadas naquela pesquisa, os embargos foram utilizados em
6,5% dos casos e a objeção de preexecutividade, em 4,4%. As taxas de sucesso obtidas

154
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

foram de 20,2% e 7,4%, respectivamente (idem, p. 21). Como não há citação pessoal
válida em 43,4% dos casos (p. 18), é presumível que o uso de defesas seja menor. De
todo modo, não é esperado um uso tão infrequente como os dados anunciam. Na média,
aproximadamente 1 em cada 6 processos tem algum recurso. Como explica o relatório,
“cada execução fiscal sofre em média 0,03 agravo, 0,13 apelação e 0,02 recurso especial
e extraordinário” (IPEA, 2010, p. 21).

A percepção de que o abuso de recursos e defesas por parte dos executados são
responsáveis pela sobrecarga e o volume desses processos é parcialmente equivocada.
Elas respondem por um substancial aumento do tempo de tramitação dos processos, mas
isso apenas nos casos em que há defesas ou recursos, que, como atestam os dados, são
poucos. Na verdade, o que parece atravancar o procedimento executivo são outros fatores,
como a não localização do devedor (em 43%) e de bens para penhora, que acontece em
apenas 15% dos casos (IPEA, 2010, p. 19). E esses fatores, vale ponderar, podem ser
atribuídos tanto ao eventual comportamento de resistência material ou processual de
devedores (como a ocultação de si próprio ou de seus bens, e o abuso dos mecanismos de
defesa), quanto à qualidade dos créditos que se tem submetido à cobrança pela via judicial
(em geral, desprovidos de garantias patrimoniais ou mesmo de dados básicos sobre os
devedores, como endereço de localização e de seus bens). Eventual política judiciária ou
reforma normativa voltada a controlar a litigância exercida nos processos executivos
precisariam tomar em conta essas peculiaridades.

3.3.2. As partes que litigam nos juizados especiais cíveis

Os juizados especiais concentram uma parte representativa do volume de


processos na Justiça brasileira e o tipo padrão de litígio que processam é o que se pode
considerar de massa: consumidores individuais contra empresas prestadores de serviços
de grande escala. Por isso, conhecer o comportamento dos litigantes nos processos dos
juizados pode ajudar a avaliar o tipo e o nível da litigiosidade no Brasil como os cidadãos
usam a Justiça e os mecanismos processuais dispostos em lei. Pelo que se verá nos dados
apresentados neste item, também nos JECs, a realidade contradiz os argumentos de senso
comum.

Os juizados especiais concentram o maior número de características


impulsionadoras do acesso à justiça, ao menos segundo o receituário proposto por

155
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Cappelletti e Garth (1978) e que adotamos no Brasil (v. cap. 1, supra). Eles reúnem um
desenho processual menos formal, o incentivo à resolução consensual das disputas e a
oferta de tutela jurídica a novas categorias de interesses e direitos, a baixo custo – ou seja,
as três “ondas renovatórias” do acesso à justiça, segundo aqueles autores. A novidade é
muito bem sucedida na experiência brasileira. Os juizados, tanto estaduais quanto
federais, receberam pronta e maciça adesão da população brasileira, que passou a lhe
submeter suas disputas de interesses. E, com isso, contribuíram, como nenhuma outra
política judiciária, para a redução da “litigiosidade contida” e os “conflitos não
jurisdicionalizados” (WATANABE, 1985, p. 2). Ainda que, a longo prazo, isso tenha se
refletido no aumento do volume de processos judiciais, o objetivo inicial fora alcançado.
Os juizados são um caso de sucesso no Brasil.

Por outro lado, a experiência dos juizados especiais no Brasil evidencia a


dificuldade de se concretizar a tal “mudança de cultura” preconizava nos seus princípios.
Originalmente, previa-se que o “novo processo” dos juizados especiais, menos formal e
consensual, transbordasse suas fronteiras e influenciasse a litigância formal e
adjudicatória dos procedimentos da justiça comum. Na prática, segundo o que depreende
dos dados a respeito, parece ter ocorrido o inverso: os juizados teriam sido contaminados
pelo formalismo processual do rito ordinário e a burocracia da Justiça comum, a despeito
de toda sua carta de princípios em sentido oposto. A análise do comportamento processual
dos litigantes em juizados especiais ilustra ambos esses argumentos. Recorro, para tanto,
a um dentre outros importantes estudos sobre os juizados especiais cíveis feitos no Brasil.

Levantamento recente feito em juizados especiais de cinco capitais do país, por


meio de cooperação entre a Universidade de São Paulo e o CNJ (BRASIL, 2015),
encontrou três tipos principais de processos/partes: aqueles movidos por pessoas físicas
contra pessoa jurídica, geralmente consumidores contra fornecedores; as ações de
cobrança movidas por pessoa jurídica contra pessoa física; e as disputas comuns entre
pessoas físicas, que podem ser relações de vizinhança, pequenas cobranças ou outras
disputas “domésticas”. O comportamento processual dos litigantes no JEC varia
conforme esses tipos de litígios.

O primeiro destaque da pesquisa é a confirmação, constatada em estudos


anteriores (CHASIN, 2007), de que as partes geralmente preferem estar acompanhadas
por advogados, ainda que não sejam legalmente obrigadas. A facultatividade da

156
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

representação jurídica profissional, instituída com dificuldade pela Lei 9.099/95, não
conta com adesão majoritária dentre os litigantes dos juizados. Diferentes motivos
explicam esse comportamento, mas todos eles parecem fundados na segurança que o
profissional proporciona aos litigantes.

Não há surpresa quanto às pessoas jurídicas, que normalmente já litigam por


Partes&com&ou&sem&advogado&
intermédios de seus advogados e advogadas. Já as pessoas físicas, a quem a faculdade da
Chamou*a*atenção*a*revelação*de*que,*a*despeito*do*facultativo*uso*de*advogados*nos*
dispensa do advogado poderia beneficiar mais diretamente, costumam adotar dois
juizados* especiais* cíveis* em* primeira* instância* nas* demandas* de* até* 20* salários* mínimos,& a&
comportamentos distintos. Em litígios contra outras pessoas físicas, abrem mão da
maciça&maioria&dos&litigantes&está&acompanhada&de&advogados&particulares.**
representação profissional. Porém, em litígios contra pessoas jurídicas, optam quase
sempre pelo acompanhamento de um advogado (BRASIL, 2015). O gráfico abaixo ilustra
A*excepcional*presença*de*partes*sem*advogado*foi*observada*com*maior*frequência*
anos*juizados*CG*Moreninhas,*BE*Guamá,*BE*Idoso,*BE*Trânsito,*SP*Santana,*SP*Santo*Amaro*e*
participação de representantes judiciais pelas partes em juizados especiais cíveis de
cinco capitais do país. Em apenas dois juizados, o percentual de processos em que as
FL*Trindade.*De*modo*geral,*são*juizados*que*atendem*a*bairros*periféricos*e*de*renda*média*
partes não estão acompanhadas de advogados é levemente maior; ainda assim, minoria
intermediária*e*baixa.*
dos casos.
Gráfico!14:!Representantes!judiciais!das!partes!por!juizado67!
Figura 15: Tipo de representante judicial das partes nos juizados
especiais cíveis de cinco capitais do país, em 2012

!
*
Fonte: Brasil, 2015

Compartimentalizando*o*dado*pela*natureza*da*parte*(física*ou*jurídica,*autor*ou*réu),*
Quando acompanhadas por advogados, os litigantes presumivelmente
os* dados* indicam*
comportam-se de modoque* os* autores&
distinto pessoa&
quanto ao uso dosfísica& geralmente&
instrumentos estão& disponíveis.
processuais acompanhados& de&
advogados&quando&acionam&pessoas&jurídicas,*e*parecem*se*valer*mais*da*prerrogativa*legal*
Observa-se, nesses casos, o uso mais recorrente de ferramental técnico e práticas formais.
Ade*
tutela
não*afinal
usar* o*obtida, se resolução
advogado* consensual
em* demanda* oupessoas*
contra* condenação, também
físicas.* varia juizados*
Em* alguns* conformeespecíficos,*
o
perfil
como*das
* BE*partes e o*
Idosos,* o uso*
acompanhamento de advogados.
de* advogado* particulares* por*Oator*
acordo emfísica*
pessoa* audiência,
parece*por
menor* em*
ambos* os* tipos* de* demandas.* O* inverso* parece* acontecer* em* SL* Ceuma,* em* que* os* autores*
pessoa*física*parecem*utilizar*de*auxílio*profissional*em*ambos*tipos*de*demandas.****
157
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

exemplo, é um resultado menos comum quando a partes estão acompanhadas de


advogados (BRASIL, 2015).

Analisando o dado mais de perto, entretanto, o acompanhamento da parte por


advogado não é, em si, a razão pela qual esses processos judiciais têm diferentes
processamentos e resultados. O que diferencia o caso e, inclusive motiva a busca por um
auxílio profissional, é o tipo de disputa; mais especificamente, o perfil das partes
envolvidas e a existência de assimetria entre elas. Como evidencia o gráfico acima, o
acompanhamento por advogados é preferência sobretudo nos litígios em que as partes são
desiguais, como aqueles que polarizam pessoa física e jurídica.

Os comportamentos processuais e os resultados dos processos variam, afinal,


conforme a configuração de partes envolvidas. Nos litígios contra pessoas físicas,
movidos por outras pessoas físicas ou por pessoas jurídicas, o resultado mais comum é o
de sentenças homologatórias – provavelmente, de acordos. Já nos litígios contra pessoas
jurídicas, os pedidos indenizatórios por danos morais são mais comuns e em valores mais
altos, e as sentenças condenatórias em pagamento de quantia são maioria (BRASIL, 2015,
p. 40 e 41). Quando o réu é pessoa física e o autor está acompanhado por advogado, não
parece haver alteração significativa no percentual de acordos. Já naquelas em que o réu é
acompanhado por advogado, que são a maioria, a ocorrência de acordos é menor (idem,
p. 48).

O uso dos instrumentos processuais disponibilizados em lei também varia


conforme o tipo de parte. Em geral, é baixo o uso de recursos de impugnação de decisões
judiciais pelas partes nos JECs – contrariamente ao senso comum, detectado pela
pesquisa, inclusive, na fala de juízes e servidores entrevistados (idem, p. 42). E,
novamente aqui, a assimetria entre as partes afetou o seu comportamento processual. Nos
processos em que pessoas físicas enfrentam pessoas jurídicas, o uso de recursos foi maior
do que em outros tipos de processo177.

Por fim, as peças processuais utilizadas pelas partes, dado que denota o tipo de
litigância praticada, também sugerem que os litigantes judiciais se comportam visando o
máximo de proteção processual. O ato de submissão de uma disputa para apreciação nos

177
E, como detalha o relatório da pesquisa, o uso de recursos também foi registrado com maior frequência
nos juizados especiais cíveis de São Paulo (BRASIL, 2015, p. 42).

158
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

JECs pode, segundo a lei, ser feito por escrito pela própria parte previamente ou pela
forma oral, seguido de atermação pelo próprio juizado. Segundo a pesquisa, o uso da
atermação, embora identificado com maior frequência nos processos movidos por pessoa
física, também foi registrado em processos movidos por pessoas jurídicas, sobretudo em
juizados localizados em bairros de menor renda média.

Já as demais peças, apresentadas no curso do processo, são em geral mais


volumosas quando as partes estão acompanhadas por advogado. E, dentre os instrumentos
utilizados, as petições de interposição de recursos inominados, em que o
acompanhamento por advogado é obrigatório, são as mais extensas. Como fica claro pelo
exame do gráfico abaixo, a diferença entre o volume de peças processuais das partes
acompanhadas de advogados é bem maior do que o das partes litigantes por si próprias.
Gráfico! 18:!
Figura 16:Quantidade!
Quantidademédia! de! páginas!
de páginas de de! peças!
peças processuais,!apresentadas
processuais por! advogado!por
do!réu!e!juizado!
partes com ou sem advogado, nos juizados especiais cíveis de cinco capitais
do país, em 2012

!
* Fonte: Brasil, 2015

Gráfico! 19:! Quantidade! média! de! páginas! de! peças! processuais! dos! autores!
Conjuntamente, esses dados sugerem que a variável em última análise
pessoa!física,!por!advogado!do!autor!e!juizado!
determinante do comportamento processual das partes não é, simplesmente, o
acompanhamento profissional por advogado. Sem dúvida, como os dados atestam, sua
participação afeta consideravelmente os atos praticados no processo, desde a celebração
de acordos até a interposição de recursos e, inclusive, o uso mais extenso da retórica. Uma
interpretação simplista poderia argumentar que, portanto, a presença de advogados
dificulta que os juizados alcancem os resultados que dele se espera. Mas essa
interpretação desconsideraria a complexidade da questão.

159
!
!
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Sob uma análise mais detida, os dados parecem sugerir que a escolha da parte
pelo acompanhamento profissional por advogado é determinada por um outro fator,
predominante: o grau de assimetria entre os litigantes. Se a disputa é entre iguais, como
os litígios apenas entre pessoas físicas, o advogado é dispensado. Quando pessoas físicas
litigam contra pessoas jurídicas, que certamente estarão acompanhadas por advogados, a
pessoa física, mesmo que autora, sente-se mais segura estando também acompanhada por
advogado. Elas podem até demandar a intervenção judicial por si próprias, fazendo uso
da atermação. Mas, com o caminhar do processo, as dificuldades ao exercício efetivo do
contraditório podem lhe impulsionar a procura por auxílio profissional.

Os dados sugerem, enfim, que os litigantes buscam, na verdade, maior segurança


processual quando recorrem a um advogado, ainda que isso não seja necessário. O risco
de que a presença do advogado possa até diminuir a probabilidade de um acordo em
audiência e onerar o litigante com um custo dispensável. Mas isso não parece determinar
a sua escolha tanto quanto o risco de ser prejudicado com uma decisão desfavorável. Em
outras palavras, do ponto de vista das partes, quando o litígio a coloca em situação de
inferioridade, o custo do processo e a pacificação da relação importa menos do que o risco
de uma eventual injustiça. Nesse caso, a garantia das formas processuais lhes parece mais
importante do que a informalidade, a economia, a celeridade e o consenso que norteiam
os juizados. Essa perspectiva, ainda que discutível, precisaria ser levada em conta pelas
políticas judiciárias e reformas legislativas acaso pretendam-se efetivas.

3.3.3. Os pensionistas que buscam os juizados especiais federais

Um terceiro tipo de disputa comumente judicializada no Brasil é a que envolve


a seguridade social oferecida pelo Estado. Diante da negativa da concessão de benefícios
previdenciários ou assistenciais pela esfera administrativa - no caso, o Instituto Nacional
de Seguridade Social (INSS) -, ou independentemente disso, cidadãos recorrem ao Poder
Judiciário para pleitear sua intervenção e a concessão dos benefícios. Aqui, mais uma
vez, o modelo dos juizados especiais é a arena utilizada para essa litigância; nesse caso,
no âmbito da Justiça federal.

Os juizados especiais federais foram criados em 2001, seis anos após os juizados
especiais estaduais, com o expresso propósito de atender a uma demanda reprimida da
população de forma ágil, rápida e econômica e, também, reduzir o congestionamento

160
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

processual nas varas da Justiça federal (Exposição de Motivos da Lei 10.259/2001)178. A


adesão da população foi imediata e ainda mais intensa do que aos juizados estaduais. Em
seu terceiro ano de implantação, os juizados especiais federais já recebiam mais de 50%
do volume de processos da justiça comum federal (IPEA, 2012, p. 14).

Levantamento do IPEA com o Conselho da Justiça Federal (CJF) avaliou


diferentes dimensões envolvidas no acesso da população aos juizados especiais federais
(JEF). Considerando-se o perfil dos usuários, os dados coletados revelam que,
diferentemente do que se observa nos JEC, a presença de pessoas físicas no polo ativo
dos processos é praticamente absoluta (99,8% dos casos), relativamente equilibrados
entre homens e mulheres, com idade entre 46 e 60 anos. Como regra, trata-se, portanto,
de litígios judiciais movidos por pessoas físicas, em geral “participantes eventuais”,
contra órgãos da administração pública, representados em juízo por profissionais
habituados aos processos e o funcionamento da Justiça. Esse perfil particular de litígio
influencia o comportamento processual adotado pelas partes.

De modo geral, a percepção da população sobre os JEF é bastante positiva, como


detalha o trecho transcrito abaixo:

[os usuários] reconhecem que, pela primeira vez, têm a oportunidade de


apresentar suas demandas ao Judiciário e de ter acesso pleno à justiça. Os
juizados representam para essas pessoas uma Justiça mais próxima, menos
elitista e mais apropriada a suas necessidades. Essa percepção é ainda mais
reforçada pela comparação com as agências do Executivo, em especial o INSS,
que seriam menos estruturadas, principalmente no que diz respeito ao
atendimento. “Aqui resolve”, “aqui nos escutam” são frases comuns proferidas
pelos usuários, quando se referem aos juizados. (IPEA, 2012, p. 99).

Como nos JEC, os autores “pessoa física” preferem litigar acompanhados de


advogados, o que nos JEF chega a 86,4% (IPEA, 2012, p. 101). Segundo o relatório, as

178
Conforme item 2 da Exposição de Motivos, “a Emenda Constitucional nº 22, de 1999, acrescentou §
único ao art. 98 da Magna Carta com o propósito de que lei federal disponha sobre a criação dos juizados
especiais no âmbito da Justiça Federal, de modo que as lides de menor potencial econômico ou ofensivo
possam ser resolvidas rapidamente com maior agilidade e baixo custo, fazendo com que a primeira instância
federal siga o exemplo da bem sucedida experiência dos Juizados Especiais Estaduais, criados pela Lei nº
9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dê outras
providências”. E, conforme o respectivo item 6, “a proposição desafogará a Justiça Federal de primeiro e
segundo graus e "propiciará o atendimento da enorme demanda reprimida dos cidadãos, que lhe não podem
ter acesso à prestação jurisdicional por fatores de custos, a ela não recorrem pela reconhecida morosidade
decorrente do elevado número de processos em tramitação (…)”.

161
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

partes disseram que acabam contratando advogado desde o início do processo porque a
dispensa legal se limita à primeira instância (Lei 10.259/01) (idem, p. 100).

A jurisdição prestada pelos JEF é caracterizada, no discurso geral, como uma


forma de assistencialismo social por meio da Justiça. Os próprios autores, bem como os
servidores judiciais e representantes da União (polo passivo dos processos) incorporam o
discurso do caráter humanitário e assistencialista da jurisdição prestada pelos JEF (IPEA,
2012, p. 99).

Ligado talvez ao apontado caráter assistencial dos JEF, o cidadão-demandante


quase sempre desempenha um papel secundário nesses processos, típico das limitações
do “participante eventual” diante do “jogador habitual”. Segundo o levantamento, os
autores dos processos são

majoritariamente [de] pessoas de baixa renda, com escolaridade precária, que


não possuem as informações necessárias sobre seus direitos ou sobre o
funcionamento do procedimento judicial, são mal instruídas (nos casos em que
têm representante legal constituído) e não são protagonistas de “seu” processo.
(idem, p. 97-98).

Embora titulares do direito de ação e pretensos titulares do direito em juízo, sua


participação é “reduzida à prestação de depoimento pessoal e sujeição à perícia médica.
“ (IPEA, 2012, p. 99). A audiência de conciliação, a perícia e a audiência de instrução e
julgamento são os principais atos realizados nesse tipo de processo e, em todos, o autor
têm participação secundária. Nos dois primeiros, os papéis determinantes são
desempenhados por órgãos auxiliares – o conciliador e o perito, respectivamente. E na
audiência de instrução e julgamento, a condução é feita pelo juiz, com colaboração ativa
da parte ré – normalmente, um procurador de órgãos da administração pública federal.
Nesses três eventos, a participação do cidadão-autor é relativamente passiva, limitada a,
respectivamente, submeter-se ao exame pericial – normalmente respondendo a perguntas
do médico perito -, aceitar ou não propostas de acordo que lhe são submetidas em
conciliação e a responder perguntas feitas ou encaminhadas pelo juiz durante tomada de
depoimento em instrução (IPEA, 2012, p. 97). Do ponto de vista substancial, a relação
jurídica processual desenvolvida nesse tipo de litígio envolve outros atores que não o
cidadão-demandante.

Nos JEF, os exames periciais acontecem ordinariamente, diferentemente do que


ocorre nos juizados estaduais, em que é rara a admissibilidade. A perícia médica é a mais

162
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

comum e costuma acontecer, segundo os dados, em cerca de 80% a 90% dos casos179.
Em alguns casos, há perícias sociais, realizadas por assistentes sociais ou mesmo oficiais
de justiça, e perícias contábeis. No caso das perícias médicas, a descrição da sua dinâmica
parece mais um atendimento prestado pelo serviço de saúde do que um contraditório
processual perante um órgão jurisdicional. O trecho abaixo é esclarecedor a esse respeito:

A espera das perícias médicas é sempre um local onde as partes costumam


trocar experiências e impressões sobre o médico, o INSS, o Sistema Único de
Saúde e se queixar de doenças e dores. Em alguns juizados, a espera chega a
se assemelhar à de um ambulatório público. As pessoas normalmente chegam
antes da hora marcada e acompanhadas de um parente ou amigo. Dificilmente
veem-se advogados em companhia das partes, que não raro carregam consigo
uma sacolinha plástica na qual guardam exames médicos, receituários de
medicação, caixas de medicamentos que foram ou estão sendo utilizados,
radiografias, laudos médicos, entre outros. Muitas pessoas mostram-se
conhecedoras de sua patologia, sabendo inclusive o número cor- respondente
na Catalogação Internacional de Doenças (CID). (IPEA, 2012, p. 130-131)

Embora os exames periciais sejam um ato processual no sentido formal, de


instrução processual, cujos resultados costumam influenciar decisivamente o
convencimento judicial nos JEF, a dinâmica e o comportamento das partes não
concretizam aspectos de contraditório ou ampla defesa característicos da cláusula do
devido processo legal. Do contrário, o comportamento das partes é bastante passivo. E
elas não são acompanhadas, quer por familiares quer por advogados180.

Os peritos entrevistados relatam ser comum as partes mentirem durante os


exames (por exemplo, “casos em que o periciando se equivoca ao mostrar o braço
machucado, alternando o direito e o esquerdo; ou em que caminha mancando de forma

179
Especificamente, “a perícia médica é ato habitualmente realizado nas demandas por auxílio doença,
aposentadoria por invalidez e benefício assistencial para pessoa com deficiência, ocorrendo,
respectivamente, em 90,5%, 91% e 78% dos casos” (IPEA, 2012, p. 125).
180
Segundo o relatório, o acompanhamento familiar acontece nos casos de perícias psiquiátricas. Quanto
ao acompanhamento por advogado, o relatório informa uma polêmica sobre essa possibilidade no âmbito
do TRF da 4a Região:
“Foi identificada no TRF 4 uma polêmica sobre a pertinência ou não de o
advogado se fazer presente durante a realização da perícia. A polêmica surgiu
a partir
de ações contra médicos movidas por advogados, que reivindicavam
autorização
para participar das perícias, sob a alegação de que seus clientes,
ao ficarem sozinhos com os peritos, sentiam-se desprotegidos. Contudo,
segundo opinião de peritos, o único objetivo desses advogados é compreender
a sistemática da perícia para poder melhor instruir seu cliente e criar estratégias
para driblar o laudo pericial no caso de ser desfavorável à parte (como, por
exemplo, retirar ou não anexar exames ao processo).” (IPEA, 2012, p. 131,
nota 39).

163
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

exagerada e desproporcional; ou em que apresenta exames claramente adulterados.”


IPEA, 2012, p. 132). O controle sobre esses desvios é feito pelo próprio perito. Alguns
deles recorrem ao registro visual das perícias para comprovar fraudes (idem). O juiz,
nesses casos, exerce pouca participação no que seria, na lei processual, um controle sobre
a conduta das partes (CPC, art. 139). De modo geral, há pouco contato entre o juiz e o
perito que não seja sobre honorários e prazos para entrega dos laudos - “muita distância
entre o perito e o juiz”, como atestou um dos entrevistados (idem, p. 132).

Nas audiências, a participação submissa dos cidadãos autores fica ainda mais
evidente. As audiências de conciliação não são tão frequentes nos JEF quanto são nos
JEC -acontecem em apenas metade dos juizados federais (51%); e são menos
profissionalizadas – juízes conduzem 42% das audiências e os servidores, 22%; ambos
não necessariamente têm treinamento específico em conciliação e mediação (idem, p.
135). Durante as audiências de conciliação, não raro os próprios procuradores
representantes dos réus dirigem perguntas diretamente à parte contrária, mesmo quando
o juiz está presente (idem, p. 137). Se por um lado, essa informalidade viabiliza a
negociação direta entre as partes, por outro a inquirição pelos procuradores intensifica
ainda mais a assimetria entre as partes. As perguntas feitas visam aferir a existência de
um direito a ser reconhecido, o que é típico da instrução processual. Quando a resposta
confirma a probabilidade de existir o direito demandado, o representante do réu formula
uma proposta de acordo. Muito pouco disso é compreendido pela parte autora, que sequer
entendera que estava negociando um direito seu. Como esclarece o relatório, “chama à
atenção a falta de percepção da parte autora de que está sendo realizado um acordo sobre
seus direitos” (idem, p. 137).

Não se pode dizer, no caso, que o cidadão autor tenha se engajado em uma
negociação e disposto livremente sobre uma proposta de acordo – que, inclusive, costuma
ser de cerca de três quartos do que ele teria direito a receber (idem, p. 144). Ele
simplesmente respondeu a perguntas que lhe foram feitas por dois outros atores que ele
desconhece, mas que conhecem o ambiente, o funcionamento e, não raro, conhecem um
ao outro. Como constata a pesquisa, os usuários confundem quem seria, de fato, o juiz e
a parte contrária: “nas varas visitadas, não foi incomum o usuário não conseguir
identificar o juiz, confundindo-o com o procurador do INSS” (idem, p. 142).

164
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A pesquisa traz um relato de observação de audiência nos JEF que ilustra com
clareza o desconhecimento do usuário quanto ao processo judicial e o seu papel nessa
dinâmica. Neste caso, o grau de informalidade teria contribuído para compor a confusão
quanto a autoridade e atuação dos atores processuais, com evidente prejuízo para o seu
comportamento, inclusive negocial.

Na audiência presenciada, o juiz, jovem, incorporando os princípios da


informalidade nos juizados, apresenta-se sem toga, utilizando um discurso
simples e direto com a parte. Diante dele, estava presente uma procuradora do
INSS, com idade aproximada de 50 anos, formalmente vestida. A procuradora
ganha protagonismo ao inquirir diretamente a parte durante a audiência. Ao
final, perguntado se havia compreendido o que havia acontecido na sala, a
parte, curiosamente, identificou como juiz a procuradora do INSS. Ao ser
informado de seu equívoco, espanta-se: “nossa, tão novinho, tão bonzinho.”
(juizado adjunto, 3a Região)” (IPEA, 2012, quadro 34, p. 142)

A assimetria entre os litigantes e a atuação limitada do participante eventual nos


processos judiciais são ainda mais evidentes na descrição das audiências de instrução e
julgamento. Em determinados pedidos de benefício, as respostas do autor são
fundamentais para o convencimento acerca da existência do direito. Por exemplo, nos
pedidos de benefício por desempenho de atividade rural, a parte é indagada quanto a seus
conhecimentos específicos da área – como os modos de produzir determinada espécie, as
épocas da produção e colheita, etc. A parte é, inclusive, inspecionada fisicamente para se
avaliar a presença de consequências que esse tipo de trabalho gera para a pessoa – o juiz
avalia, por exemplo, a calosidade das mãos e os maltratos do Sol sobre a pele (idem, p.
141). Não bastasse o autor não confrontar os demais presentes e comumente sequer
entender as perguntas que lhe são dirigidas, o representante da parte contrária, que
acompanha o depoimento, consegue captar a formação de convencimento do juiz e, se for
o caso, agir para evitar um resultado desfavorável. Segundo observado pela pesquisa,
quando o procurador do réu percebe que o magistrado estaria convencido da procedência
do pedido, ele faz propostas de acordo ao autor, geralmente menores do que o valor
pedido (idem, p. 144).

Sequer a participação do juiz consegue equilibrar a assimetria entre os litigantes.


Na verdade, a estrutura organizacional do processo, em que um mesmo representante dos
réus, porque acompanha uma série de audiências, adquire um conhecimento qualificado
sobre o processo cognitivo do juiz ou juíza, acaba por intensificar a situação de assimetria.
O relato de uma observação de audiência ilustra adequadamente o argumento, com

165
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

destaque para a descrição das etapas que antecedem um acordo e uma decisão, e qual o
papel diferenciado desempenhado por cada ator da relação processual:

Nas audiências observadas foi possível perceber que, muitas vezes, o juiz
“sugere” sutilmente a proposição de acordo pela parte ré simplesmente por
questionar seu representante legal sobre essa possibilidade após a oitiva dos
depoimentos e declarações. Para este, essa pergunta é como uma dica de que o
juiz foi convencido da legitimidade do pleito e de que, se tiver que julgar a
ação, o fará favoravelmente ao autor. Segue-se, então, o acordo, aqui também
proposto se- guindo um padrão e aceito sem qualquer questionamento da parte
autora ou de seu representante. Não havendo proposição de acordo, o juiz deve
decidir a questão (IPEA, 2012, p. 144).

O advogado da parte autora também não parece balancear suficientemente a


assimetria entre os litigantes. Os dados indicam que a representação judicial nem sempre
se traduz em defesa efetiva, embora a parte reconheça ser ainda pior estar
desacompanhada de advogado.

Na avaliação das partes, há vantagens e desvantagens no acompanhamento por


advogados. A livre escolha, a orientação personalizada, o acompanhamento da tramitação
dos processos e a intermediação da parte com a burocracia judiciária foram vantagens
destacadas pelas partes (idem, p. 102). Mas são as desvantagens apontadas pelas partes
que dizem algo sobre o potencial limitado dos advogados para no balanceamento da
assimetria característica desses litígios. Foram relatados casos de captação inapropriada
de clientes, apropriação indevida de valores, negligência no acompanhamento processual,
má instrução do processo, atuação temerária, contratos de honorários abusivos e não
expressos (não raro, não há contratos escritos), falta de controle pela OAB, entre outros
(idem, p. 103).

A mera presença de representação por advogado não assegura defesa efetiva da


parte autora. Segundo a percepção dos juízes, servidores e procuradores entrevistados
pela pesquisa, os representantes geralmente são jovens, inexperientes e nem sempre têm
conhecimento da matéria e da prática previdenciária (IDEM, p. 102). Em regra, são
advogados particulares (85,9%), mas há também advogados voluntários (cadastrados em
programas de assistência judiciária gratuita), dativos (nomeados ad hoc pelo juiz) ou
aqueles disponibilizados por faculdades de direitos (por meio de núcleos de prática
jurídica). Os juizados federais, inclusive, não contam com serviços próprios de assistência
judiciária gratuita em 84% dos casos e a Defensoria Pública da União atua em menos 1%
dos casos – ou seja, praticamente não atua nos JEF (idem).

166
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O acompanhamento por advogados ou advogadas experientes parece raro no


caso dos demandantes, o que explica o desconhecimento e a limitada atuação dessas nos
atos processuais mais decisivos. Dentre os fatores negativos da representação por
advogado mencionados nas entrevistas, um deles é justamente a falta de “assistência
devida a seu cliente, deixando-o indefeso na interação com os demais atores, por exemplo,
nas audiências em que são propostos acordos para extinção dos processos” (Idem, p. 103),
dado que confirma a vulnerabilidade processual dos participantes eventuais nesses casos,
ainda que acompanhados de advogados e sob a presença do juiz.

Por fim, quanto à frequência com que os litigantes usam os instrumentos


processuais de impugnação, como defesa e recursos, os dados coletados nessa pesquisa
confirmam os de levantamentos anteriores (IPEA, 2012). Em geral, os mecanismos de
defesa e recursos são menos frequentes do que aponta o discurso de senso comum. O
recurso inominado, típico dos juizados especiais, acontece em não mais do que 25% dos
JEF. Os demais recursos têm frequência muito menor: 3,3% de embargos de declaração,
1,4% de agravos ou requerimentos de revisão e 1,11% de recursos extraordinários. Seus
resultados também não são tão expressivos: 20% de reforma das decisões impugnadas e
2,3% de anulação (p. 152)181.

4. Algumas notas a partir dos dados sobre a litigiosidade no Brasil

Este capítulo evidenciou, na sua primeira parte, que, no Brasil, o termo “acesso
à justiça” foi internalizado ao debate sociojurídico na década de 1980 como caminho para
a reconstrução das instituições, e foi usado sob diferentes vieses pela ciência e pela
legislação. No direito, a perspectiva institucional deu o tom da produção teórica e
legislativa; nas outras ciências sociais, o olhar soube se posicionar também de uma
perspectiva social (“de baixo para cima”). Na legislação, a sequencia de reformas
processuais alterou aos poucos o sentido do termo até chegar, no CPC de 2015, a um
rearranjo de valores e tendências distantes da ideia original182.

181
O que parece compor a sensação comum de que os recursos atravancam o andamento dos processos
judiciais, presente no discurso reformador recente, é o prolongamento temporal que geram. Nos JEF, os
casos sem recurso tramitam em uma média de 493 dias, ao passo que os casos com recursos chegam à
média de 1.032 dias.
182
Como a preocupação suprema com a eficiência do sistema, segurança jurídica, economia processual,
padronização de resultados e eliminação do estoque. Nenhum desses elementos integram a ideia original

167
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Na segunda parte, deixou claro que o Brasil finalmente dispõe de dados que
podem orientar o desenho de um sistema de justiça e de processo efetivo e recorre a eles
para descrever o nosso perfil de litigiosidade183.

Os poucos dados existentes a respeito da litigiosidade que precede a


judicialização revelam, confirmando algumas previsões do capítulo 1, um quadro que
contraria o senso comum e o discurso hegemônico.

Em primeiro lugar, o Brasil, a despeito do que anuncia, não é um país


excessivamente litigante – ou “beligerante”, termo também utilizado no debate – os dados
e conclusões dos itens 2.1, 2.2 e 3.2, do cap. 2, supra, são bastante claros a esse respeito.

Em segundo, a litigiosidade é concentrada em alguns atores sociais (v. itens 3.1


e 3.2 do cap. 2, supra), o que pode gerar a sensação de uma litigiosidade exacerbada.

Em terceiro, os litígios judiciais em regra são assimétricos, como apontam os


dados dos itens 3.2, do cap. 2, supra. A questão da desigualdade na resolução das
disputas, portanto, é central para qualquer política judiciária, provenha ela de fonte
legislativa ou administrativa, tenha natureza material, processual ou organizacional, bem
como pela aplicação da lei posta por meio da jurisdição.

Por fim, contrariando a conclusão que decorre da baixa avaliação da Justiça pela
população, é surpreendente que, ainda assim, as pessoas prefiram litigar no Poder
Judiciário – como concluem os itens 2.2, 3.2 e 3.3 do cap. 2, supra. Vale registrar que
essa preferência é mais intensa quando as pessoas litigam contra uma parte contrária mais
poderosa.

O próximo capítulo conjugará essas conclusões àquelas nascidas da


sistematização teórica feita ano capítulo 1 para avaliar o potencial de efetividade da nova
legislação processual civil brasileira.

de acesso à justiça, mas tem composto, no debate das políticas públicas judiciárias, o conteúdo conferido
ao termo.
183
Os dados disponíveis versam principalmente sobre a estrutura judiciaria oficial e a movimentação
processual nos tribunais. Há, por outro lado, menos informação organizada sobre a resolução de disputas
que acontece no sistema social, antes de sua judicialização - que este capítulo revelou ser essencial para
compreender o fenômeno da litigiosidade e prescrever sua regulamentação normativa.

168
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

III – Litigiosidade e acesso à justiça no processo civil


brasileiro
O Brasil acaba de instituir um novo sistema legislativo processual no âmbito
cível, composto por um Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16 de março de 2015)
e uma Lei de Mediação (Lei 13.140, de 26 de junho de 2015). Juntos, esses diplomas
trazem novidades capazes de alterar o modelo processual civil brasileiro e o perfil da
litigância judicial e extrajudicial. Este capítulo é destinado a apresentar aspectos do novo
perfil, identificados a partir de uma comparação com os sistemas anteriores e os princípios
e valores que fundam os mecanismos ora instituídos.

As novidades da legislação recente concretizam tendências já observadas em


outros sistemas processuais, de civil law e de common law, e que reproduzem um arranjo
de valores que reorganiza o quadro de princípios processuais. Este capítulo trabalha no
nível das justificativas e do enquadramento valorativo desses princípios e dos
mecanismos de destaque na legislação processual recém instituída.

Dentre as questões úteis para orientar a aplicação das novas leis, a dos valores
que orientaram as mudanças parece ter importância diferenciada. A doutrina nacional tem
produzido elaborados estudos a respeito do novo Código, parte dos quais dedica
substanciosa atenção às premissas e valores que guiaram as mudanças184. O caráter de

184
Exemplificarmente, os excelentes estudos de Daniel Mitidiero sobre o princípio da colaboração no
processo civil (que se preocupa em sedimentar os seus pressupostos sociais, lógicos e éticos; MITIDIERO,
2011) e sobre os precedentes (que recupera as transformações na teoria da interpretação, MITIDIERO,
2017), o igualmente excelente trabalho de Luiz G. Marinoni sobre os precedentes (que busca na análise
weberiana a raiz das diferenças culturais entre os sistemas de civil law e common law quanto à racionalidade
jurídica e a ideia de previsibilidade, MARINONI, 2016), o completo e não menos excelente trabalho de
Antônio P. Cabral sobre as convenções processuais (que recupera a origem e trajetória do caráter público
do processo civil e o caminho paralelo que sempre percorreu a sua latente natureza privada, CABRAL,
2016). Sem mencionar, apenas pela limitação do espaço, ainda que de merecimento inquestionável, outros
valiosos estudos que a doutrina nacional tem produzido nas últimas décadas. Analisada historicamente, a
ciência processual de tradição italiana sempre reservou lugar de destaque, dentre suas premissas, para a
relação com os preceitos sociais e políticos. Em clássicos como Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei, além
da sofisticação técnica processual, há uma consciência clara das relações sociais e forças políticas que dão
substância ao direito e desencadeiam os litígios. Na sedimentação da doutrina processual brasileira, a
produção das décadas de 1970 e 1980 estava muito conectada com a transformação do contexto social e
político que resultaria na Constituição Federal de 1988. As análises de Barbosa Moreira, Ovídio Baptista,
Kazuo Watanabe, Ada Grinover, Cândido Dinamarco, Calmon de Passos, entre outros, sedimentam-se
sobre premissas culturais e ideológicas, mais ou menos explicitamente. Mais recentemente, a ideia de
“formalismo valorativo” de Alvaro de Oliveira reinaugurou com mais ênfase a relação entre “processo e
cultura” – o que os autores inicialmente citados souberam muito bem aprofundar. Na literatura
contemporânea internacional, abordagens multidisciplinares que exploram as premissas valorativas do
direito processual estão presentes nos trabalhos, por exemplo, de M. Taruffo, Ugo Mattei e Oscar Chase.

169
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

novidade justifica a abordagem principiológica, mas não apenas. Para compreender os


novos mecanismos e opera-los na prática, é preciso, antes de uma hermenêutica textual
das regras, a internalização dos parâmetros valorativos que agora devem orientar a sua
aplicação.

As conclusões sistematizadas nos capítulos anteriores comporão os parâmetros


de análise das tendências valorativas implícitas na nova legislação. Em síntese, o capítulo
1 ampliou nossa compreensão sobre os significados do acesso à justiça nas sociedades
contemporâneas e o capítulo 2 elaborou um retrato da litigiosidade e da judicialização no
Brasil. As sistematizações teórica e empírica enfatizam, sobretudo, que todo sistema
jurídico, fundamentalmente, trabalha sobre um contexto real de desigualdade e que sua
missão elementar é, ainda assim, assegurar que haja justiça na sociedade. Esta premissa,
que sempre moveu o direito e é fonte de legitimação do sistema de justiça, inspirou o
movimento de acesso à justiça que aportou no Brasil na década de 1980 e caracterizou
tanto a chamada matriz constitucional do processo como as reformas legislativas que a
seguiram.

A pressão da sociedade pela tutela jurisdicional e a expectativa de que a Justiça


funcione satisfatoriamente dificultaram que a redução das desigualdades se mantivesse
como escopo exclusivo do sistema. A ela acostou a busca pela eficiência do processo e
da máquina judiciária. Sistemas jurídicos de todo mundo tentam compatibilizar ambos
objetivos, a igualdade de acesso à justiça e a eficiência de funcionamento do sistema, por
meio de uma carta de novidades relativamente comuns. A legislação processual brasileira
vai na mesma linha e reproduz as novidades instituídas em outros sistemas – como será
detalhado nos itens deste capítulo.

Os resultados que se pode esperar das reformas, aqui e em qualquer outro


sistema, condicionam-se ao perfil da litigância judicial concretamente observado. E, além
disso, ao modo como a legislação e a jurisdição respondem à questão da desigualdade –
que, então, retoma papel predominante, se não mais como premissa fundante, como
critério de avaliação dos resultados obtidos pela lei. Dito de outro modo, além de
eficiente, a legislação será eficaz e efetiva na medida em que contribuir, antes de mais
nada, para a neutralização dos efeitos das desigualdades que comprometem a justiça que
se busca por meio do processo.

170
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A questão da desigualdade e sua relação com os métodos de resolução de


disputas são, portanto, centrais para qualquer política judiciária, em âmbito legislativo ou
administrativo. A seu respeito, o capítulo 1 ofereceu alguns direcionamentos
determinantes. O mais importante, baseado na literatura sobre o papel do direito na
promoção de mudanças sociais (v. itens 2.1 e 3.1 do cap. 1, supra), argumenta que:

I. Como o direito não é nem nunca foi neutro, a jurisdição e o processo


judicial tendem a privilegiar aqueles com mais experiência no seu
manuseio185.

Ocorre que a desigualdade é um fenômeno social, que precede a jurisdição. De


modo similar, as disputas de interesses também antecedem a judicialização. Nessa linha,
outra conclusão central do primeiro capítulo é a da projeção do acesso à justiça para as
relações sociais. Tomando em conta os estudos da linha do “dispute resolution”,
notadamente o Civil Justice Litigation Project, da década de 1980 (v. itens 3.2, 4.1 e 4.4
do cap. 1, supra), sobressai o argumento de que:

II. A resolução de disputas acontece majoritariamente no âmbito social,


antes do processo judicial, de modo que a ideia de acesso à justiça
não se limita aos métodos e instrumentos institucionalizados.

O que se extrai dessas conclusões é, por primeiro, que se o direito processual,


porque de natureza técnica, tende a intensificar a desigualdade entre os litigantes,
qualquer reforma focada na eficiência do sistema potencializa esse indesejável efeito.
Complementarmente, se as disputas por interesses e direitos – e, portanto, as formas
primárias de resolvê-las -, acontecem, como se sustenta, no âmbito da sociedade, o olhar
do acesso à justiça tende a se expandir nessa direção e os métodos institucionalizados
(processuais e de organização da justiça) devem ser pensados em articulação com a
resolução de disputa que antecede a judicialização.

O desenho dos métodos e técnicas de resolução de disputas - como uma lei


processual, por exemplo – pode, portanto, adotar duas perspectivas distintas, das
instituições oficiais ou das relações sociais. A primeira olha o problema do acesso à
justiça “de cima para baixo”, do sistema instituído (órgãos, regras e procedimentos) para

185
O capítulo 1 apresenta em detalhes esses argumentos e seus fundamentos.

171
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

os cidadãos. A segunda pensa os métodos de acesso à justiça a partir do perfil e no âmbito


da própria sociedade. (cf. capitulo 1).

Ambas perspectivas oferecem caminhos válidos e não necessariamente


excludentes. Pela perspectiva “de cima para baixo” (top-down), que nos é mais familiar,
o direito processual trabalha na construção de instrumentos e órgãos formais, geralmente
no âmbito do Estado. Pela “de baixo para cima”(bottom-up), a lei processual precisaria
investir em mecanismos de articulação entre os sistemas social e judicial formal de
resolução de disputas – o que passa, por exemplo, por concordar que existem etapas
prévias de resolução das disputas e optar por não as regular expressamente ou, mais
explicitamente, criar dispositivos específicos para articular o fluxo integrado da solução
do conflito186.

Os caminhos variam, mas o objetivo de ambos é afinal minimizar os efeitos das


diferenças entre as partes para privilegiar a justiça que decorresse apenas da regra legal.187
E, qual seja a perspectiva adotada, o desenho da legislação processual depende dos
aspectos concretos das sociedades cujos conflitos se pretende regular.

O cenário concreto da litigiosidade no Brasil é, nesta linha, bem menos parecido


com o que está presente nos discursos de senso comum. Uma factível leitura dos dados
sobre a justiça no Brasil, apresentados no segundo capítulo deste estudo, revela, por
exemplo, que:

III. A litigiosidade no Brasil não é alta como se anuncia (envolve


cerca de 10% da população), mas está concentrada em alguns
atores sociais públicos e privados (os “grandes litigantes), o que
aumenta a sensação de “repetitividade”; geralmente, esses

186
A ideia de um fluxo integrado de resolução de conflitos aparece na obra coletiva coordenada por Gabbay
e Cunha, 2010. O esquema da página 38 e as explicações que o antecedem esclarecem os sentidos desse
fluxo e as suas etapas. Sua análise sugere a existência de causas da litigiosidade externas e internas ao
Judiciário, que a judicialização é uma etapa apenas dentro do fluxo e que o processo judicial se articula a
outros processos na atividade de resolução das disputas. Esse referencial estudo trabalha com a ideia de
“filtros” inseridos em diferentes pontos do fluxo integrado da resolução dos conflitos.
187
É certo que não é o papel prioritário da lei processual. Contudo, o ponto aqui é a sua efetividade, o que
depende de conseguir atuar o próprio direito material. Na verdade, o processo não apenas responde
solidariamente pela promoção da igualdade, como este resultado é que sustenta a sua legitimidade, sua
credibilidade e sua própria razão de existir. Como sintetiza a respeito Barbosa Moreira, “la credibilidad del
proceso como instrumento de solución de conflictos de intereses depende esencialmente de su capacidad
para ofrecer a los respectivos titulares una perspectiva de ecuanimidad.” (BARBOSA MOREIRA, La
igualdad…, 1989)

172
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

litigantes polarizam nos processos com litigantes menores e


com participação eventual no sistema (os “litigantes
eventuais”);
IV. O Poder Judiciário, embora burocratizado e assomado de
processos, é uma arena de resolução de disputas bastante
disputada pelos atores sociais (como ficou claro pelos casos
“domésticos” que buscam espaço nos juizados especiais cíveis
com os casos dos “grandes litigantes”);
V. as pessoas confiam pouco na Justiça, conhecem pouco as leis,
são lenientes com a desobediência legal, mas se pautam pela
reprovação social; talvez por isso, valorizem a Justiça estatal e
os instrumentos formais quando se envolvem em disputas:
consumidores preferem litigar por meio de seus advogados,
executados pagam em juízo suas dívidas fiscais, pensionistas
não entendem o processo dos JEFs e exercem um papel
secundário e submisso, mas consideram que são “mais ouvidos”
do que no INSS.

Qualquer política pública de justiça, inclusive e especialmente a legislação


processual, depende da conjugação desses dados ao seu corpus técnico. Se no Brasil os
processos judiciais são, na grande maioria, disputas entre “grandes” e “pequenos”
litigantes (v. itens 3.1 e 3.2 e 3.3, do cap. 2, supra), e que aqueles são um pequeno grupo
dos mesmos atores públicos e privados (idem) que ocupam o espaço dos fóruns e a
atenção dos tribunais (idem), o fenômeno que se tem chamado de “litigiosidade
repetitiva” tem mais chance de ser resolvido por meio de uma melhor distribuição do uso
do Poder Judiciário, por exemplo. Complementarmente, se as pessoas preferem resolver
suas disputas perante o Poder Judiciário (v. itens 2.1, 2.2 e 3.2, do cap. 2, supra) e optam
pelo uso dos instrumentos processuais disponíveis (v. itens 3.3.1, 3.3.2 do cap. 2, supra),
as políticas que operam por desjudicialização, por exemplo, têm mais dificuldades para
alcançar os resultados desejados.

173
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Diante desse quadro geral, o principal desafio das políticas judiciárias no Brasil,
em termos de acesso à justiça, não é tanto o acesso ao Judiciário ou à ordem jurídica justa,
mas a desigual distribuição desse acesso188.

A adesão das leis processuais a essa missão é uma opção de política legislativa,
evidentemente. Os exemplos variam desde uma menção retórica no bojo das justificativas
até uma estruturação completa de suas técnicas. O que está em jogo nesta escolha, mais
do que a adequação metodológica, uma bandeira ideológica ou a sensibilização da opinião
pública, é a efetividade que se pode esperar do aparato processual e de justiça, o trabalho
e a dedicação dos quase 470 mil juízes e servidores judiciários do país e, em última
análise, a confiança (e o investimento financeiro) que a sociedade vier a creditar no
sistema oficial de justiça.

O legislador processual brasileiro felizmente reconhece essa sua incumbência.


As exposições de motivos dos códigos anteriores fazem menção às características da
Justiça brasileira e o código atual se reconhece potencialmente “mais justo, porque mais
rente às necessidades sociais” (v. item 1.3, supra). Esse é um passo fundamental para que
o sistema se estruture a partir da neutralização das desigualdades que comprometem o
escopo de justiça e merece o devido reconhecimento. Resta agora trabalhar os
instrumentos criados para evitar que perpetuem ou até intensifiquem os efeitos da
assimetria entre os litigantes, quando seria esperado que os reduzissem, até eliminassem.
O risco maior aqui, para além de um eficiente funcionamento da máquina estatal
judiciária, é o de esvaziar os escopos de justiça do sistema como um todo.

Para os objetivos deste estudo, portanto, a mais relevante questão relativa ao


novo sistema legislativo processual diz respeito à sua efetividade como instrumento de
isonômico acesso à justiça: as alterações do novo Código serão efetivas, considerando o
conteúdo atualmente atribuído ao acesso à justiça (cap. 1)? Além de estarem previstos em

188
Curioso que este quadro também se reproduza no sistema de justiça norte-americano, originalmente
atacado pelo argumento de senso comum da “explosão de litigiosidade”. Como bem destaca Deborah
Rhode (2004, p. 24), em estudo referencial no tema, o acesso à justiça nos EUA se caracteriza por “muito
direito aos que tem condições de financia-lo e muito pouco para todos o resto” (no original, “Too much law
for those who can afford it, too little for everyone else”). A diferença, naquele caso, é que a razão da
concentração é o custo dos processos, o que não parece ser o motivo no caso brasileiro.

174
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

outros sistemas, para regular outras sociedades, as novidades instituídas correspondem ao


perfil empírico da litigiosidade no Brasil (cap. 2)?

A hipótese que guiará a investigação é a de que a nova legislação processual


brasileira, a par de oferecer um repertório de novos mecanismos capazes de instituir um
novo modelo processual, tem baixa correspondência ao nosso perfil de litigância judicial,
desigual e concentrado em alguns atores. Há, no discurso legislativo, uma compreensão
equivocada de fenômeno da “litigiosidade”, o que dificulta a sua regulação normativa e
compromete a própria efetividade da nova legislação, sobretudo em termos de acesso à
justiça189.

O método adotado será o de induzir explicações sobre o acesso à justiça e a


litigiosidade no Brasil no âmbito do direito processual civil, considerando os valores que
guiaram a nova legislação e os desafios à sua efetividade. A análise se desenvolverá no
nível dos valores que fundamentaram as alterações legislativas, com algumas incursões
dogmáticas pontuais. A produção doutrinária processual nacional, cuja tradicional
excelência se mantém nos autores e autoras que examinam o novo Código, comporá as
principais referências deste capítulo.

O capítulo é estruturado em duas partes. Primeiro, uma sistematização breve dos


modelos de justiça civil que vivenciamos no Brasil nos últimos oitenta anos, período que
compreende a edição de três códigos de processo civil e um sem número de leis esparsas,
guiados por quatro diferentes matrizes constitucionais. O objetivo não é o
aprofundamento histórico desses modelos ou a sua completa taxonomia, mas o de
oferecer uma visão geral da trajetória recente da legislação processual brasileira para uma
percepção mais acurada do que o código atual significa nessa evolução, razão por que a
apresentação é sintética.

189
As premissas desse debate foram adiantadas na introdução ao capítulo 2: “[a]s conclusões teóricas e
empíricas sobre o acesso à justiça ofereceram uma imagem diferente da que tomamos em conta no direito
processual civil brasileiro”. E, prosseguindo, “uma tal discrepância interfere na noção que formamos de
‘litigância de massa’, ‘litigiosidade repetitiva’ e fenômenos relacionados e, assim, na compromete o
potencial da legislação, voltada a ‘combate-los’ sem compreende-los suficientemente”. Do que se conclui
que “os resultados possíveis vão desde a inaptidão dos atores do sistema de justiça para lidar com os
instrumentos da nova legislação até a sua completa ineficácia e baixa efetividade em termos de produção
de justiça material.”

175
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Em seguida, analiso os valores e as grandes tendências que diferenciam a nova


legislação. A busca por um sistema processual menos formal é uma constante presente
em todas as legislações recentes, desde o início do século XX pelo menos. O CPC e a Lei
de Mediação parecem se diferenciar pela incorporação de duas novas tendências: a
internalização explícita do valor eficiência e a transferência do processo para o controle
e a disponibilidade das partes. Alguns mecanismos ilustram com particular nitidez essas
tendências e, por isso, serão, invocados para análise – são eles o gerenciamento de
processos judiciais, o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976 e ss.) o
negócio jurídico processual (art. 190), e a resolução consensual de disputas (art. 3o.).

É possível que as novas tendências, e os mecanismos que as exemplificam,


promovam uma alteração substancialmente no modelo processual brasileiro. Do ponto de
vista teórico e comparativo, a hipótese parece provável. Mas ainda é cedo para confirma-
la principalmente porque, do ponto de vista concreto, sua efetividade depende, além da
expressa previsão legal e do apoio doutrinário e jurisprudencial que se anuncia, ao grau
de correspondência ao perfil de litigância praticado no Brasil, retratado nos dados
disposto no capítulo 2. Por essa razão, a análise feita neste capítulo coteja aspectos gerais
das tendências e os instrumentos da nova legislação às teorias sobre acesso à justiça e ao
retrato do acesso à justiça o Brasil.

Antes, porém, é preciso situar o modelo processual civil brasileiro na sua


trajetória recente, objeto do item seguinte.

1. O modelo processual civil brasileiro

Qual o perfil da nova legislação processual civil brasileira? Como identifica-la


entre os modelos de justiça? Como classificar o modelo adotado em relação aos dos
demais sistemas normativos experienciados no Brasil? O que é possível afirmar sobre a
nova lei em termos de acesso à justiça? Difícil responder categoricamente a essas
perguntas. Quando muito, consegue-se fazer uma análise de aspectos da nova legislação
para sistematizar indicativos que subsidiem respostas mais ou menos prováveis.

Seria limitante adotar um único vetor para analisar o modelo de justiça e


processual brasileiro com base em um único critério – no caso, o da relação entre juiz e
partes no processo. Por isso, nesta parte inicial, conjugo a referencial tipologia de Mirjam

176
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Damaska (1986) (modelos inquisitoriais e adversariais de justiça) ao quadro com dois


vetores de Robert Kagan (2003) (autoridade decisória e molde formal).

1.1. Modelos de justiça e processo – divisão de trabalho, graus de


formalismo e autoridade decisória

A análise do processo civil brasileiro exige o recurso aos modelos ideais de


justiça. É bastante conhecida a classificação entre modelos adversarial e inquisitorial de
justiça, segundo o papel atribuído e desempenhado pelas partes e o juiz na condução do
processo. Damaska (1986), referência internacional na comparação de modelos de justiça,
explica que os sistemas processuais se enquadram mais próximos de um ou outro tipo
ideal segundo prevejam a produção de provas pelas partes ou o juiz, procedimentos
rígidos ou o controle sobre o procedimento, a passividade ou o ativismo do juiz, registros
escritos ou orais, entre outros critérios. O modelo adversarial seria o de uma disputa
travada perante um juiz passivo, na qual os litigantes são encarregados de realizar os atos
procedimentais. Já pelo modelo inquisitorial puro, a investigação e os atos procedimentais
em geral são oficiais, a cargo e responsabilidade do juiz.

Evidentemente, essa classificação é relativa e idealizada. Os sistemas de justiça


filiam-se historicamente às suas próprias tradições e transformam o perfil original
conforme as reformas que lhe são impressas. A variação pode ser dimensionada pela
aproximação ou distanciamento que tenham dos dois “tipos ideais” que Damaska (1986)
descreve.

Há outros critérios possíveis para classificar os modelos de justiça e processo.


Além da distribuição de papéis entre partes e juiz (BARBOSA MOREIRA, 1989), os
modelos também variam segundo a importância das formas de julgamento e o grau de
disponibilidade sobre suas regras. Para designar essa variável, recorro ao termo
“formalismo processual”.

O termo aqui não designa o fenômeno de apego exagerado às regras formais


processuais que caracteriza a patologia do modelo burocrático weberiano (DALLARI,
1996; FISS, 1979), nem o método de pensamento jurídico que se opõe ao realismo
jurídico e que se caracteriza pelo condicionamento do direito às formas jurídicas postas
(TAMANAHA, 2009; FARO DE CASTRO, 2012) – embora possa ser indiretamente
relacionado a ambos esses fenômenos.

177
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O formalismo processual, para este estudo, é um indicador do grau de


importância e, consequentemente, do uso de formas predefinidas para o encaminhamento
da resolução dos conflitos. Em boa medida, esse sentido pretende alinhar-se à ideia de
“totalidade formal do processo”, de ALVARO DE OLIVEIRA (2010, p. 28), a
contemplar a organização do procedimento, a disciplina do poder do juiz e garantia de
liberdade contra o arbítrio do poder, o controle dos excessos de liberdade de uma parte
contra outra, os caminhos para a formação e valorização do material fático190.

No âmbito amplo da “totalidade formal do processo”, a ênfase, neste estudo, será


direcionada à medida de importância que cada método processual, em sentido amplo,
atribui às formas. O formalismo será utilizado como critério de comparação de diferentes
sistemas processuais – o que é mais adequado ao objetivo deste estudo, de analisar a
legislação processual recente. Como exemplo desse uso, a resolução de conflitos por
mediação é menos formal do que o processo judicial e, no âmbito deste último, o
procedimento dos juizados especiais é menos formal do que o da justiça comum. Ambos
se enquadram como “formalistas” no sentido de Tamanaha e Faro de Castro e ambos
podem derivar para um funcionamento burocrático patológico. Mas, entre si,
caracterizam-se pelo maior ou menor importância e, consequentemente, o uso mais ou
menos rígido das formas processuais – para o que, em boa medida, a referência é o
conceito de Alvaro de Oliveira.

A classificação de Robert Kagan (2003) para analisar a litigiosidade norte-


americana adota o “formalismo processual” em sentido similar ao deste estudo, aliando-
o, inclusive, à dicotomia de Damaska (1986). Segundo Kagan (2003), as atividades de
resolução de disputas e também as de implementação de políticas públicas variam
segundo o caráter mais ou menos participativo da tomada de decisão e o traço mais ou
menos formal do processo decisório. Os métodos de resolução consensual, como a
mediação e a negociação, baseiam-se em decisões tomadas com ampla participação dos

190
O conceito de formalismo processual foi exemplarmente explorado no estudo referencial de Alvaro de
Oliveira (2010), então definido como “ a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma,
ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos
processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com
vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”, investindo-se, assim, na “tarefa de indicar as
fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de
quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento”, com o
que “contém, portanto, a própria idéia do processo como organização da desordem, emprestando
previsibilidade a todo o procedimento”. (p. 28).

178
Modelo adversarial puro
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Modelo CPC 1973 +


reformas e modelos menos formais de processamento. No outro extremo, estaria a
envolvidos
jurisdição do modelo europeu continental, de matriz weberiana, com decisões tomadas
hierarquicamente por meio de procedimentos formais. Entre ambos, os processos
Legislação brasileira atual
administrativos e políticos, cuja decisão hierárquica segue um processo menos formal, e
a jurisdição norte-americana, em que a decisão é participativa, ainda que sob um modelo
processual mais formal (Kagan, 2003, p. 10). A tabela abaixo, do próprio Kagan, ilustra
a sua classificação.

Figura 17: Modos


Tabela: Modosdede
resolução de disputas
implementação e implementação
política e resolução dede políticas
disputa
Autoridade decisória Modelos de decisão
INFORMAL FORMAL

HIERÁRQUICA a) perícia ou b) Legalismo


julgamentos burocrático
políticos
c) Negociação/ d) Legalismo
mediação adversarial
PARTICIPATIVA
Fonte:
Fonte: Kagan,Kagan, R. Adversarial
R. Adversarial legalism –Legalism – the
the American wayAmerican way
of law, 2003 of law,livre)
(tradução 2003 (tradução livre).

Completa os critérios comparativos o tipo de solução ordinariamente dada aos


conflitos de interesses. O padrão varia, nesse caso, entre decisões tomadas pelas próprias
partes ou decisões provindas de terceiros não protagonistas do conflito – o que Kagan
(2003) chama de modo hierárquico de tomada de decisão. Haveria aqui duas variações:
acordos ou decisão, tomadas pelas próprias partes ou por terceiros.

Considerando, portanto, esses referenciais teóricos, três seriam os elementos


diferenciadores dos modelos de justiça e de processo vivenciados no Brasil: os papéis do
juiz e das partes, o grau de formalismo processual da lei em geral e a natureza das soluções
admitidas para a resolução da disputa. Resta aplica-los na identificação das características
e sistematização dos vetores que tradicionalmente guiaram os sistemas processuais civis
brasileiro.

1.2. Legislação processual civil no Brasil e seus vetores axiológicos

A evolução da legislação processual brasileira durante o século XX é, no


mínimo, notável. Partimos de um sistema fragmentado de órgãos e práticas judiciárias
herdadas do período imperial - o chamado “direito judiciário” (LOPES, 2016) e

179
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

construímos um complexo sistema teórico e normativo de direito processual com


elementos gerais claramente definidos, ramificações específicas para as áreas de
aplicação (civil, penal, trabalhista, administrativo) e uma estrutura constitucional matriz.

Essa trajetória foi longa e intensa. Nos últimos cem anos, o país recebeu uma
sequência quase ininterrupta de legislações processuais, acumulando ao menos cinco
sistemas normativos. No início do século XX, as disputas cíveis eram formalmente
julgadas por um conjunto disperso de leis processuais, algumas das quais ainda remetiam
à legislação colonial portuguesa.

Em 1939, na vigência do Estado Novo e sob o impulso da Constituição de 1937,


o nosso primeiro código nacional reconheceu o caráter político e social da lei processual
e unificou um modelo que reforçava o ativismo judicial como meio para impedir o uso
ilegítimo do processo (as chamadas “chicanas processuais”) e assegurar a atuação da lei.
Segundo se lê na sua Exposição de Motivos, assinada pelo mineiro Francisco Campos,

A questão de sistema não é uma questão a ser resolvida pelos técnicos; é uma
questão de política legislativa, dependendo, antes de tudo, do lugar que o
Estado, na ordem dos valores, destina à justiça, do interesse maior ou menor
que o Estado tenha em que ela seja administrada como o devem ser os bens
públicos do grau superior. (...). (Exposição de Motivos do CPC de 1939).

A distribuição dos papéis e responsabilidades entre juiz e partes pendeu no


sentido do órgão estatal, atribuindo-lhe tarefas antes confiadas às partes. A busca oficial
da verdade pelo processo assumiu um espaço que até então os princípios dispositivos e
contraditório proporcionavam às partes. A premissa foi a de que a “confiança na Justiça”
e a segurança jurídica seriam “restituídas” ou “restauradas” por meio do deslocamento de
atividades processuais ao juiz. O trecho abaixo, também da Exposição de Motivos, é
esclarecedor.

Pondo a verdade processual não mais apenas a cargo das partes, mas confiando
numa certa medida ao juiz a liberdade de indagar dela, rompendo com o
formalismo, as ficções e presunções que o chamado “princípio dispositivo”, de
“controvérsia” ou “contradição”, introduzira no processo, o novo Código
procura restituir ao público a confiança na Justiça e restaurar um dos valores
primordiais da ordem jurídica, que é a segurança nas relações sociais reguladas
pela lei. (idem)

Em 1973, durante o regime militar, foi promulgado o nosso segundo código de


processo civil, desenhado pelo paulista Alfredo Buzaid, cuja marca é a sofisticação e o
rigor técnico. Ainda que se afirme que este código fora uma “réplica do anterior”, sem

180
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

configurar propriamente “um novo estilo processual” (Dinamarco, 2016, p. 35), a diretriz
sociopolítica era bastante diferente, o que se refletiu, se não no texto, na interpretação e
aplicação da nova lei. A opção pela racionalidade técnica processual é, em si, uma
evidência dessa mudança. A técnica impôs-se ao caráter político e social do sistema de
justiça com o objetivo declarado de produzir justiça pela “observância da lei” e “sem
delongas”. As palavras de Buzaid na Exposição de Motivos soam quase que como uma
resposta às de Campos, na exposição anterior, acima transcrita: “Um Código de Processo
é uma instituição eminentemente técnica. E a técnica não é apanágio de um povo, senão
conquista de valor universal. (…) ”191.

O caráter técnico-racional e acultural da legislação processual é destacado na


passagem abaixo, que também enfatizam uma preocupação que se mostrou dificilmente
compatível entre a observância da lei, com “tantos atos quanto sejam necessários”, com
a administração rápida da justiça.

Assim entendido, o processo civil é preordenado a assegurar a observância da


lei; há de ter, pois, tantos atos quantos sejam necessários para alcançar essa
finalidade. Diversamente de outros ramos da ciência jurídica, que traduzem a
índole do povo por meio de longa tradição, o processo civil deve ser dotado
exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação do direito. As
duas exigências que concorrem para aperfeiçoá-lo são a rapidez e a justiça.
Força é, portanto, estruturá-lo de tal modo que ele se torne efetivamente apto
a administrar, sem delongas, a justiça. (Exposição de Motivos do CPC de
1973)

A consciência de que o processo não é apenas um instrumento técnico, mas


também ético, guiado por valores culturais e vetores de organização sociopolítica, foi
muito bem compreendida, pela doutrina brasileira, já na década de 1970 e com ainda mais
vigor na de 1980. Em 1973, Ada Grinover invocava o arranjo de valores definido na
Constituição como fundamento principiológicos do direito processual, destacando o “o
problema da relação entre indivíduo, sociedade e Estado” (GRINOVER, 1973)192. Na

191
Mitidiero faz uma relação entre o argumento de Buzaid e, em ultima análise, o de Chiovenda ao defender,
no início do século XX, a assimilação do processo alemão e austríaco pela Italia. Segundo o autor, ambos
insistem em uma visão do processo como um “fenômeno técnico”, alheia ao seu caráter cultural.
(MITIDIERO, 2007, p. 13)
192
Na sua peculiar clareza, argumentava ser “inegável o paralelo entre a disciplina do processo e o regime
constitucional em que o processo se desenvolve” (GRINOVER, 1973, p. 13) e, invocando lição de
Cappelletti, enfatizava que “é na Constituição que se deve procurar a solução do problema do
relacionamento entre a lei, a justiça e a liberdade – que é, em última análise, o problema da relação entre
indivíduo, sociedade e Estado.” (p. 14).

181
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

década de 1980, a investigação vai além dos valores constitucionais nos quais deveria
buscar fundamento e busca diálogo com as “instituições sociais, do poder e do Estado”,
ressentindo o descaso com a “realidade do mundo” em que está inserida. (DINAMARCO,
1990, p. 9, original de 1986)193. De modo ainda mais enfático, Barbosa Moreira
sistematiza as “dimensiones sociales del proceso civil”, refletindo, em tom autocrítico,
que

los procesualistas mantenemos case siempre una distancia sospechosa frente a


las propuestas sociológicas. Quizás temamos que un aporte extrajurídico
ponga en jaque la pureza técnica de nuestra labor dogmática. El resultado es el
empobrecimiento de nuestra propia ciencia. (BARBOSA MOREIRA, 1989, p.
25, original em 1986).

Acompanhado da consciência teórica do embasamento constitucional e


sociopolítico do direito processual, e no embalo da abertura democrática da segunda
metade da década de 1980, um conjunto de leis processuais estabeleceu um novo padrão
de litigância judicial, de caráter garantista e voltada à expansão da jurisdição a novos
conflitos sociais.

Essa talvez tenha sido a fase em que a legislação processual incorporou com
mais intensidade o ideário de acesso à justiça, nos termos do repertório disponível à
época: a superação dos obstáculos pelo influxo das três ondas renovatórias que Cappelletti
e Garth propuseram em 1978.

Em menos de dez anos, porém, a propugnada tomada de consciência da


“realidade” da justiça arrefeceu a euforia de um período fértil em conquistas
democráticas. A partir da segunda metade da década de 1990, a demora dos processos e
a inefetividade da tutela jurisdicional passaram a ocupar o posto de principal argumento
para uma nova sequência de reformas legislativas. Quase impercetivelmente, o vetor que
guiara a matriz processual constitucional cedeu protagonismo a uma, nas palavras de
Dinamarco, “obcecada busca da celeridade” (2016, p. 43). O lema popular de que a

193
Cândido Dinamarco, em 1986, na apresentação da tese da “Instrumentalidade do processo”, ponderava
já não bastar “aprimorar conceitos e burilar requintes de uma estrutura bem engendrada, muito lógica e
coerente em si mesma, mas isolada e insensível à realidade do mundo em que deve estar inserida, e defendia
ser “tempo de integração da ciência processual no quadro das instituições sociais, do poder e do Estado”.
Na mesma apresentação, propunha a “abertura do sistema processual aos influxos do pensamento publicista
e solidarista vindo da política e da sociologia do direito” (DINAMARCO, 1990, p. 9).

182
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

“justiça tarda mas não falha”, implícito nos motivos do CPC de 1973, cedeu à reação
generalizada de que “justiça tardia não é justiça”.

À época, era difícil dimensionar a extensão da mudança de rumo. Mas é


inquestionável que, em duas décadas, o direito processual civil brasileiro já apresentava
um perfil de valores opostos aos da expansão de direitos, universalização da tutela
jurisdicional e acesso à justiça, que marcaram a era do “processo na Constituição”. O
vetor foi direcionado a valores que hoje aparecem nas técnicas de abreviação de fases
processuais, eliminação de processos e a desjudicialização das disputas, comentados
adiante.

Na segunda década de 2000, ao movimento pela aceleração dos processos


somaram-se os vigorosos discursos pela segurança jurídica, previsibilidade da
jurisprudência e redução do volume de processos nos tribunais.

O atual código de processo civil, de 2015, trouxe novos instrumentos sobre a


mesma estrutura dos códigos anteriores, mas sua ordem de princípios consagra a
tendência valorativa inaugurada na década de 1990. Este Código escolheu promover a
efetividade do ordenamento por meio de imperativos de eficiência e temperou o
formalismo técnico com a ideia de pragmatismo. Os dois trechos abaixo, da
correspondente Exposição de Motivos, esclarecem esses pontos.

Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a


carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se
transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no
mundo empírico, por meio do processo (...). (Exposição de Motivos do
Anteprojeto do CPC de 2015)

Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo Civil, essa foi uma


das linhas principais de trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo
como teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de
resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais.
(idem)

Em uma síntese com meros fins didáticos, podemos identificar o modelo do CPC
de 1939 como o da “jurisdição ativista”, o de 1973 como o da “jurisdição técnica”, o das
leis da década de 1980 como a “jurisdição garantista”, as leis da década de 1990 como o

183
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

da “jurisdição célere” e o das décadas de 2000 e 2010s, inclusive o CPC atual, comporia
o modelo da “jurisdição eficiente”194.

1.3. Características dos modelos processuais civis brasileiros – sofisticação


técnica, publicismo e desformalização

Há traços comuns na evolução legislativa processual brasileira, mais ou menos


evidentes em cada período e que resistem ou são aproveitados pelos sistemas que os
sucedem.

Para começar, os sistemas processuais brasileiro demonstram uma preferência


implícita pelo caminho do direito processual e da organização da Justiça formal para
otimizar os resultados de justiça. Embora presumível e natural, a opção revela a
internalização quase absoluta da perspectiva institucionalista de acesso à justiça,
característica da abordagem de Cappelletti e Garth (1978) - que, vale lembrar, é uma
dentre as possíveis abordagens teóricas do problema (cf. cap. 1).

Outra tendência verificada na história recente dos sistemas processuais


brasileiros é o crescente aperfeiçoamento e sofisticação técnica, bastante visível na
produção doutrinária e legislativa. Ao longo do século, consolidou-se uma malha
legislativa de instrumentos e regras processuais e, com ela, um corpo próprio de
especialistas nas faculdades de direitos e órgãos da Justiça. O direito processual é, hoje,
das mais importantes áreas na formação jurídica e está presente na maior parte das
questões jurídicas do país, desde as mais simples àquelas que definem os rumos da nação.

Traço igualmente constante na legislação processual brasileira, absoluta até a


edição do Código de 2015, parece ser a transição para um direito processual de natureza
pública, acompanhada, talvez mesmo impulsionada pela estruturação de um sistema

194
Adoto o termo “modelo processual” para designar o conjunto composto pelo sistema processual e o
contexto sociopolítico que o inspira. Separo cada sistema legislativo e época respectiva e designo-os
genericamente por ‘modelos processuais’, inclusive para facilitar a comparação entre eles. Reconheço a
generalidade dessa designação quando comparada, por exemplo, com a de Dinamarco, para quem “um dado
sistema processual, considerado pelo conteúdo específico das normas que o regem, pela concreta
configuração dos órgãos que o operam e pelo modo de ser dos institutos encadeados em razão desse objetivo
constituiu um modelo processual”. Sistema processual, para o mesmo autor, seria “um conglomerado
harmônico de órgãos, técnicas, institutos jurídicos regidos por normas constitucionais e infraconstitucionais
capazes de propiciar sua operacionalização segundo o objetivo externo de solucionar conflitos”.
(Dinamarco, 2016, p. 284 e 285)

184
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

judiciário complexo, organizado em âmbitos estaduais e federal e em níveis ordinário, de


recursos e superior. A melhor ilustração dessa tendência é a constante consolidação, desde
o CPC de 1939, de uma esfera ampla e poderosa de atuação do juiz no processo. Não
surpreende que o tema dos “poderes do juiz” tenha ocupado parte relevante da produção
teórica na década de 1990, ápice dessa tendência195.

Por fim, a constante vigília exercida contra a valorização exagerada das formas
processuais – em lei e em teoria, embora mais difícil de incorporar às práticas.
Paralelamente, o ideal de ampliar a cobertura da tutela jurisdicional e o acesso da
sociedade à justiça parece presente nos discursos de todo o período. As ideias de
instrumentalismo processual e de acesso à justiça, representativas dessas tendências,
pautaram o direito processual civil brasileiro sobretudo no último quartel do século
XX196. Em outros períodos, as mesmas ideias parecem presentes, ainda que com outros
nomes197.

Por outro lado, os sistemas não seguem um padrão único em termos de acesso à
justiça e cada sistema parece preencher o ideal com conteúdos variados. O CPC de 1973
privilegiou o tecnicismo como caminho para a justiça e a igualdade. A Constituição de
1988 consagrou a universalização da ação e a participação das partes pelas garantias
processuais. As reformas da década de 1990 reduziram a ideia de acesso à justiça,
marcante na década anterior, à de celeridade e efetividade. Este sentido culmina, no
código atual, na valorização da liberdade das partes, da eficiência e da segurança jurídica

195
A tendência à publicização do direito processual também se reflete no perfil das disputas judicializadas,
caracterizadas por um embate entre interesses com alguma projeção coletiva ou social, ainda que se
apresentem sob formato individual. O direito do consumidor, o direito à saúde, o direito a benefícios
previdenciários, as obrigações fiscais – que compõem o maior volume de casos judicializados – exprimem
relações jurídicas substancialmente distintas da dos clássicos direitos privados de propriedade e de crédito
que compunham a matéria dos processos civis de outras épocas.
196
É natural que alguns períodos enfatizem uma ou outra dessas tendências. O CPC de 1973, por exemplo,
enfatiza a segunda tendência enquanto o CPC de 2015 mitiga a primeira, por sua vez mais evidente no CPC
de 1939. Mas, de modo geral, entre avanços mais ou menos ousados, as três tendências podem ser
observadas no período.
197
O CPC de 1939 é o melhor exemplo. Combater as “chicanas processuais” e o “sporting theory of justice”,
“remover as causas da injustiça”, o “papel atribuído ao juiz em relação à prova” são motivos daquela lei
que têm relação com as ideias de acesso à justiça e instrumentalismo processual. O trecho abaixo, da
Exposição de Motivos do CPC de 1939, refere-se ao controle formal de admissibilidade dos recursos e
poderia facilmente justificar os dispositivos do CPC de 2015 que, pautados na instrumentalidade do
processo, reprimem a chamada jurisprudência defensiva: “É radicalmente errôneo um sistema no qual
assuntos de simples processo desempenham papel tão importante, e em que as sentenças podem ser revistas
e postas de lado com o fundamento de que, na opinião do tribunal revisor, as regras não foram rigidamente
observadas, ainda que de significação puramente técnica, sem influência na substância do direito dos
litigantes.”

185
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

– ainda sob o argumento da justiça e da igualdade, no sentido de tratamento isonômico a


situações similares. A legislação recente, portanto, privilegiou o acesso à justiça de um
modo bastante peculiar: pela preocupação em criar mecanismos para reduzir o volume de
processos judiciais, abertura para outros tipos de soluções que não a atuação da vontade
da lei nos casos concretos e padronização dos resultados oferecidos pelo sistema.

Além da profusão de sentidos, nenhum dos sistemas parece reconhecer


expressamente que a neutralidade do direito e do processo pode ser nada mais do que uma
ilusão do positivismo - o que a teoria sociojurídica sugere desde pelo menos a década de
1960, como explicou o capítulo 1. Exceção feita talvez ao CPC de 1939, que sinaliza essa
possibilidade. O CPC 1973, inclusive, adota a neutralidade das técnicas (“um apanágio
universal”) como uma de suas premissas fundantes. A desigualdade entre os litigantes
existe nas leis como uma hipótese em abstrato, a motivar e justifica-las, mas o direito
seria um instrumento absolutamente neutro, hígido, íntegro e imune às circunstancias
concretas. Via de regra, nossas leis processuais se estruturam sobre essa premissa,
ingênua e equivocada segundo o que ficou claro nos capítulos anteriores.

O risco de que as desigualdades materiais e processuais comprometam o


resultado final de justiça também não parece suficientemente considerado pela legislação
processual de todo o período. A exposição de motivos do CPC de 1939 é a que vai mais
longe, mas adota um tom mais político do que realista: o processo judicial é “instrumento
de classes privilegiadas”198. É possível que a racionalização promovida em 1973 tenha
depositado na técnica a missão de “neutralizar” as desigualdades materiais, mas isso não
é explícito entre seus motivos, nem entre seus dispositivos. A tendência instrumentalista
das décadas de 1980 partiu do papel democratizante do processo e guiou-se pelas ideias
de acesso à justiça – que, em si, buscavam reduzir as desigualdades sociais pelas
instituições de justiça. A construção daquele sistema processual, entretanto, não se pautou
pelo problema das desigualdades sociais ou aquelas decorrentes do próprio processo
judicial – ao menos não no sentido bastante técnico proposto por Galanter (1974), por

198
In totum, “O processo em vigor, formalista e bisantino, era apenas um instrumento das classes
privilegiadas, que tinham lazer e recursos suficientes para acompanhar os jogos e as cerimônias da justiça,
complicados nas suas regras, artificiosos na sua composição e, sobretudo, demorados nos seus desenlaces.”
(Exposição de Motivos do CPC de 1939).

186
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

exemplo199. E, a partir de então, o risco da injustiça decorrente da desigualdade foi


paulatinamente escanteado200.

Para uma análise mais detalhada do sistema processual brasileira frente aos
critérios comparativos Kagan (2003), ao ideal de acesso à justiça e ao perfil da justiça no
Brasil, é preciso conhecer com maior profundidade os destaques da nossa nova legislação
– o que é objeto do item seguinte.

2. A nova legislação processual civil – eficiência, privatismo e


desformalização

A legislação processual brasileira instituída em 2015, composta pelo CPC e pela


Lei de Mediação, incorporou ao sistema processual alguns novos mecanismos e regras
que, do ponto de vista singular, conferem inéditas e valiosas possibilidades de atuação
para as partes e o juiz no processo e, consideradas em conjunto, podem significar uma
considerável mudança estrutural no sistema. Qual a dimensão dessa mudança e, mais
importante, como ela atende ao perfil da litigância judicial no Brasil e ao ideário de acesso
à justiça? Esse item busca levantar elementos para responder a essas perguntas.

Duas tendências político-valorativas parecem se destacar na legislação


processual brasileira de 2015, a abarcar as demais: o maior espaço para o controle das
partes sobre o processo e uma premissa fundamental de eficiência. Além dessas, a
legislação recente também prossegue na sua constante busca pela redução das
formalidades excessivas, velha conhecida das políticas judiciárias brasileiras desde os
tempos imperiais. Mecanismos específicos das novas leis representam essas tendências,
como é descrito neste item. Em consequência, eis a hipótese aqui aventada, o perfil
modelo de justiça brasileiro parece substancialmente modificado, com consequências
para o acesso à justiça.

199
Considerar a desigualdade material na estruturação dos instrumentos processuais vai muito além da
previsão, ainda que constitucional, da assistência jurídica gratuita e de dispositivos relacionados – o que, é
notório, a legislação brasileira reconhecidamente fez. Pelas razões explicadas pelas teorias apresentadas no
capítulo 1, a consideração da desigualdade no processo depende de um sistema mais complexo de
neutralização das vantagens estratégicas dos litigantes repetitivos e de nivelamento de condições com o
participante eventual da Justiça.
200
Merece nota o estudo de Fernanda Tartuce sobre a “Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil”,
resultado de tese de doutoramento em direito, com análise da aplicação de diferentes instrumentos
processuais da perspectiva da igualdade substancial das partes (Tartuce, 2012)

187
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Considerando-se a tabela dos modelos processuais de Kagan (2003), apresentada


no item anterior, o sistema processual brasileiro tradicionalmente se situa em algum ponto
do quadrante B, do “legalismo burocrático”, caracterizado pela autoridade decisória
hierarquizada e o modo de decisão formal – como de resto os de influência europeia
continental (v. item 1.1 deste capítulo, supra). Recentemente, entretanto, nosso sistema
parece paulatinamente aproximar-se de outros dois quadrantes: o C, dos modelos
participativos e informais (ilustrados pela mediação e conciliação), e o D, dos modelos
participativos sob regime processual formal (do “legalismo adversarial” de Kagan).

A aproximação ao modelo do quadrante C de Kagan (2003) é exemplificável


pela incorporação, no direito positivo, do que a professora Ada chamou de “justiça
consensual” (GRINOVER, 2016)201: a jurisdição orientada para a resolução de disputas
por meio do consenso entre as partes, objeto dos artigos 3o. e 566 da nova lei.

Já a aproximação ao quadrante D se ilustra pela ampliação do espaço para a


condução processual pelas partes, identificada doutrinariamente pela ideia de
“convencionalismo” processual (CABRAL, 2016), ou o princípio do autorregramento por
vontade das partes (DIDIER, 2017), sintetizado na readmissão do negócio jurídico
processual, previsto no artigo 190 do CPC – como melhor esclarece o item 2.2.2, adiante.

O deslocamento apresenta a marca comum do aumento do controle das partes


sobre o processo, tanto no que diz respeito às regras processuais quanto no tocante ao tipo
e conteúdo da decisão dada ao litígio. E, embora varie a importância que esses
mecanismos reservam às formas processuais, parece haver uma sinalização mais ou
menos intenso de flexibilização formal. Ou seja, o sistema parece deslocar-se com mais
intensidade e alcance no sentido da linha inferior, dos modelos baseados em “autoridade
decisória participativa”, do que no sentido da coluna da esquerda, dos modelos de decisão
informais. A desformalização, embora manifesta, é menos intensa do que o que o aumento
do controle das partes.

Sob todas as mudanças, parece estar o impulso de tentar atender a crescentes


reivindicações por maior agilidade processual, menos burocracia judicial, redução do
tempo de tramitação dos processos e dos custos que a resolução do conflito projeta para

201
GRINOVER, A.P. Ensaio sobre a processualidade – fundamentos para uma teoria geral do processo.
Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.

188
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

o Estado e os litigantes, controle das possibilidades de decisões judiciais inesperadas,


entre outras demandas. Em uma palavra, um clamor por eficiência na atuação
jurisdicional. Uma expectativa, com a correspondente exigência, de que a jurisdição, que
além de poder e função, é atividade prestada pelo Estado à sociedade, atenda ao comando
de eficiência estabelecido no artigo 37 da Constituição Federal.

Anda bem a legislação processual a se preocupar com a eficiência processual, a


atuação das partes no processo e a redução do formalismo excessivo. O seu principal
desafio, entretanto, não parece a seleção dos objetivos, mas o controle sobre os resultados
imprevistos agregados durante a jornada.

Nessa linha, duas principais preocupações se sobrepõem aos objetivos eleitos


pelo legislador processual: a adequação das mudanças ao perfil concreto da litigância
judicial no Brasil e a preservação dos resultados dentro de um nível satisfatório de acesso
à justiça, a assegurar a coesão e paz social além da eficiência da máquina estatal. O risco,
recorrendo ao dito popular, é o de que uma reforma estrutural do sistema, não obstante
bem intencionada, termine por “jogar o bebê junto com a água do banho”.

A ponderação entre benefícios pretendidos e os riscos sempre presentes é uma


tarefa complexa e imprecisa. Para enfrenta-la, este item recorre a um conjunto de
indicadores organizados a partir dos resultados apontados nos levantamentos teórico e
empírico feitos nos capítulos anteriores. Sistematizando suas principais conclusões,
chega-se a ao menos cinco critérios que podem servir para avaliar o arranjo de tendências
que sustenta a nova legislação processual brasileira em termos de qualidade do acesso à
justiça e o grau de adequação dos instrumentos processuais ao perfil concreto da
litigiosidade no país. São eles:

1) neutralização da “desigualdade pela experiência” - vale dizer, combate o


favorecimento do litigante repetitivo em detrimento daquele que participa
eventualmente de disputas judiciais;
2) potencial de articulação com os aqui chamados “processos sociais de
resolução de disputa” - a resolução de disputas que antecede a judicialização;
3) distribuição do espaço do Judiciário, no sentido de reduzir a concentração
do uso pelos mesmos “grandes litigantes”;
4) consideração da expectativa de “judiciarização” da população brasileira, no
sentido de buscar proteção junto a órgãos estatais, no caso o Judiciário;

189
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

5) atenção à “proteção pelas formas”, sobretudo nas disputas assimétricas –


garantias processuais suficientes, principalmente quando há litigantes em
desiguais condições de operar as ferramentas processuais em seu favor.

Na medida da adequação e da análise possível nesta sede, as tendências


valorativas com presença mais evidente nos principais mecanismos do Código serão
avaliadas segundo esses cinco critérios202.

2.1. O processo civil entre a justiça e a eficiência

A ideia de eficiência ocupa, já há algumas décadas, protagonismo como


referência valorativa nas ciências humanas e nas ciências sociais aplicadas. O direito,
dado o seu proeminente caráter técnico, é especialmente permeável a essa influência203.
Sistemas jurídicos, leis, órgãos judiciais, comportamentos dos atores e, de modo geral, a
teoria jurídica se conformam partir de uma premissa geral de eficiência - em grau
equivalente, se não até superior, ao escopo de justiça que tradicionalmente fundamenta o
sistema. O sistema jurídico internaliza uma lógica gerencial e a reproduz em seus novos
formatos institucionais (EDELMAN, 2016; MORRILL, 2017). A impactante influência
da corrente denominada “análise econômica do direito” sobre diferentes ramos da ciência

202
Porque ocupam uma função meramente exemplificativa das tendências valorativas analisadas, o exame
dos institutos e mecanismos processuais específicos não terá a profundidade que seria possível em um
estudo monográfico a seu respeito. Aspectos gerais do seu funcionamento têm mais importância na
construção do argumento do que o detalhamento dogmático completo de suas regras. Pela mesma razão, a
escolha dos autores e trabalhos adotados como referência também não é exauriente e, de modo algum,
significa menor importância ou qualidade científica de estudos não mencionados. Pelo contrário. A
pesquisa empreendida encontrou trabalhos de excelente qualidade sobre os assuntos tratados, todos
passíveis de serem aqui trazidos. Infelizmente, o tempo e o espaço impedem contempla-los todos. Ficarei
ainda assim grato se, mesmo assim, conseguir oferecer algum caminho para o diálogo com as opiniões e
análise tanto dos autores citados quanto também das referências que deixaram de ser mencionadas.
203
Desde a década de 1990, a sociologia do direito no Brasil tem argumentado que “o tempo do direito é
maior do que o tempo da economia e da sociedade” e, com isso, exigido do direito que seja reformado para
diminuir essa diferença (FARIA, J. E., (1993). Direito e economia na democratização brasileira.
Malheiros; FARIA, J. E. (2002). O direito na economia globalizada. Malheiros). Paralelamente, o
movimento denominado Law and Economics oferece uma nova leitura para teoria do direito a partir da
inclusão do valor eficiência à ideia de justiça, representado principalmente pelos princípios de celeridade,
segurança jurídica e previsibilidade. As referências são muitas, dentre elas, COASE, Ronald, "The Problem
of Social Cost," 3 Journal of Law and Economics 1 (1960); POSNER, Richard A., Economic Analysis of
Law. New York: Aspen, 5th ed., 1998, COOTER, R., & ULEN, T. (2010). Direito & economia. Ed.
Bookman; COASE, R. (1990). The Firm, The Market, and the Law. Chicago: University of Chicago Press.
No Brasil, a área articula estudiosos de diferentes instituições, com produção de qualidade reconhecida,
muitos deles reunidos no âmbito da Associação Brasileira de Direito e Economia, a ABDE
(https://abde.com.br), aqui referenciada em nome dos autores representados.

190
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

jurídica é talvez o mais significativo exemplo204. Mas a verdade é que, no tema do acesso
à justiça, esse embate já era anunciado por Roscoe Pound na famosa conferência sobre as
causas da insatisfação popular com a administração da Justiça, em 1906 (POUND,
2006)205.

O direito processual promove, de forma mais ou menos explícita, a releitura de


seus postulados e restruturação de suas regras a partir do vetor axiológico da eficiência.
No Brasil, desde as reformas processuais da década de 1990, a legislação processual tem
assimilado aspectos da eficiência em seu sistema normativo. O novo Código encampou e
levou a tendência adiante de modo explícito. As justificativas adotadas na Exposição de
Motivos do seu Anteprojeto enfatizam a ideia de “eficiência” (v. supra) e alguns
dispositivos lhe dão efetiva concretude.

No plano doutrinário, trabalhos em direito processual sob influência da análise


econômica do direito permaneceram escassos por algum tempo, mas cresceram nos
últimos anos, motivados pela questão da litigiosidade. Há registros de estudos processuais
sob perspectiva economicista na década de 1980 (MATTEI, 1989)206. Todavia, ainda que
invoque conceitos como o de “custo de transação” e de “externalidades”, Mattei não

204
A partir de uma releitura da teoria institucionalista desenvolvida principalmente pela sociologia das
organizações (MORRIL, 2017), os estudos de Ronald Coase, Oliver Williamson e Richard Posner
sedimentaram alicerces para toda uma renovação do repertório jurídico de sistemas de todo o mundo a
partir das premissas de que o agente, porque racional, busca maximizar suas vantagens e o sistema oferece
incentivos e desincentivos a esses comportamentos conforme os seus próprios escopos, controlando, na
medida do possível, as externalidades negativas inexoravelmente decorrentes. Um bom debate a respeito
do encontro entre as duas correntes, a nova economia institucional e a análise econômica do direito, pode
ser acompanhado na troca de artigos científicos entre dois de seus representantes, Oliver Williamson e
Richard Posner, publicada em 1993: POSNER, R. A. (1993). The new institutional economics meets law
and economics. Journal of Institutional and Theoretical Economics (JITE)/Zeitschrift für die gesamte
Staatswissenschaft, 73-87; e WILLIAMSON, O. E. (1993). Transaction cost economics meets posnerian
law and economics. Journal of Institutional and Theoretical Economics (JITE)/Zeitschrift für die gesamte
Staatswissenschaft, 149(1), 99-118.
205
Aliás, conferência que setenta anos depois Warren Burger (1982) aproveitou para lançar a idéia da
“explosão da litigância” e dos remédios recomendáveis, dentre os quais os então batizados por Sander
(1976) como métodos de ADR.
206
O italiano Ugo Mattei parece ter sido pioneiro ao analisar a relação entre a “tutela inibitoria” e a “tutela
risarcitoria” com base em um referencial artigo de Guido Calabresi, adotado em muitos trabalhos da “Law
and Economics”. (MATTEI, U. (1987). Tutela inibitoria e tutela risarcitoria: contributo alla teoria dei diritti
sui beni(Vol. 54). A. Giuffrè; CALABRESI, G., & MELAMED, A. D. (1972). Property rules, liability
rules, and inalienability: one view of the cathedral. Harvard law review, 1089-1128).

191
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

parece preocupado com a litigiosidade, como é típico dos trabalhos mais recentes da
vertente207.

Com o novo Código, a eficiência, nas suas diferentes vertentes, é invocada tanto
como justificativa quanto como valor último fundante dos instrumentos instituídos208. Os
comentários e análises sobre novidades trazidas pelo Código, por exemplo, confirmam a
assimilação da tendência economicista e focam sua preocupação em aspectos como o
comportamento de litigiosidade, os custos do processo e a previsibilidade dos
julgamentos. Até mesmo o ideal de acesso à justiça é reduzido ao valor da eficiência209.

Para os objetivos deste estudo, dois aspectos ilustrarão o vetor da eficiência


sobre o direito processual e a organização da justiça no Brasil: a aproximação do direito
com a gestão, a importância atribuída às ideias de segurança jurídica e previsibilidade nos
julgamentos.210 Os itens a seguir apresentam suas principais características e as regras
processuais a que correspondem.

207
Sobre Mattei, interessante que ele mudou completamente de perspectiva metodológica nas últimas
décadas, como se identifica pelo excelente trabalho de pesquisa que tem desenvolvido com a antropológa
Laura Nader (Mattei, U., & Nader, L. (2008). Plunder: when the rule of law is illegal. John Wiley & Sons).
208
Dentre essas merece nota, inclusive por se dedicar a analisar mecanismo do novo CPC, o trabalho de
Júlio Muller, sobre convenções processuais e a prova oral, dedica o capítulo final à sistematização de pontos
de contato entre o direito processual e a análise econômica do direito (MULLER, 2016). Também merece
registro, inclusive pela influência que teve no desenho do novo Código, a oferta da disciplina “Análise
Econômica do Direito Processual”, pelo Ministro Luiz Fux, junto ao Programa de Pós Graduação do Centro
Universitário de Brasília – Uniceub,
(https://www.uniceub.br/media/1290912/Análise_Econômica_do_Direito_Processual.pdf, acesso em
janeiro de 2018. A eficiência é invocada para justificar diferentes inovações do Código. A título de
exemplo, a adaptação das regras processuais por meio de acordos celebrados pelas partes. Antônio Cabral
elege a eficiência como “uma das vantagens mais evidentes dos acordos processuais” (2016, p. 194; com
apoio em referências nacionais e estrangeiras, dentre as quais uma decisão da Suprema Corte norte-
americana). Segundo ele, “(...) flexibilização e adaptação são características necessárias para emprestar
eficiência ao processo atual.” A valorização dos precedentes é fundada sobretudo na busca pela
previsibilidade das decisões, reivindicação antiga dos economistas em relação ao direito (FARIA, 1993).
209
Por todos, CAIS, F.F. (2016) “O paradoxo do acesso à justiça”. In: PUOLI, José Carlos Baptista;
BONÍCIO, Marcelo José Magalhães; LEONEL, Ricardo de Barros (Coord.). Direito processual
constitucional. Brasília, DF: Gazeta Jurídica.
210
Para fins de sistematização didática, eventulamente designo-as pelos termos “gerencialismo processual”,
“jurisprudencialismo” e “pragmatismo processual”. Embora ciente de que os termos remetam a ideia de
movimentos filosóficos ou teóricos consolidados (sobretudo pela designação...ismos que aqui os
acompanha), é preciso registrar que não são termos reconhecidos e menos ainda consagrados na teoria
processual. Streck e Abboud fazem um comentário crítico sobre o uso dos vários ismos pela teoria
processual (STRECK, L.L.; ABBOUD, G. O que é isto – precedente judicial e súmulas vinculantes? 3a.ed.,
rev. atual. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2016). A designação aqui usada serve tão somente para
facilitar a identificação e diferenciação para fins deste estudo.

192
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

2.1.1. Gerenciamento de processos judiciais – ou, das boas ou más relações


entre o “direito e a gestão”

As políticas judiciárias da última década e a recém instituída legislação


processual brasileira oferecem incentivo a que os atores da relação processual, juiz e
partes, internalizem uma racionalidade gerencial para as atividades do processo e o
exercício da jurisdição211. Com o objetivo de reduzir o tempo de tramitação dos processos
e os custos para as partes e para o Estado, bem como alcançar um resultado mais desejado
de justiça, leis processuais têm investido em um conjunto de regras que se tem chamado
de “gerenciamento de processos judiciais” - em tradução direta de mecanismo homônimo
em sistemas anglo-saxãos, o “judicial case management”212.

Menos um receituário técnico e mais uma outra racionalidade para o exercício


da jurisdição (ALVES DA SILVA, 2010), o “gerencialismo” visa a racionalizar a relação
entre “processo” e “produto” no âmbito da resolução das disputas e realização de justiça.
Seus escopos estão orientados para a gestão eficiente da Justiça, a economia processual e
a efetividade da tutela no sentido da adequação do processo ao conflito e aos resultados
possíveis. Ele também se funda no aumento do poder dos atores processuais – o juiz ou
as partes, conforme o modelo adotado - no planejamento e condução do processo.

O gerenciamento de processos judicias é abrangente de instrumentos de diferente


natureza e focos específicos, utilizáveis em diferentes níveis e âmbitos da Justiça
(ONODERA, 2016)213. Como exemplo, ele faz uso da flexibilização procedimental, da
diversificação dos tipos de solução conferidas às disputas, da reorganização judiciária e
de técnicas variadas de gestão do volume processual (ALVES DA SILVA, 2010).

211
A tendência é um reflexo de similar movimento observado nas organizações em geral, públicas e
privadas. Para uma excelente explicação sobre seus efeitos do managerialism sobre o direito e o modo
como o sistema jurídico o apropria, reformata e replica nas práticas jurídicas, v. EDELMAN, 2016.
212
Por inspiração em instrumento homônimo de regimes jurídico processuais de common law, como as
regras das cortes federais norte-americanas e as do novo código de processo civil inglês. V. ALVES DA
SILVA, 2010, cap. 2. Também compara o gerenciamento de processos dos modelos de common law, a
dissertação de mestrado de Thiago Carlos de Souza Brito, orientada pelo professor Gláucio Ferreira Maciel
Gonçalves, no âmbito do programa de Pós Graduação em Direito da UFMG, 2013.
213
Marcus K. Onodera faz um levantamento das possibilidades de uso do gerenciamento de processos no
âmbito dos juizados especiais, dos processos coletivos, na mediação e arbitragem e no procedimento
comum regulado pelo CPC. ONODERA, Gerenciamento do processo (case management) no direito

processual civil brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 2016.

193
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A versão final do CPC de 2015 consagrou a tendência do gerenciamento de


forma esparsa, porém abrangente das variadas técnicas que podem ser reunidas sob o
escopo de racionalização da jurisdição. Embora não aprovados os textos originais dos
artigos 107, inc. V214 e 151, parágrafo único215, que previam um mecanismo mais ousado,
porém inquisitorial de gerenciamento processual, as possibilidades para o exercício dessa
racionalidade no processo civil brasileiro se ampliaram sensivelmente.

Diferentes regras do CPC de 2015 podem subsidiar o gerenciamento de


processos judiciais. No âmbito estritamente processual, o gerenciamento pode se
manifestar no nível do caso particular, principalmente pela “organização” das atividades
intermediárias realizadas antes da instrução, na qual o juiz basicamente “gerencia” o
processo junto com o “saneamento”: resolve questões processuais pendentes; delimita
questões de fato, define o ónus da prova; delimita questões de direito e designa e já
planeja, se o caso, audiência de instrução – art. 357216. No nível mais amplo da
organização da unidade judiciária e, em última análise, do próprio Poder Judiciário,
também se exerce pelo julgamento coletivo de demandas repetitivas operado pelo
incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976 e ss.) e o julgamento dos
recursos especiais e repetitivos (arts. 1036 e ss.) – objeto de comentário específico a
seguir217. Ao primeiro, pode-se designar “gerenciamento processual” e ao segundo,
“gerenciamento judicial”.

214
Anteprojeto de CPC, Art. 107. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: (...) V – adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, de modo a
conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa;
215
Anteprojeto de CPC, Art.151. Os atos e os termos processuais não dependem de forma determinada,
senão quando a lei expressamente a exigir, considerando-se validos os que, realizados de outro modo, lhe
preencham a finalidade essencial. § 1o Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revela-
rem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório
e a ampla defesa, promover o necessário ajuste.
216
Há uma identificação forte entre a atividade prevista para ser desenvolvida e formalizada no despacho
saneador e o que hoje se chama por “gerenciamento de processos”. Uma leitura simples, sempre
recomendável, da obra clássica de Galeno Lacerda esclarece os pontos de correspondência (LACERDA,
1990). Uma análise a esse respeito, cf. ALVES DA SILVA, 2010.
217
Camilo Zufelato faz uma interessante sistematização do que chama de perspectivas “macro” e “micro”
do gerenciamento de processos judiciais, em ZUFELATO, C.. Flexibilização procedimental e gestão
processual no direito brasileiro. In: ZUFELATO, Camilo; BONATO, Giovanni; SICA, Heitor Vitor
Mendonça; CINTRA, Lia Carolina Batista. (Org.). I Colóquio Brasil-Itália de direito processual civil.
1ed.Salvador: Salvador, 2015, v. 1, p. 245-264. Diego Assumpção Rezende de Almeida identifica, na
experiência inglesa, a decisão de uma Court of Appeal daquele país que “sustentou que a gestão proativa
dos processos não pode limitar-se ao caso específico que está sendo gerido pelo tribunal naquele momento.
É fundamental que os juízes lidem com os casos individualmente, mas levando em consideração a
existência de outros que também estão pendentes de julgamento”. (ALMEIDA, 2015, p. 38)

194
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A Lei de Mediação também encampa o gerenciamento de processos judiciais ao


definir as espécies de resolução consensual, seus requisitos, procedimentos e efeitos. No
caso, a Lei vai além e amplia o potencial do gerenciamento i) ao instituir um novo desenho
de organização do Judiciário com os Centros Judiciais de Solução de Conflitos (os
CEJUSCs) e ii) desenhar e articular um sistema de técnicas de resolução consensual de
disputas para utilização dentro e fora do âmbito da justiça estatal, inclusive e em caráter
de destaque pelos órgãos da Administração Pública218. A institucionalização do chamado
“sistema multiportas” de resolução de conflitos (arts. 3o e 165 do CPC; LM, passim),
consistente na diversificação dos métodos de resolução de conflitos e dos tipos de tutela
obtida pelo processo, também é utilizada como forma de gerenciamento de processos
judiciais (LORENCINI, 2012).

O atual CPC consagrou técnicas que vinham sendo aplicadas em caráter isolado
a partir de um modelo pioneiro de gerenciamento de processos judiciais (GRINOVER,
LAGRASTA, WATANABE, 2007), como o dever da promoção dos métodos
consensuais (art. 3o) e a possibilidade de o juiz definir prazos e organizar calendários
processuais (art. 139 e 191). Todos os envolvidos no processo - partes, representantes e
o julgador -, ficam incumbidos de estimularem a resolução consensual (art. 3o). E as
partes podem convencionar sobre ônus, poderes, deveres e faculdades processuais (art.
190) e o juiz, com elas, pode fixar um calendário processual – técnica conhecida nos
modelos de case management das cortes federais norte-americanas desde a década de
1990 (ALVES DA SILVA, 2010). O negócio jurídico processual e o calendário
processual (art. 190 e 191, objeto de item específico infra) também invocam premissas
de gerencialismo, acrescidas, no caso, à ideia de autorregramento pelas partes
(NOGUEIRA, 2016; CABRAL, 2016).

O Código também investiu no gerenciamento do volume de processos judiciais,


o que fez pela atribuição de efeitos persuasivos e/ou vinculantes à jurisprudência dos
tribunais (art. 927, comentado em item específico infra) e pela criação de um incidente
que permite o aproveitamento da decisão de um caso na resolução de tantos outros
similares (art. 976 e ss., idem). A otimização da atividade dos tribunais por meio da

218
Conforme a sistematização de tendências da nova legislação processual brasileira feita neste estudo,
essas técnicas integram tanto o gerencialismo quanto o consensualismo, analisado em item próprio adiante.

195
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

função de unificação da jurisprudência também contém aspectos de racionalidade


gerencial no exercício da jurisdição (MITIDIERO, 2017).

Esse abrangente conjunto de técnicas pode ser agrupado sob a tendência do


gerenciamento porque, embora de natureza e objetivos próprios, comungam o escopo de
redução do tempo e dos custos dos processos (para partes e o Estado) e a maior adequação
da decisão ao caso concreto – traços que caracterizam as iniciativas originais de “judicial
case management” (ALVES DA SILVA, 2010).

Da perspectiva mais ampla do desenho do modelo de justiça, o traço mais


marcante do gerenciamento é a aproximação que promove entre o direito e a gestão. Nem
sempre cômoda, esse movimento exige cuidados técnicos especiais, impõe limites mais
estreitos para as técnicas a ele articuladas e condiciona os seus resultados, inclusive em
termos de acesso à justiça.

O direito e a gestão, mais do que áreas específicas do conhecimento humano,


são racionalidades distintas que pautam o desempenho de qualquer atividade, pública ou
privada. Ambas possuem natureza instrumental técnica: o direito é uma técnica de
decidibilidade, diria Sampaio Ferraz Jr., e a gestão é uma técnica para otimizar a produção
de bens ou serviços com recursos escassos, diria um manual na área.

A despeito de alguma similitude que possa haver entre suas naturezas técnicas –
e entre algumas categorias conceituais básicas, como o próprio “processo” (NOGUEIRA;
ALVES DA SILVA, 2013) – as suas premissas e características não necessariamente são
compatíveis, o que dificulta comungar seus objetivos em instrumentos híbridos
específicos.

A principal incompatibilidade entre o direito e a gestão está no papel que cada


uma atribui ao padrão e à rigidez dos seus procedimentos. As regras jurídicas têm caráter
padronizado e rígido - especialmente, aliás, o direito processual – porque supõe que isso
proporciona a ordem, a segurança e a isonomia que compõem o seu sentido de justiça. De
seu turno, as técnicas de gestão têm natureza essencialmente flexível e “customizada”,
para conseguir se adaptar sem riscos às circunstâncias concretas e, assim, ter condição de
produzir resultados mais rentáveis com menos dispêndio de recursos – elementos que
integram o seu sentido de eficiência. A rigidez e a padronização das regras jurídicas
favorecem o alcance de estabilidade, previsibilidade e segurança na atividade
(NOGUEIRA; ALVES DA SILVA, 2013). A flexibilidade e versatilidade das técnicas

196
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

de gestão favorecem a customização dos processos e dos produtos desejados. Rotina e a


padronização conferem segurança e previsibilidade – valores priorizados pela
racionalidade jurídica - e, por outro lado, flexibilização e adaptação potencializam a
eficiência dos meios e resultados mais eficazes – priorizados pela racionalidade gerencial.
A gestão constrói processos preocupada em maximizar os resultados de eficiência; a
justiça desses processos praticamente é irrelevante. O direito constrói processos
preocupado em realizar a justiça na sociedade; mas, porque isso acontece por meio de
uma atividade estatal, também incorpora um cuidado com a eficiência, o que cada vez
mais sensível atualmente.

A conjugação de racionalidades com características distintas em um mesmo


sistema processual é tão potencialmente profícua quanto concretamente complexa. O
balanceamento depende, inicialmente, da identificação prévia dos pontos em que se
articularão com sinergia e aqueles em que sua incompatibilidade colocaria a operação do
sistema em risco219. A disponibilidade do procedimento e o acesso à justiça são dois
desses pontos sensíveis.

Porque padronização e rigidez são os elementos que pautam o diálogo entre o


direito e a gestão, a velha questão da ordinarização do procedimento220 e da flexibilização
procedimental reaparece com o gerenciamento de processos judiciais. A ideia de um rito
comum padrão para todas as disputas é baseada na premissa da isonômica oferta de
garantias processuais a todos os litigantes. E o fato desse rito, além de padronizado, ser
também rígido justifica-se na premissa tipicamente jurídica de igualdade e
indisponibilidade das regras de forma. Por outro lado, a constatação da complexidade das
relações sociais e a dificuldade de reuni-las todas sob um mesmo procedimento único de
resolução de disputas torna difícil não se pensar em flexibilizar e adaptar os caminhos
possíveis de forma a adequa-los ao caso concreto – manifestação típica de racionalidade
gerencial221.

219
Por isso entendo que o gerenciamento de processos judiciais é uma racionalidade, mais do que um mero
receituário de técnicas (Alves da Silva, 2010).
220
Que o professor Ovídio B. da Silva sempre trouxera à pauta de debates, em diversos seus estudos.
221
Cabral constrói o argumento da eficiência dos acordos processuais com base na “insuficiência do
procedimento ordinarizado, mas também [d]o esgotamento das potencialidades do modelo de
procedimentos especiais.” (2016, p. 195). A complexidade característica das sociedades contemporâneas
exige uma dose de versatilidade da atuação jurisdicional que o rito ordinário não tem condições de oferecer,

197
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Desencadeada pela caneta do juiz ou pela manifestação de vontade das partes222,


a adaptação do procedimento opera pela gestão dos meios disponíveis em vista dos
resultados pretendidos, o que é característico de uma racionalidade gerencial aplicada ao
processo judicial. A questão é definir se ambos os atores do processo terão esse poder.

A saída oferecida pelo novo Código para balancear a segurança de uma rotina
padronizada e a conveniência de um processo customizado foi atribuir essa
responsabilidade aos próprios atores do processo, as partes, com ou sem o juiz. As
convenções em matéria processual, operacionalizadas principalmente pelo negócio
jurídico processual (art. 190), bem como o calendário procedimental (art. 191), são
exemplos223. Esta saída tem o mérito de valorizar a liberdade das partes no processo,
potencializar o grau de adaptação das formas processuais às necessidades do caso, além
de eximir o legislador da custosa tarefa de encontrar um procedimento “one size fits all”,
como se tem dito. Como sintetiza Cabral (2016, p. 200) acerca deste ponto, “a definição
do desenho de cada procedimento, quando operada pelas partes, traduz poderosa técnica
de gerenciamento processual em favor da eficiência.”.

Por outro lado, a solução do CPC 2015 traz um desafio novo no diálogo entre o
direito e a gestão: a do poder de definição dos procedimentos. Na gestão, essa questão
simplesmente não existe, ou não é sensível o suficiente para ser destacada. Os
procedimentos são definidos em função do menor custo que incorrerem para a produção
de uma mesma quantia de igual produto. Este é o vetor quase que exclusivo no desenho
dos procedimentos. Não existe uma polarização entre atores envolvidos no processo
produtivo quanto à escolha do procedimento – ou melhor, ela provavelmente existe, mas
não é considerada relevante.

como também não o têm os procedimentos especiais e mesmo as tutelas jurisdicionais diferenciadas, “e a
busca por maior eficiência, por uma gestão de risco, certeza etc., levou ao crescimento do interesse em
alterar essas regras” (p. 195)
222
Antônio do Passo Cabral justifica a viabilidade de uma gestão dialogada e cooperada do procedimento
pelas partes a partir das experiências do case management e a do princípio da adaptação do procedimento
(CABRAL, 2016, p. 196). Ele compara os mecanismos norte-americano e inglês com o princípio da
adaptação do procedimento adotado pelo sistema português para, diante do fato de que aqueles operarem
no sentido do deslocamento da condução do processo das partes para o juiz, argumentar que “a inserção do
tema da adaptabilidade no Brasil veio pela influência portuguesa” (idem)
223
Nesse sentido., ALMEIDA, 2015, pp. 32 e ss.; CABRAL, 2016, p. 198 e ss.

198
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Algo muito diferente acontece no processo judicial: não apenas cada uma das
partes têm interesses específicos de natureza material e processual, como o Estado, na
pessoa do juiz, interessa-se pelo desenho procedimental a que estará sujeita a atividade
jurisdicional. Todos desejam os melhores resultados em termos de eficiência, mas nem
sempre – dificilmente, inclusive - comungam o sentido que atribuem a “resultado mais
eficiente”224.

Em síntese, o desenho do CPC de 2015 para o gerenciamento de processos


judiciais propõe a combinação das racionalidades jurídica e organizacional por meio da
ampliação do papel das partes, diferenciando-se do modelo original. Embora preveja
técnicas suficientes para que o juiz exerça o gerenciamento de processos, a possibilidade
das partes convencionarem sobre o procedimento torna peculiar o modelo brasileiro225.

Porque conjugado às convenções processuais, o gerenciamento de processos do


CPC de 2015 inova em relação ao instrumento original, estruturado a partir da maior
envolvimento e condução ativa do juiz – como era o modelo de “judicial case
management” da common law. Em seu lugar, o gerenciamento resulta do exercício pelas
partes de autorregramento processual, por meio das convenções e negócios jurídicos
processuais (art. 190; ALMEIDA, 2015; CABRAL, 2016226).

224
Dentre os principais limites do gerenciamento de processos judiciais para a promoção do acesso à justiça
é a relação complexa entre os ideais de justiça e eficiência. Em grande parte dos casos, uma decisão eficiente
tende a ser justa e um processo eficiente tende a culminar em uma decisão justa. Mas nem sempre é assim.
A relação entre justiça e eficiência está distante de uma proporcionalidade absoluta. A justiça tem premissas
e premências próprias, nem sempre coincidentes com as de eficiência. O desafio particularmente imposto
à teoria processual, ao entrar nesse debate, é identificar se e em que medida o direito processual, porque
eminentemente técnico e instrumental, seria mais propenso a equilibrar a relação entre eficiência e justiça
do que outras áreas do direito material.
225
Some-se o fato de que os artigos 107, inc. V e 151 do Anteprojeto do Código, que previam um tipo de
gerenciamento processual baseado nos poderes do juiz, não terem sido aprovados na versão final.
226
Cabral (2016, p. 196) argumenta que, por esse motivo, o nosso gerenciamento de processos judiciais
teria inspiração na legislação portuguesa, que anos antes introduzira uma regra de adaptação do
procedimento. Faz sentido o argumento do ponto de vista das suas semelhanças com a flexibilização do
procedimento. Mas é equivocado do ponto de vista histórico. O gerenciamento de processos judiciais, ao
menos com esta denominação, foi implantado no Brasil, em caráter exploratório, por meio de um projeto
desenvolvido pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, o CEBEPEJ. Como declaram seus
idealizadores, a inspiração foi o modelo de case management das cortes federais norte-americanas,
conhecido quando de visita realizada (GRINOVER et al, 2007). Como o modelo se baseava na
flexibilização do procedimento, tanto quanto na resolução consensual das disputas, ele foi analisado
teoricamente da perspectiva da flexibilização do procedimento, em caráter pioneiro e excelente qualidade
técnica, convém registrar, pelo colega Fernando Gajardoni (GAJARDONI, 2008)

199
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Ambos esses fatores - os termos do embate entre direito e gestão e as


características do modelo de gerenciamento de processos judiciais do CPC - são
determinantes dos resultados de acesso à justiça do sistema. Em tese, o “gerencialismo”
potencializa o acesso à justiça, uma vez que a racional organização e o eficiente
funcionamento do sistema processual tende a incrementar as possibilidades de as partes
promoverem um contraditório efetivo, em prazo razoável e focado em uma adequada
tutela de direitos. O menor tempo de duração dos processos, a redução dos custos gerais
do processo e a adequação das técnicas e das soluções obtidas às peculiaridades do caso
concreto são indicadores presumíveis de acesso à justiça227. A reforma do processo civil
inglês, por exemplo, orientada pela perspectiva do “gerencialismo” processual
expressamente invoca a ideia de acesso à justiça como sua principal justificativa
(WOOLF, 1995 e 1996; ANDREWS, 2010).

Por outro lado, os dados coletados nas experiências anteriores – a inglesa e a das
cortes federais norte-americanas – demonstraram que o “case management” produz, para
usar a terminologia economicista, externalidades negativas que podem restringir, em vez
de assegurar, o acesso à justiça. O custo é a principal delas.

O processamento customizado das disputas aumenta os custos de


acompanhamento dos processos pelas partes e seus advogados, e para o próprio
Judiciário, considerando o maior envolvimento do juiz e do seu staff na condução da
causa (ALVES DA SILVA, 2010). Isso é bastante presumível, considerando a elementar
lição em gestão de que bens ou serviços padronizados são mais baratos do que aqueles
adaptados aos desejos do cliente228. Na experiência inglesa, o aumento do custo do “case

227
Como exemplo, Cabral justifica os acordos processuais do ponto de vista do acesso à justiça sob o
argumento de que eles atenderiam melhor às necessidades dos litigantes. Porque permitem adaptar o
processo às “necessidades dos litigantes (legal needs)”, são importantes “para que o acesso à justiça seja
pensado não apenas da perspectiva da tutela oferecida (ou na óptica do próprio Judiciário), mas com olhos
voltados para as necessidades humanas que precisam do Estado-juiz”. (CABRAL, 2016, p. 201). Na mesma
linha parece ser a conclusão de Marcus Onodera (ONODERA, 2016).
228
Há uma fala interessante quando se trata tanto de gerenciamento de processos judiciais quanto de
resolução “alternativa” de disputas que ilustra bem esse argumento. Afirma-se, para justificar esses
mecanismos, que as pessoas, e os seus casos, não são todos iguais, de sorte que o procedimento ordinário
ou a decisão adjudicatória não servem perfeitamente a todas elas. A figura utilizada é a de uma espécie de
“one size fits all”, no sentido de uma vestimenta de tamanho único para todas as pessoas, casos e situações.
Parece-me indubitavelmente correto o argumento. Como também parece-me plausível a constatação de que
a “fabricação” de procedimentos e soluções específicas, “customizadas” para usar um termo próprio,
embora adequados, têm um custo consideravelmente maior do que aqueles padronizados. Em outras
palavras, o gerenciamento de processos judiciais têm um custo maior do que o tratamento ordinário padrão

200
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

management” foi mais sensível para o Judiciário e também para os advogados, o que
permite supor que algo semelhante também para os sistemas em que a gestão dos
procedimentos esteja a cargo das partes, não apenas do juiz, como o brasileiro.

Do ponto de vista do acesso à justiça, portanto, o “gerencialismo processual”,


que abrange diferentes técnicas voltadas à racionalização da atividade jurisdicional e
processos de resolução de disputas, está sempre acompanhado, porque envolve
racionalidades distintas, de um risco de incompatibilidade as premências e objetivos de
cada uma delas, o que se projeta para os resultados substanciais de justiça. Em termos
mais concretos, a adaptação dos processos e da tutela às circunstâncias do caso concreto,
que potencializa a qualidade da justiça alcançada, gera um custo que pode vir a ser
proibitivo para a grande maioria dos litigantes. Similarmente, a despadronização que
resulta da flexibilização das formas implica na perda das segurança e isonomia que as
formas idealmente provêm - com maiores riscos do ponto de vista das desigualdades entre
os litigantes, escopo fundamental da ideia de acesso à justiça (cap. 1) e principal
característica da litigância judicial no Brasil (cap. 2). Em outras palavras, o
“gerencialismo processual” é, em si, acompanhado de riscos inerentes à sua própria
natureza.

Somado a isso, o modelo de gerenciamento instituído pelo CPC 2015, com a Lei
de Mediação, reduziu as possibilidades de controle sobre esses riscos ao transferir para
as partes o papel de montarem o desenho do procedimento aplicável ao caso. Como
veremos em item específico adiante, os limites e o controle sobre as convenções
processuais são aqueles definidos no artigo 190, com os que lhe tem atribuído a doutrina
especializada. De todo modo, porque o objetivo era justamente dotar o processo de
flexibilidade procedimental e maior âmbito de liberdade para as partes, não se trata do
mesmo grau de controle concentrado que seria possível seria exercível pelo juiz – como
acontece nos modelos originais de case management. A conjugação do direito com a
gestão por meio dos processos de resolução de disputas sai do controle do legislador e,
no caso brasileiro, não entra no controle do juiz, mas daquele exercido pelos próprios
litigantes, na composição do exercício de suas liberdades no processo. Esse modelo traz
o indubitável benefício das vantagens do processo customizado com o custo e risco, em

dos processos, como apontam os dados coletados na experiência inglesa e norte-americana. V. ALVES DA
SILVA, 2010.

201
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

relação ao modelo original de gerenciamento, de que as desigualdades entre os litigantes


contaminem os resultados substanciais de justiça.

2.1.2. Valorização formal da jurisprudência – um peculiar regime de


unificação de decisões judiciais

Outro destaque da legislação atual é a importância atribuída à jurisprudência


como critério para decisão de casos similares, em caráter persuasivo ou vinculante229.
Não é exatamente uma novidade do Código, mas o reforço e a ampliação das hipóteses
de cabimento, somados às características peculiares do regime brasileiro, são marcas da
legislação recente.

A sua característica mais visível é a possibilidade de a jurisprudência servir


como critério para a decisão imediata de casos similares. Visto em detalhes, a
jurisprudência passa a ser considerada fonte principal do direito, ao lado da própria lei.
Como explica Mitidiero (2017), a isso acompanha uma transformação de toda teoria da
interpretação jurídica, ora pautada em uma atividade de “adscrição” dos sentidos textuais
e não textuais da norma jurídica.

Diferentes valores fundam uma opção de um sistema jurídico pela valorização


da jurisprudência: a tradição jurídica; a segurança jurídica; a eficiência do sistema; a
economia processual; e um tipo especial de igualdade, pautada pela uniformização dos
resultados dos processos. Concretamente, alguns elementos condicionam essa escolha: o
modo como se estrutura o ordenamento; as fontes do direito tradicionalmente aceitas; a
funcionalidade do sistema de justiça; o controle sobre instâncias inferiores; a busca por
uniformidade nas decisões judiciais; o balanceamento das desigualdades naturais das
partes, entre outros.

No caso brasileiro, a opção legislativa – que, vale anotar, já era notada na década
de 1990 – ancora-se em duas principais justificativas: a exigência concreta de organização
judiciária e economia processual - o que vai desde uma solução para o problema
emergente da “carga de trabalho” nos tribunais brasileiros (cf. dados no cap. 2, supra) até

229
Na verdade, o termo jurisprudência é mais amplo do que o sentido que se deseja atribuir aqui e, ao
mesmo tempo, mais restrito. Jurisprudência é mais do que o entendimento que serve de critério de decisão
de casos posterior. Mas entendimentos judiciais que não se qualificam como jurisprudência também
exercem esse papel de critério de decisão. Sobre a diferença entre jurisprudência e precedentes, v. Mitidiero
(2017).

202
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

o direcionamento das cortes supremas para a função de unificação dos sentidos da norma
jurídica – e a busca por uma noção de justiça identificada como segurança jurídica e
igualdade de resultados – soluções iguais para casos iguais, to treat like cases alike -,
mais enfatizada na legislação recente.

A justificativa imediata parecer ter sido de caráter prático: desafogar os tribunais


de um volume descomunal de processos - a maior parte, segundo se argumenta, composta
de requerimentos de reexame de decisões dos juízos inferiores, em massas de litígios com
fundamentos jurídicos comuns; a chamada “litigiosidade de massa” ou “repetitiva”230.

Os argumentos de natureza sistêmica foram incorporados ao longo do debate: a


valorização da jurisprudência permitiria racionalizar o funcionamento do Judiciário
brasileiro, organizando seus níveis conforme funções específicas. Varas de primeira
instância recebem e processam os pedidos e respostas, produzem provas e apreciam o
caso; tribunais intermediários reexaminam essa atividade, confirmando ou não seus
julgamentos; e tribunais superiores asseguram que a massa de decisões das instâncias
inferiores seja minimamente coesa e uniforme – função que também exercem, no âmbito
de suas jurisdições, os tribunais intermediários em relação aos juízos de primeira
instância.

A mudança reafirma a velha lição de que os tribunais superiores não são órgãos
de revisão e que seriam melhor aproveitados como agentes de unificação do sistema; eles
integram, afinal, uma instância especial, não uma “terceira instância” julgadora de litígios
singulares.

Em termos dos benefícios à sociedade, a justificativa se atrela a um sentido de


justiça baseado na isonomia de resultados: na medida em que minimiza a “dispersão
excessiva da jurisprudência”231, a valorização da jurisprudência permite que a Justiça
ofereça respostas iguais a situações materiais equivalentes.

230
Remeto o leitor à definição de “litigiosidade de massa” e “litigiosidade repetitiva” apresentada no correr
do capítulo 1. Essencialmente, há diferenças entre os fenômenos - a litigiosidade repetitiva não
necessariamente é de massa, e a litigiosidade de massa pode não ser repetitiva. Contudo, é a sua
configuração conjunta que se torna problemática para o funcionamento do sistema e a unidade do
ordenamento, a suscitar tratamento processual especial. Opto, portanto, para os fins da investigação deste
estudo, por tratá-lo geralmente em conjunto, indistintamente.
231
Termo usado no debate doutrinário que veio a compor a Exposição de Motivos do Anteprojeto.

203
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O novo Código foi definitivo na implantação da valorização da jurisprudência


no sistema jurídico brasileiro. A tendência é anterior, mas a nova legislação soube
incorpora-la aos seus propósitos e necessidades específicas, alterando não apenas o
sistema processual, mas o sistema jurídico brasileiro como um todo.

Três tipos de regras de valorização da jurisprudência foram implantados pelo


Código. Um primeiro estabelece um dever geral a juízes e tribunais de organizarem e
seguirem a jurisprudência. Outro tipo estabelece formalmente listas de pronunciamentos
judiciais considerados “jurisprudência” vinculante. E um terceiro institui mecanismos
específicos que permitem julgamentos por amostragem baseados em jurisprudência, com
abreviação do procedimento em litígios individuais.

Na primeira categoria, o CPC instituiu o dever de os tribunais “uniformizar[em]


sua jurisprudência e manter[em-nas] estável, íntegra e coerente” (art. 926, caput) e de
editarem “enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante” –
atividade na qual devem “[se ater] às circunstâncias fáticas dos precedentes que
motivaram sua criação” (art. 926, parágrafos). Uma outra regra nessa categoria incluiu a
jurisprudência como requisito de fundamentação suficiente das decisões judiciais - tema
da mais alta relevância e complexidade atuais. O Código considera inválidas as decisões
que desconsideram a jurisprudência e as que a invocam superficialmente (art. 489, inc.
IV e V)232.

De forma inédita, o CPC de 2015 fez uso de uma lista de pronunciamentos


judiciais que devem ser “observados” pelos tribunais233. Os incisos do artigo 927 listam,
de modo concentrado, as

“decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de


constitucionalidade; os enunciados de súmula vinculante; acórdãos em
incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas
e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; enunciados

232
CPC, art. 489, §1o, inciso VI: “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente
invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento” e inciso V: “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.
233
A doutrina atribui um sentido bastante geral ao verbo “observar” presente nesse dispositivo. Não se trata
de um dever de seguir estritamente o entendimento exposto no que se considera jurisprudência, mas de lhe
dar devida consideração, conforme as regras legais pertinentes. Se a lei lhe atribui efeito persuasivo, a
decisão deve considera-lo e apenas sob forte fundamentação eventualmente recusar-lhe aplicação. Já se a
lei lhe atribui efeito vinculante, “observar” significaria aplica-la ao caso. Neste sentido, MITIDIERO (2017,
pp. 81 e ss).

204
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do


Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; orientação do
plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.” (art. 927).

Em outros dispositivos, o Código faz uso de listas de pronunciamentos com


eficácia se não vinculante, ao menos persuasiva o suficiente para ser usada como critério
de julgamento, para uso em mecanismos específicos - como é o caso do art. 489, IV e V,
comentado acima, e artigo 332, comentado a seguir234.

O conjunto das listas é relativamente semelhante, mas as situações específicas


nelas contidas diferem entre si. Em alguns casos, o efeito persuasivo ou vinculante do
pronunciamento listado decorre da sua própria natureza de “jurisprudência”, e em outros
casos decorre de outros fatores – como no caso da eficácia erga omnes do controle
concentrado de constitucionalidade do inciso I do art. 927 (MITIDIERO, 2017). Também
se discute se a lista é exaustiva de todas os pronunciamentos cuja observância é necessária
para a unidade do ordenamento, ou meramente exemplificativa (idem). De todo modo, o
fato do Código fazer a listagem concentradas das hipóteses, somado ao dever imposto aos
tribunais no artigo anterior, além de facilitar a sua aplicação concreta pelos tribunais, é
consideravelmente significativo de uma nova configuração das fontes do direito
admitidas pelo ordenamento brasileiro.

A opção por listar, em dispositivo legal, pronunciamentos que devem ser


considerados “jurisprudência” diz muito sobre a peculiaridade do regime brasileiro de
“precedentes”. Nem todos os pronunciamentos listados, poucos aliás, expressam
verdadeiros precedentes. A sua eficácia persuasiva ou vinculante não lhes fora atribuída
pela adesão coletiva e espontânea às suas “razões de decidir” e a legitimidade que esse
procedimento assegura – o que, em síntese, caracteriza um verdadeiro procedente em
sistema de “case law”. Adquirem-no por meio de uma formal e discricionária outorga
legislativa, ou porque enquadrados em uma lista ou porque resultam de um especial

234
V. a seguir comentários sobre as hipóteses de improcedência liminar do pedido (art. 332). Na
determinação do dever genérico dos tribunais observarem a “jurisprudência”, a lista é melhor detalhada:
“decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; enunciados de
súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; enunciados das súmulas do
Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional; a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.” Ambos
comentados logo a seguir.

205
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

procedimento - no caso, o do IRDR, abaixo comentado – o que Mitidiero chama de


“jurisprudência uniformizadora”, uma espécie nova de jurisprudência com efeitos
vinculantes, própria do sistema brasileiro235. O precedente dos sistemas de “case law”,
por sua vez, não nascem precedentes, mas se transformam nele com o tempo, ao
receberem, pelas suas qualidades intrínsecas, a adesão espontânea dos julgados futuros.
Dito de outro modo, o precedente “à brasileira”236 recebe tal título ao nascer, quase que
se forma nobiliárquica; o da common law, o adquire com o tempo. Metaforicamente, o
regime brasileiro de precedentes seria monárquico, e seu correspondente original,
republicano.

Por fim, o CPC de 2015 amplia os mecanismos de julgamento por amostragem


e elege a jurisprudência como critério para outras decisões tomadas no processo, inclusive
em caráter definitivo. São exemplos ilustres o incidente de resolução de demandas
repetitivas, o IRDR (art. 976 e ss.), os recursos especiais e extraordinário repetitivos (arts.
1036 e ss.), a improcedência liminar do pedido (art. 332) e os julgamentos sumários de
recursos pelo relator (art. 932). Analisa-los demandaria um estudo específico. Limito-me
aqui a alguns aspectos do IRDR: seus fundamentos; modus operandi; oportunidades de
participação e algumas considerações sobre a improcedência liminar do pedido.

O IRDR tem por principal característica, o que é também sua principal vantagem
em para a eficiência do sistema, a possibilidade de fixação de tese jurídica a partir do
julgamento de um caso, aplicável a todos os outros, atuais e futuros, individuais ou
coletivos, que versem sobre a mesma questão de direito (art. 985). Desta forma, o IRDR

235
Mitidiero (2017, p. 89), ao discutir outra questão, a diferença entre precedente e jurisprudência, parte de
um argumento semelhante ao constatar que o sistema brasileiro criara um novo sentido para a
“jurisprudência”, que ele ilustra com o de “jurisprudência uniformizadora”, vinculante não tanto porque
contém um precedente, mas porque resulta de uma determinada forma de julgamento à que o legislador
atribuiu efeitos equivalentes. Em suas palavras, “o Novo Código claramente outorgou outro sentido ao
termo jurisprudência – ao menos para determinados casos. Para essas situações, o Novo Código exige a
sua ressignificação: isso porque, ao emprestar força vinculante aos julgamentos de casos repetitivos e
àqueles tomados em incidente de assunção de competência (art. 927, III) no âmbito das Cortes de Justiça e
dispensar a múltipla reiteração de julgamentos como requisite para a sua configuração, na medida em que
basta um único julgamento mediante incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência, o direito brasileiro rompe em grande parte com a caracterização tradicional da
jurisprudência.”
236
O termo tem aparecido com crescente frequência no debate sobre o regime brasileiro de precedentes. Há
registros de seu uso por Lenio Streck e G. Abboud (2014), Zufelato (2015), Igor Raatz (“Precedentes
obrigatórios ou precedentes à brasileira?”), e já ganhou título de livro (ROSSI, J. C. Precedente À Brasileira
- A Jurisprudência Vinculante No CPC e No Novo CPC, São Paulo: Atlas, 2015).

206
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

procura prover, além da evidente economia processual, um grau desejável de segurança


jurídica e igualdade dos resultados à atividade jurisdicional.

Segundo o Código, o incidente poderá ser suscitado quando houver “efetiva


repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente
de direito” simultaneamente com o “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”
(art. 976). Seu resultado, como adiantado, será estendido a todos os outros casos com a
mesma questão jurídica pendente, no estado ou em todo o país, inclusive no âmbito dos
juizados especiais. Dessa forma, o IRDR permite à Justiça padronizar as respostas que
oferece para questões jurídicas similares, protegendo, segundo se argumenta, o valor da
igualdade.

As oportunidades de participação no IRDR também são especiais. O incidente


pode ser suscitado, além do juiz e representantes do MP ou Defensoria Pública, por
qualquer parte em processo supostamente repetitivo (art. 977). A instauração e o
julgamento do IRDR devem ser amplamente divulgados (art. 979), de forma a permitir
que pessoas, órgãos e entidades interessados na controvérsia possam requerer sua oitiva
pelo relator e durante o julgamento (art. 984), com apresentação e juntada de documentos
e requisição de diligências (art. 983). Os titulares de outros processos que versem sobre
a mesma questão podem participar nessa qualidade, de interessados, mas seus respectivos
processos ficarão suspensos enquanto julgado o incidente (art. 982) – o que deve
acontecer em um ano (art. 980). Estão sujeitos à suspensão os processos individuais ou
coletivos pendentes em todo o estado ou região e, se em sede de recurso especial ou
extraordinário, de todo o país (art. 982).

Na mesma categoria, está a regra que reproduz a improcedência liminar do


pedido (art. 332), introduzida no sistema em 2006 (art. 285-A do CPC anterior). O juiz
poderá, independentemente de citação do réu, julgar improcedente o pedido que
contrariar pronunciamentos judiciais considerados de eficácia persuasiva.237 A

237
CPC, Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do
réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em
incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - enunciado de súmula
de tribunal de justiça sobre direito local. § 1o O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o
pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. § 2o Não interposta a apelação,

207
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

jurisprudência serve como critério para o exercício de um julgamento imediato, ainda que
sem a citação do réu238. Outro exemplo é a da lista que condiciona o exercício dos poderes
de julgamento imediato pelo relator de recurso (art. 932). Diante de recursos interpostos
contra decisões fundadas ou que contrariem jurisprudência prévia, o relator poderá desde
logo julga-los em definitivo, negando-lhes ou concedendo-lhes provimento239.

Em todos esses casos que adotam a jurisprudência como fonte do direito, os


mecanismos encurtam o procedimento e encerram a relação processual240. A abreviação
das possibilidades de exercício de garantias processuais o legislador entendeu justificável
diante do cotejamento com os valores que orientam a nova legislação – no caso, a
economia processual, segurança jurídica que decorre da uniformização da jurisprudência
e, em última análise, o eficiente exercício da jurisdição.

É natural relacionar a valorização da jurisprudência a uma aproximação aos


sistemas jurídicos da common law.241 Sua origem, em verdade, é um pouco mais
complexa - o que não quer dizer que não provenha da common law, mas que essa
influência seja mais profunda e não se limita a uma mera importação de instrumentos
jurídico-processuais. A questão vai além do direito processual e envolve mudanças na
própria teoria do direito.

o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241. § 3o Interposta a apelação,
o juiz poderá retratar-se em 5 (cinco) dias.§ 4o Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento
do processo, com a citação do réu, e, se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar
contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias.
238
Neste caso, a tendência mais evidente é a do pragmatismo, apresentada no item seguinte; o
jurisprudencialismo serve como critério para o exercício de um julgamento imediato, ainda que sem a
citação do réu, atendendo a finalidade prática de “resolver problemas” (v. item a seguir)
239
CPC, Art. 932. Incumbe ao relator: (…) IV - negar provimento a recurso que for contrário a: a) súmula
do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido
pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência; V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a
decisão recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça
ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de
Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de
demandas repetitivas ou de assunção de competência.
240
Pound (1906), no famoso discurso sobre as causas da insatisfaçao popular com a justiça, falava do “preço
da uniformização” e do conflito interente à diversidade que caracteriza as sociedades contemporânea.
241
De modo geral, os autores especializados anunciam essa relação, atribuindo-lhe maior ou menor
determinância na instituição dos mecanismos no sistema brasileiro. Em tom mais crítico, merece menção
os argumentos de Streck e Abboud (2014). Mitidiero (2017, p. 71).destaca a origem francesa do termo
jurisprudência, no sentido por nós adotado, e aponta parentesco mais próximo com os assentos portugueses
e máximas italianas.

208
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Como analisa Mitidiero (2017), o percurso das teorias da interpretação jurídica


durante o século XX sugere que, em países de civil law e também de common law, a
constatação de que a norma jurídica não se limita à letra da lei e que a jurisdição faz algo
mais do que simplesmente declara-la. Isso levou a teoria do direito a conhecer melhor
“como julgam os juízes” e a tentar criar formas de assegurar que uma atividade tão
dispersa como a judicial proporcione um grau de unidade equivalente ao que se imaginava
ter quando apenas a lei (ou os costumes consolidados, no caso da common law) eram
fonte do direito242 243.

A valorização da jurisprudência é uma consequência dessa constatação e os


mecanismos de vinculação dos juízes a pronunciamentos ou razões de decidir utilizadas
em casos anteriores é resultado das tentativas de promover a unidade do sistema. Para
tanto, naturalmente, os mecanismos tradicionalmente utilizados pelos sistemas de
common law tornaram-se a inspiração direta – precedent, ratio decidendi, obter dictum,
distinguishing e overruling são termos e instrumentos comuns naquela tradição, adotados
como referência para a construção de similares em outros países. Sobre eles, cada sistema
articulou o seu conjunto de mecanismos próprios. O CPC de 2015 é um exemplo, tanto
pela inspiração na common law quanto pela peculiaridade do desenho aqui dotado244.

No caso brasileiro, a dupla ordem de impulsos que motivam a valorização da


jurisprudência – a eficiência organizacional e a noção de justiça como segurança jurídica
e isonomia de resultados -, somada à forma “nobiliárquica” como o sistema de
precedentes foi organizado, condicionam os resultados da tendência em termos de acesso
à justiça e regulação da litigiosidade.

242
A sintética e sofisticada análise de Daniel Mitidiero (2017, p. 53 e ss.) sobre a evolução da teoria da
interpretação é excelente indicação para este debate. A ilustração que constrói do percurso da teoria da
interpretação por meio dos argumentos de quatro referenciais teóricos do direito, cujos picos de influência
no Brasil coincidem com a própria evolução retratada, é muito esclarecedora: Hans Kelsen em 1934, H.
Hart em 1961, Giovane Tarello, 1980 e Neil McCormick, 1991.
243
Vale observar que essa constatação é de inspiração tipicamente realista, o que projeta novamente a
questão da influência da common law, no caso sobre a teoria do direito em geral, não a uma ou outra área
dogmática do direito. Embora exista a corrente realista escandinava, a noção de que o direito é o que o juiz
diz em concreto é tipicamente do realismo norte-americano do início do século XIX (HERREN AGUILAR,
1996).
244
STRECK e ABBOUD (2014) fazem referencia aos precedentes à brasileira, assim como ZUFELATO
(2015). MITIDIERO alude ao conceito de “jurisprudência uniformizadora”, um hibridismo brasileiro de
jurisprudência com o papel uniformizador (unificador, ele diria) dos precedentes (2017, p. 70 e ss)

209
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O legislador demonstra preocupação com o “acesso à justiça”, ou o que entende


como tal, na tentativa de proporcionar tratamento isonômico ao jurisdicionado, eficiência
do sistema de justiça e unicidade do ordenamento jurídico. Esse ganho, contudo, é
acompanhado por outros resultados, nem todos desejáveis. Como exemplo, a
intensificação de características que atualmente já comprometem o acesso à justiça no
Brasil, como a desigualdade entre os litigantes, a concentração do uso do Judiciário para
alguns atores e a supressão de garantias processuais.

O sentido de acesso à justiça adotado no nosso regime de valorização da


jurisprudência é o de isonomia de tratamento, segurança jurídica e eficiência da justiça –
representada pela desobstrução da pauta dos tribunais, liberando-a para novos casos, e
pela unificação do ordenamento jurídico. Com isso, o CPC atende ao acesso à justiça,
como se tem argumentado. A segurança jurídica que decorre de uma jurisprudência
unificada protege e prioriza a liberdade e a igualdade dos cidadãos, na medida em que
lhes viabiliza o exercício consciente das vontade e, aos tribunais e os demais agentes de
solução de conflitos, permite tomarem decisões uniformes, com menor risco de criar
desigualdade a situações iguais.245

A valorização da jurisprudência também atende a outro aspecto do acesso à


justiça, consistente na percepção de justiça da população. Segundo os dados apresentados
no capítulo 2, o brasileiro, embora não confie na Justiça (v. cap. 2, item 2.2, supra),
procura o Judiciário (v. cap. 2, itens 2.2 e 3.1, supra) e não abre mão das proteções lhe
disponibilizadas, como o advogado (v. cap. 2, itens 3.1 e 3.3, supra). Ao valorizar a
jurisprudência, o CPC realça os julgamentos oficiais, proferidos pelo Poder Judiciário, a
tal ponto de lhes conferir eficácia para além da esfera judicial (v. infra). De algum modo,
isso parece atender à percepção da população pela justiça prestada por meio de órgãos
institucionalizados. A justiça que teoricamente chega à população provém do Poder
Judiciário, como indutivamente ela parece esperar.

A médio prazo, a valorização da jurisprudência pode contribuir com outro


aspecto do acesso à justiça contemporâneo: o desenvolvimento dos processos informais
de resolução de disputas que acontecem no tecido social (cap. 1, itens 4.3 e 4.4, supra).

245
“O tratamento isonômico depende antes de qualquer coisa do prévio reconhecimento de qual o direito
aplicável. Não é possível aplicar uniformemente um direito que não se conhece.” (MITIDIERO, 2017, p.
24).

210
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Na medida em que a posição dos tribunais a respeito de determinadas questões se torna


clara e conhecida, as práticas sociais, de indivíduos e empresas, e dos agentes e órgãos
públicos, tendem a se pautar nesses entendimentos. O recurso a precedentes vinculantes
viabiliza, pelos cidadãos, um mais acurado e consciente exercício da autodeterminação,
com menor risco de equívocos que normalmente decorrem da pouca clareza da lei e da
dispersão da jurisprudência. A jurisprudência, uma vez difundida e conhecida, cumpriria
o papel de educação em direitos que se esperava da lei, sem que ela tenha conseguido
desempenhar a contento246.

Reforçam esse argumento, mais uma vez, os dados de percepção de justiça da


população brasileira, particularmente aqueles que indicam o baixo grau de conhecimento
da lei pelo brasileiro (v. cap. 2, item 2.3, supra). Na medida em que a população brasileira
não confia, mas conta com a utilização do Judiciário (v. cap. 2, itens 2.2 e 3.1, supra),
pode-se argumentar que uma jurisprudência coesa e conhecida conseguiria guiar os atores
sociais em suas relações materiais e, inclusive, nas tentativas de resolução de disputas
prévias à judicialização. As orientações da jurisprudência se difundiriam por toda a base
da “pirâmide de solução de disputas”, como orientação para as mediações privadas,
negociações e tratativas informais que acompanham toda a trajetória da disputa (v. cap.
2, item x). Essa possibilidade atenderia ao segundo critério de acesso à justiça adotado
neste estudo, o de articulação com os processos sociais de resolução de disputas. No
momento, trata-se de mera conjectura, que depende de aferição mais próxima e contínua,
mormente se considerado o baixo grau de conhecimento e cumprimento das leis no
Brasil247.

Há, por outro lado, aspectos na valorização da jurisprudência empreendida na


legislação processual brasileira que apresentam riscos de comprometimento do acesso à
justiça.

De início, não há razões especiais para acreditar que se conseguiria com a


jurisprudência o que não se conseguiu nos últimos séculos por meio da lei como fonte

246
Como justifica Mitidiero (2017, p. 24), “A possibilidade de autodeterminação está igualmente ligada à
prévia cognoscibilidade normativa, porque sem conhecer o direito não é possível fazer escolhas
juridicamente adequadas.”
247
Uma sugestão seria incluir nos levantamentos de percepção da justiça e comportamento de respeito à
lei, como aqueles apresentados no capítulo 2, perguntas sobre o grau de conhecimento e influência das
decisões judiciais na vida regular das pessoas e nas tentativas de resolução de disputas

211
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

primordial do direito. A jurisprudência pode ser pouco clara e objetiva, instável e profusa.
Considerado o histórico de mudanças nem sempre coerentes de posicionamentos nos
tribunais brasileiros, inclusive nos níveis superiores, a probabilidade aponta para maior
instabilidade jurisprudencial do que segurança de um corpo coeso de decisões e uma
profusão de entendimentos que lembrará a confusa malha legislativa. O risco aumenta em
decorrência do caráter peculiar do sistema brasileiro de precedentes – precisamente, a
eleição formal da jurisprudência como fonte do direito e o mecanismo “nobiliárquico” de
seleção dos precedentes.

A valorização da jurisprudência, tal qual regulada no CPC, apresenta baixa


correspondência com outros dois traços observados na litigância judicial no Brasil: a
desigualdade entre os litigantes e a concentração do uso do Judiciário em um conjunto
limitado de atores sociais. Dado que essa é talvez a principal característica da nossa
litigância judicial, é muito provável que as regras do Código tenham imposto obstáculos
extraordinários ao acesso à justiça, neutralizando alguns dos benefícios mencionados
acima.

Os litígios judiciais no Brasil envolvem, na maciça maioria, participantes


eventuais contra jogadores experientes - um grupo restrito de assíduos usuários do sistema
de justiça, os chamados “grandes litigantes”. (v. cap. 2, item 3.2, supra). Diante desse
quadro, a maior vantagem do “jurisprudencialismo” se transforma em seu maior risco em
termos de acesso à justiça: o de que as decisões judiciais com eficácia persuasiva ou
vinculante sejam construídas com participação massiva de jogadores habituais e
experientes, em detrimento de pouca ou nenhuma participação dos litigantes eventuais.
Com isso, o CPC seria a confirmação realista de que o direito e as reformas legislativas
tendem afinal a favorecer os “jogadores repetitivos” em maior medida do que os
“participantes eventuais”.

Três aspectos emergem quando a valorização da jurisprudência é avaliada em


função do perfil desigual e concentrado da litigância judicial no Brasil. A preferência
manifesta pela população de buscar justiça em órgãos institucionalizados (v. cap. 2, itens
2.2 e 3.1, supra), potencialmente satisfeita pela valorização da jurisprudência, deixa de
refletir em acesso à justiça quando apenas alguns poucos litigantes participam e são
“ouvidos” pelo sistema oficial de justiça – e, no caso do IRDR, a maioria espera pela
decisão do caso-paradigma (art. 982).

212
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Ligado a isso, eis o segundo aspecto, o recurso a mecanismos de julgamento por


amostragem depende sobretudo de uma justa escolha de representantes adequados e de
um caso-paradigma aptos a, pela via do contraditório, munirem as instâncias decisórias
de elementos para um convencimento suficientemente esclarecido. O Código traz poucos
critérios para a escolha dos casos e representantes, o que é ainda mais sensível se uma das
partes é experiente no Judiciário, possui condições técnicas e financeiras de atuar perante
os tribunais superiores e concentrar esforços na formação de um precedente que lhe seja
favorável. A regra segundo a qual os julgamentos por amostragem limitam a oportunidade
de participar do contraditório a um representante afeta em bem menor medida o “grande
litigante”. Porque ele já integra a maior parte dos processos que serão afetados pelo
julgamento do caso paradigma, provavelmente figurará como parte original e, se não, sua
maior experiência em litigância judicial lhe proporciona condições de mais eficaz
participação como o interessado dos artigos 983 e 984 do Código.

Pela mesma razão, e eis o terceiro aspecto, não é desprezível o risco de a


valorização da jurisprudência aumentar a concentração da litigância judicial no Brasil. O
regime dos mecanismos instituídos no CPC prevê que a participação na formação das
decisões vinculantes se restringe ao litigante frequente e, no outro polo, a um
representante qualquer dos participantes individuais. Considerando a experiência exigida
para litigar perante os tribunais e o custo envolvido na intervenção dos terceiros
interessados, é mais factível imaginar que a abertura legal favoreça em maior medida a
defesa dos litigantes frequentes, concentrando ainda mais a litigância judicial no Brasil248.

Os desafios na promoção do acesso à justiça pela via da valorização da


jurisprudência parecem decorrer do modo limitado como as ideias de liberdade e de
igualdade no processo civil foram incorporadas à legislação. A igualdade valorizada pelo
Código pode ser descrita como uma “igualdade de resultados”, que não se confunde com
o que seria descrito como uma “igualdade de oportunidades”249. A primeira é

248
Não é improvável imaginar, como já sugerem dados empíricos preliminares (ASPERTI, 2017), que
“jogadores experientes” tentem concentrar sua presença em torno dos IRDR. Como apontaram os dados
sobre os juizados especiais sistematizados no cap. 2, o Judiciário é um espaço disputado pelos atores sociais,
de modo que pode fazer muita diferença ser o agente condutor de um incidente cuja decisão significará a
definição de uma massa indefinida de casos similares ou fazer parte da massa que aguarda, inerte, uma
solução pronta para o seu caso.
249
O debate sobre esses conceitos na filosofia contemporânea é substancioso. Para indicar duas referências,
a sequência de artigos Ronald Dworking sobre “equality of welfare e equality of resources” (DWORKIN,
1981a; DWORKIN, 1981b) e o já clássico livro de Amartya Sen (2000).

213
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

essencialmente importante, mas esta última possui relevância extraordinária aos


processos e métodos de resolução de disputas. Complementarmente, a liberdade
privilegiada na legislação processual é aquela que o professor Ovídio chamava de “ação
material”, que não substitui satisfatoriamente a de “ação processual”, que constitui o
elemento nuclear do processo e fundamento absoluto da jurisdição.

Sem dúvida alguma, a sensação de injustiça que nasce de se receber uma decisão
considerada pior do que recebera outra pessoa em igual situação é intensa, legítima e cada
vez mais frequente, considerando a configuração social de massa. Nesse sentido, o
Código soube promover o acesso à justiça ao privilegiar a “igualdade de resultados”.
Porém, o nosso sistema de unificação da jurisprudência, tal como foi construído, criou
uma “desigualdade de oportunidades” no processo, na medida em que permite a
determinadas litigantes lutar por seus direitos, enquanto subtrai de outros essa mesma
oportunidade - obrigando-as a aguardar um pronunciamento unificado pelos tribunais ou
eliminando por completo o seu “day in court” que mimetiza a ideia de acesso à justiça e
devido processo legal250.

Sem prejuízo, a possibilidade de participação - e, com mais razão, a igualdade


de participação – é um fator tão ou mais determinante do sentido de justiça que a
igualdade de resultados. Uma das mais influentes teorias contemporâneas da justiça, a da
“justiça procedimental”, com peculiar pertinência ao direito processual e os métodos de
resolução de disputas, sustenta, com abastados dados empíricos, que as pessoas
consideram justas as decisões construídas com sua participação, ainda que o resultado
lhes seja desfavorável (v. cap. 1, item 4.2, supra). Noutras palavras, a percepção de
justiça das pessoas no âmbito de processos de resolução de disputas é determinada, se

250
A escolha do caso-paradigma e suspensão dos processos pela admissão do incidente de resolução de
demandas repetitivas (IRDR) são bons exemplos para esse argumento. O código praticamente não
estabeleceu critérios para a escolha do caso e, portanto, das partes que servirão de condutores para que o
tribunal defina o entendimento aplicável à massa de casos. A permissão para instaurá-lo é estendida a
diferentes atores, de forma concorrente (art. 977). E não há critérios para a escolha ou de aferição do que
seria, para o IRDR, o equivalente à legitimidade extraordinária ou a representatividade adequada do modelo
da ação coletiva. Para completar, como dito, todos os demais processos individuais e coletivos que versem
sobre a mesma questão jurídica são imediatamente suspensos assim que admitido o incidente.

214
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

não exclusiva, predominantemente pela igualdade de oportunidades de exercício de


contraditório e ampla defesa251.

O CPC optou por proteger a liberdade de ação das partes fora do processo,
orientando-se por uma jurisprudência convergente, reservando a alguns poucos
representantes a liberdade de agir dentro do processo, na construção dos entendimentos
que culminarão na razão decidendi que integrará o precedente vinculante. Resta avaliar
se esta opção terá sido mais ou menos adequada ao sentido de justiça valorizado no Brasil
e em relação a que perfil de litigante.

Em resumo, no desenho dos mecanismos processuais destinados a gerar a


necessária unidade da jurisprudência, o legislador fez opções que alteram a natureza do
sistema jurídico, o sentido de jurisprudência e a qualidade do acesso à justiça
proporcionado aos cidadãos. Além da eleição da jurisprudência como fonte do direito, o
que afeta o sistema jurídico como um todo, o legislador processual optou por sentido
formal de jurisprudência ao outorgar eficácia vinculante a determinadas decisões não
tanto porque trazem em si um precedente252, mas porque resultam de um determinado
procedimento ao qual a lei optou por atribuir eficácia equivalente.

O acesso à justiça que resulta do regime de valorização e unificação da


jurisprudência instituído pelo CPC é, em tese, extensível para a fase social da trajetória
da disputa, o que corresponde a uma noção menos institucionalizada de acesso - embora
de forma muito mais passiva do que defendia a corrente (v. cap. 1). Mas também é um
acesso à justiça ainda mais concentrado, seletivo e formal na fase judicial do tratamento
do litígio. Apenas alguns representantes participam do procedimento que resultará,
formalmente, na “jurisprudência uniformizadora” e, dentre eles, praticamente sempre um
dele será o “jogador habitual” do Judiciário. O acesso das partes à justiça fica
condicionado não ao seu papel na construção das razões fortes que constituem um
precedente, mas na participação formal e seletiva em um dos poucos procedimentos que

251
Sim, o sentido de justiça, assim como as formas jurídicas em geral, e a resolução de disputas em especial
- vale dizer, o direito processual – são determinados culturalmente. Não são, como se acreditou em outras
fases do direito processual, o resultado da evolução técnica, “apanágio universal”, como escreveu Buzaid
na Exposição de Motivos do CPC de 1973. Nesse sentido, conferir NADER (1990) e CHASE (2005).
252
No sentido das “razões necessárias e suficientes para solução de uma questão devidamente precisada do
ponto de vista fático-jurídico obtidas a partir de generalizações empreendidas a partir do julgamento de
casos pela unanimidade ou pela maioria de um colegiado integrante de uma Corte Suprema” (MITIDIERO,
2017, p. 90).

215
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

culminarão em um julgamento generalizável e na fruição extraprocesso dos resultados


desse julgamento.

2.2. Protagonismo das partes e “privatismo" processual

Sistemas processuais de civil law diferentes países têm ampliado os espaços para
o exercício da liberdade das partes, redimensionando a importância conferida ao princípio
dispositivo. A essa tendência tem-se denominado “privatismo” ou “neoprivatismo’
processual”253. No comentário de Taruffo (2009, p. 115), elas comporiam “las diversas
ideologías neoprivatistas que se van difundiendo en distintas partes da Europa (no en
Estados Unidos, donde desde hace tiempo tienem un papel dominante)”.

A nova legislação processual brasileira adere à tendência por meio de


dispositivos atribuem às partes maior protagonismo na condução do processo e, inclusive,
no seu julgamento. No espectro de modelos identificados por Damaska (1986), o
brasileiro atual encontra-se medianamente disposto, mas com tendência em sentido
adversarial em relação ao modelo anterior a este Código. Nos quadrantes de Kagan, o
sistema brasileiro aproxima-se daqueles identificados pela “autoridade decisória
participativa” - os quadrantes C e D (v. tabela do item 1.1. deste capítulo, supra).

A intensificação do caráter liberal do sistema processual brasileiro é detectável,


de início, pela seleção e disposição das suas “normas fundamentais” (arts. 1o a 12). A
articulação de princípios ali desenhada reproduz uma tonalidade adversarial ao sistema
processual, mais distante do traço inquisitorial que o marcara por todo o século XX.

O clássico princípio dispositivo recebe três pequenas, mas significativas


alterações que reforçam a importância da atividade das partes no processo. Na versão de
1973, o princípio aparecia dentre outras regras de procedimento e, embora declarasse a

253
Tanto os termos utilizados para defini-las, quanto o conteúdo e as conotações políticas que podem advir
são consideravelmente polêmicas. Basta, para fins deste estudo, ressalvar que não se trata do fenômeno de
“privatização” do processo civil contra cuja existência se posicionou Barbosa Moreira em 1998
(BARBOSA MOREIRA, 2001). Trata-se, mais provavelmente, da tendência que ele analisou anos depois
com o nome de “neoprivatismo no processo civil” (BARBOSA MOREIRA, 2007): a ampliação do controle
do processo pelas partes, em detrimento dos poderes do juiz. Na sua precisa síntese, “para os que assim
pensam, as coisas andarão tanto melhor quanto mais forem deixadas aos cuidados dos próprios litigantes:
nenhum juiz, afirma-se, pode saber mais do que os titulares dos interesses em conflito o que convém fazer
(ou não fazer) para resolvê-lo.” (p. 88). Os estudos mencionados no corpo deste item são referências para
explicar a tendência.

216
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

iniciativa privada do processo, reservava a sua condução ao juiz (art. 262 do CPC de
1973)254. O novo CPC alça o princípio à nobre posição de segundo dos seus mais de mil
artigos, confirmando relevância de se estabelecer, desde o início, um regime dispositivo
diferenciado, em que o princípio do impulso oficial fica condicionado a eventual
convenção das partes. E seu texto sugere menor ênfase à condução oficial do processo e
faz a abertura para a ideia de cooperação processual. Mais do que mera questão de estilo,
o texto atual substitui a conjunção adversativa anterior (“mas”) por uma aditiva (“e”), o
que induz à ideia da “comunidade de trabalho” que menciona a doutrina especializada:
“o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial”. Além
disso, ao texto é inserido um condicionante de excepcionalidade: “salvo as exceções
previstas em lei” -, o que garante a reserva das hipóteses em que a condução do processo
não será oficial, mas das partes255.

A ampliação dos espaços para a atuação das partes no processo é acompanhada


por um discurso de contenção aos deveres-poderes do juiz. Em expansão desde o final do
século XIX, quando declarada a autonomia científica do direito processual256, os “poderes
do juiz” sempre foram considerados essenciais para o comprometimento com a busca da
verdade real, a aplicação da lei e a justiça (BARBOSA MOREIRA, 2007). As últimas
décadas do século XX registram seu ápice, com a “onipresença do juiz e inflação dos seus

254
Nesse sentido, a regra anterior fazia uso, por exemplo, de uma conjunção adversativa “mas” entre uma
oração e outra (“O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”),
o que sugeria que o controle exclusivo das partes se concentrava na fase inicial.
255
No texto da Comissão de Juristas, o condicionante de excepcionalidade se referia apenas à primeira parte
do dispositivo (“o processo começa por iniciativa da parte”). O Substitutivo da Câmara dos Deputados que
o deslocou para o final do artigo, estendendo-o também ao impulso oficial. A mais ilustre exceção ao
impulso oficial parece ser o novo “negócio jurídico processual” (art. 190), pelo qual as partes poderão
convencionar mudanças no procedimento e no regime de ônus, poderes, faculdade e deveres processuais.
A permissão para as partes definirem o procedimento e o regime das situações subjetivas de vantagem,
reprimida com voracidade na tradição romano-germânica em outras épocas, é o mais evidente exemplo de
traço adversarial do modelo processual da nova lei. Outras regras também realçam a opção das partes
acordarem sobre atos do processo, como a escolha do perito (art. 471) e o ônus da prova (art. 373, § 3o) e
delimitarem consensualmente a matéria fática e jurídica controvertida (art. 357, §2o) - além da suspensão
do processo (art. 313, inc. II) e o adiamento da audiência (art. 362), já existentes no código anterior.
256
Greco (2008) faz uma excelente síntese da transição de um “liberalismo processual” no século XIX para
o publicismo no século XX, intensificado com as ideias de garantismo e efetividade desenvolvidas no pós-
guerra e a consolidação da hegemonia do princípio do impulso oficial. Cabral (2016) recupera a mesma
história com ênfase em um duelo teórico interessantíssimo entre J. Kohler e O. Bullow, no final do século
XIX, com a seguinte adesão da comunidade à ideia, desde último, da relação processual de caráter público,
com destacado papel do Estado. Trajetória que a nós ganha especial importância com a adesão de G.
Chiovenda à tese de Bullow e a sua projeção para todo o direito processual italiano e, então, ibérico e latino
de modo geral.

217
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

poderes oficiosos”. O resultado de um século de expansão dos poderes do juiz no processo


recebeu, na doutrina especializada, o sugestivo nome de “hiperpublicismo” processual
(CABRAL, 2015). É principalmente em oposição a esse fenômeno que se levanta o
argumento da ampliação da liberdade das partes no processo, objeto deste item.

Outras “normas fundamentais” do CPC também indicam uma redefinição do


âmbito de liberdade das partes no processo judicial em relação ao da autoridade do juiz.
O artigo 6o instituiu o chamado dever de cooperação das partes no processo, a que também
se submete o juiz. Os artigos 9o e 10o, por exemplo, reforçam os requisitos para uma
motivação suficiente das decisões judiciais – condicionando-a, inclusive, ao exercício do
contraditório no processo, que é atividade ordinária das partes257.

A difícil tarefa de compatibilizar as esferas pública e privada que convivem no


processo civil coube ao novo princípio da cooperação processual, objeto da “norma
fundamental” do artigo 6o. Segundo o define a doutrina especializada, o princípio
caracteriza o processo civil como uma “comunidade de trabalho” entre partes e juiz
(MITIDIERO, 2015, p. 19)258. Independentemente do debate em torno da sua real
viabilidade concreta, dados o antagonismo e a natureza litigante que caracterizam o
processo judicial (CABRAL, 2016, pp 190 e ss.), parece inquestionável que o princípio
da cooperação sujeita não apenas as partes, mas também o juiz. O modelo em que o juiz
exerce o poder sobre o processo e as partes parece substituído por um outro em que ele
deve “cooperar” com elas. Em comparação ao regime anterior, a imposição do dever de
cooperação ao juiz é um minus em termos de poder sobre o processo e, também, em
termos da sua responsabilidade exclusiva sobre o resultado de justiça alcançado259.

A ampliação da esfera de liberdade das partes em detrimento a, ou em


combinação com o exercício de poderes oficiais pelo juiz está entre os mais importantes
debates que movem a ciência processual de civil law. Há pouco mais de dez anos, Barbosa
Moreira designara a tendência como “neoprivatimo” no processo civil (BARBOSA

257
CPC, art. 9o. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Art.
10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não
se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva
decidir de ofício.
258
MITIDIERO, D. Colaboração no processo civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2a. ed. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011 (MITIDIERO, 2011). Para a questão discutida neste item, interessa
menos o significado do princípio do que o fato de que o juiz também lhe está sujeito.
259
Desenvolvo este argumento em “As Normas Fundamentais do Novo Código de Processo Civil” (ALVES
DA SILVA, 2015).

218
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

MOREIRA, 2007). Em trabalho primoroso, Leonardo Greco (2008, p. 30) comenta o


“caloroso debate nas revistas especializadas e em congressos científicos”. Yarshell
(2017), mais recentemente, indaga sobre o advento de uma “nova era” no direito
processual pela admissão das convenções processuais. E toda uma linha de sólidos
estudos se tem produzido no Brasil a respeito (por todos, CABRAL, 2016). Na literatura
processual internacional da civil law, são referenciais os trabalhos desenvolvidos pelo
espanhol Juan Monteiro Arouca (2006), o italiano Franco Cipriani (1997260), o francês
Loïc Cadiet (vários trabalhos) e a portuguesa Paula Costa e Silva (2003)261.

A questão também é discutida no âmbito da common law, em que as partes


tradicionalmente protagonizam atos processuais que nos sistemas de civil law dependem
do impulso oficial262. Nesses sistemas, a tendência “sempre teve um papel dominante”
(TARUFFO, 2009, p. 115), mas a ênfase lhe atribuída pelas reformas recentes é inversa
à da civil law: a busca por eficiência do sistema adotou o caminho do incremento dos
poderes oficiais exercido no processo, por meio principalmente da implantação do
“judicial case management” (ALVES DA SILVA, 2010, passim; ALMEIDA, 2015;
CABRAL, 2016).

A guinada adversarial dos sistemas processuais de civil law se funda


principalmente em duas novas normas: a permissão para as partes definirem a condução
do processo e a internalização da resolução consensual dos litígios. Esses mecanismos
deslocam para a esfera da autorregulação consensual das partes tanto regras de processo
- agora com poderes para definir o procedimento e o regime de ônus, faculdades, deveres

260
CIPRIANI, F. Ideologie e modelli del processo civile. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1997.
261
SILVA, P. C. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto
postulativo. Coimbra: Coimbra ed., 2003.
262
Na verdade, é um engano entender que os juízes dos sistemas de tradição anglo-saxã são menos ativos
processualmente do que os da tradição romano-germânica. A origem da magistratura em cada sistema é
distinta, o que resulta em uma distribuição própria de poderes oficiais e equilíbrio com a liberdade das
partes. Desenvolvo esse debate em relação aos poderes de condução do processo em ALVES DA SILVA,
2010. O argumento principal, naquele contexto, dito de forma simples, que o juiz de civil law assume a
atividade para si, ao passo que o de common law controla a sua realização. Difícil dizer em qual das duas
o juiz tem maior controle dos atos praticados no processo, se quando “faz” ou quando “manda fazer”.
Aparentemente, ambos perfis pressupõe uma carta robusta de “poderes oficiais” e podem ser considerados
de juízes “ativos”.

219
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

e poderes processuais (art. 190) – quanto a escolha do tipo de tutela adequado para a
disputa - se uma decisão judicial ou um acordo entre as partes (art. 3o, 165 e 166)263.

Os métodos ditos ‘alternativos’ de resolução de disputas - identificados, na


literatura norte-americana, pelo acrônimo ADR, representados principalmente pela
arbitragem e a mediação - foram consagrados fundamentalmente no artigo 3o do novo
Código. As convenções processuais foram instituídas mais recentemente, por meio do
negócio jurídico processual (artigo 190). A experiência brasileira com a arbitragem abriu
a possibilidade de os próprios litigantes definirem, por si, as regras processuais aplicáveis
na resolução de suas disputas. Aparentemente, isso provocou reflexões acerca de outros
espaços possíveis para um exercício similar no âmbito da jurisdição estatal. Então, a
proposta de se admitir contratos de procedimento, convenções processuais, negócios
jurídicos processuais ou termos equivalentes264 ganhou espaço na doutrina processual
nacional265.

A possibilidade de as partes convencionarem sobre a regras processuais


pressupõe um debate complexo e profundo não cabível na sistematização dogmática
destinada à aplicação das regras recém instituídas. Igualmente complexo é o debate sobre
a conveniência de se admitir que a jurisdição estatal ofereça soluções consensuais às
disputas, mediante processos de negociação e mediação. Do ponto de vista externo, essas
questões pressupõem a delicada relação entre o direito processual e suas matrizes político-
ideológicas. E, de um ponto de vista interno, invocam um de seus receios mais
elementares: o reconhecimento de sua própria identidade como ramo autônomo do
conhecimento científico jurídico.

Porque estruturais, essas questões confirmam o potencial do Código alterar o


paradigma do modelo processual brasileiro, projetando efeitos de considerável magnitude

263
Por mais que não impliquem em “privatização do processo”, que continuará público e sediado na Justiça
estatal – como argumentou Barbosa Moreira (2001, p. p. 11 e 12) -, tais mecanismos ampliam o espaço das
partes na condução e na definição do resultado do processo, o que é uma tendência “privatista”, ou
“neoprivatista”.
264
Na literatura processual estrangeira, os contracts for procedure, contrats de procedure e protocol di
procedura são correspondentes aos termos que os institutos receberam na literatura nacional. Sobre isso, v.
CABRAL, 2016, caps. 1 e 2.
265
Em um grau de adesão e intensidade que não se via, curiosa e significativamente, desde que o tema dos
poderes do juiz se disseminou na década de 1990.

220
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

sobre os resultados de justiça que se pode alcançar266. Para este estudo, a transição para
um modelo processual mais liberal e privatista é determinante do potencial do sistema
brasileiro oferecer nível satisfatório de acesso à justiça.

Este item apresenta as características gerais das duas principais novidades do


CPC de 2015 em termos de valorização da atividade e controle das partes sobre o
processo: a resolução consensual de conflitos e as convenções processuais. Seguindo o
formato dos itens anteriores, sua apresentação se limita à apresentação geral das
respectivas regras, os fundamentos e valores que lhe dão suporte e legitimidade e uma
análise das possíveis consequências em termos de acesso à justiça. Para tanto, recorro aos
mesmos critérios depurados nos capítulos anteriores: a desigualdade que decorre da
diferente experiência entre os litigantes; a articulação com processos sociais de resolução
de disputas; a concentração do uso do Judiciário por alguns atores sociais; a percepção de
desconfiança e preferência pelos órgãos institucionais e formas oficiais da Justiça; e a
proteção e o balanceamento da desigualdade que decorre das formas processuais (cf.
introdução ao capítulo 3, supra).

2.2.1. “Justiça consensual” – a resolução consensual de disputas no contexto


do acesso à justiça no Brasil

Sistemas jurídicos de diferentes tradições jurídicas, de civil law e common law,


ocidentais e orientais, têm investido, nas últimas três décadas pelo menos, na
incorporação de mecanismos informais de justiça consensual à Justiça oficial. Em
paralelo à justiça perseguida pela dialética do conflito, propõe-se a chamada “justiça
coexistencial”, fruto da harmonia entre os litigantes. Em substituição ao debate que
caracteriza o contraditório, estimula-se a negociação em busca de interesses
convergentes. Em complemento à justiça que declara direitos e impõe obrigações, busca-

266
Reconheço a funcional ponderação de Yarshell (2017, p. 77) que, ao tratar das convenções processuais,
menciona que, “em termos pragmáticos, parece possível passar ao largo de tais polêmicas (conquanto
relevantes), bastando que o exame das convenções das partes em matéria processual civil seja feito sob a
metodologia empregada para a análise do negocio jurídico, tomando-se os planos da existência, validade e
eficácia.”. No caso, as “polêmicas relevantes” são sobre a existência ou não dos negócios jurídicos
processuais. Com sempre, é muito sensata a ponderação. Sem prejuízo, como uma das premissas adotadas
nesta tese é a de que a efetividade das leis, sobretudo as processuais, dependem do cenário socio-
institucional em que estão inseridas, peço vênia para contra-argumentar que a análise dessas questões de
fundo é necessária justamente para entender os limites das novidades do CPC, inclusive “em termos
pragmáticos” e, eventualmente, até para compreender se se trata realmente de uma “nova era”, como se
indaga o próprio mestre.

221
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

se soluções que produzam pacificação social. Há muitas questões envolvidas nessa


política, com efeitos sobre os resultados substanciais de justiça providos à sociedade.

No Brasil, a tendência da resolução consensual das disputas passou a receber


suporte institucional mais explícito na última década, ao ganhar estado de política
judiciária oficial. O mais evidente exemplo são as iniciativas dos mutirões de conciliação,
encampados pelo Conselho Nacional Justiça em 2005 e que desencadearam uma política
consagrada na edição da Resolução n. 125, de 2010. Em 2015, já no âmbito legislativo,
duas principais leis federais institucionalizaram a tendência – o próprio CPC e a Lei de
Mediação (Lei n. 13.140/2015, “LM”).

No âmbito do sistema social, diferentes motivos podem levar uma dada


comunidade a escolher entre resolver as disputas entre seus cidadãos pela tutela direitos
(e consequente imposição de sanções) ou por meio do consenso entre os conflitantes (com
a celebração de um acordo). Impulsos culturais, religiosos, políticos, organizacionais tem
sido registrado na história das sociedades (ROBERTS; PALMER, 2005). No sistema
jurídico institucionalizado, a opção por abrir espaço na estrutura judiciária oficial para a
resolução consensual de conflitos é suplementar, cujos motivos podem ser
organizacionais, políticos, econômicos, entre tantos outros.

O movimento dos “alternative dispute resolution methods” (ADR),


impulsionado a partir dos EUA na década de 1980 para muitos outros países, assumiu
como objetivo declarado promover um mecanismo mais eficiente e efetivo do que os
tribunais, ampliar o acesso à justiça da população que não utiliza os tribunais, oferecer
um método culturalmente mais apropriado e, em última análise, manter a paz social.
Segundo manual para disseminação dos ADR em países em desenvolvimento a agência
USAID, vinculada ao governo norte-americano:

ADR é considerado mais eficiente e efetivo que os tribunais em prover justiça,


especialmente em países em que o judiciário perdeu a confiança e o respeito
dos cidadãos. Além do mais, ADR é visto como um meio de aumentar o acesso
à justiça a populações que não conseguem ou não usarão o sistema de justiça,
para encaminharem disputas a caminhos culturalmente apropriados, e a manter
paz social. (USAID, Relatório “Alternative Dispute Resolution Practioners
Guide”, tradução livre)267

267
Este guia oferece um detalhado “passo a passo” para instituição dos métodos de ADR, com uma
classificação das técnicas, modelos de implementação e estudos de casos das experiências havidas em

222
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O cenário que se chamou por “explosão de litigiosidade”268, acompanhado do


aumento do volume de processos nos tribunais, parece ter sido o catalisador do ingresso
do movimento dos ADR no âmbito das políticas judiciárias nos EUA na década de 1980
(MORRILL, 2017). O empenho do Min. Warren Burger, então presidente da Suprema
Corte, é considerado o maior impulso ao movimento. Por sua iniciativa, foi organizado o
seminário em que Frank Sander cunhou o termo “alternative dispute resolution” - a
chamada Pound Conference, em Minnesotta, em 1976; e por meio de seu empenho
pessoal os ADR foram apresentados a classe dos advogados e a comunidade acadêmica
como a solução para a “crise da justiça” norte-americana (BURGER, 1982)269.

No Brasil, o movimento dos ADR aportou três décadas depois, mas com
justificativas e objetivos muito similares. A efetividade da tutela jurisdicional, no sentido
da oferta de uma solução adequada à disputa, satisfatória a ambos litigantes e pacífica, é
uma das mais importantes justificativas270. Ela está ligada à faceta do acesso à justiça que
inspirara a origem do movimento dos ADR nos anos 1980 (GALANTER, 2010). Além

outros países, como a África do Sul, Índia, Siri-lanka e Ucrânia. Não é o único na categoria. A produção
na área dos ADR é substanciosa. O que chama atenção, neste manual, é a difusão dos ADR assumir espaço
coo política pública oficial do governo norte-americano. O “USAID”, responsável pelo relatório, é uma
agência destinada a “promover o “rule of law” em países em desenvolvimento, e os ADR foram
considerados um importante instrumento nessa missão. A transcrição acima é uma tradução livre. O trecho
original e completo é: “USAID's work in promoting the rule of law in developing and transitional
societies over the last decade has led to an interest in the use of alternative dispute resolution, or
"ADR." Several reasons underlie this interest. ADR is touted as more efficient and effective than
the courts in providing justice, especially in countries in which the judiciary has lost the trust and
respect of the citizens. Moreover, ADR is seen as a means to increase access to justice for
populations that cannot or will not use the court system, to address conflicts in culturally
appropriate ways, and to maintain social peace.”Disponível em <
https://www.usaid.gov/sites/default/files/documents/1868/200sbe.pdf> , acesso em janeiro de 2018.
268
“No qual advogados de partes autoras recebem julgamentos excessivamente grandes em casos de
indenização civil às custas de subsidíos públicos a empresas privadas” (STONE, K. (2004). Alternative
Dispute Resolution. In: Encyclopedia of Legal History. Research Paper No. 04-30, p. 4). No original, “in
which plaintiffs attorneys win excessively large jury verdicts in tort litigation at the expense of the corporate
welfare.”
269
É impressionante a similitude dos argumentos de Burger em 1892 com as justificativas da mediação
judicial no Brasil trinta anos depois: redução do papel de outras arenas sociais de solução de disputas –
como a igreja e a comunidade; crescimento vertiginoso de demandas judiciais, formação jurídica com perfil
litigante, uso excessivo de instrumentos processuais sobretudo recursos, vantagens comparativas do acordo
em relação à decisão judicial, melhor adequação de determinadas disputas a outros agentes de
encaminhamento de conflitos, como casos de divórcio aos psicólogos, entre outros.
270
Este argumento já mobilizava as pioneiras iniciativas de mediação extrajudicial no Brasil, anteriores ao
movimento atual e responsáveis por lhe abrir o caminho e sedimentar um conhecimento teórico e prático
que pode ser aproveitado. V. BRAGA NETO, A. (2012). Breve história da mediação de conflitos no Brasil
– Da iniciativa privada à política pública. Aspectos atuais sobre a mediação e outros métodos extras e
judiciais de resolução de conflitos. Rio de Janeiro: GZ, 3-19.

223
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

dela, um outro objetivo mais imediato e pragmático: a tentativa de desafogar os tribunais


de parte do descomunal volume de processos pendentes. Esta justificativa, por sua vez,
está ligada à ideia de eficiência, representado pelo melhor funcionamento da máquina
judiciária estatal271.

Ambas grandezas, o acesso à justiça e a eficiência do Judiciário, parecem


concorrer na composição dos objetivos das políticas de resolução consensual de disputas
no Brasil, a ponto, inclusive, de serem confundidas uma a outra. Por um argumento, os
ADR, porque inspirados em formas de justiça comunitária, potencializam a participação
das pessoas, o que é um atributo do acesso à justiça. Mas por outro argumento, os ADR
promovem o acesso à justiça na medida em que permitem ganhos de eficiência pelos
tribunais – a redução da pauta aumentaria a qualidade do exercício da jurisdição, o que
geraria incremento do acesso à justiça272. Sem prejuízo do rico debate, parece certo que
o ideal de acesso à justiça é amplo e dificilmente redutível a um ou outro valor específico
– no caso, a eficiência. Como ilustra a trajetória de estudos apresentados no capítulo 1,
esses ideais não se confundem: nem sempre o funcionamento eficiente é garantia de
acesso à justiça (v. cap. 1, passim). A maior ênfase a um ou outro desses ideais condiciona
o tipo e o grau de efetividade alcançado pelas políticas e a legislação respectivas.

Pela perspectiva do balanceamento da “autoridade decisória” - para usar a


terminologia de Kagan (2003) – a incorporação da resolução consensual aproxima os
sistemas oficiais de justiça a um modelo mais liberal e privatista273. A arbitragem, a
mediação e a conciliação são, originalmente, métodos privados de resolução de conflitos,
organizados, regulados e desempenhados fora do Estado, no âmbito comunitário. Como
tais, conferem um espaço mais amplo para o exercício da autonomia regulatória pelas
partes.

271
Harry Edwards (1986), em trabalho com sugestivo título de “Alternative Dispute Resolution: Panacea
ou Anathema?”, traça o histórico dos ADR e recorre a exemplos que enfatizam a função prioritária de
“salvar” os tribunais proporcionando-lhes resultados de eficiência e a gestão dos seus custos.
272
A lista dos trabalhos que discutem essas questões é bastante extensa. Para uma síntese, uma das primeiras
incursões de Carrie Menkel Meadow, atualmetne referência inquestionável na área, no tema dos ADR:
MENKEL-MEADOW, C.C. “For and against settlement: uses and abuses of the mandatory settlement
conference”. 33 UCLA L. Rev. 485, 1895-1986.
273
Vale fazer novamente a ressalva de que isso não significa a “privatização” do processo cuja existência
negou Barbosa Moreira (2001). O processo e a Justiça seguem fenômenos sediados no âmbito estatal. Mas
a incorporação de métodos originalmente praticados no âmbito social ocasiona maior controle do processo
pelas partes, o que aqui identificado como um impulso de “privatismo”.

224
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Porque de inspiração em técnicas aplicadas no âmbito comunitário privado, os


ADR são também menos formais do que o procedimento judicial tradicional. A
negociação, mediação e conciliação, quando incorporadas aos sistemas estatais de justiça,
carregam as características daqueles modelos, dentre as quais o menor rigor formal. Por
isso, sua operacionalização e funcionamento exigem alguma calibragem dessas
características para uma menos incômoda adaptação. Tanto mais em sistemas de justiça
de tradição publicista, como os de civil law em geral e o brasileiro em particular.

Encontrar o nível adequado de rigor formal é uma das exigências de adaptação


da resolução consensual ao sistema oficial de justiça. Os métodos de ADR são menos
formais do que o processo judicial adjudicatório. Praticamente não há procedimento
predefinido e, quando há, ele é composto de poucos atos, quase sempre disponíveis e
flexíveis em caráter ad hoc274.

A regulação da autonomia das partes é outro ponto sensível na incorporação da


resolução consensual à Justiça oficial. O controle sobre a resolução da disputa é
característica elementar das técnicas de ADR. Tal qual o negócio jurídico processual, a
mediação vale-se da autonomia da vontade das partes como fonte regulatória. Ambos
transferem – ou devolvem - às partes a responsabilidade pela resolução da sua disputa.
Segundo a Exposição de Motivos do Anteprojeto do CPC de 2015, “Entendeu-se que a
satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas
criada e não imposta pelo juiz.” Diferem pelo objeto da deliberação privada: no negócio
jurídico processual, as partes acordam o processo pelo qual desejam que sua disputa seja
resolvida e, na mediação judicial, definem a decisão que resolverá a disputa.

Sem prejuízo, o autorregramento presente na mediação pode chegar ao desenho


do procedimento, tal qual ocorre nas convenções processuais. Além de escolherem
solução que entendem mais adequada para a disputa, nos processos de ADR as partes
também têm liberdade para escolher o procedimento pelo qual esta solução será
perseguida275. A diversificação e a combinação cada vez mais elaborada de técnicas de

274
A possibilidade de adaptação das regras de procedimento, agora estendidas ao processo judicial
tradicional pelas convenções processuais (CPC, art. 190), é típica dos métodos de ADR, notadamente da
arbitragem, e possivelmente serviram de exemplo inspirador aos negócios processuais (v. item específico
neste estudo).
275
Ainda que se possa pensar em técnicas de ADR que conjuguem desenho de procedimentos com tipos de
soluções para o caso, como o chamado “desenho de solução de disputas” (dispute design system), o

225
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

ADR chegaram ao ponto de conjugarem o desenho de procedimentos com a escolha tipos


de soluções para o caso, o que se verifica no chamado “desenho de solução de disputas”
(“dispute design system”)276.

O caráter menos formal da resolução consensual de disputas também lhe


assegura potenciais vantagens em termos de economia processual. Como a mediação, a
conciliação, a avaliação de terceiro neutro e a arbitragem, entre outras técnicas de ADR,
são desempenhadas sob menor rigor formal em relação ao processo tradicional, têm em
tese um custo menor. No mesmo sentido, suas regras podem ser definidas em caráter ad
hoc, potencialmente conseguem uma melhor equação custo-benefício àquela situação.
Com isso, a resolução consensual ganharia em eficiência, segundo o argumento
doutrinário majoritário.

A pacificação da sociedade é outra vantagem apontada para justificar o recurso


à resolução consensual. Na terminologia de um de seus principais incentivadores no
Brasil, o professor Kazuo Watanabe, a mediação judicial permite a disseminação de uma
“cultura da paz”, de nítidas vantagens em termos de coesão social em comparação à
“cultura da sentença”, que marca o perfil litigante na sociedade brasileira (WATANABE,
2005). Esse argumento difundiu-se e consolidou-se no debate doutrinário, vindo a
incorporar formalmente os motivos e o próprio conteúdo dos textos normativos (v.g. art.
2o da Res. 125 do CNJ). Por esta razão, a instituição formal da resolução consensual teria,
inclusive, um papel educativo e muito pouco sancionatório.

conteúdo que se tem atribuído ao negócio processual é predominantemente de regras processuais e a


mediação tem sido trabalhada para alcançar soluções materiais à disputa.
276
A bibliografia no tema já é extensa, inclusive no Brasil. Por todos, cf. BORDONE, R. C. (2008). Dispute
system design: An introduction. Harvard Negotiation Law Review; e MENKEL-MEADOW, C. (2009).
Are There Systemic Ethics Issues in Dispute System Design-And What We Should [Not] Do About It:
Lessons from International and Domestic Fronts. Harv. Negot. L. Rev., 14, 195. No Brasil, FALECK, D.
(2009). Introdução ao design de sistemas de disputas: câmara de indenização 3054. Rev. Bras. Arb., 5, 7.,
FALECK, D. . Um passo adiante para resolver problemas complexos: desenho de sistemas de disputas. In:
Carlos Alberto de Salles; Marco Antônio Garcia Lopes Lorencini; Paulo Eduardo Alves da Silva. (Org.).
Negociação, Mediação e Arbitragem - curso básico para programas de graduação em Direito. 1ed.São
Paulo: Método, 2013, v. , p. 257-272; e OSTIA, P. H. R. (2014). Desenho do sistema de solução de conflito:
sistemas indenizatórios em interesses individuais homogêneos (Tese de doutoramento, Universidade de
São Paulo).

226
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Fundada sobre essas razões, a nova legislação processual brasileira forneceu um


impulsionou inédito à resolução consensual de disputas277 e abriu caminhos para a
articulação de procedimentos privados e informais de resolução consensual com a
jurisdição e o processo judicial. A Lei de Mediação é o melhor exemplo ao disciplinar as
três categorias – judicial, extrajudicial e no âmbito da Administração278. Os tipos de
procedimentos estabelecidos na Lei de Mediação contemplam a diversidade de
“processos” de solução de disputas, estipulam as regras básicas para a sua operação e,
mais do que isso, abrem caminhos para a sua articulação entre si – que é o maior desafio
de um sistema conjugado de procedimentos judiciais e extrajudiciais de solução de
disputas (v. cap. 1, item 4.4., supra). Com o Código e a anterior Resolução CNJ n.
125/2010279, eles compuseram o que poderíamos chamar de “microssistema da resolução
consensual de conflitos”.

O CPC fornece um arranjo estrutural apropriado aos métodos de resolução


consensual. A mediação e a conciliação foram expressamente diferenciadas, silenciando
um debate doutrinário que parecia interminável (art. 165, §§ 2o e 3o). Seus princípios e
regras básicas foram instituídos (art. 166 a 175). O conciliador e o mediador foram
reconhecidos como “órgãos auxiliares da Justiça” (art. 149), o que contribui com a

277
Logo de início, uma das “normas fundamentais” do CPC assegurou que os métodos ditos alternativos
não violam a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 3o, §§ 1o e 2o) – evitando um
debate que postergou por quase dez anos a eficácia da arbitragem no Brasil, quando instituída em 1996. O
mesmo dispositivo foi mais longe e criou o dever de os tribunais estimularem e promoverem os mecanismos
dito alternativos de solução de conflitos, como a mediação e a arbitragem (idem).
278
Logo em seguida ao CPC, é aprovada uma lei destinada especificamente a disciplinar diferentes tipos
de mediação: entre particulares, a mediação judicial e a chamada “autocomposição de conflitos envolvendo
a administração pública” - a Lei de Mediação, n. 13.140/2015. A lei de mediação (LM) foi aprovada pouco
mais de três meses após o Código de Processo Civil e, junto com ele, completou o quadro normativo do
sistema judicial e parajudicial de resolução de conflitos. A lei contém 48 artigos distribuídos em dois
capítulos bastante particulares: o primeiro regula a mediação judicial e extrajudicial e o segundo o que foi
chamado de “autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público” – i.e.,
resolução de conflitos envolvendo a administração pública, por meio dos seus muitos entes. O seu artigo
1o é ilustrativo e esclarecedor do seu objeto dúplice: “Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de
solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da
administração pública.”
279
A Resolução 125 veio atender a uma necessidade peculiar a qualquer institucionalização de novos
métodos de resolução de conflitos, qual seja a sua internalização e disseminação na sociedade. Em 2010, o
Conselho Nacional de Justiça, na gestão do então Ministro Cezar Peluzo, editou a sua Resolução de n. 125,
que instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito
do Poder Judiciário”. Formalmente, a Resolução CNJ 125 (Res. 125) não têm a mesma natureza legislativa
do CPC e da LM, promulgados pelo Legislativo, mas o seu conteúdo e o efeito vinculante para os tribunais
permitem que componha, com os outros dois, um mesmo sistema normativo. Mais do que a regulamentação
de condutas ou a fixação de procedimentos, a Res. 125 buscava, como ela própria se define, criar uma
política pública judiciária.

227
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

profissionalização da atividade. E uma nova estrutura foi criada no âmbito dos tribunais
- os centros judiciários de solução consensual de conflitos (art. 165, caput), que passam
a compor, com as varas e os cartórios, a unidade básica da Justiça. Aos procedimentos
judiciais foram articulados oportunidades específicas para tentativas de consenso das
partes280.

A Lei 13.140 regula a mediação em ambientes bastante distintos: a que acontece


entre particulares sem envolvimento do Estado (“mediação extrajudicial”, arts. 21 a 23),
a mediação realizada no âmbito do poder Judiciário (“mediação judicial”, arts. 24 a 29)
e, ainda, um tipo especial de resolução consensual a ser organizado no âmbito do poder
Executivo - que recebeu o nome de “autocomposição de conflitos em que for parte a
Fazenda Pública” (arts. 32 a 40). Inclusive a mediação entre particulares, essencialmente
privada, é objeto de regulamentação na Lei, o que acaba sendo importante para a sua
disseminação segura no contexto social brasileiro.

Além de regras de admissibilidade, procedimento e organização, a legislação


também dedica atenção à disseminação da chamada “cultura da pacificação”, pelo
estabelecimento de parâmetros para a capacitação e acompanhamento da atividade dos
mediadores e conciliadores e pelo incentivo à inserção da mediação na formação jurídica
básica.

A regulamentação normativa da “justiça consensual” no Brasil foi acompanhada


de intensa produção teórica. Os estudos podem ser organizados em duas correntes quanto
à opção por abrir espaço aos métodos de ADR no sistema de justiça oficial. A primeira
corrente é muito maior e hegemônica. Aida que integre grupos divergentes, todos
parecem favoráveis à institucionalização da “justiça consensual”. Sua produção parece
ter dois objetivos definidos: disseminar os métodos de ADR como uma solução para os
sistemas de justiça e desenhar os caminhos organizacionais e procedimentais para sua
institucionalização. Em ambos, alcança resultados inquestionavelmente bem-sucedidos.

280
No âmbito do processo de conhecimento, a audiência de conciliação ganha protagonismo no
procedimento e passa a acontecer antes mesmo da contestação (art. 334), torna-se quase obrigatória (não
se realiza apenas se ambas as partes se manifestarem expressamente contrários à sua realização, art. 334,
§4o,), acompanhada da cominação de multa em caso de não comparecimento (art. 334, §8o) e com duração
mínima de 20 minutos (art. 334, §12o). Também merece nota o apoio indireto que outros instrumentos
oferecem à resolução consensual de conflitos. O mais evidente é a produção antecipada de provas, dentre
cujas hipóteses de aplicação está o caso em que ela seja suscetível de viabilizar a autocomposição (art. 381,
inc.II).

228
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O impulso à internalização da resolução consensual de disputas no cenário brasileiro


produziu, além do aparato normativo e organizacional instituído em leis e políticas
públicas, toda uma rede de conhecimento com linhas de estudos, pesquisas e produção
doutrinária, organização de eventos científicos. Integrado a ela, articularam-se redes
profissionais que aplicam a produção teórica, desbravam novos espaços para a resolução
de disputas e inauguram, com êxito, um novo mercado.

Em termos dos indicadores de acesso à justiça isolados neste estudo, a


regulamentação da mediação no Brasil apresenta vantagens em termos da articulação com
os processos sociais de solução de disputas (critério n. 2) e a preferência pelo uso do
Judiciário (critério 4), mas enfrenta um desafio árduo em termos da igualdade dos
litigantes (critério 1), uso concentrado do Judiciário por alguns litigantes (critério 3) e
proteção assegurada pelas formas (critério 5). De modo geral, ainda não parece
suficientemente debatida no Brasil a delicada questão do nível de justiça substancial que
os ADR proporcionam em concreto

A articulação com os processos sociais de solução de disputa parece evidente. A


principal conclusão auferida nos estudos sobre “dispute resolution” apresentados no
capítulo 1 (item 4, supra, esp. 4.4) é a de que os processos de solução de disputas se
iniciam muito antes da sua judicialização, no âmbito da sociedade. A efetividade do
sistema oficial de justiça, e do direito processual, dependem da articulação com esses
processos. A negociação, a mediação, a arbitragem, como também os procedimentos
administrativos e das demais instâncias públicas e privadas similares integram todos a
“pirâmide das disputas” sistematizadas naqueles estudos. Nessa qualidade, o sistema
jurídico oficial ganha em efetividade se oferecer canais de resolução de disputas
articulados àqueles procedimentos. Trata-se da mesma ideia de um “sistema multiportas”
de solução de disputas, em perspectiva todavia mais ampla, não limitada às instituições
oficiais de resolução de disputas e, menos ainda, ao processo judicial e o poder Judiciário.

Como a regulamentação da “justiça consensual” no Brasil está centrada no


Judiciário, há potencial para atender também a um outro aspecto da percepção de justiça
da população brasileira: a expectativa e a preferência por disputar direitos perante órgãos
oficiais, sobretudo quando há assimetria entre as partes (v. cap. 2, itens 2.2, 3.1 e 3.3,
supra). O legislador brasileiro optou por incorporar a resolução consensual ao processo
judicial e oferecer-lhe sede no âmbito do Poder Judiciário, em vez de mantê-la na esfera

229
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

privada, sob livre regulação do mercado, como é originalmente. Por mais que esta opção
seja em boa parte motivada pelo intuito de reduzir a carga dos tribunais, como resultado
tanto o método ganha em credibilidade perante a população, quanto esta tem assegurado,
em tese, o seu “acesso à Justiça”. Por outro lado, a mediação judicial fica sujeita às
características negativas do formalismo judicial e da organização burocrática que
caracteriza o sistema judiciário, com efeitos sobre a percepção e comportamento de
mediadores e mediandos e o funcionamento dos órgãos especializados – como os Cejuscs.

O maior desafio a um tal complexo articulado de resolução de disputas judiciais


e extrajudiciais será o de, além de promover a “justiça consensual”, não provocar um
desequilíbrio geral no sistema. Isso aconteceria se, por exemplo, determinado tipo de
litigante ficasse privado da opção pela Justiça oficial ou se a “justiça consensual” não
oferecesse resultados de justiça de similar qualidade – independentemente, vale dizer, da
quantidade de casos acordados ou processos resolvidos.

A principal crítica que se fez até hoje ao movimento dos ADR é a de que a justiça
que eles oferecem não equivale à justiça advinda da aplicação da lei ao caso concreto,
principalmente do ponto de vista da sociedade (FISS, 1984). A jurisdição produz,
segundo esse argumento, um benefício coletivo que vai muito além do atendimento ao
interesse das partes, consistente na concretização dos valores constitucionais e legais
previstos no ordenamento. Nem o autor, nem o réu têm este compromisso, mas o juiz o
tem. A justiça não é uma questão meramente privada. Ainda que a disputa verse sobre
exclusivamente sobre direitos e interesses pertinentes às partes, a “concretização de
valores públicos – diria Chiovenda, a “atuação da vontade concreta da lei” – ainda é um
escopo da jurisdição.

Projetado o argumento, a “justiça consensual” somente equivalerá”, em última


análise, à “justiça adjudicada” se oferecer igual concretização àqueles valores públicos
ou, se não for possível ou adequado exigir-lhe isso, que preserve o espaço para a
jurisdição e a opção das partes interessadas, querendo, optarem por tentar algo mais do
que o acordo (RESNIK, 1994)281.

281
Este é o principal argumento de Judith Resnik (1994) no seu clássico “Many doors, closing doors...”.
Para ela, a questão da delimitação dos espaços da jurisdição e dos métodos alternativos é crucial para o
acesso à justiça e, no caso dos EUA, a integração entre o processo judicial e os ADR não teria sido bem

230
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O argumento de Fiss (1984) tem pertinência e extraordinária importância nos


sistemas jurídicos em que a decisão judicial é fonte do direito – à época, apenas os de
common law. Como a jurisdição é uma atividade com potencial para criar regras jurídicas
aplicáveis a casos futuros, as sentenças judiciais têm um atributo que os acordos não têm,
qual seja, formar o precedente. Dado que o sistema brasileiro agora possui o seu próprio
regime de precedentes (v. item neste capítulo, supra), a comparação entre a justiça
advinda do acordo e a da decisão judicial deve ser feita em outros termos, com evidentes
reflexos em termos de acesso à justiça: o litigante com recursos disponíveis, insiste no
litígio, inclusive para tentar obter um precedente favorável que possa usar em outros
casos; o litigante sem recursos cede ao acordo, ainda que vislumbre probabilidade de
vitória e a proposta não lhe parece tão satisfatória.

Dois outros indicadores de acesso à justiça usados neste estudo se conectam a


essa questão: a neutralização da desigualdade de experiência entre os litigantes e a
redução da concentração do uso do Judiciário. A possibilidade de que, na realidade dos
fóruns, litigantes com menos recursos estejam acordando por falta de opção não é nada
remota. Os dados empíricos disponíveis já a anunciam. O perfil da litigância judicial no
Brasil é de assimetria; na maciça maioria, os processos envolvem de um lado “jogadores
repetitivos” e, de outro, “participantes eventuais” (cf. cap. 2, item 3.2, supra). O
comportamento observado in locu de pensionistas do INSS em audiências na Justiça
Federal revela um baixíssimo conhecimento das regras e precária capacidade de
negociação diante da dos representantes das Procuradorias (IPEA, 2012; cf. cap. 2, item
3.3.3, supra). A produção doutrinária sobre a “justiça consensual” também já identificou
o problema e faz recomendações propositivas (TAKAHASHI, 2016).

Os métodos de ADR não parecem oferecer às questões da desigualdade pela


experiência e à da concentração da litigância solução mais satisfatória do que a do
processo judicial. Eventualmente, sua solução é menos satisfatória ainda – e este ponto já
está ligado ao critério 5 apresentado na introdução deste capítulo, da proteção assegurada

trabalhada pelo movimento – inclusive porque, ela argumenta, o apoio ao movimento não decorreu de seus
méritos próprios, mas de uma insatisfação com os resultados da jurisdição estatal. Como consequência,
apenas os litigantes com recursos e capacidade técnica suficiente realmente podem exercer uma opção livre
entre o ADR e o processo judicial – ou seja, a abertura de “novas portas” teria implicado no fechamento
das portas principais.

231
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

pelas formas. A resolução consensual das disputas é menos eficaz em neutralizar a


desigualdade entre as partes porque aplica técnicas de negociação, que operam com base
em uma habilidade específica de identificar interesses por detrás das posições do
adversário (FISHER et al., 1994)282.

A presunção, diante daqueles dados, é a de que a mediação judicial vá reduzir o


espaço para eventual opção pelo processo judicial e a resolução por meio de sentença,
sobretudo ao litigante com menos recursos técnicos e financeiros. Evidentemente que os
resultados de acesso à justiça não dependem apenas da disseminação da “justiça
consensual”, mas principalmente da previsão de mecanismos para prevenção, no mínimo
a redução substancial dessas situações.

A Lei de Mediação brasileira soube perceber essa necessidade ao estabelecer, ao


lado das regras que visam disseminar os métodos, outras que tentam discipliná-los - como
a tentativa de profissionalizar a atividade do mediador e conciliador (arts. 4o a 13o) e de
regular minimamente a confidencialidade – talvez o ponto mais sensível da “justiça
consensual” (arts. 30 e 31). A lei brasileira promove, inclusive, a regulamentação da
mediação privada, antes fora do âmbito regulatório.

Mais do que um controle estatal sobre essas atividades ou o alcance de um


ideário de acesso à justiça, o que está em jogo na opção por lhes oferecer regras é a própria
efetividade do modelo de “justiça consensual”, por definição dependente da adesão e da
legitimação da população. Outro dado do perfil da litigância judicial no Brasil é a
preferência pelos instrumentos formais, ainda quando desnecessários. Os litigantes
pessoa física em juizados especiais cíveis, mesmo não sendo necessário, preferem o
acompanhamento de um advogado, sobretudo quando litigam contra partes contrárias
consideradas mais poderosas – o que, desnecessário repetir, acontece na maior parte dos
casos (cf. cap. 2, item 3.3.2, supra). Diante desse dado, a adesão da população à mediação

282
Para usar um exemplo simples, a chamada MASA – “melhor alternativa à solução amigável”, uma das
técnicas difundidas de negociação – de um litigante sem recursos ou experiência em litígios será quase
sempre menos elástica do que a da parte com recursos, e poderá colocá-lo na posição de aceitar acordos
indesejáveis porque não terá a opção da litigância. Basta imaginar os processos acordados exclusivamente
porque uma das partes não tem condições de postergar o recebimento do que lhe é devido, ainda que em
proporção menor ao que receberia em uma sentença judicial. Como ponderou Elisa Vanzella Lucena, em
debate informal sobre esta questão, a parte sem recursos não teria, muitas vezes, meios de sustentar o litígio
por muito tempo, com ou sem a opção do acordo. A questão é saber se a possibilidade da resolução
consensual servirá para acomodar e piorar quadros de injustiça.

232
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

está condicionada a alguma percepção de que estarão suficientemente protegidos, o que,


ensina a teoria do direito, se obtém por meio de um corpo de regras formais – a proteção
pelas formas (critério 5)283.

O paradoxal, neste caso, é que as técnicas de ADR são essencialmente privadas


e informais. A sua regulamentação possui um ponto ótimo, difícil de identificar e que,
acaso ultrapassado, pode gerar um tal grau de engessamento - na melhor hipótese, um
grau de equivalência formal ao procedimento judicial - que parte dos ganhos de eficiência
esperados poderão restar comprometidos. Some-se ao cenário, o fato de que as regras
legais serão operacionalizadas em um contexto cultural cartorial e burocrático – o que
afeta com mais intensidade a esfera pública (ALVES DA SILVA, 2006), mas também se
observa na esfera privada. Neste ponto, vale a ponderação de Taruffo ao analisar a
tendência de os sistemas de justiça incorporarem métodos de justiça privada. Segundo
ele,

el problema, como ya se ha dicho, es otro y tiene que ver con la eficiencia de


la jurisdicción y su efectividaded en la tutela de los derechos. (…) El problema
se resuelve – por el contrario – haciendo que la jurisdicción sea eficiente, y
haciendo que el recurso a las alternativas no se a un camino obligado para las
partes.” (TARUFFO, 2009, p. 120).

2.2.2. Convenções e negócio jurídico processuais – desafios de um modelo


processual privatista

A ampliação do controle das partes sobre o processo alcançou, no novo Código,


a possibilidade de autodeterminação das regras de direito processual aplicáveis à
resolução do seu próprio litígio284. Permissões desse tipo têm sido instituídas em
diferentes sistemas jurídicos, inclusive nos de civil law (CABRAL, 2016). Ainda assim,
são incomuns na história moderna do direito processual filiado a essa tradição.

Uma das mais antigas questões das políticas de justiça é definir quem escolhe as
regras das disputas, se os próprios litigantes ou um terceiro (FOUCAULT, 2001). Na

283
Vale a referência ao estudo de LIND et al. (1990) que avaliou a percepção de litigantes em disputas
envolvendo danos civis (torts) submetidas a métodos consensuais e adjudicatórios. Esses últimos contaram
com maior grau de satisfaçao das partes porque teriam os tratado com mais respeito e porque aqueles teriam
decepcionado suas expectativas. A satisfação dos litigantes, concluem os autores, seria menos relacionada
a resultados, custos e demora do que a percepções de tratamento processual justo (“procedural fairness”) e
expectativas anteriores de custos e resultados.
284
Almeida (2015) descreve o mesmo fenômeno, naturalmente com as diferenças que decorrem da
perspectiva metodológica que cada trabalho científico adota, como “contratualização” do processo.

233
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

tradição europeia continental, desde que, pelo século XVI, os representantes de um poder
central paulatinamente assumiram o julgamento das disputas, as aplicáveis são
padronizadas em rituais predefinidos (idem). No âmbito da civil law, consolidados os
Estados modernos, a lei estatal assumiu o desenho dos procedimentos seguidos pela
jurisdição oficial. Nem mesmo o juiz, investido do poder estatal da jurisdição, detinha
essa prerrogativa. Menos ainda as partes, cuja liberdade se restringia ao ato de provocar
a jurisdição e a possibilidade de delimitar, em conjunto, os limites de sua atuação no
processo. O reconhecimento da autonomia científica do direito processual consolidou
essa ordem de coisas e, ainda que tenha destacado a importância do juiz na relação
processual, isso não foi suficiente para lhe ser delegado o poder para definir os
procedimentos. Cabia-lhe, tal qual às partes, seguir as regras definidas pelo legislador,
com o suplemento do controle concreto da regularidade formal do processo.

A tendência de os litigantes assumirem o controle do processo e da decisão, em


detrimento do papel desempenhado pelo Estado-juiz, é característica de modelos liberais
de justiça. Os sistemas processuais da common law, porque tradicionalmente adversariais,
conferem mais amplas possibilidades de atuação das partes no processo. Os próprios
litigantes, por meio de seus advogados, responsabilizam-se por citar a parte contrária e
produzir as provas. Não se trata, nessas hipóteses, de convenções processuais, uma vez
que cada parte atua por si, independente do consenso da parte contrária. Mas é um sinal
de maior controle sobre os atos do processo.

A legislação brasileira recém instituída abriu dois novos âmbitos de autonomia


das partes no processo civil, ambas exercíveis conjuntamente: a definição das regras
processuais aplicáveis e a escolha da solução para elas mais adequada para resolver o
conflito. As convenções e o negócio processual representam a primeira e a resolução
consensual, particularmente a mediação judicial, a segunda. As convenções processuais
incidem principalmente sobre a atividade processual e as formas pelas quais as disputas
são encaminhadas – diferentemente da resolução consensual das disputas, que afeta o tipo
e o conteúdo da tutela jurisdicional alcançada285.

285
Essa distinção considera apenas a natureza da regra processual especificamente convencionada em um
e outro caso, não tanto a natureza jurídica da convenção processual como um todo. Quanto a esta última,
como explica Cabral, debate-se em teoria a natureza das convenções processuais, se materiais ou
processuais, com soluções apontadas para todos os sentidos: seriam normas materiais (Kohler), processuais

234
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A admissão das convenções processuais no sistema brasileiro visa, segundo as


análises da doutrina especializada, um novo ponto de equilíbrio entre os poderes do juiz
e a liberdade das partes (CABRAL, 2016). A regra busca ampliar o controle dos litigantes
sobre a condução do processo ao mesmo tempo em contém a possibilidade de arbítrio
jurisdicional. Além disso, visa um grau maior de adequação do processo e do
procedimento às circunstâncias específicas do conflito e a redução de focos de
formalismo excessivo que podem surgir do procedimento legal padrão.

As convenções processuais são representadas, no CPC, principalmente pelo


negócio jurídico processual, previsto e regulado no seu art. 190. A regra permite que as
partes, por acordo de vontades, adaptem o procedimento às peculiaridades da causa e
definam os ônus, poderes, faculdades e deveres processuais que virão a guiar a resolução
da específica disputa entre elas. O texto do artigo 190 do CPC é suficiente esclarecedor a
respeito da regra, suas condições e limites:

CPC, Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam


autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no
procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre
os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o
processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das


convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos
de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma
parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Pela leitura do dispositivo, a liberdade de convenção processual das partes


alcança três dimensões. Elas podem adaptar o procedimento estabelecido em lei, definir
o conteúdo de regras processuais aplicáveis (regulando suas posições passivas e ativas no
processo) e podem faze-lo por si próprias e em plena dinâmica da relação processual, sem
intermediação judicial e ainda que em trâmite o processo.

Os limites ao negócio processual, segundo o texto da lei, são de início dois: a


disputa deve envolver “direitos que admitam autocomposição” - o que, uníssona a
doutrina, é mais amplo do que o termo “direitos patrimoniais disponíveis” do artigo 1o.
da Lei de Arbitragem – e as partes devem ser plenamente capazes, sendo ao juiz reservado

ou mistas – considerando principalmente que, em verdade, a obrigação não é domínio exclusive do direito
privado e porque, na prática, não existem convenções exclusivamente de uma ou de outra natureza. Do
ponto de vista prático, inclusive, há quem afirme a questão ser irrelevante (Neuner, citado por CABRAL,
2016, p. 95, bem como Yarshell, 2017.

235
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

o controle da validade das convenções. O controle judicial, mais especificamente, é


restrito aos casos de nulidade, “inserção abusiva em contrato de adesão” ou “manifesta
situação de vulnerabilidade” de alguma parte.

A produção doutrinária sobre as convenções processuais exerceu um papel


fundamental à sua admissão no sistema e ao contorno das suas regras. Os trabalhos a
respeito, que inauguraram uma profícua linha de estudos, assumiram dois principais
objetivos: justificar a conveniência de admiti-las no ordenamento e estabelecer os limites
da celebração da convenção e do controle reservado ao juiz. Pelo que se pode observar
nesses estudos, os argumentos construídos se articularam mais em torno da necessidade
de contenção dos poderes do juiz no processo do que propriamente na transferência da
competência legislativa sobre os procedimentos para a autonomia das partes. E esse traço
parece ter definido a regulação do negócio processual no Brasil286.

286
Para se ter uma ideia, nada exaustiva, da produção da doutrina processual brasileira sobre os temas do
negócio jurídico processual, convenções processuais e contratualização do processo, a lista de teses
acadêmicas e publicações no mercado editorial é crescente desde o início dos anos 2010 e se intensificou
consideravelmente com a aprovação do CPC. Alguns autores aparecem como referência nos trabalhos
atuais: os clássicos de Barbosa Moreira sobre convenções processuais (1984) “Convenções processuais em
matéria processual”, In: Temas de direito processual - terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 98-87) e
neoprivatismo processual (2007, p. 87-102). Também destacável o trabalho de resgate da teoria pontiana
dos fatos jurídicos e a construção de sua relação com o direito processual, pelo advogado e professor da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Marcos Bernardes de Melo; a excelente síntese do embate entre
privatismo e publicismo na história da ciência processual, por Leonardo Greco em 2008 (GRECO, L.
“Publicismo e privatismo no processo civil”. In: Revista de Processo n. 164, ano 33, outubro de 2008, pp.
28-56); e, principalmente, o debate europeu entre o publicismo e o privatismo no processo civil mobilizado
pelo espanhol Juan Monteiro Aroca (AROCA, J. M. (coord.) Proceso civil y ideologia. Valencia: Tirant to
Blanc, 2016), o italiano Franco Cipriani, o francês Loïc Cadiet e a portuguesa Paula Costa e Silva. A partir
dos debates sobre o novo Código de Processo Civil - particularmente a proposta apresentada já quando da
tramitação na Câmara dos Deputados, que veio a culminar no seu artigo 190 -, uma série de novos trabalhos
foram produzidos sobre o tema. Em 2011, Pedro Henrique Nogueira, que havia sido orientado por Marcos
Bernardes de Melo em nível de mestrado, defende tese de doutoramento perante a Universidade Federal da
Bahia, sob orientação de Fredie Didier Jr. (publicada em 2016: NOGUEIRA, P. H. Negócios jurídicos
processuais. Salvador: Juspodivm, 2016). Em 2013, Robson Godinho, participante de projeto de pesquisa
coordenado por Didier Jr., defende tese de doutoramento junto à Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUCSP), sob orientação de Arlete Inês Aurelli (publicada em 2015: GODINHO, R. Negócios
processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015). Em 2014,
Leonardo Carneiro da Cunha apresenta o relatório nacional sobre ‘negócios jurídicos processuais’ no I
Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Também em 2014, Diogo Assumpção Rezende de Almeida
defende, sob orientação de Leonardo Greco, tese de doutoramento junto à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ; publicada em 2015: ALMEIDA, D.A.R. A contratualização do processo das convenções
processuais no processo civil. São Paulo: LTr, 2015). Em 2015, ano em que, logo em março, o CPC é
aprovado, Antônio do Passo Cabral aprova, em nível de livre-docência, tese sobre ‘convenções processuais’
(“Convenções processuais – entre publicismo e privatismo”) junto à Universidade de São Paulo (USP/FD;
publicada em 2016: CABRAL, A. P. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016) e
organiza/publica, com Pedro H. Nogueira, coletânea de artigos de estudiosos de peso do cenário processual
nacional e internacional (CABRAL, A. D. P., & NOGUEIRA, P. H. Negócios processuais. Salvador.

236
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A tarefa doutrinária de justificar a admissão das convenções processuais


enfrentou uma resistência sedimentada ao longo de mais de um século de estável e
uníssona posição contrária. Desde que Bullow, no final do século XIX, isolou a relação
jurídica processual da relação material, definindo-a como de direito público e
diferenciando-a pelo objeto e pela intermediação do agente estatal, a atuação do juiz no
processo apenas expandiu. Isso coincidiu, evidentemente, com um cenário sociopolítico
favorável à expansão dos poderes do juiz no processo. Os Estados nacionais se
sedimentaram e as políticas de reconstrução no pós-guerra dependiam de m grau mais
intenso de intervenção estatal sobre a sociedade.

Dentre os argumentos usados para justificar as convenções processuais, um deles


invocava o exercício de democracia no processo e o risco que representam os sistemas
processuais inquisitoriais, geralmente nascidos de regimes políticos autoritários
(CABRAL, 2016). As objeções a ele possuíam base na história. A expansão do papel do
Judiciário e, por consequência, dos poderes do juiz no processo e da tutela jurisdicional
não é característica exclusiva de regimes autoritários, ou de tendências socialistas – como
argumenta parte da doutrina processual287. Como ilustra por mais de um exemplo Barbosa

Editora Juspodivm; 2015), com destaques, dentre tantos outros, para as reflexões de L. CADIET, R.
CAPONI, P. COSTA E SILVA, J. R. CRUZ E TUCCI, K. DAVIS, H. HERSHKOFF, F. YARSHELL. Em
2016, são publicados os trabalhos referenciais de e NOGUEIRA, P. H. Negócios jurídicos
processuais. Salvador: Juspodivm, 2016. Em toda a mobilização da produção sobre o tema, destaca-se a
atuação do professor Fredie Didier Jr., da UFBA – com projeto de pesquisa do qual participaram
pesquisadores que posteriormente publicaram sobre o tema (“Teoria contemporânea da relação jurídica
processual”, CNPQ), e a dedicada participação em bancas examinadoras de trabalhos sobre a temática em
todo o país, o apoio reconhecido pelos autores e a divulgação dos trabalhos no cenário nacional. Neste ano
de 2017, a produção no tema continuou a se expandir, alcançando trabalhos de aplicação da ideia em
questões mais específicas. Como resultado de tese defendida em 2016 perante a Universidade Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), o livro de Igor Raatz (RAATZ, I. Autonomia privada e processo civil – negócios
jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso
concreto. Salvador: Juspivm, 2017) e, resultado de tese de doutorado apresentada perante a PUCSP, sob
orientação de Cássio Scarpinella Bueno, o livro de Julio G. Muller (MÜLLER, J. G. Negócios processuais
e desjudicialização da prova – análise econômica e jurídica. São Paulo: RT, 2017). Além desses,
naturalmente, os comentários ao Código de Processo Civil publicados recentemente impulsionam o debate
tanto sobre os limites da aplicação prática do negocio jurídico processual (art. 190) e calendário processual
(art. 191), quanto o embate mais amplo entre o publicismo que marca originalmente a nossa ciência
processual e o impulso privatista que caracteriza e fundamenta esses novos mecanismos. Dentre eles,
destaque aos comentários oferecidos por novos e igualmente determinantes autores no tema, como Heitor
Sica, nos comentários publicados pela Editora Saraiva (SICA, H. V. M. “Art. 190”. In: Bueno, C. S. (coord.)
Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 744-754) e Cássio S. Bueno, em
seu Manual..., (BUENO, C. S. Manual de direito processual civil – volume único. 3a. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.)
287
Alguns autores tendem a justificar a conveniência dos negócios jurídicos processuais por meio de uma
imprecisa relação entre regimes autoritários, sobretudo os socialistas, com o publicismo processual –

237
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Moreira (2007, p. 92), sistemas indubitavelmente democráticos, como a Áustria, a França


e a Inglaterra contemporâneas, possuem sistemas processuais baseados na postura ativa
do juiz – no caso inglês, ele indaga, “corresponderá porventura tal fenômeno a algum
surto autoritário no regime político britânico” o recente aumento inédito de poderes do
magistrado no processo civil?

A defesa das convenções processuais também enfrentou receios identitários


enraizados na ciência processual. Qualquer manual na área ensina que a partir de Bullow,
e o isolamento do polo estatal da relação processual, o direito processual se reconheceu
como ciência autônoma e estruturou sua constelação de conceitos e princípios próprios.
Desde então, qualquer possibilidade de o direito material determinar as regras processuais
tem sido sumariamente rechaçada por ser considerada um risco à essa autonomia
científica. A proposta de um contrato pelo qual as partes decidem o direito processual do
caso concreto sempre foi vista como uma ameaça para a identidade do direito processual.
Este é um obstáculo até hoje imposto diante da defesa das convenções processuais.

A despeito dos argumentos contrários, as circunstâncias sociopolíticas se


alteraram consideravelmente no último quartel do século XX e a resistência imposta aos
modelos liberais de justiça esmoreceu. Segundo seus defensores, o Estado não exerce o
mesmo papel centralizador nas sociedades contemporâneas e lei não tem e nem consegue
ter o mesmo poder de regulação das condutas dos indivíduos. Paralelamente, a autonomia
cientifica do direito processual não estaria mais sob risco, inclusive porque
suficientemente sedimentada durante mais de um século de modelo publicista. O estágio
de democracia alcançado pelas sociedades contemporâneas não mais justificaria um

sugerindo, inversa e subliminarmente, uma relação entre regimes democráticos e o privatismo processual.
Chegam a apontar um responsável último pelo movimento que ocupou o século XX – o jurista austríaco
Anton Merger, cujas ideias, “de tendências socialistas”, teriam influenciado o desenho do CPC austríaco
por Franz Klein, em 1895 e a teoria de Chiovenda na Itália. Nada mais carente de fundamento científico e
histórico, tanto que não encontra suporte nas análises mais sérias sobre a questão. Barbosa Moreira (2007)
e Leonardo Greco (2008), embora tenham posições diferentes quanto ao publicismo ou privatismo,
preferem não argumentar com base nessa suposta e acientífica relação. Barbosa Moreira (2007) argumenta
inexistir relação regimes autoritários ou democráticos e sistemas processuais com maior espaço ao juiz ou
às partes e invoca diferentes exemplos de sistemas processuais baseado em amplos poderes judiciais em
regimes democráticos e o inverso, sistemas adversariais em regimes considerados autoritários (2007).
Greco (2008, p. 40) categoricamente afirma que “se as ideias de Menger eram radicalmente estatizantes,
(...) o sistema processual que daí resultou (...) não era antiliberal, mas profundamente humanista (...),
preocupado em desconstruir a figura do juiz burocrático, em faze-lo descer do pedestal de superioridade e
distanciamento em que o colocava o liberalismo do século XIX, para aproxima-lo da realidade da vida e do
drama humano (...)”.

238
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

caráter paternalista assistencial do direito processual, sendo possível ousar iniciativas


autorregulatórias inclusive em matéria de resolução de disputas. E, para arrematar,
sistemas jurídicos de ambas famílias, common law e civil law, abriram espaço para as
convenções em matéria processual – como a Alemanha, a Franca, a Itália e os Estados
Unidos -, de sorte que não haveria por que o Brasil não se colocar ao lado das grandes
nações na linha de vanguarda do direito processual.

Diante do novo contexto sociopolítico, parecia então faltar apenas uma tese
jurídica robusta e suficientemente convincente da possibilidade jurídica e dos caminhos
para a institucionalização das convenções processuais. A teoria processual internacional
criou corpo em defesa de um modelo mais liberal de processo288. Complementarmente, a
teoria do fato e dos negócios jurídicos foi quase que naturalmente invocada – inclusive
pela similitude terminológica – para dar legitimação teórica às convenções processuais.

Paralelamente, o advento do princípio de cooperação processual parecia


acomodar bem o embate entre o modelo inquisitorial e adversarial de justiça, construindo
a imagem do processo como uma “comunidade de trabalho” (MITIDIERO, 2011). Com
isso, estaria pavimentado uma via alternativa ao antagonismo entre a natureza publica ou
privada do processo civil, o que sedimentava espaço para as convenções processuais
(CABRAL, 2016).

Estabelecidas os fundamentos teóricos, restava compor o seu regime jurídico


elementar, para o que seria preciso definir os limites das convenções processuais e as
possibilidades do controle judicial. O princípio da cooperação processual e a teoria dos
fatos jurídicos novamente emprestaram contribuição. Por um lado, o juiz contemporâneo,
porque atua em cooperação com as partes no processo, poderia até mesmo compor as
convenções processuais. Mas isso não seria sequer necessário. Como as convenções
compõem o direito processual aplicável ao caso, seria um “falso problema” indagar seu
papel nas convenções. Basta-lhe atuar como de resto faz em relação às regras processuais,
aplicando-as na condução dos processos judiciais sob sua competência (SICA, 2017). Em
suma, o juiz, e o juízo, submetem-se à convenção processual das partes, devendo aplica-
las nos seus precisos termos.

288
Especialmente, Arouca (2006) e Cipriani (1997).

239
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A teoria dos fatos e negócios jurídicos, por sua vez, emprestou sua mais preciosa
joia, o regime da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos. O texto legal
expressamente previu a “validade” das convenções processuais com objeto do controle
judicial (art. 190, parág. único). Parte da doutrina estendeu o controle ao âmbito da
eficácia, para equilibrar o mecanismo com as garantias constitucionais processuais, das
quais não se poderia abrir mão, ainda que diante da autonomia da vontade das partes. O
plano da existência, todavia, restou definitivamente fora do âmbito do controle do juiz.
Os limites à disposição de vontade em matéria processual são os das normas cogentes,
sobretudo as garantais processuais constitucionais, dentre as quais se inclui a igualdade
das partes (BUENO, 2017, p. 227). Em suma, a conveniência e a existência do negócio
processual dependem exclusivamente da vontade das partes; já a sua validade pode ser
controlada pelo juiz segundo os critérios definidos na lei; e a eficácia pode suscitar
controle judicial caso violar ordem pública e normas processuais consideradas cogentes.

Confirmada a previsão legal e construído um corpo de interpretações


doutrinárias, as convenções processuais restaram sedimentadas no sistema jurídico
brasileiro. Para os fins deste estudo, duas questões ora se colocam. A primeira diz respeito
a sua efetividade prática. A segunda, ao seu potencial na promoção do acesso à justiça.
Aquela pode ser dimensionada a partir do grau de correspondência ao perfil da litigância
judicial no Brasil, retratado a partir dos dados empíricos correspondentes289. Essa pode
ser aferida a partir dos critérios de acesso à justiça sistematizados a partir das conclusões
teóricas do capítulo 1.

Preliminarmente, cabem dois comentários sobre as premissas que sustentaram a


admissão das convenções processuais no sistema brasileiro. A relação entre modelos
publicistas de justiça e regimes políticos autoritários e, de outro lado, modelos liberais e
regimes democráticos, invocada em sua defesa, está muito longe de ser verdadeira. Os
exemplos citados por Barbosa Moreira, acima listados, são suficientes para refutar o
argumento. Naquela linha, o que parece determinar a adoção de modelos publicistas ou
privativas de justiça seria o grau de dependência do Estado, o que pode ser encontrado

289
Com argumento diferente do deste estudo, mas no mesmo sentido, Scarpinella Bueno (2017, 226)
confessa ainda não convencido “sobre a possibilidade de um alcance muito amplo e generalizado do art.
190. Muito pelo contrário. As escolhas feitas pelo legislador nos mais diversos campos do direito processual
civil não podem ser alteradas pelas partes. A liberdade delas com relaçao ao procedimento, aos seus
próprios ônus, poderes, faculdades, deveres processuais fica restrita `aqueles casos em que o ato processual
não é negado por norma cogente.”

240
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

em regimes autoritários ou democráticos, capitalistas ou socialistas. Em outros termos,


convenções processuais não são um indicativo de que o modelo processual seja
democrático; pode existir democracia no processo ainda que as partes não tenham
controle sobre as regras de procedimentos; e, ainda que um sistema processual admita
negócios processuais, somente poderá ser tido como um modelo liberal de justiça se não
depender da ação do Estado e, no caso, do juiz. Sistemas processuais que admitam
convenções processuais não serão liberais se dependerem do Estado e não serão
democráticos se não disporem de mecanismos para neutralizar a desigualdade que existe,
de partida, entre os litigantes.

A característica inerente às convenções e os negócios processuais não parece ser,


portanto, a liberdade das partes ou a democracia do processo. Antes, o que as marca de
modo indelével é a ampliação do controle dos litigantes sobre o processo. Trata-se,
sobretudo, de um mecanismo que amplia a esfera privada no processo. E é difícil não
enxergar a moldura privatista com que o tema foi tratado normativa e doutrinariamente -
inclusive pelo socorro buscado nas teorias e categorias conceituais do direito privado.
Ainda que se argumente não serem exclusivas do direito privado, mas da teoria geral do
direito, as convenções processuais invocam regras de direito privado para regular uma
relação de direito público – inclusive quando os três polos da relação processual foram
entes públicos290. Também não parece plausível o argumento de que a regra se equilibra
às custas da contenção do arbítrio do juiz. No nosso sistema, o juiz também não detinha
o poder de definir as regras de procedimento. No balanço, a liberdade estendida às partes
foi descontada da prerrogativa que o legislador se reservava. Trata-se, isso é certo, de
uma regra de ampliação da esfera privada em detrimento da estatal, não necessariamente
da que afeta o juiz, mas o legislador291.

290
A natureza irremediavelmente privada dos negócios processuais não passou despercebida por
Scarpinella Bueno (2017, p. 228), que “[vê] limites no direito de as partes disporem sobre o que não é seu,
justamente porque o processo não se confunde com o direito material nele discutido (...).” – opinião que,
segundo ele reconhece, “pode vir a ser criticada, quiça taxada de hiperpublicista, conservadora, de, até
mesmo, autoritária.”
291
Taruffo (2009, p. 122), ao analisar a possibilidade de flexibilização que os ADR criam, argumenta
enfaticamente no sentido de que ao juiz, e não às partes, deveria ser estendida tal prerrogativa. Em suas
palavras, “Parece claro (…) el dominus de esta adaptación del proceso a las exigencias de cada caso, no
podría ser sino el juez, quien debería estar dotado de los poderes necesarios para un efectivo case
management. Y no las partes, porque en todo proceso siempre hay al menos una parte (es decir, el deudor
que sabe que debe pagar, sobre todo si es la parte fuerte) que tiene interés en hace que el proceso dure el
mayor tiempo posible y proteja de manera ineficiente o no tutele de ninguna manera el derecho de la otra
parte (es decir, del acreedor que tiene razón).”

241
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A efetividade e a eficácia esperadas das convenções processuais na resolução de


disputas no Brasil dependem, no argumento construído nesse estudo, do cotejo com cinco
outros elementos relacionados à concepção contemporânea de acesso à justiça.

Parece inquestionável que a admissão das convenções processuais atende a um


sentido de acesso à justiça na medida em que viabiliza que os litigantes determinem por
si próprios o modo como será resolvida a disputa de interesses que os envolve. Nas
palavras da doutrina especializada, a regra emancipa as partes em relação ao
assistencialismo do Judiciário (CABRAL, 2016).

Seu maior obstáculo, em termos de acesso à justiça, parece localizado na


premissa elementar de qualquer sistema jurídico, a neutralização das desigualdades entre
os litigantes. O exercício de autonomia da vontade das partes, elemento fundamental às
convenções processuais, pressupõe uma mínima simetria entre as partes, o que é uma
absoluta exceção no cenário real da Justiça brasileira.

O controle da validade do negócio processual nas hipóteses de desigualdade é


um bom exemplo de que o acesso à justiça não se constrói somente pela lei e de que o
aplicador tem papel fundamental nos seus resultados. O legislador brasileiro soube
perceber o risco aos resultados de justiça e condicionou a validade dos negócios
processuais ao controle judicial pelo critério da “vulnerabilidade” de uma das partes (art.
190, parág. único). Similarmente, enfatizou a necessidade do controle judicial da eficácia
das convenções inseridas em contratos de adesão (idem)292. Entretanto, o potencial da
permissão ao negócio jurídico processual resultar em acesso à justiça depende do modo
como suas regras serão interpretadas e aplicadas.

A operação e aplicação das novas regras processuais, especialmente porque


inéditas, exige compreensão dos valores subjacentes, seus riscos e consideração do
contexto que visam regular – sob pena de não alcançar os efeitos esperados. Na Justiça
brasileira, por exemplo, a ampla desigualdade entre litigantes é a regra. A maciça maioria
dos litígios, nas diferentes esferas da Justiça, envolve um indivíduo contra o Estado ou
uma grande corporação privada (v. cap. 2, item 3.2, supra). Os litigantes apresentam
condições diferentes de negociação, de argumentação jurídica, de técnicas para operar as

292
As regras e conceitos utilizados demandariam um exame pormenorizado, todavia inviável no tempo aqui
disponível. Considerando os objetivos deste estudo, os comentários se concentram no cotejo da regra com
o perfil da litigância judicial no Brasil (v. cap. 2, item 3, supra)

242
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

ferramentas processuais, de capacidade de mobilizar recursos humanos, tecnológicos e


financeiros, de se relacionar com servidores e a burocracia judiciária. Essas diferenças
projetam-se, evidentemente, sobre as condições de que cada um dispõe de exercitar de
forma autônoma e livre sua vontade.

A disparidade entre os litigantes é ainda mais sensível para o exercício de


autorregramento de caráter processual, cuja complexidade técnica característica exige um
nível de conhecimento maior do que o exigido na negociação de bens e direitos materiais.

Considerando o alto grau da assimetria que caracteriza o perfil padrão da


litigância judicial no Brasil, o conceito de vulnerabilidade, ou a interpretação que se faz
dele, não parece suficiente para a finalidade desejada pelo legislador. A livre
manifestação de vontade das partes em um negócio processual pode ser comprometida
pela simples assimetria entre elas, ainda que não se configura um estado de
“vulnerabilidade” nos termos enquadrados pela doutrina.

O debate doutrinário acerca das convenções processuais também soube perceber


a importância do ideal de igualdade no desenho e na aplicação da regra legal293. As
principais justificativas para a admissão das convenções processuais invocaram o
princípio da igualdade em seu favor. Em que pese a qualidade e sofisticação técnica dos
argumentos construídos, a perspectiva adotada para o uso do princípio da igualdade
parece situada um tanto fora do seu ponto ótimo. Parece também existir um certo desvio
no uso da ideia de igualdade nos debates sobre as convenções processuais.

Há, no debate doutrinário, argumentos no sentido de que de a assimetria não


necessariamente implicaria em “vulnerabilidade”, de modo a impedir, por si só, a
celebração de convenções processuais. Similarmente, argumenta-se que nem todo
negócio processual por adesão comprometeria o exercício de livre vontade e, portanto,
não seria necessariamente inválido. Em ambos os casos, contudo, parece evidente que a
desigualdade entre as partes - de natureza econômica, social ou simplesmente de

293
A questão da igualdade nos negócios jurídicos é especificamente trabalhada por ABREU, R. S. D.
(2015). A igualdade e os negócios processuais. Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 193-213.
Também, REDONDO, B. G. (2015). Negócios processuais: necessidade de rompimento radical com o
sistema do CPC/1973 para a adequada compreensão da inovação do CPC/2015. Revista Dialética de Direito
Processual, São Paulo, (19), 9-16. E ainda em SANTOS, T. S. D. (2015). Negócios processuais envolvendo
a Fazenda Pública. Negócios processuais.

243
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

experiência em litígios – apresenta risco suficiente para o resultado substancial de justiça.


É inegável que um indivíduo em desigualdade não negocia livremente as “regras do
jogo”. Igualmente difícil negar que a parte com mais recursos, poder, capacidade técnica
ou experiência - que já detém vantagens quando as regras são predefinidas em lei
(GALANTER, 1974) -, será ainda mais beneficiada se puder definir “com a outra parte”
as “regras do jogo”. Ainda que que o procedimento possa ser considerado formalmente
válido – sob o argumento de que nem toda “desigualdade” é sinal de “vulnerabilidade” –
o resultado substancial de justiça, importante para a legitimidade do sistema, estaria
comprometido. Do ponto de vista da perceção de “justiça procedimental” (cap. 1), a parte
aderente dificilmente considerará justa uma decisão que provenha de um processo cujas
regras foram assim definidas294.

O princípio da igualdade não se restringe à relação “das partes” com o juiz, mas
na comparação entre elas próprias – igualdade “entre as partes”. O debate doutrinário
sobre as convenções processuais invoca com maior ênfase a desigualdade na relação entre
as partes e o juiz – igualdade “das partes” face a um outro elemento, no caso o juiz. Neste
argumento, a desigualdade que importaria aos negócios processuais não seria aquela entre
os litigantes, presente na maciça maioria dos processos judiciais no Brasil, mas aqueloutra
que há, inexoravelmente, entre partes e o juiz, cidadãos e o Estado (ABREU, 2015).
Independentemente da validade do argumento, muito bem construído doutrinariamente,
parece evidente um certo desvio do papel da igualdade nas convenções processuais. A
característica mais marcante da litigância judicial no Brasil, que também é o maior
obstáculo ao acesso à justiça, é a desigualdade entre cada uma das partes, não a
desigualdade de ambas perante o juiz.

A assimetria entre as partes também não aparece no embate entre o publicismo


e o privatismo no processo, que compõe o cenário do debate sobre as convenções
processuais. Ambos debates recorrem constantemente à figura das “partes”, quase sempre
para em contraposição aos poderes do juiz: liberdade “das partes”; autonomia “das
partes”; igualdade “das partes”; emancipação “das partes”. Em praticamente nenhum

294
Valem, também aqui, as ponderações feitas a partir dos dados apontados nos levantamentos feitos pelos
estudos da linha da “justiça procedimental”: as pessoas consideram justa uma decisão de cujo processo
puderam participar, ainda que desfavorável o resultado (cf. item X, cap. 1, supra). Na hipótese aqui
discutida, a sua participação parece limitada desde a definição das regras processuais aplicáveis ao caso, o
que dificilmente não comprometerá a percepção de justiça com o resultado final.

244
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

momento, a argumentação considera que no conjunto “partes” há duas entidades bastante


diferentes do ponto de visita técnico-jurídico, econômico e social. Consideram as “partes”
indistintamente, quando, na verdade, elas são diferentes, não comungam os mesmos
interesses, anseios e necessidades. Dito de outro modo, o que se é considerado “liberdade,
autonomia, igualdade e emancipação “das partes” pode se referir a uma ou outra, mas
raramente a ambas; pode ser o desejo de uma delas, mas não ser do interesse da outra.
Vale, neste ponto, uma pequena transcrição, por todos que invocam este mesmo
argumento, de M. Taruffo (2009, p. 122), ao analisar a extensão da prerrogativa de
adaptar o procedimento às partes:

en todo proceso siempre hay al menos una parte (es decir, el deudor que sabe
que debe pagar, sobre todo si es la parte fuerte) que tiene interés en hace que
el proceso dure el mayor tiempo posible y proteja de manera ineficiente o no
tutele de ninguna manera el derecho de la otra parte (es decir, del acreedor que
tiene razón)”.

Toda a construção em torno das convenções processuais, o que de resto também


se observa quanto aos demais mecanismos da legislação, sustenta-se sobre o equívoco de
tratar indistintamente partes que são muito diferentes entre si. Isso compromete ab initio
seu potencial em termos de efetividade e acesso à justiça. Diante disso, pouco adiantarão
os controles e limites previstos na lei. Tanto a “vulnerabilidade”, quanto a hipótese do
controle nos “contratos de adesão”, conforme sejam interpretadas, podem ser
insuficientes para mitigar os efeitos da desigualdade das partes sobre as convenções
processuais.

Além disso, as convenções processuais se fundam na premissa do


autorregramento processual (DIDIER, 2017), baseada na autonomia privada, que, em
última instância, vai de encontro com um comportamento observado no litigante
brasileiro, de preferir disputar direitos perante órgãos oficiais, particularmente o
Judiciário (cap. 2, item 2). Essa potencial incompatibilidade tende a afetar a amplitude
com que o negócio processual, por exemplo, se efetivará na prática forense.

Nessa linha, a aplicação das regras sobre as convenções processuais tem um


desafio considerável no Brasil: neutralizar, pelo seu uso privado ou no controle judicial
posterior, a desigualdade entre as partes que decorre de suas condições próprias e da
variada diferença de experiência em disputas judiciais (primeiro critério, desigualdade
pela experiência). Essa é uma condição de sua efetividade e promoção de justiça,
preliminar a todas as outras.

245
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

De outro turno, as convenções processuais detêm um potencial considerável na


promoção do acesso à justiça por particularmente dois caminhos. O mais profícuo parece
ser o da articulação que pode ser explorada com processos sociais de solução de disputas
(segundo critério de acesso à justiça deste estudo). Na medida em que os negócios
processuais sujeitam as partes a uma prévia discussão dos termos da disputa, evidente a
possibilidade de que o direito material possa ser incluído na negociação. Isso, porém,
depende de dois elementos: já existir disputa sobre o direito no momento em que são
negociadas as regras processuais e que as convenções não sejam definidas por meio de
contratos de adesão.

As convenções processuais também podem, teoricamente, atender à expectativa


dos cidadãos de receber uma resposta institucional para suas disputas (quarto critério).
Ainda que as regras processuais sejam definidas no âmbito privado, a resolução da
disputa, sob essas regras, se dará no âmbito judicial. Mesmo que sob controle das partes,
as alegações, os debates e a decisão serão desempenhados perante o Estado-juiz,
atendendo àquela expectativa relevada pela percepção e comportamento dos brasileiros
litigantes (cap. 2, item 2.2. e 2.3, supra).

Já quanto aos critérios da concentração da litigância judicial (terceiro) e a


proteção pelas formas (quinto), o risco de que as convenções processuais comprometam
o acesso à justiça é mais presente. A possibilidade de convenção sobre regras processuais,
como foi argumentado, tende a favorecer a parte com melhores condições de litigar em
juízo, maior experiencia e capacidade técnica-jurídica, etc. No Brasil, esse perfil de
litigante coincide com o do chamado “grande litigante”, cuja presença e uso dos espaços
do Poder Judiciário é altamente concentrada. Ademais, como o “grande litigante” tem
presença assídua nos processos “de massa”, a negociação sobre regras processuais tem
considerável probabilidade de intensificar o fenômeno da “litigiosidade repetitiva”,
contra o qual foi mobilizada a reforma legislativa.

Considerando que a negociação incide sobre regras formais, a vantagem do


litigante repetitivo e experiente é ainda maior. As convenções processuais privilegiam a
parte com melhores condições de negociar sobre direitos processuais. E, como se trata de
uma negociação sobre técnicas e formas processuais, a tendência natural será a da
convenção privilegiar o litigante com mais experiência – o que, no cenário brasileiro, será
o chamado “grande litigante”. Além disso, as negociações processuais presumivelmente

246
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

flexibilizarão as regras procedimentais estabelecidas pelo legislador. Se por um lado, isso


permite deformalizar e agilizar os processos, por outro, abre o flanco para um dos
litigantes ficar desprotegido pelas formas legais. Ciente disso, a doutrina especializada
tem argumentado que que negócios processuais devem observar as garantias processuais
e não dispor sobre normas cogentes processuais (YARSHELL, 2017; BUENO, 2017;
SICA, 2017). Ainda assim, esses limites podem se tornar insuficientes diante do perfil
assimétrico da litigância e o caráter excessivamente técnico dos termos negociados.

3. Desafios do acesso à justiça na nova legislação processual: eficiência,


liberdade e desigualdade

Este terceiro capítulo centrou a análise no sistema normativo processual


brasileiro - completando a triangulação proposta neste estudo entre teoria sobre acesso à
justiça, dados empíricos sobre a litigiosidade no Brasil e legislação processual. Houve,
neste capítulo, duas principais análises. O item 1 se encarregou de reconstruir as
características que historicamente compuseram o modelo processual civil brasileiro,
sinalizando as novidades nele promovidas pela legislação recente – eficiência e
protagonismo das partes. O item 2 decompôs as tendências que caracterizam o novo
sistema normativo e examinou quatro dos seus principais mecanismos – gerenciamento
de processos, sistema de precedentes, mediação judicial e negócio processual.

A principal alteração que a legislação processual recente impôs ao modelo


processual civil brasileiro diz respeito à aproximação aos modelos adversariais menos
formais. A escolha entre um sistema de traço adversarial e informal ou um sistema
inquisitorial e formal não é absoluta; depende das características e necessidades de cada
sistema. Em alguns casos, os litigantes conseguem definir juntos os rumos do processo e
as soluções a eles mais adequadas, restando ao Estado apenas a coordenação dessa
atividade. Em outros, a maior intervenção judicial é necessária para que o processo
caminhe para uma solução justa. O exercício arbitrário da jurisdição, com
comprometimento da independência, imparcialidade e legitimidade da sua intervenção, é
o perigo do modelo inquisitorial puro. No modelo adversarial puro, os riscos são os que
decorrem da assimetria entre os litigantes - maior ou menor em cada sociedade e tipo de
disputa.

247
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Nos sistemas processuais anteriores – i.e, o CPC de 1973 e as reformas


legislativas das décadas de 1980, 1990 e 2000 - a condução do processo é compartilhada
entre a lei, que estabelece sem reservas os ritos procedimentais, e o juiz, que dá impulso
oficial aos processos (art. 262 do CPC de 1973). A atividade instrutória, compartilhada
entre juiz e partes, é, por sua vez, resultado de uma leitura expansionista dos poderes
sobretudo instrutórios do juiz feita nas décadas de 1980 e 1990, a partir de uma regra
legal já existente (o art. 130 do CPC de 1973). No CPC atual, a condução do processo
agora é compartilhada com as partes, que podem convencionar sobre ônus e deveres
processuais (art. 190) e, junto com o juiz, definir o calendário processual (art. 191); e a
decisão da disputa também pode ser agora feita pelas partes, por meio dos acordos. Essas
diferenças alteram substancialmente o modelo de justiça vigente no Brasil, ainda que a
estrutura dos processos tenha se mantido relativamente a mesma. O sistema continua
aderente ao princípio dispositivo e à inércia da jurisdição, mas a ampliação das atividades
e poderes das partes no processo deslocou-o em direção a um modelo adversarial, de
natureza liberal, embora prossiga sediado no âmbito e na estrutura da Justiça estatal295.

As mudanças promovidas pela nova legislação, porque alteram as características


do modelo de justiça e processo brasileiro, tendem a afetar positiva ou negativamente a
acesso à justiça. Para avaliar o sentido dessas mudanças, a segunda parte deste capítulo
recorreu a indicadores de acesso à justiça e de potencial da efetividade da nova legislação,
sintetizados com base nos postulados construídos com base nas premissas teóricas e
empíricas dos capítulos anteriores. Dentre os indicadores avaliados, dois se mostraram
particularmente ausentes nas tendências que caracterizam a nova legislação: a
desigualdade de experiência entre os litigantes e a proteção pelas formas processuais –

295
Não há dúvida de que os poderes do juiz no processo civil não foram “abolidos” com o novo Código. O
novo Código prevê sim um leque amplo e variado de poderes exercíveis pelo juiz no processo, monocrática
e colegiadamente. O novo artigo 139, por exemplo, reproduz as hipóteses do antigo artigo 125 e ainda lhe
acrescenta novas. O seu inciso VI, por exemplo, permite ao juiz “dilatar os prazos processuais e alterar a
ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior
efetividade à tutela do direito”. As regras que reprimem o abuso do processo e tentam imprimir um padrão
ético pautado na boa fé também se valem de instrumentos de coerção operados pelo exercício de poderes
do juiz295. No âmbito dos tribunais, os poderes do relator e os dos órgãos colegiados foram
consideravelmente fortalecidos em relação aos códigos anteriores295. Entretanto, junto a tais regras, há
agora outras tantas que resguardam um espaço maior de liberdade das partes no processo – das quais as
mencionadas acima são apenas um exemplo. Em não poucos casos, o risco de conflito das regras de
liberdade das partes com as que preveem o exercício de poderes oficiais não é desprezível, o que já é
suficiente para reforçar a hipótese de que o novo Código teria causado um deslocamento do modelo de
justiça e de processos no sentido adversarial – ainda que não o suficiente para caracterizar todo o modelo
como tal, mas também com menos convicção para classifica-lo como inquisitorial.

248
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

justamente aqueles considerados mais relevantes nos estudos teóricos sobre o acesso à
justiça e a resolução de disputas (Cap. 1). E um deles aparentemente encontrou potencial
caminho em mais de uma tendência: a articulação com os processos sociais de resolução
de disputas.

A desformalização é um dos objetivos da nova legislação (cf. cap. 1, item 1.3) o


que explica e justifica o resultado negativo observado no critério de “proteção pelas
formas”. Também é um dos principais caminhos pelos quais o novo sistema espera
aprimorar a eficiência do sistema. Julgamentos por amostragem, adaptação do
procedimento, resolução por acordo entre as partes são mecanismos que desformalizam
o processo judicial no intuito de conferirem eficiência ao funcionamento da jurisdição. A
questão, todavia, é avaliar em que medida a redução das formas processuais seria
adequada ou excessiva, de modo a afetar positiva ou negativamente o acesso à justiça. É
sedimentado na doutrina processual brasileira o entendimento de que as formalidades
excessivas precisam ser eliminadas para que a jurisdição possa responder efetiva e
satisfatoriamente ao direito material (DINAMARCO, 1984; OLIVEIRA, 2003,
BEDAQUE, 2007). Por outro lado, há, na literatura em “dispute resolution”, a ponderação
de que a tendência de informalização da Justiça não necessariamente promove o acesso à
justiça (ABEL, 1982; HARRINGTON, 1985). De seu turno, os dados empíricos
sistematizados no capitulo 2 confirma que nem sempre as partes preferem a redução das
formas processuais, sobretudo quando litigam em desigualdade (cap. 2, item 3.2.2,
supra).

A flexibilização ou abreviação de procedimentos estabelecidos em lei


geralmente agiliza a tutela jurisdicional, mas pode também colocar em risco as garantias
processuais de modo a comprometer o resultado substancial de justiça. Encontrar este
equilíbrio tem sido um desafio da literatura processual nas últimas décadas, enfrentado
por trabalhos complexos e bem articulados. Pelo visto, é um debate que agora se recoloca
a partir do novo Código e os indicadores de acesso à justiça e que será determinante do
modo como os mecanismos serão aplicados na prática forense.

O critério da desigualdade de experiência entre litigantes parece, dentre os


demais, ainda mais relevante porque condiciona os resultados das políticas de
desformalização e todas as outras tendências da nova legislação – o que explica ter sido

249
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

a premissa e o escopo fundante das teorias sobre acesso à justiça nos últimos cinquenta
anos (cap. 1).

Pela perspectiva da desigualdade entre os litigantes, faz sentido a preferência,


observada no comportamento do brasileiro, pelo sistema oficial de justiça e pelos
mecanismos formais (quarto indicador de acesso à justiça na tabela acima). Dados sobre
a percepção de justiça e o comportamento processual dos litigantes apresentados no
capítulo 2 (item 3.1, supra) sugerem que, embora no Brasil as pessoas não confiem no
Judiciário e reconheçam furtar-se às leis quando necessário, elas valorizam a autoridade
legal e optam pelos mecanismos formais disponibilizados, inclusive quando seu uso é
facultativo. A representação por advogados nos juizados especiais cíveis é um exemplo.
Ainda que a lei dispense o seu uso a fim de facilitar o acesso à justiça, os litigantes pessoa
física preferem estar acompanhados por um advogado, sobretudo quando a parte contrária
é alguém que consideram mais poderoso do que eles (Alves da Silva, 2015; detalhes no
capítulo 2)296.

A inevitável projeção das desigualdades materiais para o plano do processo


sempre ocupou os debates sobre os modelos de justiça e as leis quase sempre tentaram
criar mecanismos para neutralizar seus efeitos. A existência, nas bases do direito
processual, de um princípio da igualdade e o conteúdo que lhe atribui a unanimidade
doutrinária (de igualdade substancial, de tratamento desigual aos desiguais, etc.) ilustram
o grau do risco a que está sujeito qualquer resolução de disputa acaso não neutralize os
efeitos da desigualdade entre os disputantes. Para não ir muito longe, toda a teoria de
acesso à justiça de Cappelletti busca, como ele diz, neutralizar a desigualdade das partes
no processo (cf. cap. 1, item 1.3, supra). A Constituição brasileira, consciente desse risco,
assegura não apenas a igualdade de todos perante a lei (caput do art. 5o), como traz para

296
Outro exemplo é o fato de que, embora o índice de confiança no Judiciário seja historicamente baixo
(4,9; sétima posição, de treze listadas), o subíndice de comportamento, que mede “a atividade da população,
se ela recorre ao Judiciário para solucionar determinados conflitos ou não”, é relativamente alto, de 8,6
(FGV, 2016). Metodologicamente, o baixo grau de confiança da população brasileira no Judiciário não
pode ser traduzido por sua preferência pela resolução privada dos conflitos. A questão aqui é a opção
manifesta em relação às outras opções que a população teria disponível, ou não.

250
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

o seu texto a previsão de órgãos e instrumentos para o tratamento paritário das partes pela
Justiça297.

Acontece que o direito não é neutro e qualquer legislação processual, pela sua
própria natureza, tende a aumentar as vantagens do jogador experiente em detrimento do
participante eventual298. Se o sistema é generoso em quantia e complexidade de regras
processuais, é mais provável que o litigante com recursos (financeiro, intelectual,
organizacional, etc.) “saia na frente” e sagre-se vitorioso, independentemente de estar ou
não amparado pelo direito material. Se as regras são flexíveis e podem ser definidas
conforme o caso, os efeitos da assimetria podem ser ainda maiores: o litigante experiente
terá mais condições, inclusive técnicas, de adapta-las ao seu favor, ao passo que o litigante
eventual, que sequer entendera as regras oficiais, provavelmente seguirá a definição ad
hoc feita pelo seu adversário.

Diante disso, a política legislativa se vê em um difícil dilema: por um lado,


litigantes inexperientes preferem o processo judicial e as formas processuais e, por outro,
quanto mais formas processuais, mais vantagens tem esse o litigante com mais recursos.
O desenho do novo sistema processual civil brasileiro preocupou-se particularmente com
a desigualdade durante o processos e aquela que nasce do resultado do processo
(desigualdade no processo e pelo processo, cf. ABREU, 2015), mas não parece ter
considerado em igual proporção a desigualdade que decorre da diferente experiência no
uso do próprio processo judicial – que, segundo a literatura analisada (cap. 1),
compromete em maior medida pelo acesso à justiça. Da mesma forma, também não
captou este delicado dilema entre a desigualdade de experiências e e o uso das formas
processuais, abusivo em alguns casos, protetivo em outros.

Por outro lado, o critério da articulação da jurisdição com os processos sociais


de resolução de disputas encontrou potencial caminho por meio de três das tendências da
nova legislação: a resolução consensual, a valorização da jurisprudência e o
autorregramento processual. Conforme sejam operacionalizadas em concreto as suas

297
A assistência jurídica gratuita, assegurada aos litigantes sem condições de arcar com os custos do
processo sem comprometer sua subsistência, é provavelmente o principal deles (art. 5o, LXXIV, art. 134 e
ss., etc.).
298
Neste sentido, o primeiro postulado enunciado neste estudo, de que o direito, inclusive o direito
processual, não é neutro.

251
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

respectivas regras, o sistema pode caminhar para a estruturação de um “macrossistema


integrado de resolução de disputas”.

Entretanto, também este indicador está condicionado ao da desigualdade de


experiência e ao da proteção pelas formas. A “desjudicialização” das disputas, por
exemplo, anunciada como meta de reorganização do sistema judiciário299, não produzirá
os resultados esperados se não articulados com a questão do perfil de desigualdade que
caracteriza a litigância judicial brasileira. Além disso, a desjudicialização sozinha não
será suficiente para a estruturação do “macrossistema integrado de solução das disputas”.
A desformalização processual e desjudicialização das disputas, conquanto recomendáveis
em alguns sistemas, podem produzir efeitos de acesso à justiça se não articulados com o
dado de desigualdade e a premissa da não neutralidade das técnicas processuais. Eles
podem produzir injustiça em cenários de litigância desigual porque suas vantagens se
limitam pelas partes com capacidade de compreende-los e operacionaliza-los
eficazmente300.

A realidade da justiça no Brasil, como evidenciam os dados oficiais, é de um


desigual uso do Poder Judiciário, concentrado em litígios que envolvem, quando muito,
só um punhado de atores sociais (cf. cap. 2, item 2.2, supra)301. Sobre esse cenário, a nova
legislação processual criou um modelo ainda menos sintonizado com o ideal de acesso à
justiça, que ampliou tanto as vantagens das partes mais experientes e com participação
frequente em processos judiciais, quanto as desvantagens daqueles que só participam
eventualmente de uma disputa judicial. O recurso a técnicas de resolução consensual ou
a um sistema de precedentes judiciais, por exemplo, não necessariamente promovem
ampliação do acesso à justiça. O litigante com mais recursos em geral tem maior poder
de barganha, o que lhe assegura melhor posição negocial e resultados mais favoráveis,
ainda que tenha que desembolsar algo em um acordo (FISHER, URY, PATTON, 1994,

299
Melhor exemplo é a Estratégia Nacional de Não Judicialização (ENAJUD), política pública de reforma
da Justiça desempenhada no âmbito do Ministério da Justiça (ALVES da SILVA, 2017, não publicado).
300
Para ficar em dois pequenos exemplos, não poucos advogados terão dificuldades práticas em celebrar
um negócio jurídico processual sem o risco de colocar o cliente em posição menos vantajosa; e não muitos
terão acesso aos órgãos superiores de justiça para bancar uma batalha em torno de um IRDR.
301
O diagnóstico de Rhode (2004, p. 24) para os EUA também é de concentração do acesso à justiça na
parcela pequena da população. A diferença, no caso, é que a razão da concentração é o custo dos processos,
o que não parece ser o motivo no caso brasileiro.

252
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

p. 117 e ss.)302. E o litigante repetitivo, porque disputa outros processos além daquele,
pode trabalhar com perdas pequenas para um ganho a médio prazo. Um sistema de
precedentes, por sua vez, amplia ainda mais a sua vantagem, pois lhe abre a possibilidade
de um comportamento estratégico com baixo risco em qualquer cenário.

302
O conhecido manual de negociação da Harvard Law School baseia-se em potencializar, por diferentes
técnicas, os recursos e o potencial daqueles com menos recursos e, portanto, menor poder para negociar.
Ao discutirem a técnica da MAANA (Melhor Alternativa À Não Negociação), eles explicam: “De fato, o
poder relativo de negociação de duas partes depende, primordialmente, de quão atraente para cada uma
delas é a opção e não chegar a um acordo.” (FISHER, URY, PATTON, 1994, p. 122)

253
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Conclusão – o acesso à justiça, a litigiosidade e o processo


civil brasileiro
O objetivo deste estudo foi o de compreender mais profundamente o significado
do ideal de acesso à justiça e as características do fenômeno a que se tem chamado de
“litigiosidade” de massa no contexto judicial brasileiro contemporâneo para, a partir
deles, discutir o arranjo de valores em que se sustenta a legislação processual civil
brasileira recém instituída e propor critérios para a aplicação de suas regras.

Chegado a este capítulo conclusivo, é possível afirmar, com base no referencial


teórico e dados empíricos sistematizados ao longo dos capítulos anteriores, que nem o
conceito de acesso à justiça nem a realidade da litigiosidade brasileira foram
satisfatoriamente compreendidos pelas políticas judiciárias e legislativas mais recentes.
Designa-se por acesso à justiça um repertório de justificativas distante das ideias originais
e o discurso de senso comum sobre a litigiosidade não corresponde ao que os dados
revelam existir no Brasil303. Pautada em um diagnóstico impreciso e incompleto, a
legislação processual tende a um menor potencial para se efetivar do que inicialmente
imaginado.

Recuperar os principais dados levantados no correr deste estudo ajudará a


compor e a justificar essa conclusão e a sugerir propostas de encaminhamento no âmbito
da operação e aplicação da lei e no das pesquisas sobre o problema.

Em relação ao ideal de acesso à justiça, conquanto haja diferentes abordagens


teóricas, nem toda justificativa de política judiciária cabe no conceito. A premissa
original, segundo se extrai da longa linha de estudos a respeito, é a de que as pessoas não
têm iguais condições de buscar proteção a seus direitos e o sistema deve balancear essas
diferenças. Políticas com outros objetivos, embora necessárias e convenientes, não podem
ser consideradas de acesso à justiça. A recente legislação processual civil brasileira esta
entre elas.

303
O discurso sobre a litigiosidade de massa é generalizado e padronizado, o que levanta a hipótese de ser
menos resultado de um efetivo diagnóstico do que de uma política informal de convencimento. No debate
norte-americano, por exemplo, que projeta influência sobre as reformas judiciárias de vários países,
inclusive o Brasil, o senso comum sobre o problema da litigiosidade recai sobre elementos similares aos do
discurso aqui observado: muitas demandas, autores oportunistas, advogados irresponsáveis e uma cultura
geral de litigância. Cf. Rhode (2004, p. 39), trecho transcrito em nota 175, supra.

254
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O conteúdo básico do acesso à justiça está fundado na velha constatação de que,


para a mínima ordem social, as pessoas devem poder reivindicar por justiça e serem
ouvidas. Há formas próprias para se fazer isso – o que compõe o direito processual -, mas
é preciso garantir a todos essa oportunidade. O “acesso à justiça” de Cappelletti e Garth
(1978), que teve extraordinária influência no Brasil, recupera esta ideia matriz e lhe
acrescenta o elemento da desigualdade: nas sociedades contemporâneas, uma parte
substancial das pessoas não consegue buscar justiça e ser ouvida por conta de obstáculos
de diferente natureza. Na sua acepção original, portanto, a desigualdade é condicionante
do acesso à justiça e as formas podem ser obstáculos ou, conforme dispostas, um caminho
para o seu balanceamento.

O maior risco ligado ao acesso à justiça – e isso é central para entender o


problema atual brasileiro - não é o aumento das reivindicações ou do custo de ouvi-las
todas, mas a instabilidade na organização social que sua falta provocaria. A existência
das reivindicações por justiça em uma dada sociedade é um sinal do seu bem-estar, do
seu funcionamento normal (SIMMEL, 1983) - não do contrário, como fizeram crer as
teorias social e processual clássicas da “patologia social” (DURKHEIM, 1999) a ser
“eliminada” pela jurisdição (CARNELUTTI, 2003). Concepções naturalistas do processo
judicial, como essas, não fazem sentido no contexto contemporâneo. Disputas existem e
os litígios tendem a aumentar (GALANTER, 2005). Isso não é necessariamente
patológico e não precisa abalar a segurança do sistema. Pelo contrário. Os litígios e os
processos judiciais oferecem uma oportunidade de a sociedade manter-se regulada, pela
possibilidade suplementar (ou complementar, conforme a posição adotada) da
concretização das leis por meio das decisões judiciais (KAGAN, 2009). A litigiosidade,
portanto, não é indesejável do ponto de vista da sociedade.

Geralmente, há dois tipos principais de abordagens na literatura sobre acesso à


justiça, aos quais correspondem políticas com dois diferentes focos: o aperfeiçoamento
das instituições e o investimento na capacitação da própria sociedade. As “ondas
renovatórias” do acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1978) apostam majoritariamente
nas políticas institucionais – novos direitos, novos procedimentos e novos órgãos do
sistema. Os estudos seguintes paulatinamente deslocaram o olhar, e as propostas feitas,
para o âmbito dos arranjos sociais. Já os avanços mais recentes propõem pensar o acesso
à justiça a partir das percepções e experiências dos diferentes grupos sociais.

255
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

A legislação processual civil brasileira olha para o problema do acesso à justiça


de uma perspectiva “de cima para baixo” (top-down) e investe no aperfeiçoamento
institucional. Sem muita estrutura e consideração dos riscos envolvidos, a legislação
recente arrisca um deslocamento para os arranjos sociais. A análise do seu potencial em
promover efetivo acesso à justiça no contexto brasileiro guia-se por cinco postulados
sintetizados neste estudo com base nas fontes teóricas e empíricas analisadas.

Antes de Cappelletti e Garth (1978), o trabalho de Carlin, Howard e Messinger


(1966) e o extraordinariamente citado artigo de Galanter (1974) deram ênfase à questão
da desigualdade entre os litigantes. Os primeiros deixaram claro que o direito e as
instituições jurídicas, embora técnicos, não são neutros – as características e o modus
operandi da lei, do processo e dos órgãos do sistema de justiça tendem a favorecer os
litigantes com mais recursos304. Já Galanter (1974), pela tipologia dos “jogadores
habituais” e “participantes eventuais”, explicou como o sistema premia aqueles que
litigam com mais frequência305. Suas explicações e teorias são espantosamente atuais para
compreender a questão da justiça no Brasil quarenta anos mais tarde. A litigiosidade de
massa e a assimetria entre os litigantes são os traços mais marcantes da nossa litigância
judicial - como mostram os dados do capítulo 2, destacados adiante. Com base em suas
análises, este estudo sintetizou o primeiro dos postulados que guiaram o exame da
legislação processual brasileira:

Como o direito não é nem nunca foi neutro, a jurisdição e o processo judicial
tendem a privilegiar aqueles com mais experiência no seu manuseio.

Lei processual alguma será eficaz na promoção do acesso à justiça se não


conseguir neutralizar, ao menos mitigar, as consequências das desigualdades
invariavelmente existentes entre os litigantes (de experiência, de técnica, de recursos,

304
Esses autores também anteviram, ainda na década de 1960, aspectos do que identificamos hoje no Brasil
como aspectos da chamada “litigiosidade de massa”: aumento exponencial das demandas; burocratização
das atividades judiciárias; “administrativização” da jurisdição; delegação de funções decisórias aos
servidores; uso de modelos padrão de decisões, entre outros. E sugeriram, para lidar com o fenômeno, a
concepção de uma nova teoria da jurisdição e do direito processual (cf. cap. 1, item 2).
305
Ele sistematizou os “tipos ideais” de litigantes - os “jogadores repetitivos” e os “participantes eventuais”-
e detalhou como a estrutura e o funcionamento do sistema de justiça favorecem aqueles, independentemente
de estarem ou não com razão ou de serem ou não vitoriosos no processo. Os “repeat players”, diagnosticou
Galanter, seriam os governos e as grandes corporações privadas. Sequer os advogados, embora experientes
na Justiça, conseguiriam neutralizar as vantagens sistêmicas conferidas ao litigante repetitivo.

256
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

etc.) nos resultados substanciais dos processos. No Brasil, esta exigência é ainda mais
sensível, como apontam os dados empíricos.

Outro grande ponto da linha teórica analisada diz respeito à trajetória das
disputas antes da judicialização, o que suscita a proposta, para o Brasil, de articulação dos
vários “processos” de resolução de conflitos, estatais e privados. Na virada para a década
de 1980 – concomitante à publicação do Projeto Florença, portanto -, os estudos ligados
ao acesso à justiça se deslocaram das instituições oficiais (leis, políticas públicas, órgãos
e agentes públicos) para as tramas do tecido social. Ganhou adesão a constatação de que
as disputas de interesses acontecem muito antes e independentemente de serem
judicializadas (a chamada “dispute perspective”, notadamente o Civil Justice Litigation
Project - CJLP). A atividade de reivindicar justiça, percebeu-se, é construída durante todo
esse percurso. Diante disso, as políticas judiciárias não poderiam mais pensar em acesso
à justiça, reformar os órgãos ou as regras processuais, sem considerar a trajetória das
disputas antes de sua judicialização306. Durante as etapas prévias da disputa, incidem
regras materiais e processuais informais, não positivadas e alheias ao âmbito da
jurisdição, as quais, independentemente do reconhecimento oficial, são determinantes do
uso dos processos judiciais e da expectativa depositada na tutela jurisdicional oficial
(Felstiner, Abel e Sarat, 1980). Esses aportes explicativos inspiraram o segundo grande
postulado elaborado neste estudo:

A resolução de disputas acontece majoritariamente no âmbito social, antes do


processo judicial, de modo que a ideia de acesso à justiça não se limita aos
métodos e instrumentos institucionalizados.

A ampliação do olhar para os “processos sociais de solução das disputas” suscita


a proposição, para o nosso caso, da estruturação, nos planos conceitual e organizacional,
de um “macrossistema de solução de disputas”, integrado pelos diferentes processos
sociais e estatais, inclusive o judicial. Este conceito expande o olhar do acesso à justiça
para um contingente de disputas que sequer chegam ao Judiciário e, complementarmente,

306
No Brasil, vale registrar, a pesquisa sobre litigiosidade e causas da morosidade, no âmbito de programa
do Conselho Nacional de Justiça, cuja equipe tive a honra e a satisfação impar de compor, explica a
trajetória dos conflitos de consumidor e previdenciários e seus efeitos sobre a judicialização (GABBAY e
CUNHA, 2012).

257
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

deixa claro que as que chegam desfrutam de uma posição privilegiada307. Se os resultados
de acesso à justiça variam conforme os sujeitos e, por extensão, os direitos materiais em
discussão, o desenho das formas processuais deve acompanhar essa variação.

Esta conclusão corresponde, na ciência processual, à tese da adequação dos


procedimentos às necessidades do direito material, inspiradora de mudanças importantes
no CPC de 2015. O diferencial, neste caso, é que o critério de adequação das formas ao
direito material é o acesso à justiça e o obstáculo que decorre da desigualdade inerente às
partes. Disso decorre um princípio de interpretação e aplicação de regras como as do
gerenciamento de processos, negócio jurídico processual, julgamentos por amostragem e
outras formas extraordinárias de resolução das disputas: a de que o princípio da igualdade,
que já norma fundamental do Código (art. 5), é critério particularmente importante para
o uso eficaz desses mecanismos.

Retornando à linha de estudos em acesso à justiça, à esta altura, meados da


década de 1980, as possibilidades para se pensar o acesso à justiça haviam sido ampliadas
para os arranjos sociais. Isso parece ter contribuído para o nascimento de duas propostas
que influenciariam as políticas judiciárias pelas próximas quatro décadas: os ADR e os
estudos das percepções e experiências das pessoas com a justiça.

Os ADR nasceram de teses que argumentavam que a desformalização dos


processos (Abel, 1982, com argumentos contrários) e a delegalização da jurisdição
(Harrington, 1985, também criticamente) eram caminhos para se ampliar o acesso à
justiça. Juntou-se a elas a preocupação com a “explosão da litigiosidade” e a “sobrecarga
de processos” nos tribunais (Burger, 1982)308. Em alguns anos, o movimento em torno
dos ADR se tornou a vertente de acesso à justiça com maior suporte institucional e
acadêmico, e a que mais se estruturou, difundiu-se e popularizou-se (Galanter, 2005). A
arbitragem, a negociação, a mediação, a conciliação, a avaliação de terceiro neutro, o

307
Os levantamentos empíricos feitos à época identificaram direitos (e pessoas) que conseguem acessar a
Justiça mais facilmente do que outros e permitiu classificar as disputas conforme sua propensão a serem
reivindicáveis ou não, tendentes a acordo ou judicializáveis (Miller e Sarat, 1981). Casos de discriminação,
por exemplo, têm mais dificuldades de vencer os obstáculos da judicialização do que indenizações de
consumidores ou ações para proteção à propriedade.
308
Os tribunais e as partes mais frequentemente acionadas judicialmente comungavam, cada um em seu
posto, uma clara insatisfação com os resultados das políticas de ampliação dos direitos civis e do acesso à
justiça das décadas anteriores. O volume de processos aumentara geometricamente, tal como os custos das
empresas com litígios e indenizações a que eram condenadas - os famosos torts, potencializados pela tese
dos punitive damages.

258
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

minitrial, o med-arb e até a possibilidade genérica do desenho de solução de disputas


(DSD) ganharam incentivo e foram incorporados a sistemas oficiais de justiça de países
de todo o mundo. No Brasil, os ADR ganharam as políticas judiciárias oficiais quase
trinta anos depois, sob impulsos similares aos observados na origem, mas sem o
correspondente embate teórico sobre suas consequências.

Paralelamente, uma abordagem ainda hoje vanguardista do acesso à justiça


enfatizava seus traços culturais locais. Se as “ondas” de Cappelletti e Garth investiam no
desenho de órgãos e processos (perspectiva institucional) e a “dispute perspective” se
concentrou nos processos sociais de solução de disputas (perspectiva social), uma terceira
vertente resolveu buscar saídas na percepção e comportamento das pessoas em relação
às suas experiências com o direito e a justiça309. O acesso à justiça seria, afinal, mais um
produto das experiências das pessoas do que da perfeição técnica de um dado
instrumental. Por consequência, a eficácia dos desenhos institucionais dependeria do
quão sintonizados estariam àquelas percepções. A tese ajuda a entender por que algumas
leis “pegam” e outras “não”. E, do ponto de vista da sociedade e não do sistema, permite
afirmar que a melhor solução de uma disputa é aquela que constrói a melhor experiência
de justiça para as pessoas, o que pode estar ligado à eficiência, mas também a outros
fatores, como à sensação de ter sido devidamente ouvido, ter podido participar, ter tido
substancial acesso à justiça.

Nos anos 2000, o tema do acesso à justiça retornou à agenda científica global
(Mattei, 2007) e política dos EUA (Sandefur, 2005), o que deu novo impulso às pesquisas,
que produziram novas ideias. Destaco dois exemplos. A profusão de arenas e métodos de
solução de disputas, no âmbito judicial e extrajudicial, somada à noção de que os
diferentes direitos e interesses sugerem diferentes caminhos e satisfazem-se com
diferentes tipos de resultados, culminou na sugestão da existência um complexo e
articulado sistema de processamento e resolução de disputas que mescla as esferas
públicas e privadas – uma “árvore de solução de disputas” (Albiston e Edelman, 2005; cf.

309
Duas vertentes merecem registro. A primeira, baseada no diálogo com estudos da psicologia
comportamental, desenvolveu o conceito de “justiça procedimental” (procedural justice) a partir de dados
que indicaram que as pessoas percebem a justiça mais pelo modo como são ouvidas do que pelo conteúdo
da decisão imposta (Tyler, 1997). A segunda recupera uma das ideias da “dispute perspective” para
argumentar que as pessoas constroem seu senso de justiça e legalidade a partir das experiências que tiveram
com a lei e os fenômenos jurídicos em suas atividades diárias – a chamada “legal consciousness” (Silbey e
Ewick, 1998), aqui também identificada por “construção social da legalidade”.

259
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

figura no cap. 1, item 4.4). Somado a isso, a noção de que o acesso à justiça varia
conforme o direito material e o que a justiça é uma percepção resultante da experiência
das pessoas, inspirou uma proposta para se pensar o acesso à justiça a partir de como se
concretiza nos diferentes grupos sociais envolvidos nas disputas (Sandefur, 2009). Qual
seja a abordagem e a política adotadas, o acesso à justiça não chega igualmente a todos
os tipos de litigantes. Alguns têm mais acesso, outros menos e outros não o têm. A questão
é identifica-los e mensurar o quão concentram esse benefício, ou prejuízo, para si – e se
é desejável para o sistema que seja assim310.

No Brasil, o ideal acesso à justiça foi incorporado na legislação e na doutrina


desde a década de 1980, quando o país procurava reconstruir suas instituições
democráticas, e desde então o termo passou a ser usado para legitimar a sequência de
reformas processuais que culminaram no CPC de 2015. Tanto os estudos a respeito
quanto as políticas judiciárias limitaram-se a uma perspectiva institucional de abordagem
do acesso à justiça – talvez pela influência de Cappelletti311. As outras ciências sociais
souberam diversificar as análises e olhar para o problema “de baixo para cima”, mas a
pesquisa jurídica manteve-se, salvo exceções, limitada a propostas de ampliação de
órgãos e reforma de instrumentos processuais – evidentemente relevantes, mas
insuficientes diante da complexidade do problema, porque somente o vê “de cima para
baixo”312. Somado ao isolacionismo que caracteriza a ciência jurídica nacional, nossa
compreensão sobre o acesso à justiça se limitou ao viés institucionalista, legado da
influência das “três ondas”, permeável a valores e tendências que distanciaram o termo
do ideário original313.

O perfil concreto da litigiosidade no Brasil, do que se ocupou a segunda parte do


trabalho, ajudou a precisar quais as nossas carências em termos de acesso à justiça e sobre

310
A American Bar Foundation, responsável por financiar e sediar inúmeros projetos em todo esse período,
comprou a ideia e reabriu uma linha de projetos específica ao tema, coordenada pela própria Sandefur.
311
Intensificada, vale anotar, pela publicação do texto de abertura do relatório do Projeto Florença em 1988
por Sérgio Fabris.
312
Essa diferença reflete as duas perspectivas de análise do acesso à justiça identificadas na literatura
internacional: de “cima para baixo”, por meio das instituições formais, ou de “baixo para cima”, pela
própria sociedade.
313
Como a preocupação suprema com a eficiência do sistema, segurança jurídica, economia processual,
padronização de resultados e eliminação do estoque. Nenhum desses elementos integram a ideia original
de acesso à justiça, mas tem composto, no debate das políticas públicas judiciárias, o conteúdo conferido
ao termo.

260
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

que cenário a legislação processual incidirá314. Os dados sistematizados revelaram que


não somos uma cultura de litigância e que o acesso à justiça é limitado, seletivo e
concentrado. A litigiosidade, além de não ser enraizada na cultura brasileira, é
relativamente baixa e mal distribuída; e tende a aumentar conforme o desenvolvimento
econômico e social315. De outro turno, políticas específicas podem aperfeiçoar a
distribuição da litigiosidade - o que se deduz pela participação levemente maior de
pessoas sem renda em determinadas regiões do país (cap. 2, item 2.1).

Se a litigiosidade é menor do que se anuncia, a litigância judicial é por sua vez


menos efetiva do que se supõe. A despeito do alto o volume de processos e dos recursos
despendidos, o Judiciário brasileiro não chega a atender parcela significativa da
população e a parcela atendida é composta de um mesmo grande grupo, o que limita ainda
mais a cobertura do serviço judiciário. A litigância judicial também está concentrada em
uma lista seleta de litigantes: setor público; bancos; e empresas de telefonia, que em 2011
responderam por 35,5% do total de processos ingressados (CNJ, 2012). Isso explica a
sensação, enganosa portanto, de que a litigiosidade é massiva e repetitiva. Separado o
volume de processos dos “grandes litigantes”, o restante é diversificado e disputado316.
Variam os grupos sociais comumente envolvidos nos litígios judiciais317 e varia também

314
No Brasil, as ciências sociais sempre produziram estudos empíricos sobre os órgãos do sistema de justiça
e o acesso à justiça. A partir dos anos 2.000, os órgãos responsáveis pela gestão da Justiça passaram a
também investir na produção de dados empíricos sobre esses temas. Em pouco mais de uma década, já
havia dados para iniciar um diagnóstico mais detalhado a respeito e instruir o desenho de políticas públicas
de justiça. A segunda parte deste estudo sistematizou um “mosaico” do retrato da realidade da justiça no
Brasil. Baseou-se em dados empíricos finalmente produzidos na última década e meia. Alguns relatórios
oficiais, outros fruto da produção de universidades e centros de pesquisa. Participei como pesquisador ou
como coordenador dos projetos que resultaram em parte dos dados apresentados.
315
Menos de 10% da população brasileira relata ter se envolvido em disputas em sua vida diária (IBGE,
2010) e o envolvimento em conflito se concentra em perfis típicos de estratos específicos da população:
com mais renda, com mais escolaridade e com mais idade. O perfil de cidadão que mais relatou
envolvimento em conflitos é o de homens, acima de 40 anos, com ensino superior completo e renda acima
de 5 salários mínimos (IBGE, 2010).
316
Dentre os assuntos tratados, apenas dois deles – rescisão de contrato de trabalho e verbas rescisórias e
questões eleitorais – chegaram perto dos 10%; as demais não chegam a representar mais de 5%. Rescisão
de contrato de trabalho e verbas rescisórias (11,75%), relativo a obrigações e contratos (4,61%), dívida
ativa (4,10%), responsabilidade do fornecedor com dano moral (3,94%), responsabilidade civil com dano
moral (3,94%), alimentos (1,97%), seguidos por dano moral do empregador, títulos de crédito, auxílio
doença previdenciário e tutela específica/tutela antecipada (CNJ, 2017).
317
Por exemplo, jovens entre 18 e 24 anos reportaram conflitos predominantemente na área de família e
criminal; e pessoas com mais de 50 anos reportaram conflitos trabalhistas e previdenciários

261
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

a distribuição regional da litigância judicial318. Também variam os tipos de litígios dentre


as instâncias judiciais319.

A má distribuição do serviço de justiça, com consequências para as prioridades


das reformas processuais, inspirou o terceiro postulado deste estudo:

A litigiosidade no Brasil não é alta como se anuncia (envolve cerca de 10% da


população), mas está concentrada em alguns atores sociais públicos e privados
(os “grandes litigantes), o que aumenta a sensação de “repetitividade”;
geralmente, esses litigantes polarizam os processos com litigantes menores e
com participação eventual no sistema (os “litigantes eventuais”)

A pergunta que, diante desses dados, se coloca para o acesso à justiça no Brasil
não é a de saber como reduzir o congestionamento no Judiciário, mas esclarecer por que
ele não é ainda maior, por que se mantém concentrado e mal distribuído.

A hipótese de que as pessoas preferem não buscar o Judiciário também é


improvável. Apesar da baixa confiança da população brasileira na Justiça, isso não
significa que não o utilizem nem que não queiram utiliza-lo320. Os litigantes não são
iguais; os que avaliam mal a Justiça não são os mesmos que gostariam, mas não podem
utiliza-la321. Ou o serviço é de fato insatisfatório, ou mais pessoas gostariam de o utilizar,
mas não conseguem. Ir ao Judiciário é, em princípio, uma saída cara e complicada, a que
se recorre por falta de alternativa. Além disso, é uma saída que requer alguma dose de
coragem – alguém que nunca entrou em um Fórum se colocará contra um “jogador
experiente”, conhecedor das regras e das pessoas. Nesta situação, se for preciso litigar, a
prudência recomenda fazer isso por meio de alguém ainda maior - o Estado.

318
Segundo o CNJ, “os principais assuntos cadastrados no TJ-BA, TJ-MA e TJ-PE diferem dos casos mais
recorrentes nos outros tribunais” (CNJ, 2017, p. 168)
319
Casos criminais predominam nos órgãos de segundo grau, direito tributário na justiça comum e
consumidor nos juizados especiais (idem)
320
“No levantamento do índice de confiança na Justiça medido pela FGV, o subíndice de comportamento
- que mede a chance das pessoas procurarem o Judiciário para resolver suas disputas – alcançou
surpreendentes 8,6, ante os 3,4/10 do subíndice de confiança - que mede apenas a opinião a respeito.”
(FGV, 2016).
321
A população mais vulnerável, por exemplo, atribui notas mais altas à Justiça, mas é a que menos a
utiliza; a população menos vulnerável atribui as notas mais baixas, mas é as que mais utiliza. De modo
geral, “excepcionando-se a avaliação da população autodeclarada negra, os grupos sociais considerados
mais vulneráveis atribuíram as notas mais altas à Justiça. Diversamente, o comportamento consistente em
acionar o Judiciário parece concentrado nos grupos sociais considerados os menos vulneráveis.” (FGV,
2016).

262
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

É, portanto, mais provável que as pessoas não acessem o Judiciário porque não
conseguem do que por preferir outro caminho. A despeito dos traços indicados como de
“crise da Justiça e do processo”, o serviço público de Justiça no Brasil é bastante
concorrido. Entram na disputa os próprios órgãos do Estado, as grandes empresas e a toda
a população – que, em si, é composta de diferentes grupos sociais, com diferentes recursos
disponíveis322

A importância do Judiciário e do processo judicial é tema do quarto postulado:

O Poder Judiciário, embora burocratizado e assomado de processos, é uma


arena de resolução de disputas bastante disputada pelos atores sociais;

Assim como não procede o argumento de que as pessoas prefiram litigar fora do
Estado, não é absoluto que elas prefiram fazê-lo com menos formalidades possível,
sobretudo em cenários de assimetria. As pessoas envolvidas em disputas nem sempre
preferem os caminhos alternativos ou os métodos que possam evidenciar sua condição
inferior e colocar em risco a justiça que procuram. Em casos de assimetria, que no Brasil
são regra, a parte em condição inferior prefere contar com a máxima proteção possível –
como procedimentos predefinidos e acompanhamento por um advogado323.

322
Nos juizados especiais cíveis, por exemplo, o espaço e a atenção dos servidores se divide entre casos de
consumidores contra fornecedores – bancos ou empresas de telefonia - e uma variedade de pequenas
demandas “domésticas” entre pessoas físicas - vizinhos, o marceneiro, o açougueiro, o mecânico, etc. Vale
reproduzir o trecho do relatório: “No juizado SP Penha, por exemplo, um dos entrevistados, juiz, declarou
[serem] comuns neste juizado demandas envolvendo o “açougueiro”, o “mecânico”, o “marceneiro”(...).
Um relato parecido aconteceu no juizado BE Guamá. Um dos entrevistados, assessor de juiz com
considerável experiência, contou que muitas demandas começaram por ocorrências um tanto peculiares: há
muitos anos - ele relata - um chefe de família dividira o seu terreno, então bem servido de quintal, a filhos
e genros e constrói casas para alojar as suas famílias. Posteriormente, essas casas são “vendidas” a outras
famílias, o que obriga todos a uma convivência muito próxima (praticamente, não há muros) entre
estranhos. Com o tempo, esta convivência gera conflitos de variada natureza naquele juizado. O
entrevistado lembra um deles, bastante trivial: em um desses terrenos compartilhados, todo domingo, ainda
de manhã, uma das famílias “compra lá meia dúzia de cerveja e um quilo de linguiça, liga o som em volume
alto, chama alguns amigos e começa o churrasco”, que termina apenas à noite, ainda com o som ligado.
Após alguns domingos, o conflito entre as famílias é inevitável. Segundo ele, não é incomum haver
processos naquele juizado baseados em narrativas como essas. (BRASIL, 2015, p 30)
323
Nos juizados especiais cíveis e federais, por exemplo, as partes geralmente preferem estar acompanhadas
por advogados, ainda que não sejam legalmente obrigadas. “Os autores “pessoa física” preferem litigar
acompanhados de advogados, o que nos JEF chega a 86,4% (IPEA, 2012, p. 101). E, “os autores “pessoa
física” preferem litigar acompanhados de advogados, o que nos JEF chega a 86,4% (IPEA, 2012, p. 101).”
Como está escrito em um outro trecho deste estudo, “os dados parecem sugerir que a escolha da parte pelo
acompanhamento profissional por advogado é determinada por um outro fator, predominante: o grau de
assimetria entre os litigantes. Se a disputa é entre iguais, como os litígios apenas entre pessoas físicas, o
advogado é dispensado.”

263
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

Outro mito do discurso de senso comum desconstruído pelos dados diz respeito
ao que se tem chamado de “litigância abusiva”. Quando se observa em detalhes o
comportamento das pessoas comuns na Justiça, segundo dados colhidos em âmbito
nacional em processos de execuções fiscais, juizados especiais cíveis e juizados especiais
federais, o resultado surpreende: a proporção de cumprimentos voluntários é alta324, o uso
de meios de defesa e recursos não é frequente325 e as partes comuns estão abertas para os
acordos.

Somado esses elementos, os dados sugerem que a litigância judicial é a


alternativa que resta em um quadro geral marcado por desconhecimento das leis e alto
grau de leniência com o seu descumprimento (cap. 2, item 2.3). O percentual registrado
de desconhecimento das leis chega aos 55% e a concordância com afirmações do tipo “é
fácil desobedecer a lei no Brasil” e “sempre que possível as pessoas escolhem dar um
‘jeitinho’ ao invés de seguir a lei” passa dos 80%. Em um cenário como esse, o cidadão
que se vê diante de uma violação de direitos há de querer buscar a Justiça estatal.

O quinto e último postulado conjuga a desconfiança na Justiça e a baixa


efetividade do ordenamento com a importância de haver órgãos oficiais e formas
predefinidas para a resolução de disputas em situações de assimetria:

As pessoas confiam pouco na Justiça, conhecem pouco as leis, são lenientes


com a desobediência legal, mas se pautam pela reprovação social; talvez por
isso, valorizem a Justiça estatal e os instrumentos formais quando se envolvem
em disputas.

Os aportes teóricos e o retrato empírico apresentados apontam, em suma, que a


efetividade das políticas públicas de justiça no Brasil – dentre as quais, a legislação
processual – depende, como disse Galanter (1974), de um “olhar pelo outro lado do

324
“Segundo levantamento de âmbito nacional feito pelo IPEA em 2009, as execuções fiscais federais se
extinguem predominantemente por pagamento integral da dívida (34%), seguido a alguma distância pela
baixa por prescrição (27,7%). Quando há citação pessoal, o pagamento sobe para 45%.” (IPEA, 2011, p.
20).
325
“Nas execuções fiscais, a frequência do uso de meios de defesa e impugnação não é alta, e a respectiva
taxa de êxito não passa dos 20%. Em todas as execuções fiscais analisadas naquela pesquisa, os embargos
foram utilizados em 6,5% dos casos e a objeção de preexecutividade, em 4,4%. As taxas de sucesso obtidas
foram de 20,2% e 7,4%, respectivamente (idem, p. 21)”. Nos juizados especiais cíveis, “em geral é baixo
o uso de recursos de impugnação de decisões judiciais pelas partes nos JECs (p. 42)”. Nos juizados especiais
federais, “O recurso inominado, típico dos juizados especiais, acontece em não mais do que 25% dos JEF.
Os demais recursos têm frequência muito menor: 3,3% de embargos de declaração, 1,4% de agravos ou
requerimentos de revisão e 1,11% de recursos extraordinários. Seus resultados também não são tão
expressivos: 20% de reforma das decisões impugnadas e 2,3% de anulação.” (idem, p. 152)

264
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

telescópio”: o alto volume de processos judiciais não é uma patologia social a ser contida,
eventualmente eliminada, mas em si um sintoma de um desequilíbrio na esfera das
relações econômicas e sociais326. O que há no Brasil não é um fenômeno de litigiosidade
de massa, mas de “violações em massa de direitos subjetivos”. A pior política regulatória,
neste cenário, seria aquela voltada à contenção da litigiosidade, que é justamente com o
que se preocupou o legislador.

Para “olhar pelo outro lado do telescópio” e com base nos postulados acima
enunciados, este estudo sintetizou cinco critérios de acesso à justiça adequados ao perfil
da litigiosidade no Brasil:

1) neutralização da “desigualdade pela experiência” - vale dizer, combate o


favorecimento do litigante repetitivo em detrimento daquele que participa
eventualmente de disputas judiciais;
2) potencial de articulação com os aqui chamados “processos sociais de
resolução de disputa” - a resolução de disputas que antecede a judicialização;
3) distribuição do espaço do Judiciário, no sentido de reduzir a concentração
do uso pelos mesmos “grandes litigantes”;
4) consideração da expectativa de “judiciarização” da população brasileira, no
sentido de buscar proteção junto a órgãos estatais, no caso o Judiciário;
5) atenção à “proteção pelas formas”, sobretudo nas disputas assimétricas –
garantias processuais suficientes, principalmente quando há litigantes em
desiguais condições de operar as ferramentas processuais em seu favor.

Este repertório analítico pode auxiliar a aplicação da legislação processual civil


e o monitoramento dos seus resultados, mas não se limita a ela. Pode ser utilizada no
desenho e a avaliação de outras políticas públicas judiciárias dirigidas ao mesmo
problema, de natureza legislativa ou executivas.

326
Como escrito em outra parte deste estudo, “demandas trabalhistas nascem de um tipo de conflito, distinto
dos de família por exemplo, por sua vez distintos dos de consumo e ainda mais diversos do que os criminais.
Alguns nascem em relações jurídicas privadas, outros envolvem relações públicas; alguns envolvem
população com renda acima da média e outros afetam população com renda abaixo da média. (...) Se o
Judiciário recebe muitas demandas consumeristas é um claro sinal de que consumidores e fornecedores não
têm conseguido encontrar um equilíbrio em suas relações. O mesmo acontece com demandas
previdenciárias, trabalhistas, obrigacionais, fiscais, de família e, inclusive, criminais”.

265
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

O terceiro capítulo testou os indicadores no exame de mecanismos e regras do


novo Código – o que pode ser uma referência para sua aplicação a outras políticas. Neste
caso, os resultados colhidos confirmam a hipótese lançada inicialmente, de que o arranjo
de valores da nova legislação não atende às premissas de acesso à justiça e ao perfil da
litigiosidade. Desta sorte, a sua eficácia com política pública de justiça dependerá do
complemento dado no âmbito da operação e aplicação das leis.

O CPC de 2015 soube aproveitar o cabedal de mais de um século de evolução


técnica e científica na área e a experiência das legislações brasileiras anteriores e
concebeu, junto com a Lei de Mediação, um repertório instrumental novo, com
considerável potencial de reformar o modelo de justiça brasileiro. Em cem anos, partimos
de um conjunto desintegrado de leis ainda com grande influência da legislação imperial
para a consolidação de um modelo processual civil caracterizado, sobretudo, pela
sofisticação técnica, caráter publicista e constante vigília contra o formalismo excessivo.
A legislação recente manteve-se esta última preocupação e inovou pela a ampliação do
controle das partes sobre o processo e consagração da eficiência como valor dirigente da
jurisdição. Na promoção da eficiência geral do sistema, o Código consolidou, com
modificações, o gerenciamento de processos judiciais (CPC, art. 139, 190 e 191, dentre
outros) e reorganizou as fontes do direito com a valorização conferida à jurisprudência
(CPC, 926, 927, 976, dentre outros). Ilustrando o protagonismo conferido às partes, a
legislação incorporou a resolução consensual de disputas (CPC, art. 3o e Lei de Mediação,
passim) e abriu inédita permissão para as convenções processuais (CPC, art. 190).

O exame do arranjo de valores, tendências, mecanismos e regras da nova


legislação à luz do repertório analítico acima indicou baixa correspondência ao acesso à
justiça e ao perfil da litigiosidade no Brasil. Apenas um dos critérios, o da articulação
com os processos sociais de resolução de disputas, está parcialmente contemplado – no
caso, pela mediação judicial, sistema de precedentes e negócio processual. No geral, as
tendências e valores que orientam e caracterizam a nova legislação atendem a
necessidades distintas daquelas definidas como de acesso à justiça e pautam-se por um
diagnóstico da litigiosidade diferente do que os dados empíricos trazem.

Quanto ao gerenciamento de processos, a nova legislação ajudou a consolida-lo


ao abrir espaço para técnicas de que ele se vale - o sistema multiportas de solução de
disputas, a disponibilidade do procedimento e a gestão do volume de recursos nos

266
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

tribunais. Mas fez pouco para balancear a segurança de uma rotina padronizada e a
conveniência de um processo customizado. Limitou-se a delegar essa responsabilidade
aos próprios atores do processo, as partes, com ou sem intervenção do juiz. Este desenho
potencializa o risco de que as desigualdades de experiência entre os litigantes afetem o
gerenciamento e, assim, o resultado substancial de justiça. É agora maior o espaço para
que o “jogador repetitivo” se imponha ao “participante eventual” – o que pode acontecer,
v.g., no desenho dos procedimentos pelo negócio processual, na negociação de um acordo
pela solução consensual ou nos esforços despendidos na construção de um precedente
vinculante. Ademais, o procedimento “customizado” do gerenciamento tem um custo
suplementar em relação ao procedimento padronizado, não suportável ou não desejável
por parte significativa dos litigantes (v. detalhes no cap. 3, item 2.2.2).

Algo similar acontece com os mecanismos de valorização da jurisprudência. O


legislador preocupou-se com a unidade do ordenamento, a isonomia de resultados e,
pragmaticamente, com o grande volume de recursos represados nos tribunais - objetivos
inquestionavelmente benéficos ao sistema, mas não necessariamente traduzíveis em
acesso à justiça. O desenho criado apresenta risco de efeitos indesejáveis em três dos
critérios listados: desigualdade de experiência entre os litigantes; concentração do uso do
Judiciário; e supressão de garantias processuais. (cf. cap. 3, item 2.2.2). Os caminhos para
se construir um precedente favorável não são os de um contraditório reiterado, mas o do
simples enquadramento formal em uma lista de “jurisprudência” (art. 927)327. Ocorre que
nem todos litigantes conseguem espaço nesses procedimentos. No incidente de resolução
de demandas repetitivas (art. 976 e ss.), por exemplo, a lei admite a intervenção de
interessados, mas o procedimento não é amplo o suficiente. Ao final, a decisão do IRDR
será construída pelo debate entre os litigantes que tenham, além do interesse em um
precedente favorável, os recursos técnicos e financeiros necessários. Os participantes do
IRDR serão provavelmente os “jogadores habituais”, como os dados preliminares já têm
sugerido. Os benefícios de um sistema de precedentes são neutralizados pelo desenho “de
cima para baixo”, que privilegia a participação de apenas um tipo de litigante. A tendência

327
A lei criou um sistema invertido de precedentes, em que a “jurisprudência” tem sentido meramente
formal, nascida do carimbo antecipado do legislador, não da adesão voluntária de juízes e da população.
Como foi ditto, uma jurisprudência “monárquica”, não “republicana”.

267
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

é que, com o tempo, o corpo da “jurisprudência” brasileira seja favorável aos interesses
desse tipo de litigante que conseguiu participar dos instrumentos de uso restrito.

Quanto à tendência do aumento do protagonismo das partes, os resultados se


dividem em duas conclusões. Por um lado, a mediação (judicial e extrajudicial) e a
convenção processual sinalizam para uma certa “emancipação” dos cidadãos frente ao
“assistencialismo” do Estado (CABRAL, 2016) – o que, de algum modo, aproxima-se da
perspectiva “de baixo para cima” (bottom up) de acesso à justiça. Ocorre que os
mecanismos continuam sob a égide do Judiciário. A mediação é judicial e o negócio
processual, ainda que celebrado no âmbito privado, tem eficácia no processo judicial.
Este traço atende ao critério da “judiciarização” – a expectativa das pessoas de litigarem
perante órgãos oficias, principalmente contra partes mais poderosas -, mas não pode ser
considerado uma integral “emancipação”. Em segundo lugar, os litigantes raramente
estão em igualdade de condições, o que compromete ab initio a sua autonomia e a
legitimidade da sua deliberação. Há tempos a literatura especializada aponta os óbices
das políticas de reforma da justiça baseadas em delegalização e desformalização (Abel,
1981; Harrington, 1985), a principal justamente nos litígios assimétricos – o que é regra
no Brasil. Outro óbice, ligado ao primeiro, é que o modelo processual fica menos
guarnecido da proteção oferecida pelas formas jurídicas – o que é ainda mais grave para
o participante eventual328.

Em suma, o que se observou foi a menor preocupação da legislação processual


civil recente com uma característica típica da litigância judicial no Brasil, decisiva tanto
para o acesso à justiça quanto para a própria efetividade da lei: os litigantes não são iguais
em condições, recursos e experiência; pelo contrário; a massa de litígios judiciais no
Brasil polariza grandes e pequenos litigantes. Por esta razão, promover a eficiência do
sistema e ampliar o controle das partes sobre o processo não favorece “as partes”, como
se coloca em coro o argumento reformador, mas “uma das partes”, o “jogador repetitivo”

328
Seria incorreto afirmar que a legislação não se preocupou com o risco de comprometimento do escopo
substancial de justiça. A disciplina dos negócios processuais (art. 190), por exemplo, estabeleceu limites à
validade das convenções – basicamente, situações de vulnerabilidade e contratos de adesão. A doutrina tem
defendido uma interpretação flexível dessas hipóteses, no sentido de que nem toda vulnerabilidade e nem
todo contrato de adesão comprometam o negócio. É possível. Mas não é provável. O perfil da litigiosidade
e da litigância judicial no Brasil indicam claramente que a assimetria entre as partes não só é grande, como
compromete significativa os resultados de justiça buscados, a muito custo, pelo sistema. Resta ao intérprete
aplicar os limites fixados na lei ciente dos seus riscos e da maior probabilidade de se verificarem em
concreto. V. este debate no item sobre convenções processuais, cap. 3, supra.

268
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

e com recursos. Isso vale para os quatro instrumentos analisados neste estudo: o
gerenciamento de processos, a valorização da jurisprudência; a mediação judicial; e o
negócio jurídico processual.

A nova legislação se construiu majoritariamente a partir de argumentos de senso


comum - a “explosão da litigiosidade”, a litigância abusiva, o “hiperpublicismo”
processual, a eficiência do sistema, entre outros ingredientes de uma receita que alguns
países usaram na década de 1980 -, sem considerar às análises de riscos e benefícios que
eles representavam. Com isso, seus melhores resultados se limitam ao aprimoramento do
funcionamento do próprio Judiciário e em prover condições mais confortáveis para uma
parcela pequena dos usuários, justamente aqueles com mais processos pendentes, para
quem o acesso à Justiça é mais uma estratégia comercial. Esta constatação confirmaria a
hipótese dos efeitos perversos da “ideologia da harmonia” (1990) ou “harmonia
coercitiva” (1994) que Nader argumenta se ocultarem sobre as políticas de regulação de
disputas por meio do consenso das partes329.

As possibilidades criadas pela lei permitem ao litigante experiente – que no


Brasil é o próprio Estado e as grandes corporações -, definir as regras das disputas
(inclusive por meio de contratos de adesão), litigar em arenas que ele próprio organize e
subsidie, negociar acordos em valores menores do que os que adviriam de provável
sentença condenatória e, quando preciso, buscar um precedente que sirva para encerrar
uma massa de outros casos pelo custo do investimento em um único processo. Em troca,
o Judiciário se ilude na esperança de uma incerta redução do volume assombroso de
processos acumulados – improvável aliás, dada a projeção de crescimento social. À
população, e aos diferentes grupos sociais em particular, são impostos obstáculos ao

329
A leitura de Nader (1990) sobre a lógica que subjaz a regulação jurídica por meio do “acordo entre as
partes” – do qual tanto a mediação quanto o negócio processual são exemplos – explicaria este diagnóstico.
Segundo a autora, a “ideologia da harmonia” esconde um eficaz instrumento de dominação pelo consenso
e o informalismo, historicamente implementado pelos colonizadores espanhóis para contenção das
insurgências iminentes nas colônias na América, posteriormente recuperado como política judiciária de
reação à expansão de direitos civis na década de 1980, nos EUA e, então, para todo o mundo (1999). Os
benefícios desses mecanismos são aparentemente compartilhados entre as partes, mas na verdade
restringem-se a uma delas – o que, justamente por isso, faz deles, no seu argumento, um poderoso
instrumento de dominação do mais fraco pelo mais forte. Em trabalho posterior ela iria adicionar à análise
argumentando de que, no plano internacional e sob o arranjo provocado pela globalização, os ADR
representariam o elemento concreto pelo qual se observa um tipo de colonialismo jurídico contemporâneo,
um pós-colonialismo agora praticado não mais por Colombo, mas pela antiga colônia, os EUA,
instrumentalizado por mecanismos jurídicos (NADER, 1999).

269
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

acesso à justiça suplementares àqueles identificados por Cappelletti e Garth: além dos
custos e da complexidade burocrática que tornam mais cômoda a resiliência, a disputa
em si ficou mais difícil porque a parte contrária está fortalecida e o terceiro imparcial, a
quem se depositava o balanceamento da assimetria, terá um papel mais contido. Essa
dinâmica é sediada no âmbito do próprio Estado, sob o subsídio de toda a sociedade. O
modelo de justiça e de processo é mais liberal, mas continua dependente da estrutura do
Estado e dos recursos públicos. Não parece, afinal, um modelo democrático com se
anuncia, nem efetivo em termos de acesso à justiça e muito pouco consciente do que é a
litigiosidade no país.

Neste cenário pouco promissor, o potencial da legislação como política pública


de acesso à justiça passa a depender de como serão interpretadas e aplicadas suas regras.
O contingente de advogados e juízes, como sempre, terá um papel definitivo.
Especialmente importantes também as orientações que o trabalho incessante da doutrina
processual lhes fornecer - inclusive por conta do ineditismo das regras e do seu potencial
modificativo do modelo.

Do ponto de vista das práticas e profissões jurídicas, o contencioso de solução


de disputas e o perfil da categoria pode mudar substancialmente com o novo arranjo de
valores. Da advocacia, privada e pública, será exigido, por exemplo, diversificar as
habilidades de litigância, incorporando o acompanhamento percuciente da jurisprudência
e o manuseio das técnicas de negociação de conflitos. Se, atualmente, o desafio do
advogado privado é equilibrar custos, prazos e faturamento em uma carteira cada vez
maior de processos, acrescente-se o planejamento antecipado das estratégias e o
acompanhamento dos precedentes. O advogado de contencioso pode vir a ser demandado
muito antes da preparação da inicial ou da defesa, já nos negócios celebrados pelos
clientes por exemplo, para avaliar e eventualmente desenhar as regras da solução de
disputa. Ainda antes da propositura da ação, será fundamental na negociação de termos
para soluções consensuais; eventualmente, na própria condução desses métodos. Durante
o processo, será preciso dividir o tempo gasto no acompanhamento processual tradicional
com o reforço da atenção aos casos estratégicos, cujos efeitos poderão ser manejados aos
demais casos.

A diversificação das possibilidades de atuação advocatícia pode trazer


benefícios importantes em um mercado extremamente saturado como o brasileiro. Mas

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

também tende a promover um grau ainda maior de diferenciação entre tipos de


profissionais, conforme consigam desenvolver as habilidades para explorar as novas
possibilidades. A necessidade de qualificação técnica suplementar, que já tem crescido,
tende a aumentar.

Este quadro pode ampliar as assimetrias na litigância judicial, afetando os


resultados substanciais de justiça. Os “litigantes repetitivos” conseguirão diluir no
volume dos casos o investimento na capacitação do seu corpo jurídico. Os advogados dos
“litigantes eventuais” terão de acompanha-los para não colocar seus clientes em ainda
maior desvantagem inicial e intensificar ainda mais a abissal diferença na classe, com
comprometimento da isonomia de acesso à justiça. A segmentação profissional teria um
peso mais do que a própria desformalização nos resultados gerais de acesso à justiça
alcançados pelo sistema330.

À magistratura e servidores dos cartórios impõe-se um desafio ainda maior em


termos do acesso à justiça, sobre o que reside uma incógnita da legislação. A
responsabilidade pelos resultados de justiça, embora de toda a sociedade, recai
especificamente sobre juízes e juízas. Ocorre que, como demonstrado neste estudo, a
reforma valoriza a eficiência do sistema e o protagonismo das partes, o que pode
transmitir o equivocado recado de que a prioridade seria, por exemplo, manter o controle
da pauta. Ou que, com a autonomia das partes, restaria pouco ao juiz fazer para balancear
as assimetrias e buscar a justiça substancial dos casos. O cenário de desigualdade que
caracteriza a litigiosidade no país descredita essas conclusões.

A estrutura que sedia a resolução de conflitos ainda é a do Poder Judiciário


estatal e o papel do juiz continua determinante para os resultados de justiça. Mas sua
atuação tende a mudar, tal qual a da advocacia. Se a linha que divide liberdade das partes
e poderes do juiz não está clara em lei, mais um motivo para que o juiz a defina nos casos
concretos. Ele o fará, porém, em “cooperação” com as partes – com tem sintetizado em

330
O mesmo Bryant Garth (2001) explica como o advento da informalização e delegalização da resolução
de disputas, sobretudo com os ADR, segmentara ainda mais o mercado profissional e teria ocasionado a
formaçao de verdadeiras “elites” de advogados, em meio a uma massa de profissionais que compõe a classe.
Para aqueles, as múltiplas “portas” de solução de disputas são opções viáveis e a liberdade de montar um
arranjo entre elas é uma possibilidade concreta. Àqueles, ainda são remotas possibilidades ou, quando
muito, a saída que resta. Neste quadro, a problemática da segmentação profissional assumiria relevância
maior do que a da desformalização dos processos, que compôs a tônica do debate anterior. Inclusive por
esses argumentos, o tema das profissões jurídicas e das mudanças na advocacia ocupam crescente espaço
no debate científico na área.

271
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

coro a doutrina processual brasileira (MITIDIERO, 2007 E 2011; NUNES & TEIXEIRA,
2013; CABRAL, 2016). Se a lei ameniza a condução ativa do juiz, exige-se dele exercer
a coordenação da cooperação com entre os atores do processo. Menos arbitrário e mais
cooperativo, mas igualmente responsável pelos resultados de justiça do processo
(BUENO, 2017).

A lei tem limites no detalhamento de regras para a aplicação dos mecanismos


instituídos e não pode responder sozinha pela promoção do acesso à justiça. Todo o
sistema de justiça está envolvido. Considerando particularmente os novos mecanismos
criados pelo CPC, a coordenação do juiz e dos seus auxiliares, por exemplo, será
imprescindível para as atividades de triagem necessárias aos quatro mecanismos
analisados neste estudo: coordenar o gerenciamento dos processos; selecionar com
critérios os casos enviados para a mediação judicial; exercer efetivo controle de validade
dos negócios processuais; escolher um adequado representante como caso paradigma
para o IRDR, entre outras situações331.

Afinal, a despeito da ampliação do protagonismo das partes e a revisão do caráter


publicista do processo civil, a efetividade da legislação em termos de acesso à justiça
continua na dependência de que o juiz zele pelo equilíbrio entre as partes e os resultados
substanciais de justiça. Por isso, considerando assimetria que caracteriza a litigância
judicial no Brasil e os riscos que ela impõe ao direito e à sociedade, não será suficiente
ao juiz pautar-se pelos ganhos de eficiência do sistema ou depender do deliberarem as
partes ou da sua cooperação com elas. Este papel cabe prioritariamente aos gestores dos
tribunais e os advogados das partes, respectivamente. Na dinâmica cooperativa
implantada pela nova legislação, o juiz deve se preocupar com a efetivação do
contraditório – o que a rica análise da doutrina nacional percebeu (MITIDIERO, 2007 E
2011; NUNES & TEIXEIRA, 2013; CABRAL, 2016). Ocorre que esta função não é nada

331
Três exemplos ilustram este argumento: a triagem dos casos encaminhados à mediação; o controle sobre
a convenção de procedimento pelas partes; e os critérios para escolha do caso paradigma do IRDR. Tratam-
se das principais inovações do novo código, em cujo potencial se credita os resultados mais importantes da
mudança. Todos dependem, respectivamente, de uma boa triagem de casos, de algum controle do
procedimento convencionado pelas partes (até para articulá-lo à dinâmica do juízo em que terá vigência) e
uma justa escolha do caso paradigma. Ainda assim, nenhum dos três recebeu suficientemente
regulamentação nesses aspectos, o que exigirá complementação pela coordenação exercida pelo juiz no
caso concreto.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

trivial em disputas com tamanho grau de assimetria, o que exige atenção redobrada, que
só o magistrado e servidores responsáveis pelo caso poderão oferecer.

O quadro teórico e empírico sistematizado neste estudo pode contribuir com


juízes e juízas no desempenho das tarefas que o novo desenho processual lhes reserva, e
mais do que isso, convida-os a desempenha-las sob consideração do cenário de resultados
e riscos que o novo arranjo valorativo apresenta. Os postulados e os indicadores de acesso
à justiça – a desigualdade pela experiência, a concentração da litigância em alguns
setores, a articulação com os processos sociais, a concorrência pelo espaço do Judiciário
e a expectativa de proteção pelas formas – compõem um guia recomendável para que a
magistratura tome posição diante de um quadro legislativo que é novo, e de um cenário
empírico que é velho conhecido.

A ciência jurídica também terá papel fundamental na efetivação da nova


legislação. Ficou muito claro que o acesso à justiça não é uma questão de perfeição
técnica e que as etapas anteriores ao processo judicial influenciam os seus resultados. Por
isso, parece atual a sugestão que Carlin, Howard e Messinger fizeram em 1966 de se
pensar uma teoria da jurisdição e do processo que contemplasse o contexto social
contemporâneo. O desafio, agora, não será o do grau de abstração técnica, mas o da
sensibilidade empírica. Será preciso conhecimento acurado da realidade da justiça no
Brasil, identificação das relações de causa e efeito entre diversos aspectos do problema,
identificação do perfil, percepção e motivação dos litigantes que acessam o Judiciário e
também dos que não o acessam, entre tantas outras questões cujo esclarecimento é
necessário para se pensar as tais formas ideias para a resolução das disputas, mencionadas
na introdução deste estudo.

O problema elementar dessa agenda de pesquisa seria o relativo às mudanças


que o contexto sociojurídico contemporâneo projeta sobre o direito processual. Dois
conceitos parecem objetos centrais da investigação, o de processo e o de jurisdição. E ao
menos três outros problemas, objeto comum da sociologia jurídica, parecem influencia-
los com maior intensidade: o acesso desigual à justiça, a resolução de disputas antes da
judicialização e a percepção e comportamento das pessoas e atores envolvidos. Inúmeras
perguntas podem ser feitas no âmbito dessa agenda de pesquisa e, como perspectiva
metodológica, a recomendação elementar seria posicionar o olhar “de baixo para cima”:
da sociedade para as instituições; não o inverso, como tem sido exclusivo no direito

273
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.

processual. Pode-se pensar, por exemplo, em perguntas relacionadas à variação de formas


processuais e tutela jurisdicional conforme o perfil das disputas e litígios; o perfil e
comportamento processual dos envolvidos e dos litigantes; o fluxo dos processos que
compõem o “macrossistema” de resolução de disputas; as formas processuais adotadas
nesses processos e a sua comparação com as do processo judicial tradicional; a atuação
dos profissionais envolvidos e seu perfil; os tipos de solução oferecidas para as disputas
e quão efetivas elas são; entre tantas outras. Algumas dessas perguntas já têm sido
enfrentadas, no seu respectivo campo, pela sociologia jurídica, de modo que os projetos
desta agenda teriam o particular desafio de saber explorar seus resultados e direciona-los
para o avanço científico do direito processual.

O monitoramento da operação e dos resultados das leis processuais e políticas


judiciárias processuais em geral também comporia essa agenda de pesquisa. Articuladas
aos resultados das análises acima exemplificadas, esse material permitiria alimentar
ciclicamente o desenho de novas reformas legislativas processuais e organizacionais do
sistema de justiça – para o que os indicadores de acesso à justiça sintetizados neste estudo
podem também contribuir.

O acesso à justiça e a litigiosidade são um ideal e um fenômeno altamente


complexos e mutáveis. Dificilmente compreensíveis, portanto, sem adequado repertório
de conhecimento e análise. A ciência processual também é caracterizadamente complexa,
sobretudo no seu aspecto técnico. Com este arranjo, o trabalho do legislador processual
lembra, com alguma licença poética, o de Sísifo: condenado a rolar eternamente uma
pesada pedra de mármore morro acima, chegando ao cume, a pedra invariavelmente
retornava ao ponto de origem, quando era preciso reiniciar todo o trabalho. Ampliar as
perspectivas de análise e compartilhar o esforço com outros campos do conhecimento
certamente não abreviará seu périplo, já que eterno, mas pode amenizar a carga e revelar
novos caminhos, novas formas.

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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
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