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São Paulo
janeiro de 2018
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
São Paulo
janeiro de 2018
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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
FICHA CATALOGRÁFICA
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
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AGRADECIMENTOS
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
“Most analyses of the legal system start at the rules end and work
down through institutional facilities to see what effect the rules
have on parties. I would like to reserve that procedure and look
through the other end of the telescope. Let’s think about the
different kinds of parties and the effect these differences might have
on the way the system works”
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LISTA DE TABELAS
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LISTA DE ABREVIATURAS
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SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................ 12
I – Litigiosidade e acesso à justiça ......................................................................... 20
1. Premissas teóricas e metodológicas para a regulação jurídica da
litigiosidade ............................................................................................ 21
1.1. O acesso à justiça como eixo teórico da litigiosidade ............................... 28
1.2. As perspectivas analíticas do acesso à justiça .......................................... 31
1.3. Acesso institucional à justiça: a desigualdade e as “três ondas” .............. 37
2. Direito, desigualdade e jurisdição ................................................................. 44
2.1. O direito não é neutro .............................................................................. 45
2.2. A litigiosidade de massa não é novidade .................................................. 49
3. O acesso substancial à justiça ....................................................................... 56
3.1. O sistema processual premia a litigância .................................................. 57
3.2. Judicialização não é litigiosidade .............................................................. 63
4. O acesso à justiça que antecede a judicialização ........................................... 69
4.1. O direito regula a sociedade por meio dos processos judiciais ................ 72
4.2. A justiça que está no processo ................................................................. 75
4.3. A construção social da legalidade e justiça ............................................... 78
4.4. Sistemas sociojurídicos de solução de disputas ....................................... 81
5. Jurisdição e o direto processual no contexto de litigiosidade ........................ 86
II. O acesso à justiça civil e litigiosidade no Brasil ................................... 92
1. Leis e teorias sobre o acesso à justiça no Brasil ............................................. 94
1.1. As “três ondas” no Brasil – da ideia às leis ............................................... 96
1.2. Produção teórica em acesso à justiça - da ideia às doutrinas ................ 102
1.3. O “acesso à justiça” na legislação recente – da idéia a uma “outra ideia” e
uma nova lei .................................................................................................. 108
2. Retrato do acesso à justiça no Brasil – o potencial de litigiosidade ............. 117
2.1. Potencial de litigiosidade e capacidade para o exercício de direitos ..... 121
2.2. Percepção de justiça e comportamento de judicialiação ....................... 127
2.3. Percepção de cumprimento das leis e judicialização .............................. 133
3. Retrato do acesso à justiça no Brasil - a judicialização da disputas ............. 138
3.1. A competição pelo uso do Judiciário e o controle da litigiosidade ......... 141
3.2. O perfil da judicialização no Brasil e o desigual acesso à justiça ............ 143
3.3. O mito da litigância excessiva – como litigam as pessoas comuns ......... 150
3.3.1. Os devedores réus em execuções fiscais ................................................................... 152
3.3.2. As partes que litigam nos juizados especiais cíveis ................................................... 155
3.3.3. Os pensionistas que buscam os juizados especiais federais ..................................... 160
4. Algumas notas a partir dos dados sobre a litigiosidade no Brasil ................ 167
III – Litigiosidade e acesso à justiça no processo civil brasileiro ........................... 169
1. O modelo processual civil brasileiro ........................................................... 176
1.1. Modelos de justiça e processo – divisão de trabalho, graus de formalismo
e autoridade decisória .................................................................................. 177
1.2. Legislação processual civil no Brasil e seus vetores axiológicos ............. 179
1.3. Características dos modelos processuais civis brasileiros – sofisticação
técnica, publicismo e desformalização ......................................................... 184
2. A nova legislação processual civil – eficiência, privatismo e
desformalização .................................................................................... 187
2.1. O processo civil entre a justiça e a eficiência ......................................... 190
2.1.1. Gerenciamento de processos judiciais – ou, das boas ou más relações entre o
“direito e a gestão” ................................................................................................................ 193
2.1.2. Valorização formal da jurisprudência – um peculiar regime de unificação de decisões
judiciais ............................................................................................................................... 202
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Introdução
A litigiosidade, por sua vez, aqui definida como a propensão de uma dada cultura
a reivindicar justiça em situações de violações de direitos, é crescente nas sociedades
contemporâneas. Tem relação direta com o direito processual e com o acesso à justiça.
As formas de solução das disputas, as regras dos processos e dos julgamentos, em última
análise, servem para canalizar a litigiosidade de uma dada sociedade. A busca por justiça
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Mais do que uma abstrata necessidade de adequação teórica, o que está por detrás
da pergunta da pesquisa são, afinal, a efetividade e a eficácia que se pode esperar,
concretamente, da nova legislação. O desenho das regras de resolução de disputas é, como
mencionado, sempre muito difícil e, não raro, menos bem-sucedido do que o esperado. O
trabalho diário de advogados e advogadas, juízes e juízas e, principalmente, a vida de
pessoas e de empresas, dependem dessas regras e dos resultados de justiça que elas
podem, ou não, produzir. Por isso, entender se uma legislação processual tem potencial
para se efetivar como caminho para a justiça, se será eficaz em promover uma disputa
isonômica, se conseguirá dar vazão à litigiosidade da sociedade e, afinal, se promoverá
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acesso à justiça significa, em última análise, saber se o país pode contar com um sistema
jurídico que zela por justiça e a produz.
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e, assim, qual orientação cabível para o uso e aplicação dos novos mecanismos;
compreender a sua função e seus motivos, suas possibilidades, vantagens e desvantagens,
seus prováveis efeitos, o cenário que comporão e, principalmente, os beneficiados pelas
mudanças. Por este caminho, organiza um panorama que esclarece e orienta os operadores
e aplicadores das novas regras, a quem agora compete explorar-lhes o potencial e extrair-
lhes os resultados esperados. Na análise dos mecanismos processuais da nova lei, para
identificar as tendências e valores neles subjacentes, o trabalho recorre a uma síntese das
conclusões levantadas nos capítulos anteriores, na forma de “postulados” e “indicadores
de acesso à justiça”. Ambos resultam de um esforço de síntese das principais explicações
teóricas e achados empíricos levantados na pesquisa, e serviram para a avaliação do
potencial de impacto dos mecanismos instituídos pela nova lei em relação aos critérios
de acesso à justiça e características da litigiosidade no Brasil.
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(...) a lide é uma situação perigosa para a ordem social. A lide não é ainda um
delito, mas contém seu germe. Entre lide e delito existe a mesma diferença que
há entre perigo e dano. Por isso litigiosidade e delinquência são dois índices
correlativos de não civilidade: quanto mais civil e civilizado for um povo,
menos delitos serão cometidos e menos litígios surgirão em seu seio
(CARNELUTTI, 2002, p. 26)
1
Cada um dos clássicos da sociologia atribui um papel próprio para o direito na organização da sociedade,
o que permite derivar explicações sobre os conflitos de interesses e os modos de resolve-los. Seria preciso
uma outra oportunidade para construí-las. Nesse momento, será suficiente diferenciar a visão
instrumentalista de Durkheim, para quem o direito é um índice do grau de solidariedade observado em
diferentes sociedades; a visão estruturalista de Marx, para quem o direito comporia uma superestrutura que
moldaria os modos de produção e a relação do capital com o trabalho; e a visão racionalista de Weber, para
quem o direito seria uma sistematização de procedimentos predefinidos e órgãos hierarquicamente
estruturados (COTTERELL, 2004). O conceito de lide como fato social patológico é, como explico a seguir,
de inspiração “durkheimniana”. Mas a organização geral dos sistemas de justiça contemporâneos e o
próprio estilo e conteúdo do direito processual de matriz romano-germânica apresentam predominância de
traços da racionalidade weberiana.
2
A antropologia enfatiza aspectos culturais das diferentes organizações sociais e uma das suas principais
lições é a relativização dos nossos conceitos de “civilidade” e “desenvolvimento”. A partir de descrições
densas de relações pessoais e coletivas, os modos de produção e a organização social e política de
civilizações distantes, os antropólogos do direito relevaram ao mundo ocidental formas diferentes e não
menos justas ou efetivas de regulação (MALINOWSKY, 2003). A questão específica das formas de
resolução de disputas é um dos assuntos de maior destaque nesses estudos (NADER, 1990; CHASE, 2005).
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Nesses campos, as referências são muitas – entre europeus (Luhman, Teubner, o próprio Cappellletti, e
Santos), norte-americanos (Galanter, Garth, Abel, Festiner, Silbey, Sandefur) e os autores latino americanos
de sociologia do direito e em teoria geral do processo – cuja menção específica deixo de fazer porque seria
incompleta e faria injustiça a importantes autores e autoras deixados de lado. Parte desses autores comporá
a referência teórica que conduz o argumento construído neste estudo.
4
A ideia de que a disputa de interesses seria uma “patologia social” aparece em diferentes autores
processuais clássicos. Carnelutti, a quem se atribui o conceito de “lide”, considera-a não exatamente um
delito, mas algo que “contém o seu germe” ( 2002, p. 26). A fonte sociológica da ideia parece ser a distinção
que Durkheim fazia entre fatos sociais normais e fatos sociais patológicos.
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originalmente em 1893 . Os “fatos sociais normais” seriam “os que são ou que devem
ser”, ao passo que os “fatos sociais patológicos” seriam “os que deveriam ser de outro
modo” (2007, p. 50). O critério diferenciador entre uma e outra figura seria, segundo
Durkheim, o seu grau de generalidade e o estágio de desenvolvimento da sociedade em
questão: “fato social é normal com relação a um tipo social dado, considerado numa fase
dada do seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa
espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução” (2007, p. 65). Os
fenômenos patológicos são, assim, os que se distinguem do tipo geral ou médio.
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diminui a distância entre o que “geral” (no sentido de médio, comum) e o “patológico”.
Com isso, o argumento da lide como patologia social perde muito do seu fundamento e
os postulados teórico processuais construídos sobre essa premissa demandam algum
aggiornamento.
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Não se desconhece que são fenômenos distintos, a litigiosidade e a litigância. O primeiro seria a propensão
à reivindicação de direitos na Justiça, tal qual explicado no texto acima. A litigância pode designar o mesmo
fenômeno, mas também serve para identificar o grau de litígios concretamente formalizados (v.g., “uma
alta litigância”), bem como o comportamento das partes envolvidas (“v.g., “o réu adotou um
comportamento litigante”). Para os fins deste estudo, adoto o termo litigiosidade para designar aquele
primeiro sentido de propensão à reivindicação de direitos, principalmente quando qualificado pela sua
intensidade e difusão que marcam as sociedades contemporâneas (“litigiosidade de massa”). E reservo
apenas o termo “litigância” para designar esses dois últimos significados, de litígios concretizados e
comportamento das partes.
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que lhe atribui a teoria social contemporânea. O volume muito maior de demandas da
sociedade impõe aos sistemas de justiça a árdua missão de lhes oferecer uma resposta
equivalentemente satisfatória, o que é praticamente impossível dentro dos limites formais
e capacidade estrutural disponível.
A articulação entre dados teóricos e empíricos permite uma visão mais fiel do
fenômeno da litigiosidade. A fonte teórica será composta pelas contribuições de linha
teórica da sociologia do direito que se inicia em estudos sobre desigualdade e pobreza,
transita pelos estudos sobre acesso à justiça e solução de disputas e desemboca em
análises sobre a consciência jurídica de uma dada comunidade. A fonte empírica se
limitará a dados sobre o sistema de justiça brasileiro, uma vez que a litigiosidade é um
fenômeno que, embora típico de sociedades de consumo contemporâneas, varia a partir
dos traços locais. Este capítulo é dedicado a apresentar as fontes teóricas que auxiliam a
entender o que é a “litigiosidade de massa” e avaliar a eficácia do tratamento que lhe é
dado pela legislação processual recente. O capítulo seguinte tratará de apresentar um
quadro a partir de dados empíricos sobre a justiça no Brasil.
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litigiosidade ou do acesso à justiça e, sobretudo, que as respostas por ela oferecidas sejam
precisas para explicar o fenômeno no Brasil. Trata-se, tão somente, de uma opção
metodológica pautada na utilidade funcional das contribuições teóricas. Elas são aqui
invocadas com a função de ajudar a entender o problema objeto da pesquisa, porque
oferecem interpretações que podem ser analisadas e testadas – e, eventualmente,
refutadas, se o caso brasileiro assim exigir. Isso não significa que outras escolas teóricas
não ofereçam respostas igualmente úteis para enfrentar o problema posto nesta tese. O
próprio direito processual clássico, produzido pela matriz romano-germânica na virada e
início do século XX, é repleto de leituras e análises se não mais, igualmente ricas e
complexas em relação às da literatura sociojurídica americana dos últimos cinquenta
anos6. Ambas escolas, inclusive, compartilham parte substancial do seu objeto de
trabalho: o desenho do instrumento apto a processar e resolver com justiça os conflitos
surgidos no tecido social. Diferenciam-se, naturalmente, quanto aos conceitos
construídos por cada uma e talvez pelo maior ou menor âmbito de consideração – a
sociologia jurídica trabalha com conflitos formalizados e aqueles localizados fora do
sistema formal de justiça, ao passo que o direito processual se concentra prioritariamente
nos primeiros. Também se diferenciam pela época em que foram produzidos -
respectivamente, em cada uma das duas metades do século passado - e, por isso, pelo
perfil de sociedade com que trabalham – em um caso, uma sociedade em processo de
industrialização e, no outro, uma nascente sociedade de massa, em incipientes redes e já
sob influência da revolução tecnológica. Tais diferenças permitem que este estudo realce
aspectos da litigiosidade no Brasil às vezes menos destacados pela literatura nacional, o
que também justifica a escolha daquela literatura como referencial teórico.
Por fim, como o texto revelará, as duas linhagens teóricas, a sociologia jurídica
norte-americana e o nosso direito processual, comungam um ponto comum em suas
trajetórias evolutivas, o que lhes proporciona mais correspondências do que à primeira
vista se imagina. Uma parte considerável do instrumental processual desenvolvido pela
literatura processual brasileira nas últimas três décadas se inspirou, como se sabe, nas
chamadas “ondas renovatórias” de acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1878), as quais,
6
Para citar três exemplos, as análises feitas por Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Piero
Calamandrei - para ficar apenas nos italianos – são ricas de elementos para compreender a litigância nas
sociedades e suas formas de resolver conflitos por meio do Estado.
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por sua vez, foram inspiradas em estudos da sociologia jurídica norte-americana das
décadas de 1960 e 19707. Este capítulo também detalha como isso aconteceu.8
7
Referências e mais detalhes sobre o assunto no corpo do capítulo.
8
Como adiantei, o referencial teórico adotado tem mera função de inspirar as análises aqui construídas e
não exclui que outros caminhos, com referenciais teóricos próprios, possam conduzir uma investigação
sobre o mesmo objeto. E se cada caminho eventualmente conduzir a resultados distintos, não há risco de
que uma delas, ou ambas, estejam equivocadas. Prefiro pensar que, desta forma, tanto mais rico ficará o
leitor, municiado de diferentes perspectivas pelas quais possa construir suas próprias conclusões a respeito
de tamanho complexo problema das sociedades contemporâneas.
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ora a “dispute perspective”, ora a outros tantos sentidos equívocos e nem sempre
compatíveis entre si. Trato disso mais adiante.9.
9
Neste estudo, mantenho o uso indistinto do termo “acesso à justiça” para contemplar os diferentes estudos
sobre disputas e formas de resolvê-las, cobrindo as três categorias organizadas por Galanter e ainda outras,
sistematizadas por outros autores e autoras. Embora essa generalização seja imprecisa cientificamente, ela
facilitará a interlocução em torno dos problemas da litigiosidade. A exposição das linhas teóricas no corpo
do capítulo deixará claro as diferentes acepções, o que, espero, incentivará a discriminação do conceito e o
seu uso mais preciso.
10
Para recorrer a um exemplo simples e atual, há algumas décadas, a falta de “acesso à justiça” foi apontada
como o principal problema de sistemas de justiça de diferentes países (CAPPELLETTI; GARTH, 1978);
atualmente, não é incomum o argumento de que o excesso de acesso à justiça, incentivado exageradamente
nas últimas décadas, seria a causa dos problemas da Justiça no Brasil.
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No Brasil, por pelo menos três décadas desde 1985, o discurso de juristas e
políticos ocupados com o aperfeiçoamento do sistema de justiça civil fez uso do termo
“acesso à justiça”. Isso, porém, está longe de significar que todos caminhavam na mesma
direção e sentido. A adesão ao termo foi tão intensa quanto diversos os significados
representados. A referência sempre fora a obra de Cappelletti e Garth (1988), mas as
leituras variavam substancialmente: ingresso em juízo; tratamento isonômico das partes;
assistência jurídica gratuita; garantias de ampla defesa e participação no processo; tutela
de novos direitos; visão instrumental das formas e do processo; ordem jurídica justa;
correspondência do processo ao direito material; efetividade da tutela; e, a partir da
década de 1990, celeridade da prestação jurisdicional; administração da justiça; eficiência
do sistema de justiça; gestão da máquina judiciária; previsibilidade das decisões;
segurança jurídica para a sociedade, entre outros. Todas reivindicavam ser o caminho
legítimo para promover o “acesso à justiça” e, assim, angariar adesão para as propostas
que geralmente traziam. Nem sempre eram realçadas as diferenças entre as leituras de
acesso à justiça nem a incompatibilidade que, não raro, havia entre suas premissas e
objetivos. O que importava, mesmo, era o “acesso à justiça”, seja lá o que isso quisesse
significar.
11
Sem considerar os movimentos anteriores com finalidades similares, cíclicos na história da civilização,
como P.C.P. Carneiro sistematiza (CARNEIRO, 2007).
12
Posteriormente publicadas como Pound, R. “The Causes of Popular Dissatisfaction with the
Administration of Justice”, Baylor Law Review, v. 8, n. 1, 1956.
13
Muitos fatores históricos, políticos e sociais poderiam explicar este lapso temporal. Para uma noção geral,
podemos identifica-lo entre o movimento de expansão de liberdades civis que tomou conta da Europa e
Estados Unidos em meados da década de 1960 e, na outra ponta, a reação conservadora representada pelos
governos de M. Thatcher e R. Reagan, no Reino Unido e Estados Unidos, respectivamente. No Brasil, o
movimento aportou vinte anos depois, por conta do atraso social e político do regime militar entre 1964 e
1985. A produção teórica e legislativa brasileira da década de 1980 e parte de 1990 é declaradamente
inspirada no movimento de acesso à justiça.
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Mas, afinal, o que é acesso à justiça? De onde vem a ideia e o que ela traz
consigo? Para uma compreensão que nos permita avaliar a posição e o sentido dado pelas
recentes reformas legislativas processuais no Brasil, será preciso conhecer algumas
dessas outras análises sobre o tema. Os itens seguintes apresentam, inicialmente, a análise
de Cappelletti e Garth e, em seguida, trabalhos que os inspiraram e trabalhos que foram
produzidos durante as décadas de 1980 e 1990 sobre a problemática da justiça e os
métodos de resolução de conflitos.
14
O campo do sociolegal studies não pode ser equiparado à nossa “sociologia jurídica”, embora haja uma
grande área de convergência de fontes ou de temas de interesse. A perspectiva metodológica, a natureza
(conceitual ou pragmática) dos objetos de estudo e a integração com outras disciplinas jurídicas parecem-
me diferenciá-los. Este traço torna mais fácil e menos problemático articular as análises da “sociolegal
studies” aos estudos e à teoria do direito processual. Não poucos problemas, teorias, conceitos e, inclusive,
autores lhes são comuns. Para citar alguns, Mauro Cappelletti e Bryant Garth podem ser integrados em
ambas “áreas”, Marc Galanter e David Trubek iniciaram suas carreiras em direito processual e sistema de
justiça, Oscar Chase também articula bem o direito processual com perspectivas “sociolegal” – no seu caso,
na vertente da “legal anthropology”. Olhando bem, os teóricos processuais alemães do final do século XIX
e os italianos do início do século XX, como Chiovenda e Calamandrei, exploram problemas muito comuns
a alguns da linha de solução de disputas da “sociolegal studies” - a partir, naturalmente, de contextos sociais
bem distintos.
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décadas de 1990 e 2000. Durante esse período, o tema do acesso à justiça esteve um tanto
esquecido, mas retornou com intensidade revigorante na transição para 2010
(ALBISTON e SANDEFUR, 2013).
15
O termo “shadow justice” (em tradução literal, “justiça sombra”) remete inicialmente a uma projeção da
regulação jurídica estatal oficial sobre iniciativas e mecanismos comunitários ou extraoficiais de solução
de disputa – como os “Neighborhood Justice Centers” que Christine Harrington estudou e que inspiraram
a criação do termo (HARRING1985). Nesse sentido, “à sombra da Justiça”. O fenômeno específico
estudado por Harrington e que caracteriza a “shadow justice” é o que ela chama de “delegalization” de
poderes estatais para os chamados mecanismos “alternativos” de solução de disputas. A delegalização
resultaria na menor formalidade que caracteriza esses mecanismos e que, segundo ela argumenta, não
reduziria, mas ampliaria, o controle estatal sobre as condutas e a resolução de disputas. Evidentemente, o
termo “shadow” também possui a conotação de algo marginal, obscuro, o que também caracterizaria as
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litigantes não são iguais em experiência, recursos e condições e isso determina o resultado
de acesso e exige do direito mecanismos de mobilização jurídica e promoção de isonomia
- a teoria sobre as vantagens dos “que têm” (os “haves”) e dos jogadores repetitivos
(“repeat players”)16. E, por fim, a conclusão de que os sistemas de solução de disputas se
iniciam no âmbito social e se estendem aos mais altos níveis do âmbito jurídico
institucional - os estudos que explicam como funciona a “pirâmide da disputa” (“dispute
pyramid”).
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por isso, não mais se circunscreve às formas estatais oficiais18. O direito está presente nas
organizações sociais, em seus mecanismos de autorregulação, e na sociedade em geral,
conformando a consciência jurídica e a experiência de indivíduos e grupos – uma ideia
que enfatiza a construção de significados jurídicos (“meaning making”) por cada um
desses atores ou grupos sociais.
18
A ideia de “legal endogeinity”, explorada por Lauren Edelman (2016), é um bom exemplo de como o
direito continua presente na perspectiva constitutiva, dentro da regulação das organizações sociais privadas.
19
Segundo Sandefur (2008), dentro da perspectiva comportamental de baixo para cima de estudos sobre o
acesso à justiça, há aqueles que focam nos “problemas legalizáveis ou judicializáveis” (“justiciable
problems”), no sentido de saber como as pessoas respondem diante de problemas comuns); outros nos
“métodos de processamento das disputa” (“dispute processing” - como os problemas comuns já
identificados como violações se transformam ou não em demandas e como são processados); e outros ainda
sobre as necessidades jurídicas (“legal needs” - como as pessoas mobilizam as formas legais, como procurar
um advogado por exemplo, e do que precisam para fazerem isso).
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de justiça podem dificultar ou, em outros casos, viabilizar o acesso à justiça e a redução
da desigualdade.
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Há ainda estudos que tentam conectar as perspectivas “de cima para baixo” e “de baixo para cima” ,
como por exemplo, aqueles sobre como serviços são providos ao que as pessoas esperam ou demandam de
serviços legais.
21
A respeito do debate formado na literatura sobre os ADR (ou MASC, em português), Sandefur (2008)
avalia que ambas correntes oferecem equações simplistas entre envolvimento de advogados e uso de
procedimentos adversarias contra retração da litigância e resultados presumidos.
22
Segundo a mesma estudiosa (SANDEFUR, 2008), a maioria desses trabalhos é focada exclusivamente
na questão dos custos, com pouca ou nenhuma atenção a quem recebe os serviços ou que trabalhos jurídicos
eles envolvem; uma limitação metodológica que restringiria os resultados possíveis.
23
Há uma forte correspondência entre elas, ainda que não integral. O que Galanter e Edelman (2015)
chamam de regulatórios ou procedimentais parecem corresponder à categoria dos estudos sobre o
funcionamento do sistema de Sandefur (2008) (comportamentais, em um dos sentidos). E o que aqueles
chamam de perspectiva constitutiva pode se equiparar ao que Sandefur (2008) chamada de estudos de
percepção.
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De modo geral, as análises de Cappelletti e Garth (1978), quanto as anteriores de Carlin, Howard e
Messinger (1966) e a de Galanter (1974), e também os estudos sobre as disputas feitos a partir do “Civil
Litigation Research Project” (Projeto de pesquisa sobre litigância cível) (1980 e 1981), todos apresentados
logo adiante, podem ser enquadrados na classe dos estudos comportamentais sobre o acesso à justiça. Os
três primeiros com viés mais de cima para baixo (as “três ondas”, “uma nova teoria da jurisdição”, as
vantagens do “litigante repetitivo”, etc.), e os do CLRP, a partir de um viés de baixo para cima (a
transformação social de uma violação em um litígio formalizado).
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A busca por uma sociedade justa e igual é muito antiga e não parece próxima de
resultados satisfatórios, pelo contrário25. Na nossa experiência recente, o problema da
redução das desigualdades sociais por meio do direito reaparece no final da década de
1970 e início de 1980, sob a denominação de “acesso à justiça”, a partir das análises que
Mauro Cappelletti e Bryant Garth fizeram sobre os dados do “Projeto Florença em Acesso
à Justiça”26. Este projeto levantou informações sobre sistemas de justiça e aparatos
processuais de diferentes países, filiados a diferentes tradições jurídica, europeus ibéricos,
anglo-saxões, escandinavos, do antigo bloco europeu oriental, asiáticos e latino-
americanos.
25
Desnecessário listar aqui os vários dados que confirmam o crescimento da desigualdade no Brasil e no
mundo, assim como as teorias que tentam explicar por que, a despeito do desenvolvimento tecnológico, as
sociedades são cada vez mais desiguais – a mais popular talvez seja a obra do francês Thomas Piketty
(2013), mas está longe de ser a única. No Brasil, o dado mais significativo nesse aspecto talvez seja a nossa
desonrosa décima posição entre os países mais desiguais do mundo (índice Gini, da ONU, de 0.515), à
frente apenas de seis países africanos, o Haiti, a Colômbia e o Paraguai – dado que condiz com a projeção
do IDH com a inclusão dos índices de desigualdade social, segundo a qual o Brasil despencaria nada menos
que 19 posições (UNDP, 2016)
26
O problema da desigualdade sempre compôs a fundamentação última da teoria do direito porque
condicionante do próprio conceito de justiça. É difícil identificar apenas uma linha teórica que sirva de
referência. Especificamente na teoria processual brasileira, Pinheiro Carneiro faz uma síntese histórica da
ideia equivalente ao que hoje chamamos por acesso à justiça, que, segundo ele, remonta às civilizações
antigas e perpassa toda historia da civilização moderna (CARNEIRO, 2007).
27
A sistematização das propostas de Cappelletti e Garth (1978) em “três ondas” facilitou que se tornassem
a receita típica de reformas em países periféricos, particularmente no Brasil. Recentemente, Bryant Garth
comentou em artigo que “[s]eu trabalho de quarenta anos atrás com Mauro Cappelletti em Acesso à Justiça
parece muito mais vivo aqui no Brasil do que nos Estados Unidos”. E, para ilustrar, ele arrematou: “a cada
semana, a tradução para o português do relatório geral do Projeto Florença, de Gracie Northfleet, é citada
em pelo menos alguns artigos ou livros novos no Brasil” (GARTH, 2016, pp. 13 e 15; tradução livre). A
extraordinária e longeva repercussão daquele trabalho no Brasil pode sugerir algo sobre o modo como nossa
produção jurídica e nossas políticas judiciárias compreenderam a ideia de “acesso à justiça”.
37
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
28
“C’est tout et c’est rien” (“isso é tudo e não é nada”, tradução nossa), escreveu Roger Perrot, como
anotam Cappelletti e Garth (1978, p. 194).
29
Segundo as palavras dos autores, “From Access to Legal Representation to a Broader Conception of
Access to Justice. A New "Access-to-Justice Approach", [o que contemplaria um] “full panoply of
institutions and devices, personnel and procedures, used to process, and even prevent, disputes in modem
societies.”. Tradução livre:Do acesso à representação legal a um conceito mais amplo de acesso à justiça.
Uma nova abordagem do acesso à justiça contemplaria um arsenal inteiro de instituições e dispositivos,
atores e procedimentos, voltados para processar, e ainda prevenir, disputas na sociedade moderna
(CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 222).
38
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
30
“Scholarship was typically formalistic, dogmatic, and aloof from the real problems of civil justice”.
Tradução livre: A academia foi tipicamente formalista, dogmática e alheia aos reais problemas da justiça
cível. (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 183, tradução nossa).
39
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
31
“Primeiro, o sistema precisa ser igualmente acessível a todos; depois, ele deve levar a resultados justos
individual e socialmente” (p. 182), “Acesso à justiça formal, não efetivo – igualdade formal, não efetiva –
era tudo que o que era procurado no Estado liberal burguês do século XIX, aqui criticado (p. 183). “No
contexto de determinado Direito substantivo, eficiência ótima poderia ser expressa como uma total paridade
de armas (...) isso se é verdade que igualdade efetiva diante da Lei, e não meramente formal, é o ideal básico
de nossa época” (p. 186, tradução nossa). No original: “First, the system must be equally accessible to all;
second, it must lead to results that are individually and socially just.” (p. 182) “Formal, not effective, access
to justice - formal, not effective, equality - was all that was sought [no Estado liberal burguês do século
XIX, aqui criticado].” (p. 183) “Optimal effectiveness in the context of a given substantive law could be
expressed as complete "equality of arms”, (...)”. (p 186) “(...) if it is true that effective, not merely formal,
equality before the law is the basic ideal of our epoch (…)” (p 186).
32
No original, “Relieving "legal poverty"- the incapacity of many people to make full use of the law and
its institutions - was not the concern of the [liberal] state. Justice, like other commodities in the laissez-faire
system, could be purchased only by those who could afford its costs (...)” (p. 193).
40
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
33
No original, “Theoretical discussions [...assumes...] the frequently unrealistic model of two (or more)
equal sides in court, limited only by the legal arguments that the skilled advocates can muster.” (p. 185).
34
O trabalho de Cappelletti e Garth (1978) se funda, de um lado, em teóricos processuais já clássicos, como
F. Klein, P. Calamandrei, F. Baur, J. Jolowicz, V. Vigoritti, R. Perrot, Y. Tanigushi o próprio Cappelletti
e, de outro, em estudos de J. Carlin, J. Howard, A. Chayes, M. Olson, E. Johnson Jr., M. Zander, M.
Galanter, D. Trubek, A. Sarat, W. Felstiner, R. Abel – os mesmos que deram origem à “Law and Society”.
Na matriz teórica europeia, um caminho similar parece ter sido trilhado com a interlocução entre
sóciojuristas e processualistas preocupados com o papel das formas na promoção de justiça. A discussão
original parece estar em Weber e Hegel, mas este diálogo ficou mais explícito com os estudos de Niklas
Luhmann sobre a legitimação por meio de procedimentos - que, como se sabe, influenciaram a teoria
instrumentalista do processo sistematizada no Brasil por Cândido Dinamarco.
35
Alguns objetos de estudo lhes eram comuns: os interesses coletivos, os processos de interesse público,
os meios alternativos de solução de conflitos (“ADR”), a litigiosidade repetitiva, o perfil e atuação das
partes, juízes e advogados, entre outros.
36
As ideias desta escola remontam às reflexões do realismo norte-americano da década de 1920 e da
jurisprudência sociológica (“sociological jurisprudence”) da mesma época e tomam corpo nos EUA na
década de 1970 e 1980, com a “Law and Society”. Não se trata, convém registrar, de estudos em “sociologia
jurídica” tal qual a entendemos. Os debates da “Sociological Jurisprudence”, que inspirou a “Law and
Society”, estão mais próximos da teoria e filosofia do direito, ao passo que os debates em resolução de
disputas (“dispute resolution”) da “Law and Society” focam objetos comuns aos nossos estudos em direito
processual – embora sob perspectiva e métodos inteiramente distintos como explico no texto.
41
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
37
Cappelletti e Garth (1978) se baseiam em relatos de experiências concretas coletadas nos diversos países
que compuseram o Projeto Florença, um objeto e um método eminentemente empírico - ainda sem os
requintes técnicos de investigação que detém hoje a pesquisa empírica em direito.
38
Em alguns sistemas educacionais, eles compõem um campo autônomo da ciência jurídica - que não se
confunde, convém registrar, com a Process Sociology (Sociologia do Processo) de Norbert Elias, por
exemplo.
39
Em tradução livre: “Quando implementado na Áustria pelo pioneiro Zivilprozessordnung de 1895, 150
reformas ajudaram a fazer procedimentos cíveis, nas palavras do notável processualista Franz Klein,
‘simples, baratos, rápidos, e acessíveis aos pobres’” . No original: “When implemented in Austria by the
pioneering Zivilprozessordnung of 1895,150 such reforms helped make civil proceedings, in the words of
the noted proceduralist Franz Klein, ‘simple, inexpensive, quick, and accessible to the poor’"
(CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 228).
40
“Tomadores de decisão ativos podem ajudar muito os litigantes não representados por advogados. Mesmo
os críticos de juízes ativos, em geral, reconhecem a necessidade de ativismo em casos de pequenas
reivindicações. Reformas modernas também tendem a provover o ativismo judicial, relativizando regras a
respeito de provas e permitindo, por exemplo, na Suécia e na Inglaterra, uma grande discrição em encontrar
procedimentos compatíveis aos tipos de reclamação” (tradução nossa). No original: “Active decision-
makers can do much to help litigants unrepresented by lawyers. Even critics of active judges in general
acknowledge the need for activism in small claims adjudication. Modern reforms also tend to promote
judicial activism by relaxing rules of evidence and by permitting, for example in Sweden and England,
great discretion in matching procedures to the types of claims”. (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 247).
42
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
aproximadamente da mesma época parecem ser a inspiração. Sua famosa chamada para
as causas da insatisfação popular com a justiça, de 190641, e suas críticas aos desvios
causados pelo modelo adversarial de justiça (“a sporting theory of justice”) culminaram
em recomendações para a concepção de instrumentos jurídicos e processuais mais
efetivos socialmente e aberturas do sistema para a figura de um juiz menos passivo do
que aquele da tradição da common law42.
41
O seu discurso na conferência anual da American Bar Association em 1906 é apontado entre as origens
do realismo jurídico norte-americano e como fundamento para as escolas da “sociological jurisprudence”
e, já na segunda metade do século XX, da “Law and Society”. Pound, R. “The Causes of Popular
Dissatisfaction with the Administration of Justice”, Baylor Law Review, v. 8, n. 1 , 1956.
42
As ideias de Klein e também de Pound influenciaram a legislação processual brasileira em diferentes e
relevantes momentos de sua evolução. O CPC de 1939, que é a primeira legislação processual
essencialmente brasileira (no sentido de romper a ainda existente influência das Ordenações portuguesas,
de ter sido criada já na República e de ter retomado o padrão de legislação federal unificada), é todo
construído a partir da premissa de que o juiz precisa assumir o controle sobre o processo para minimizar os
males do formalismo e das “chicanas processuais” com que partes mais favorecidas asseguravam um
resultado que não teriam por justiça. Na década de 1980 e 1990, os temas dos poderes do juiz, da oralidade,
da desformalização e, inspirados em Cappelletti e Garth, do acesso à justiça retornam à pauta por meio das
reformas feitas na legislação processual “eminentemente técnica” de 1973.
43
“Deve-se reconhecer que as reformas judiciárias e processuais não são suficientes para substituir reformas
políticas e sociais” (tradução nossa). No original: Judicial and procedural reforms, it must be recognized,
are not sufficient substitutes for political and social reform” (CAPPELLETTI; GARTH, 1978, p. 289)
43
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Bryant Garth costuma narrar com entusiasmo a fase de sua carreira em que
trabalhou com Mauro Cappelletti no Projeto Florença, do qual nasceu a tese das “três
ondas renovatórias do acesso à justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1978). Algumas
curiosidades que ele rememora, embora pareçam frugais, podem ajudar a entender a
trajetória da ideia de acesso à justiça e sua relação com os estudos sobre o problema da
litigiosidade. Uma delas é a dos trabalhos que estavam sobre a mesa de Mauro Cappelletti
quando de um dos primeiros encontros presenciais dos dois para discutir o projeto.
Segundo Garth (2016, p. 271),
“Nesse momento, Mauro tinha na mesa dele dois artigos, que haviam acabado
de ser escritos e que foram enviados para ele. Um, de autoria de David Trubek
e Marc Galanter, chamado “Schollars in self-estrangement”, sobre direito e
desenvolvimento e outro, de Marc Galanter, “Why the ‘have’s’ come out
ahead”44.
44
“Entre o direito e sociedade: entrevista com Bryant Garth”. Entrevista concedida a Fernando Fontainha,
Izabel Muñez e Paulo Eduardo Alves da Silva, publicado na Revista de Estudos Empíricos em Direito, v.
3, n. 2, junho de 2016, p. 267-287, doravante “Fontainha, Nuñez e Silva, 2016”.
45
A associação científica “Law and Society Association” (<http://www.lawandsociety.org>) reúne
pesquisadores e organiza a produção na área. Vale a pena visitar seus sítio eletrônico, notadamente os links
para os congressos anuais, para uma noção da diversidade e amplitude de temas jurídicos cobertos nos
estudos dos seus associados. Na década de 1970, a associação se iniciava e os estudos sobre métodos de
resolução de disputas e acesso à justiça, desenvolvidos por sociólogos, juristas em geral e processualistas
em particular, compunham parte substancial da agenda de pesquisa da área.
44
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
com a América Latina, particularmente com o Brasil, iniciada nos projetos do CEPED
(Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito) na década de 1970 e retomados há
cerca de dez anos na mesma linha de “direito e desenvolvimento”46. Marc Galanter
construiu sua carreira em contato acadêmico com a Ásia, especialmente a Índia, e não se
tornou tão conhecido diretamente no Brasil. Ao menos não diretamente, porque, segundo
a narrativa de Garth, o referencial trabalho de Galanter, considerando um dos trabalhos
com maior impacto na teoria jurídica norte-americana nos últimos quarenta anos, foi uma
influencia direta na concepção do Projeto Florença.
46
Seria inglório querer listar aqui alguns trabalhos de Trubek. Sua produção é vastíssima. Pela importância
que tem para o direito processual, a escolha recai sobre “The Handmaiden’s Revenge: On Reading and
Using The Newer Sociology of Civil Procedure”, de 1988, em que organiza uma nova perspectiva
epistemológica para o estudo do direito processual.
47
Este artigo compunha o primeiro número do primeiro volume da Law and Society Review, publicação
atualmente mais influente da área. Carlin, J. E.; Howard, J. & Messinger, S. L.“Civil justice and the poor:
issues for sociological research”, Law and Society Review, JSTOR, 1966, pp. 9-89.
45
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
48
No original: “It has long been argued that the law is not not a neutral instrument” (CARLIN; HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 12).
49
Segundo eles, “ricos” em detrimento de “pobres”, sem detalhar exatamente que pessoas se enquadrariam
em uma ou outra categoria.
50
No original: “(...) the poor no less than the rich have legal problems, that they are even more likely than
the rich to suffer injustices resulting from the operation of our economic and governmental systems.”
46
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
51
O artigo também analisa os caminhos para o incremento de capacidade dos “pobres” operarem o sistema
jurídico – analisando, basicamente, o conceito de representação jurídica (legal representation). Este debate
comporá toda uma linha posterior de discussão sobre a “legal competence”, que passa pela primeira onda
de Cappelletti e Garth, a assistência jurídica (legal aid), e vai desembocar nos modelos públicos ou privados
de assistência jurídica – no Brasil, as Defensorias Públicas e, mais recentemente, a advocacia probono.
47
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
52
Em suas palavras, no original: “De facto bias is pervasive because so many correlates of poverty such
as indi- gency, ignorance or insecurity can serve as barriers to justice. In essence it is bias by default. It
represents a failure of the law to take into acount the differential capacity of rich and poor to realize the
protections and benefits wich the law provides” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 22). Em
tradução livre: capacidade diferenciada de ricos e pobres alcançarem as proteções e benefícios providos
pela lei.
53
No original: “inability of the poor to become effective constituents of legal agencies” (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 29).
48
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
54
No original, “reinforces the reluctance of these institutions to serve the needs and interestes of the poor”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 29).
55
O trabalho de Bárbara Gomes Lupetti Baptista (BAPTISTA, 2013) traz relatos interessantíssimos de
como a imparcialidade, e a igualdade, anunciadas em lei e em teoria são distorcidas na dinâmica concreta
dos juízos.
56
No original, uma “affirmative force for change, not simply a reactive process” (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 29)
49
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
57
Para ilustrar, eles destacam, o volume de processos nos tribunais de Los Angeles aumentara em mais de
três vezes entre 1928 a 1954 (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966).
58
No original, “a large scale enterprise”, “mass processing of cases” e “standardized mechanical manner”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, pp. 30 e 31).
59
Outro estudo referência que constrói uma correspondência similar a essa, embora parta da perspectiva
das então nascentes agências administrativas de regulação de serviços públicos (agências de regulação), é
o “Administrative Justice”, de Phillipe Nonet, publicado em 1968.
50
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
(bookkeeping). “Eu pensei que seria capaz de ajudar as pessoas, mas eu era um burocrata
(bookkeeper), diz ele”60.
60
Relatos colhidos em audiências públicas e em entrevistas feitas no âmbito de uma comissão para apurar
os resultados do programa de assistência pública do estado de Nova Iorque, em 1962 (Moreland Comissio
on Welfare Of Findings Of The Study Of The Public Assistance Program And Operations Of The State Of
New York), transcritos por CARLIN, HOWARD e MESSINGER, 1966, p. 41-44 (tradução livre). No
original: “Pressures from the legislature and the public for strict accountability of money spent contribute
to an immense proliferation of administrative rules and regulations relative to the decisions of public
assistance workers and a corresponding increase in paper work which further restricts the capacity of
welfare agencies to serve the needs of their poor clients. The burdens imposed by this "paperwork
explosion" are critically noted in the Moreland Commission Report: "From my own experience and
research", said one witness at our public hearing, "50 to 60 cent of a caseworker time is spent on
bookkeeping. I thought I would be able to help people, but I was a bookkeeper." (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 44)
61
No original, “jugde does little more than rubber-stamp the decisions of others”, (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, p. 40)
62
O texto usa o termo “reabilitação” (rehabilitation), que tem uma conotação ainda mais forte em termos
do papel terapêutico conferido à jurisdição (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 35)
51
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
prognósticos que esses autores fizeram a partir do quadro que observam. E eles levam a
uma nova teoria da jurisdição de do processo.
63
No original, “we have conventionally seen courts as the site of adjudication. This process, however, may
take place elsewhere, most particularly in administrative settings before specially constituted tribunals. We
need to study adjudication in its many settings and we need to explore the forms it takes. Studies of courts
are insufficient; studies of adjudication in other contexts are similarly inadequate. The immediate task, here
as elsewhere in the sociology of law, is to formulate questions that will facilitate empirical inquiry and the
development of sociological theory. In this case what is needed is a theory of the adjudicative process.”
(CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 53, grifo nosso)
64
Primeiro, questões sobre jurisdição envolvendo os pobres surgem frequentemente de configurações
administrativas, assim como de judiciais, em que os casos são comumente processados sem os benefícios
do sistema adversarial ou das tradicionais garantias procedimentais. Em alguns tribunais, a presença desses
arranjos é entendida como um prejuízo à produção eficiente de decisões rotineiras; em outros, há um
abandono virtual desses procedimentos como se tais fossem incoerentes com os objetivos da corte. Em suas
palavras:"First, issues for adjudication involving the poor frequently arise in administrative as well as
judicial settings, where cases are commonly processed without the benefit of an adversary system or
conventional procedural safeguards. In some tribunals the presence of these arrangements is thought to
52
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
disrupt the efficient production of routinized decisions; in others there is a virtual abandonment of such
procedural devices as being inconsistent with the purposes of the tribunal.” (CARLIN, HOWARD;
MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 53)
65
Algumas varas de infância e juventude (juvenille courts), relatam os autores, deixam de notificar as partes
e de designar audiências nas quais elas seriam ouvidas. Em suas palavras, “nas cortes de família e infância
e juventude, nas agências assistência social e procedimentos de acordo, decisões que afetam os direitos dos
pobres não se baseiam usualmente em um argumento razoável ou em um determinado conjunto de regras,
e há pouca preocupação em preservar ou estabelecer procedimentos que assegurem os direitos individuais”.
No original: “In juvenile and family courts, in welfare agencies and commitment proceedings, decisions
affecting the legal rights of the poor are usually not based upon reasoned argument or a determinate set of
rules, and there is little concern for preserving or establishing procedures for safeguarding individual
rights.” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 36).
66
Segundo os autores, uma reação hostil de muitos juízes, especialmente nas cortes de trânsito, a pedidos
por uma audiência formal. No original: “hostile reaction of many judges, particularly in traffic courts, to
demands for a formal hearing.” (CARLIN, HOWARD e MESSINGER, 1966, p. 29).
67
Na vara da infância da cidade de Nova Iorque, por exemplo, 92% de todos os réus não foram
representados por advogados durante o ano de 1959. Holbrook relata que, na época de seu estudo, 95% dos
acusados de delinquência juvenil de Los Angeles não tinham advogado. (...) E o controle judicial desses
procedimentos nas primeiras instâncias por meio da apelação é virtualmente inexistente. Entre 1959 e 1969,
de aproximadamente 20 mil adolescentes julgados delinquentes ou negligenciados em Nova Iorque apenas
quatro casos foram objeto de recurso”. No original: “In the Children's Court in New York City, for example,
92 per cent of all respondents during 1959 were not represented by counsel; Holbrook reports that at the
time of his study 95 per cent of juveniles in Los Angeles did not have counsel” (p. 38). Dados relativos a
1962. E, “Control over judicial proceedings in lower-level tribunals through appellate review is virtually
absent. In 1959-60, out of nearly 20,000 adolescents adjudged delinquent or neglected in New York City
only 4 cases were appealed.” (CARLIN, HOWARD; MESSINGER, 1966, p. 38). Dados publicados em
1965.
53
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
padrão para o qual já haja uma interpretação cabível sobre os fatos68 (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966).
O quadro descrito por Carlin, Howard e Messinger (1966) para a justiça norte-
americana das décadas de 1960 e 1970 tem mais de um ponto de contato com a justiça
brasileira, atual e a de algum tempo atrás. Os temas cujo aprofundamento os autores
recomendam coincidem, em parte, àqueles estudados pelo direito processual de matriz
romano-germânica (civil law) nas décadas de 1980 e 1990. São eles: a passividade que
caracteriza a justiça civil, responsável por sua ineficácia, ante a natureza inquisitorial da
justiça criminal; os tipos de tutela disponíveis e a sua inaptidão para inibir violações
constantes e coletivas/de classe; o contexto politico do sistema de justiça e incapacidade
dos pobres operarem de forma eficaz o sistema jurídico.
A diferença, no caso, é que, na teoria desses autores, tais temas seriam abordados
a partir de um modelo de justiça civil adversarial, enquanto, no nosso caso, foram
desenvolvidos sob uma perspectiva mais inquisitorial, inclusive no âmbito cível. Em
alguma medida, pode nos ser mais fácil discutir o aumento dos poderes do juiz – tema
que, de fato, protagonizou o debate na década de 1990 – do que a internalização de uma
litigância coletiva ou o contexto político que enquadra o sistema de justiça – temas com
68
Depender unicamente do tribunal para desenvolver e apresentar os fatos pode restringir as informações
e encorajar a rotulagem prematura do caso para tentar encaixa-lo em um padrão familiar no esforço de
tentar ordenar o conjunto de fatos em uma teoria. No original: “Reliance solely on the court for developing
and presenting the facts may restrict information and encourage a premature labeling of the case “to tray
to fit i tinto a familiar pattern in an effort to order the mas of facts around a tentative theory” (CARLIN,
HOWARD; MESSINGER, 1966, tradução livre, p. 29).
54
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
os quais não estamos absolutamente resolvidos e que, por isso, retornam nas décadas de
2000.
69
O capítulo 2 deste trabalho abordará essas questões com mais profundidade.
70
As reformas do processo civil inglês e norte-americano, baseadas no “case management”, são um
exemplo. Faço uma discussão parecida em “Gerenciamento de Processos Judiciais” (2010) sobre o que
significa o ativismo judicial em modelos inquisitoriais e adversariais.
55
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O elemento destacado naquela teoria que está menos presente nas reformas
processuais brasileira da década de 1990 e na atual é o que os autores chamam
“incapacidade de os “pobres” operarem o sistema de justiça”. Considerando que se trata
da premissa do seu principal argumento (o direito desfavorece os pobres), a sua ausência
nas reformas brasileiras não é pouco importante. Isso talvez esteja relacionado ao caráter
exclusivamente institucional da nossa concepção de acesso à justiça, limitada a
aperfeiçoamentos formais e pouco ciosa dos elementos materiais que compõem a ideia.
O item seguinte discute essa questão.
Naquela literatura, olhar para o acesso à justiça a partir das características das
partes e das disputas tornou-se tanto ou até mais importante do que pensá-lo pelo viés das
instituições, órgãos e técnicas. Toda uma linha de estudos sob essa ótica se desenvolveu
71
As propostas de Cappelletti e Garth (1978) doze anos depois até que são semelhantes às de Carlin,
Howard e Messinger (1966). Ambos partem da premissa de que a relação entre direito e pobreza condiciona
o problema da efetividade (“effecting legal equality becomes at some point a poblem of effecting social
equality”, cf. CAPPELLETTI e GARTH, 1978, p. 28). E ambos propõem mecanismos pelos quais pobres
conseguiriam suplantar o déficit de capacidade jurídica por meio de processos coletivos e de representação
legal, bem como desenhos processuais próprios para os litígios de massa. A diferença parece ser mesmo de
perspectiva analítica: Cappelletti e Garth (1978) adotam uma perspectiva institucional do acesso à justiça
e Carlin, Howard e Messinger (1966) o que chamamos de perspectiva substancial para análise desse
problema.
56
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1978) adotou uma tipologia das partes
que merece atenção especial, não somente pelo seu impacto científico, mas também pela
grande correspondência com a realidade da Justiça brasileira. Trata-se da famosa
classificação entre “litigantes habituais” ou “repetitivos” e “litigantes eventuais”, ou
“jogadores habituais” e “participantes esporádicos”. Concebida por Marc Galanter em um
trabalho publicado inicialmente em 1974, a tipologia se tornou referência para uma
infinidade de outros estudos nas mais diferentes áreas, nos últimos quarenta anos72.
Embora pouco conhecido no Brasil, é inquestionável a sua relevância para os nossos
estudos sobre justiça e processo73.
72
Why the" haves" come out ahead: Speculations on the limits of legal change
Law & society review, 1974, 9, 95-160. Este artigo foi considerado o décimo-terceiro artigo de revista
jurídica mais citado em todos os tempos (SHAPIRO, 1996, p. 751). Foi traduzido para híndi, alemão,
espanhol, chinês, francês e português. E aprece em um sem número de decisões judiciais norte-americanas.
Cappelletti e Garth (1978), por exemplo, se referem a ela cerca de vinte cinco vezes somente no relatório
geral introdutório.
73
Como explico no início deste capítulo, o “litigante repetitivo” de Galanter não tem o mesmo sentido que
a nossa “litigiosidade repetitiva”. Aquele é o litigante que participa de muitos processos judiciais; essa é o
fenômeno de haver vários litígios sobre uma mesma questão geralmente jurídica. Na litigiosidade repetitiva
há, é verdade, um litigante repetitivo: as empresas de telecomunicações e os bancos nos litígios de consumo;
o governo nos litígios previdenciários e execuções fiscais. Mas os fenômenos não se identificam
principalmente por conta da perspectiva com que olhamos para cada fenômeno. Galanter (1974) está
preocupado com a justiça que o sistema produz, o que faz com que ele identifique um foco de desigualdade
(portanto, injustiça) nas vantagens do litigante repetitivo. O debate sobre litigiosidade repetitiva no Brasil,
cujas conclusões foram acolhidas pelo legislador processual civil, está preocupado com o volume de
processos nos tribunais, o que induz a crer que o proponente das ações judiciais, , que geralmente é o
“participante eventual”, não o “jogador habitual”, seria responsável pela aumento da litigiosidade. Retomo
este argumento mais adiante. De todo modo, importante realçar que, embora relacionados, os fenômenos
não são totalmente idênticos.
57
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
74
Como fica claro, trata-se de uma típica perspectiva “de baixo para cima” (bottom-up) de estudos sobre o
acesso à justiça, na linguagem de Sandefur (2008). Trecho acima traduzido por Ana Carolina Chasin, em
versão ainda não publicada.
58
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O problema em que Galanter (1974) joga luz não é apenas a evidente injustiça
em relação aos casos individuais – o que, em si, bastaria para justificar o seu argumento
– mas o funcionamento às avessas do sistema, que não apenas não produz justiça, como
perpetua e aumenta a injustiça75. Esse argumento é um passo adiante em relação a Carlin,
Howard e Messinger (1966): o sistema de justiça e de processo não apenas não seria
75
O que fica bastante claro no trecho: O que essa análise faz é definir uma posição de vantagem na
configuração dos litigantes e indicar como aqueles com outras vantagens tendem a ocupar essa posição de
vantagem e, assim, têm suas outras vantagens reforçadas e aumentadas. Essa posição de vantagem é um
dos caminhos em que o sistema legal formalmente neutro, quando entre aqueles que têm e aqueles que não
têm, pode perpetuar e aumentar as vantagens dos primeiros. No original: “What this analysis does is to
define a position of advantage in the configuration of contending parties and indicate how those with other
advantages tend to occupy this position of advantage and to have their other advantages reinforced and
augmented thereby. This position of advantage is one of the ways in which a legal system formally neutral
as between“haves” and “have-not” may perpetuate and augment the advantages of the former.”
(GALANTER, 1974, tradução livre, p. 103-104)
59
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
neutro, como atuaria em favor de determinado tipo de litigante. E, muito pior do que isso,
atuaria muitas vezes em sabotagem à vontade da lei e aos escopos do sistema jurídico.
Dentre as propostas para neutralizar os efeitos das diferenças das partes sobre o
76
Segundo classificou Galanter, o que não necessariamente corresponde ao cenário brasileiro dos casos de
divórcio, guarda e alimentos, por exemplo
60
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
77
Esse argumento ajudou a desenvolver uma interessante linha de estudos sobre os perfis dos advogados,
suas relações com os clientes e os efeitos sobre os resultados da justiça. Os trabalhos de John Heinz e
Edward Laumann (1982), iniciados com um levantamento sobre os advogados de Chicago, tornaram-se
referência para discutir essa problemática. Nesse sentido, também: Heinz et. al, 1998 e Heinz et al, 2005.
61
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A litigância judicial pode não ser uma fonte direta de transformação do direito
para os “que não têm”. A complexidade, os investimentos em serviços
78
No original: “Finally, the rules are sufficiently complex and problematic (or capable of being problematic
if sufficient resources are expended to make them so) that differences in the quantity and quality of legal
services will affect capacity to derive advantages from the rules” (GALANTER, 1974, p. 124).
79
No original: “Litigation, on the other hand, has a flavor of equality. The parties are “equal before the
law” and the rules of the game do not permit them to deploy all of their resources in the conflict, but require
that they proceed within the limiting forms of the trial. Thus, litigation is a particularly tempting arena to
“have-nots”, including those seeking rule change. (…) (GALANTER, 1974, p. 135).
62
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
No início da década de 1980, uma outra linha de estudos centrou-se nas disputas
que acontecem na sociedade e que não necessariamente são judicializadas. Como as
anteriores, a análise das disputas (dispute perspective) (GALANTER, 2005) compartilha
a visão substancial do acesso à justiça e oferece esclarecimentos importantes para se
entender o fenômeno da litigiosidade nas sociedades contemporâneas. O principal deles
é o de que os processos judiciais representam apenas uma fração das disputas que
acontecem na sociedade.
O marco dessa linha de estudos foi o “Civil Litigation Research Project” (CLPJ),
um projeto destinado a levantar dados sobre a litigância civil em todo os Estados Unidos,
desenvolvido entre o final da década de 1970 e o início da de 198081. O projeto, resume
David Trubek (1980, pp. 495-497), um dos seus diretores, adotou como pressuposto a
hipótese de que:
80
No original, Litigation may not, however, be a ready source of rule-change for “have-nots”. Complexity,
the need for high inputs of legal services and cost barriers (heightened by overloaded institutional facilities)
make challenge of rules expensive. OS claimants, with high stakes in the tangible outcome, are unlikely to
try to obtain rule changes. By definition, a test case litigation deliberately designed to procure rule-change
is an unthinkable undertaking for an OS. (…)” (idem).
81
Projeto encomendado pelo Departamento de Justiça dos EUA e desenvolvido pelos programas das
Universidades de Wisconsin/Madison e da Universidade do Sul da Califórnia.
63
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Uma das mais relevantes análises até hoje feitas a partir dos dados do CLRP é a
de William Felstiner, Richard Abel e Austin Sarat, três dos coordenadores do projeto.
Publicada em 1980 com um sugestivo título, “The emergence and transformation of
disputes: naming, blaming, claming”, seu argumento era o de que o processo judicial é
resultado de um longo processo social de transformação de uma violação de direitos em
uma demanda. Esse processo se iniciaria pela identificação de uma violação sofrida
(perceived injury), a sua nomeação (naming), a responsabilização do suposto culpado
(blaming) e, então, a formulação de uma reclamação (claming) – que pode ser à parte
violadora ou a um terceiro, informal ou formal, privado ou público.
82
No original: “The project assumes that civil litigation is but one aspect of dispute-processing activity,
and that civil jutice issues should be studied in a broad dispute-processing framework. This framework
employs a conceptual perspective which includes courts and other dispute-processing institutions and
covers all activities from inception to termination of a dispute.”
83
Herbert Kritzer (ano) divulgou um levantamento dos trabalhos publicados com base no projeto,
“Bibliography on publications and papers of the Civil Litigation Research Project”, disponível em <
https://faculty.polisci.wisc.edu/kritzer/research/clrpbib.htm>, acesso em Julho de 2017. No início da
década de 1980, mudanças de cenário político levaram ao desmantelamento deste projeto.
64
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
não outras disputas a serem judicializadas são altamente determinantes, entre outras
coisas, do volume de processos judiciais nos tribunais – com que tanto tem se preocupado
o legislador processual brasileiro. Quanto mais se conhecer essas circunstâncias
extrajudiciais, mais possível antever e controlar o fluxo e o volume de processos
judiciais84.
84
Um recente estudo no Brasil adotou esta perspectiva para o levantamento de dados sobre litigiosidade e
causas da morosidade, tendo criado uma imagem muito funcional de um mapa do fluxo de um conflito
dentro e fora do Judiciário, bem como um conceito interessante de “filtros” que seriam inseridos em pontos-
chave deste fluxo para conter eventual enxurrada de processos judiciais. Cf. GABBAY, D.; CUNHA, L.
(orgs.), 2012.
65
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
LS10CH07-Albiston ARI 17 September 2014 11:4
experiência prévia que uma parte tenha tido com a Justiça ou algum outro processo de
resolução,Dispute
a demora,
resolution os custos, a percepção de justiça que formou, etc., são outros.
outside of Settlement before
litigation adjudication
(DROL)
A figura abaixo ilustra os estágios do processo de transformação de uma disputa
Adjudication
No resolution through
pirâmide, há os processos paralelos de resolução de disputas – desde a mera resiliência
Access provided by University of California - Berkeley on 12/14/15. For personal use only.
alternative
Annu. Rev. Law. Soc. Sci. 2014.10:105-131. Downloaded from www.annualreviews.org
normative
Injuries systems
Claiming:
that do not
da vítima, disputes
àbecome
submissãoConfront
a ask
sistemas
for remedyjurídicos paralelos (na linha do pluralismo jurídico), a
other party,
época o acrônimo ADR ainda não eram conhecidos como hoje) e os acordos realizados
Naming:
Perceived injury
em juízo, antes da sentença.
Unperceived injurious experiences
Figura 1: Pirâmide com os estágios de transformação
Figure 1
das disputas (reprodução)
The dispute pyramid, with inverted triangles that represent alternative avenues or processes through which
Solução do
potential disputes may proceed
(Miller & Sarat 1980).
tutela
conflito fora da jurisdicional
or pursue alternative routes to resolution. The focus,
jurisdição
however, is on the Acordo antes do
legal path and the factors
that lead to attrition from it at each level of disputing.
julgamento
Indeed, the very concept of dispute itself tends to focus on the narrow precipitating events
demanda
that gave rise to the individual disagreement, rather than the fundamental structural features of
society or the long-term social processes that generate judicial
conflict (Cain & Kulcsar 1981). In this
view, claiming, or claim propensity, becomes a function of personality traits rather than larger
structural forces (see Vidmar & Schuller 1987), perhaps reflecting the primarily behavioralist and
disputa (sem
individualistic approaches that were in fashion at the time the CLRP findings were published.
The failure of subsequent work to address mediating resolução) Solução do
mechanisms or organizational contexts of
disputes, however, left many rich theoretical traditions in the social sciences offconflito por
the table when it
Violações que
came to understanding dispute resolution. reivindicação (solicitar sistemas legais
We argue that the não se tornam providência à parte
sliced-off triangles of attrition excluded from the pyramid may tell us the most
alternativos
about the social process of dispute
disputas resolution (see contrária)
Figure 1). These triangles represent dispute
resolution outside the litigation process, or DROL for short. DROL includes recognized injuries
that do not become disputes, disputes resolved responsabilização (atribuir
through alternative normative systems, and settle-
ment before adjudication, as well as many other responsabilidade à parte
outcomes. The undertheorized and understudied
contrária)
www.annualreviews.org • The Dispute Tree and the Legal Forest 107
nomeação (perceber uma violação a
direito)
66
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Uma análise estatística dos dados do CJLP (1981) chegou a dois principais
resultados. Primeiro, os números revelaram que os relatos de violações de direitos
acontecem menos do que se supunha (apenas 41,6% dos respondentes relataram terem
sofrido uma violação (grievance), mas, quando ocorrem, geram alto nível de litigiosidade:
71,8% das disputas se transformaram em reclamações (claims) e em 62% delas a parte
contrária firmou resistência. O recurso a advogados revelou-se baixo (23%), mas ainda
assim o dobro do recurso aos tribunais (11%).
67
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Court Filings 50
Lawyers 103
ClaIms 718
Grieva1ces 1000
RGURE 1It.. A Dispute Pyramid: The General Pattem (No. per 1000 Grievances)
Tort Discrimination
GourD
DiIpuUIs
Cblims
' - -_ _ _ _ _...Jo ••• Grieva'Ices
Tort Discrimination
FIGURE 11. Dispute Pyramids: 1'InI Deviant PatternS (lb. per 1000 GrievenON)
Fonte: most
While Millertort
e Sarat, 1981,
claims reprodução.
resulted in a vances, and the width cf the pymmid shows
compromise agreement, other claims were the proportions that make the successive
much more likely to have all-or-nothing transitions 10 claims, disputes, lawyer use,
A figuraToacima
outcomes. indica
some extent this que,
reflectsnathe média, naquele
and litigation FJgUre contexto,
18 presentsdentre
three con-as violações
nature cf many problems. Dr example, trasting pattems-the disputing pyramids fOr
percebidas, 72%disputes
property eram involving
efetivamentepennission objeto
to de reclamação;
torts, post-divorce, and45% se transformaram
discrimination grie- em
build are not amenable to compromise. vances.
disputas (ou
Someseja, a reclamação
opposing não surtiu
parties were tmlikely to offer efeito pois
'B:I::ts showa parte
a clear contrária
pattern. Mltresistiu
cf those em atendê-
anything: more than half cf all discrimination with grievances make claims (85.7 percent),
la), 10% foram encaminhadas
(58.0 percent) and tenant a(55.0 um(a) advogado(a)
percent) and most eclaims apenas are 5% foram resisted
Irt fonnally judicializadas. Já
claimants failed to obtain any redress at alL (76.5 percent result in immediate agree-
I
a análise decomposta
Such claimants arepela natureza
apparently das disputas,
in a particular- ment). As ilustrada pelas
a result, disputes diferentes
are relatively rare pirâmides,
I
ly weak bargaining position and also rmy (23.5 percent cf claims). Where they occur,
t
sugere
t que
lackcasos de recourse
effective indenizaçãoto any civil (torts)however,
thirrl-party eram 1avvyeI:s
facilmente identificados
are available, accessible, e objeto de
remedy system. \\b shall take up this point and are, in fact, oflen employed (Sl.9 per-
J
reclamação e comumente levadas a um advogado,
again. mas não
cent). Moreover, these transformavam
same can be said fOr the em disputas
employment cf courts (at least in compari-
f
formais eSummary
menos ainda judicializadas porque, sonprovavelmente,
with other problems). The as overall
partespicture
se compunham
!
antes disso.
f
\\b Jácancasos de divórcio
visualize. the processe of questões
generation through the metaphor ofa pyra-
is cf a· remedy system that minimizes fonnal
dispute posteriores
conflict but uses ao divórcio, como
the courts when
in those relatively rare cases in which con-
guarda de filhos
necessary
t-
e regimemidde(seevisitas,
proporção
t·
passavam
Figure lA). At the basefacilmente
are grie- fiict
i .
Um dos grandes achados desse estudo foi o perfil dos casos de discriminação,
que são largamente percebidos como violação, mas muito pouco reclamados. Nos casos
em que a vítima reclama, a parte contrária geralmente resiste à imputação de
responsabilidade e muitos casos se transformam formalmente em disputas. Ainda assim,
o recurso a advogados é muito menor do que nos outros casos, e é ainda menor a
proporção de casos judicializados. Os casos de discriminação, portanto, seriam aqueles
68
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
menos prováveis de serem judicializados, o que está distante de significar acesso à justiça,
pelo contrário. As vítimas não se sentem estimuladas a reivindicar direitos, acusados
recusam-se a reconhecer que tenham praticado discriminação e o caminho da
institucionalização, pelo advogado ou o juiz, não é utilizado.
69
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
85
Como sintetizaram Catherine Albinston e Rebecca Sandefur (2013, p. 101-102) em um relativamente
recente artigo: “Access to Justice (A2J) research is in the midst of a renaissance. A new crop of evaluation
studies have joined a broader body of contemporary research investigating the delivery of legal services
and public experience with civil justice. A growing number of stakeholders regard this new research with
serious interest. For example, in 2010, the Obama administration established for the first time an Access
to Justice Initiative within the Department of Justice.4 The Access to Justice Initiative is charged in part
with “[e]xpand[ing] research on innovative strategies to close the gap between the need for, and the
availability of, quality legal assistance.”5 Similarly, in its 2012 strategic plan, the Legal Services
Corporation committed to using “robust assessment tools” in identifying and promoting best practices in
legal services delivery.6 Three years ago, the American Bar Foundation, a leading national center for
sociolegal research, established an A2J research initiative.7 In December 2012, that initiative, with the
sponsorship of the National Science Foundation, convened researchers and field professionals to identify
and develop an A2J research agenda.8 This is an exciting time for people who care about access to justice.”
Em tradução livre: A pesquisa sobre acesso à justiça está em meio a um renascimento. Uma nova safra de
estudos avaliativos se juntou a um abrangente corpo de pesquisa contemporânea investigando a prestação
de serviços jurídicos e a experiência pública com a justiça cível. Um crescente número de pessoas-chave
olha para essa nova linha de pesquisa com interesse. Por exemplo, em 2010, a administração OBAMA
estabeleceu, pela primeira vez, uma iniciativa de Acesso à Justiça dentro do Departamento de Justiça. A
Iniciativa de Acesso à Justiça é encarregada de expander a pesquisa sobre estratégias inovadoras para fechar
a lacuna entre a demanda e a disponibilidade de assistência legal de qualidade. De igual modo, no plano
estratégico de 2012, a Associação de Serviços Legais se comprometeu a usar robustas ferramentas de
avaliação na identificação e promoção das melhores práticas de prestação de serviços jurídicos. Três anos
atrás, a American Bar Foundation, um dos principais centros norte-americanos de pesquisa sociolegal,
estabeleceu um projeto de pesquisa sobre acesso à justiça. Em dezembro de 2012, esta iniciativa, sob o
apadrinhamento da National Science Foundation, convocou pesquisadores e profissionais da área a
identificar e desenvolver uma agenda de pesquisa em acesso à justiça. Este é um período excitante para as
pessoas que se importam com acesso à justiça”.
70
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
propriamente judicial, como é este processo na sociedade? Como a sociedade resolve suas
disputas? O que ela acha justo? Afinal, a sociedade é em si litigiosa?86
A ideia de justiça passa a ser definida em função das inúmeras experiências das
pessoas envolvidas, e o problema do acesso à justiça passa a ser analisado a partir dos
processos internos das sociedades. O acesso à justiça não acontece apenas pelas
instituições formais do sistema, os órgãos judiciais e procedimentos legais, mas pela ótica
e experiência do jurisdicionado. A sua experiência pode ser muito mais significativa e
determinante de um nível desejado de justiça do que o mais apurado, técnico e perfeito
desenho de lei ou procedimento judicial.
86
Parte dessas perguntas já eram feitas mesmo antes das descobertas do Civil Litigation Research Project,
mas foi a partir da década de 1980 que elas se incorporam à linha de estudos sobre acesso à justiça e métodos
de solução de disputas
71
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
métodos mais adequados para resolver suas disputas. Conhecendo como o direito está
presente nas ações diárias das pessoas – onde nascem os conflitos – e como elas entendem
que suas disputas devem ser resolvidas, é possível isolar os elementos para um desenho
das regras dos processos e normas de funcionamento dos órgãos do sistema de justiça.
87
Desde as anedotas sobre os advogados, os filmes e séries sobre casos judiciais famosos, até a definição
de uma acirrada e polêmica eleição presidencial, os processos judiciais e as decisões dos juízes são
componentes bastante presentes na cultura cívica daquele país. Aliás, Tocqueville, um observador externo
da incipiente organização política norte-americana no início do século XIX, já destacava o peculiar papel
do Judiciário naquele país. (TOCQUEVILLE, 2005).
88
Os exemplos são variados: os direitos do consumidor; a chamada judicialização da política; a litigância
de massa; a transmissão das sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal;, o combate à corrupção; a
escolha de ministros de tribunais superiores; entre outros.
72
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Esse jogo de regulação pela litigância judicial é bastante complexo, com idas e
vindas em termos das possibilidades e restrições do uso de processos judiciais em
determinadas matérias.91 E, o que pode nos interessar diretamente, o jogo de incentivo e
restrições à litigância judicial é determinado por variações nos modelos e formas de
solução das disputas admitidos – ou seja, pelos modelos processuais adotados.
89
Conceito pelo qual Kagan quer identificar as atividades de elaboração e implementação de políticas
públicas e de resolução de disputas que acontecem por meio de uma litigância judicial dominada por
juristas/advogados. Trata-se, portanto, de atividades que vão além da de resolução de disputas e mais além
ainda do que o processo judicial. Sem prejuízo, elas são operacionalizadas por meio das demandas judiciais,
que criam para o Judiciário a oportunidade de resolver disputas e regular políticas públicas. No original:
“policymaking, policy implementation, and dispute resolution by means of lawyer-dominated litigation”.
(KAGAN, 2003, p. 3)
90
Impossível não fazer a relação com o debate de Calamandrei sobre a natureza do direito de ação no início
do século XX. Trata-se, ele pergunta, de um mecanismo para proteger direitos subjetivos das partes
litigantes (privado, portanto) ou uma oportunidade que se abre ao Estado para promover a paz e ordem
sociais?
91
Kagan (2003) avalia casos criminais e o controle da criminalidade, casos cíveis de indenização pessoal e
as restrições impostas ao tort law system, e a regulação pública, por exemplo, do embate entre
desenvolvimento e proteção ambiental.
73
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A interpretação de Kagan (2003) sobre a litigiosidade nos EUA deixa claro que
a iniciativa e participação dos cidadãos na resolução de disputas são determinantes do
perfil do modelo processual e, afinal, da efetividade do direito como instrumento de
regulação social. Mas, diferentemente do sugerira a pirâmide de disputas de Miller e Sarat
(1981), a análise de Kagan permanece centrada nos métodos institucionalizados de
solução de disputas – a negociação privada seria o menos institucionalizado. Kagan não
oferece saída à ponderação de que os métodos institucionalizados têm potencial limitado
para produzir justiça porque são operados diferentemente por partes em desiguais
condições – como já argumentavam Carlin, Howard e Messinger em 1966 e Galanter em
1974.
92
Segundo Kagan (2003) um modelo burocrático legalista de inspiração weberiana, adotado em toda
Europa continental.
74
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
93
Como os estudos que Hazel Genn e sua equipe têm feito nas últimas décadas no Reino Unido. Conferir
Genn et al 1999, Genn e Patterson, 2001; Pleasence, 2006.
94
Cujo exemplo são os estudos da escola chamada “procedural justice” (justiça procedimental), que
combina instrumental e análises da psicologia social. V. LIND e TYLER, 1988; TYLER, 1990, 1988, 2005;
THIBAULT e WALKER, 1973.
75
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
95
Tratam-se de pesquisas situadas no que foi chamado de linha psicologia social, que aplica questionários
e realiza experimentos para diagnosticar os significados de ações sociais para as pessoas. V. LIND e
TYLER, 1988; TYLER, 1990, 1988, 2005; THIBAULT e WALKER, 1973.
96
Essa é a principal pergunta de pesquisa da linha de estudos em “justiça procedimental” e também o seu
principal resultado. Os estudos iniciais, de Thibault e Walker (1973), realizaram experimentos direcionados
a testar a hipótese da satisfação das pessoas com as decisões tomadas de forma justa, confirmando-a. Os
estudos que o seguiram realizaram acompanhamentos de casos reais e chegaram a conclusões parecidas.
Para uma apresentação da “justiça procedimental” e indicação desses estudos, V. TYLER, 1988.
76
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
considerada pelas pessoas um dos melhores caminho para incrementar sua credibilidade
(TYLER, 2004).
97
Os princípios gerais de justiça são estabelecidos, segundo ele, a partir da definição de um estado inicial
de justiça, que, embora fundado em um conhecimento apenas parcial das particularidades envolvidas,
considera um conhecimento geral sobre a sociedade, economia, política e direito – “o véu da ignorância”,
como ele consagrou a metáfora (RAWLS, 2008)
98
A tese da justiça procedimental se expandiu para a literatura jurídica europeia, que a submeteu a crivos
analíticos igualmente sofisticados – como, por exemplo, as noções correspondentes nas teorias da
legitimação pelo procedimento de Luhman e da ação comunicativa de Habermas (RÖHL e MACHURA,
1997).
77
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
99
Este dado, convém registrar, corresponde ao que anteviram os primeiros estudos sobre acesso à justiça
(especialmente, Carlin, Howard e Messinger, 1966 e Galanter, 1974). Também se encaixa ao argumento
recente de Sandefur (2008), de que os litigantes integram grupos sociais diferentes em termos de classe,
raça e gênero, e esses elementos, mais do que uma ideia genérica de “pobreza”, interferem nos resultados
de justiça que podem obter pelo processo.
78
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
informais, estão presentes nas “atividades diárias” das pessoas e conformam o seu sentido
de justiça, num processo que temos identificado por aqui como “construção social da
legalidade” (RICCIO, 2004). O movimento é complexo e de duplo sentido: as práticas
diárias constroem coletivamente um sentido jurídico que, ao fim, afeta a interpretação e
a aplicação do direito formal nos órgãos institucionais (SILBEY, 2005).
100
No original, “all the ideas about the nature, function and operation of law held by anyone in society at
a given time" (TRUBEK, D. Where the Action Is: Critical Legal Studies and Empiricism, 36 Stan. L. Rev.
575, 592,1984, apud SARAT, 1990).
101
Patricia Ewick and Susan Silbey, The Common Place of Law: Stories From Everyday Life,Chicago:
University of Chicago Press, 1998.
79
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
102
A análise do acesso à justiça a partir de diferentes grupos sociais é talvez a principal proposta de Sandefur
(2008). E, para tanto, ela busca os conceitos clássicos da sociologia, classe, raça e gênero, como
instrumental analítico chave para analisar acesso à justiça.
103
“a process through which the meaning of law is shaped by widely accepted ideas within the social arena
that law seeks to regulate.” (EDELMAN, 2016)
80
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Se, contudo, o direito está presente nas práticas individuais em toda a sociedade
e se esta regula-se por meio de um processo complexo de “construção social da
legalidade”, o sistema de resolução de disputas não poderia ser representado por uma
figura com um único eixo central escalonado, como a da pirâmide. Seria o caso de
representeá-lo por uma outra figura. Com essa premissa, Katherine Albiston, Lauren
Edelman e Joy. Milligan (2014) conceberam a interessante figura de uma “árvore das
disputas”, que parece ser um rico recurso analítico para explicar a resolução de disputas
na chamada “sociedade em redes” (CASTELLS, 2007).
81
LS10CH07-Albiston ARI 17 September 2014 11:4
ilustra a ideia. a formal organizational complaint procedure) or extralegal action (such as direct confrontation,
appeals to the media, consulting friends and family, or even prayer). Although their approach is a
significant improvement over the dispute pyramid approach, we advocate abandoning the pyramid
metaphor altogether to capture better the nature of disputes and dispute handling in society.
We propose a new metaphor for the dispute resolution process: the dispute tree (see Figure 2).
Figura 3: A “árvore” do sistema de resolução de disputas
Rather than narrowing to a single point at the top, the dispute tree grows many branches from
Access provided by University of California - Berkeley on 12/14/15. For personal use only.
Annu. Rev. Law. Soc. Sci. 2014.10:105-131. Downloaded from www.annualreviews.org
82
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
104
Inclusive, estão no texto rituais religiosos como a reza. Esta opção, que também surpreendeu as autoras,
foi mencionada não poucas vezes nas respostas aos questionários aplicados a população sobre como tentam
resolver seus conflitos de interesses. Rezando, muitas pessoas responderam.
83
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
84
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Fonte: Michelson, 2007.
Os encaminhamentos mais frequentes dados às disputas são também próprios do
país. NaFigure
figura1. Baseline
acima, Dispute Pagoda,
a lista comRural China, 2002
percentuais da direita indica que as disputas na China
percent) was precisely double the proportion S4.) Among households with even more polit-
of grievances that went to legal channels (2 per- ical connections,
Figure 2. Dispute Pagodas the bulges above “village
by Political Connections, Rural China, 2002 85
cent). Moreover, the “legal system” category leader” are of considerably greater prominence.
Note: Not all dispute pagodas total 100.0 percent owing to rounding error. “Connection to Village Leader” refers
to families that contain a village leader. “Connections to Village Leader and Higher-Level Cadre” refers to families
included many instances of approaching admin- Of allthat
grievances reported by households with
contain a village leader and that maintain close relations with and frequent contact to an outside relative work-
ing as a higher-level cadre.
istrative offices: of all grievances in this cate- both a village leader and a close relationship
gory, 63 percent went to court, 31 percent went with an outsideeconomic
by contextual relativeconditions,
in higher politicalernment
this effect office,office (Model 1). Relations with out-
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
86
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
geral do Projeto Florença publicado no Brasil em 1988, que tomamos como referência,
quase sempre exclusiva, para pensar o nosso acesso à justiça. Os trabalhos anteriores e
posteriores a obra de Cappelletti e Garth oferecem outros tantos elementos úteis para
compreender a litigiosidade no Brasil e avaliarmos o nosso modelo de regulação
processual.
87
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Essa classificação tem mera função didática105, mas pode também servir como
um instrumental analítico para avaliar os nossos repertório teórico e marcos regulatórios
das disputas em comparação aos de outros sistemas.
105
Essa classificação tem função didático-explicativa e analítica-instrumental. Não é e nem pretende ser
precisa. Autores que oferecem leituras “sociais” fazem propostas institucionais e também avançam para
análises “culturais” do problema do acesso à justiça. O critério de classificação é a perspectiva
aparentemente predominante em cada análise, sendo certo que as abordagens se combinam em um mesmo
trabalho. Ainda assim, não deixa de ser um instrumental útil para avaliar outras leituras sobre o problema,
no caso, as que fazemos na literatura brasileira.
88
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
89
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
90
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
social. O acesso à justiça depende, nesse sentido, menos de um corpus instituído de leis
e formas jurídicas e mais dessas experiências. Seria preciso, portanto, conhecê-las. Por
outro lado, a percepção de justiça das pessoas é constituída, em grande medida e
surpreendentemente, pela forma dos julgamentos – por elementos processuais, em ultima
análise. Ter voz, ser ouvido por um terceiro neutro, com credibilidade evidente e ser
tratado com respeito e dignidade podem pontuar mais na experiência de justiça das
pessoas do que sua opinião sobre o acerto ou o erro da decisão proferida ou sobre os
termos do acordo celebrado (THIBAULT; WALKER, 1973; TYLER, 1988). O
contraditório não apenas legitima formalmente o procedimento, como consubstancia o
próprio sentido de justiça das pessoas.
A terceira está mais para uma lembrança de que frequentemente nos esquecemos
do que para uma descoberta que ignorávamos. O sistema jurídico é que depende da
litigiosidade, não o contrário. Os litígios judiciais são um eficaz instrumento regulatório,
tanto quanto ou mais do que a lei e as políticas públicas. Um processo judicial abre para
o direito a oportunidade de discutir publicamente e deliberar sobre práticas e políticas
privadas e públicas concretas. A atividade legislativa oferece oportunidade semelhante,
mas não tem a vantagem de trabalhar sobre um cenário concreto. Seu potencial de regular
eficazmente a sociedade depende de um grau satisfatório de adesão voluntária aos
comandos abstratos. A jurisdição, diferentemente, contribui com a atividade regulatória
do Estado com uma eficácia potencial maior. E a litigiosidade é que lhe permite
desempenhar o papel que justifica a sua existência, suas despesas e o seu papel na
sociedade.
91
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
106
Ciente da advertência epistemológica de que qualquer descrição da “realidade” não passa de uma
representação, condicionada à visão do observador e moldado por seu discurso. A propósito, veja-se
explicação de Álvaro Pires (2014). A “realidade” da Justiça e do processo no Brasil apresentada neste
capítulo é construída a partir dos dados empíricos disponíveis e ganha este nome mais para se diferenciar
das categorias anteriores, da teoria e da lei, do que pela pretensão de exprimir em absoluto a realidade.
92
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Parece haver, portanto, uma discrepância entre o que nossas teorias e nossas leis
consideram como “acesso à justiça” e, por um lado, a profundidade com que o problema
é analisado em outras matrizes teóricas e, por outro, o perfil da resolução de disputas no
Brasil. Essa discrepância, eis meu argumento, parece interferir nas noções de “litigância
de massa”, “litigiosidade repetitiva” e fenômenos relacionados - comprometendo, assim,
o potencial da legislação e das políticas de justiça, criadas para as “combater” sem
compreendê-las suficientemente. O resultado vai desde a inaptidão dos atores do sistema
de justiça para lidar com os instrumentos da nova legislação até sua completa ineficácia
e baixa efetividade em termos de produção de justiça material107.
107
Qualquer política pública, legislativa ou não, provoca, além do seu efeito regulatório ordinário, um jogo
de incentivos e desincentivos a práticas consideradas desejadas e indesejadas. Aferir, por exemplo, se a
nossa legislação processual civil recente alcançará seus propósitos (se será “efetiva”, como dizemos em
teoria processual), depende de adotarmos uma referência comparativa de como é, atualmente, utilizada a
jurisdição e como são resolvidas as disputas na sociedade. Esse é um dos objetivos desse capítulo.
108
Parte relevante dos dados apresentados foram produzidos em pesquisas de que participei como
coordenador ou como pesquisador. Juntas, elas reproduzem uma linha de investigações que trilho desde
2004, aproximadamente, voltada a compreender os problemas da justiça brasileira e, com base neste
conhecimento, conjecturar proposições normativas em direito processual e organização judiciária. As
respectivas referências aparecerão ao longo da exposição.
93
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A seleção dos dados empíricos aqui apresentados, também não exaustiva, guiou-
se por algumas perguntas. Qual seria, afinal, o perfil da litigiosidade no Brasil? Que
disputas alcançam o nível da jurisdição oficial - e, portanto, comporiam o objeto da
regulação legislativa processual? Quem são os litigantes judiciais no Brasil? Quais são os
“jogadores habituais” e os “participantes eventuais”? Pensando no desenho do sistema,
como é o fluxo no “macrosistema formal e informal de resolução de disputas” no Brasil?
Que figura melhor o representaria? E, por fim, que elementos compõem nossas
experiências de “construção social da legalidade”? O que a população espera em termos
da justiça que se pode oferecer por meio dos métodos de solução de disputas? As
respostas que puderem ser ensaiadas para essas perguntas contribuirão para
identificarmos diretrizes e princípios adequados para regular os métodos de solução de
disputas no Brasil – objeto do capítulo final.
94
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
109
Eliane Junqueira (1996) explica como a ideia de pluralismo jurídico, em vez do estado de bem-estar
social, e os trabalhos de Boaventura de Souza Santos compuseram a matriz para as pesquisas sobre o acesso
à justiça e, com isso, a própria consolidação da sociologia jurídica no Brasil.
110
Exceção merecedora de nota é o estudo de Pinheiro Carneiro (1999) sobre o tema. Eliane Junqueira, em
1996, reconstruiu, de modo bastante esclarecedor, a trajetória do tema na sociologia do direito sem se
limitar a Cappelletti e Garth. Mais recentemente, o trabalho de Dierle Nunes e Ludmila Teixeira (2013).
Na literatura jurídico-processual, são inúmeros os trabalhos a respeito, alguns deles mencionados durante
o texto.
95
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
111
Por um encadeamento cronológico, os subitens deste capítulo invertem a ordem dos três elementos
representativos do nosso quadro de justiça: primeiramente a lei; em seguida, as teorias; e, novamente, as
leis mais recentes.
112
Para uma síntese de como o acesso à justiça influenciou a legislação de países de common law, civil law
e o Brasil, particularmente, inclusive com comentários sobre outros estudos do Projeto Florença além do
relatório geral traduzido e publicado Brasil, v. Pinheiro Carneiro (2003). Fernando Fontainha, em trabalho
de início de carreira, sob orientação de Leonardo Grecco (2002), analisou as contribuições de Cappelletti e
Garth a partir da situação da justiça no Brasil. Alexandre Veronese (2007) explica como o conceito e as
práticas nele baseadas foram apropriadas pelas instituições do sistema oficial de justiça. Mais recentemente,
Aluisio Mendes e Larissa Pochman da Silva (2015) oferecem uma leitura atualizada do trabalho de
Cappelletti e Garth.
113
Tradução livre. No original, “my work on Access to Justice with Mauro Cappelletti forty years ago seems
much more alive here in Brazil than in the United States” e ““every week the Gracie Northfleet translation
into Portuguese of the General Report of the Florence Access-to-Justice Project is cited at least a couple
of times in a new Brazilian article or book.” Garth (2016, p. 12-23).
96
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Brasil pode sugerir algo sobre o modo como nossa produção jurídica e nossas políticas
judiciárias compreenderam e trabalharam a ideia de “acesso à justiça”.
114
A mais recente parece ser a ideia de um ombudsman para a resolução interna de disputas no âmbito dos
grandes litigantes. A Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM) promoveu em 2014 uma
palestra do Professor de direito privado alemão Klaus Hopt sobre o sistema de ombudsman da associação
de bancos alemães, instituída em 1992 e que recebeu, em todo o período, 70 mil requerimentos, dos quais
4.141 foram admitidos e, desses, 50% foram considerados favoráveis aos clientes, 32,3% aos bancos e em
16,35% houve acordos. A admissão dos requerimentos feitos pelos clientes depende de prévia avaliação do
próprio setor bancário e o pronunciamento do ombudsman é vinculante aos bancos se a questão é de até
cinco mil euros. Até recentemente, os ombudsmen do sistema bancário alemão eram nomeados
exclusivamente pelos próprios bancos. Cf. http://www.enfam.jus.br/2014/02/ministros-stj-prestigiam-
conferencia-de-professor-alemao-sobre-ombudsman-de-bancos-privados/, acessada em outubro de 2017.
A ideia parece ter convencido os ministros do Superior Tribunal de Justiça presentes à apresentação. Em
janeiro de 2017, por ocasião do relançamento da Estratégia Nacional de Não Judicialização (ENAJUD),
um programa de não judicialização desenvolvido no âmbito do Ministério da Justiça, o Ministro João
Noronha destacou, entre os instrumentos extrajudiciais de solução de disputas, o ombudsman. <
http://www.justica.gov.br/noticias/lancamento-da-estrategia-de-nao-judicializacao-de-conflitos-reune-
setores-publico-e-privado>, acesso em novembro de 2017.
97
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
115
Segundo ele sintetiza, “a noção de acesso à justiça como atividade caritativa, como favor prestado aos
mais pobres única e exclusivamente no campo da litigância, do processo, e em especial na área penal, foi a
tônica dominante durante grande parte do século atual, que, nos países em desenvolvimento como o Brasil,
retrata o ideário do Estado Liberal (a igualdade meramente formal), tendo praticamente como ressalva única
de monta a criação da justiça do trabalho” (PINHEIRO CARNEIRO, 2003, p. 37). Vale registrar, a esse
respeito, a ponderação de Eliane Junqueira (1996, p. 390) de que o acesso à justiça no Brasil não focava no
atendimento dos direitos decorrentes do Estado de bem-estar social, mas de direitos sociais básicos ainda
não assegurados, como saúde e moradia. Diferentemente de Pinheiro Carneiro, que sugere tendências
similares na década de 1930, essa autora localiza o movimento propriamente chamado de acesso à justiça
a partir da década de 1970, identificando que, nesta época, moradia e saúde não eram, como ainda não são,
uma realidade para setores expressivos da população brasileira.
116
Na avaliação de Pinheiro Carneiro, “as normas da Carta de 1946 e todo o seu sistema de divisão de
poderes foram profundamente afetados por força de atos institucionais que se sucederam a partir de 9 de
abril de 1964, com o estabelecimento da ditadura militar no Brasil, que perdurou por vinte anos, com novos
retrocessos”. (PINHEIRO CARNEIRO, 2003, p. 39).
98
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
99
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
117
conceitual técnico-científico, estagnado no tempo” . Nem mesmo o “notável avanço
científico e apuro técnico do Código de Processo Civil de 1973”, segundo ele, teria sido
suficiente para reduzir as apontadas deficiências do nosso sistema de justiça. Ainda que
o tecnicismo seja considerado uma deficiência da legislação, o aperfeiçoamento técnico
processual tem sido o caminho inarredável para o acesso à justiça.118
A segunda e talvez mais relevante nota sobre nosso caminho rumo ao acesso à
justiça é a profusão de diferentes, não raro opostos, vetores valorativos ou
principiológicos na sequência de reformas. Algumas leis buscaram ampliar a cobertura
jurídica sobre interesses ou pessoas, enquanto outas tentaram simplificar procedimentos
e racionalizar os órgãos. Em princípio, não há qualquer incompatibilidade entre elas, mas,
com o tempo, a mesma lei que assegurava novos direitos e permitia a novos sujeitos os
reivindicarem à Justiça também lhes desviava a busca desses direitos para canais paralelos
e menos formais, nem sempre dotados do mesmo padrão de garantias processuais dos
métodos tradicionais – crítica que se fez à época aos juizados especiais e, mais
recentemente, à mediação judicial. A simplificação processual era justificativa suficiente
para essa opção legislativa e serviu como resposta implícita às críticas. Ampliar direitos
era um desejo tão legítimo quanto simplificar processos, embora na prática esta equação
nem sempre fosse compatível e, por isso, nem sempre resultasse nos níveis esperados de
efetividade.
117
Curioso notar que a correspondência com as conclusões de Carlin, Howard e Messinger (1966) e Marc
Galanter (1974) feitas no âmbito da literatura sociojurídica norte-americana décadas antes. A ligação entre
elas e o diagnóstico de mazelas da nossa teoria processual feito por Pinheiro Carneiro (2003) parece ser
mesmo, pela análise das suas referências bibliográficas, a obra de Cappelletti e Garth (1978 e 1988).
118
Apoiando-se em Barbosa Moreira, esse autor realça a convivência possível entre a busca da efetividade
e a apuração da boa técnica: “quando porventura nos pareça que a solução técnica de um problema elimina
ou reduz a efetividade dos processos, desconfiemos, primeiramente, de nós mesmos”, escreveu Barbosa
Moreira, anotado por Pinheiro Carneiro (2003, p. 43).
100
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
de valores potencialmente conflituantes: mais direitos vs. menos formas; mais litígios vs.
menor capacidade estrutural judiciária; mais poderes do juiz vs. maior delegação de
jurisdição119.
119
A questão da relação entre mais ou menos formalidades nos procedimentos judiciais e a maior ou menor
participação das pessoas nos processos é uma das mais delicadas questões para o desenho de políticas
judiciárias. Na perspectiva de Cappelletti e Garth, menos formalidades é um caminho para o acesso à
justiça. Mas isso nem sempre é verdadeiro, sobretudo nos casos em que a disputa envolve partes em situação
de assimetria e a forma pode servir para equaliza-las de algum modo, protegendo a parte em situação
vulnerável. Por outro lado, as formalidades processuais privilegiam o acesso daqueles atores com
conhecimento técnico mais apurado. Os dados sobre os juizados especiais cíveis e federais, apresentados
no final deste capítulo, servirão para ilustrar um pouco mais essa complexa discussão. Para um aprofundado
debate sobre as vantagens e principalmente as desvantagens do informalismo na resolução de disputas, ver
a clássica coletânea organizada em dois volumes por Richard Abel, “The Politics of Informal Justice”,
Nova Iorque, Academic Press, 1981 (ABEL, 1981a) .
120
Instituída, como se dizia, como forma de inverter o ônus do tempo do processo em favor da parte que
aparentava ter razão, o mecanismo passou a ser utilizado com tal frequência que a litigância judicial se
resumia quase que exclusivamente a uma disputa por decisões liminares e efeitos suspensivos de agravos
de instrumento – o que produziu efeitos contrários inclusive do ponto de vista da celeridade, dado o aumento
exponencial do volume de recursos desse tipo nos tribunais.
101
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
bastante sentida pouco tempo depois: o acúmulo de processos nas varas e tribunais. A
essa altura, porém, as ideias originais sobre o acesso à justiça já não teriam o mesmo
espaço nos debates legislativos. Quando muito, o termo serviria como recurso teórico de
novas propostas, já bastante esvaziado do seu sentido original.
121
A recuperação do papel da cidadania no acesso à justiça é objeto do trabalho de Marjorie Corrêa Marona,
tese de doutoramento apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais sob orientação do professor
Leonardo Avritzer. Além de devolver ao conceito o componente emancipatório politico, o trabalho expõe
as limitações da concepção jurídico formal liberal e invoca o elemento da localização espacial como
componente do acesso à justiça – por meio do uso da técnica das cartografias. Cf. MARONA, M. C. (2013)
Acesso à qual justiça: a construção da cidadania para além da concepção liberal. Tese de Doutoramento,
Universidade Federal de Minas Gerais (orientação Leonardo Avritzer).
122
Segundo define Sally Marry, pluralismo é “uma situação em que dois ou mais sistemas jurídicos
coexistem no mesmo campo social.” (no original, a situation in which two or more legal systems coexist in
the same social field; p. 870). O pluralismo jurídico é um conceito desenvolvido a partir da constatação
empírica de que, paralelamente aos sistemas jurídicos oficiais, a sociedade, nos seus mais ou menos amplos
campos, cria e estabelece autonomamente regras de convivência. O dado curioso nas pesquisas é que, não
raro, essas regras se sobrepõem às oficiais. Nos EUA, o clássico estudo de S. Macaulay sobre os contratos
informais da cadeia do setor automobilístico evidenciou que, para eles, o direito, inclusive os contratos
formais, eram um instrumento regulatório distante e não utilizado, ao passo que as negociações informais,
inclusive comprometimentos verbais e simbólicos, detinham muito mais eficácia regulatória
(MACAULAY, 1963). No Brasil, os estudos de Boaventura de Souza Santos sobre o “direito” aplicado nas
comunidades de favelas no Rio de Janeiro também se situa na linha do pluralismo jurídico (SANTOS,
1977).
102
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
123
Exemplificativamente, os estudos de casos em invasões urbanas no Rio de Janeiro (SANTOS, 1977) e
Recife (FALCÃO, 1984). Mais referências em Junqueira, 1996.
124
Vale menção o argumento de Nunes e Teixeira (2013, p. 48) de que, em verdade, “muitas dessas
“novidades, aliás, já povoavam nosso universo jurídico bem antes que uma palavra sobre o acesso fosse
pronunciada em solo brasileiro.” Ideias representadas por expressões como “interesse público” e
“finalidade social da lei” já compunham o discurso jurídico desde a década de 1930, de modo que o papel
intervencionista e socialmente comprometido da jurisdição, presentes no ideário de acesso à justiça, já eram
conhecidas.
125
A base de dados de periódicos Iusdata, organizada pela Faculdade de Direito da USP, indica um total
de 257 ocorrências de artigos cujos títulos contem o termo “acesso à justiça”. Este número cresce
consideravelmente, para 696 ocorrências, se considerado o termo como “assunto” dos artigos.
126
Evidente que um outro determinante fator afeta esta análise: o próprio aumento na produção de artigos
jurídicos no período. A análise que se faz desses dados, portanto, serve a uma visão geral e aproximada da
importância do tema na produção jurídica nacional, mas não deve ser tomado como medição precisa, o que
não é objeto deste estudo.
103
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Q u a n t i a d e a r t i g o s j u r í d i c o s c o m " a c e s s o à j u s t i ç a "
n o t í t u l o , n o I U S D A T A / F D U S P , e n t r e 1 9 8 5 e 2 0 1 5
20
15
10
0
1 9 8 51 9 8 71 9 8 91 9 9 11 9 9 31 9 9 51 9 9 71 9 9 92 0 0 12 0 0 32 0 0 52 0 0 72 0 0 92 0 1 12 0 1 32 0 1 5
104
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
acesso à justiça
direito processual
justiça do trabalho
interesses coletivos
cidadania
partes vulneráveis
juizados especiais
Defensoria Pública
conciliação
informatização/proc. eletrônico
direitos humanos
custas judiciais
tutelas de urgência
garantias processuais
assistência judiciária
morosidade processual
meio ambiente
MASCs
juízes e tribunais
direito penal
consumidores
advocacia pública
processo e ideologia
processo de execução
principios constitucionais
Ministério Público
ensino e pesquisa
efetividade do processo
arbitragem
jurísprudência
igualdade e inclusão
direitos fundamentais
América Latina
urbanismo
reforma do Judiciário
processo do trabalho
poder público
Poder Judiciário
democracia
terceiro setor
segurança pública
processo administrativo
litigiosidade repetitiva
justiça eleitoral
ética
direito previdenciário
direito constitucional
direito concorrencial
cooper. internacional
controle de constitucionalidade
0 5 10 15 20 25 30
Fonte: elaboração própria com dados do Iusdata/FDUSP
Nas ciências sociais em geral, a variação temática também existe, mas é menor127
e apresenta diferenças importantes: são mais frequentes os temas ligados a aspectos
127
A busca, nesse caso, foi realizada na base de dados do sistema integrado de bibliotecas de toda a
Universidade de São Paulo (Sibi/USP) e apontou a quantia de 256 trabalhos (artigos e outros materiais)
105
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
acesso à justiça
justiça
assistência judiciária
direito processual civil
cidadania
direitos humanos
direito
Poder Judiciário
direito constituicional
direitos fundamentais
efetividade
arbitragem
administração da Justiça
solução de conflitos
sistema judiciário
Ministério Público
direitos e garantias individuais
acesso aos tribunais
psicologia social
psicologia forense
interesse coletivo
Interdisciplinaridade
desigualdades sociais
bioética
serviços farmacêuticos
0 20 40 60 80 100
Fonte: elaboração própria com dados do Sibi/USP
com o tema “acesso à justiça” nos seus títulos. Excluídas as ocorrências disponíveis nas bibliotecas das
faculdades de direito (objeto do gráfico anterior), a quantidade total cai para 186 trabalhos. As bases são
diferentes e organizadas de modos diferentes, o que explica por que, no caso, a base do sistema integrado
de bibliotecas, que contempla a base da faculdade de direito, apresenta menos ocorrências (256) do que as
da base da própria faculdade de direito (257). Além da importância que ganhou o tema no Brasil, esse dado
confirma que a discussão está longe de ser exclusivamente jurídica – como, aliás, sugeriram as referências
usadas por Cappelletti e Garth (v. cap. 1).
106
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
128
Enquanto em outros sistemas jurídicos, o acesso à justiça nasce impulsionado pela efetivação dos direitos
sociais - típica do Estado de bem-estar social, como explicam Cappelletti e Garth (1988) -, no Brasil a
motivação seria a proteção a direitos sociais básicos, como moradia e saúde (JUNQUEIRA, 1996).
107
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
tempo depois, reformas legislativas criaram estruturas judiciárias menos formais e mais
abertas a demanda desses estratos sociais, cujo exemplo mais significativo são os juizados
informais de conciliação (JICs, anos 1980), expandidos para os juizados de pequenas
causas (1984) e, então, convertidos nos juizados especiais cíveis e criminais (Lei
9.099/95), que alteraram o perfil da litigância judicial no país (v. item 3.3, infra).
129
Merece atenção a relação que Nunes e Teixeira (2013, p. 52) fazem entre a vertente intervencionista e
de comprometimento social identificada no ideário de acesso à justiça e a corrente metodológica
instrumentalista formada na teoria processual, segundo os autores, “marco predileto dos estudos que
envolvem o acesso à justiça no Brasil”. Há premissas comuns em ambas linhas teóricas, como o papel mais
ativo do juiz e o escopo socio-político-jurídico da jurisdição. A preocupação exclusiva com “celeridade”,
“efetividade” e desformalização”, que os autores imputam ao instrumentalismo, não parece descrever a
totalidade da corrente e também não compõe a linha teórica do acesso à justiça, como mostrará a segunda
parte deste capítulo. A perspectiva instrumentalista chama a atenção para a importância do processo se
preocupar com a o direito material e, assim, com algo mais próximo de justiça substancial do que as formas
jurídicas. E acesso à justiça nasceu de uma preocupação com a desigualdade social projetada sobre a Justiça.
É possível, eis meu argumento neste capítulo, que o modo como ambas suas premissas foram assimiladas
no discurso e políticas judiciárias privilegiou seu caráter institucional, o que explicaria a preocupação quase
exclusiva com o funcionamento do sistema de justiça.
130
Nunes e Teixeira (2013, p. 52) transcrevem esclarecedor argumento de Calmon de Passos a este respeito:
“A pergunta que cumpria fosse feita – quais as causas reais da crise do Judiciário – jamais foi formulada.
Apenas se indagava - o que fazer para nos libertarmos da pletora de feitos e de recursos que nos sufoca?”
Sua crítica é dirigida à instrumentalidade do processo, o que não é objeto de discussão neste estudo. Mas a
sua perspicaz ponderação vale muito a atenção.
108
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O novo CPC (Lei 13.105/2015), junto com a Lei de Mediação (LM, Lei
13.140/2015), podem ter conferido nova feição à litigância judicial no Brasil. Eles
representam a mais recente etapa de um trajeto de quatro décadas de tentativas de
aprimorar a atividade jurisdicional e equacionar o acesso à justiça no país132. E talvez seja
uma das mais significativas. Embora a maior parte do Código e a sua estrutura geral não
tenham sofrido alterações substanciais (ALVES DA SILVA, 2015), é inegável que suas
novidades determinarão como será, a partir de agora, a resolução formal de conflitos
cíveis no país. Resta saber sobre as suas implicações para a realização do acesso à justiça,
uma pergunta um tanto atropelada nos debates legislativos que antecederam as mudanças.
131
Na década de 2000 é a vez da reforma dos procedimentos executivos, pelas Leis 11.232/05 e 11.382/06,
que consagraram o modelo executivo inaugurado em 1994 (direto e integrado de medidas de coerção) ao
estenderem-no aos ritos da execução por quantia. V. Alves da Silva (2006).
132
É certo que a Lei de Mediação é uma manifestação evidente da “segunda onda” de acesso à justiça e
integra o mesmo movimento recente de reforma da Justiça brasileira, o que justificaria que este capítulo se
dedicasse a analisa-la. Opto, contudo, por não a analisar neste item. Os artigos do CPC que admitem e
estimulam a resolução consensual de conflitos são suficientes, aqui, para apresentar a tendência de
resolução consensual. O capítulo 3 apresentará alguns aspectos da Lei de Mediação.
133
No texto do CPC, contam-se 6 (seis) ocorrências, indiretas, ao termo “acesso à justiça”, sendo que apenas
1 (uma) no texto da Exposição de Motivos, 1 (uma) nos Considerando do Ato que institui a Comissão, 1
(uma) no curriculum de um dos membros da Comissão que elaborou o Anteprojeto e 3 (três) como menções
por oradores que participaram das audiências publicas.
109
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
134
Seguindo orientação da literatura especializada, como já explicado previamente neste trabalho, uso
“justiça”, em minúsculo, para designar o valor, o bem, o ideal de justiça. E “Justiça”, em maiúsculo, para
designar o Poder Judiciário ou, mais genericamente, o sistema organizado de justiça.
135
“Trata-se, portanto, de mais um passo decisivo para afastar os obstáculos para o acesso à Justiça, a que
comumente se alude, isto é, a duração do processo, seu alto custo e a excessiva formalidade.” Exposição
de Motivos do NCPC, pagina 14, nota de rodapé n. 8.
136
O argumento da “explosão de litigiosidade” como fator impeditivo da universalização do acesso à justiça
é antigo. O discurso de Warren Burger (1982) na década de 1980 já o anunciava para justificar o
“retrenchment” frente à era dos direitos civis que marcou o período anterior. Não faltam estudos
evidenciando a fragilidade do argumento (v.g., GALANTER, 1983; SARAT, 1984; GALANTER, 1986);
outros mais recentes situam-no historicamente em um movimento mais amplo de mudanças no perfil e
atuação do Estado e funcionamento das organizações (MATTEI, 2007; MORRIL, 2017).
110
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Nunes e Teixeira (2013, p. 128), com apoio de Mattei (2007), “dos escombros de uma
responsabilidade estatal abandonada, a temática [do acesso à justiça] ressurge sob a
insígna da “crise da eficiência”.
137
Em clara referência à obra Instituições de direito processual civil de Dinamarco (2009).
138
A Exposição faz referência a Dinamarco e Barbosa Moreira: “Atentando para a advertência, acertada,
de que não o processo, além de produzir um resultado justo, precisa ser justo em si mesmo, e portanto, na
sua realização, devem ser observados aqueles standards previstos na Constituição Federal, que constituem
desdobramento da garantia do due process of law (DINAMARCO, 2009)”, nota de rodapé n. 6 da
Exposição de Motivos do Código. “Lembrando, com BARBOSA MOREIRA (2001), que “não se promove
uma sociedade mais justa, ao menos primariamente, por obra do aparelho judicial. É todo o edifício, desde
as fundações, que para tanto precisa ser revisto e reformado. Pelo prisma jurídico, a tarefa básica inscreve-
se no plano do direito material” (Por um processo socialmente efetivo, p. 181)”, nota de rodapé n. 7 da
Exposição de Motivos.
111
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Em linhas gerais, quatro aspectos parecem caracterizar este Código, e, com isso,
contribuir com o tipo de acesso à justiça que ele privilegia: a redistribuição de tarefas
entre juiz e partes; a diversificação da tutela entre decisões e acordos; a ênfase na
instrumentalidade das formas; e o papel atribuído à jurisprudência. Respectivamente, o
código horizontaliza a relação juiz-partes, consagra a tutela jurisdicional prestada por
meio de acordos, reduz consideravelmente o papel das formas e expande drasticamente o
efeito vinculante de decisões de tribunais.142 Explico-os a seguir.
139
Fernando Cais (2016) identifica o dilema como o “paradoxo do acesso à justiça”.
140
Os dados sobre volume de processos nos tribunais, que analisaremos mais adiante, reforçam este
argumento.
141
Se isso é verdade, recai sobre a ciência jurídica a incumbência de tentar entender as nuances e
implicações desta mudança de rumos. E, particularmente, ao direito processual perguntar-se se, afinal, a
nova legislação mantém, amplia ou restringe o acesso à justiça no país e o que isso implica em médio e
longo prazo para o perfil da jurisdição e do processo no país.
142
A Exposição de Motivos do Código apresenta-o por meio de outros objetivos da Comissão que elaborou
o primeiro texto: “1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição
112
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Se, como diz Barbosa Moreira (1989), o direito processual regula a “divisão de
trabalho entre as partes e o juiz”, parece-me relevante que o código tenha redimensionado
a relação entre eles, reposicionando seus poderes, deveres, ônus e faculdades processuais.
Geometricamente, uma figura triangular é usada para representar a relação jurídica
processual desde que identificada na origem da ciência processual alemã (BULLOW,
1868). Durante o século XX, o polo que ocupa o vértice do triângulo processual ganhou
proeminência por meio de leis que valorizaram a atuação e os poderes do juiz –
compondo, então, um triângulo do tipo isósceles. No novo CPC, a figura que representa
a relação processual seria a de um triângulo quase equilátero, em que o protagonismo
processual é compartilhado entre juiz e partes.
Federal; 2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática
subjacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas,
como, por exemplo, o recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo
considerado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização
daqueles mencionados antes, imprimir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais
coesão”. Esses objetivos também servem para caracterizar o novo Código. Opto, contudo pelos elementos
apresentados no texto porque entendo que representam melhor o resultado final do texto, enquanto esses
representam os objetivos quando da elaboração do texto. De todo modo, como se verá, há boa dose de
correspondência entre as duas listas.
113
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
ser o padrão exclusivo de provimento jurisdicional e passa a dividir esse papel, ao menos
na lei, com as declarações privadas de direitos e obrigações derivadas de acordos de
vontade. E essa solução consensual, que comumente é responsabilidade das partes e seus
advogados, passa a ser incumbência também do Estado, do juiz e de todos atores do
sistema, a quem cabe promovê-la e estimulá-la (arts. 2o e 3o do NCPC).
114
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
de 2000 com as súmulas vinculantes e impeditivas de recursos, mas que eram até então
excepcionais (entre todos, arts. 926 e 927).
Entre essas quatro características do novo CPC, duas não são exatamente
estranhas à visão de acesso à justiça proposta por Cappelletti e Garth (1988). O sistema
multiportas de resolução de conflitos e a desformalização dos procedimentos compunham
o repertório de experiências narradas no Projeto Florença e integravam respectivamente
a segunda e terceira ‘ondas’. Produzir justiça por meio de acordos e flexibilização das
formas já eram recomendações da época para promover o acesso à justiça. Por outro lado,
a primeira e última tendências acima destacadas – redistribuição da condução do processo
do juiz às partes e padronização dos julgamentos – parecem divergir do que aqueles
autores entendiam como acesso à justiça. Como discutido no capítulo anterior, o
incremento dos poderes do juiz no processo, bem diferentes no modelo de civil law e no
de common law, e o ativismo judicial eram o principal caminho para promoção do acesso
à justiça em Cappelletti e Garth (cf. cap. 1). Quanto à segurança jurídica e valorização da
jurisprudência, embora se possa argumentar que estivem presentes em Cappelletti e
Garth, não desfrutavam do protagonismo que lhes foi conferido pela legislação processual
atual.
115
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
143
Um dos mais ilustrativos exemplos são as dezenas de milhares de ações propostas, nos anos 2000, para
impedir a cobrança de tarifa básica de assinatura de telefonia fixa. Naquela ocasião, o STJ chegou a discutir
a possibilidade de suspensão das ações individuais para processamento de uma única, ou algumas, ações
coletivas, o que se entendeu impossível por violar, em ultima análise, o princípio dispositivo e a inércia
jurisdicional. Houve muitos recursos nos tribunais sobre esses casos; indico, exemplificativamente, o RESP
n. 911.802/RS.
144
Objetivo, aliás, que é do processo coletivo em geral, direcionado ao tratamento “molecularizado” das
demandas, em lugar do tratamento “atomizado”.
116
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Um dos controles que se pode ter sobre o grau de efetividade alcançado por uma
alteração legislativa é feito no momento de sua concepção, a partir da qualidade técnica
da proposta e dos argumentos que justificam a inovação. Trata-se, neste caso, de um
controle abstrato, pelo cotejamento do perfil da inovação implantada aos objetivos que se
deseja alcançar. Não se sabe, ao certo, como funcionarão os novos mecanismos e nem se
145
Exposição de Motivos do Comissão do Anteprojeto de Lei, p. 3 (BRASIL, 2010).
117
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
conseguirão ser de fato internalizados nas práticas existentes. Algumas novas leis, não
raro, sequer se efetivam socialmente.
Um outro tipo de controle sobre efetividade legislativa pode ser exercido a partir
de algum contexto fático de que se dispõe naquele momento. Via de regra, este
cotejamento é feito a partir de experiências já construídas em outros sistemas jurídicos
que os tenham implantado anteriormente. Trata-se de uma análise de traço empírico, mas,
especificamente, com predominante viés histórico comparativo, que projeta os resultados
da inovação a partir de outros contextos temporais e espaciais. Nesses casos, segundo
recomendação doutrinária qualificada, há sempre o risco de “rejeição do transplante” pelo
novo organismo no qual a inovação é implantada (BARBOSA MOREIRA, 2004). Entre
a imprecisão das projeções hipotético-abstratas e o “risco de rejeição” das análises
histórico-comparativas, o cotejamento feito a partir das características do próprio sistema
em que a nova lei será implantada parece uma excelente opção. Há, ainda aqui, uma
projeção de cenário típica das análises abstratas, somada ao olhar empírico do exame
histórico-comparativo. Mas há também uma determinante diferença: o contexto fático
sobre o qual incide a análise abstrata é composto das características do próprio sistema
em que a inovação será implantada - um transplante interno, do próprio “organismo” que
receberá o transplante.
118
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Ocorre que esses dados ainda não captam toda a complexidade que envolve o
problema da justiça no Brasil e as políticas neles baseadas, além de parciais, tem eficácia
limitada no tempo. Em geral, seus efeitos são de ordem quantitativa, com resultados
menores, senão opostos, do ponto de vista da qualidade das decisões; e se concentram nas
fases imediatamente seguintes à da implantação, com redução do seu potencial nos anos
seguintes (ALVES DA SILVA, 2014). Os programas de metas de desempenho, por
exemplo, surtiram o desejável aumento sequencial da produtividade dos magistrados
(CNJ, 2016), resultado estacionou em 2016 e não acompanhou o aumento da entrada de
processos (CNJ, 2017)148. Com isso, a previsão atual, a despeito dessas políticas, ainda é
de piora no quadro geral - estabilização da produtividade, aumento da demanda, leve
aumento do estoque e do congestionamento, manutenção da duração dos processos. Na
melhor hipótese, o quadro de “crise da justiça” permaneceria inabalado.
146
Dados sobre quantidade de advogados do país conforme o Cadastro Nacional de Advogados da OAB,
segundo notícia divulgada no portal Consultor Jurídico, em 18 de novembro de 2016: “Total de advogados
no Brasil chega a 1 milhão, segundo a OAB”, <https://www.conjur.com.br/2016-nov-18/total-advogados-
brasil-chega-milhao-segundo-oab>, acesso em novembro de 2017. A quantia de 1.240 faculdades de direito
no país foi apresentada em 2010 pelo então Conselheiro do CNJ Jefferson Kravchychyn, segundo noticiado
no blog de notícias jurídicas “Leis e Negócios”, de Marina Diana
<http://leisenegocios.ig.com.br/index.php/2010/10/13/brasil-e-campeao-em-faculdades-de-direito/>,
acesso em Novembro de 2017. O portal do Guia do Estudante reproduz o número em 16/05/2017: “Brasil
tem mais cursos de Direito do que todos os outros países do mundo juntos”,
<https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/brasil-tem-mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-
outros-paises-do-mundo-juntos/>, acesso em novembro de 2017.
147
Informações em <"http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/sobre-as-metas">, acesso em
outubro de 2017.
148
Na edição de 2017 do Justiça em Números, a produtividade de juízes caiu levemente, mas a de servidores
aumentou. Também aumentou o volume de processos entrados (CNJ, 2017).
149
Infelizmente, esse não é o tipo de dado que se se tem priorizado produzir no Brasil. Os dados oficiais de
que dispomos atualmente, porque seguem padrões internacionais de organização de dados sobre tribunais,
119
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
saber mais sobre como disputas nascem na sociedade e desaguam na forma de processos
nos tribunais, sobre o perfil dos conflitos submetidos à apreciação judicial no Brasil e o
comportamento dos litigantes envolvidos e, mais amplamente, o que a população espera
e como ela vê o sistema de justiça no Brasil. As respostas, embora não sejam absolutas
nem uniformes, ajudariam a compor um quadro esclarecedor dos limites e do potencial
das políticas judiciárias, inclusive e especialmente da nova legislação processual em vigor
no Brasil150.
priorizam informações sobre insumos e produção, geralmente de natureza quantitativa, com pouco
detalhamento sobre a natureza das disputas em trâmite na Justiça brasileira, e menos ainda sobre as pessoas
que protagonizam esses processos.
150
Ainda que parcial, descontínuo ou eventualmente incoerente, essas respostas oferecem um quadro muito
mais rico, nítido e cientificamente confiável do que impressões gerais traçadas sem tanto critério a partir
de pontos de vistas singulares – o tal do “achismo” ou o “impressionismo”, como se costuma classifica-las.
Como sempre advertira Barbosa Moreira, “o impressionismo, que na arte frutos saborosíssimos, em direito
é uma das piores pragas que devemos temer” (2004, p. 12)
151
Uma perspectiva de análise situada, portanto, um ou dois passos mais ampla do que a que olha apenas
para processos judiciais. Cf. excelente discussão sobre métodos de medir o acesso à justiça no Brasil em
Oliveira e Cunha, 2016.
120
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Neste estudo, a seleção dos dados e a estrutura da exposição são adaptados para
privilegiar o que Sandefur (2008) chamou de perspectiva bottom up (de baixo para cima)
de análise do acesso à justiça: ênfase em dados sobre disputas e litigantes, em detrimento
dos dados sobre estrutura e funcionamento do sistema (v. cap. 1). Serão privilegiados os
dados sobre a natureza das demandas judiciais, o perfil dos conflitos e dos litigantes, as
preferências dos atores do sistema quanto ao uso de diferentes instrumentos processuais
e a estrutura e movimentação judiciária.
Uma explicação sobre a litigiosidade no Brasil que tem ganho crescente atenção
no debate teórico e que parece ter sido reconhecida pela nova legislação processual é a
de que a sociedade brasileira recorreria, além do que seria razoável, à intervenção judicial
para resolver suas disputas de interesses e direitos152, e que o sistema oficial de justiça
não teria capacidade de atender a essa demanda. O argumento parece plausível do ponto
152
Como tem sido bastante repetido recentemente, caracterizamo-nos no Brasil como uma cultura jurídica
de litigância, dependente da sentença judicial – a chamada “cultura da sentença”, como magistralmente
sintetizou Kazuo Watanabe (2005).
121
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Por outro lado, haverá sempre o risco de que, se o nível de resiliência diante de
situações de conflito for muito grande, a própria sociedade pode vir a colapsar, diante de
um insuportável desarranjo de relações sociais e jurídicas materiais. Há menos dados
concretos para atestar a veracidade dessa tese, sobretudo quanto à Justiça brasileira, mas
também é muito difícil argumentar que ele seja improvável. As regras mais básicas de
convivência social se ancoram nessa premissa. E não é de outra fonte em que nasce e se
legitima a própria ideia de acesso à justiça. As políticas judiciárias das décadas de 1980
e 1990 reconheceram o risco do colapso de integração social, como denotam os discursos
que reivindicavam a “redução da litigiosidade contida” (WATANABE, 1985).
153
Projeção dinâmica da população do Brasil e das unidades da Federação. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/, acesso em 19 de julho de 2017, 12:37hs.
154
Informações do site <empresometro.com.br> , acesso em agosto de 2017.
122
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
155
IBGE, “Justiça e vitimização”. In: PARTICIPAÇÃO político-social 1988: Brasil e grandes regiões, Rio
de Janeiro: IBGE, 1990, v.1. Pesquisa Suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio
de Janeiro: IBGE, 1990. v. 1. Pesquisa Suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. A
edição de 2009 pesquisou pouco menos de 400 mil pessoas em quase 154 mil domicílios e, como na edição
anterior, as perguntas específicas desse suplemento buscavam identificar se alguém daquele domicílio,
maior de 18 anos de idade, se envolvera em alguma situação de conflito nos cinco anos anteriores (de 2004
a 2009) e, se sim, que tipo de conflito e quais os encaminhamentos dados e soluções. De modo geral, trata-
se de levantamento de tipo similar àqueles elaborados na transição para a década de 1980 no âmbito do
Civil Litigation Research Project, cujos dados foram apresentados no capítulo 1.
123
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
15,9
15,9
15,4
14,4
13,7
12,7
11,6
11,3
11,3
11,3
11,1
10,9
10,9
10,7
10,5
10,5
10,2
10,0
9,9
9,7
9,6
9,6
9,4
9,4
9,2
9,0
9,0
8,6
8,5
8,3
8,2
8,2
7,7
7,4
7,4
7,0
6,6
6,4
6,3
5,6
5,3
4,3
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2010.
Ao analisar a existência de conflito segundo as faixas de rendimento mensal
domiciliar per capita, verificou-se que nas faixas mais altas estavam os maiores
percentuais de pessoas que tiveram situação de conflito no período. Entre aqueles
Interessante conclusão foi a de que políticas de incentivo ao acesso de grupos
com rendimento inferior a ¼ do salário mínimo, o percentual foi de 8,3%; na faixa
específicos
de 4 a àmenos
justiçadepodem alterar
5 salários esse quadro.
mínimos, foi de O efeito
14,1% da renda,
e acima de 5em geral similar
salários mínimos,ao oda
percentual atingiu 15,9%. Destaca-se, ainda, que os domicílios com rendimento acima
escolaridade, apresenta
de 5 salários mínimosvariações que sugerem
apresentaram a eficácia
os maiores de políticas
percentuais de acesso
de pessoas à justiça.
que tiveram
em situação de conflito em todas as regiões. Na Região Nordeste chegou a 18,4%.
15,9
15,9
15,4
14,4
respondendo por 15,9% dos conflitos (entre 12,3% no Norte a 18,4% no Nordeste) –
13,7
12,7
11,6
11,3
11,3
11,3
11,1
10,9
10,9
grupo que tradicionalmente coincide com os grupos de maior renda. Contrariamente,
10,7
10,5
10,5
10,2
10,0
9,9
9,7
9,6
9,6
9,4
9,4
9,2
9,0
9,0
8,6
8,5
8,3
8,2
8,2
pessoas com menor renda são as que menos litigam, mesmo descontadas as diferenças
7,7
7,4
7,4
7,0
6,6
6,4
6,3
5,6
5,3
regionais. No Norte e Nordeste, a menor representação é o grupo sem renda (até ¼ do
4,3
salário mínimo; 5,4%), ao passo que no Sudeste, no Sul e no Centro Oeste, a menor
representação
Brasil é de dois grupos,
Norte de renda entre 1 a 2Sudeste
Nordeste salários e de renda
Sul entre 2Centro-Oeste
a 3 salários.
Sem instrução Médio completo ou equivalente
Ocorre que, e eis a diferença de destaque, a posição
Fundamental incompleto ou equivalente
do grupo do extremo oposto,
Superior incompleto ou equivalente
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
de 4 ou acima de 5 salários mínimos). A explicação mais provável parece ligada ao efeito
Ao analisar a existência de conflito segundo as faixas de rendimento mensal
das políticas de incentivo ao acesso à justiça direcionadas a estratos sociais específicos,
domiciliar per capita, verificou-se que nas faixas mais altas estavam os maiores
como as de assistência
percentuais judiciária
de pessoas gratuita.situação
que tiveram A facilitação do acesso
de confl à justiça aEntre
ito no período. esse aqueles
estrato
com rendimento inferior a ¼ do salário mínimo, o percentual foi de 8,3%; na faixa
da população teria permitido a canalização de uma demanda anteriormente reprimida por
de 4 a menos de 5 salários mínimos, foi de 14,1% e acima de 5 salários mínimos, o
deficiente educação
percentual atingiue 15,9%.
baixa renda. A figura
Destaca-se, abaixo
ainda, quedetalha o envolvimento
os domicílios em conflitos
com rendimento acima
de 5 salários mínimos apresentaram os maiores percentuais de pessoas que tiveram
conforme a renda média dos respondentes.
em situação de conflito em todas as regiões. Na Região Nordeste chegou a 18,4%.
16,8
16,6
15,9
15,5
15,1
15,2
15,0
14,1
14,0
14,0
13,1
13,0
12,9
12,7
12,7
12,5
12,3
11,9
11,8
11,7
11,4
11,2
11,0
10,8
10,5
10,2
10,2
10,1
9,7
9,4
9,5
9,1
9,0
8,9
8,7
8,7
8,6
8,3
8,0
8,0
7,3
7,1
6,8
6,5
5,8
5,5
5,4
Fonte:
Fonte: IBGE, IBGE,
Diretoria PesquisaCoordenação
de Pesquisas, Nacional por Amostra
de Trabalho de Domicílio,
e Rendimento, 2010.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Nota: Exclusive as pessoas cuja condição na unidade domiciliar era pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado
doméstico.
(1) Inclusive as pessoas moradoras em unidades domiciliares cujos componentes recebiam somente em benefícios.
125
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Os dados também confirmam, como foi dito, que políticas judiciárias podem
afetar a capacidade de as pessoas mobilizarem seus direitos e, portanto, o quadro geral de
litigiosidade. Políticas de assistência judiciária à população carente, por exemplo,
aparentemente promoveram algum equilíbrio ao desigual acesso à justiça que os dados
apontam existir. Contrariamente, eventuais políticas no sentido inverso, como a restrição
à assistência judiciária, poderiam neutralizar os ganhos obtidos.
156
Características que parecem diferenciar as capacidades das pessoas de diferentes estratos sociais
identificarem determinados fatos como violações de direitos, como sugerido pelos estudos sobre o “naming,
blaming and claiming”, de Felstiner, Abel e Sarat (1980), apresentado no item 3.2 do capítulo anterior.
157
Há diversos estudos sobre a questão. Destaco, mais recentemente, o “Litigation as a Measure of Well-
Being”, de T. Eisenberg, S. Kalantry e N. Robinson, com as referências nele incluídas (2013).
158
No âmbito criminal, os dados sobre vitimização e segurança confirmam haver uma relação entre
qualidade da parte e o tipo de disputa: roubos e furtos atingem mais pessoas mais jovens e com mais renda;
a agressão física vitimiza, em grau consideravelmente maior, jovens, negros e população sem rendimentos
(PNAD, 2009).
126
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
No Brasil, temos alguns estudos a esse respeito. Recorro a três tipos: aqueles
sobre confiança na Justiça (FGV, 2016159 e IPEA, 2010 e 2011160); outros sobre respeito
à lei (FGV, 2015161); e os que apontam os motivos para a escolha do Judiciário
159
Índice de Percepção da Confiança na Justiça (ICJ), realizado periodicamente pela FGV. Os dados aqui
apresentados são do relatório do 1o semestre de 2016 (FGV, 2016) e, em alguns casos indicados no texto,
do relatório do 2o semestre de 2015 (FGV, 2015).
160
“Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) - Justiça”, publicado pelo IPEA em 2010 e 2011.
Os dados aqui apresentados são de ambos os relatórios, IPEA, 2010 e IPEA, 2011.
161
Relatório IPCL/FGV, 2015 - “Índice de Percepção e Confiança na Lei”. Os dados aqui utilizados são do
relatório do 1o semestre de 2015 (FGV, 2015)
127
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
162
Suplemento “Vitimização e Acesso à justiça” na edição de 2010 da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio, PNAD, do IBGE. Dados desse relatório foram apresentados no item 2 deste mesmo capítulo.
128
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
129
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A experiência prévia com o Judiciário, por sua vez, parece sim afetar a percepção
e o comportamento das pessoas. Embora haja alguma divergência quanto a isso, os dados
atuais sugerem que as pessoas que já utilizaram o Judiciário têm mais confiança e
recorrem a ele mais facilmente do que os que nunca o utilizaram. Na edição de 2015 do
relatório (FGV, 2015), o índice de confiança é maior entre aqueles que já participaram de
processos judiciais (4,7 contra 4,1/10). E o comportamento consistente em recorrer ao
Judiciário para resolver os conflitos também é maior entre aqueles que já o utilizaram
previamente (8,5 contra 8,1). Inclusive a opinião da população sobre a Justiça também é
maior dentre aqueles que já o utilizaram (3,0 contra 2,4). No comparativo do gráfico
abaixo, os três índices são maiores entre os que já utilizaram o Poder Judiciário163.
163
É certo que, por outro lado, o relatório “SIPS-Justiça” do IPEA (2010) aponta o oposto: a nota geral
dada à Justiça brasileira é maior entre aqueles que nunca a utilizaram (4,86) e, entre aqueles que já a
utilizaram, é maior entre os que figuraram como réus (4,43) do que entre os autores (3,79) dos processos.
Ainda assim, haveria uma diferença entre a opinião e o comportamento, que pode ser de buscar o Judiciário
ainda que não confie nele. Ademais, esses dados costumam sofrer alguma variação conforme o ano. O dado
registrado pelo IPEA é de 2010 e, inclusive, condizem com dados da FGV que, em 2012, apontavam um
cenário um tanto distinto – confiança e percepção menores entre aqueles que já utilizaram o Judiciário
(FGV, 2012).
130
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
164
Em um dos relatórios, registrou-se a atribuição de nota à Justiça brasileira levemente maior entre pretos
e pardos, mas o dado não se revelou estatisticamente significativo (IPEA, 2010, p. 10) – embora possa ser
indicador de outras hipóteses relacionadas à importância da autoridade judicial entre diferentes raças.
165
Naquele caso, a divisão entre as classes foi a seguinte: classe E, renda familiar mensal até 2 salários
mínimos; classe D, entre 2 e 5 salários mínimos; classe C, entre 5 e 10 salários mínimos; casses B, entre 10
e 20 salários, e A, renda familiar mensal acima de 20 salários mínimos.
131
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
percepção social de Justiça feita pelo IPEA apresenta dados correspondentes, mais
detalhados. Perguntados sobre quem procurariam primeiro para resolver um problema,
pessoas com renda mais alta e com maior idade (acima de 45 anos) apontaram a Justiça
estadual em primeiro lugar (IPEA, 2011).
Esses dados também apontam uma parcial divergência entre o que as pessoas
relatam ser as disputas mais propensas à judicialização e o que os tribunais efetivamente
encontram nos processos judiciais. Curiosamente, os assuntos considerados menos
propensos à judicialização no levantamento de percepção do IPEA, quais sejam
“empresas com as quais fez negócio”, “cobrança de impostos ou outros conflitos com o
fisco”, “vizinhança”, “pessoas com as quais já fez negócios”, ou “previdência, assistência
social ou demandas por direitos sociais” (2011), são alguns dos assuntos mais recorrentes
nos tribunais, segundo os dados do CNJ: trabalhistas/previdenciárias,
132
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Uma outra dimensão que afeta a litigiosidade judicial é o grau de respeito às leis
e de cumprimento das regras. Teoricamente, há uma relação entre esses fatores no sentido
de que a litigiosidade tende a ser menor quando há respeito às leis, já que seria maior o
cumprimento voluntário das regras. O caso brasileiro, mais uma vez, parece colocar em
xeque essa relação. O conhecimento sobre as leis é muito baixo e o senso de respeito às
leis parece contraditório, no sentido de que um discurso disseminado de autoridade da lei
convive com um discurso oposto, de descumprimento. A consequência é que a litigância
judicial parece onerada com uma responsabilidade regulatória extraordinária. A lei não
consegue desempenhar a atividade de regulação preventiva e, nos casos concretos, esse
encargo é transferido para os processos de resolução de disputas. O resultado é o maior
uso do processo judicial e o aumento dos litígios judicializados.
Os dados apontam que o brasileiro conhece pouco as leis e que se divide quanto
a segui-las. Levantamento recente sobre a percepção de cumprimento das leis revela que
84% das pessoas disseram conhecer “um pouco”, “quase nada” ou “nada” as nossas leis
(FGV, 2016, p. 20). Não obstante, quase metade dos brasileiros (46%) diz que segue
“muito” as leis e, diversamente, a maioria declarou seguir pouco ou nada as leis – 40%
declararam seguir “pouco” e 15% respondeu seguir “nada” ou “quase nada”. O gráfico
abaixo ilustra esses percentis. Embora o seguir “muito” pareça majoritário, a soma das
outras categorias, que sugerem em última análise não cumprimento, é maior (55%).
133
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
134
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A aprovação social das condutas parece ter, além da própria autoridade da lei,
um efeito sobre a propensão ao seu cumprimento voluntário. Dentre as situações
hipotéticas usadas no questionário, as de “levar itens baratos de uma loja sem pagar por
eles” e “dirigir depois de consumir bebida alcoólica” foram consideradas condutas com
alta reprovação social (89% e 86%), ao passo que “atravessar a rua fora da faixa de
pedestre” e “comprar CD e DVD piratas” foram consideradas menos reprovadas
socialmente (57% e 56%). De forma correspondente, essas categorias foram
consideradas respectivamente as mais e menos prováveis de sofrerem alguma punição:
81% e 80% para as duas primeiras e 43% e 41% para as duas últimas. Como conclui o
relatório, “quanto maior a desaprovação social diante da realização de uma conduta,
maior é a possibilidade de a lei ser cumprida” (FGV, 2015, p. 26).
135
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
sociais: reservadas as exceções, grupos socialmente mais vulneráveis percebem com mais
intensidade a autoridade e o cumprimento das leis do que grupos menos vulneráveis.
Os dados sobre percepção de cumprimento das leis aqui trazidos sugerem que a
litigância judicial no Brasil tem poucas chances de se ver aliviada por um eventual
incremento da efetivação voluntária do ordenamento. O brasileiro conhece pouco as leis
e menos da metade das pessoas diz que segue as leis – percentual que pode ser ainda
menor, considerando a superestimação das respostas a esse tipo de pergunta. Não
bastasse, a conduta de desobediência legal é naturalizada e facilmente justificável pelas
pessoas. Diante desse cenário, mecanismos de coerção social ou os comportamentos de
cumprimento voluntário tem baixa probabilidade de diminuir ou compensar a
litigiosidade. Se assim for, isso enfraqueceria o argumento de que procedimentos que
dependem de cumprimento voluntário, como aqueles cujas regras ou decisões são
definidas pelos próprios litigantes, seriam mais efetivos do que aqueles impostos pela lei.
136
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A litigância judicial, portanto, pode ser a alternativa que resta para assegurar um
grau mínimo de justiça e coesão social diante do quadro geral de desconhecimento da lei
formal, incerteza da coerção social e leniência com a desobediência legal. Isso vale para
a vítima individual de violações, mas também para o próprio sistema regulatório do
Estado. Aquela, em caso de violação de direitos, não pode contar com a segurança do
cumprimento voluntário da lei. E o Estado não consegue compartilhar o papel de
regulação jurídica com os mecanismos de coerção social.
137
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
138
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
_______________________________________ Características
ALVES da SILVA,da vitimização e do acesso
Acesso à justiça, à justiça no Brasil 2009
litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Figura
Gráfico13:
28 - Distribuição
Distribuição dasde pessoas
pessoas de de 18 anos
18 anos ou mais
ou mais de que
de idade idade que situação
tiveram tiveram
situação de no
de conflito, conflito,
períodoentre 2004 ede
de referência 2009, porpor
5 anos, tipo de de
busca encaminhamento
solução e forma dedado ao
buscar
solução
conflito mais para asegundo
grave, situação de
as conflito
regiõesmais grave– em
do país que se envolveram,
2009
segundo as Grandes Regiões - 2009
%
63,2
59,2
57,8
56,6
55,9
51,6
15,8
14,5
14,4
12,4
11,5
10,4
9,8
8,8
8,8
8,3
8,2
8,0
7,9
7,4
7,3
6,8
7,0
6,6
6,6
6,3
5,7
5,7
5,7
5,4
4,5
4,1
3,9
3,9
3,7
3,6
2,9
2,7
2,4
2,1
1,8
1,7
1,6
1,6
1,5
1,5
1,5
1,2
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009.
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2009. Por mais que a
No período de cinco anos, das 11,7 milhões de pessoas que buscaram solução
judicialização de disputas pareça alta no Brasil, há outras considerações que merecem
para o conflito, 5,8 milhões (49,2%) tiveram sua causa solucionada, e 5,9 milhões
atenção antes da
(50,8%) instituição
ainda de mecanismos
não solucionada. O Pde controle
ROCON da litigiosidade.
foi apontado mais frequentemente na
solução dos conflitos solucionados no período, 69,4%. Por outro lado, a justiça teve
Em primeiro lugar, o envolvimento das pessoas em conflitos e a mobilização por
o maior percentual de indicação dos conflitos não solucionados, 56,5%.
direitos não necessariamente é e nem sempre é considerado um comportamento
Gráfico
patológico. Pelo 29 - Distribuição
contrário. das pessoas
Eles refletem de 18 anos oulegalmente
o comportamento mais de idade que tiveram
previsto para uma
situação de conflito, no período de referência de 5 anos, por forma de buscar
solução
situação de violação para
dea situação
direitos dee conflito mais grave
evidenciam um em que se envolveram,
considerável segundo
grau de a
cidadania.
existência de solução para a situação de conflito mais grave em que se envolveram
Perceber-se vítima de uma violação, seja porBrasil que -caminho
2009 isso aconteça, não é em si um
comportamento oportunista,
Total doloso ou ilegítimo. É uma atitude que50,8
o direito espera que
49,2
aconteça para que o ordenamento jurídico se efetive integralmente166. Pela mesma razão,
Procon 69,4
resistir a uma reivindicação injusta de direitos é igualmente
30,6 legítimo. Em ambos os casos,
64,6
o sistema de justiça deve
Outra trabalhar com a possibilidade e a normalidade desses
35,4
comportamentos, nãoouoparente
Amigo contrário. O comportamento ordinário dos cidadãos não
64,0deve ser
36,0
considerado um fator de risco de colapso do sistema oficial de justiça. Ao
Juizado especial
55,6 menos, não o
44,4
comportamento do cidadão médio. 51,9
Polícia
48,1
47,7
Sindicato ou associação 52,3
166
litigiosidade e causas das morosidade elaborado43,5
O estudo de casos sobre aJustiça pela Fundação Getúlio Vargas
56,5
com o Conselho Nacional de Justiça, em 2009, deparou-se com o delicado desafio de classificar como %
oportunista ou mero exercício de direitos as ações de advogados, da mídia ou das partes na vindicação a
direitos. Embora resultem em um aumentoSolucionada do volume de processos nossolucionada
Ainda não tribunais, não é simples classifica-
las como condutas oportunistas quando estão, em si, buscando tutela a direitos que o ordenamento confere.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
V. Gabbay 2009.
e Cunha, 2010.
139
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Em terceiro, ainda não temos muita clareza sobre os fatores que levam o
brasileiro a litigar judicialmente. Os dados recentes sugerem alterações no volume total
de processos sem uma razão específica aparente. Em 2015, por exemplo, a quantidade de
processos entrados sofreu uma retração de 4,2%, seguida de aumento da ordem de 5,6%
no ano seguinte (CNJ, 2016 e CNJ 2017). Na teoria, o que desencadeia pedidos de
intervenção judicial são os comportamentos das pessoas em relação seus direitos e em
relação a suas obrigações. A grande questão é, e sempre foi, diferenciar, dentre esses, os
legítimos e os ilegítimos. Em um ponto da cadeia social, há aqueles que não demandam
seus direitos quando poderiam e que deixam de oferecer resistência quando isso seria
legítimo. Em outro ponto, há aqueles que demandam direitos que sabidamente não têm
ou que resistem injustificadamente a demandas legítimas de direitos. O desafio imposto
às políticas judiciárias não é, portanto, a de controlar a demanda por direitos conforme o
que o sistema pode receber, mas a de saber quais desses tipos de comportamento ele tem
140
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
admitido e quais ele deve admitir. Em última análise, não é apenas uma questão de
capacidade estrutural, mas de opção política.
Embora o encaminhamento judicial seja maioria (70,2%), ele se refere aos 10%
da população que identificaram um conflito e o levaram adiante. Esse percentual tende
naturalmente a aumentar. Como avalia Galanter (2005), nós não viveremos em um mundo
livre de disputas e a consciência de que sofremos uma violação de direitos aumenta em
proporção inversa à nossa paciência para suportá-los. Natural e ordinariamente, a
reivindicação de direitos aumentará.
167
Não seria exagero afirmar que os juizados estão entre as novidades institucionais mais importantes das
últimas décadas em termos de acesso à justiça. Eles reúnem diferentes características que o qualificam ao
posto - a desformalização, a simplificação procedimental, a resolução consensual, a cobertura a novos
direitos, o empoderamento das partes, entre outras. Quando implantados, ganharam imediata adesão da
população e assumiram destaque na organização da justiça. Paralelamente, contudo, os juizados entraram
na zona de ataque das críticas à litigiosidade repetitiva e da legislação que a acompanha – exemplo mais
evidente foi a inclusão dos juizados no âmbito de aplicação do incidente de resolução de demandas
repetitivas do novo CPC (art. 985, I).
141
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
mas nada desprezível, de demanda apenas entre pessoas físicas e de pessoas jurídicas
contra pessoas físicas – estas, geralmente de cobrança168 e aquelas, sobre as mais variadas
questões que pode existir entre dois cidadãos, como explica o trecho abaixo:
168
Pesquisas anteriores sobre os juizados especiais, no Brasil e em outras literaturas, também identificaram
a presença de demandas de pessoas jurídicas contra pessoas físicas, sinalizando o uso dos juizados como
mecanismo de cobrança de dívidas.
142
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
169
Não à toa, “origem comum” é o critério adotado pela lei brasileira para identificar os chamados interesses
individuais homogêneos (art. 81, CDC), que estão na base desse mesmo problema da litigiosidade
repetitiva. Tratarei disso no próximo capítulo.
170
A imagem para o argumento é de Alexandre dos Santos Cunha, do IPEA, em palestra intitulada
“Efetividade da Justiça: desafios, impactos e soluções”, proferida no Congresso Estadual de Magistrados
de Santa Catarina, em 01/11/2014.
143
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
frequentemente se afirma, e isso fica evidente quando o fenômeno é visto pelo ponto de
vista das disputas e pessoas envolvidas. Alguns tipos de conflitos parecem mais
Vitimização e Justiça 2009 _______________________________________________________________________
frequentes em determinados estratos sociais do que em outros.
25,1
24,8
23,8
23,3
23,3
23,2
22,6
22,0
20,8
20,6
18,7
15,8
15,7
14,3
12,6
12,4
12,1
10,9
10,9
10,8
10,5
10,4
9,7
9,7
9,5
9,2
9,2
8,6
8,7
8,5
8,2
8,2
8,0
7,7
7,4
6,7
6,7
6,6
6,6
6,3
5,4
5,1
4,9
4,8
4,7
4,6
4,1
1,6
1,5
1,2
1,1
0,6
0,5
Serviços de água,
Trabalhista Família Criminal Outra
luz ou telefone
Analisando
O perfil os grupos
das disputas etários, as
judicializadas pessoas
é similar aode 18 a 24pelo
descrito anos de idade
IBGE. tiveram
A edição do
os maiores percentuais de situação de conflito na área de famíla (27,8%) e na
relatório “Justiça em Números” de 2016, do CNJ, conseguiu esboçar uma primeira
criminal (23,3%). Entre as pessoas de 50 anos ou mais de idade, os conflitos que
descrição dos assuntos
envolviam mais recorrentes
a área trabalhista nos tribunais:
apresentaram trabalhista;
o maior percentual cível;seguido
(21,2%), fiscal;
172
pelos conflitos
consumidor; que envolviam
e previdenciário os benefícios são
. Especificamente, do Instituto
casos deNacional
rescisão do
de Seguro
contratoSo-
de
cial - INSS ou previdência (19,0%)
O segundo ponto é que a variação dos tipos de litígios judicializados reflete uma
correspondente variação dos grupos sociais comumente envolvidos. Os dados sobre
distribuição etária dos envolvidos em conflito confirma a diferenciação entre os tipos de
litigantes. Jovens entre 18 e 24 anos, por exemplo, reportaram conflitos
145
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
173
Aliás, este é o dos critérios para o cabimento do incidente de resolução de demandas repetitivas, segundo
o NCPC, art. 976, inciso I: “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma
questão unicamente de direito”.
146
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Segundo os dados, casos criminais predominam nos órgãos de segundo grau, direito
tributário na justiça comum e consumidor nos juizados especiais (CNJ, 2017, p. 164) e
“os principais assuntos cadastrados no TJ-BA, TJ-MA e TJ-PE diferem dos casos mais
recorrentes nos outros tribunais” (idem, p. 168)174. Por mais que, do ponto de vista de
cada tribunal ou órgão de justiça isoladamente, o cenário seja o de muitos processos sobre
as mesmas questões jurídicas, do ponto de vista do conjunto de todos os tribunais, o
cenário é de diversidade de matérias e pessoas envolvidas – o que é um elemento a ser
sopesado pelas políticas de uniformização de entendimentos jurisprudenciais.
174
Os diagramas apresentados nessa edição do Relatório, bem como a ferramenta interativa, permitem
discriminar as demandas mais comuns em cada tribunal. V. http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-
justica-em-numeros.
147
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Tabela 1 - Listagem dos dez maiores setores contendo o percentual de processos em relação ao total ingressado entre 1º de janeiro
e 31 Figura
de outubro de11:
2011Setores
por Justiça. com maior percentual de litígios judiciais no Brasil, no
Setores dos Cem Maiores Litigantes
Ordemtotal e por ramos da Justiça - 2012
Total Justiça Estadual Justiça Federal Justiça do Trabalho
1 SETOR PÚBLICO FEDERAL 12,14% BANCOS 12,95% SETOR PÚBLICO FEDERAL 83,19% INDÚSTRIA 2,03%
2 BANCOS 10,88% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 9,25% BANCOS 9,60% SETOR PÚBLICO FEDERAL 1,84%
3 SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 6,88% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 4,85% CONSELHOS PROFISSIONAIS 2,76% BANCOS 1,78%
4 SETOR PÚBLICO ESTADUAL 3,75% SETOR PÚBLICO FEDERAL 3,11% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 0,56% SERVIÇOS 1,44%
5 TELEFONIA 1,84% TELEFONIA 2,38% OAB 0,41% COMÉRCIO 0,93%
6 COMÉRCIO 0,81% SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,93% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 0,14% SETOR PÚBLICO ESTADUAL 0,86%
7 SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,74% COMÉRCIO 0,92% SEGUROS / PREVIDÊNCIA 0,06% ASSOCIAÇÕES 0,80%
8 INDÚSTRIA 0,63% INDÚSTRIA 0,44% OUTROS 0,06% TELEFONIA 0,60%
9 SERVIÇOS 0,53% SERVIÇOS 0,42% EDUCAÇÃO 0,04% SETOR PÚBLICO MUNICIPAL 0,45%
10 CONSELHOS PROFISSIONAIS 0,32% TRANSPORTE 0,18% SERVIÇOS 0,02% TRANSPORTE 0,40%
Elaboração: Departamento
Fonte: CNJ,de Pesquisas
2012 Judiciárias/ CNJ.
ÉAoportuno
concentração
considerar queda
estelitigância judicial
resultado corrobora no país
as recentes é tamanha
pesquisas queo excesso
realizadas sobre pode de serlitigância
expressa
no Poder
2
em uma lista
Judiciário . composta por um punhado de atores públicos e privados. Na primeira edição
desse relatório, a estudo
Em relação ao lista sobre
era osencabeçada por:realizado
100 maiores litigantes INSS; Caixa
em 2010, mesmoEconômica Federal;
considerando a mudança União;na
na metodologia
Fazenda Nacional;
coleta dos Banco
dados (naquela ocasiãodo Brasil; oBanco
considerou-se estoque deBradesco;
processos e nãoBanco
os casosItau; Banco Finasa;
novos ingressados de janeiro aBrasil
outubro de
Telecom; Telemar.
2011), notou-se que osNa segunda
setores que mais edição
demandaramdodorelatório, houve
Poder Judiciário alguma
mantiveram-se alteração
no ranking total dena posição
maiores litigantes,
dessas conformeentidades, mas2, aoseguir.
verificado na tabela quadro geral era similar. As tabelas abaixo ilustram,
respectivamente, a lista dos maiores litigantes da primeira e segunda edições do relatório
1. ÉLISTAGEM
relevante consignar,
DOS 100noMAIORESentanto, a LITIGANTES
presença de alterações pontuais nos dados de 2011. Aos serem considerados apenas os
do CNJ.
casosApresenta-se,
novos, o Setorabaixo,
Públicoa listagem
Municipaldos
passou
100 amaiores
figurar na 3ª posição,
litigantes. Essadesbancando o Setor Público
lista está subdividida Estadual.
em quatro Outras
outras, mudançasos
que detalham
maiores litigantes nacionais e de acordo com o ramo de justiça. O ranking nacional foi elaborado a partir da compilação de todos os
processosFigura 12: Litigantes
enviados pelos tribunais federais, com maior
trabalhistas percentual
e estaduais ao CNJ, de comlitígios judiciais
classificação nodos Brasil, nonade
acordodignas
com adeparticipação
nota referem-se à 6ª posição
percentual ocupada,
em relação em 2011,
aos cem pelo Comércio,
primeiros. que naposterior
edição anterior da pesquisa cem primeiros,
não constava
total e por ramos da Justiça - 2011
Tabelalistagem de dos
1 - Listagem maiores litigantes.
100 maiores Alémcontendo
litigantes disso, oépercentual
relevantedefrisar a 8ª posição
processos em relaçãoocupada pelo setor
aos 100 maiores industrial,
litigantes já que na edição anterior
da Justiça.
Cem Maiores Litigantes
Rank
Nacional Justiça Federal Justiça do Trabalho Justiça Estadual
INSS - INSTITUTO INSS - INSTITUTO
ESTADO DO RIO GRANDE
1 NACIONAL DO SEGURO 22,33% NACIONAL DO SEGURO 43,12% UNIÃO 16,73% 7,73%
2 DO SUL
Vide Pesquisas da FGV/SP, PUC/PR, UFRGS e IPEA contratadas pelo CNJ/DPJ e disponíveis no endereço eletrônico: http://www.cnj.jus.br/programas-de-
SOCIAL SOCIAL
CEF - CAIXA ECONÔMICA CEF - CAIXA ECONÔMICA INSS - INSTITUTO NACIONAL DO
2 a-a-z/formacao-e-capacitacao/cnj-academico/pesquisas-aplicadas-cnj-academico
FEDERAL
8,50%
FEDERAL
18,24%
SEGURO SOCIAL
6,41% BANCO DO BRASIL S/A. 7,12%
3 FAZENDA NACIONAL 7,45% FAZENDA NACIONAL 15,65% CEF - CAIXA ECONÔMICA FEDERAL 5,29% BANCO BRADESCO S/A 6,70%
Página 8 de 33 INSS - INSTITUTO
GRUPO CEEE - COMPANHIA
4 UNIÃO 6,97% UNIÃO 12,77% 5,22% NACIONAL DO SEGURO 5,95%
ESTADUAL DE ENERGIA ELÉTRICA
SOCIAL
ADVOCACIA GERAL DA
5 BANCO DO BRASIL S/A. 4,24% 1,75% BANCO DO BRASIL S/A. 4,82% BANCO ITAÚ S/A 5,92%
UNIÃO
ESTADO DO RIO GRANDE FUNASA - FUNDAÇÃO BRASIL TELECOM
6 4,24% 0,79% TELEMAR S/A 4,31% 5,77%
DO SUL NACIONAL DE SAÚDE CELULAR S/A
INCRA - INSTITUTO
NACIONAL DE PETROBRÁS - PETRÓLEO
7 BANCO BRADESCO S/A 3,84% 0,48% 3,80% BANCO FINASA S/A 4,08%
COLONIZAÇÃO E REFORMA BRASILEIRO S/A.
AGRÁRIA
EMGEA - EMPRESA
8 BANCO ITAÚ S/A 3,43% 0,47% FAZENDA NACIONAL 3,29% MUNICÍPIO DE MANAUS 3,81%
GESTORA DE ATIVOS
IBAMA - INSTITUTO
BRASILEIRO DO MEIO
BRASIL TELECOM
9 3,28% AMBIENTE E DOS 0,47% BANCO ITAÚ S/A 2,89% MUNICÍPIO DE GOIÂNIA 3,76%
CELULAR S/A
RECURSOS NATURAIS
RENOVÁVEIS
148
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
TELESP -
FAZENDA PÚBLICA DO CONSELHO REGIONAL DE
11 BANCO ITAÚ S/A 0,82% 0,99% 0,68% TELECOMUNICAÇÕES DE 0,24%
ESTADO DE SÃO PAULO ENFERMAGEM - COREN/RS
SÃO PAULO S/A
INCRA - INSTITUTO
BANCO SANTANDER BRASIL FUNCEF - FUNDAÇÃO DOS
12 0,80% MUNICÍPIO DE GOIÂNIA 0,95% NACIONAL DE COLONIZAÇÃO 0,50% 0,22%
S/A ECONOMIÁRIOS FEDERAIS
E REFORMA AGRÁRIA
litigiosidade no Brasil está longe de ser um fenômeno amplo ou homogêneo – e, por isso,
talvez menos repetitivo do que se anuncie. O volume reportado de envolvimento em
conflitos é baixo se comparado ao tamanho da população (menos de 10%) e ao volume
total de processos judiciais em trâmite no Judiciário (cerca de 74 milhões de processos
judiciais). Quando há conflitos, a litigância não é distribuída de modo homogêneo.
Alguns tipos de conflitos são mais frequentes e alguns perfis de pessoas se destacam
dentre os usuários do sistema.
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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
esses, uma parte ainda menor chega a ser judicializada. Esse volume, que aparece para os
tribunais como muito grande e repetitivo, é menor do que seria se a maioria das violações
de direitos fossem judicializadas. O volume de litígios judicializados também é
relativamente heterogêneo - vale dizer, nem tão repetitivo - quando se considera aos tipos
de relações jurídicas e grupos sociais especificamente envolvidos. Por outro lado, o que
parece homogêneo, concentrado e volumoso é participação dos litigantes mais frequentes
no Brasil, com presença e atuação em todo o território nacional, geralmente no polo
passivo dos processos e perfeitamente enquadráveis como “jogadores habituais” ou
“litigantes repetitivos” na terminologia consagrada por Galanter (1974). Considerando
essas características, o controle da litigiosidade, processual ou não, no Brasil teria de
enfrentar, preliminarmente, a difícil seleção dos privilegiados a ocupar a pauta e a atenção
do Judiciário.
175
O fenômeno é muito mais complexo e merecer aprofundamento em estudo específico. Ele é observável
desde a consolidação de um argumento que aponta existir uma “indústria do dano moral” no Brasil, seguido
pela reação oposta pelos tribunais brasileiros no julgamento de demandas consumeiristas, distinguindo o
do “mero aborrecimento” não indenizável (v. a respeito, “Justiça faz esforço para não alimentar indústria
do dano moral”, notícia publicada no sítio eletrônico especializado Conjur, em 08 de fevereiro de 2015,
“https://www.conjur.com.br/2015-fev-08/justica-faz-esforco-nao-alimentar-industria-dano-moral, acesso
em janeiro de 2018. Passa por políticas judiciárias de redução do volume de processos nos tribunais por
meio do controle do “uso atípico do Poder Judiciário (a esse respeito, v.g., o laborioso trabalho
desempenhado pelo “Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas”, o Numopede, do Tribunal de
Justiça de São Paulo,
<http://www.tjsp.jus.br/PublicacaoADM/Handlers/FileFetch.ashx?id_arquivo=77180>, acesso em janeiro
de 2018). E alcança, mais recentemente, espaço dentre as operações da Polícia Federal com
acompanhamento midiático, como a “Operação Temis”, que investiga possíveis casos de fraudes judiciais
nas ações judiciais que pleiteiam indenização por expurgos inflacionários, e que ocasionou recente prisão
de advogados envolvidos (v.
https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/operacao-temis-cumpre-mandados-de-prisao-contra-
advogados-em-ribeirao-preto.ghtml, acesso em janeiro de 2018).
150
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
176
Curioso que exatamente o mesmo discurso, inclusive com os mesmos termos e recursos persuasivos,
componha o “senso comum” sobre a litigiosidade nos EUA, país cujo sistema jurídico nos exportou as
tendências de controle da litigância e alguns instrumentos instituído no CPC. Segundo sintetiza Rhode
(2014, p 38),
“a população americana tem uma visão distorcida tanto dos problemas de litigância
quanto das razões que o perpetuam. O senso comum é o de que a culpa é de
demandantes ardilosos, advogados gananciosos e uma cultura de litigância. A mais
comum recomendação decorre diretamente desse diagnóstico: tornar a litigância
menos lucrativa e fazer com que as partes sucumbente arquem com os custos. Mas
essas analises superficiais descrevem mal nossos problemas e direciona mal nossas
respostas.” (No original, “the American people gests a distorted picture of both
litigation-related problems and the forces that perpetuate them. The conventional
wisdom is that fault lies with conniving claimants, rapacious lawyers, and a
contentious culture. The most popular prescriptions follow directly from that
diagnosis: make litigation less profitable and make losers pay its costs. But such
superficial analyses misdescribe our problems and misdirect our responses”).
151
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
152
20 ALVES da SILVA, Acesso à Relatório
justiça, de
litigiosidade
Pesquisa
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
para 45% nos casos em que houve citação pessoal.12 Vale destacar, entretanto, que a extinção por prescrição
45% (IPEA, 2011, p. 20). Desnecessário frisar, a primeira hipótese representa o êxito da
ou decadência é o segundo principal motivo de baixa, respondendo por 27,7% dos casos. Em seguida, vem o
execução, e a segunda,
cancelamento o seu
da inscrição completo
do débito (17%) e fracasso. O julgamento
a extinção sem gráfico abaixo
do méritoilustra
(11,5%).asCausas
hipóteses
menoresde
de baixa incluem a remissão (8%), o julgamento de embargos favoravelmente ao devedor (1,3%), o julgamento
extinção das execuções federais, com destaque para as barras dos pagamentos e a da
de objeção de preexecutividade favoravelmente ao devedor (0,3%) e o declínio de competência (0,2%). Ao
prescrição ou decadência
final, 12,3% das sentenças edede cancelamento
execução da dívida.
fiscal são recorridas, em regra pelo exequente.
Figura
GRÁFICO 14:4 Tipos de baixa em ações de execução fiscal na Justiça Federal com
baixa em 2009
Distribuição dos processos de execução fiscal segundo o motivo da baixa
Elaboração própria.
Fonte: IPEA, 2011
Os motivos de baixa dos processos de execução fiscal demandam algumas reflexões. A primeira diz res-
peito aos dois principais motivos de baixa. É curioso observar que o volume de executivos fiscais extintos por
A quantidade
pagamento dee decadência
ou prescrição execuções fiscais extintas
é praticamente o mesmo,por
o quepagamento, primeira de
indica que a probabilidade coluna
o execu-no
tivo fiscal obter êxito ou fracassar absolutamente é quase idêntica.
gráfico acima, é bastante alta, principalmente se for considerado que são poucos os casos
A segunda
que conseguem diz respeito
avançar nasespecificamente à extinção por pagamento.
etapas do procedimento Desagregando-se
executivo: as modalidades
não há citação em 39%de
pagamento, tem-se que a quitação do débito em parcela única, perante o exequente ou o juízo da execução,
dos casos,
ocorre em apenas
em 41,3% dos15% seadesão
casos. A conseguiu alguma penhora
e fiel cumprimento a programa ede1/6 das penhoras
parcelamento da dívidafeitas chega
representam
a hasta36,3% das ações
pública. extintas por
Desses, pagamento.casos
raríssimos Contrariamente
alcançam ao senso comum, o grau dede
a expropriação respeito
bensaos
doprogramas
devedor
de parcelamento mostra-se extraordinariamente elevado: 64,4% dos executados que aderem a programas de
para cumprimento forçado da obrigação inadimplida. Ainda assim, os processos de
parcelamento cumprem integralmente com as obrigações pactuadas em pelo menos um dos casos.
execução fiscal alcançam um percentual de mais de 30% de satisfação da dívida (IPEA,
O que é surpreendente, no que diz respeito às modalidades de pagamento, é a pouca informação existen-
2011, tep.nos
19autos
e 20).
sobre quem, de que modo e quanto pagou ao exequente. Em regra, os juízes não têm qualquer
preocupação em verificar se a informação prestada pelo exequente é verdadeira, ou seja, se realmente houve o
O resultado
pagamento positivo
e qual o valor das execuções
efetivamente pago. Por esta fiscais
razão, em federais
20,9% dos convive
casos não secom
sabe a um resultado
modalidade de
pagamento adotada, e em 37,1% dos processos não consta qualquer informação
oposto, completamente negativo, que é a extinção por prescrição e a decadência – terceira sobre o valor efetivamente
apurado. Considerando-se apenas os casos em que esta informação encontra-se presente, pode-se afirmar que
coluna do gráfico acima. A chance de sucesso de uma execução fiscal, portanto,
cada ação de execução fiscal resulta na arrecadação média de R$ 9.960,48 em principal e R$ 37,69 em custas
praticamente equivale
judiciais (para a dedeseu
uma mediana completo
zero). Levando-sefracasso. E oosque
em conta apenas define
executivos se extintos
fiscais um caso concreto
por pagamen-
to, este valor sobe para R$ 23.751,18 em principal e R$ 100,83 em custas judiciais (para uma mediana de
culminará em um ou outro desses fins parece ser o comportamento adotado pelo réu: o
R$ 1.942,05 em principal e R$ 10,64 em custas judiciais).
pagamento voluntário da dívida ou a resistência aos atos executivos com a meta de obter,
em longo prazo,como
12 . Consideraram-se a pagamento,
prescrição intercorrente
para a produção (LEF,
deste dado, todos os casos em que asart. 40;
sentenças CPC,referiam-se
dos processos art. aos921).
seguintes Os
eventos:réus em
pagamento
(sem especificação), expropriação, conversão em renda, adjudicação e cumprimento de programa de parcelamento.
execuções fiscais podem tanto adotar o comportamento de devedores contumazes, que
seria o uso exauriente dos instrumentos de defesa e impugnação, quanto um
153
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
154
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
foram de 20,2% e 7,4%, respectivamente (idem, p. 21). Como não há citação pessoal
válida em 43,4% dos casos (p. 18), é presumível que o uso de defesas seja menor. De
todo modo, não é esperado um uso tão infrequente como os dados anunciam. Na média,
aproximadamente 1 em cada 6 processos tem algum recurso. Como explica o relatório,
“cada execução fiscal sofre em média 0,03 agravo, 0,13 apelação e 0,02 recurso especial
e extraordinário” (IPEA, 2010, p. 21).
A percepção de que o abuso de recursos e defesas por parte dos executados são
responsáveis pela sobrecarga e o volume desses processos é parcialmente equivocada.
Elas respondem por um substancial aumento do tempo de tramitação dos processos, mas
isso apenas nos casos em que há defesas ou recursos, que, como atestam os dados, são
poucos. Na verdade, o que parece atravancar o procedimento executivo são outros fatores,
como a não localização do devedor (em 43%) e de bens para penhora, que acontece em
apenas 15% dos casos (IPEA, 2010, p. 19). E esses fatores, vale ponderar, podem ser
atribuídos tanto ao eventual comportamento de resistência material ou processual de
devedores (como a ocultação de si próprio ou de seus bens, e o abuso dos mecanismos de
defesa), quanto à qualidade dos créditos que se tem submetido à cobrança pela via judicial
(em geral, desprovidos de garantias patrimoniais ou mesmo de dados básicos sobre os
devedores, como endereço de localização e de seus bens). Eventual política judiciária ou
reforma normativa voltada a controlar a litigância exercida nos processos executivos
precisariam tomar em conta essas peculiaridades.
155
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Cappelletti e Garth (1978) e que adotamos no Brasil (v. cap. 1, supra). Eles reúnem um
desenho processual menos formal, o incentivo à resolução consensual das disputas e a
oferta de tutela jurídica a novas categorias de interesses e direitos, a baixo custo – ou seja,
as três “ondas renovatórias” do acesso à justiça, segundo aqueles autores. A novidade é
muito bem sucedida na experiência brasileira. Os juizados, tanto estaduais quanto
federais, receberam pronta e maciça adesão da população brasileira, que passou a lhe
submeter suas disputas de interesses. E, com isso, contribuíram, como nenhuma outra
política judiciária, para a redução da “litigiosidade contida” e os “conflitos não
jurisdicionalizados” (WATANABE, 1985, p. 2). Ainda que, a longo prazo, isso tenha se
refletido no aumento do volume de processos judiciais, o objetivo inicial fora alcançado.
Os juizados são um caso de sucesso no Brasil.
156
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
representação jurídica profissional, instituída com dificuldade pela Lei 9.099/95, não
conta com adesão majoritária dentre os litigantes dos juizados. Diferentes motivos
explicam esse comportamento, mas todos eles parecem fundados na segurança que o
profissional proporciona aos litigantes.
!
*
Fonte: Brasil, 2015
Compartimentalizando*o*dado*pela*natureza*da*parte*(física*ou*jurídica,*autor*ou*réu),*
Quando acompanhadas por advogados, os litigantes presumivelmente
os* dados* indicam*
comportam-se de modoque* os* autores&
distinto pessoa&
quanto ao uso dosfísica& geralmente&
instrumentos estão& disponíveis.
processuais acompanhados& de&
advogados&quando&acionam&pessoas&jurídicas,*e*parecem*se*valer*mais*da*prerrogativa*legal*
Observa-se, nesses casos, o uso mais recorrente de ferramental técnico e práticas formais.
Ade*
tutela
não*afinal
usar* o*obtida, se resolução
advogado* consensual
em* demanda* oupessoas*
contra* condenação, também
físicas.* varia juizados*
Em* alguns* conformeespecíficos,*
o
perfil
como*das
* BE*partes e o*
Idosos,* o uso*
acompanhamento de advogados.
de* advogado* particulares* por*Oator*
acordo emfísica*
pessoa* audiência,
parece*por
menor* em*
ambos* os* tipos* de* demandas.* O* inverso* parece* acontecer* em* SL* Ceuma,* em* que* os* autores*
pessoa*física*parecem*utilizar*de*auxílio*profissional*em*ambos*tipos*de*demandas.****
157
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Por fim, as peças processuais utilizadas pelas partes, dado que denota o tipo de
litigância praticada, também sugerem que os litigantes judiciais se comportam visando o
máximo de proteção processual. O ato de submissão de uma disputa para apreciação nos
177
E, como detalha o relatório da pesquisa, o uso de recursos também foi registrado com maior frequência
nos juizados especiais cíveis de São Paulo (BRASIL, 2015, p. 42).
158
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
JECs pode, segundo a lei, ser feito por escrito pela própria parte previamente ou pela
forma oral, seguido de atermação pelo próprio juizado. Segundo a pesquisa, o uso da
atermação, embora identificado com maior frequência nos processos movidos por pessoa
física, também foi registrado em processos movidos por pessoas jurídicas, sobretudo em
juizados localizados em bairros de menor renda média.
!
* Fonte: Brasil, 2015
Gráfico! 19:! Quantidade! média! de! páginas! de! peças! processuais! dos! autores!
Conjuntamente, esses dados sugerem que a variável em última análise
pessoa!física,!por!advogado!do!autor!e!juizado!
determinante do comportamento processual das partes não é, simplesmente, o
acompanhamento profissional por advogado. Sem dúvida, como os dados atestam, sua
participação afeta consideravelmente os atos praticados no processo, desde a celebração
de acordos até a interposição de recursos e, inclusive, o uso mais extenso da retórica. Uma
interpretação simplista poderia argumentar que, portanto, a presença de advogados
dificulta que os juizados alcancem os resultados que dele se espera. Mas essa
interpretação desconsideraria a complexidade da questão.
159
!
!
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Sob uma análise mais detida, os dados parecem sugerir que a escolha da parte
pelo acompanhamento profissional por advogado é determinada por um outro fator,
predominante: o grau de assimetria entre os litigantes. Se a disputa é entre iguais, como
os litígios apenas entre pessoas físicas, o advogado é dispensado. Quando pessoas físicas
litigam contra pessoas jurídicas, que certamente estarão acompanhadas por advogados, a
pessoa física, mesmo que autora, sente-se mais segura estando também acompanhada por
advogado. Elas podem até demandar a intervenção judicial por si próprias, fazendo uso
da atermação. Mas, com o caminhar do processo, as dificuldades ao exercício efetivo do
contraditório podem lhe impulsionar a procura por auxílio profissional.
Os juizados especiais federais foram criados em 2001, seis anos após os juizados
especiais estaduais, com o expresso propósito de atender a uma demanda reprimida da
população de forma ágil, rápida e econômica e, também, reduzir o congestionamento
160
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
178
Conforme item 2 da Exposição de Motivos, “a Emenda Constitucional nº 22, de 1999, acrescentou §
único ao art. 98 da Magna Carta com o propósito de que lei federal disponha sobre a criação dos juizados
especiais no âmbito da Justiça Federal, de modo que as lides de menor potencial econômico ou ofensivo
possam ser resolvidas rapidamente com maior agilidade e baixo custo, fazendo com que a primeira instância
federal siga o exemplo da bem sucedida experiência dos Juizados Especiais Estaduais, criados pela Lei nº
9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dê outras
providências”. E, conforme o respectivo item 6, “a proposição desafogará a Justiça Federal de primeiro e
segundo graus e "propiciará o atendimento da enorme demanda reprimida dos cidadãos, que lhe não podem
ter acesso à prestação jurisdicional por fatores de custos, a ela não recorrem pela reconhecida morosidade
decorrente do elevado número de processos em tramitação (…)”.
161
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
partes disseram que acabam contratando advogado desde o início do processo porque a
dispensa legal se limita à primeira instância (Lei 10.259/01) (idem, p. 100).
162
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
comum e costuma acontecer, segundo os dados, em cerca de 80% a 90% dos casos179.
Em alguns casos, há perícias sociais, realizadas por assistentes sociais ou mesmo oficiais
de justiça, e perícias contábeis. No caso das perícias médicas, a descrição da sua dinâmica
parece mais um atendimento prestado pelo serviço de saúde do que um contraditório
processual perante um órgão jurisdicional. O trecho abaixo é esclarecedor a esse respeito:
179
Especificamente, “a perícia médica é ato habitualmente realizado nas demandas por auxílio doença,
aposentadoria por invalidez e benefício assistencial para pessoa com deficiência, ocorrendo,
respectivamente, em 90,5%, 91% e 78% dos casos” (IPEA, 2012, p. 125).
180
Segundo o relatório, o acompanhamento familiar acontece nos casos de perícias psiquiátricas. Quanto
ao acompanhamento por advogado, o relatório informa uma polêmica sobre essa possibilidade no âmbito
do TRF da 4a Região:
“Foi identificada no TRF 4 uma polêmica sobre a pertinência ou não de o
advogado se fazer presente durante a realização da perícia. A polêmica surgiu
a partir
de ações contra médicos movidas por advogados, que reivindicavam
autorização
para participar das perícias, sob a alegação de que seus clientes,
ao ficarem sozinhos com os peritos, sentiam-se desprotegidos. Contudo,
segundo opinião de peritos, o único objetivo desses advogados é compreender
a sistemática da perícia para poder melhor instruir seu cliente e criar estratégias
para driblar o laudo pericial no caso de ser desfavorável à parte (como, por
exemplo, retirar ou não anexar exames ao processo).” (IPEA, 2012, p. 131,
nota 39).
163
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Nas audiências, a participação submissa dos cidadãos autores fica ainda mais
evidente. As audiências de conciliação não são tão frequentes nos JEF quanto são nos
JEC -acontecem em apenas metade dos juizados federais (51%); e são menos
profissionalizadas – juízes conduzem 42% das audiências e os servidores, 22%; ambos
não necessariamente têm treinamento específico em conciliação e mediação (idem, p.
135). Durante as audiências de conciliação, não raro os próprios procuradores
representantes dos réus dirigem perguntas diretamente à parte contrária, mesmo quando
o juiz está presente (idem, p. 137). Se por um lado, essa informalidade viabiliza a
negociação direta entre as partes, por outro a inquirição pelos procuradores intensifica
ainda mais a assimetria entre as partes. As perguntas feitas visam aferir a existência de
um direito a ser reconhecido, o que é típico da instrução processual. Quando a resposta
confirma a probabilidade de existir o direito demandado, o representante do réu formula
uma proposta de acordo. Muito pouco disso é compreendido pela parte autora, que sequer
entendera que estava negociando um direito seu. Como esclarece o relatório, “chama à
atenção a falta de percepção da parte autora de que está sendo realizado um acordo sobre
seus direitos” (idem, p. 137).
Não se pode dizer, no caso, que o cidadão autor tenha se engajado em uma
negociação e disposto livremente sobre uma proposta de acordo – que, inclusive, costuma
ser de cerca de três quartos do que ele teria direito a receber (idem, p. 144). Ele
simplesmente respondeu a perguntas que lhe foram feitas por dois outros atores que ele
desconhece, mas que conhecem o ambiente, o funcionamento e, não raro, conhecem um
ao outro. Como constata a pesquisa, os usuários confundem quem seria, de fato, o juiz e
a parte contrária: “nas varas visitadas, não foi incomum o usuário não conseguir
identificar o juiz, confundindo-o com o procurador do INSS” (idem, p. 142).
164
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A pesquisa traz um relato de observação de audiência nos JEF que ilustra com
clareza o desconhecimento do usuário quanto ao processo judicial e o seu papel nessa
dinâmica. Neste caso, o grau de informalidade teria contribuído para compor a confusão
quanto a autoridade e atuação dos atores processuais, com evidente prejuízo para o seu
comportamento, inclusive negocial.
165
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
destaque para a descrição das etapas que antecedem um acordo e uma decisão, e qual o
papel diferenciado desempenhado por cada ator da relação processual:
Nas audiências observadas foi possível perceber que, muitas vezes, o juiz
“sugere” sutilmente a proposição de acordo pela parte ré simplesmente por
questionar seu representante legal sobre essa possibilidade após a oitiva dos
depoimentos e declarações. Para este, essa pergunta é como uma dica de que o
juiz foi convencido da legitimidade do pleito e de que, se tiver que julgar a
ação, o fará favoravelmente ao autor. Segue-se, então, o acordo, aqui também
proposto se- guindo um padrão e aceito sem qualquer questionamento da parte
autora ou de seu representante. Não havendo proposição de acordo, o juiz deve
decidir a questão (IPEA, 2012, p. 144).
166
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Este capítulo evidenciou, na sua primeira parte, que, no Brasil, o termo “acesso
à justiça” foi internalizado ao debate sociojurídico na década de 1980 como caminho para
a reconstrução das instituições, e foi usado sob diferentes vieses pela ciência e pela
legislação. No direito, a perspectiva institucional deu o tom da produção teórica e
legislativa; nas outras ciências sociais, o olhar soube se posicionar também de uma
perspectiva social (“de baixo para cima”). Na legislação, a sequencia de reformas
processuais alterou aos poucos o sentido do termo até chegar, no CPC de 2015, a um
rearranjo de valores e tendências distantes da ideia original182.
181
O que parece compor a sensação comum de que os recursos atravancam o andamento dos processos
judiciais, presente no discurso reformador recente, é o prolongamento temporal que geram. Nos JEF, os
casos sem recurso tramitam em uma média de 493 dias, ao passo que os casos com recursos chegam à
média de 1.032 dias.
182
Como a preocupação suprema com a eficiência do sistema, segurança jurídica, economia processual,
padronização de resultados e eliminação do estoque. Nenhum desses elementos integram a ideia original
167
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Na segunda parte, deixou claro que o Brasil finalmente dispõe de dados que
podem orientar o desenho de um sistema de justiça e de processo efetivo e recorre a eles
para descrever o nosso perfil de litigiosidade183.
Por fim, contrariando a conclusão que decorre da baixa avaliação da Justiça pela
população, é surpreendente que, ainda assim, as pessoas prefiram litigar no Poder
Judiciário – como concluem os itens 2.2, 3.2 e 3.3 do cap. 2, supra. Vale registrar que
essa preferência é mais intensa quando as pessoas litigam contra uma parte contrária mais
poderosa.
de acesso à justiça, mas tem composto, no debate das políticas públicas judiciárias, o conteúdo conferido
ao termo.
183
Os dados disponíveis versam principalmente sobre a estrutura judiciaria oficial e a movimentação
processual nos tribunais. Há, por outro lado, menos informação organizada sobre a resolução de disputas
que acontece no sistema social, antes de sua judicialização - que este capítulo revelou ser essencial para
compreender o fenômeno da litigiosidade e prescrever sua regulamentação normativa.
168
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Dentre as questões úteis para orientar a aplicação das novas leis, a dos valores
que orientaram as mudanças parece ter importância diferenciada. A doutrina nacional tem
produzido elaborados estudos a respeito do novo Código, parte dos quais dedica
substanciosa atenção às premissas e valores que guiaram as mudanças184. O caráter de
184
Exemplificarmente, os excelentes estudos de Daniel Mitidiero sobre o princípio da colaboração no
processo civil (que se preocupa em sedimentar os seus pressupostos sociais, lógicos e éticos; MITIDIERO,
2011) e sobre os precedentes (que recupera as transformações na teoria da interpretação, MITIDIERO,
2017), o igualmente excelente trabalho de Luiz G. Marinoni sobre os precedentes (que busca na análise
weberiana a raiz das diferenças culturais entre os sistemas de civil law e common law quanto à racionalidade
jurídica e a ideia de previsibilidade, MARINONI, 2016), o completo e não menos excelente trabalho de
Antônio P. Cabral sobre as convenções processuais (que recupera a origem e trajetória do caráter público
do processo civil e o caminho paralelo que sempre percorreu a sua latente natureza privada, CABRAL,
2016). Sem mencionar, apenas pela limitação do espaço, ainda que de merecimento inquestionável, outros
valiosos estudos que a doutrina nacional tem produzido nas últimas décadas. Analisada historicamente, a
ciência processual de tradição italiana sempre reservou lugar de destaque, dentre suas premissas, para a
relação com os preceitos sociais e políticos. Em clássicos como Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei, além
da sofisticação técnica processual, há uma consciência clara das relações sociais e forças políticas que dão
substância ao direito e desencadeiam os litígios. Na sedimentação da doutrina processual brasileira, a
produção das décadas de 1970 e 1980 estava muito conectada com a transformação do contexto social e
político que resultaria na Constituição Federal de 1988. As análises de Barbosa Moreira, Ovídio Baptista,
Kazuo Watanabe, Ada Grinover, Cândido Dinamarco, Calmon de Passos, entre outros, sedimentam-se
sobre premissas culturais e ideológicas, mais ou menos explicitamente. Mais recentemente, a ideia de
“formalismo valorativo” de Alvaro de Oliveira reinaugurou com mais ênfase a relação entre “processo e
cultura” – o que os autores inicialmente citados souberam muito bem aprofundar. Na literatura
contemporânea internacional, abordagens multidisciplinares que exploram as premissas valorativas do
direito processual estão presentes nos trabalhos, por exemplo, de M. Taruffo, Ugo Mattei e Oscar Chase.
169
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
170
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
185
O capítulo 1 apresenta em detalhes esses argumentos e seus fundamentos.
171
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
186
A ideia de um fluxo integrado de resolução de conflitos aparece na obra coletiva coordenada por Gabbay
e Cunha, 2010. O esquema da página 38 e as explicações que o antecedem esclarecem os sentidos desse
fluxo e as suas etapas. Sua análise sugere a existência de causas da litigiosidade externas e internas ao
Judiciário, que a judicialização é uma etapa apenas dentro do fluxo e que o processo judicial se articula a
outros processos na atividade de resolução das disputas. Esse referencial estudo trabalha com a ideia de
“filtros” inseridos em diferentes pontos do fluxo integrado da resolução dos conflitos.
187
É certo que não é o papel prioritário da lei processual. Contudo, o ponto aqui é a sua efetividade, o que
depende de conseguir atuar o próprio direito material. Na verdade, o processo não apenas responde
solidariamente pela promoção da igualdade, como este resultado é que sustenta a sua legitimidade, sua
credibilidade e sua própria razão de existir. Como sintetiza a respeito Barbosa Moreira, “la credibilidad del
proceso como instrumento de solución de conflictos de intereses depende esencialmente de su capacidad
para ofrecer a los respectivos titulares una perspectiva de ecuanimidad.” (BARBOSA MOREIRA, La
igualdad…, 1989)
172
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
173
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Diante desse quadro geral, o principal desafio das políticas judiciárias no Brasil,
em termos de acesso à justiça, não é tanto o acesso ao Judiciário ou à ordem jurídica justa,
mas a desigual distribuição desse acesso188.
A adesão das leis processuais a essa missão é uma opção de política legislativa,
evidentemente. Os exemplos variam desde uma menção retórica no bojo das justificativas
até uma estruturação completa de suas técnicas. O que está em jogo nesta escolha, mais
do que a adequação metodológica, uma bandeira ideológica ou a sensibilização da opinião
pública, é a efetividade que se pode esperar do aparato processual e de justiça, o trabalho
e a dedicação dos quase 470 mil juízes e servidores judiciários do país e, em última
análise, a confiança (e o investimento financeiro) que a sociedade vier a creditar no
sistema oficial de justiça.
188
Curioso que este quadro também se reproduza no sistema de justiça norte-americano, originalmente
atacado pelo argumento de senso comum da “explosão de litigiosidade”. Como bem destaca Deborah
Rhode (2004, p. 24), em estudo referencial no tema, o acesso à justiça nos EUA se caracteriza por “muito
direito aos que tem condições de financia-lo e muito pouco para todos o resto” (no original, “Too much law
for those who can afford it, too little for everyone else”). A diferença, naquele caso, é que a razão da
concentração é o custo dos processos, o que não parece ser o motivo no caso brasileiro.
174
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
189
As premissas desse debate foram adiantadas na introdução ao capítulo 2: “[a]s conclusões teóricas e
empíricas sobre o acesso à justiça ofereceram uma imagem diferente da que tomamos em conta no direito
processual civil brasileiro”. E, prosseguindo, “uma tal discrepância interfere na noção que formamos de
‘litigância de massa’, ‘litigiosidade repetitiva’ e fenômenos relacionados e, assim, na compromete o
potencial da legislação, voltada a ‘combate-los’ sem compreende-los suficientemente”. Do que se conclui
que “os resultados possíveis vão desde a inaptidão dos atores do sistema de justiça para lidar com os
instrumentos da nova legislação até a sua completa ineficácia e baixa efetividade em termos de produção
de justiça material.”
175
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
176
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
177
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
190
O conceito de formalismo processual foi exemplarmente explorado no estudo referencial de Alvaro de
Oliveira (2010), então definido como “ a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma,
ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos
processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com
vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”, investindo-se, assim, na “tarefa de indicar as
fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de
quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento”, com o
que “contém, portanto, a própria idéia do processo como organização da desordem, emprestando
previsibilidade a todo o procedimento”. (p. 28).
178
Modelo adversarial puro
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
179
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Essa trajetória foi longa e intensa. Nos últimos cem anos, o país recebeu uma
sequência quase ininterrupta de legislações processuais, acumulando ao menos cinco
sistemas normativos. No início do século XX, as disputas cíveis eram formalmente
julgadas por um conjunto disperso de leis processuais, algumas das quais ainda remetiam
à legislação colonial portuguesa.
A questão de sistema não é uma questão a ser resolvida pelos técnicos; é uma
questão de política legislativa, dependendo, antes de tudo, do lugar que o
Estado, na ordem dos valores, destina à justiça, do interesse maior ou menor
que o Estado tenha em que ela seja administrada como o devem ser os bens
públicos do grau superior. (...). (Exposição de Motivos do CPC de 1939).
Pondo a verdade processual não mais apenas a cargo das partes, mas confiando
numa certa medida ao juiz a liberdade de indagar dela, rompendo com o
formalismo, as ficções e presunções que o chamado “princípio dispositivo”, de
“controvérsia” ou “contradição”, introduzira no processo, o novo Código
procura restituir ao público a confiança na Justiça e restaurar um dos valores
primordiais da ordem jurídica, que é a segurança nas relações sociais reguladas
pela lei. (idem)
180
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
configurar propriamente “um novo estilo processual” (Dinamarco, 2016, p. 35), a diretriz
sociopolítica era bastante diferente, o que se refletiu, se não no texto, na interpretação e
aplicação da nova lei. A opção pela racionalidade técnica processual é, em si, uma
evidência dessa mudança. A técnica impôs-se ao caráter político e social do sistema de
justiça com o objetivo declarado de produzir justiça pela “observância da lei” e “sem
delongas”. As palavras de Buzaid na Exposição de Motivos soam quase que como uma
resposta às de Campos, na exposição anterior, acima transcrita: “Um Código de Processo
é uma instituição eminentemente técnica. E a técnica não é apanágio de um povo, senão
conquista de valor universal. (…) ”191.
191
Mitidiero faz uma relação entre o argumento de Buzaid e, em ultima análise, o de Chiovenda ao defender,
no início do século XX, a assimilação do processo alemão e austríaco pela Italia. Segundo o autor, ambos
insistem em uma visão do processo como um “fenômeno técnico”, alheia ao seu caráter cultural.
(MITIDIERO, 2007, p. 13)
192
Na sua peculiar clareza, argumentava ser “inegável o paralelo entre a disciplina do processo e o regime
constitucional em que o processo se desenvolve” (GRINOVER, 1973, p. 13) e, invocando lição de
Cappelletti, enfatizava que “é na Constituição que se deve procurar a solução do problema do
relacionamento entre a lei, a justiça e a liberdade – que é, em última análise, o problema da relação entre
indivíduo, sociedade e Estado.” (p. 14).
181
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
década de 1980, a investigação vai além dos valores constitucionais nos quais deveria
buscar fundamento e busca diálogo com as “instituições sociais, do poder e do Estado”,
ressentindo o descaso com a “realidade do mundo” em que está inserida. (DINAMARCO,
1990, p. 9, original de 1986)193. De modo ainda mais enfático, Barbosa Moreira
sistematiza as “dimensiones sociales del proceso civil”, refletindo, em tom autocrítico,
que
Essa talvez tenha sido a fase em que a legislação processual incorporou com
mais intensidade o ideário de acesso à justiça, nos termos do repertório disponível à
época: a superação dos obstáculos pelo influxo das três ondas renovatórias que Cappelletti
e Garth propuseram em 1978.
193
Cândido Dinamarco, em 1986, na apresentação da tese da “Instrumentalidade do processo”, ponderava
já não bastar “aprimorar conceitos e burilar requintes de uma estrutura bem engendrada, muito lógica e
coerente em si mesma, mas isolada e insensível à realidade do mundo em que deve estar inserida, e defendia
ser “tempo de integração da ciência processual no quadro das instituições sociais, do poder e do Estado”.
Na mesma apresentação, propunha a “abertura do sistema processual aos influxos do pensamento publicista
e solidarista vindo da política e da sociologia do direito” (DINAMARCO, 1990, p. 9).
182
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
“justiça tarda mas não falha”, implícito nos motivos do CPC de 1973, cedeu à reação
generalizada de que “justiça tardia não é justiça”.
Em uma síntese com meros fins didáticos, podemos identificar o modelo do CPC
de 1939 como o da “jurisdição ativista”, o de 1973 como o da “jurisdição técnica”, o das
leis da década de 1980 como a “jurisdição garantista”, as leis da década de 1990 como o
183
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
da “jurisdição célere” e o das décadas de 2000 e 2010s, inclusive o CPC atual, comporia
o modelo da “jurisdição eficiente”194.
194
Adoto o termo “modelo processual” para designar o conjunto composto pelo sistema processual e o
contexto sociopolítico que o inspira. Separo cada sistema legislativo e época respectiva e designo-os
genericamente por ‘modelos processuais’, inclusive para facilitar a comparação entre eles. Reconheço a
generalidade dessa designação quando comparada, por exemplo, com a de Dinamarco, para quem “um dado
sistema processual, considerado pelo conteúdo específico das normas que o regem, pela concreta
configuração dos órgãos que o operam e pelo modo de ser dos institutos encadeados em razão desse objetivo
constituiu um modelo processual”. Sistema processual, para o mesmo autor, seria “um conglomerado
harmônico de órgãos, técnicas, institutos jurídicos regidos por normas constitucionais e infraconstitucionais
capazes de propiciar sua operacionalização segundo o objetivo externo de solucionar conflitos”.
(Dinamarco, 2016, p. 284 e 285)
184
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Por fim, a constante vigília exercida contra a valorização exagerada das formas
processuais – em lei e em teoria, embora mais difícil de incorporar às práticas.
Paralelamente, o ideal de ampliar a cobertura da tutela jurisdicional e o acesso da
sociedade à justiça parece presente nos discursos de todo o período. As ideias de
instrumentalismo processual e de acesso à justiça, representativas dessas tendências,
pautaram o direito processual civil brasileiro sobretudo no último quartel do século
XX196. Em outros períodos, as mesmas ideias parecem presentes, ainda que com outros
nomes197.
Por outro lado, os sistemas não seguem um padrão único em termos de acesso à
justiça e cada sistema parece preencher o ideal com conteúdos variados. O CPC de 1973
privilegiou o tecnicismo como caminho para a justiça e a igualdade. A Constituição de
1988 consagrou a universalização da ação e a participação das partes pelas garantias
processuais. As reformas da década de 1990 reduziram a ideia de acesso à justiça,
marcante na década anterior, à de celeridade e efetividade. Este sentido culmina, no
código atual, na valorização da liberdade das partes, da eficiência e da segurança jurídica
195
A tendência à publicização do direito processual também se reflete no perfil das disputas judicializadas,
caracterizadas por um embate entre interesses com alguma projeção coletiva ou social, ainda que se
apresentem sob formato individual. O direito do consumidor, o direito à saúde, o direito a benefícios
previdenciários, as obrigações fiscais – que compõem o maior volume de casos judicializados – exprimem
relações jurídicas substancialmente distintas da dos clássicos direitos privados de propriedade e de crédito
que compunham a matéria dos processos civis de outras épocas.
196
É natural que alguns períodos enfatizem uma ou outra dessas tendências. O CPC de 1973, por exemplo,
enfatiza a segunda tendência enquanto o CPC de 2015 mitiga a primeira, por sua vez mais evidente no CPC
de 1939. Mas, de modo geral, entre avanços mais ou menos ousados, as três tendências podem ser
observadas no período.
197
O CPC de 1939 é o melhor exemplo. Combater as “chicanas processuais” e o “sporting theory of justice”,
“remover as causas da injustiça”, o “papel atribuído ao juiz em relação à prova” são motivos daquela lei
que têm relação com as ideias de acesso à justiça e instrumentalismo processual. O trecho abaixo, da
Exposição de Motivos do CPC de 1939, refere-se ao controle formal de admissibilidade dos recursos e
poderia facilmente justificar os dispositivos do CPC de 2015 que, pautados na instrumentalidade do
processo, reprimem a chamada jurisprudência defensiva: “É radicalmente errôneo um sistema no qual
assuntos de simples processo desempenham papel tão importante, e em que as sentenças podem ser revistas
e postas de lado com o fundamento de que, na opinião do tribunal revisor, as regras não foram rigidamente
observadas, ainda que de significação puramente técnica, sem influência na substância do direito dos
litigantes.”
185
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
198
In totum, “O processo em vigor, formalista e bisantino, era apenas um instrumento das classes
privilegiadas, que tinham lazer e recursos suficientes para acompanhar os jogos e as cerimônias da justiça,
complicados nas suas regras, artificiosos na sua composição e, sobretudo, demorados nos seus desenlaces.”
(Exposição de Motivos do CPC de 1939).
186
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Para uma análise mais detalhada do sistema processual brasileira frente aos
critérios comparativos Kagan (2003), ao ideal de acesso à justiça e ao perfil da justiça no
Brasil, é preciso conhecer com maior profundidade os destaques da nossa nova legislação
– o que é objeto do item seguinte.
199
Considerar a desigualdade material na estruturação dos instrumentos processuais vai muito além da
previsão, ainda que constitucional, da assistência jurídica gratuita e de dispositivos relacionados – o que, é
notório, a legislação brasileira reconhecidamente fez. Pelas razões explicadas pelas teorias apresentadas no
capítulo 1, a consideração da desigualdade no processo depende de um sistema mais complexo de
neutralização das vantagens estratégicas dos litigantes repetitivos e de nivelamento de condições com o
participante eventual da Justiça.
200
Merece nota o estudo de Fernanda Tartuce sobre a “Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil”,
resultado de tese de doutoramento em direito, com análise da aplicação de diferentes instrumentos
processuais da perspectiva da igualdade substancial das partes (Tartuce, 2012)
187
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
201
GRINOVER, A.P. Ensaio sobre a processualidade – fundamentos para uma teoria geral do processo.
Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.
188
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
189
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
202
Porque ocupam uma função meramente exemplificativa das tendências valorativas analisadas, o exame
dos institutos e mecanismos processuais específicos não terá a profundidade que seria possível em um
estudo monográfico a seu respeito. Aspectos gerais do seu funcionamento têm mais importância na
construção do argumento do que o detalhamento dogmático completo de suas regras. Pela mesma razão, a
escolha dos autores e trabalhos adotados como referência também não é exauriente e, de modo algum,
significa menor importância ou qualidade científica de estudos não mencionados. Pelo contrário. A
pesquisa empreendida encontrou trabalhos de excelente qualidade sobre os assuntos tratados, todos
passíveis de serem aqui trazidos. Infelizmente, o tempo e o espaço impedem contempla-los todos. Ficarei
ainda assim grato se, mesmo assim, conseguir oferecer algum caminho para o diálogo com as opiniões e
análise tanto dos autores citados quanto também das referências que deixaram de ser mencionadas.
203
Desde a década de 1990, a sociologia do direito no Brasil tem argumentado que “o tempo do direito é
maior do que o tempo da economia e da sociedade” e, com isso, exigido do direito que seja reformado para
diminuir essa diferença (FARIA, J. E., (1993). Direito e economia na democratização brasileira.
Malheiros; FARIA, J. E. (2002). O direito na economia globalizada. Malheiros). Paralelamente, o
movimento denominado Law and Economics oferece uma nova leitura para teoria do direito a partir da
inclusão do valor eficiência à ideia de justiça, representado principalmente pelos princípios de celeridade,
segurança jurídica e previsibilidade. As referências são muitas, dentre elas, COASE, Ronald, "The Problem
of Social Cost," 3 Journal of Law and Economics 1 (1960); POSNER, Richard A., Economic Analysis of
Law. New York: Aspen, 5th ed., 1998, COOTER, R., & ULEN, T. (2010). Direito & economia. Ed.
Bookman; COASE, R. (1990). The Firm, The Market, and the Law. Chicago: University of Chicago Press.
No Brasil, a área articula estudiosos de diferentes instituições, com produção de qualidade reconhecida,
muitos deles reunidos no âmbito da Associação Brasileira de Direito e Economia, a ABDE
(https://abde.com.br), aqui referenciada em nome dos autores representados.
190
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
jurídica é talvez o mais significativo exemplo204. Mas a verdade é que, no tema do acesso
à justiça, esse embate já era anunciado por Roscoe Pound na famosa conferência sobre as
causas da insatisfação popular com a administração da Justiça, em 1906 (POUND,
2006)205.
204
A partir de uma releitura da teoria institucionalista desenvolvida principalmente pela sociologia das
organizações (MORRIL, 2017), os estudos de Ronald Coase, Oliver Williamson e Richard Posner
sedimentaram alicerces para toda uma renovação do repertório jurídico de sistemas de todo o mundo a
partir das premissas de que o agente, porque racional, busca maximizar suas vantagens e o sistema oferece
incentivos e desincentivos a esses comportamentos conforme os seus próprios escopos, controlando, na
medida do possível, as externalidades negativas inexoravelmente decorrentes. Um bom debate a respeito
do encontro entre as duas correntes, a nova economia institucional e a análise econômica do direito, pode
ser acompanhado na troca de artigos científicos entre dois de seus representantes, Oliver Williamson e
Richard Posner, publicada em 1993: POSNER, R. A. (1993). The new institutional economics meets law
and economics. Journal of Institutional and Theoretical Economics (JITE)/Zeitschrift für die gesamte
Staatswissenschaft, 73-87; e WILLIAMSON, O. E. (1993). Transaction cost economics meets posnerian
law and economics. Journal of Institutional and Theoretical Economics (JITE)/Zeitschrift für die gesamte
Staatswissenschaft, 149(1), 99-118.
205
Aliás, conferência que setenta anos depois Warren Burger (1982) aproveitou para lançar a idéia da
“explosão da litigância” e dos remédios recomendáveis, dentre os quais os então batizados por Sander
(1976) como métodos de ADR.
206
O italiano Ugo Mattei parece ter sido pioneiro ao analisar a relação entre a “tutela inibitoria” e a “tutela
risarcitoria” com base em um referencial artigo de Guido Calabresi, adotado em muitos trabalhos da “Law
and Economics”. (MATTEI, U. (1987). Tutela inibitoria e tutela risarcitoria: contributo alla teoria dei diritti
sui beni(Vol. 54). A. Giuffrè; CALABRESI, G., & MELAMED, A. D. (1972). Property rules, liability
rules, and inalienability: one view of the cathedral. Harvard law review, 1089-1128).
191
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
parece preocupado com a litigiosidade, como é típico dos trabalhos mais recentes da
vertente207.
Com o novo Código, a eficiência, nas suas diferentes vertentes, é invocada tanto
como justificativa quanto como valor último fundante dos instrumentos instituídos208. Os
comentários e análises sobre novidades trazidas pelo Código, por exemplo, confirmam a
assimilação da tendência economicista e focam sua preocupação em aspectos como o
comportamento de litigiosidade, os custos do processo e a previsibilidade dos
julgamentos. Até mesmo o ideal de acesso à justiça é reduzido ao valor da eficiência209.
207
Sobre Mattei, interessante que ele mudou completamente de perspectiva metodológica nas últimas
décadas, como se identifica pelo excelente trabalho de pesquisa que tem desenvolvido com a antropológa
Laura Nader (Mattei, U., & Nader, L. (2008). Plunder: when the rule of law is illegal. John Wiley & Sons).
208
Dentre essas merece nota, inclusive por se dedicar a analisar mecanismo do novo CPC, o trabalho de
Júlio Muller, sobre convenções processuais e a prova oral, dedica o capítulo final à sistematização de pontos
de contato entre o direito processual e a análise econômica do direito (MULLER, 2016). Também merece
registro, inclusive pela influência que teve no desenho do novo Código, a oferta da disciplina “Análise
Econômica do Direito Processual”, pelo Ministro Luiz Fux, junto ao Programa de Pós Graduação do Centro
Universitário de Brasília – Uniceub,
(https://www.uniceub.br/media/1290912/Análise_Econômica_do_Direito_Processual.pdf, acesso em
janeiro de 2018. A eficiência é invocada para justificar diferentes inovações do Código. A título de
exemplo, a adaptação das regras processuais por meio de acordos celebrados pelas partes. Antônio Cabral
elege a eficiência como “uma das vantagens mais evidentes dos acordos processuais” (2016, p. 194; com
apoio em referências nacionais e estrangeiras, dentre as quais uma decisão da Suprema Corte norte-
americana). Segundo ele, “(...) flexibilização e adaptação são características necessárias para emprestar
eficiência ao processo atual.” A valorização dos precedentes é fundada sobretudo na busca pela
previsibilidade das decisões, reivindicação antiga dos economistas em relação ao direito (FARIA, 1993).
209
Por todos, CAIS, F.F. (2016) “O paradoxo do acesso à justiça”. In: PUOLI, José Carlos Baptista;
BONÍCIO, Marcelo José Magalhães; LEONEL, Ricardo de Barros (Coord.). Direito processual
constitucional. Brasília, DF: Gazeta Jurídica.
210
Para fins de sistematização didática, eventulamente designo-as pelos termos “gerencialismo processual”,
“jurisprudencialismo” e “pragmatismo processual”. Embora ciente de que os termos remetam a ideia de
movimentos filosóficos ou teóricos consolidados (sobretudo pela designação...ismos que aqui os
acompanha), é preciso registrar que não são termos reconhecidos e menos ainda consagrados na teoria
processual. Streck e Abboud fazem um comentário crítico sobre o uso dos vários ismos pela teoria
processual (STRECK, L.L.; ABBOUD, G. O que é isto – precedente judicial e súmulas vinculantes? 3a.ed.,
rev. atual. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2016). A designação aqui usada serve tão somente para
facilitar a identificação e diferenciação para fins deste estudo.
192
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
211
A tendência é um reflexo de similar movimento observado nas organizações em geral, públicas e
privadas. Para uma excelente explicação sobre seus efeitos do managerialism sobre o direito e o modo
como o sistema jurídico o apropria, reformata e replica nas práticas jurídicas, v. EDELMAN, 2016.
212
Por inspiração em instrumento homônimo de regimes jurídico processuais de common law, como as
regras das cortes federais norte-americanas e as do novo código de processo civil inglês. V. ALVES DA
SILVA, 2010, cap. 2. Também compara o gerenciamento de processos dos modelos de common law, a
dissertação de mestrado de Thiago Carlos de Souza Brito, orientada pelo professor Gláucio Ferreira Maciel
Gonçalves, no âmbito do programa de Pós Graduação em Direito da UFMG, 2013.
213
Marcus K. Onodera faz um levantamento das possibilidades de uso do gerenciamento de processos no
âmbito dos juizados especiais, dos processos coletivos, na mediação e arbitragem e no procedimento
comum regulado pelo CPC. ONODERA, Gerenciamento do processo (case management) no direito
processual civil brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 2016.
193
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
214
Anteprojeto de CPC, Art. 107. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: (...) V – adequar as fases e os atos processuais às especificações do conflito, de modo a
conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa;
215
Anteprojeto de CPC, Art.151. Os atos e os termos processuais não dependem de forma determinada,
senão quando a lei expressamente a exigir, considerando-se validos os que, realizados de outro modo, lhe
preencham a finalidade essencial. § 1o Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revela-
rem inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório
e a ampla defesa, promover o necessário ajuste.
216
Há uma identificação forte entre a atividade prevista para ser desenvolvida e formalizada no despacho
saneador e o que hoje se chama por “gerenciamento de processos”. Uma leitura simples, sempre
recomendável, da obra clássica de Galeno Lacerda esclarece os pontos de correspondência (LACERDA,
1990). Uma análise a esse respeito, cf. ALVES DA SILVA, 2010.
217
Camilo Zufelato faz uma interessante sistematização do que chama de perspectivas “macro” e “micro”
do gerenciamento de processos judiciais, em ZUFELATO, C.. Flexibilização procedimental e gestão
processual no direito brasileiro. In: ZUFELATO, Camilo; BONATO, Giovanni; SICA, Heitor Vitor
Mendonça; CINTRA, Lia Carolina Batista. (Org.). I Colóquio Brasil-Itália de direito processual civil.
1ed.Salvador: Salvador, 2015, v. 1, p. 245-264. Diego Assumpção Rezende de Almeida identifica, na
experiência inglesa, a decisão de uma Court of Appeal daquele país que “sustentou que a gestão proativa
dos processos não pode limitar-se ao caso específico que está sendo gerido pelo tribunal naquele momento.
É fundamental que os juízes lidem com os casos individualmente, mas levando em consideração a
existência de outros que também estão pendentes de julgamento”. (ALMEIDA, 2015, p. 38)
194
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O atual CPC consagrou técnicas que vinham sendo aplicadas em caráter isolado
a partir de um modelo pioneiro de gerenciamento de processos judiciais (GRINOVER,
LAGRASTA, WATANABE, 2007), como o dever da promoção dos métodos
consensuais (art. 3o) e a possibilidade de o juiz definir prazos e organizar calendários
processuais (art. 139 e 191). Todos os envolvidos no processo - partes, representantes e
o julgador -, ficam incumbidos de estimularem a resolução consensual (art. 3o). E as
partes podem convencionar sobre ônus, poderes, deveres e faculdades processuais (art.
190) e o juiz, com elas, pode fixar um calendário processual – técnica conhecida nos
modelos de case management das cortes federais norte-americanas desde a década de
1990 (ALVES DA SILVA, 2010). O negócio jurídico processual e o calendário
processual (art. 190 e 191, objeto de item específico infra) também invocam premissas
de gerencialismo, acrescidas, no caso, à ideia de autorregramento pelas partes
(NOGUEIRA, 2016; CABRAL, 2016).
218
Conforme a sistematização de tendências da nova legislação processual brasileira feita neste estudo,
essas técnicas integram tanto o gerencialismo quanto o consensualismo, analisado em item próprio adiante.
195
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A despeito de alguma similitude que possa haver entre suas naturezas técnicas –
e entre algumas categorias conceituais básicas, como o próprio “processo” (NOGUEIRA;
ALVES DA SILVA, 2013) – as suas premissas e características não necessariamente são
compatíveis, o que dificulta comungar seus objetivos em instrumentos híbridos
específicos.
196
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
219
Por isso entendo que o gerenciamento de processos judiciais é uma racionalidade, mais do que um mero
receituário de técnicas (Alves da Silva, 2010).
220
Que o professor Ovídio B. da Silva sempre trouxera à pauta de debates, em diversos seus estudos.
221
Cabral constrói o argumento da eficiência dos acordos processuais com base na “insuficiência do
procedimento ordinarizado, mas também [d]o esgotamento das potencialidades do modelo de
procedimentos especiais.” (2016, p. 195). A complexidade característica das sociedades contemporâneas
exige uma dose de versatilidade da atuação jurisdicional que o rito ordinário não tem condições de oferecer,
197
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A saída oferecida pelo novo Código para balancear a segurança de uma rotina
padronizada e a conveniência de um processo customizado foi atribuir essa
responsabilidade aos próprios atores do processo, as partes, com ou sem o juiz. As
convenções em matéria processual, operacionalizadas principalmente pelo negócio
jurídico processual (art. 190), bem como o calendário procedimental (art. 191), são
exemplos223. Esta saída tem o mérito de valorizar a liberdade das partes no processo,
potencializar o grau de adaptação das formas processuais às necessidades do caso, além
de eximir o legislador da custosa tarefa de encontrar um procedimento “one size fits all”,
como se tem dito. Como sintetiza Cabral (2016, p. 200) acerca deste ponto, “a definição
do desenho de cada procedimento, quando operada pelas partes, traduz poderosa técnica
de gerenciamento processual em favor da eficiência.”.
Por outro lado, a solução do CPC 2015 traz um desafio novo no diálogo entre o
direito e a gestão: a do poder de definição dos procedimentos. Na gestão, essa questão
simplesmente não existe, ou não é sensível o suficiente para ser destacada. Os
procedimentos são definidos em função do menor custo que incorrerem para a produção
de uma mesma quantia de igual produto. Este é o vetor quase que exclusivo no desenho
dos procedimentos. Não existe uma polarização entre atores envolvidos no processo
produtivo quanto à escolha do procedimento – ou melhor, ela provavelmente existe, mas
não é considerada relevante.
como também não o têm os procedimentos especiais e mesmo as tutelas jurisdicionais diferenciadas, “e a
busca por maior eficiência, por uma gestão de risco, certeza etc., levou ao crescimento do interesse em
alterar essas regras” (p. 195)
222
Antônio do Passo Cabral justifica a viabilidade de uma gestão dialogada e cooperada do procedimento
pelas partes a partir das experiências do case management e a do princípio da adaptação do procedimento
(CABRAL, 2016, p. 196). Ele compara os mecanismos norte-americano e inglês com o princípio da
adaptação do procedimento adotado pelo sistema português para, diante do fato de que aqueles operarem
no sentido do deslocamento da condução do processo das partes para o juiz, argumentar que “a inserção do
tema da adaptabilidade no Brasil veio pela influência portuguesa” (idem)
223
Nesse sentido., ALMEIDA, 2015, pp. 32 e ss.; CABRAL, 2016, p. 198 e ss.
198
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Algo muito diferente acontece no processo judicial: não apenas cada uma das
partes têm interesses específicos de natureza material e processual, como o Estado, na
pessoa do juiz, interessa-se pelo desenho procedimental a que estará sujeita a atividade
jurisdicional. Todos desejam os melhores resultados em termos de eficiência, mas nem
sempre – dificilmente, inclusive - comungam o sentido que atribuem a “resultado mais
eficiente”224.
224
Dentre os principais limites do gerenciamento de processos judiciais para a promoção do acesso à justiça
é a relação complexa entre os ideais de justiça e eficiência. Em grande parte dos casos, uma decisão eficiente
tende a ser justa e um processo eficiente tende a culminar em uma decisão justa. Mas nem sempre é assim.
A relação entre justiça e eficiência está distante de uma proporcionalidade absoluta. A justiça tem premissas
e premências próprias, nem sempre coincidentes com as de eficiência. O desafio particularmente imposto
à teoria processual, ao entrar nesse debate, é identificar se e em que medida o direito processual, porque
eminentemente técnico e instrumental, seria mais propenso a equilibrar a relação entre eficiência e justiça
do que outras áreas do direito material.
225
Some-se o fato de que os artigos 107, inc. V e 151 do Anteprojeto do Código, que previam um tipo de
gerenciamento processual baseado nos poderes do juiz, não terem sido aprovados na versão final.
226
Cabral (2016, p. 196) argumenta que, por esse motivo, o nosso gerenciamento de processos judiciais
teria inspiração na legislação portuguesa, que anos antes introduzira uma regra de adaptação do
procedimento. Faz sentido o argumento do ponto de vista das suas semelhanças com a flexibilização do
procedimento. Mas é equivocado do ponto de vista histórico. O gerenciamento de processos judiciais, ao
menos com esta denominação, foi implantado no Brasil, em caráter exploratório, por meio de um projeto
desenvolvido pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, o CEBEPEJ. Como declaram seus
idealizadores, a inspiração foi o modelo de case management das cortes federais norte-americanas,
conhecido quando de visita realizada (GRINOVER et al, 2007). Como o modelo se baseava na
flexibilização do procedimento, tanto quanto na resolução consensual das disputas, ele foi analisado
teoricamente da perspectiva da flexibilização do procedimento, em caráter pioneiro e excelente qualidade
técnica, convém registrar, pelo colega Fernando Gajardoni (GAJARDONI, 2008)
199
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Por outro lado, os dados coletados nas experiências anteriores – a inglesa e a das
cortes federais norte-americanas – demonstraram que o “case management” produz, para
usar a terminologia economicista, externalidades negativas que podem restringir, em vez
de assegurar, o acesso à justiça. O custo é a principal delas.
227
Como exemplo, Cabral justifica os acordos processuais do ponto de vista do acesso à justiça sob o
argumento de que eles atenderiam melhor às necessidades dos litigantes. Porque permitem adaptar o
processo às “necessidades dos litigantes (legal needs)”, são importantes “para que o acesso à justiça seja
pensado não apenas da perspectiva da tutela oferecida (ou na óptica do próprio Judiciário), mas com olhos
voltados para as necessidades humanas que precisam do Estado-juiz”. (CABRAL, 2016, p. 201). Na mesma
linha parece ser a conclusão de Marcus Onodera (ONODERA, 2016).
228
Há uma fala interessante quando se trata tanto de gerenciamento de processos judiciais quanto de
resolução “alternativa” de disputas que ilustra bem esse argumento. Afirma-se, para justificar esses
mecanismos, que as pessoas, e os seus casos, não são todos iguais, de sorte que o procedimento ordinário
ou a decisão adjudicatória não servem perfeitamente a todas elas. A figura utilizada é a de uma espécie de
“one size fits all”, no sentido de uma vestimenta de tamanho único para todas as pessoas, casos e situações.
Parece-me indubitavelmente correto o argumento. Como também parece-me plausível a constatação de que
a “fabricação” de procedimentos e soluções específicas, “customizadas” para usar um termo próprio,
embora adequados, têm um custo consideravelmente maior do que aqueles padronizados. Em outras
palavras, o gerenciamento de processos judiciais têm um custo maior do que o tratamento ordinário padrão
200
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
management” foi mais sensível para o Judiciário e também para os advogados, o que
permite supor que algo semelhante também para os sistemas em que a gestão dos
procedimentos esteja a cargo das partes, não apenas do juiz, como o brasileiro.
Somado a isso, o modelo de gerenciamento instituído pelo CPC 2015, com a Lei
de Mediação, reduziu as possibilidades de controle sobre esses riscos ao transferir para
as partes o papel de montarem o desenho do procedimento aplicável ao caso. Como
veremos em item específico adiante, os limites e o controle sobre as convenções
processuais são aqueles definidos no artigo 190, com os que lhe tem atribuído a doutrina
especializada. De todo modo, porque o objetivo era justamente dotar o processo de
flexibilidade procedimental e maior âmbito de liberdade para as partes, não se trata do
mesmo grau de controle concentrado que seria possível seria exercível pelo juiz – como
acontece nos modelos originais de case management. A conjugação do direito com a
gestão por meio dos processos de resolução de disputas sai do controle do legislador e,
no caso brasileiro, não entra no controle do juiz, mas daquele exercido pelos próprios
litigantes, na composição do exercício de suas liberdades no processo. Esse modelo traz
o indubitável benefício das vantagens do processo customizado com o custo e risco, em
dos processos, como apontam os dados coletados na experiência inglesa e norte-americana. V. ALVES DA
SILVA, 2010.
201
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
No caso brasileiro, a opção legislativa – que, vale anotar, já era notada na década
de 1990 – ancora-se em duas principais justificativas: a exigência concreta de organização
judiciária e economia processual - o que vai desde uma solução para o problema
emergente da “carga de trabalho” nos tribunais brasileiros (cf. dados no cap. 2, supra) até
229
Na verdade, o termo jurisprudência é mais amplo do que o sentido que se deseja atribuir aqui e, ao
mesmo tempo, mais restrito. Jurisprudência é mais do que o entendimento que serve de critério de decisão
de casos posterior. Mas entendimentos judiciais que não se qualificam como jurisprudência também
exercem esse papel de critério de decisão. Sobre a diferença entre jurisprudência e precedentes, v. Mitidiero
(2017).
202
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
o direcionamento das cortes supremas para a função de unificação dos sentidos da norma
jurídica – e a busca por uma noção de justiça identificada como segurança jurídica e
igualdade de resultados – soluções iguais para casos iguais, to treat like cases alike -,
mais enfatizada na legislação recente.
A mudança reafirma a velha lição de que os tribunais superiores não são órgãos
de revisão e que seriam melhor aproveitados como agentes de unificação do sistema; eles
integram, afinal, uma instância especial, não uma “terceira instância” julgadora de litígios
singulares.
230
Remeto o leitor à definição de “litigiosidade de massa” e “litigiosidade repetitiva” apresentada no correr
do capítulo 1. Essencialmente, há diferenças entre os fenômenos - a litigiosidade repetitiva não
necessariamente é de massa, e a litigiosidade de massa pode não ser repetitiva. Contudo, é a sua
configuração conjunta que se torna problemática para o funcionamento do sistema e a unidade do
ordenamento, a suscitar tratamento processual especial. Opto, portanto, para os fins da investigação deste
estudo, por tratá-lo geralmente em conjunto, indistintamente.
231
Termo usado no debate doutrinário que veio a compor a Exposição de Motivos do Anteprojeto.
203
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
232
CPC, art. 489, §1o, inciso VI: “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente
invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento” e inciso V: “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.
233
A doutrina atribui um sentido bastante geral ao verbo “observar” presente nesse dispositivo. Não se trata
de um dever de seguir estritamente o entendimento exposto no que se considera jurisprudência, mas de lhe
dar devida consideração, conforme as regras legais pertinentes. Se a lei lhe atribui efeito persuasivo, a
decisão deve considera-lo e apenas sob forte fundamentação eventualmente recusar-lhe aplicação. Já se a
lei lhe atribui efeito vinculante, “observar” significaria aplica-la ao caso. Neste sentido, MITIDIERO (2017,
pp. 81 e ss).
204
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
234
V. a seguir comentários sobre as hipóteses de improcedência liminar do pedido (art. 332). Na
determinação do dever genérico dos tribunais observarem a “jurisprudência”, a lista é melhor detalhada:
“decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; enunciados de
súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; enunciados das súmulas do
Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional; a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.” Ambos
comentados logo a seguir.
205
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O IRDR tem por principal característica, o que é também sua principal vantagem
em para a eficiência do sistema, a possibilidade de fixação de tese jurídica a partir do
julgamento de um caso, aplicável a todos os outros, atuais e futuros, individuais ou
coletivos, que versem sobre a mesma questão de direito (art. 985). Desta forma, o IRDR
235
Mitidiero (2017, p. 89), ao discutir outra questão, a diferença entre precedente e jurisprudência, parte de
um argumento semelhante ao constatar que o sistema brasileiro criara um novo sentido para a
“jurisprudência”, que ele ilustra com o de “jurisprudência uniformizadora”, vinculante não tanto porque
contém um precedente, mas porque resulta de uma determinada forma de julgamento à que o legislador
atribuiu efeitos equivalentes. Em suas palavras, “o Novo Código claramente outorgou outro sentido ao
termo jurisprudência – ao menos para determinados casos. Para essas situações, o Novo Código exige a
sua ressignificação: isso porque, ao emprestar força vinculante aos julgamentos de casos repetitivos e
àqueles tomados em incidente de assunção de competência (art. 927, III) no âmbito das Cortes de Justiça e
dispensar a múltipla reiteração de julgamentos como requisite para a sua configuração, na medida em que
basta um único julgamento mediante incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência, o direito brasileiro rompe em grande parte com a caracterização tradicional da
jurisprudência.”
236
O termo tem aparecido com crescente frequência no debate sobre o regime brasileiro de precedentes. Há
registros de seu uso por Lenio Streck e G. Abboud (2014), Zufelato (2015), Igor Raatz (“Precedentes
obrigatórios ou precedentes à brasileira?”), e já ganhou título de livro (ROSSI, J. C. Precedente À Brasileira
- A Jurisprudência Vinculante No CPC e No Novo CPC, São Paulo: Atlas, 2015).
206
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
237
CPC, Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do
réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em
incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - enunciado de súmula
de tribunal de justiça sobre direito local. § 1o O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o
pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. § 2o Não interposta a apelação,
207
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
jurisprudência serve como critério para o exercício de um julgamento imediato, ainda que
sem a citação do réu238. Outro exemplo é a da lista que condiciona o exercício dos poderes
de julgamento imediato pelo relator de recurso (art. 932). Diante de recursos interpostos
contra decisões fundadas ou que contrariem jurisprudência prévia, o relator poderá desde
logo julga-los em definitivo, negando-lhes ou concedendo-lhes provimento239.
o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241. § 3o Interposta a apelação,
o juiz poderá retratar-se em 5 (cinco) dias.§ 4o Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento
do processo, com a citação do réu, e, se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar
contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias.
238
Neste caso, a tendência mais evidente é a do pragmatismo, apresentada no item seguinte; o
jurisprudencialismo serve como critério para o exercício de um julgamento imediato, ainda que sem a
citação do réu, atendendo a finalidade prática de “resolver problemas” (v. item a seguir)
239
CPC, Art. 932. Incumbe ao relator: (…) IV - negar provimento a recurso que for contrário a: a) súmula
do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido
pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência; V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a
decisão recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça
ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de
Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de
demandas repetitivas ou de assunção de competência.
240
Pound (1906), no famoso discurso sobre as causas da insatisfaçao popular com a justiça, falava do “preço
da uniformização” e do conflito interente à diversidade que caracteriza as sociedades contemporânea.
241
De modo geral, os autores especializados anunciam essa relação, atribuindo-lhe maior ou menor
determinância na instituição dos mecanismos no sistema brasileiro. Em tom mais crítico, merece menção
os argumentos de Streck e Abboud (2014). Mitidiero (2017, p. 71).destaca a origem francesa do termo
jurisprudência, no sentido por nós adotado, e aponta parentesco mais próximo com os assentos portugueses
e máximas italianas.
208
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
242
A sintética e sofisticada análise de Daniel Mitidiero (2017, p. 53 e ss.) sobre a evolução da teoria da
interpretação é excelente indicação para este debate. A ilustração que constrói do percurso da teoria da
interpretação por meio dos argumentos de quatro referenciais teóricos do direito, cujos picos de influência
no Brasil coincidem com a própria evolução retratada, é muito esclarecedora: Hans Kelsen em 1934, H.
Hart em 1961, Giovane Tarello, 1980 e Neil McCormick, 1991.
243
Vale observar que essa constatação é de inspiração tipicamente realista, o que projeta novamente a
questão da influência da common law, no caso sobre a teoria do direito em geral, não a uma ou outra área
dogmática do direito. Embora exista a corrente realista escandinava, a noção de que o direito é o que o juiz
diz em concreto é tipicamente do realismo norte-americano do início do século XIX (HERREN AGUILAR,
1996).
244
STRECK e ABBOUD (2014) fazem referencia aos precedentes à brasileira, assim como ZUFELATO
(2015). MITIDIERO alude ao conceito de “jurisprudência uniformizadora”, um hibridismo brasileiro de
jurisprudência com o papel uniformizador (unificador, ele diria) dos precedentes (2017, p. 70 e ss)
209
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
245
“O tratamento isonômico depende antes de qualquer coisa do prévio reconhecimento de qual o direito
aplicável. Não é possível aplicar uniformemente um direito que não se conhece.” (MITIDIERO, 2017, p.
24).
210
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
246
Como justifica Mitidiero (2017, p. 24), “A possibilidade de autodeterminação está igualmente ligada à
prévia cognoscibilidade normativa, porque sem conhecer o direito não é possível fazer escolhas
juridicamente adequadas.”
247
Uma sugestão seria incluir nos levantamentos de percepção da justiça e comportamento de respeito à
lei, como aqueles apresentados no capítulo 2, perguntas sobre o grau de conhecimento e influência das
decisões judiciais na vida regular das pessoas e nas tentativas de resolução de disputas
211
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
primordial do direito. A jurisprudência pode ser pouco clara e objetiva, instável e profusa.
Considerado o histórico de mudanças nem sempre coerentes de posicionamentos nos
tribunais brasileiros, inclusive nos níveis superiores, a probabilidade aponta para maior
instabilidade jurisprudencial do que segurança de um corpo coeso de decisões e uma
profusão de entendimentos que lembrará a confusa malha legislativa. O risco aumenta em
decorrência do caráter peculiar do sistema brasileiro de precedentes – precisamente, a
eleição formal da jurisprudência como fonte do direito e o mecanismo “nobiliárquico” de
seleção dos precedentes.
212
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
248
Não é improvável imaginar, como já sugerem dados empíricos preliminares (ASPERTI, 2017), que
“jogadores experientes” tentem concentrar sua presença em torno dos IRDR. Como apontaram os dados
sobre os juizados especiais sistematizados no cap. 2, o Judiciário é um espaço disputado pelos atores sociais,
de modo que pode fazer muita diferença ser o agente condutor de um incidente cuja decisão significará a
definição de uma massa indefinida de casos similares ou fazer parte da massa que aguarda, inerte, uma
solução pronta para o seu caso.
249
O debate sobre esses conceitos na filosofia contemporânea é substancioso. Para indicar duas referências,
a sequência de artigos Ronald Dworking sobre “equality of welfare e equality of resources” (DWORKIN,
1981a; DWORKIN, 1981b) e o já clássico livro de Amartya Sen (2000).
213
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Sem dúvida alguma, a sensação de injustiça que nasce de se receber uma decisão
considerada pior do que recebera outra pessoa em igual situação é intensa, legítima e cada
vez mais frequente, considerando a configuração social de massa. Nesse sentido, o
Código soube promover o acesso à justiça ao privilegiar a “igualdade de resultados”.
Porém, o nosso sistema de unificação da jurisprudência, tal como foi construído, criou
uma “desigualdade de oportunidades” no processo, na medida em que permite a
determinadas litigantes lutar por seus direitos, enquanto subtrai de outros essa mesma
oportunidade - obrigando-as a aguardar um pronunciamento unificado pelos tribunais ou
eliminando por completo o seu “day in court” que mimetiza a ideia de acesso à justiça e
devido processo legal250.
250
A escolha do caso-paradigma e suspensão dos processos pela admissão do incidente de resolução de
demandas repetitivas (IRDR) são bons exemplos para esse argumento. O código praticamente não
estabeleceu critérios para a escolha do caso e, portanto, das partes que servirão de condutores para que o
tribunal defina o entendimento aplicável à massa de casos. A permissão para instaurá-lo é estendida a
diferentes atores, de forma concorrente (art. 977). E não há critérios para a escolha ou de aferição do que
seria, para o IRDR, o equivalente à legitimidade extraordinária ou a representatividade adequada do modelo
da ação coletiva. Para completar, como dito, todos os demais processos individuais e coletivos que versem
sobre a mesma questão jurídica são imediatamente suspensos assim que admitido o incidente.
214
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O CPC optou por proteger a liberdade de ação das partes fora do processo,
orientando-se por uma jurisprudência convergente, reservando a alguns poucos
representantes a liberdade de agir dentro do processo, na construção dos entendimentos
que culminarão na razão decidendi que integrará o precedente vinculante. Resta avaliar
se esta opção terá sido mais ou menos adequada ao sentido de justiça valorizado no Brasil
e em relação a que perfil de litigante.
251
Sim, o sentido de justiça, assim como as formas jurídicas em geral, e a resolução de disputas em especial
- vale dizer, o direito processual – são determinados culturalmente. Não são, como se acreditou em outras
fases do direito processual, o resultado da evolução técnica, “apanágio universal”, como escreveu Buzaid
na Exposição de Motivos do CPC de 1973. Nesse sentido, conferir NADER (1990) e CHASE (2005).
252
No sentido das “razões necessárias e suficientes para solução de uma questão devidamente precisada do
ponto de vista fático-jurídico obtidas a partir de generalizações empreendidas a partir do julgamento de
casos pela unanimidade ou pela maioria de um colegiado integrante de uma Corte Suprema” (MITIDIERO,
2017, p. 90).
215
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Sistemas processuais de civil law diferentes países têm ampliado os espaços para
o exercício da liberdade das partes, redimensionando a importância conferida ao princípio
dispositivo. A essa tendência tem-se denominado “privatismo” ou “neoprivatismo’
processual”253. No comentário de Taruffo (2009, p. 115), elas comporiam “las diversas
ideologías neoprivatistas que se van difundiendo en distintas partes da Europa (no en
Estados Unidos, donde desde hace tiempo tienem un papel dominante)”.
253
Tanto os termos utilizados para defini-las, quanto o conteúdo e as conotações políticas que podem advir
são consideravelmente polêmicas. Basta, para fins deste estudo, ressalvar que não se trata do fenômeno de
“privatização” do processo civil contra cuja existência se posicionou Barbosa Moreira em 1998
(BARBOSA MOREIRA, 2001). Trata-se, mais provavelmente, da tendência que ele analisou anos depois
com o nome de “neoprivatismo no processo civil” (BARBOSA MOREIRA, 2007): a ampliação do controle
do processo pelas partes, em detrimento dos poderes do juiz. Na sua precisa síntese, “para os que assim
pensam, as coisas andarão tanto melhor quanto mais forem deixadas aos cuidados dos próprios litigantes:
nenhum juiz, afirma-se, pode saber mais do que os titulares dos interesses em conflito o que convém fazer
(ou não fazer) para resolvê-lo.” (p. 88). Os estudos mencionados no corpo deste item são referências para
explicar a tendência.
216
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
iniciativa privada do processo, reservava a sua condução ao juiz (art. 262 do CPC de
1973)254. O novo CPC alça o princípio à nobre posição de segundo dos seus mais de mil
artigos, confirmando relevância de se estabelecer, desde o início, um regime dispositivo
diferenciado, em que o princípio do impulso oficial fica condicionado a eventual
convenção das partes. E seu texto sugere menor ênfase à condução oficial do processo e
faz a abertura para a ideia de cooperação processual. Mais do que mera questão de estilo,
o texto atual substitui a conjunção adversativa anterior (“mas”) por uma aditiva (“e”), o
que induz à ideia da “comunidade de trabalho” que menciona a doutrina especializada:
“o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial”. Além
disso, ao texto é inserido um condicionante de excepcionalidade: “salvo as exceções
previstas em lei” -, o que garante a reserva das hipóteses em que a condução do processo
não será oficial, mas das partes255.
254
Nesse sentido, a regra anterior fazia uso, por exemplo, de uma conjunção adversativa “mas” entre uma
oração e outra (“O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”),
o que sugeria que o controle exclusivo das partes se concentrava na fase inicial.
255
No texto da Comissão de Juristas, o condicionante de excepcionalidade se referia apenas à primeira parte
do dispositivo (“o processo começa por iniciativa da parte”). O Substitutivo da Câmara dos Deputados que
o deslocou para o final do artigo, estendendo-o também ao impulso oficial. A mais ilustre exceção ao
impulso oficial parece ser o novo “negócio jurídico processual” (art. 190), pelo qual as partes poderão
convencionar mudanças no procedimento e no regime de ônus, poderes, faculdade e deveres processuais.
A permissão para as partes definirem o procedimento e o regime das situações subjetivas de vantagem,
reprimida com voracidade na tradição romano-germânica em outras épocas, é o mais evidente exemplo de
traço adversarial do modelo processual da nova lei. Outras regras também realçam a opção das partes
acordarem sobre atos do processo, como a escolha do perito (art. 471) e o ônus da prova (art. 373, § 3o) e
delimitarem consensualmente a matéria fática e jurídica controvertida (art. 357, §2o) - além da suspensão
do processo (art. 313, inc. II) e o adiamento da audiência (art. 362), já existentes no código anterior.
256
Greco (2008) faz uma excelente síntese da transição de um “liberalismo processual” no século XIX para
o publicismo no século XX, intensificado com as ideias de garantismo e efetividade desenvolvidas no pós-
guerra e a consolidação da hegemonia do princípio do impulso oficial. Cabral (2016) recupera a mesma
história com ênfase em um duelo teórico interessantíssimo entre J. Kohler e O. Bullow, no final do século
XIX, com a seguinte adesão da comunidade à ideia, desde último, da relação processual de caráter público,
com destacado papel do Estado. Trajetória que a nós ganha especial importância com a adesão de G.
Chiovenda à tese de Bullow e a sua projeção para todo o direito processual italiano e, então, ibérico e latino
de modo geral.
217
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
257
CPC, art. 9o. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Art.
10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não
se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva
decidir de ofício.
258
MITIDIERO, D. Colaboração no processo civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2a. ed. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011 (MITIDIERO, 2011). Para a questão discutida neste item, interessa
menos o significado do princípio do que o fato de que o juiz também lhe está sujeito.
259
Desenvolvo este argumento em “As Normas Fundamentais do Novo Código de Processo Civil” (ALVES
DA SILVA, 2015).
218
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
260
CIPRIANI, F. Ideologie e modelli del processo civile. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1997.
261
SILVA, P. C. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto
postulativo. Coimbra: Coimbra ed., 2003.
262
Na verdade, é um engano entender que os juízes dos sistemas de tradição anglo-saxã são menos ativos
processualmente do que os da tradição romano-germânica. A origem da magistratura em cada sistema é
distinta, o que resulta em uma distribuição própria de poderes oficiais e equilíbrio com a liberdade das
partes. Desenvolvo esse debate em relação aos poderes de condução do processo em ALVES DA SILVA,
2010. O argumento principal, naquele contexto, dito de forma simples, que o juiz de civil law assume a
atividade para si, ao passo que o de common law controla a sua realização. Difícil dizer em qual das duas
o juiz tem maior controle dos atos praticados no processo, se quando “faz” ou quando “manda fazer”.
Aparentemente, ambos perfis pressupõe uma carta robusta de “poderes oficiais” e podem ser considerados
de juízes “ativos”.
219
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
e poderes processuais (art. 190) – quanto a escolha do tipo de tutela adequado para a
disputa - se uma decisão judicial ou um acordo entre as partes (art. 3o, 165 e 166)263.
263
Por mais que não impliquem em “privatização do processo”, que continuará público e sediado na Justiça
estatal – como argumentou Barbosa Moreira (2001, p. p. 11 e 12) -, tais mecanismos ampliam o espaço das
partes na condução e na definição do resultado do processo, o que é uma tendência “privatista”, ou
“neoprivatista”.
264
Na literatura processual estrangeira, os contracts for procedure, contrats de procedure e protocol di
procedura são correspondentes aos termos que os institutos receberam na literatura nacional. Sobre isso, v.
CABRAL, 2016, caps. 1 e 2.
265
Em um grau de adesão e intensidade que não se via, curiosa e significativamente, desde que o tema dos
poderes do juiz se disseminou na década de 1990.
220
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
sobre os resultados de justiça que se pode alcançar266. Para este estudo, a transição para
um modelo processual mais liberal e privatista é determinante do potencial do sistema
brasileiro oferecer nível satisfatório de acesso à justiça.
266
Reconheço a funcional ponderação de Yarshell (2017, p. 77) que, ao tratar das convenções processuais,
menciona que, “em termos pragmáticos, parece possível passar ao largo de tais polêmicas (conquanto
relevantes), bastando que o exame das convenções das partes em matéria processual civil seja feito sob a
metodologia empregada para a análise do negocio jurídico, tomando-se os planos da existência, validade e
eficácia.”. No caso, as “polêmicas relevantes” são sobre a existência ou não dos negócios jurídicos
processuais. Com sempre, é muito sensata a ponderação. Sem prejuízo, como uma das premissas adotadas
nesta tese é a de que a efetividade das leis, sobretudo as processuais, dependem do cenário socio-
institucional em que estão inseridas, peço vênia para contra-argumentar que a análise dessas questões de
fundo é necessária justamente para entender os limites das novidades do CPC, inclusive “em termos
pragmáticos” e, eventualmente, até para compreender se se trata realmente de uma “nova era”, como se
indaga o próprio mestre.
221
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
267
Este guia oferece um detalhado “passo a passo” para instituição dos métodos de ADR, com uma
classificação das técnicas, modelos de implementação e estudos de casos das experiências havidas em
222
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
No Brasil, o movimento dos ADR aportou três décadas depois, mas com
justificativas e objetivos muito similares. A efetividade da tutela jurisdicional, no sentido
da oferta de uma solução adequada à disputa, satisfatória a ambos litigantes e pacífica, é
uma das mais importantes justificativas270. Ela está ligada à faceta do acesso à justiça que
inspirara a origem do movimento dos ADR nos anos 1980 (GALANTER, 2010). Além
outros países, como a África do Sul, Índia, Siri-lanka e Ucrânia. Não é o único na categoria. A produção
na área dos ADR é substanciosa. O que chama atenção, neste manual, é a difusão dos ADR assumir espaço
coo política pública oficial do governo norte-americano. O “USAID”, responsável pelo relatório, é uma
agência destinada a “promover o “rule of law” em países em desenvolvimento, e os ADR foram
considerados um importante instrumento nessa missão. A transcrição acima é uma tradução livre. O trecho
original e completo é: “USAID's work in promoting the rule of law in developing and transitional
societies over the last decade has led to an interest in the use of alternative dispute resolution, or
"ADR." Several reasons underlie this interest. ADR is touted as more efficient and effective than
the courts in providing justice, especially in countries in which the judiciary has lost the trust and
respect of the citizens. Moreover, ADR is seen as a means to increase access to justice for
populations that cannot or will not use the court system, to address conflicts in culturally
appropriate ways, and to maintain social peace.”Disponível em <
https://www.usaid.gov/sites/default/files/documents/1868/200sbe.pdf> , acesso em janeiro de 2018.
268
“No qual advogados de partes autoras recebem julgamentos excessivamente grandes em casos de
indenização civil às custas de subsidíos públicos a empresas privadas” (STONE, K. (2004). Alternative
Dispute Resolution. In: Encyclopedia of Legal History. Research Paper No. 04-30, p. 4). No original, “in
which plaintiffs attorneys win excessively large jury verdicts in tort litigation at the expense of the corporate
welfare.”
269
É impressionante a similitude dos argumentos de Burger em 1892 com as justificativas da mediação
judicial no Brasil trinta anos depois: redução do papel de outras arenas sociais de solução de disputas –
como a igreja e a comunidade; crescimento vertiginoso de demandas judiciais, formação jurídica com perfil
litigante, uso excessivo de instrumentos processuais sobretudo recursos, vantagens comparativas do acordo
em relação à decisão judicial, melhor adequação de determinadas disputas a outros agentes de
encaminhamento de conflitos, como casos de divórcio aos psicólogos, entre outros.
270
Este argumento já mobilizava as pioneiras iniciativas de mediação extrajudicial no Brasil, anteriores ao
movimento atual e responsáveis por lhe abrir o caminho e sedimentar um conhecimento teórico e prático
que pode ser aproveitado. V. BRAGA NETO, A. (2012). Breve história da mediação de conflitos no Brasil
– Da iniciativa privada à política pública. Aspectos atuais sobre a mediação e outros métodos extras e
judiciais de resolução de conflitos. Rio de Janeiro: GZ, 3-19.
223
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
271
Harry Edwards (1986), em trabalho com sugestivo título de “Alternative Dispute Resolution: Panacea
ou Anathema?”, traça o histórico dos ADR e recorre a exemplos que enfatizam a função prioritária de
“salvar” os tribunais proporcionando-lhes resultados de eficiência e a gestão dos seus custos.
272
A lista dos trabalhos que discutem essas questões é bastante extensa. Para uma síntese, uma das primeiras
incursões de Carrie Menkel Meadow, atualmetne referência inquestionável na área, no tema dos ADR:
MENKEL-MEADOW, C.C. “For and against settlement: uses and abuses of the mandatory settlement
conference”. 33 UCLA L. Rev. 485, 1895-1986.
273
Vale fazer novamente a ressalva de que isso não significa a “privatização” do processo cuja existência
negou Barbosa Moreira (2001). O processo e a Justiça seguem fenômenos sediados no âmbito estatal. Mas
a incorporação de métodos originalmente praticados no âmbito social ocasiona maior controle do processo
pelas partes, o que aqui identificado como um impulso de “privatismo”.
224
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
274
A possibilidade de adaptação das regras de procedimento, agora estendidas ao processo judicial
tradicional pelas convenções processuais (CPC, art. 190), é típica dos métodos de ADR, notadamente da
arbitragem, e possivelmente serviram de exemplo inspirador aos negócios processuais (v. item específico
neste estudo).
275
Ainda que se possa pensar em técnicas de ADR que conjuguem desenho de procedimentos com tipos de
soluções para o caso, como o chamado “desenho de solução de disputas” (dispute design system), o
225
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
226
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
277
Logo de início, uma das “normas fundamentais” do CPC assegurou que os métodos ditos alternativos
não violam a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 3o, §§ 1o e 2o) – evitando um
debate que postergou por quase dez anos a eficácia da arbitragem no Brasil, quando instituída em 1996. O
mesmo dispositivo foi mais longe e criou o dever de os tribunais estimularem e promoverem os mecanismos
dito alternativos de solução de conflitos, como a mediação e a arbitragem (idem).
278
Logo em seguida ao CPC, é aprovada uma lei destinada especificamente a disciplinar diferentes tipos
de mediação: entre particulares, a mediação judicial e a chamada “autocomposição de conflitos envolvendo
a administração pública” - a Lei de Mediação, n. 13.140/2015. A lei de mediação (LM) foi aprovada pouco
mais de três meses após o Código de Processo Civil e, junto com ele, completou o quadro normativo do
sistema judicial e parajudicial de resolução de conflitos. A lei contém 48 artigos distribuídos em dois
capítulos bastante particulares: o primeiro regula a mediação judicial e extrajudicial e o segundo o que foi
chamado de “autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público” – i.e.,
resolução de conflitos envolvendo a administração pública, por meio dos seus muitos entes. O seu artigo
1o é ilustrativo e esclarecedor do seu objeto dúplice: “Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de
solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da
administração pública.”
279
A Resolução 125 veio atender a uma necessidade peculiar a qualquer institucionalização de novos
métodos de resolução de conflitos, qual seja a sua internalização e disseminação na sociedade. Em 2010, o
Conselho Nacional de Justiça, na gestão do então Ministro Cezar Peluzo, editou a sua Resolução de n. 125,
que instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito
do Poder Judiciário”. Formalmente, a Resolução CNJ 125 (Res. 125) não têm a mesma natureza legislativa
do CPC e da LM, promulgados pelo Legislativo, mas o seu conteúdo e o efeito vinculante para os tribunais
permitem que componha, com os outros dois, um mesmo sistema normativo. Mais do que a regulamentação
de condutas ou a fixação de procedimentos, a Res. 125 buscava, como ela própria se define, criar uma
política pública judiciária.
227
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
profissionalização da atividade. E uma nova estrutura foi criada no âmbito dos tribunais
- os centros judiciários de solução consensual de conflitos (art. 165, caput), que passam
a compor, com as varas e os cartórios, a unidade básica da Justiça. Aos procedimentos
judiciais foram articulados oportunidades específicas para tentativas de consenso das
partes280.
280
No âmbito do processo de conhecimento, a audiência de conciliação ganha protagonismo no
procedimento e passa a acontecer antes mesmo da contestação (art. 334), torna-se quase obrigatória (não
se realiza apenas se ambas as partes se manifestarem expressamente contrários à sua realização, art. 334,
§4o,), acompanhada da cominação de multa em caso de não comparecimento (art. 334, §8o) e com duração
mínima de 20 minutos (art. 334, §12o). Também merece nota o apoio indireto que outros instrumentos
oferecem à resolução consensual de conflitos. O mais evidente é a produção antecipada de provas, dentre
cujas hipóteses de aplicação está o caso em que ela seja suscetível de viabilizar a autocomposição (art. 381,
inc.II).
228
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
229
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
privada, sob livre regulação do mercado, como é originalmente. Por mais que esta opção
seja em boa parte motivada pelo intuito de reduzir a carga dos tribunais, como resultado
tanto o método ganha em credibilidade perante a população, quanto esta tem assegurado,
em tese, o seu “acesso à Justiça”. Por outro lado, a mediação judicial fica sujeita às
características negativas do formalismo judicial e da organização burocrática que
caracteriza o sistema judiciário, com efeitos sobre a percepção e comportamento de
mediadores e mediandos e o funcionamento dos órgãos especializados – como os Cejuscs.
A principal crítica que se fez até hoje ao movimento dos ADR é a de que a justiça
que eles oferecem não equivale à justiça advinda da aplicação da lei ao caso concreto,
principalmente do ponto de vista da sociedade (FISS, 1984). A jurisdição produz,
segundo esse argumento, um benefício coletivo que vai muito além do atendimento ao
interesse das partes, consistente na concretização dos valores constitucionais e legais
previstos no ordenamento. Nem o autor, nem o réu têm este compromisso, mas o juiz o
tem. A justiça não é uma questão meramente privada. Ainda que a disputa verse sobre
exclusivamente sobre direitos e interesses pertinentes às partes, a “concretização de
valores públicos – diria Chiovenda, a “atuação da vontade concreta da lei” – ainda é um
escopo da jurisdição.
281
Este é o principal argumento de Judith Resnik (1994) no seu clássico “Many doors, closing doors...”.
Para ela, a questão da delimitação dos espaços da jurisdição e dos métodos alternativos é crucial para o
acesso à justiça e, no caso dos EUA, a integração entre o processo judicial e os ADR não teria sido bem
230
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
trabalhada pelo movimento – inclusive porque, ela argumenta, o apoio ao movimento não decorreu de seus
méritos próprios, mas de uma insatisfação com os resultados da jurisdição estatal. Como consequência,
apenas os litigantes com recursos e capacidade técnica suficiente realmente podem exercer uma opção livre
entre o ADR e o processo judicial – ou seja, a abertura de “novas portas” teria implicado no fechamento
das portas principais.
231
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
282
Para usar um exemplo simples, a chamada MASA – “melhor alternativa à solução amigável”, uma das
técnicas difundidas de negociação – de um litigante sem recursos ou experiência em litígios será quase
sempre menos elástica do que a da parte com recursos, e poderá colocá-lo na posição de aceitar acordos
indesejáveis porque não terá a opção da litigância. Basta imaginar os processos acordados exclusivamente
porque uma das partes não tem condições de postergar o recebimento do que lhe é devido, ainda que em
proporção menor ao que receberia em uma sentença judicial. Como ponderou Elisa Vanzella Lucena, em
debate informal sobre esta questão, a parte sem recursos não teria, muitas vezes, meios de sustentar o litígio
por muito tempo, com ou sem a opção do acordo. A questão é saber se a possibilidade da resolução
consensual servirá para acomodar e piorar quadros de injustiça.
232
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Uma das mais antigas questões das políticas de justiça é definir quem escolhe as
regras das disputas, se os próprios litigantes ou um terceiro (FOUCAULT, 2001). Na
283
Vale a referência ao estudo de LIND et al. (1990) que avaliou a percepção de litigantes em disputas
envolvendo danos civis (torts) submetidas a métodos consensuais e adjudicatórios. Esses últimos contaram
com maior grau de satisfaçao das partes porque teriam os tratado com mais respeito e porque aqueles teriam
decepcionado suas expectativas. A satisfação dos litigantes, concluem os autores, seria menos relacionada
a resultados, custos e demora do que a percepções de tratamento processual justo (“procedural fairness”) e
expectativas anteriores de custos e resultados.
284
Almeida (2015) descreve o mesmo fenômeno, naturalmente com as diferenças que decorrem da
perspectiva metodológica que cada trabalho científico adota, como “contratualização” do processo.
233
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
tradição europeia continental, desde que, pelo século XVI, os representantes de um poder
central paulatinamente assumiram o julgamento das disputas, as aplicáveis são
padronizadas em rituais predefinidos (idem). No âmbito da civil law, consolidados os
Estados modernos, a lei estatal assumiu o desenho dos procedimentos seguidos pela
jurisdição oficial. Nem mesmo o juiz, investido do poder estatal da jurisdição, detinha
essa prerrogativa. Menos ainda as partes, cuja liberdade se restringia ao ato de provocar
a jurisdição e a possibilidade de delimitar, em conjunto, os limites de sua atuação no
processo. O reconhecimento da autonomia científica do direito processual consolidou
essa ordem de coisas e, ainda que tenha destacado a importância do juiz na relação
processual, isso não foi suficiente para lhe ser delegado o poder para definir os
procedimentos. Cabia-lhe, tal qual às partes, seguir as regras definidas pelo legislador,
com o suplemento do controle concreto da regularidade formal do processo.
285
Essa distinção considera apenas a natureza da regra processual especificamente convencionada em um
e outro caso, não tanto a natureza jurídica da convenção processual como um todo. Quanto a esta última,
como explica Cabral, debate-se em teoria a natureza das convenções processuais, se materiais ou
processuais, com soluções apontadas para todos os sentidos: seriam normas materiais (Kohler), processuais
234
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
ou mistas – considerando principalmente que, em verdade, a obrigação não é domínio exclusive do direito
privado e porque, na prática, não existem convenções exclusivamente de uma ou de outra natureza. Do
ponto de vista prático, inclusive, há quem afirme a questão ser irrelevante (Neuner, citado por CABRAL,
2016, p. 95, bem como Yarshell, 2017.
235
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
286
Para se ter uma ideia, nada exaustiva, da produção da doutrina processual brasileira sobre os temas do
negócio jurídico processual, convenções processuais e contratualização do processo, a lista de teses
acadêmicas e publicações no mercado editorial é crescente desde o início dos anos 2010 e se intensificou
consideravelmente com a aprovação do CPC. Alguns autores aparecem como referência nos trabalhos
atuais: os clássicos de Barbosa Moreira sobre convenções processuais (1984) “Convenções processuais em
matéria processual”, In: Temas de direito processual - terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 98-87) e
neoprivatismo processual (2007, p. 87-102). Também destacável o trabalho de resgate da teoria pontiana
dos fatos jurídicos e a construção de sua relação com o direito processual, pelo advogado e professor da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Marcos Bernardes de Melo; a excelente síntese do embate entre
privatismo e publicismo na história da ciência processual, por Leonardo Greco em 2008 (GRECO, L.
“Publicismo e privatismo no processo civil”. In: Revista de Processo n. 164, ano 33, outubro de 2008, pp.
28-56); e, principalmente, o debate europeu entre o publicismo e o privatismo no processo civil mobilizado
pelo espanhol Juan Monteiro Aroca (AROCA, J. M. (coord.) Proceso civil y ideologia. Valencia: Tirant to
Blanc, 2016), o italiano Franco Cipriani, o francês Loïc Cadiet e a portuguesa Paula Costa e Silva. A partir
dos debates sobre o novo Código de Processo Civil - particularmente a proposta apresentada já quando da
tramitação na Câmara dos Deputados, que veio a culminar no seu artigo 190 -, uma série de novos trabalhos
foram produzidos sobre o tema. Em 2011, Pedro Henrique Nogueira, que havia sido orientado por Marcos
Bernardes de Melo em nível de mestrado, defende tese de doutoramento perante a Universidade Federal da
Bahia, sob orientação de Fredie Didier Jr. (publicada em 2016: NOGUEIRA, P. H. Negócios jurídicos
processuais. Salvador: Juspodivm, 2016). Em 2013, Robson Godinho, participante de projeto de pesquisa
coordenado por Didier Jr., defende tese de doutoramento junto à Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUCSP), sob orientação de Arlete Inês Aurelli (publicada em 2015: GODINHO, R. Negócios
processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015). Em 2014,
Leonardo Carneiro da Cunha apresenta o relatório nacional sobre ‘negócios jurídicos processuais’ no I
Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Também em 2014, Diogo Assumpção Rezende de Almeida
defende, sob orientação de Leonardo Greco, tese de doutoramento junto à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ; publicada em 2015: ALMEIDA, D.A.R. A contratualização do processo das convenções
processuais no processo civil. São Paulo: LTr, 2015). Em 2015, ano em que, logo em março, o CPC é
aprovado, Antônio do Passo Cabral aprova, em nível de livre-docência, tese sobre ‘convenções processuais’
(“Convenções processuais – entre publicismo e privatismo”) junto à Universidade de São Paulo (USP/FD;
publicada em 2016: CABRAL, A. P. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016) e
organiza/publica, com Pedro H. Nogueira, coletânea de artigos de estudiosos de peso do cenário processual
nacional e internacional (CABRAL, A. D. P., & NOGUEIRA, P. H. Negócios processuais. Salvador.
236
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Editora Juspodivm; 2015), com destaques, dentre tantos outros, para as reflexões de L. CADIET, R.
CAPONI, P. COSTA E SILVA, J. R. CRUZ E TUCCI, K. DAVIS, H. HERSHKOFF, F. YARSHELL. Em
2016, são publicados os trabalhos referenciais de e NOGUEIRA, P. H. Negócios jurídicos
processuais. Salvador: Juspodivm, 2016. Em toda a mobilização da produção sobre o tema, destaca-se a
atuação do professor Fredie Didier Jr., da UFBA – com projeto de pesquisa do qual participaram
pesquisadores que posteriormente publicaram sobre o tema (“Teoria contemporânea da relação jurídica
processual”, CNPQ), e a dedicada participação em bancas examinadoras de trabalhos sobre a temática em
todo o país, o apoio reconhecido pelos autores e a divulgação dos trabalhos no cenário nacional. Neste ano
de 2017, a produção no tema continuou a se expandir, alcançando trabalhos de aplicação da ideia em
questões mais específicas. Como resultado de tese defendida em 2016 perante a Universidade Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), o livro de Igor Raatz (RAATZ, I. Autonomia privada e processo civil – negócios
jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso
concreto. Salvador: Juspivm, 2017) e, resultado de tese de doutorado apresentada perante a PUCSP, sob
orientação de Cássio Scarpinella Bueno, o livro de Julio G. Muller (MÜLLER, J. G. Negócios processuais
e desjudicialização da prova – análise econômica e jurídica. São Paulo: RT, 2017). Além desses,
naturalmente, os comentários ao Código de Processo Civil publicados recentemente impulsionam o debate
tanto sobre os limites da aplicação prática do negocio jurídico processual (art. 190) e calendário processual
(art. 191), quanto o embate mais amplo entre o publicismo que marca originalmente a nossa ciência
processual e o impulso privatista que caracteriza e fundamenta esses novos mecanismos. Dentre eles,
destaque aos comentários oferecidos por novos e igualmente determinantes autores no tema, como Heitor
Sica, nos comentários publicados pela Editora Saraiva (SICA, H. V. M. “Art. 190”. In: Bueno, C. S. (coord.)
Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 744-754) e Cássio S. Bueno, em
seu Manual..., (BUENO, C. S. Manual de direito processual civil – volume único. 3a. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.)
287
Alguns autores tendem a justificar a conveniência dos negócios jurídicos processuais por meio de uma
imprecisa relação entre regimes autoritários, sobretudo os socialistas, com o publicismo processual –
237
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
sugerindo, inversa e subliminarmente, uma relação entre regimes democráticos e o privatismo processual.
Chegam a apontar um responsável último pelo movimento que ocupou o século XX – o jurista austríaco
Anton Merger, cujas ideias, “de tendências socialistas”, teriam influenciado o desenho do CPC austríaco
por Franz Klein, em 1895 e a teoria de Chiovenda na Itália. Nada mais carente de fundamento científico e
histórico, tanto que não encontra suporte nas análises mais sérias sobre a questão. Barbosa Moreira (2007)
e Leonardo Greco (2008), embora tenham posições diferentes quanto ao publicismo ou privatismo,
preferem não argumentar com base nessa suposta e acientífica relação. Barbosa Moreira (2007) argumenta
inexistir relação regimes autoritários ou democráticos e sistemas processuais com maior espaço ao juiz ou
às partes e invoca diferentes exemplos de sistemas processuais baseado em amplos poderes judiciais em
regimes democráticos e o inverso, sistemas adversariais em regimes considerados autoritários (2007).
Greco (2008, p. 40) categoricamente afirma que “se as ideias de Menger eram radicalmente estatizantes,
(...) o sistema processual que daí resultou (...) não era antiliberal, mas profundamente humanista (...),
preocupado em desconstruir a figura do juiz burocrático, em faze-lo descer do pedestal de superioridade e
distanciamento em que o colocava o liberalismo do século XIX, para aproxima-lo da realidade da vida e do
drama humano (...)”.
238
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Diante do novo contexto sociopolítico, parecia então faltar apenas uma tese
jurídica robusta e suficientemente convincente da possibilidade jurídica e dos caminhos
para a institucionalização das convenções processuais. A teoria processual internacional
criou corpo em defesa de um modelo mais liberal de processo288. Complementarmente, a
teoria do fato e dos negócios jurídicos foi quase que naturalmente invocada – inclusive
pela similitude terminológica – para dar legitimação teórica às convenções processuais.
288
Especialmente, Arouca (2006) e Cipriani (1997).
239
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A teoria dos fatos e negócios jurídicos, por sua vez, emprestou sua mais preciosa
joia, o regime da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos. O texto legal
expressamente previu a “validade” das convenções processuais com objeto do controle
judicial (art. 190, parág. único). Parte da doutrina estendeu o controle ao âmbito da
eficácia, para equilibrar o mecanismo com as garantias constitucionais processuais, das
quais não se poderia abrir mão, ainda que diante da autonomia da vontade das partes. O
plano da existência, todavia, restou definitivamente fora do âmbito do controle do juiz.
Os limites à disposição de vontade em matéria processual são os das normas cogentes,
sobretudo as garantais processuais constitucionais, dentre as quais se inclui a igualdade
das partes (BUENO, 2017, p. 227). Em suma, a conveniência e a existência do negócio
processual dependem exclusivamente da vontade das partes; já a sua validade pode ser
controlada pelo juiz segundo os critérios definidos na lei; e a eficácia pode suscitar
controle judicial caso violar ordem pública e normas processuais consideradas cogentes.
289
Com argumento diferente do deste estudo, mas no mesmo sentido, Scarpinella Bueno (2017, 226)
confessa ainda não convencido “sobre a possibilidade de um alcance muito amplo e generalizado do art.
190. Muito pelo contrário. As escolhas feitas pelo legislador nos mais diversos campos do direito processual
civil não podem ser alteradas pelas partes. A liberdade delas com relaçao ao procedimento, aos seus
próprios ônus, poderes, faculdades, deveres processuais fica restrita `aqueles casos em que o ato processual
não é negado por norma cogente.”
240
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
290
A natureza irremediavelmente privada dos negócios processuais não passou despercebida por
Scarpinella Bueno (2017, p. 228), que “[vê] limites no direito de as partes disporem sobre o que não é seu,
justamente porque o processo não se confunde com o direito material nele discutido (...).” – opinião que,
segundo ele reconhece, “pode vir a ser criticada, quiça taxada de hiperpublicista, conservadora, de, até
mesmo, autoritária.”
291
Taruffo (2009, p. 122), ao analisar a possibilidade de flexibilização que os ADR criam, argumenta
enfaticamente no sentido de que ao juiz, e não às partes, deveria ser estendida tal prerrogativa. Em suas
palavras, “Parece claro (…) el dominus de esta adaptación del proceso a las exigencias de cada caso, no
podría ser sino el juez, quien debería estar dotado de los poderes necesarios para un efectivo case
management. Y no las partes, porque en todo proceso siempre hay al menos una parte (es decir, el deudor
que sabe que debe pagar, sobre todo si es la parte fuerte) que tiene interés en hace que el proceso dure el
mayor tiempo posible y proteja de manera ineficiente o no tutele de ninguna manera el derecho de la otra
parte (es decir, del acreedor que tiene razón).”
241
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
292
As regras e conceitos utilizados demandariam um exame pormenorizado, todavia inviável no tempo aqui
disponível. Considerando os objetivos deste estudo, os comentários se concentram no cotejo da regra com
o perfil da litigância judicial no Brasil (v. cap. 2, item 3, supra)
242
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
293
A questão da igualdade nos negócios jurídicos é especificamente trabalhada por ABREU, R. S. D.
(2015). A igualdade e os negócios processuais. Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 193-213.
Também, REDONDO, B. G. (2015). Negócios processuais: necessidade de rompimento radical com o
sistema do CPC/1973 para a adequada compreensão da inovação do CPC/2015. Revista Dialética de Direito
Processual, São Paulo, (19), 9-16. E ainda em SANTOS, T. S. D. (2015). Negócios processuais envolvendo
a Fazenda Pública. Negócios processuais.
243
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
O princípio da igualdade não se restringe à relação “das partes” com o juiz, mas
na comparação entre elas próprias – igualdade “entre as partes”. O debate doutrinário
sobre as convenções processuais invoca com maior ênfase a desigualdade na relação entre
as partes e o juiz – igualdade “das partes” face a um outro elemento, no caso o juiz. Neste
argumento, a desigualdade que importaria aos negócios processuais não seria aquela entre
os litigantes, presente na maciça maioria dos processos judiciais no Brasil, mas aqueloutra
que há, inexoravelmente, entre partes e o juiz, cidadãos e o Estado (ABREU, 2015).
Independentemente da validade do argumento, muito bem construído doutrinariamente,
parece evidente um certo desvio do papel da igualdade nas convenções processuais. A
característica mais marcante da litigância judicial no Brasil, que também é o maior
obstáculo ao acesso à justiça, é a desigualdade entre cada uma das partes, não a
desigualdade de ambas perante o juiz.
294
Valem, também aqui, as ponderações feitas a partir dos dados apontados nos levantamentos feitos pelos
estudos da linha da “justiça procedimental”: as pessoas consideram justa uma decisão de cujo processo
puderam participar, ainda que desfavorável o resultado (cf. item X, cap. 1, supra). Na hipótese aqui
discutida, a sua participação parece limitada desde a definição das regras processuais aplicáveis ao caso, o
que dificilmente não comprometerá a percepção de justiça com o resultado final.
244
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
en todo proceso siempre hay al menos una parte (es decir, el deudor que sabe
que debe pagar, sobre todo si es la parte fuerte) que tiene interés en hace que
el proceso dure el mayor tiempo posible y proteja de manera ineficiente o no
tutele de ninguna manera el derecho de la otra parte (es decir, del acreedor que
tiene razón)”.
245
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
246
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
247
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
295
Não há dúvida de que os poderes do juiz no processo civil não foram “abolidos” com o novo Código. O
novo Código prevê sim um leque amplo e variado de poderes exercíveis pelo juiz no processo, monocrática
e colegiadamente. O novo artigo 139, por exemplo, reproduz as hipóteses do antigo artigo 125 e ainda lhe
acrescenta novas. O seu inciso VI, por exemplo, permite ao juiz “dilatar os prazos processuais e alterar a
ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior
efetividade à tutela do direito”. As regras que reprimem o abuso do processo e tentam imprimir um padrão
ético pautado na boa fé também se valem de instrumentos de coerção operados pelo exercício de poderes
do juiz295. No âmbito dos tribunais, os poderes do relator e os dos órgãos colegiados foram
consideravelmente fortalecidos em relação aos códigos anteriores295. Entretanto, junto a tais regras, há
agora outras tantas que resguardam um espaço maior de liberdade das partes no processo – das quais as
mencionadas acima são apenas um exemplo. Em não poucos casos, o risco de conflito das regras de
liberdade das partes com as que preveem o exercício de poderes oficiais não é desprezível, o que já é
suficiente para reforçar a hipótese de que o novo Código teria causado um deslocamento do modelo de
justiça e de processos no sentido adversarial – ainda que não o suficiente para caracterizar todo o modelo
como tal, mas também com menos convicção para classifica-lo como inquisitorial.
248
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
justamente aqueles considerados mais relevantes nos estudos teóricos sobre o acesso à
justiça e a resolução de disputas (Cap. 1). E um deles aparentemente encontrou potencial
caminho em mais de uma tendência: a articulação com os processos sociais de resolução
de disputas.
249
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
a premissa e o escopo fundante das teorias sobre acesso à justiça nos últimos cinquenta
anos (cap. 1).
296
Outro exemplo é o fato de que, embora o índice de confiança no Judiciário seja historicamente baixo
(4,9; sétima posição, de treze listadas), o subíndice de comportamento, que mede “a atividade da população,
se ela recorre ao Judiciário para solucionar determinados conflitos ou não”, é relativamente alto, de 8,6
(FGV, 2016). Metodologicamente, o baixo grau de confiança da população brasileira no Judiciário não
pode ser traduzido por sua preferência pela resolução privada dos conflitos. A questão aqui é a opção
manifesta em relação às outras opções que a população teria disponível, ou não.
250
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
o seu texto a previsão de órgãos e instrumentos para o tratamento paritário das partes pela
Justiça297.
Acontece que o direito não é neutro e qualquer legislação processual, pela sua
própria natureza, tende a aumentar as vantagens do jogador experiente em detrimento do
participante eventual298. Se o sistema é generoso em quantia e complexidade de regras
processuais, é mais provável que o litigante com recursos (financeiro, intelectual,
organizacional, etc.) “saia na frente” e sagre-se vitorioso, independentemente de estar ou
não amparado pelo direito material. Se as regras são flexíveis e podem ser definidas
conforme o caso, os efeitos da assimetria podem ser ainda maiores: o litigante experiente
terá mais condições, inclusive técnicas, de adapta-las ao seu favor, ao passo que o litigante
eventual, que sequer entendera as regras oficiais, provavelmente seguirá a definição ad
hoc feita pelo seu adversário.
297
A assistência jurídica gratuita, assegurada aos litigantes sem condições de arcar com os custos do
processo sem comprometer sua subsistência, é provavelmente o principal deles (art. 5o, LXXIV, art. 134 e
ss., etc.).
298
Neste sentido, o primeiro postulado enunciado neste estudo, de que o direito, inclusive o direito
processual, não é neutro.
251
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
299
Melhor exemplo é a Estratégia Nacional de Não Judicialização (ENAJUD), política pública de reforma
da Justiça desempenhada no âmbito do Ministério da Justiça (ALVES da SILVA, 2017, não publicado).
300
Para ficar em dois pequenos exemplos, não poucos advogados terão dificuldades práticas em celebrar
um negócio jurídico processual sem o risco de colocar o cliente em posição menos vantajosa; e não muitos
terão acesso aos órgãos superiores de justiça para bancar uma batalha em torno de um IRDR.
301
O diagnóstico de Rhode (2004, p. 24) para os EUA também é de concentração do acesso à justiça na
parcela pequena da população. A diferença, no caso, é que a razão da concentração é o custo dos processos,
o que não parece ser o motivo no caso brasileiro.
252
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
p. 117 e ss.)302. E o litigante repetitivo, porque disputa outros processos além daquele,
pode trabalhar com perdas pequenas para um ganho a médio prazo. Um sistema de
precedentes, por sua vez, amplia ainda mais a sua vantagem, pois lhe abre a possibilidade
de um comportamento estratégico com baixo risco em qualquer cenário.
302
O conhecido manual de negociação da Harvard Law School baseia-se em potencializar, por diferentes
técnicas, os recursos e o potencial daqueles com menos recursos e, portanto, menor poder para negociar.
Ao discutirem a técnica da MAANA (Melhor Alternativa À Não Negociação), eles explicam: “De fato, o
poder relativo de negociação de duas partes depende, primordialmente, de quão atraente para cada uma
delas é a opção e não chegar a um acordo.” (FISHER, URY, PATTON, 1994, p. 122)
253
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
303
O discurso sobre a litigiosidade de massa é generalizado e padronizado, o que levanta a hipótese de ser
menos resultado de um efetivo diagnóstico do que de uma política informal de convencimento. No debate
norte-americano, por exemplo, que projeta influência sobre as reformas judiciárias de vários países,
inclusive o Brasil, o senso comum sobre o problema da litigiosidade recai sobre elementos similares aos do
discurso aqui observado: muitas demandas, autores oportunistas, advogados irresponsáveis e uma cultura
geral de litigância. Cf. Rhode (2004, p. 39), trecho transcrito em nota 175, supra.
254
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
255
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Como o direito não é nem nunca foi neutro, a jurisdição e o processo judicial
tendem a privilegiar aqueles com mais experiência no seu manuseio.
304
Esses autores também anteviram, ainda na década de 1960, aspectos do que identificamos hoje no Brasil
como aspectos da chamada “litigiosidade de massa”: aumento exponencial das demandas; burocratização
das atividades judiciárias; “administrativização” da jurisdição; delegação de funções decisórias aos
servidores; uso de modelos padrão de decisões, entre outros. E sugeriram, para lidar com o fenômeno, a
concepção de uma nova teoria da jurisdição e do direito processual (cf. cap. 1, item 2).
305
Ele sistematizou os “tipos ideais” de litigantes - os “jogadores repetitivos” e os “participantes eventuais”-
e detalhou como a estrutura e o funcionamento do sistema de justiça favorecem aqueles, independentemente
de estarem ou não com razão ou de serem ou não vitoriosos no processo. Os “repeat players”, diagnosticou
Galanter, seriam os governos e as grandes corporações privadas. Sequer os advogados, embora experientes
na Justiça, conseguiriam neutralizar as vantagens sistêmicas conferidas ao litigante repetitivo.
256
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
etc.) nos resultados substanciais dos processos. No Brasil, esta exigência é ainda mais
sensível, como apontam os dados empíricos.
Outro grande ponto da linha teórica analisada diz respeito à trajetória das
disputas antes da judicialização, o que suscita a proposta, para o Brasil, de articulação dos
vários “processos” de resolução de conflitos, estatais e privados. Na virada para a década
de 1980 – concomitante à publicação do Projeto Florença, portanto -, os estudos ligados
ao acesso à justiça se deslocaram das instituições oficiais (leis, políticas públicas, órgãos
e agentes públicos) para as tramas do tecido social. Ganhou adesão a constatação de que
as disputas de interesses acontecem muito antes e independentemente de serem
judicializadas (a chamada “dispute perspective”, notadamente o Civil Justice Litigation
Project - CJLP). A atividade de reivindicar justiça, percebeu-se, é construída durante todo
esse percurso. Diante disso, as políticas judiciárias não poderiam mais pensar em acesso
à justiça, reformar os órgãos ou as regras processuais, sem considerar a trajetória das
disputas antes de sua judicialização306. Durante as etapas prévias da disputa, incidem
regras materiais e processuais informais, não positivadas e alheias ao âmbito da
jurisdição, as quais, independentemente do reconhecimento oficial, são determinantes do
uso dos processos judiciais e da expectativa depositada na tutela jurisdicional oficial
(Felstiner, Abel e Sarat, 1980). Esses aportes explicativos inspiraram o segundo grande
postulado elaborado neste estudo:
306
No Brasil, vale registrar, a pesquisa sobre litigiosidade e causas da morosidade, no âmbito de programa
do Conselho Nacional de Justiça, cuja equipe tive a honra e a satisfação impar de compor, explica a
trajetória dos conflitos de consumidor e previdenciários e seus efeitos sobre a judicialização (GABBAY e
CUNHA, 2012).
257
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
deixa claro que as que chegam desfrutam de uma posição privilegiada307. Se os resultados
de acesso à justiça variam conforme os sujeitos e, por extensão, os direitos materiais em
discussão, o desenho das formas processuais deve acompanhar essa variação.
307
Os levantamentos empíricos feitos à época identificaram direitos (e pessoas) que conseguem acessar a
Justiça mais facilmente do que outros e permitiu classificar as disputas conforme sua propensão a serem
reivindicáveis ou não, tendentes a acordo ou judicializáveis (Miller e Sarat, 1981). Casos de discriminação,
por exemplo, têm mais dificuldades de vencer os obstáculos da judicialização do que indenizações de
consumidores ou ações para proteção à propriedade.
308
Os tribunais e as partes mais frequentemente acionadas judicialmente comungavam, cada um em seu
posto, uma clara insatisfação com os resultados das políticas de ampliação dos direitos civis e do acesso à
justiça das décadas anteriores. O volume de processos aumentara geometricamente, tal como os custos das
empresas com litígios e indenizações a que eram condenadas - os famosos torts, potencializados pela tese
dos punitive damages.
258
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Nos anos 2000, o tema do acesso à justiça retornou à agenda científica global
(Mattei, 2007) e política dos EUA (Sandefur, 2005), o que deu novo impulso às pesquisas,
que produziram novas ideias. Destaco dois exemplos. A profusão de arenas e métodos de
solução de disputas, no âmbito judicial e extrajudicial, somada à noção de que os
diferentes direitos e interesses sugerem diferentes caminhos e satisfazem-se com
diferentes tipos de resultados, culminou na sugestão da existência um complexo e
articulado sistema de processamento e resolução de disputas que mescla as esferas
públicas e privadas – uma “árvore de solução de disputas” (Albiston e Edelman, 2005; cf.
309
Duas vertentes merecem registro. A primeira, baseada no diálogo com estudos da psicologia
comportamental, desenvolveu o conceito de “justiça procedimental” (procedural justice) a partir de dados
que indicaram que as pessoas percebem a justiça mais pelo modo como são ouvidas do que pelo conteúdo
da decisão imposta (Tyler, 1997). A segunda recupera uma das ideias da “dispute perspective” para
argumentar que as pessoas constroem seu senso de justiça e legalidade a partir das experiências que tiveram
com a lei e os fenômenos jurídicos em suas atividades diárias – a chamada “legal consciousness” (Silbey e
Ewick, 1998), aqui também identificada por “construção social da legalidade”.
259
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
figura no cap. 1, item 4.4). Somado a isso, a noção de que o acesso à justiça varia
conforme o direito material e o que a justiça é uma percepção resultante da experiência
das pessoas, inspirou uma proposta para se pensar o acesso à justiça a partir de como se
concretiza nos diferentes grupos sociais envolvidos nas disputas (Sandefur, 2009). Qual
seja a abordagem e a política adotadas, o acesso à justiça não chega igualmente a todos
os tipos de litigantes. Alguns têm mais acesso, outros menos e outros não o têm. A questão
é identifica-los e mensurar o quão concentram esse benefício, ou prejuízo, para si – e se
é desejável para o sistema que seja assim310.
310
A American Bar Foundation, responsável por financiar e sediar inúmeros projetos em todo esse período,
comprou a ideia e reabriu uma linha de projetos específica ao tema, coordenada pela própria Sandefur.
311
Intensificada, vale anotar, pela publicação do texto de abertura do relatório do Projeto Florença em 1988
por Sérgio Fabris.
312
Essa diferença reflete as duas perspectivas de análise do acesso à justiça identificadas na literatura
internacional: de “cima para baixo”, por meio das instituições formais, ou de “baixo para cima”, pela
própria sociedade.
313
Como a preocupação suprema com a eficiência do sistema, segurança jurídica, economia processual,
padronização de resultados e eliminação do estoque. Nenhum desses elementos integram a ideia original
de acesso à justiça, mas tem composto, no debate das políticas públicas judiciárias, o conteúdo conferido
ao termo.
260
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
314
No Brasil, as ciências sociais sempre produziram estudos empíricos sobre os órgãos do sistema de justiça
e o acesso à justiça. A partir dos anos 2.000, os órgãos responsáveis pela gestão da Justiça passaram a
também investir na produção de dados empíricos sobre esses temas. Em pouco mais de uma década, já
havia dados para iniciar um diagnóstico mais detalhado a respeito e instruir o desenho de políticas públicas
de justiça. A segunda parte deste estudo sistematizou um “mosaico” do retrato da realidade da justiça no
Brasil. Baseou-se em dados empíricos finalmente produzidos na última década e meia. Alguns relatórios
oficiais, outros fruto da produção de universidades e centros de pesquisa. Participei como pesquisador ou
como coordenador dos projetos que resultaram em parte dos dados apresentados.
315
Menos de 10% da população brasileira relata ter se envolvido em disputas em sua vida diária (IBGE,
2010) e o envolvimento em conflito se concentra em perfis típicos de estratos específicos da população:
com mais renda, com mais escolaridade e com mais idade. O perfil de cidadão que mais relatou
envolvimento em conflitos é o de homens, acima de 40 anos, com ensino superior completo e renda acima
de 5 salários mínimos (IBGE, 2010).
316
Dentre os assuntos tratados, apenas dois deles – rescisão de contrato de trabalho e verbas rescisórias e
questões eleitorais – chegaram perto dos 10%; as demais não chegam a representar mais de 5%. Rescisão
de contrato de trabalho e verbas rescisórias (11,75%), relativo a obrigações e contratos (4,61%), dívida
ativa (4,10%), responsabilidade do fornecedor com dano moral (3,94%), responsabilidade civil com dano
moral (3,94%), alimentos (1,97%), seguidos por dano moral do empregador, títulos de crédito, auxílio
doença previdenciário e tutela específica/tutela antecipada (CNJ, 2017).
317
Por exemplo, jovens entre 18 e 24 anos reportaram conflitos predominantemente na área de família e
criminal; e pessoas com mais de 50 anos reportaram conflitos trabalhistas e previdenciários
261
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
A pergunta que, diante desses dados, se coloca para o acesso à justiça no Brasil
não é a de saber como reduzir o congestionamento no Judiciário, mas esclarecer por que
ele não é ainda maior, por que se mantém concentrado e mal distribuído.
318
Segundo o CNJ, “os principais assuntos cadastrados no TJ-BA, TJ-MA e TJ-PE diferem dos casos mais
recorrentes nos outros tribunais” (CNJ, 2017, p. 168)
319
Casos criminais predominam nos órgãos de segundo grau, direito tributário na justiça comum e
consumidor nos juizados especiais (idem)
320
“No levantamento do índice de confiança na Justiça medido pela FGV, o subíndice de comportamento
- que mede a chance das pessoas procurarem o Judiciário para resolver suas disputas – alcançou
surpreendentes 8,6, ante os 3,4/10 do subíndice de confiança - que mede apenas a opinião a respeito.”
(FGV, 2016).
321
A população mais vulnerável, por exemplo, atribui notas mais altas à Justiça, mas é a que menos a
utiliza; a população menos vulnerável atribui as notas mais baixas, mas é as que mais utiliza. De modo
geral, “excepcionando-se a avaliação da população autodeclarada negra, os grupos sociais considerados
mais vulneráveis atribuíram as notas mais altas à Justiça. Diversamente, o comportamento consistente em
acionar o Judiciário parece concentrado nos grupos sociais considerados os menos vulneráveis.” (FGV,
2016).
262
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
É, portanto, mais provável que as pessoas não acessem o Judiciário porque não
conseguem do que por preferir outro caminho. A despeito dos traços indicados como de
“crise da Justiça e do processo”, o serviço público de Justiça no Brasil é bastante
concorrido. Entram na disputa os próprios órgãos do Estado, as grandes empresas e a toda
a população – que, em si, é composta de diferentes grupos sociais, com diferentes recursos
disponíveis322
Assim como não procede o argumento de que as pessoas prefiram litigar fora do
Estado, não é absoluto que elas prefiram fazê-lo com menos formalidades possível,
sobretudo em cenários de assimetria. As pessoas envolvidas em disputas nem sempre
preferem os caminhos alternativos ou os métodos que possam evidenciar sua condição
inferior e colocar em risco a justiça que procuram. Em casos de assimetria, que no Brasil
são regra, a parte em condição inferior prefere contar com a máxima proteção possível –
como procedimentos predefinidos e acompanhamento por um advogado323.
322
Nos juizados especiais cíveis, por exemplo, o espaço e a atenção dos servidores se divide entre casos de
consumidores contra fornecedores – bancos ou empresas de telefonia - e uma variedade de pequenas
demandas “domésticas” entre pessoas físicas - vizinhos, o marceneiro, o açougueiro, o mecânico, etc. Vale
reproduzir o trecho do relatório: “No juizado SP Penha, por exemplo, um dos entrevistados, juiz, declarou
[serem] comuns neste juizado demandas envolvendo o “açougueiro”, o “mecânico”, o “marceneiro”(...).
Um relato parecido aconteceu no juizado BE Guamá. Um dos entrevistados, assessor de juiz com
considerável experiência, contou que muitas demandas começaram por ocorrências um tanto peculiares: há
muitos anos - ele relata - um chefe de família dividira o seu terreno, então bem servido de quintal, a filhos
e genros e constrói casas para alojar as suas famílias. Posteriormente, essas casas são “vendidas” a outras
famílias, o que obriga todos a uma convivência muito próxima (praticamente, não há muros) entre
estranhos. Com o tempo, esta convivência gera conflitos de variada natureza naquele juizado. O
entrevistado lembra um deles, bastante trivial: em um desses terrenos compartilhados, todo domingo, ainda
de manhã, uma das famílias “compra lá meia dúzia de cerveja e um quilo de linguiça, liga o som em volume
alto, chama alguns amigos e começa o churrasco”, que termina apenas à noite, ainda com o som ligado.
Após alguns domingos, o conflito entre as famílias é inevitável. Segundo ele, não é incomum haver
processos naquele juizado baseados em narrativas como essas. (BRASIL, 2015, p 30)
323
Nos juizados especiais cíveis e federais, por exemplo, as partes geralmente preferem estar acompanhadas
por advogados, ainda que não sejam legalmente obrigadas. “Os autores “pessoa física” preferem litigar
acompanhados de advogados, o que nos JEF chega a 86,4% (IPEA, 2012, p. 101). E, “os autores “pessoa
física” preferem litigar acompanhados de advogados, o que nos JEF chega a 86,4% (IPEA, 2012, p. 101).”
Como está escrito em um outro trecho deste estudo, “os dados parecem sugerir que a escolha da parte pelo
acompanhamento profissional por advogado é determinada por um outro fator, predominante: o grau de
assimetria entre os litigantes. Se a disputa é entre iguais, como os litígios apenas entre pessoas físicas, o
advogado é dispensado.”
263
ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
Outro mito do discurso de senso comum desconstruído pelos dados diz respeito
ao que se tem chamado de “litigância abusiva”. Quando se observa em detalhes o
comportamento das pessoas comuns na Justiça, segundo dados colhidos em âmbito
nacional em processos de execuções fiscais, juizados especiais cíveis e juizados especiais
federais, o resultado surpreende: a proporção de cumprimentos voluntários é alta324, o uso
de meios de defesa e recursos não é frequente325 e as partes comuns estão abertas para os
acordos.
324
“Segundo levantamento de âmbito nacional feito pelo IPEA em 2009, as execuções fiscais federais se
extinguem predominantemente por pagamento integral da dívida (34%), seguido a alguma distância pela
baixa por prescrição (27,7%). Quando há citação pessoal, o pagamento sobe para 45%.” (IPEA, 2011, p.
20).
325
“Nas execuções fiscais, a frequência do uso de meios de defesa e impugnação não é alta, e a respectiva
taxa de êxito não passa dos 20%. Em todas as execuções fiscais analisadas naquela pesquisa, os embargos
foram utilizados em 6,5% dos casos e a objeção de preexecutividade, em 4,4%. As taxas de sucesso obtidas
foram de 20,2% e 7,4%, respectivamente (idem, p. 21)”. Nos juizados especiais cíveis, “em geral é baixo
o uso de recursos de impugnação de decisões judiciais pelas partes nos JECs (p. 42)”. Nos juizados especiais
federais, “O recurso inominado, típico dos juizados especiais, acontece em não mais do que 25% dos JEF.
Os demais recursos têm frequência muito menor: 3,3% de embargos de declaração, 1,4% de agravos ou
requerimentos de revisão e 1,11% de recursos extraordinários. Seus resultados também não são tão
expressivos: 20% de reforma das decisões impugnadas e 2,3% de anulação.” (idem, p. 152)
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
telescópio”: o alto volume de processos judiciais não é uma patologia social a ser contida,
eventualmente eliminada, mas em si um sintoma de um desequilíbrio na esfera das
relações econômicas e sociais326. O que há no Brasil não é um fenômeno de litigiosidade
de massa, mas de “violações em massa de direitos subjetivos”. A pior política regulatória,
neste cenário, seria aquela voltada à contenção da litigiosidade, que é justamente com o
que se preocupou o legislador.
Para “olhar pelo outro lado do telescópio” e com base nos postulados acima
enunciados, este estudo sintetizou cinco critérios de acesso à justiça adequados ao perfil
da litigiosidade no Brasil:
326
Como escrito em outra parte deste estudo, “demandas trabalhistas nascem de um tipo de conflito, distinto
dos de família por exemplo, por sua vez distintos dos de consumo e ainda mais diversos do que os criminais.
Alguns nascem em relações jurídicas privadas, outros envolvem relações públicas; alguns envolvem
população com renda acima da média e outros afetam população com renda abaixo da média. (...) Se o
Judiciário recebe muitas demandas consumeristas é um claro sinal de que consumidores e fornecedores não
têm conseguido encontrar um equilíbrio em suas relações. O mesmo acontece com demandas
previdenciárias, trabalhistas, obrigacionais, fiscais, de família e, inclusive, criminais”.
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
tribunais. Mas fez pouco para balancear a segurança de uma rotina padronizada e a
conveniência de um processo customizado. Limitou-se a delegar essa responsabilidade
aos próprios atores do processo, as partes, com ou sem intervenção do juiz. Este desenho
potencializa o risco de que as desigualdades de experiência entre os litigantes afetem o
gerenciamento e, assim, o resultado substancial de justiça. É agora maior o espaço para
que o “jogador repetitivo” se imponha ao “participante eventual” – o que pode acontecer,
v.g., no desenho dos procedimentos pelo negócio processual, na negociação de um acordo
pela solução consensual ou nos esforços despendidos na construção de um precedente
vinculante. Ademais, o procedimento “customizado” do gerenciamento tem um custo
suplementar em relação ao procedimento padronizado, não suportável ou não desejável
por parte significativa dos litigantes (v. detalhes no cap. 3, item 2.2.2).
327
A lei criou um sistema invertido de precedentes, em que a “jurisprudência” tem sentido meramente
formal, nascida do carimbo antecipado do legislador, não da adesão voluntária de juízes e da população.
Como foi ditto, uma jurisprudência “monárquica”, não “republicana”.
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ALVES da SILVA, Acesso à justiça, litigiosidade
e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
é que, com o tempo, o corpo da “jurisprudência” brasileira seja favorável aos interesses
desse tipo de litigante que conseguiu participar dos instrumentos de uso restrito.
328
Seria incorreto afirmar que a legislação não se preocupou com o risco de comprometimento do escopo
substancial de justiça. A disciplina dos negócios processuais (art. 190), por exemplo, estabeleceu limites à
validade das convenções – basicamente, situações de vulnerabilidade e contratos de adesão. A doutrina tem
defendido uma interpretação flexível dessas hipóteses, no sentido de que nem toda vulnerabilidade e nem
todo contrato de adesão comprometam o negócio. É possível. Mas não é provável. O perfil da litigiosidade
e da litigância judicial no Brasil indicam claramente que a assimetria entre as partes não só é grande, como
compromete significativa os resultados de justiça buscados, a muito custo, pelo sistema. Resta ao intérprete
aplicar os limites fixados na lei ciente dos seus riscos e da maior probabilidade de se verificarem em
concreto. V. este debate no item sobre convenções processuais, cap. 3, supra.
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
e com recursos. Isso vale para os quatro instrumentos analisados neste estudo: o
gerenciamento de processos, a valorização da jurisprudência; a mediação judicial; e o
negócio jurídico processual.
329
A leitura de Nader (1990) sobre a lógica que subjaz a regulação jurídica por meio do “acordo entre as
partes” – do qual tanto a mediação quanto o negócio processual são exemplos – explicaria este diagnóstico.
Segundo a autora, a “ideologia da harmonia” esconde um eficaz instrumento de dominação pelo consenso
e o informalismo, historicamente implementado pelos colonizadores espanhóis para contenção das
insurgências iminentes nas colônias na América, posteriormente recuperado como política judiciária de
reação à expansão de direitos civis na década de 1980, nos EUA e, então, para todo o mundo (1999). Os
benefícios desses mecanismos são aparentemente compartilhados entre as partes, mas na verdade
restringem-se a uma delas – o que, justamente por isso, faz deles, no seu argumento, um poderoso
instrumento de dominação do mais fraco pelo mais forte. Em trabalho posterior ela iria adicionar à análise
argumentando de que, no plano internacional e sob o arranjo provocado pela globalização, os ADR
representariam o elemento concreto pelo qual se observa um tipo de colonialismo jurídico contemporâneo,
um pós-colonialismo agora praticado não mais por Colombo, mas pela antiga colônia, os EUA,
instrumentalizado por mecanismos jurídicos (NADER, 1999).
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
acesso à justiça suplementares àqueles identificados por Cappelletti e Garth: além dos
custos e da complexidade burocrática que tornam mais cômoda a resiliência, a disputa
em si ficou mais difícil porque a parte contrária está fortalecida e o terceiro imparcial, a
quem se depositava o balanceamento da assimetria, terá um papel mais contido. Essa
dinâmica é sediada no âmbito do próprio Estado, sob o subsídio de toda a sociedade. O
modelo de justiça e de processo é mais liberal, mas continua dependente da estrutura do
Estado e dos recursos públicos. Não parece, afinal, um modelo democrático com se
anuncia, nem efetivo em termos de acesso à justiça e muito pouco consciente do que é a
litigiosidade no país.
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330
O mesmo Bryant Garth (2001) explica como o advento da informalização e delegalização da resolução
de disputas, sobretudo com os ADR, segmentara ainda mais o mercado profissional e teria ocasionado a
formaçao de verdadeiras “elites” de advogados, em meio a uma massa de profissionais que compõe a classe.
Para aqueles, as múltiplas “portas” de solução de disputas são opções viáveis e a liberdade de montar um
arranjo entre elas é uma possibilidade concreta. Àqueles, ainda são remotas possibilidades ou, quando
muito, a saída que resta. Neste quadro, a problemática da segmentação profissional assumiria relevância
maior do que a da desformalização dos processos, que compôs a tônica do debate anterior. Inclusive por
esses argumentos, o tema das profissões jurídicas e das mudanças na advocacia ocupam crescente espaço
no debate científico na área.
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coro a doutrina processual brasileira (MITIDIERO, 2007 E 2011; NUNES & TEIXEIRA,
2013; CABRAL, 2016). Se a lei ameniza a condução ativa do juiz, exige-se dele exercer
a coordenação da cooperação com entre os atores do processo. Menos arbitrário e mais
cooperativo, mas igualmente responsável pelos resultados de justiça do processo
(BUENO, 2017).
331
Três exemplos ilustram este argumento: a triagem dos casos encaminhados à mediação; o controle sobre
a convenção de procedimento pelas partes; e os critérios para escolha do caso paradigma do IRDR. Tratam-
se das principais inovações do novo código, em cujo potencial se credita os resultados mais importantes da
mudança. Todos dependem, respectivamente, de uma boa triagem de casos, de algum controle do
procedimento convencionado pelas partes (até para articulá-lo à dinâmica do juízo em que terá vigência) e
uma justa escolha do caso paradigma. Ainda assim, nenhum dos três recebeu suficientemente
regulamentação nesses aspectos, o que exigirá complementação pela coordenação exercida pelo juiz no
caso concreto.
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e o modelo processual civil brasileiro, 2018.
trivial em disputas com tamanho grau de assimetria, o que exige atenção redobrada, que
só o magistrado e servidores responsáveis pelo caso poderão oferecer.
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