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2ª Edição
Abril de 2011
Coletivo Lenin Publicações

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A ESCRAVIDÃO É A CHAVE DA HISTÓRIA DO BRASIL


O estudo da destruição incompleta do modo de produção escravista colonial, baseado no latifúndio, das
limitações e dos métodos de luta contra o sistema escravista são essenciais para entender as raízes sobreviventes
do racismo na sociedade brasileira. Muitos grupos na esquerda brasileira tendem a fazer uma análise romântica
e plenamente positiva sobre o período colonial e imperial, o que acaba tornando-o uma história açucarada com
heróis e vilões, como a que se vê nos livros de escola. Mas para entender os sucessos e os fracassos dos
revolucionários da época, e aprender com seus erros e acertos, é necessária uma análise materialista da história
e uma visão crítica das formas de resistência.
O livreto A Escravidão é a Chave da História do Brasil é mais uma obra original do Coletivo Lenin que
tem o objetivo de mostrar como o fim da opressão aos negros e a igualdade de direitos é uma questão que não
foi resolvida no “Brasil de Todos” e exige que o movimento dos trabalhadores paute esta questão em todas as
suas lutas. Unir os operários de todas as etnias na luta contra a opressão negra (pelo Estado, patrões, polícia e
grupos ou indivíduos racistas) é uma tarefa que os atuais líderes do movimento operário não estão dispostos a
levar a sério. Isso levanta a necessidade de um Partido Revolucionário de Trabalhadores que seja a voz e os
braços de um dos setores mais oprimidos da sociedade brasileira – e portanto também composto em grande
parte por esse setor – os trabalhadores negros.

Teses Sobre a Formação Social Brasileira ................................................................................................ pág. 4

A Formação Social Escravista Colonial .................................................................................................... pág. 5

Resistência Popular, Negra e Indígena na Colônia .................................................................................. pág. 7

1808-1822 ..................................................................................................................................................... pág. 8

Luta de Classes no Império ........................................................................................................................ pág. 9

A Revolução Abolicionista ........................................................................................................................ pág. 11

República Velha e Branqueamento ......................................................................................................... pág. 13

Da Revolução de 1930 ao Golpe de 1º de Abril ...................................................................................... pág. 14

Das Greves de 1978 Até Hoje: Luta Contra a “Democracia Racial” ................................................... pág. 16

Conclusão ................................................................................................................................................... pág. 17

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A ESCRAVIDÃO É A CHAVE DA HISTÓRIA DO BRASIL


TESES SOBRE A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
A maioria esmagadora da esquerda brasileira considera que é apenas o domínio imperialista sobre nossa
economia que trava o desenvolvimento brasileiro. A partir disso, vários grupos deduzem que a revolução
brasileira (pelo menos em sua primeira fase) deve ter como objetivo a ruptura com o imperialismo e o fim do
latifúndio, para garantir a independência nacional e a modernização da economia capitalista. Seria necessário,
então, um bloco da classe operária com o setor produtivo do empresariado, e o socialismo não seria o objetivo
imediato da luta de classes.
Essa formulação que coloca a revolução socialista em etapas (por isso chamada etapista) foi criada para
combater as formulações liberais da burguesia, de teóricos como Roberto Campos e Eugênio Gudin, inspirados
na teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo. Tais teorias defendiam a “especialização” da
produção brasileira na monocultura de exportação (como o argumento de que a “vantagem comparativa” do
Brasil seria o acesso aos recursos naturais e à terra). Ou seja, esses teóricos burgueses defendiam a manutenção
do caráter semicolonial da nossa economia.
Ao mesmo tempo, a formulação etapista ou “desenvolvimentista” da esquerda brasileira (sintetizada da
forma mais descarada no documento de 1958 do Partido Comunista Brasileiro, Pelo Desenvolvimento
Econômico Capitalista no Brasil) é uma mão estendida à corrente burguesa industrializante, representada
principalmente por Mario Simonsen e Delfim Neto, e pregava até mesmo a necessidade de planejamento estatal
indicativo do Estado como instrumento para essa estratégia.
Para defender a tese da revolução democrático-burguesa, várias correntes tiveram que enquadrar o
Brasil num esquema etapista igual ao que a Terceira Internacional passou a defender após a degeneração
stalinista. Mas a estratégia para um Brasil semicolonial não deveria ser uma aliança com a burguesia nacional.
Ao generalizar a Teoria da Revolução Permanente no fim da década de 1920, Trotsky previu que a
subordinação da classe operária das colônias à burguesia nativa (situação em que esta dominaria o processo de
luta contra a metrópole imperialista), poderia criar, na melhor das hipóteses, apenas uma independência formal,
onde permaneceria a dominação econômica da colônia pelas metrópoles imperialistas.
Esse foi o caso na quase totalidade das lutas “anti-imperialistas” do século XX, sobretudo na
descolonização da África e da Ásia. Por deixar que a burguesia nacional liderasse a luta, os povos oprimidos
permaneceram sob controle imperialista. Ao manter o capitalismo, as burguesias coloniais, dependentes do
imperialismo, são incapazes de resolver os principais problemas nacionais – a dependência econômica, a
questão da terra e em muitos casos a ausência dos direitos democráticos. Somente rompendo com a burguesia e
destruindo o Estado capitalista é possível desfazer os laços de dominação imperialista.
Com o objetivo definir uma estratégia etapista, importada com embalagem e tudo de Moscou, foi
inventada a idéia de que o Brasil era um país semifeudal. Vários teóricos stalinistas, como Nelson Werneck
Sodré e Alberto Passos Guimarães, distorceram totalmente a análise das relações de produção no Brasil colonial
para justificar essa tese. Celso Furtado, que é considerado uma das grandes expressões das ciências econômicas
no país, com a sua teoria dualista (mercado interno vs. exportação) fundamentou a tese do caráter semicolonial
sem recorrer a isso, usando as categorias da corrente burguesa organizada em em torno da CEPAL (Comissão
Econômica para a América Latina, da ONU), o nacional-desenvolvimentismo.
Dentro do próprio PCB, Caio Prado Júnior destruiu essa ideologia. Mesmo que Caio Prado Júnior tenha
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caído no desvio oposto e considerado que existia um “capitalismo mercantil” na colônia, a sua contribuição foi
fundamental para acabar de uma vez por todas com essa história de feudalismo e semifeudalismo. A tese do
capitalismo mercantil foi adotada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e por vários grupos que a
usaram para dizer que a etapa democrático-burguesa da revolução já estava superada e que, portanto, a etapa
atual seria socialista. Isso significava, por exemplo, abandonar a questão camponesa, o que foi realmente feito
pela Política Operária (POLOP) e foi defendido pelo próprio Caio Prado Júnior, que colocou a luta pela
sindicalização rural.
Dentro da academia, a Teoria da Dependência (André Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso),
apesar de várias limitações, mostrou que o problema dos países do Terceiro Mundo não era o
“subdesenvolvimento”, e sim o desenvolvimento de uma economia dependente em relação aos países
imperialistas. Em inúmeros textos, como “É Preciso Romper com o Petismo” (Dezembro de 2007), “A
Esquerda Brasileira e o Programa Democrático e Popular” (Abril de 2008), “Defender o MST: Lutar pela
Revolução Agrária!” (Abril de 2009) e “Porque o Brasil NÃO Precisa de um Projeto Popular” (Setembro de
2009), o Coletivo Comunista Internacionalista e o Coletivo Lenin analisaram a formação social brasileira. Mas
para termos uma noção mais precisa das tarefas do proletariado brasileiro, é necessário superar as teses
incorretas e, através de uma teoria coerente, expor quais devem ser as prioridades de um partido revolucionário
no Brasil.

A FORMAÇÃO SOCIAL ESCRAVISTA COLONIAL


Não adianta somente criticar a tese do semifeudalismo ou a do capitalismo mercantil. É preciso formular
a teoria da formação social colonial no Brasil e no restante da América Latina. Essa teoria, consideramos, foi
formulada por Jacob Gorender, Décio Saes e Ciro Cardoso, no final da década de 1970. A teoria do escravismo
colonial por eles formulada nos permite colocar no centro da análise a questão negra, que é a mais explosiva da
sociedade brasileira, e que foi
subestimada por todas as correntes que
tentaram analisar a nossa sociedade,
quando não foi negada de forma
descarada, com o argumento de que
debater sobre a opressão racial “divide
a classe” ou “distrai a atenção” para os
“verdadeiros” problemas sociais, o que
é hoje em dia a posição da direção do
MST.
A teoria correta sobre a nossa história
mostra que o racismo não é um
Gravura representando uma feira de escravos ao ar livre
apêndice ou uma sobrevivência do
passado: é a própria fonte da explicação do atraso e da dependência do Brasil, e a luta pela integração
revolucionária entre os trabalhadores negros e brancos é uma das chaves da revolução brasileira. Segundo essa
linha, o modo de produção escravista colonial foi o dominante em todos os países da América Latina e no Sul
dos Estados Unidos, mesmo depois da independência formal. Ele se baseava na plantagem (latifúndios
monocultores para exportação), cultivada com trabalho escravo. Dentro dos engenhos, a economia era de

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subsistência, mas a produção era feita para o mercado mundial. Pelo próprio fato de não haver um campesinato
dependente (a não ser em algumas regiões como o Nordeste brasileiro, ligado ao pastoreio, e o interior de São
Paulo), não há nem mesmo sentido falar de feudalismo ou semifeudalismo.
A dinâmica desse modo de produção o subordinava às metrópoles, ao mesmo tempo em que permitia a
acumulação primitiva de capital nas colônias, assim que acabassem as restrições ao comércio e à
industrialização. Por isso, quando o capitalismo se tornou o modo de produção dominante nas metrópoles,
corroeu o escravismo colonial de fora para dentro, através das relações de mercado. A necessidade de mercados
consumidores crescentes para a indústria capitalista das metrópoles levou à intervenção estatal direta, em forma
de abolição do tráfico negreiro. No Brasil isso ocorreu em 1845, com a Lei Bill Aberdeen. Ao mesmo tempo
em que o capital mercantil europeu subordinava as formações sociais latinoamericanas, estimulava mais ainda o
desenvolvimento da escravidão nas sociedades africanas, onde ela era uma relação de produção subordinada. A
escravidão na África deixou de ser patriarcal, e se tornou muito mais violenta, ao ser modificada para produzir
mercadorias para o comércio. Surgiram reinos que tinham como atividade econômica principal a captura e
venda de escravos.
A destruição do escravismo colonial foi, em geral, de cima para baixo. No caso da Abolição no Brasil,
que será analisada mais à frente, foi o resultado de uma revolução social dirigida por uma ala da classe média
urbana. Mas houve dois casos importantes em que esse
processo foi realizado pela via revolucionária
insurrecional e com forte participação popular.
O primeiro foi a Revolução Haitiana (1792-
1804), a única revolução vitoriosa dirigida por escravos
na história. O instrumento organizativo desse processo
foram várias sociedades secretas de escravos, e durante
todo o período imediatamente anterior, os escravos
domésticos membros dessas sociedades envenenaram
milhares e milhares de senhores de engenho. Touissant
L'Ouverture, o grande líder militar da Revolução,
conseguiu vencer o exército de Napoleão. O historiador
então trotskista, C.L.R. James, em sua obra Jacobinos
Negros, o comparou como dirigente a Lênin e Trotsky.
Posteriormente, a revolução haitiana foi
retrocedeu porque os escravos instituíram uma
economia camponesa de subsistência, ao invés do
latifúndio de exportação (que era a força produtiva
mais avançada para o campo na época) e a indústria
capitalista. Isso levou o Haiti a um retrocesso histórico
sem medida. Toussaint L'Ouverture acreditava que o
caminho era a acumulação primitiva do capital, como
foi feito na França após a revolução. Por serem contra
sua arregimentação para trabalhar nos latifúndios, os Quadro representando Toussaint
escravos derrubaram L'Ouverture, e depois Dessalines L'Ouverture, líder da revolução haitiana.

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e Cristophe. Isso é um indício de que a revolução contra o escravismo colonial precisava ser dirigida pela
burguesia e pequena-burguesia, e se apropriar do latifúndio para preparar a passagem para o capitalismo, como
aconteceu no segundo caso de revolução vitoriosa.
O segundo caso foi a Guerra Civil Americana, em que o Norte, dirigido por Abraham Lincoln, destruiu
a economia escravista do Sul. Durante o período da Reconstrução (1865-1888), em que o poder de Estado no
Sul foram as forças ocupantes do Exército (controlado pelo governo federal), as diferenças sociais entre os
brancos e os negros foram combatidas. Os EUA só voltaram a um regime racista após a saída do exército,
quando a antiga classe dominante branca (apoiada na organização paramilitar Ku Klux Klan) impôs uma
legislação fascista aos negros, que só foi destruída com o movimento pelos direitos civis, na década de 1960 e
que mantém muitos traços até hoje.
Caracteristicamente, uma revolução contra o modo de produção escravista colonial só pode ter sucesso
com a destruição dos latifúndios escravistas, a disseminação das relações de propriedade capitalistas no campo
(trabalho assalariado e mecanização) como forma de impulsionar industria capitalista. Os quilombos, que foram
a maior expressão da resistência negra durante o período colonial, apesar do seu papel progressivo, não levaram
à destruição revolucionária da plantagem. Ao criar sociedades camponesas, que reproduziam mais ou menos as
formações sociais africanas da época (inclusive com escravidão patriarcal), eles deixavam o latifúndio intocado.
Vez ou outra, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e a esquerda do Movimento
Negro Unificado (MNU) ainda têm a falta de senso histórico de pintar o Quilombo dos Palmares como uma
“república socialista”. Mais tarde, na revolução abolicionista, como veremos à frente, isso levou à grande
debilidade do movimento, que fez com que a abolição mantivesse a economia de plantagem no Brasil, com
relações de produção pré-capitalistas.

RESISTÊNCIA POPULAR, NEGRA E INDÍGENA NA COLÔNIA


Desde o início da colonização, houve várias formas de resistência de distintos setores. A primeira foi a
resistência indígena, que se expressou em guerras contra os invasores portugueses. Devido ao atraso produtivo
das tribos indígenas, essa resistência não conseguiu se transformar em um projeto alternativo de sociedade, já
que a manutenção das comunidades arcaicas estava fora de questão. Nesse caso, a resistência indígena
precisaria ser dirigida por outro setor mais avançado.
Em episódios como a Confederação dos Tamoios (1560-1572) ou nas guerras das Missões (1767), os
índios acabaram servindo como bucha de canhão para um dos campos de colonizadores em conflito (no
primeiro caso os portugueses usaram Araribóia contra os franceses; no segundo, os jesuítas transformaram Sepé
Tiaraju em herói da luta contra os portugueses). Aliás, as próprias Missões, longe de serem uma “república
comunista”, como alguns falam (o Partido Comunista Revolucionário entre eles), eram um empreendimento de
escravização dos índios, que tinham a sua vida social e cultura totalmente dominadas pela igreja, e eram
obrigados a trabalhar para ela.
Estamos falando isso para acabar com idéias românticas sobre a resistência popular no período colonial.
Algumas correntes, como a Ação Popular Socialista (APS) e o Movimento Estudantil Popular Revolucionário
(MEPR), falam como se tudo fosse parte de um só processo ininterrupto. Ou seja, não discutem nem os fatores
de classe envolvidos, nem as debilidades, nem como essas formas de resistência se combinaram. Isso é quase a
mesma coisa que se faz nos livros de escola sobre o assunto. Dessa forma, a história fica parecendo uma
coleção sem sentido de fatos que se acumulam. No caso da APS isso não é nada mais do que o reflexo da falta

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de estratégia da corrente. No caso do MEPR, é fruto do fato de eles “analisarem” o Brasil aplicando o esquema
da revolução chinesa, o que esvazia toda a realidade dos fatos que eles descrevem.
A única forma de resistência realmente popular (mas não revolucionária) na época foram os quilombos,
que se tornaram sociedades tradicionais africanas estabelecidas no Novo Mundo, inclusive acolhendo brancos
pobres e setores que sofriam opressão religiosa (como os muçulmanos e ciganos). Naquele estágio, os escravos
negros ainda não tinham a perspectiva de fazer uma revolução, o que só aconteceu a partir da Revolução
Haitiana que, por sua vez, foi consequência direta
da Revolução Francesa (Toussaint de
L'Ouverture era declaradamente adepto dos ideais
iluministas e o seu objetivo era um Haiti sem
escravidão como parte de uma França
revolucionária).
A influência das revoluções européias
leva diretamente à questão das revoltas
influenciadas por elas. A burguesia mercantil no
período colonial tinha contradições com a
metrópole porque, a partir de determinado
Cipriano Barata, dono de escravos que dirigiu
momento de seu desenvolvimento, ela passou a
a Revolta dos Alfaiates.
ter interesse em comerciar com outros países e
nacionalizar o comércio, tirando-o das mãos de Portugal. A Guerra dos Mascates (1709-1711) foi uma
expressão clara disso, porque a grande exigência era que o comércio saísse das mãos dos portugueses. A
insurreição mineira de 1792 também foi um movimento da burguesia mercantil – tanto que a abolição da
escravidão nem mesmo aparecia em seu programa. Isso, por si só, mostra a tolice das correntes que reivindicam
que Tiradentes foi alguma coisa como um herói. Todos estes foram movimentos de setores da classe dominante.
Mesmo assim, em um desses movimentos, setores populares (artesãos, os poucos camponeses que
existiam, até mesmo alguns escravos) tiveram uma influência real: foi a Insurreição dos Alfaiates (1798), em
que houve uma ala que defendia a abolição da escravidão, nos moldes do Haiti, mesmo que os dirigentes (como
Cipriano Barata), pelo fato de serem donos de escravos, fossem contra essa reivindicação.

1808-1822
Com a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, por causa da fuga da família real
portuguesa, depois da ocupação de Napoleão, acaba o período colonial do Brasil. A necessidade de construir no
Rio de Janeiro um aparelho de Estado para governar o reino deu um impulso à acumulação de capital mercantil,
e criou a infraestrutura básica de um país independente (Banco do Brasil, Exército e Polícia, aparato cultural).
Ao mesmo tempo, se aprofundou a dependência em relação à Inglaterra (já no seu período de Revolução
Industrial). A Abertura dos Portos (para as “nações amigas”) e o Tratado de 1810 deixaram menores as taxas de
importação com a Inglaterra. O país não mudou sua estrutura econômica de colônia agrícola exportadora de
cana de açúcar.
A classe dominante propriamente brasileira só girou para a defesa da Independência porque a ida de D.
João VI para Portugal (após a Revolução do Porto, em 1820, que exigiu a recolonização do Brasil) ameaçava
destruir toda a estrutura criada pela vinda da Corte. Exatamente por isso, o primeiro movimento pró-

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independência no período, a Confederação do Equador (1817-1824) foi organizada por senhores de engenho.
Apesar do seu discurso liberal e republicano, prometeu manter a “propriedade privada” dos senhores de
escravos. No Grão-Pará, que só conseguiu se tornar independente e se somar ao Brasil em 1823, os setores
populares foram bucha de canhão das mesmas classes, a burguesia mercantil e os senhores de engenho.
O único lugar em que a Independência teve caráter popular foi na Bahia, onde realmente aconteceu uma
guerra civil para expulsar os portugueses. Por tudo isso, o Império que surgiu foi resultado de uma manobra de
transformismo (para usar o conceito de Gramsci), e não houve nenhuma ruptura revolucionária. O Brasil passou
de colônia portuguesa a semicolônia inglesa (com economia colonial, mas preservando formalmente a
independência).
Não é por acaso que se manteve o regime monárquico, a
Igreja Católica continuou a ser a única religião oficial, e se
formou um Estado centralizado para melhor reprimir as várias
revoltas populares que se seguiram (que precisariam de um nível
de organização absurdo para se tornarem nacionais), além de
garantir o tráfico de escravos por todo o território e a preservação
da classe dominante. Por isso, o Brasil não se esfacelou em várias
repúblicas pequenas, como o restante da América Latina. O nosso
caráter de “país continente”, portanto, não é nenhum motivo de
orgulho! Foi uma consequência de uma independência
inteiramente controlada pelas elites e sem caráter popular.
Durante o Primeiro Reinado, a ameaça de recolonização
portuguesa ficou pairando no ar. Só a abdicação de Pedro I em
1831, gerada pela pressão do movimento de massas no Rio de
Janeiro (que durante a Noite das Garrafadas fez um linchamento
de portugueses e se organizou através da Sociedade pela Defesa
Pedro I, principal agente do
da Liberdade), afastou essa ameaça de vez. Depois disso, durante
transformismo do Estado brasileiro
todo o período da Regência (1831-1840), os vários setores
em 1822, também conhecido como
populares puderam disputar os rumos do país, sem precisar se
“Independência”.
preocupar com a recolonização. Como veremos a seguir, foram
derrotados durante mais de quarenta anos.

LUTA DE CLASSES NO IMPÉRIO


Antes de começar o assunto, é importante definir outra coisa que sempre some dos livros de escola. As
revoltas regionais do período regencial em nenhum momento tiveram nenhum papel revolucionário. Elas foram
ou frutos do descontentamento de setores escravistas (como a Farroupilha, em 1836-1845) ou expressão de
setores populares (artesãos brancos livres, camponeses, intelectuais) sem nenhum projeto político consistente.
Por isso, não tinham nenhuma possibilidade de vitória. Mesmo quanto chegaram ao poder, o que foi o caso da
Cabanagem (1835-1840), os revoltosos não souberam o que fazer com ele, e levaram o movimento à divisão e
ao fracasso.
A causa dessa atitude é social. Existiu, até a década de 1870, uma “frente dos homens livres” (como a
chama Jacob Gorender). Ou seja, quase todos os brancos livres eram donos de escravos. Por isso, nunca essas

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revoltas chegaram a tocar no nó da sociedade brasileira, a escravidão. No episódio da Balaiada, no Maranhão


(1838-1841), aconteceu o cúmulo de que um quilombo que se formou na época da revolta, dirigido pelo Preto
Cosme, simplesmente não foi levado em consideração pelos dirigente do processo. Na chamada Revolução
Praieira (1848), junto com o programa de nacionalização do comércio, da federação e da abolição dos juros
(por influência do socialismo de Proudhon), nem mesmo se falou na escravidão.
Ao mesmo tempo, o Estado se centraliza, para poder destruir melhor as várias revoltas. A Guarda
Nacional, criada em 1834, passou a ser o instrumento de repressão interna, o braço armado dos senhores de
engenho. Enquanto isso, o Exército (muito menor que a Guarda Nacional) assumiu o caráter de defesa externa.
Foi a competição, na Guerra do Paraguai, como o exército burguês do Paraguai que “ganhou” a maioria dos
oficiais para as posições abolicionistas e republicanas, como veremos à frente. Durante a abolição, o Império
chegou a tentar substituir o Exército pela Guarda Nacional, para sufocar o abolicionismo, e essa tentativa foi
um dos fatores que levaram ao golpe de 15 de novembro de 1889.
Assim, o verdadeiro estudo das lutas de classes no Império não deve se transformar numa enciclopédia
de cultura inútil. Em vez disso, temos que estudar o que realmente importa no período antes da Revolução
Abolicionista: as revoltas de escravos e as revoltas camponesas. Quanto às revoltas de escravos, essas passaram
a se combinar com os quilombos e a ter um caráter insurrecional. O maior ciclo de revoltas escravas foi o que
aconteceu na Bahia, de 1807 a 1835, que foi “fechado” com a Revolta dos Malês (os malês eram os negros
muçulmanos), dirigida por Luiza Mahim (mãe do revolucionário Luiz Gama). A Revolta dos Malês foi um
plano claro para a tomada do poder, mas sem objetivos muito concretos do que seria feito com esse poder.
Ainda na Bahia, houve a greve de escravos de ganho, em 1857, que já era influenciada pelo movimento
operário embrionário no país (a Bahia era a região com mais indústrias no Brasil).
A partir da década de 1850, com a abolição do tráfico negreiro, acontece uma supervalorização do preço
dos escravos. Esse fator conjuntural aumenta as perseguições feitas pelos capitães do mato. Ao mesmo tempo, a
abolição do tráfico criou o limite absoluto para a reprodução do modo de produção escravista colonial. Nesse
momento histórico, a abolição
imediata da escravidão passa à
ordem do dia. Por isso, as revoltas
escravas se transformam em um
movimento revolucionário
abolicionista de massas, apoiado nas
fugas de escravos e dirigido pela
classe média inter-racial das
cidades. Isso será visto em detalhe
mais à frente.
O movimento camponês teve
poucas oportunidades de se
desenvolver politicamente durante o
século XIX. A estrutura fundiária
escravista se reproduziu legalmente.
Gravura representando assassinato de dono de escravos A lei de terras de 1850 (pela qual a
durante a revolta dos Malês. posse da terra só poderia ser

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garantida pela compra) foi um mecanismo para impedir a formação de um campesinato com terras. A própria
existência de um sistema de venda de terras por si só já desmente a tese do feudalismo, sistema no qual não esse
tipo de relação não existe.
Devido ao atraso das condições de vida, os movimentos camponeses acabaram se expressando com
ideologias elementares, muitas vezes de conteúdo semi-religioso. Isso deixa ainda mais claro o papel da
opressão religiosa como instrumento de legitimação da opressão de classes, como aconteceu desde a Inquisição
no período colonial (que perseguia os judeus, as religiões africanas e indígenas, além de homossexuais, como
no caso de Felipa de Souza) e que continuou no Império, com a sua imposição do catolicismo como religião
oficial.
Foi esse o caso da Cabanada (1831), em que os camponeses pensaram que estavam “defendendo o
Imperador Dom Pedro I” e, consequentemente, a Igreja Católica, ao tomarem as terras e criarem uma
comunidade milenarista onde havia até mesmo sexo livre. Foi o caso da participação camponesa na Balaiada e
na Cabanagem. E foi o caso de Canudos e do Contestado, já na República, que representam a continuidade da
luta contra o latifúndio pré-capitalista.
Houve também outros episódios de revoltas, como o Ronco da Abelha (1873) e a Revolta do Quebra-
quilos (1874), as duas no Nordeste, onde os camponeses atacaram a opressão fiscal do Império e os
latifundiários, provocadas por motivos aparentemente fúteis (no caso do Quebra-quilos, por exemplo, pela
implantação do sistema métrico decimal, que os camponeses achavam que seria usado para fraudá-los nas
feiras).
O grande problema é que essas revoltas não conseguiram se transformar num movimento consistente
pela revolução agrária, em parte por causa da imaturidade das condições objetivas, pelo atraso cultural e social
do campo brasileiro e pelo peso minoritário dos camponeses no escravismo colonial, em parte por causa da falta
de política dos setores populares no período. Por isso, quando a frente de homens livres foi rompida, após a
Guerra do Paraguai, não pôde se encontrar com uma revolução agrária em curso. Só assim, a revolução
abolicionista poderia ter sido completamente vitoriosa, destruindo a escravidão ao mesmo tempo que o poder
do latifúndio, e criando um Estado burguês avançado.

A REVOLUÇÃO ABOLICIONISTA
Diferente da maioria da esquerda e do movimento negro, consideramos que a Abolição foi a única
revolução social vitoriosa no Brasil. Dizer que a Abolição foi uma farsa serve para educar os trabalhadores
numa concepção fatalista da história, que diz que os oprimidos sempre foram incapazes de lutar, e que tudo o
que aconteceu nos últimos quinhentos anos foi fruto da ação das classes dominantes. Pior ainda, esse tipo de
concepção esconde a tremenda transformação que aconteceu na sociedade brasileira na década de 1880, fruto
da ação direta das massas. Se a Abolição tivesse sido uma farsa, os negros ainda morariam em senzalas, seriam
marcados a ferro e assassinados a céu aberto. O fato de que a vitória da Abolição foi incompleta só nos deve
estimular a entender a dinâmica e as fraquezas do processo como um todo.
Em primeiro lugar, isso significa procurar pelos setores que dirigiram o processo. É uma coisa bem clara
que o Exército, após o esforço da Guerra do Paraguai, e com o contato com os Estados burgueses que
participaram dela, teve que se reorganizar em moldes burgueses (serviço militar em massa, meritocracia,
racionalidade instrumental, etc). Isso gerou uma ideologia burguesa, que se expressava na idéia de ascensão
social pelo mérito, o que era frontalmente contrário à escravidão. Diante disso, os oficiais começam a exigir que

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o Brasil se “modernizasse”, ou seja que acabassem a escravidão e a monarquia. O Exército (as suas camadas
médias militares) é o primeiro dirigente da revolução burguesa no Brasil.
Ao mesmo tempo, a abolição não poderia ser vitoriosa sem que a classe diretamente interessada nela
agisse. Os escravos, através de milhares de fugas em massas, destruíram o escravismo economicamente, e
foram a força econômica principal da revolução abolicionista. Entre 1887 e maio de 1888, UM TERÇO dos
escravos de São Paulo fugiram! Mas a própria forma de
luta (a fuga) impedia que o processo se transformasse em
revolução agrária para destruir o latifúndio. Nas cidades, o
movimento abolicionista era formado pelas camadas
médias civis (professores, advogados, médicos) e militares,
e se dividia em suas alas. A moderada (emancipacionista),
que acreditava no fim da escravidão pela via institucional, e
a revolucionária, que se apoiava na ação direta dos escravos
e em sociedades secretas para organizar as fugas.
A ala revolucionária contava com quadros como
Luiz Gama (que ficou conhecido por defender um escravo
que tinha matado o senhor de engenho, e usou na justiça o
argumento de que o ato foi legítima defesa), Antônio Bento
(que organizou a sociedade secreta dos Caifazes, que foi o
maior fator de desagregação da escravidão em São Paulo),
Francisco Glicério, Lopes Trovão e Chiquinha Gonzaga
Luiz Gama, líder da ala revolucionária
(ativos na Revolta do Vintém, em 1879, onde o proletariado
dos abolicionistas
e os outros setores populares fizeram uma série de ataques
aos bondes por causa do aumento dos preços), Francisco Nascimento (que dirigiu a Abolição no Ceará, em
1884, antes de todo o resto do país, através de uma greve dos jangadeiros que transportavam escravos) e muitos
outros.
Entre os métodos da ala revolucionária do abolicionismo, houve a formação de quilombos urbanos
itinerantes, que serviam para acolher os escravos fugidos, e ao mesmo tempo tentar reintegrá-los na economia
como homens livres. O quilombo do Jaboatão, em Santos, formado com ajuda dos abolicionistas em apenas
dois anos, chegou a ter 10 mil habitantes em 1888 – metade da população do Quilombo dos Palmares!
A ala republicana radical, principalmente nas pessoas de Silva Jardim e Bernardino de Campos, também
entendia que a República só poderia não ser uma farsa se fosse antecedida pela Abolição (segundo Bernardino
de Campos, “a república sem a abolição seria uma utopia”) e surgida a partir de uma insurreição popular. Não
por acaso, essa ala foi deixada à margem do movimento do 15 de Novembro, que tomou a forma de um golpe
militar. Houve apoio do povo, mas não houve participação direta, o que só aconteceu em 1894, na luta contra a
Revolta da Armada (que tentou restaurar a monarquia) onde os trabalhadores, estudantes e as camadas médias
criaram batalhões para organizar a solidariedade com o Exército para derrotar a contra-revolução.
O Exército, expressando o interesse de parte das camadas médias na implantação de um Estado burguês
com direito burguês no Brasil, foi essencial no último momento do abolicionismo. O Clube Militar, criado em
1887, se declarou publicamente contra a escravidão e organizou a desobediência dos militares à ordem de
ocupar a zona cafeeira paulista no começo de 1888, declarando que a tarefa de caçar escravos era “infame e

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infamante, própria de capitães do mato”. Além disso, foi o Exército que forneceu os quadros para a primeira
fase da República, chamada de “jacobina”, em uma comparação com a fase radical da Revolução Francesa.
Toda essa luta política teve que ser feita de fora dos partidos republicanos, que eram formados por
senhores de engenho e, por isso, nunca foram revolucionários. Infelizmente, o apartidarismo e o movimentismo
dos abolicionistas os impediu de criar um partido revolucionário em escala nacional. Só uma organização como
essa poderia completar a abolição com a sua tarefa complementar, a destruição dos latifúndios, e preparar as
massas da cidade e do campo para a insurreição republicana, que iria abrir caminho a uma república
democrática avançada. Como isso não aconteceu, o Estado burguês que surgiu no Brasil entre 1888 e 1892 foi
controlado, a partir da Constituinte, pelos setores latifundiários, através do voto de cabresto e da política do café
com leite. É mais um alerta para os militantes que persistem no erro de fazer apenas movimento, sem entender a
necessidade da luta pelo poder político.

REPÚBLICA VELHA E BRANQUEAMENTO


Na formação social brasileira depois da Abolição, o capitalismo pôde se desenvolver, houve a separação
entre Igreja e Estado (o que facilitou a imigração de trabalhadores de países protestantes e budistas, que não
sofreriam mais perseguição religiosa aqui, mas que logicamente não mudou nada na perseguição às religiões de
matriz africana, agora atacadas com argumentos pseudocientíficos, e não apenas com a satanização), e começou
a se formar em massa o proletariado industrial.
Já no campo brasileiro, onde vivia cerca de 80% da população, as relações escravistas foram
substituídas por uma série de relações camponesas dependentes (meagem, terça, colonato, cambão, condição)
em que o trabalhador dava parte da produção ao latifundiário ou prestava serviços pessoais a ele. Começaram a
se desenvolver a pecuária do Norte e do Nordeste e nas regiões onde houve decadência dos engenhos (Zona da
Mata pernambucana, Minas Gerais, Amazônia). Foram essas relações semifeudais que permitiram uma rápida
acumulação primitiva do capital no campo, na monocultura de exportação. Na década de 1960, com a ditadura,
as relações capitalistas passaram a ser as dominantes no campo. E são essas relações que mantém pendente a
tarefa da revolução agrária no Brasil.
Os negros que permaneceram no campo tiveram que se sujeitar a esse tipo de relação de produção, e
muitos tiveram que ir para a cidade, onde todavia o capitalismo ainda não estava suficientemente desenvolvido
para absorver aquela quantidade de mão de obra, e se tornaram uma casta racial super-explorada da classe
operária, morando nas favelas e periferias, situação que se mantém até hoje.
Mas o contingente de escravos era muito para o escravismo, mas muito pouco para formar um exército
industrial de reserva capitalista. Por isso, foi necessário trazer uma população enorme de imigrantes, para
“inchar” a classe trabalhadora. Ao concorrer com os imigrantes, os trabalhadores negros eram super-explorados
pela burguesia industrial, que se utilizava do racismo herdado da escravidão para dividir em duas a nossa
classe.
Esse é o mecanismo pelo qual o capitalismo se apropriou do racismo. Muito diferente, por exemplo, do
que pensava Florestan Fernandes, que achava que, ao classificar os trabalhadores pelo critério da
“competência” para o trabalho, o capitalismo acabaria destruindo as barreiras raciais. No caso das mulheres
negras, isso ainda se combina com a exploração através do trabalho doméstico não-pago. E toda a cultura negra
foi estigmatizada e satanizada para facilitar mais ainda essa super-exploração dos negros, colocando-os em
posição vulnerável frente à polícia, e os obrigando a aceitar trabalhar por qualquer coisa. Por exemplo, a

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proibição do samba e da capoeira, a perseguição ao candomblé que se mantiveram até muito recentemente.
O racismo deixou marcas profundas na superestrutura do Estado burguês brasileiro. Entre as mais
graves, está o desprezo pelo trabalho manual por parte das elites, a idéia de que as normas e leis só valem para
alguns (ou seja, o “jeitinho brasileiro”), que leva a sociedade ao individualismo e à corrupção e, mais
importante do que tudo, o medo instintivo de reivindicar e lutar. Na sociedade escravista, qualquer movimento
era logo esmagado através da tortura e da violência. Isso faz com que, até hoje, grande parte do povo,
principalmente negro, fique de fora dos movimentos sociais com medo de represálias. Além disso, o tratamento
dos negros como animais tornou a tortura um costume da polícia. E fez com que os negros não sejam
reconhecidos intelectualmente, no máximo como artistas populares e esportistas ou objetos sexuais do tipo
“mulata exportação”.
E o próprio movimento operário de origem anarquista reproduzia isso. Em primeiro lugar, porque o
“sindicalismo revolucionário” era simplesmente a luta muito combativa por reivindicações econômicas. Ou
seja, deixava e colocar a questão do poder. Depois, porque fragmentava os trabalhadores, criando sindicatos só
de “revolucionários” à parte das outras organizações da classe. Não por acaso, a maioria dos sindicatos onde os
negros participavam (por exemplo, vários sindicatos de estivadores) não eram sindicalistas revolucionários.
Além do mais, importavam as características da ala direita da socialdemocracia da época. Os sindicatos
“revolucionários” faziam o mesmo discurso conservador contra o carnaval e a moralidade dos negros, como se
ser socialista significasse ser europeizado. Assim, reproduziam as formas ideológicas do controle sexual que
existiam desde a Idade Média, e que o capitalismo aproveitou até a década de 1960 (quando o ascenso
revolucionário mundial obrigou o sistema a “aceitar” parte das reivindicações de liberação sexual, mas
submetidas ao mercado).
Diante do fato da imigração, alguns intelectuais de direita, como Alberto Torres e Oliveira Vianna,
passaram a defender que o Estado deveria usar o fluxo de imigrantes para branquear a população brasileira,
porque eles consideravam que os negros eram racialmente inferiores. Essa ideologia foi usada como desculpa
pseudocientífica para justificar a inferiorização dos negros.
Foi a imigração que permitiu o surgimento da ideologia do branqueamento, e não o contrário. É
importante dizer isso porque, dentro do movimento negro, existe a tese de que o branqueamento foi uma
política do Estado com o objetivo de acabar com a raça negra. Além disso não ser verdade, ainda tem
consequências políticas graves: como essa tese tira a origem do racismo das relações de produção, e a transfere
para a política social do Estado, ela dá margem à defesa de que o racismo pode ser eliminado através de
políticas sociais. Ou seja, é uma tese idealista de conteúdo reformista.

DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOLPE DE 1° DE ABRIL


Em 1930, a revolução política dirigida por Getúlio Vargas pôde colocar a burguesia industrial como
bloco de classe no poder. Por isso, permitiu o começo da industrialização do Brasil. Ao mesmo tempo, para
criar uma base de massas para melhor manobrar com o imperialismo, o governo Vargas deu várias concessões
aos trabalhadores, enquanto, ao mesmo tempo, transformava os sindicatos em instrumentos do Estado. O centro
da ideologia varguista, que foi apropriada pela maior parte da esquerda brasileira, foi o nacionalismo burguês.
Os vários governos nacionalistas se seguiram até o golpe de 1964, quando as necessidades da acumulação do
capital e a política de destruir o movimento de massas exigiram a mudança do regime.
A ideologia da burguesia industrial não poderia mais veicular o racismo descarado dos anos 1920 – ela

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precisava insistir sobre a unidade da nação. Por isso, tinha que mudar. E essa mudança veio na forma da obra
famosíssima de Gilberto Freire, publicada também em 1930: Casa Grande e Senzala.
Como este texto não é um manual de sociologia, não cabe aqui analisar profundamente esse livro. O que
nos interessa é lembrar o papel desse livro na formação da ideologia racista da burguesia brasileira. E esse
papel pode ser resumido em três conceitos: o primeiro é o de que a colonização portuguesa foi “branda” e
patriarcal, e criou uma civilização em que o escravo era considerado um membro da família. Ou seja, a
escravidão teria sido pacífica. O segundo é a idéia de que, devido à miscigenação entre os portugueses, os
índios e os negros, o povo brasileiro não seria mais dividido em raças. Ou seja, seria um povo mestiço. O
terceiro (conclusão) é que haveria no Brasil uma “democracia racial”, em vez do racismo de países como os
Estados Unidos.
A crítica óbvia que podemos fazer é que a “democracia
racial” é muito parecida com a a “democracia burguesa”:
por baixo da igualdade formal, existe ainda o racismo, que
se expressa de várias formas, da discriminação no local de
trabalho e no acesso aos serviços públicos até a violência
cultural e física. A polícia e a burguesia não acreditam em
mestiçagem: qualquer carro da polícia sabe muito bem
quem é negro na hora de dar uma dura.
O PCB, que foi a fonte da ideologia da esquerda brasileira
até a década de 1960, nunca nem mesmo reconheceu a
questão do negro, muito diferente de outros partidos
stalinistas, como o PC/EUA e o da África do Sul (que
defendia uma “república africana dos trabalhadores” e
chegou a ter 85% de negros). As organizações que
Gilberto Freire, autor de Casa Grande
defendem versões recicladas do etapismo do PCB, como é o
e Senzala.
caso da Consulta Popular, da Liga dos Camponeses Pobres e
do MST hoje em dia, também defendem as teses de Gilberto Freire sobre a mestiçagem e, muitas vezes, são
contra as cotas por acharem que não existe racismo no Brasil, e sim somente “preconceito de classe”.
O PCB sempre ignorou a questão do negro. Em 1945, nas eleições para a Constituinte, boicotou o seu
então aliado Abdias do Nascimento, justamente porque ele defendia reformas a favor
dos negros. O “partidão” se construiu nas camadas médias e nos setores mais bem pagos da classe trabalhadora,
o que o levou ao impasse da década de 1960, como veremos a seguir.
Logicamente, sempre houve setores negros em luta contra a ideologia da democracia racial. A primeira
organização política negra do Brasil foi a Frente Negra, formada em 1930, e logo posta na ilegalidade pelo
Governo Vargas. A Frente Negra, porém, era um partido de direita, em que havia alguns setores que
“namoravam” com o nazismo (por causa da valorização da raça), e que não defendia nada além de educação e
algumas poucas medidas pontuais, silenciando gritantemente sobre a opressão religiosa e as lutas dos
trabalhadores (houve um racha de esquerda, a Frente Negra Socialista – na verdade, reformista – mas que não
teve tempo nem condições de se desenvolver).
Mas nem isso podia ser tolerado pela burguesia brasileira: depois da sua destruição, os negros passaram
um longo período resistindo apenas através de associações culturais e religiosas, já que a política de esquerda os

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ignorava. Aí começou a trajetória culturalista e despolitizada que vemos até hoje em setores do movimento
negro.

DAS GREVES DE 1978 ATÉ HOJE: LUTA CONTRA A “DEMOCRACIA RACIAL”


E tanto a esquerda como os negros pagaram por isso amargamente: na época da ditadura militar, que
marcou o início em grande estilo do capitalismo brasileiro moderno, o “milagre econômico” (ou seja, a
acumulação de capital à base de arrocho dos salários e intervenção do Estado) fez com que quase toda a classe
média apoiasse o regime. A esquerda, tanto o PCB e o trabalhismo, como os setores que foram para a luta
armada, perdeu a sua base social, e pôde ser massacrada pela ditadura enquanto a classe trabalhadora,
principalmente os negros, estava indiferente ou torcendo na Copa do Mundo. É um exemplo ilustrativo o caso de
Marighella, a maior figura da luta armada contra a ditadura, que era negro, mas que nunca deve ter notado isso e
nem pensou na questão negra como parte da libertação nacional.
Não é por acaso que Nelson Rodrigues, que era de extrema-direita e que apoiava a ditadura, foi muito
mais consequente que a esquerda ao falar a sua célebre frase sobre a Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968, no
Rio de Janeiro: “Olhei para as fotos e não vi nenhum preto”. Essa frase resume toda a fraqueza da esquerda na
época – e que não mudou o suficiente até hoje.
Por causa do desencontro histórico entre a esquerda e os trabalhadores negros, o ascenso de 1978-1979
foi baseado nas fábricas do ABC, com maioria de negros e nordestinos, mas não pautou nunca as opressões
específicas desses setores. Ao mesmo tempo, surgia o Movimento Negro Unificado (MNU), em São Paulo, em
1978, durante um protesto contra o racismo.
O MNU defendia uma concepção que temos
criticado, o setorialismo, surgido no movimento
feminista e no movimento negro nos EUA. Para os
setorialistas, a questão do negro é independente da
questão de classe, e deve ser tratada à parte do
movimento operário. Qualquer tentativa de vincular
as opressões específicas com a questão de classe e
do capitalismo é vista pelos setorialistas como uma
forma de “subordinar os negros aos partidos”. O
resultado político do setorialismo é a divisão dos
trabalhadores, a manutenção do racismo e do
machismo no movimento dos trabalhadores e o
predomínio do reformismo e do imediatismo nas
lutas dos setores oprimidos pela raça ou pelo sexo.
Pela sua concepção, o MNU estava
Símbolo do MNU, principal organizador da
condenado a nunca ter base de massas, porque se
Marcha de 13 de maio de 1988.
endereçava aos negros “em geral”, e não se
enraizava onde estão os negros, nos locais de trabalho precarizado e nas periferias, mesmo tendo realizado ações
gigantescas, como a Marcha de 13 de maio de 1988, com cerca de 100 mil pessoas.
Essa divisão desembocou na formação do PT. Depois das greves de massas (mas também depois da
destruição de toda a esquerda que foi para a luta armada), a ditadura iniciou mais uma manobra transformista, e
preparou a volta à democracia burguesa, mas mantendo todo o aparato militar, como o SNI (que depois mudou de
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nome para ABIN), e deixando o Exército nas sombras, como último recurso da burguesia. Houve anistia dos
torturadores, como o argumento hipócrita da “anistia ampla, geral e irrestrita”, que igualava os que lutavam
contra o regime com os responsáveis pelo golpe. A tentativa de resistência das massas contra essa transição pelo
alto, as Diretas Já, foram derrotadas em 1984, permitindo a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, e a
posterior posse de Sarney, ex-membro da ARENA.
Golbery do Couto e Silva, o mentor intelectual da abertura, entendia de política o suficiente para saber
que a legalização do PT serviria para criar uma válvula de escape para a luta de classes, que seria absorvida pelo
regime, devido ao caráter socialdemocrata do PT. A Escola Superior de Guerra também corretamente viu que o
movimento social que teria o maior potencial explosivo na década de 1980 seria o movimento negro, por causa da
incapacidade das suas demandas radicais serem atendidas pelo regime.
Como o petismo concebe o partido como um “braço político” dos movimentos, e uma soma de todos eles,
sem estratégia própria que não seja a eleitoral, o PT teve um peso enorme no movimento negro, através dos seus
setoriais. Mas nunca articulou a questão dos negros com as lutas que organizava nas empresas e com a CUT. A
CUT mesma só foi discutir a fundo o racismo no tricentenário da morte de Zumbi, na Marcha de 1995. Por isso, o
PT nunca rompeu com a concepção do MNU. Ou melhor, as divisões do PT se refletiram no MNU, mas sempre
dentro do projeto “democrático e popular”.
A história da esquerda brasileira desde os anos 1980 é a história do petismo. O setorialismo é reproduzido
também pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e a UNEGRO, sua colateral negra, assim como pela Esquerda
Marxista (EM/PT) e o Movimento Negro Socialista. Não é preciso fazer um grande esforço para entender o
assunto a partir daí. O centrismo de partidos como o PSTU é mais evidente ainda nessa questão: o partido tenta,
ao mesmo tempo, encaminhar as lutas dos negros por dentro do movimento sindical, e criar movimentos contra o
racismo sem base de classe. Talvez somente precisemos notar que, mesmo o programa do PT sendo liberal (como
a luta pelas cotas), nem isso a direita racista tolera. Um dos argumentos da Revista Veja, da Rede Globo e do
PSDB contra o governo Lula são as políticas para a população negra.

CONCLUSÃO
Por tudo isso, nós do Coletivo Lênin consideramos a questão do negro como a chave para a revolução no
Brasil. E achamos que uma das maiores provas do reformismo de todas as concepções dominantes do movimento
de massas é a sua cegueira em relação a isso. Para a questão negra ser resolvida, é preciso destruir o sistema que
se alimenta dela: o capitalismo. Para isso, é preciso criar um Partido Revolucionário dos Trabalhadores, que lute
com um programa socialista por um governo direto dos trabalhadores, nascido da revolução socialista.
Pelas condições do nosso país, esse partido precisa ter mulheres e negros como protagonistas. A nossa
maior tarefa é dar uma humilde contribuição para à sua construção. Por isso participamos do movimento popular
e, no movimento sindical, a nossa prioridade é organizar os terceirizados – para alcançar as mulheres e negros, os
setores mais explorados da nossa classe. Nos inspiramos nos ensinamentos do espartaquismo, uma corrente do
trotskismo que desde a sua origem (no começo da década de 1960) colocou no topo das suas prioridades a
questão negra (e todas as outras questões relacionadas aos setores mais explorados da classe trabalhadora). Hoje,
entretanto, as correntes originadas do espartaquismo se degeneraram em grupos que se abstém da batalha
cotidiana para dar à luta contra a opressão racial um conteúdo revolucionário. Por isso, devemos lembrar os
ensinamentos revolucionários dessa corrente e negar a sua degeneração. Para usar as palavras do revolucionário
russo Leon Trotsky: “Se não atrairmos os trabalhadores negros, nós não serviremos para nada. A revolução
permanente e tudo o mais não passarão de uma mentira”.

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