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A Revista do Expresso
EDIÇÃO 2568 rainha
de
14/JANEIRO/2022

+
Entrevista a
Paulina Chiziane platina
A voz que escreve
Moçambique
Por Luciana
Leiderfarb
Eleições
Guia para formar
governos de
coligação
Por Diogo Queiroz
de Andrade,
em Berlim
William Hogarth
O pintor subversivo
da Europa
Por Jorge Calado,
em Londres

Isabel II está
prestes a completar
70 anos no trono.
De corpo e alma
Por António
Araújo
PLUMA CAPRICHOSA

SAI UMA AUTOESTRADA


PARA O GEORGE CLOONEY

Q
O POVO, PREPARADO PARA A SERVITUDE DOS MILIONÁRIOS, JÁ APRENDEU A FALAR ESTRANGEIRO. É ISTO OU O DESEMPREGO
camiões que evitam as autoestradas. No rescaldo das Costa. Atualmente, “as obras estão canceladas”.
festas, não havia camiões e atravessei Rosal de noite, Está prevista a abertura da A26 no PNI2030. Leram
esperando entrar no Alentejo e encontrar uma fabulosa bem, 2030. Plano Nacional de Investimentos, vulgo, a
IP8, anunciada no GPS que me mandava ir por aquele ‘bazuca’.
caminho até apanhar a A2. A estrada em Espanha podia A Wikipédia tem a história dos troços que ligariam
ser decente, mas em Portugal, caramba, em Portugal a Sines não a Beja, mas à fronteira, coisa que ninguém
IP8 ia ser um prodígio. É o que fazemos bem, estradas. diz, como se Beja fosse o destino final em vez de
Não era. A estrada era estreita, escura e cheia de curvas. Espanha. A história começa em 2009 e é um rol de
Tinha fendas. E, tendo o azar de apanhar um camião na milhões gastos e de projetos inacabados. Em 2019, o
frente, ultrapassar era impossível. Até chegar a Beja era secretário de Estado das Obras Públicas reconheceu
uma estrada pior do que a espanhola. Depois de Beja, que havia trabalhos suspensos devido à dificuldade
pensava eu, depois de Beja era sempre a andar. O GPS da concessionária, o consórcio Estradas da Planície,
dizia que havia uma autoestrada que ligava à A2, uma em obter financiamento junto dos bancos. Em 2018,
uem ouve as proclamações de certos “responsáveis” novidade. Depois de Beja, a IP8 continuava péssima e a Estradas de Portugal, pública, tinha chegado a
sabe que existe uma terra no mundo cobiçada por a autoestrada nunca mais aparecia. Uma fita de asfalto acordo com a Estradas da Planície, privada, para a
estrangeiros, a nossa. E, dentro da nossa, a alentejana, sulcada por raros camiões, curvas e contracurvas, má subconcessão. Em 2019, suspendeu-se tudo e lá se foi
onde George Clooney também quer investir em villas de sinalização. Dezenas de quilómetros. Ao renunciar à ida o lanço Relvas Verdes, uma terra importante apenas
luxo em condomínios privados para multimilionários por Évora ou por Ferreira, a mando do GPS, aguardei a neste contexto, e Grândola Sul, mais o de ligação de
bestialmente ecológicos. Nada nos consola mais A26, algures mais à frente, ou, como se diz no Alentejo, Santa Margarida do Sado, idem, a Beja.
do que este desejo de sermos pasto alheio. Na costa já ali em baixo. Depois de uma eternidade atrás de um Em 2016, a Estradas de Portugal descrevera a decisão de
alentejana, temos por cima a Comporta e arredores, camião de Espanha iluminado como uma árvore de construir a A26 como um equívoco técnico. Dispendiosa
com as praias e os investidores, entre eles o futuro Natal, a A26 prometia-se em todo o esplendor. O camião e sem trânsito. Com “fundos mal aplicados”, leia-
Clooney, que como todo o multimilionário de esquerda escolheu uma estrada nacional e eu deslizei, voei, pela se dinheiro estrangeiro. A suspensão, certificavam,
se prepara para ganhar uns cobres no mercado do luxo, novíssima A26, à qual me custou tanto chegar. pouparia mais 60 milhões aos contribuintes. Em 2013,
“pode não querer uma villa para ele”, dizia a notícia, Não encontrei um carro. Uma autoestrada vazia. Em leram bem, 2013, a Infraestruturas de Portugal (antigo
e temos por baixo os migrantes traficados das estufas Grândola, a A2 iluminava a noite. Ter escolhido este nome da Estradas de Portugal) anunciara um prazo
de Odemira e os rios e mares poluídos pelos químicos percurso bucólico em vez de entrar por Badajoz para o começo da realização das obras na praça da
da fruta e salada. Mais a norte, temos o complexo tinha-me custado horas e massacrado a paciência. A portagem do troço Grândola Sul — Malhada Velha, por
de Sines, do qual se ouve falar desde o tempo de A26, uma autoestrada curtinha que nem chegava a Beja parte da Brisa. Se a obra não avançasse até 14 de março,
Marcello Caetano, 1971, como um grandioso centro de não fazia sentido. Qual o propósito? E se Beja tinha um o governo (Passos Coelho) “tomaria conta desta”. Em
desenvolvimento industrial e tecnológico, mais o porto aeroporto, inútil, por que raio não tinham construído a 2020, neste governo, António Costa, o troço foi aberto
de águas fundas e por aí fora. Sines está a ser de facto autoestrada? ao público e concluídas as obras da praça da portagem.
desenvolvido, e comprado, por estrangeiros, dada a Fui ao Google. E uma rubrica da Wikipédia disse-me Quatro anos depois.
nossa incapacidade para administrar o território sem os tudo o que precisava. Aquela A26 não era um fim em De resto, continua tudo por fazer. A A26 não passa de
fundos, o conhecimento e a capacidade executiva dos si, era parte de um projeto megalómano que não tinha um malogrado troço.
estrangeiros. O povo, preparado para a servitude dos corrido bem. Tal como o aeroporto. Ou o país. Confusos? Esta é uma história de Portugal e das
milionários, já aprendeu a falar estrangeiro. É isto ou o A Autoestrada do Baixo Alentejo é um “projeto de administrações e planeamentos.
desemprego. construção de uma autoestrada”. Quando concluída, Espero que George Clooney e amigos possam um dia
Com tanto desenvolvimento na costa, e tanto apetite estará integrada no itinerário IP8 em toda a sua extensão pousar o jato privado em Beja e mandar o chauffeur
pela bondade da terra alentejana, era de esperar que e no IC33 no troço entre Santiago do Cacém e Roncão. A recolhê-los pela Autoestrada do Baixo Alentejo. Acabem
o interior do Alentejo participasse da prosperidade e autoestrada fará a ligação entre Sines e Beja. Era suposto lá a obra. b
preparasse os acessos à prosperidade. Quem passa de “desempenhar um duplo papel”: escoamento dos
carro naquelas vilas e aldeias de silêncio onde não se produtos do porto e refinaria de Sines e aproximação de
vê noturna luz, quem vê as casas transformadas em Beja à A2 e a Lisboa. Mas... os únicos troços construídos
casebres arruinados, percebe que o Baixo Alentejo estão entre Sines e Relvas Verdes e entre a saída de
interior envelheceu e continua, como se diz agora, Grândola Sul da A2 e a Malhada Velha, perto de Figueira
“desertificado”. O único gesto útil é rumar a uma dos Cavaleiros. Ah! Eu passei em Figueira dos Cavaleiros,
bomba de gasolina espanhola para abastecer. uma desolação onde não se vê um rasto humano. E

/ CLARA
Depois de um passeio a Sevilha e à Casa Robles e de onde diabo fica Relvas Verdes? E o Roncão? Ah, diz a
abastecer o carro com a tal gasolina mais barata, decidi Wikipédia, num “futuro indeterminado a Autoestrada
entrar no glosado país por Rosal de la Frontera. Rosal do Baixo Alentejo será expandida até Beja, com FERREIRA
ALVES
foi uma povoação onde se praticava a antiga arte do portagens, cruzando as paisagens da região”.
contrabando. Fazia sentido que os espanhóis gostassem O final das obras estava previsto para 2012, leram bem,
de produtos portugueses e os portugueses de produtos 2012, mas os problemas surgiram relativos ao problema
espanhóis, até qualquer minimercado substituto da do costume. O financiamento. No final de 2011,
mercearia exibir o que dantes era contrabandeado. A ano Sócrates interrompido e início do ano
globalização e o retalho em grande superfície deram Passos Coelho, os “problemas” impediram
cabo de tudo, e não só da mercearia. A estrada em a conclusão da empreitada. Foi adiada para
Espanha é decente, bem remendada, cruzada por 2016, leram bem, 2016. Governo de António

E 3
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2568 | 14/JANEIRO/2022

THE FRICK COLLECTION, NOVA IORQUE


fisga +E Culturas Vícios
07 | Divorciados e viúvos
Portugal tem pela primeira
vez mais pessoas
divorciadas do que viúvas
10 | Déjà Vu
22 | Isabel II Isabel de
Inglaterra subiu ao trono há
70 anos. Serva de um
destino alheio, cativa de
uma condição imposta
56 | The Weeknd
Como o artista canadiano
construiu “Dawn FM”
58 | Livros
“Inventório
77 | Neve ibérica
Os melhores lugares para
desfrutar das paisagens
brancas sem atravessar
os Pirenéus
51
William Hogarth
Em “Hogarth e a
O caminho de Nicole 32 | Coligações Quando de Algumas Perdas”, 80 | Receita
Por Bruno Vieira Amaral os resultados eleitorais não de Judith Schalansky Por João Rodrigues Europa”, na Tate Britain
apontam para uma maioria, de Londres, o pintor
12 | Os cadernos e os dias é essencial negociar 62 | Cinema 81 | Restaurantes
Ninguém faz as contas “Abraça-me com Força”, Por Fortunato da Câmara
inglês é apresentado
soluções equilibradas que
quando está a ser ajudado permitam a desejada de Claudine Galea como o mais inovador
Por Gonçalo M. Tavares estabilidade governativa. 82 | Vinhos e subversivo
66 | Televisão Por João Paulo Martins
16 | Passeio Público
E soluções há muitas
“A Tragédia de Macbeth”,
do seu tempo
15 minutos com John Cena: 38 | Prisões do futuro de Joel Cohen, 83 | Recomendações
“Eu era um miúdo magrinho Como ‘matar’ o criminoso na Apple TV+ De “Boa Cama Boa Mesa”
que sofria de bullying e salvar o homem? Esta é
na escola” 68 | Música 84 | Design
uma das questões que está Por Guta Moura Guedes
presente nas experiências “Covers”, de Cat Power
18 | Planetário
As sombras do império
de humanização das cadeias 72 | Teatro & Dança 85 | Moda
Por João Pacheco
que têm surgido em vários “Obstrução”, de Dimítris Por Gabriela Pinheiro FICHA
pontos do mundo Dimitriádis, no Teatro TÉCNICA
da Politécnica, em Lisboa 86 | Tecnologia
44 | Paulina Chiziane Foi Por Hugo Séneca Diretor
João Vieira Pereira
a primeira mulher a publicar 74 | Exposições
um romance no seu país. “La Venere degli Stracci”, 87 | Automóveis Diretor-Adjunto
Por Rui Cardoso Miguel Cadete
E a primeira africana a de Michelangelo Pistoletto, mcadete@impresa.pt
ganhar o Prémio Camões, no Museu de Setúbal
em 2021. Ser tudo isto 89 | Passatempos Diretor de Arte
Por Marcos Cruz Marco Grieco
levou-a a perguntar: “Porquê
Editor
agora?” A resposta ocupa Ricardo Marques
a conversa com o Expresso rmarques@expresso.impresa.pt

Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores
CRÓNICAS João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 14 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes Luís Guerra
20 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia | 50 Fraco Consolo por Pedro Mexia
lguerra@blitz.impresa.pt
Coordenadores Gerais de Arte
76 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça | 88 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro Jaime Figueiredo (Infografia)
90 Boca do Inferno por Ricardo Araújo Pereira Mário Henriques (Desenho)

FOTOGRAFIA DA CAPA: DOROTHY WILDING/CAMERA PRESS/CONTACTO

E 4
22 + 23 janeiro
SÁBADO / DOMINGO — M/6

Festival Quartetos
de Cordas

Cuarteto Casals © igor.cat

GULBENKIAN.PT
mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas principal
concertos para piano e orquestra estágios gulbenkian para orquestra concertos de domingo ciclo piano gulbenkian música
UMA ENTRADA
22
DE PESO EM 20
-
- COLECIONÁVEL

6 LIVROS
GRÁTIS COM O EXPRESSO
PORQUE SABER CIÊNCIA É COMPREENDER
O MUNDO… NÃO PERCA, A OFERTA DE SEIS LIVROS
QUE ESTÃO NA BASE DA BIOLOGIA EVOLUTIVA.

COM PREFÁCIO DE MARIA MANUEL MOTA


NAS BANCAS PRÓXIMA SEMANA 28 JAN 4 FEV 11 FEV 18 FEV
LIVRO 1 LIVRO 2 LIVRO 3 LIVRO 4 LIVRO 5 LIVRO 6 E PÓSFACIO DE MIGUEL BASTOS ARAÚJO.
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Novos
estados
civis
EM PORTUGAL, O NÚMERO DE DIVÓRCIOS
SUPEROU O NÚMERO DE VIÚVOS PELA
PRIMEIRA VEZ EM 2021: É MAIS UM SINAL
DA “MODERNIDADE” DEMOGRÁFICA
DA SOCIEDADE PORTUGUESA
TEXTO TIAGO SOARES
INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

E 7
fisga
CASAMENTOS E DIVÓRCIOS NA UE
Número de casamentos por mil habitantes em 2019

Lituânia Casamentos 7 Divórcios 3,1


Hungria 6,7 1,8
Letónia 6,7 3,1
Roménia 6,6 1,6
Eslováquia 5,4 1,7
Dinamarca 5,3 1,8
Áustria 5,2 1,8
Rep. Checa 5,1 2,3
Alemanha 5 1,8
Estónia 5 2,1
Croácia 4,9 1,5
Polónia 4,8 1,7
Suécia 4,7 2,5
Suíça 4,5 2
Grécia 4,4 1,8
Bulgária 4,2 1,6
Irlanda 4,1 0,7
Noruega 4 1,9
Finlândia 4 2,4
Bélgica 3,9 2
Países Baixos 3,7 1,7
Espanha 3,5 1,9
França 3,5 1,9
Luxemburgo 3,5 3,1
PORTUGAL 3,2 2
Eslovénia 3,2 1,2
Itália 3,1 1,4
FONTE: EUROSTAT

“O
casamento é como uma gaiola: os pássaros do de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, e perita na
lado de fora estão desesperados por entrar, área da fecundidade e envelhecimento da população.
e os que estão lá dentro estão igualmente Esta dinâmica já é conhecida: Portugal é o terceiro país da
desesperados por sair.” A frase é de Michel de Montaigne, União Europeia (UE) com o menor número de casamentos por
filósofo e jurista francês do século XVI, cujo único casamento, mil habitantes: 3,2, apenas atrás de Eslovénia e Itália, segundo
com Françoise de la Chassaigne, durou uns respeitáveis 27 os últimos dados disponíveis a nível europeu referentes a 2019.
anos. À época em que Montaigne escreveu esta frase num Para Alina Esteves, é provável que o adiamento do casamento
dos seus ensaios, o divórcio ainda não estava previsto na lei esteja sobretudo relacionado com o “prolongamento dos
francesa: tal só aconteceu em 1792, mais de dois séculos depois. estudos, um [maior] investimento na carreira profissional,
Os Censos de 2021, a cargo do Instituto Nacional de Estatística salários baixos, e o aumento da precariedade dos laços
(INE), mostram que cada vez há menos casamentos na contratuais entre jovens trabalhadores e entidades
sociedade portuguesa: em 2011, estavam casadas 4,92 milhões empregadoras”.
de pessoas (46,6% da população total), e dez anos depois esse Ao mesmo tempo, os divórcios crescem: 828 mil pessoas,
número baixou para os 4,25 milhões (ou 41,1% da população). cerca de 8% da população, tinham este estado civil em 2021;
“O casamento tem sido um evento cada vez mais tardio na vida dez anos antes, eram 593 mil pessoas (ou 5,6%). Os números
dos portugueses e as pessoas casam cada vez menos, optando do INE mostram ainda um aumento do número de viúvos na
por novas formas de constituição de família que não incluem sociedade portuguesa, como tem sido norma nos últimos anos:
o matrimónio”, explica Alina Esteves, investigadora no Centro neste momento mais de 780 mil pessoas têm este estado civil,
quando em 2011 eram cerca de 770 mil. No entanto, há mais
cidadãos divorciados do que viúvos na sociedade portuguesa —
sendo a primeira vez que isto se verifica.
“Em 2011 tínhamos mais viúvos do que divorciados e a
população não era tão envelhecida. A sociedade portuguesa
não está mais jovem”, justifica Alina Esteves. Em 2011, o índice
de envelhecimento — a relação entre o número de idosos e a
população jovem — em Portugal era de 127,6; em 2020, já estava
fixada nos 167. Além disso, o facto de haver mais divorciados do
que viúvos em 2021 “pode ser um acumular das elevadas taxas
de divórcio nos últimos anos”, aponta a investigadora.
Numa análise por sexo, verifica-se que este grupo de pessoas
OS DIVÓRCIOS CRESCEM: 828 MIL PESSOAS, que perderam o seu cônjuge é sobretudo composto por
CERCA DE 8% DA POPULAÇÃO, TINHAM ESTE ESTADO CIVIL EM 2021; mulheres: 11,7% da população feminina em Portugal são
viúvas, enquanto que no caso dos homens esta percentagem é
DEZ ANOS ANTES, ERAM 593 MIL PESSOAS (OU 5,6%). OS VIÚVOS residual: cerca de 3%. “A principal razão de grande parte das
ERAM 780 MIL EM 2021, MAIS DEZMIL DO QUE EM 2011 pessoas viúvas serem mulheres deve-se à maior longevidade

E 8
SOLTEIROS E CASADOS EM PORTUGAL
Número de cidadãos em milhões (percentagem total da população)

Solteiros Casados
4,89 4,92
4,69
(52,8) 4,21 4,34 (49,7) 4,27 (46,6) 4,48 4,25
3,88 (44,2) (40,5) (43,3)
3,69 (49) (41,1)
(41,5) (45,2)

1960 1970 1981 2011 2021

DIVORCIADOS E VIÚVOS EM PORTUGAL


Número de cidadãos em milhares (percentagem total da população)

Viúvos Divorciados 828


770 780 (8)
(7,3) (7,5)

557 593
(5,6)
485 486 (5,7)
(5,5) (5,7)

21 43
16 (0,4)
(0,2) (0,2)
1960 1970 1981 2011 2021
1991 e 2001 — Dados não declarados
FONTE: PORDATA, INE.

das mulheres”, sinaliza Alina Esteves. Esta maior esperança de frequentemente, as pessoas terem o primeiro filho e só depois
vida deve-se, em parte, à diferença entre homens e mulheres contraírem matrimónio. “O casamento marca cada vez
no que toca a hábitos pouco saudáveis: os homens consomem menos o início da vida em casal, que tende a começar pela
mais tabaco, consomem mais drogas, consomem mais álcool. união de facto. Muitas vezes o casamento acontece — quando
Além disso, as mulheres têm por norma profissões fisicamente acontece — depois do nascimento dos filhos”, nota Vanessa
menos desgastantes que os homens. Cunha. Segundo dados do INE referentes a 2020, em 24% dos
“Enquanto a viuvez só começa a ter mais peso para os homens casamentos celebrados entre pessoas do sexo aposto já existiam
quando têm entre 90 e 94 anos (e muitos ainda são casados), filhos comuns.
para as mulheres a viuvez passa a ser mais frequente, em A tendência portuguesa de aumento dos divórcios é
comparação com estar casada, logo na faixa etária dos 70- “imparável” e também mostra que a população nacional está
79 anos”, explica Vanessa Cunha, socióloga no Instituto de mais “informal” na hora de constituir família. “É um sinal de
Ciências Sociais da Universidade da Universidade de Lisboa que as pessoas já não acreditam que a conjugalidade é uma
(ICS), com base em dados dos Censos 2011. No entanto, esta obrigação que temos de levar pela vida fora. Uma relação pode
discrepância entre homens e mulheres no que toca à viuvez ter falhado, mas as pessoas sabem que não têm de ficar presas
pode mudar nas próximas décadas — até porque a diferença a ela”, garante. As famílias recompostas (que incluem padrasto
entre os dois sexos no que toca à esperança média de vida à ou madrasta) e as famílias monoparentais também têm vindo a
nascença tem vindo a diminuir. aumentar, aponta o último Inquérito à Fecundidade, de 2019.
Todas estas mudanças aconteceram depois da entrada em
PORTUGAL INFORMAL democracia: “Os indicadores do divórcio e casamento ao
Todos estes números não são suficientes para traçar um longo dos anos mostram que a paisagem demográfica da
retrato fidedigno da sociedade portuguesa: “Os Censos [de sociedade portuguesa foi bastante transformada pelo 25 de
2021] mostram que há uma tendência de fundo na sociedade Abril”, nota Vanessa Cunha. O divórcio passou a ser possível
portuguesa que se está a consolidar: o estado civil diz cada para todos os portugueses, e o casamento religioso perdeu
vez menos acerca da situação conjugal concreta das pessoas”, importância face ao casamento civil devido à emergência de
aponta Vanessa Cunha. Exemplo: uma pessoa pode viver em novos valores sociais.
casal a vida toda e, por não se casar, é oficialmente solteira aos Agora, quase 50 anos depois, é necessário começar a fotografar
olhos das estatísticas. as pessoas — e as famílias — de outras formas. A razão é
Assim, há indicadores que têm cada vez mais relevância simples: à medida que há cada vez mais casais que não se
demográfica, tal como o número de filhos fora do casamento: casam, por exemplo, deixam de existir registos dos divórcios;
se dantes eram sobretudo referentes a mães solteiras, desde e se as pessoas não se casam, também deixam de existir
2015 que há mais nascimentos fora do casamento do que viúvos. “Mais do que olhar para o estado civil, é preciso olhar
dentro. “É um sinal de modernidade da sociedade portuguesa”, para a situação de facto dentro dos agregados familiares,
afirma a investigadora, que também é coordenadora do caso contrário os dados [oficiais] ficarão muito distorcidos no
Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP). futuro. Temos de afinar a forma de olhar a realidade e registá-
Um outro indício desta mudança estrutural é o facto de, la de outra forma”, conclui Vanessa Cunha. b

E 9
fisga
DÉJÀ VU
O FUTURO FOI ONTEM
clandestinamente) anunciados nas redes Vinda do outro lado do mundo, com um
sociais. Receber um Globo de Ouro, outrora cabelo em chamas e um nariz arrebitado,
uma distinção que anunciava triunfos Nicole teve de se afirmar contra aqueles que
futuros nos Óscares, é agora quase o mesmo a reduziam a apêndice de Tom Cruise. Se o
POR que receber uma condecoração nazi ou Óscar só chegou em 2003, pelo desempenho
BRUNO um prémio de direitos humanos da Arábia no filme “As Horas”, em que vestia a pele (e
VIEIRA Saudita (é possível que no próximo ano, se um nariz postiço) da atormentada Virginia
AMARAL ainda houver Globos, o anúncio seja feito em Woolf, os Globos foram mais lestos a cobrir
tribunal por um juiz: “Condeno o ator Fulano de ouro o talento de Nicole. Em 1996,

O caminho de Tal a receber um Globo de Ouro!”).


Políticas e mudanças culturais à parte, não
dirigida por Gus Van Sant em “Disposta a
Tudo”, arrebatou o prémio de Melhor Atriz

de Nicole deixa de ser lamentável que os vencedores


deste ano sejam obscurecidos pela nuvem
numa Comédia ou Musical. No romance
em que o filme se baseava, a protagonista,
tóxica que paira sobre a Associação: Jane Suzanne Maretto, dizia que gostava que o
Os Globos de Ouro andam pelas ruas da Campion, Kate Winslet e Jeremy Strong, seu papel no cinema fosse desempenhado
amargura. A Associação de Imprensa alguns dos premiados, mereciam uma sala por “aquela atriz que acabou de se casar com
Estrangeira de Hollywood, responsável de pé a aplaudi-los. Apesar de já ter cinco Tom Cruise”, frase que resume o estatuto de
pela atribuição dos prémios, é agora mais Globos em casa (que agora devem estar Nicole Kidman no ecossistema da indústria
indesejável do que um cão com sarna. guardados na arrecadação ao lado do cesto cinematográfica quando aterrou nos Estados
Depois de décadas em que foram apreciados da roupa), Nicole Kidman também merecia Unidos. Mas, com os anos, o reconhecimento
por serem os primos relaxados e informais melhor. O percurso da atriz australiana em artístico caiu para o lado da atriz que,
dos Óscares, os Globos de Ouro parecem Hollywood é um bom exemplo de triunfo por brilhando com luz própria, primeiro se
ser as maiores vítimas do novo zeitgeist da méritos próprios, de afirmação feminina e de libertou da sombra do marido e, mais tarde,
meca do cinema. Acusados de elitismo, emancipação da imagem de “namoradinha” do próprio. Agora que os Globos caíram
corrupção, falta de diversidade e sexismo, os encostada ao macho-alfa. em desgraça, ao menos que se lembre esse
jornalistas estrangeiros bem que se tentaram No princípio, Nicole era apenas a mulher da pequeno contributo para que Nicole Kidman
adaptar aos novos tempos, mas não está maior estrela de cinema do planeta Terra seja o que é hoje: uma das maiores estrelas
fácil. Este ano nem cerimónia houve. Os (e das outras confederações galácticas em do nosso planeta (e de outros onde possa
vencedores foram discretamente (quase que acreditam os membros da Cientologia). existir vida inteligente). b

1996

ANDREW SHAWAF/GETTY IMAGES

E 10
fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

Ninguém faz
as contas quando
está a ser ajudado
1.
Janeiro de 2022, uma história simples.
A notícia de uma tempestade na Virgínia, costa
leste dos Estados Unidos; muitas pessoas paradas
na neve, muitos automóveis de rodas estarrecidas
na auto-estrada I-95. 7 de Janeiro de 2022.
Os carros perdem velocidade, primeiro, depois
perdem o simples movimento lento. Nem sequer
são lentos os carros no meio da tempestade de vida e morte, mas entre conforto e desconforto da padaria H&S Bakery, Chuck Paterakis. Os
neve; ficam atolados; estão parados e afundam-se por norma o bicho humano não hesita. Os condutores do camião seguiram pelo meio da neve
ligeiramente. humanos não são máquinas nem ursos em a distribuir gratuitamente pão pelos carros. O pão
O carro de Casey Holihan, e do seu marido, hibernação capazes de dispensar comida durante que estava na camioneta também imobilizada. O
ficou atolado na neve e, sim, os carros no meio meses. Mesmo quietos têm estômago. chefe da padaria, Chuck Paterakis, não disse, mas
da tempestade de neve ficam transformados em poderia ter dito: o pão é bom, não é?
escritórios imprevistos para um máximo de cinco Foi um homem generoso, terá pensado Casey
pessoas sentadas. Uns habitantes do automóvel 3. Holihan e o seu marido quando receberam das
telefonam, outros tornam-se vigias: pelos Os direitos humanos dos sedentários e dos nómadas mãos dos funcionários vários pães por pessoa.
vidros tentam perceber se animais selvagens se são os mesmos. E também as necessidades são De perto, claro, o episódio é simples: uma
aproximam. Casey Holihan telefonou; o marido quase idênticas. E, naquele caso, o da tempestade de tempestade de neve e homens a distribuírem pão
vigiou o branco horizonte talvez com uma arma neve, os humanos eram puros sedentários forçados. pelos carros imobilizados ao longo de quilómetros
pronta. Fico parado porque não me posso mexer; não por — parece um mero assunto de logística e
És habitante de um automóvel quando o carro decisão própria, poderia dizer Casey Holihan, a compaixão. Porém, de cima, a distribuição de pão
feito para andar está parado (não apenas na senhora de que se fala na notícia. ao longo de uma auto-estrada talvez pareça uma
neve, também no simples trânsito de Lisboa, por Não é uma grande história, claro; não é a invasão espécie de milagre moderno.
exemplo). de um país nem a manifestação de milhares que Não vem no jornal, mas presumo que Casey
tentam dizer em voz meio-alta algumas palavras Holihan tenha ficado surpreendida com a enorme
que o ar militarizado do seu território não permite. quantidade de pão que os homens distribuíram
2. Há muitas notícias no mundo. pelos vários carros ao longo da auto-estrada. Eles
Janeiro de 2022, uma história simples. A história de A história, então, é bem simples: um camião não pararam durante horas.
Casey Holihan e do seu marido. de uma padaria também estava ali, algures, Ninguém faz as contas quando está a ser ajudado,
Gostava pelo menos de ser lento, poderia dizer imobilizado no meio da tempestade de neve. mas era impossível caber tanto pão na caixa da
um automóvel, no meio da tempestade de neve, se Casey Holihan telefonou para o número que estava camioneta.
além de motor tivesse uma certa lucidez apta para exposto nas traseiras do camião e falou com o Casey Holihan, no entanto, quando falou para os
a síntese. chefe da empresa, e este concordou logo. jornais, nem uma única vez murmurou a palavra
Mas o corpo humano, sem rodas nem motor, não Foi uma “decisão muito fácil”, disse o proprietário milagre. Neve e pão eram as duas únicas palavras
tem a mesma imobilidade paciente das máquinas. que pareciam ter ficado de um largo vocabulário e
Uma máquina parada torna-se inútil; um humano de uma experiência decisiva.
parado torna-se faminto — é bem diferente.
Mesmo parado, o humano continua vivo, e vivo O CORPO HUMANO, SEM RODAS No meio de um violento ataque informático, sem
exige o que normalmente exige: comida. acesso a conteúdos digitais, uma verdadeira proeza,
Casey Holihan e o seu marido contaram a sua NEM MOTOR, NÃO TEM A MESMA os jornalistas do Expresso conseguirem fazer e pôr a
história ao jornal. Eles ficaram, então, presos na IMOBILIDADE PACIENTE DAS MÁQUINAS. circular a edição da semana passada. Sem humanos
auto-estrada I-95. Iam visitar a família de John, UMA MÁQUINA PARADA TORNA-SE é que nada se faz. b
o marido de Casey. Atrás deles, e do seu carro,
muitos outros automóveis, com velhos e crianças INÚTIL; UM HUMANO PARADO Gonçalo M. Tavares escreve
— há quase dois dias sem comer. Não se trata de TORNA-SE FAMINTO — É BEM DIFERENTE de acordo com a antiga ortografia

E 12
fisga
O MITO LÓGICO
ninguém percebeu como é que ele conseguiu Este tema interessou-me porque a questão da
passar pela tira de terreno mais bem guardado do Liberdade foi sempre um dos conceitos centrais
mundo com minas, câmaras e metralhadoras e da Filosofia ou da Ciência Política. E se exercer o
tudo o que há de topo de gama para impedir gente livre-arbítrio é ficar preso? Este desertor norte-
POR de passar entre dois países em estado de guerra. coreano vagueou durante 14 meses pelas ruas
LUÍS Eis o detalhe que torna a coisa interessante: o de Seul. Revirou lixo. Conseguiu finalmente um
PEDRO homem passou do Sul para o Norte. Da democracia emprego de lavar janelas à noite em edifícios
NUNES néon sorridente K-Pop de Seul para a faminta e vazios. Não tinha formação académica nem
sanguinária ditadura tirania de Kim Jong-un, em skills para fazer muito mais naquela sociedade

A prisão
Pyongyang. Falta aqui outro fator que dá ainda que tinha dificuldade em compreender. Aliás,
mais cor à história. O homem já tinha fugido do o coreano que se fala no Sul já difere muito do
Norte há 14 meses. Era assim um “duplo desertor”. do Norte, dada a quantidade de termos ingleses
E não, não era um “espião” que regressava a casa. incorporados pela tecnologia ou estilos de vida.
Isso tinha ficado mais que estabelecido pelas Estava só, não tinha amigos e era vítima de
UM NORTE-COREANO FOGE investigações que as autoridades do Sul fazem aos discriminação. Os norte-coreanos são muito
PARA O SUL E DEPOIS FOGE DE que fogem do Norte. O homem dizia-se ginasta e discriminados no Sul (na única vez que visitei a
NOVO PARA O NORTE. A LIBERDADE era uma pessoa de baixa condição “sócio cultural” Coreia do Sul, e atravessei o país, achei-o entre
— e “incapaz de grandes abstrações intelectuais”. o racista e o agressivo para os estrangeiros. Táxis
É UM LUXO OU UMA LINGUAGEM Quando chega alguém que escapou do regime de não paravam. Restaurantes não nos serviam. Pode
QUE NEM TODOS FALAM? Kim Jong-un (desde os anos 90 uns meros 30 mil ter mudado).
em 25 milhões de habitantes e sempre via China), Uma sondagem entre desertores confirmou
Lembro-me de um velhote que estava lá pelo passa por campos de adaptação durante uns três que quase 20% desejavam voltar para o Norte,
Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz e meses para aprenderem um pouco sobre que os mesmo estando conscientes de que podiam ser
que em nada se distinguia dos demais reclusos. espera no maravilhoso mundo lá fora, o paraíso fuzilados à chegada — isto para não puxar muito
Ou melhor. Em tudo se distinguia dos demais para onde fugiram, e depois de um curso rápido de pela imaginação fértil de Kim Jong-un. E 14% dos
reclusos: era um homem livre, mas comportava- modernidade são atirados para a “liberdade”, uma desertores que morrem por ano é por suicídio. O
se como um preso. A sua pena terminara, a dívida das sociedades mais competitivas e impiedosas que só prova que o paraíso pode ser um inferno
que tinha para com a sociedade estava saldada. do mundo. Ao serem libertados como animais na para quem é abandonado e marginalizado e
Podia sair. Devia ter sido atirado porta fora. savana dão um salto temporal. Da idade média que o inferno com amigos e família se torna
Mas havia algo lá dentro não tinha lá fora: uma impiedosa e pária do ditador do Norte para uma nostálgico e apetecível mesmo sob o risco de
vida organizada, amigos, trabalho, cama, teto das mais individualistas e insensíveis sociedades levar um tiro na testa. O que explica muito de
e comida. Estrutura. Pediu para ficar. O diretor capitalistas do mundo. É uma viagem no tempo. certos saudosismos de regimes execráveis. E que
acedeu. Sem família ou laços, aquele desgraçado O choque não é fácil. Como se tivessem estado 60 o livre-arbítrio, a pedra basilar da essência da
iria ser atirado para a rua e tornar-se mais anos numa prisão de segurança máxima, sem TV Liberdade, também serve para nos manter presos.
um “sem-abrigo” a ser “reinstitucionalizado” ou ligação para o exterior e largados para o mundo Por vontade própria. b
quando houvesse vaga. Hoje, deduzo, o sistema, da internet e dos bitcoins. lpnunesxxx@gmail.com
os computadores, as regras sem exceções não o
permitiriam. Não sei. Deduzo que haja quem se
ponha a imaginar que para querer ficar é porque
a prisão tinha condições de estância de termas
de luxo. Disparate. Uma prisão tem um cheiro a
desespero e raiva, uma escuridão húmida e gasta,
é um local onde tendencialmente estão homens
com alguns problemas, digamos. O diretor
preferia ter em sua casa, no exterior da prisão,
a trabalhar, pessoas julgadas por homicídios
de honra. Esses, sim, os mais fiáveis. Estavam
na prisão exatamente por excesso de retidão. E
adaptavam-se bem a regras e eram incapazes
de as quebrar. Afinal, era a honra que os levara
até ali. Mas estamos a distrair-nos. O que me
interessava aqui era o velhote (não sei precisar de
memória se haveria mais, é possível) que tinha
ficado na prisão por vontade própria. E sim,
estando preso era livre. Até porque era a decisão
dele que o tinha mantido dentro dos muros do
estabelecimento prisional.
ED JONES/AFP VIA GETTY IMAGES

O livre-arbítrio é tramado. Estamos fartinhos


de ver as consequências de o exercer na
nossa vida. Tomar decisões é um passo para o
arrependimento. Há poucos dias um homem de 29
anos decidiu atravessar a DMZ entre as Coreias, a
famosa fronteira desmilitarizada, a mais perigosa
zona do mundo e o mais que já vimos em filmes, e
documentários sobre como aquilo é intransponível
desde os anos 50 do século passado. Ainda

E 14
fisga
PASSEIO PÚBLICO
15 MINUTOS COM

JOHN CENA
“EU ERA UM MIÚDO MAGRINHO
QUE SOFRIA DE ‘BULLYING’”
A COMÉDIA E A AÇÃO SÃO O TERRENO PREDILETO A sério?
Sim, mas não há problema com isso. Não fui a primeira escolha em tantas
DESTA ESTRELA DO WRESTLING QUE ESTÁ A TOMAR das oportunidades maravilhosas que fui tendo ao longo da vida. Acho
HOLLYWOOD. NA SÉRIE “PEACEMAKER” DA HBO MAX, que isso não é o mais importante. O que importa é saber que vais ter essa
QUE TEVE ONTEM ESTREIA INTERNACIONAL, REGRESSA oportunidade. Mal conheci o James Gunn, percebi que queria trabalhar com
ele.
AO PAPEL QUE ESTREOU EM “O ESQUADRÃO SUICIDA”
Porquê?
Quando cheguei ao escritório dele, vi o storyboard do filme, frame a frame,
ENTREVISTA MARKUS ALMEIDA colado nas paredes. Não havia um pedaço de tijolo à mostra. Aí, quando me
O último ano foi preenchido para John Cena. Entrou em “Velozes & Furiosos mostrou as cenas em que eu entraria, pensei: “Se este tipo está tão bem
9”, ao lado de Vin Diesel e de The Rock — outra lenda do wrestling que preparado e é assim delicado, então isto é algo que as pessoas quererão ver.”
soube transitar com sucesso para o cinema —, arranjou tempo para matar Foi assim que o conheci profissionalmente, mas eu já era fã. Adoro que em
saudades do “WWE Monday Night RAW” e do “WWF SmackDown!” e “Os Guardiões da Galáxia” tenha transformado personagens da Marvel, que
apadrinhou a estreia internacional da portuguesa Daniela Melchior em eram relativamente obscuras, em figuras superpopulares em todo o mundo.
“O Esquadrão Suicida”. Agora repete o papel de Peacemaker numa série Nessa reunião falou-me do filme, explicou-me o seu método de trabalho e
em nome próprio na HBO Max (ainda sem data de estreia em Portugal). onde iríamos filmar. A minha parte foi muito simples, foi só dizer: “Sim, aceito.”
No outro lado do Zoom, o ator de 43 anos aparece de fato e gravata,
sentado num quarto de hotel em Los Angeles. John Cena vive na Florida Apadrinhou a estreia internacional de Daniela Melchior em “O Esquadrão
com a sua mulher, e está na Califórnia apenas para filmar as últimas cenas Suicida”. Que impressões guarda da portuguesa?
da nova temporada do game-show “Wipeout”, da TBS, e para divulgar A Daniela foi fantástica. Não é fácil estar na posição dela num filme desta
“Peacemaker”. Não é um spin-off de “O Esquadrão Suicida”, antes uma magnitude. Ela foi genuína, honesta e vulnerável, mas também muito forte.
sequela que pega no exato ponto onde o filme de James Gunn nos deixara. Penso que roubou o filme com a sua performance. Ela está destinada a
Em ponto de rebuçado, no que a bom entretenimento diz respeito. grandes coisas. Portugal ainda não tem uma estrela internacional? Espera
um pouco.
De todas as personagens de “O Esquadrão Suicida”, surpreendeu que fosse o
Peacemaker a escolhida para ter uma série de televisão. No cinema, tem-se dividido entre comédias e blockbusters de ação. Como
Houve tantos fãs chocados com as ações do Peacemaker no filme, e que escolhe os papéis?
ficaram até de pé atrás em relação à sua personalidade, que o sentimento Eu gosto de todo o tipo de projetos criativos e de formas de contar histórias.
geral quando se soube que isto ia acontecer foi: “Porque é que ele vai ter Não me quero limitar a fazer apenas ação, comédia ou drama. Quando leio
uma série se parece ser tão idiota?” Penso que, se revirmos o filme com os um guião — e muitas vezes faço-o sem saber com que fim — apenas me
olhos postos nele, percebemos que até tem momentos em que é capaz preocupa saber se estou interessado na história e no papel. Depois parto daí.
de questionar os seus valores e o seu processo de tomada de decisões. A
julgar pelas reações aos trailers e clipes que foram sendo divulgados, as Não tem preferência entre géneros?
pessoas parecem estar a começar a dar a volta. Penso que essa viagem do Não, de todo. Se eu começasse a desenvolver um viés, isso poderia
ponto de vista do público é muito importante, e claro que é fantástico dar impedir-me de querer ler certos guiões. Não tenho preferência
continuidade à personagem numa série de televisão porque nos dá mais nenhuma. Começo na página 1 de um guião e se só chegar à 10 não me
tempo para contar a sua história. Ainda não acredito que o James Gunn interessa. Se só chegar à 50, saio fora. Se ler tudo de ponta a ponta,
tenha escolhido o Peacemaker para a série — e não me refiro às suas ações, então alinho. Comecei a usar este processo em “Descompensada”
mas sim ao facto de eu levar um tiro no filme. [2015, de Judd Apatow] e ainda não me desiludiu.

Não se fica indiferente à premissa de um super-herói que deseja a paz,


independentemente do número de homens, mulheres e crianças que tiver de
matar para a obter. É irresistível.
Ele quer paz a todo o custo. É um paradoxo e uma contradição tão grande, e
uma forma mesmo porreira e confusa de começar a série.

Como conseguiu o papel no filme?


Sei que não fui a primeira escolha de James Gunn para o papel, outros
atores recusaram-no.
“SEI QUE NÃO FUI APASSEIO PÚBLICO
PRIMEIRA ESCOLHA
DE JAMES GUNN PARA O PAPEL, OUTROS ATORES
RECUSARAM-NO. MAS NÃO HÁ PROBLEMA
COM ISSO. NÃO É O MAIS IMPORTANTE”

O que surgiu primeiro, o seu interesse pela musculação ou pelo wrestling?


Desde os 6 ou 7 anos que me interesso pelo wrestling e as suas histórias
de super-heróis da vida real. Foi nos anos 80, na época da explosão do
wrestling profissional e da Hulkmania. E o meu pai adorava. Ele não gostava
muito de desporto nem tinha uma equipa preferida, mas via wrestling.

Começou a fazer musculação porque queria entrar no wrestling?


Apaixonei-me primeiro pelo wrestling. A musculação surgiu por
necessidade porque eu aos 10, 11 anos era um miúdo magrinho que sofria
de bullying na escola. Por isso pedi ao meu pai um banco de musculação,
para começar a levantar pesos. Foi a minha prenda de Natal. Tinha 12 anos
quando fiz o meu primeiro treino e não parei desde então. É incrível como
mantive estas duas paixões durante tanto tempo.

Supondo que não planeou tornar-se uma estrela. O que é que pensava fazer
com a sua vida quando era adolescente?
Acho importante dizer que eu não fazia ideia. Eu ainda estava a tentar saber
quem eu era, o que é que me apaixonava, e se há uma mensagem que eu
gostava de dar é que não há mal em não se saber. Sempre segui em frente.
Acabei o secundário. Fui para a faculdade. Mudei de curso a meio. Tenho
uma licenciatura em Direito que nunca usei. Nunca deixei de ter curiosidade
ou de tentar melhorar, mas quando era adolescente não fazia ideia. Mesmo
na faculdade, gostava de jogar futebol, mas sabia que não faria disso
carreira. O importante é nunca desistir de tentar.

Também tentou música, além de wrestling e cinema. O álbum que lançou em


2005, “You Can’t See Me”, vendeu mais de um milhão de cópias. Passados 16
anos, continua a ser o seu único álbum. Porquê?
Pareceu-me ser a coisa certa a fazer naquela altura. Foi uma oportunidade
de definir ainda mais a minha identidade na WWE [John Cena assumira
então a persona de um rapper] e a chave para conseguir que o público
se interesse por ti é acreditarem que és genuíno. Adoro hip-hop, mas
experimentar fazer música aconteceu porque a canção que a WWE me
deu na altura não era boa. Era tão má, aliás, que eu pensei que conseguiria
fazer melhor. Calhou ter um primo que era MC e que conhecia produtores
[Tha Trademarc]. Num fim de semana escrevemos ‘Basic Thuganomics’,
que passou a ser a minha música de wrestling. Fizemos mais canções,
melhorámos com a prática e lançámos esse álbum. O meu primo continuou
a produzir música, mas eu fui noutro sentido. Quando regresso a esta
personagem como convidado no “WrestleMania”, é como uma piscadela de
olho nostálgica. Mas é estranho pensar como tenho esta dinâmica de definir
com diferentes identidades certos períodos da minha carreira. É muito bom
poder olhar para trás e refletir sobre isso. Para concluir: não me desinteressei
pela música, mas em vez de escrever rimas estou a aprender a tocar piano.

Nos últimos três anos entrou ainda em grandes produções, como “Velozes
& Furiosos 9” e “Bumblebee”, e casou-se. Como faz para equilibrar o lado
pessoal com uma vida profissional preenchida?
Ser honesto e saber comunicar é fundamental. Estabelecer limites vem logo
a seguir. É importante saber ouvir. Não apenas ser honesto com as pessoas
que amas e dizer o que sentes, permitir que outros sejam escutados. Isso e
VERA ANDERSON /GETTY IMAGES

aprender a gerir expectativas.

O que é que o futuro reserva para a personagem Peacemaker?


Espero que todos se entretenham com a série. Recordo que supostamente
morri no filme e, contudo, aqui estou [risos]. Se houver um futuro para o
Peacemaker, quero descobrir qual é. Adorei trabalhar com o James Gunn e
adoraria fazer a série de forma contínua, mas não posso criar expectativas
em relação a isso. b
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

SOMBRAS

Lourdes Castro
para sempre
LUÍS CARISSO

A vida de Lourdes Castro terminou há dias, aos 91 anos. A obra


fica, até porque faz parte de algumas das mais importantes
coleções portuguesas e internacionais. Quem quiser conhecer
ou rever no imediato a obra da artista madeirense pode
começar pela Gulbenkian, em Lisboa. A artista foi bolseira da LIVRO
Fundação Gulbenkian e sempre teve uma relação próxima com
a instituição, que é proprietária de várias peças. Incluindo, por
exemplo, um autorretrato de 1954 e a “Sombra Projetada de
René Bertholo” em plexiglas, de 1965.
As sombras do império
Também em Lisboa, mas no Museu Nacional do Azulejo, Lourdes
Castro é uma das artistas incluídas na exposição “Territórios
Desconhecidos. A Criatividade das Mulheres na Cerâmica Não há sombras nem ondas nesta Telma Tvon. Já se quisermos falar
Moderna e Contemporânea Portuguesa (1950-2020)”. praia fotografada a preto e branco. sobre os autores de imagens, há um
Em Almada, desde o ano passado há em permanência uma peça Parece estar tudo bem, e a lancha vazio de nomes e de notas biográficas.
da autora, produzida em azulejo pela Galeria Ratton. Chama-se “Tobé” espreita do lado direito da Algumas fotografias foram feitas em
“Vaso Verde”, é de 1989 e está no jardim botânico Chão das imagem publicada na revista “Flama” contextos desconhecidos, sejam as
Artes, junto ao centro de arte contemporânea Casa da Cerca. em 1974. Dentro de água, uma dúzia que vieram da Feira da Ladra, de
No Porto, e até 6 de março, lá está Lourdes Castro na Fundação de outros pequenos barcos a motor arquivos familiares ou de instituições
de Serralves, na exposição “Modus Operandi — Obras da faz companhia à lancha “Tobé”. portuguesas ou internacionais como
Coleção de Serralves”. Todos estes barcos são apropriados a ONU. Algumas imagens servem
E a partir de 25 de março e até 4 de setembro, Castro é uma das ao divertimento familiar, alguns têm propósitos de propaganda, nuns
40 artistas portuguesas representadas em França na exposição pessoas a bordo. Quase ouvimos casos da potência colonial e noutros
“Tout ce que je veux — artistes portugaises de 1900 à 2020”, as vozes das crianças que brincam de movimentos independentistas.
com curadoria de Bruno Marchand e Helena de Freitas. Esta na água, com câmaras de ar de Outras são fotografias tiradas por
exposição acontecerá no Centre de Création Contemporaine automóveis. Os adultos mostram um cientistas. Outras ainda terão viajado
Olivier Debré, em Tours, estando integrada na Temporada ar descansado. Um homem branco até Portugal com a correspondência de
Cruzada Portugal-França 2022. entra agora na água do mar, ao mesmo guerra, sendo a prova de vida possível
Poderíamos continuar por aí fora a enumerar locais, incluindo o tempo que vai enchendo o que talvez enviada a partir de África. Diga-se
Nouveau Musée National de Monaco, mas já fica uma ideia da seja uma boia. Ao fundo há palmeiras de passagem que este é um livro que
omnipresença de Lourdes Castro. Entre os livros, um bom ponto ao vento, o que indica que a lancha merece todos os adjetivos positivos.
de partida pode ser, por exemplo, “Grand Herbier d’Ombres”. “Tobé” não estará a chapinhar numa E é também um livro doloroso, seja
Para sempre. das baías da chamada Metrópole. para quem está ligado ao lado da
Essas palmeiras marcam o horizonte opressão como para quem faz parte
ultramarino desta praia, na ilha do dos oprimidos.
Mussulo, em Luanda. Mas nada nesta Em perto de 150 páginas, são muitas
fotografia dá a ideia da guerra que as fotografias que nos fazem mesmo
durava há 13 anos. A fotografia tem pensar. Os textos ajudam. Mas se
autor desconhecido e faz parte do ficássemos apenas pela leitura das
livro “Visões do Império”, coordenado legendas já não iríamos mal servidos.
por Joana Pontes e Miguel Bandeira Há, por exemplo, uma fotografia de
Jerónimo e publicado pela Tinta crianças muito pequenas a trabalhar
da China no verão passado. Os numa roça, no inverno de 1908/1909.
JOÃO PACHECO

autores do texto são 13, incluindo Foi tirada por William A. Cadbury
vários investigadores e também, por ou Joseph Burtt, em São Tomé ou
exemplo, o escritor moçambicano Mia em Angola. Há na mesma página
Couto e a rapper e escritora portuguesa outra fotografia que os dois autores

E 18
FLASHES

LONDRES

WOLFGANG VOLZ
A mulher à janela é o tema da ex-
posição “Reframed: The Woman in
the Window”. Estará de 4 de maio
a 4 de setembro na Dulwich Picture
Gallery, em Londres. E conta com
mais de 40 obras de artistas como
Cindy Sherman, David Hockney, URUGUAI
Louise Bourgeois, Pablo Picasso (na
foto) e Rembrandt. Até 18 de abril,
a Dulwich exibe uma pintura de
Christo e Jeanne-Claude
Claude Monet, a fazer companhia
ao trabalho da pintora norte-ame-
no MACA
ricana Helen Frankenthaler.
tiraram na mesma ocasião, mas a
quatro adultos. Segundo a legenda A vida é feita de pequenos nadas, retrospetiva “Christo y Jeanne-Claude
da época, datilografada em inglês, como canta Sérgio Godinho. Lourdes en Uruguay”, dedicada ao trabalho da
os quatro homens retratados são Castro morreu a 8 de janeiro. E no dupla de artistas Christo (1935-2020)
escravos angolanos em São Tomé. mesmo dia foi inaugurado um museu e Jeanne-Claude (1935-2009),
Três olham-nos de frente, o outro de arte contemporânea em Punta que eram amigos de Lourdes Castro.
desvia o olhar para baixo. Numa del Este, no Uruguai. Chama-se Christo ficou conhecido mundialmente
fotografia mais recente, o ministro Museo de Arte Contemporáneo por ter embrulhado monumentos como
das Colónias da altura caminha em Atchugarry (MACA), partiu da vontade o Reichstag, em Berlim. E foi um dos
apoteose sobre panos estendidos do escultor Pablo Atchugarry e foi fundadores da revista “KWY” em Paris,
no chão, vestido de branco, com desenhado pelo arquiteto Carlos Ott. com Lourdes Castro. A exposição dura
gravata clara e acompanhado por MÚSICA Mas isso interessa-nos? Sim, porque até 30 de abril, agora é só ir até ao
um séquito de homens de roupa bem a exposição inaugural do MACA é a Uruguai.
O cantautor catalão Joan Manuel
apresentada. Na cabeça, quase todo
Serrat quer despedir-se dos pal-
o grupo transporta chapéus coloniais cos, mas parece não ter pressa.
brancos. Dos dois lados do caminho, A digressão chama-se “El Vicio
homens negros batem palmas. São os de Cantar (1965-2022)” e vai
chamados nativos, estão descalços e começar a 26 de abril no Beacon PHOTO
em tronco nu. Ordeiros. Theatre, em Nova Iorque. Deverá MATON
Faz parte do livro esta fotografia de terminar a 23 de dezembro, no
Luís Carisso. Foi tirada em Angola Palau Sant Jordi, em Barcelona.
em julho de 1927, no contexto de Pelo meio, Serrat percorrerá o con-
uma missão botânica. A imagem tinente americano e várias cidades
pertence ao Arquivo de Botânica da espanholas.
Universidade de Coimbra e mostra
uma aldeia para trabalhadores nativos. ATENAS
O carro e as únicas pessoas visíveis São apenas os pés de uma deusa.
ajudam a dar escala ao aldeamento, Talvez Peitho, talvez Artemis. O
o contexto tem a ver com os esforços problema é que fazem parte do
de reordenamento territorial e de friso do Pártenon e vão viajar da
controlo das populações rurais. Era Sicília até Atenas, através de um
preciso civilizar e enquadrar os empréstimo de longa duração
nativos, numa gestão de pessoas e entre museus. O fragmento de
SHARON LOCKHART

de territórios com régua e esquadro escultura pertence à coleção do


Museo Archeologico Regionale
que não foi uma originalidade do
Antonio Salinas, em Palermo. E vai
império português, tendo acontecido
agora para o Museu da Acrópole, na
em muitos momentos e em vários capital grega. É mais uma acha para
continentes. Faltavam menos de cinco a fogueira, aumentando a pressão
décadas para a lancha “Tobé” ser sobre Londres e sobre o British Esta fotografia de Sharon Lockhart fará parte de “Our Selves: Photographs by
fotografada perto de Luanda, mas esta Museum, no conflito internacional Women Artists from Helen Kornblum”. A exposição inclui trabalhos de 90 ar-
parece uma fotografia trazida de outro sobre os chamados mármores do tistas mulheres dos últimos 100 anos, tem tudo a ver com feminismo e estará
planeta. b Pártenon. de 16 de abril a 2 de outubro no MoMa, em Nova Iorque.

E 19
C A RTA S A B E RTA S

COMO PODE UM BOM SER HUMANO


IR À MISSA E RESPONDER AO PADRE
SENDO CATÓLICO MAS NÃO CRENTE?

P
MUITA GENTE INCULTA TENTOU GOZAR COM UM POLÍTICO — QUE NEM
QUE ME ENFORQUEM DIREI SER RUI RIO — POR ELE TER DITO ALGO PROFUNDO

ode um ser humano, homem, mulher, ser crentes sem, na verdade, o serem. No “Ordinário da Missa”
transgénico ou legume, ser católico — não é o citado, mas o nome do documento — temos o que diz
sem ser crente? A resposta da teologia o padre e o que respondem os crentes. Por exemplo:
é apenas uma: pode. E, em certos casos, Padre — Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
deve. Porque ser católico trata de uma Crentes — Ámen.
pertença social, ao passo que ser crente Não crentes — Não deviam dizer Novo Banco? O Espírito Santo
apenas diz respeito a uma pertença já acabou…
espiritual; ou seja, é como o bacalhau: Mais à frente, o padre proclama:
cozido, com batatas e ovo cozido, — O Senhor esteja convosco!
além de algumas couves, é um repasto E os crentes:
social; quando começa a meter forno, — Ele está no meio de nós!
natas e coisas mais etéreas, já não se E o não crente:
trata de uma refeição social mas sim de um bacalhau espiritual. — Os que estão no meio de nós é que nos lixam. Prefiro a
Ora, para se ser católico sem se ser crente, uma de duas oposição frontal do ‘Chicão’ ou do Costa do que a rasteira
condições terá de existir. A primeira, e mais comum, é tentar dissimulada dos que estão no meio de nós e se dizem
namorar com uma moçoila cujos pais tiranos a obrigam a ir à militantes da mesma causa.
missa, a comungar e a saber aquilo tudo de cor. Se assim for, Ou, ainda, quando o sacerdote diz:
o pretendente faz aquilo que, depois de casado, continuará — Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele
a fazer: o santo sacrifício da porta da igreja ou da saída da amados…
missa, para não se comprometer com ninguém, ou, neste Os crentes recolhem-se para orar, o não crente pensa se o
caso concreto, ficar bem com Deus e com o Diabo. A segunda lóbi LGBTIQ+ não chegou também à Igreja. Homens por
condição é alguém achar que o catolicismo, sim senhor, apesar ele amados? Hum… mas depois, recordando-se que é um
de umas fogueiras e de umas inquisições passadas, é hoje modernaço e, além do mais, também não é crente, começa a
em dia um cimento social importante na comunidade, aliás pensar noutra coisa sem interesse.
formada por milhões de eleitores, que fazem o santo sacrifício E assim é a vida de um católico não crente. Os que gozaram
da porta do PS ou do PSD, mas a quem falta aquele dom com a frase são pessoas que: a) não percebem de teologia; b)
essencial ao católico crente. Esse dom chama-se fé. E neste são hipócritas porque dizem que não são católicos, mas são,
país poucos o têm. alguns até mesmo inquisitoriais; c) não se compadecem com
Nesse caso, o nosso católico desprovido de fé é uma espécie aqueles que, ao contrário dos que têm fé, sofrem numa missa.
de Pacheco Pereira no PSD ou de Sérgio Sousa Pinto no PS Por todos, com todos e para todos, uma palavra: oremos,
(para não falar do arcediago Louçã). Eles cresceram naquele Senhor. b
meio, mas a fé de que a sua boa-vontade ou o seu trabalho
pudesse influenciar positivamente a Igreja ou o partido faliu.
Mantêm-se sociais-democratas, socialistas ou católicos, mas
já não acreditam, nem um pouco, no corpus que é a essência
da doutrina. Nem no corpus em si nem no corpus Christi. Ou
seja, descreram da redenção e da mudança de substância das
coisas, que deixariam de ser o que são para passar a ser o que
simbolizam.
Estou a ser muito sério, mas é assim que a alta escola de
Teologia de Tübingen, Baden-Württemberg, ou a escola de
Regensburg (ou Ratisbona, onde o emérito Papa Bento XVI / COMENDADOR
lecionou), banhada pelo Danúbio, no estado da Baviera,
ensinam. O mesmo se passa em Roma, mas aí não são tão
MARQUES
organizados. DE CORREIA
Nesse caso, o católico não crente como… bem, eu já revelei
o seu nome, mas não voltarei a citar Rui Rio… o católico não
crente, quando vai à missa e não fica à porta, tem uma vida
mais difícil do que os crentes, ou os dissimulados, que fingem

E 20
AOS DOMINGOS
À NOITE

VEJA MAIS
SOLIDÃO A rainha Isabel II no
funeral do marido, na capela de
São Jorge, no castelo de Windsor.
Vestida de preto, máscara
sanitária incluída, inteiramente
só. Encontra-se em abandono
completo, “alone with God”,
expressão associada a Thomas
More, nas vésperas de ser
executado na Torre de Londres
JONATHAN BRADY/WPA POOL/GETTY IMAGES

E 22
Isabel
Uma rainha
de corpo e alma
Isabel de Inglaterra subiu ao trono há 70 anos. Serva
de um destino alheio, cativa de uma condição imposta

TEXTO ANTÓNIO ARAÚJO


HISTORIADOR

E 23
CULTURE CLUB/GETTY IMAGES

MONARCA As princesas
Margarida e Isabel,
as irmãs reais, em crianças,
na década de 30

E 24
A cada coisa é permitido o justo sítio, enquanto dure o legado dos seus anos.
ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE, “POEMAS”

N
um célebre ensaio de 1957, “The King’s Two Bodi- 277 milhões de espectadores em todo o mundo. As
es”, o medievalista Ernst Kantorowicz analisou a câmaras da BBC, porém, seriam desligadas por bre-
doutrina dos dois corpos do rei, nos termos da qual ves instantes no momento mais decisivo e solene,
os monarcas têm um corpo físico, sujeito aos aci- quando a rainha, despojada do manto e das jóias, se
dentes da natureza e às contingências da fortuna, sentou na cadeira de Eduardo I, feita no século XIII,
e um corpo político, intangível e eterno, alheio às e, envergando a colobium sindonis, uma simples tú-
vicissitudes da vida terrena, em que a idade adulta nica de linho, alvíssima, símbolo de humildade, foi
sucede à infância, seguindo-se o envelhecimento e ungida com os sagrados óleos pelo arcebispo de
a morte. Trata-se de uma emanação da teologia do Cantuária, nas mãos, no peito e na cabeça, assim
Corpo de Cristo e, por isso, não é ao acaso que, nos se assinalando a natureza espiritual do seu manda-
mosaicos bizantinos da abside da Basílica de San to, como soberana do Reino Unido e chefe da Igre-
Vitale, em Ravena, consagrada no ano 547, vemos ja de Inglaterra. Entre os correspondentes estran-
Justiniano e Teodora com um halo a rodear-lhes as geiros, uma jovem repórter americana, Jacqueline
imperiais cabeças, como se fossem santos ou re- Bouvier, a qual por certo não adivinharia que, com
presentantes de Deus, vigários do transcendente. o apelido Kennedy, seria coroada em breve como
O corpo de Isabel Alexandra Maria, princesa de rainha republicana.
Iorque, nasceu de cesariana no nº 17 de Bruton Stre- Desde então, os dois corpos de Isabel Alexan-
et, em Mayfair, Londres, numa casa que, sintomati- dra, o físico e o político, têm sido chamados ao
camente, foi destruída na Segunda Guerra e, tam- exercício de três papéis — o real, o conjugal, o ma-
bém sintomaticamente, é hoje repartida entre um ternal —, sendo neste último que o seu desempe-
restaurante chinês e um stand de automóveis. Fará, nho se veio a revelar mais problemático e infeliz,
portanto, 96 anos de existência terrena no próximo em larga medida porque afectado pelo exercício do
21 de Abril, mas, devido à sua dualidade corpórea, primeiro. As desventuras que sofreu com a descen-
os respectivos aniversários biológico e oficial não dência não terão sido muito diferentes das padeci-
coincidem, já que este último, como o de todos os das por vários outros líderes do mundo, a quem o
monarcas britânicos desde Jorge II, é assinalado em cumprimento dos deveres públicos rouba disponi-
finais de Maio ou princípios de Junho, em datas va- bilidade e tempo para zelarem pela formação dos
riáveis nas diferentes paragens da Commonwealth filhos. No caso das monarquias, porém, a educação
(e como mudou o mundo: eram nove quando su- dos príncipes não é uma questão doméstica, mas
biu ao trono, são agora 54). Ao contrário do pai e assunto de Estado, pois que um dia virão a chefiá-
da irmã, a rainha nunca fumou e bebe com muito -lo, o que, no caso de Carlos (ou, se preferirmos,
mais moderação do que a mãe, cuja morte aos 101 Sua Alteza Real, príncipe Carlos Filipe Artur Jor-
anos talvez indicie que, no plano sanitário, se en- ge, príncipe de Gales, duque de Edimburgo, duque
contra favorecida pela genética materna (melhor da Cornualha, duque de Rothesay, donde de Me-
do que a paterna: Jorge VI morreu com 56 anos), o rioneth, donde de Carrick, donde de Chester, ba-
que não impede que desde há muito haja especula- rão Greenwich, barão de Renfrew, lorde das Ilhas,
ções várias em torno do seu estado de saúde, sobre príncipe e grande-intendente da Escócia, cavaleiro
o qual o Palácio de Buckingham escassas informa- da Mais Nobre Ordem da Jarreteira, cavaleiro-extra
ções fornece, sabendo-se apenas de uma operação da Mais Antiga e Mais Nobre Ordem do Cardo-Sel-
às cataratas em 2018, de duas intervenções cirúr- vagem, grão-mestre e primeiro grã-cruz da Mais
gicas nas cartilagens dos joelhos, em 2003, de uma Honorável Ordem do Banho, membro da Ordem do
vaga gastroenterite, dez anos depois, e, mais recen- Mérito, cavaleiro da Ordem da Austrália, compa-
temente, de um internamento hospitalar por uma nheiro da Ordem de Serviço da Rainha, membro do
noite, devido a problemas nas lombares. O resto — Mais Honorável Conselho Privado de Sua Majestade
a bengala na abadia de Westminster, no passado e ajudante-de-campo de Sua Majestade), hoje com
Outubro, as constipações e as gripes, a moderação 73 anos, parece uma hipótese remota, mas não im-
da agenda, o cancelamento de alguns compromis- provável. Nos balanços do reinado de Isabel, as fa-
sos públicos à conta da pandemia e do frio — são lhas no afecto e na formação do primogénito são o
percalços mais do que naturais e expectáveis num ponto mais controverso, aquele em que até os seus
corpo quase centenário, mais idoso do que 90% dos apoiantes hesitam em saudá-la: ainda hoje se ques-
seus súbditos, dos quais cerca de 80% já nasceram tiona, por exemplo, a opção de interná-lo em Gor-
tendo Isabel por monarca. donstoun, na distante Escócia (ao invés de Eton,
Começou a reinar há 70 anos, em 6 de Feverei- a dois passos de Windsor), num colégio fundado
ro de 1952, ainda que, devido ao luto pela morte do por um alemão, famoso pelo seu método de ensi-
pai, só haja sido coroada em 2 de Junho de 1953, no, áspero e viril, baseado nos desportos ao ar li-
numa cerimónia para mais de oito mil convidados vre. Filipe frequentara-o, adorando a experiência,
com três horas de duração, que custou mais de 43 Carlos odiá-la-ia, descrevendo-a como “colditz
milhões de libras, a preços de 2019, e que, por in- in quilts”, numa alusão ao castelo nazi, e sempre
sistência do marido (o qual venceu a oposição de foi emocionalmente mais próximo do seu tio-avô,
Churchill, então primeiro-ministro), foi transmi- Louis Mountbatten, antigo vice-rei da Índia viti-
tida pela televisão, com uma audiência estimada de mado em 1979 por uma bomba do IRA, e sobretudo

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1

da sua avó materna, Isabel Bowes-Lyon, que teve Correios acabaria por ser substituído, tendo o novo
papel preponderante na escolha da jovem virgem, titular da pasta encomendado um novo retrato fila-
13 anos mais nova do que ele, com quem o prínci- télico, com base num relevo da autoria do escultor
pe de Gales se casou em Julho de 1981, e da qual se Arnold Machin, que se converteria na obra de arte
separaria em 1992, ao fim de um acidentado ma- mais representada da História e numa peça essencial
trimónio de 11 anos que talvez possa ser resumido da iconografia isabelina. O episódio é bem revelador
numa sucessão indumentária: o Vestido de Noiva, da importância que os britânicos dedicam a ques-
nas primícias, de tafetá de seda e renda antiga cor- tões que aos continentais poderão parecer caricatas
-de-marfim, com uma cauda de 7,62 metros e um e menores, quiçá risíveis, mas que se afiguram ful-
véu de tule de 140 metros; o ‘vestido Travolta’, da crais para a encenação do poder monárquico, sendo
fase áurea, usado numa recepção na Casa Branca também expressivo da autoridade que a rainha exer-
em 1985, na qual a princesa deslumbrou em dueto ce sobre as decisões políticas que lhe digam direc-
com o protagonista de “Saturday Night Fever”; por tamente respeito e do peso que sobre ela têm duas
fim, na derrocada, o ousado ‘vestido da vingança’ figuras-chave, a rainha-mãe e o secretário privado
(ou “vestido do fuck you”), descrito como um “de- (Isabel herdou o private secretary de seu pai, o míti-
vastador chiffon negro”, envergado por Diana num co Allan “Tommy” Lascelles, omnipresente na série
jantar de beneficência em Kensington Gardens, a “The Crown”, e desde então teve mais oito, sendo o
29 de Junho de 1994, no dia seguinte a Carlos ter actual titular sir Edward Young, um antigo gestor do
assumido o adultério numa entrevista televisiva, Barclays e da Granada Television a quem é creditado
arma desde então muito usada pelos membros da o sucesso da histórica visita à Irlanda, em 2011, e a
família real para se agredirem mutuamente, como aparição da rainha ao lado de James Bond na aber-
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ainda há pouco sucedeu com os duques de Sussex tura das Olimpíadas de Londres, no ano seguinte).
(um prodígio de idiotia, mau-carácter e oportu- No relacionamento com os sucessivos primei-
nismo), os quais, em colóquio confessional com a ros-ministros (14 no Reino Unido, mais de 170 nos
popular Oprah Winfrey, teceram duras críticas aos vários domínios da Commonwealth), Isabel tem
Windsor, acusando-os de racismo e de lhes terem mantido, sem falhas nem sobressaltos, o padrão
cortado as fontes de financiamento, vindo-se a sa- que um deles, James Callaghan, descreveu como
ber mais tarde que não só o príncipe Carlos lhes “amabilidade sem amizade”, uma espécie de cor-
havia transferido uma “soma substancial” de vári- dialidade calorosa que nunca se estende a aspec-
os milhões de libras, como Harry e Meghan gozam tos íntimos, mas que varia — e muito — consoante
das vultosas heranças de Diana e da rainha-mãe e, a personalidade de cada protagonista. Por inúme-
não contentes com isso, fizeram contratos promo- ras razões, históricas e familiares, o mais próximo
cionais com a Netflix e com o Spotify, de montan- e mais querido de todos foi, sem margem para dú- 2
tes não revelados. vidas, Winston Churchill, mas, pese a sua mundi-
vidência conservadora e até antiquada, a rainha
UMA INSURREIÇÃO FILATÉLICA nunca fez distinções ideológicas ou de classe no
Em Janeiro de 1965, Tony Benn, um histórico par- relacionamento com os seus primeiros-ministros:
lamentar trabalhista que ocupava o cargo de mi- pelo que é possível saber-se, apreciou o convívio de
nistro dos Correios no governo de Harold Wilson, um trabalhista de classe média como Harold Wil-
recebeu uma carta de um conhecido artista, David son, a quem autorizou que acendesse o cachim-
Gentleman, que se queixava de que a efígie da rai- bo e concedeu o raro privilégio de ficar para uma
nha no canto dos selos britânicos impedia que es- bebida após a audiência das terças-feiras (“temos
tes tivessem desenhos mais modernos e coerentes, de trabalhar muito com ele”, confessou a um cor-
mais ajustados aos novos tempos. Encantado, o mi- tesão, após o primeiro encontro), mas enfadou-se
nistro pediu ao artista que lhe fizesse alguns esboços com o servilismo excessivo e a verborreia profes-
de ilustrações sem a cabeça da rainha, e, em Março, soral da senhora demasiado tempo entre homens”,
apresentou uma selecção à monarca, que lhe disse terá confidenciado a uma aia). O radicalismo auto-
não ter sentimentos pessoais na matéria. Tony Benn, ritário da ‘dama-de-ferro’, a crispação que indu-
erroneamente, interpretou tais palavras como um si- ziu entre as classes operosas do reino e, sobretudo,
nal de assentimento à mudança. Porém, o secretário o seu desprezo pela Commonwealth, a menina dos
privado da rainha, Michael Adeane, opor-se-ia com olhos da rainha (na mensagem de Natal de 1972, nas
veemência ao projecto e a rainha-mãe, que Isabel vésperas da adesão da Grã-Bretanha à CEE, Isabel
sempre consultava sobre os novos desenhos de se- fez questão de sublinhar que “os novos vínculos
los e de moedas, foi ainda mais enfática, lembrando com a Europa não substituirão os que existem com
BETTMANN/GETTY IMAGES

à primogénita que ela era a chefe do Estado, mere- a Commonwealth”), levaram a monarca a dar um
cedora como tal de maior respeito filatélico. Na au- passo ousado: em Julho de 1979, antecipando-se a
diência semanal com o primeiro-ministro, Isabel e um eventual veto governamental, e sem comuni-
Wilson discutiriam a questão dos selos durante mais cação prévia, o Palácio anunciou que Isabel iria à
de uma hora, saldando-se o conflito por uma vitória conferência dos líderes da Commonwealth, em Lu-
retumbante da monarca: não só se manteve a cabeça saca, onde conseguiu aplacar os ânimos africanos,
da rainha nos selos britânicos como o ministro dos enfurecidos pela relutância de Londres em impor

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HULTON-DEUTSCH COLLECTION/CORBIS/CORBIS VIA GETTY IMAGES

VIDA 1 Isabel não nasceu como filha


de rei nem foi educada para ser rainha,
3 ainda que essa possibilidade tenha
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estado no horizonte desde o dia em
que viu a luz. Foi coroada a 2 de Junho
de 1953, numa cerimónia transmitida
pela televisão, com uma audiência
MICHAEL WARD/GETTY IMAGES

estimada de 277 milhões de


espectadores em todo o mundo
2 A princesa Isabel de Inglaterra em
representação do rei numa cerimónia
oficial 3 As princesas Isabel e
Margarida durante uma comunicação
por rádio dirigida a todas as crianças
do império durante a Segunda Guerra
Mundial 4 A princesa Isabel e o
marido, Filipe, Duque de Edimburgo,
no dia do seu casamento, em
Novembro de 1947, uma ocasião 6
fulcral para elevar a moral da nação
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em tempos de pós-guerra e de
racionamento 5 Em Outubro de 1966,
TOPICAL PRESS AGENCY/GETTY IMAGES

o colapso de uma mina de carvão em


Aberfan, no País de Gales, matou
116 crianças e 28 adultos. A rainha só
visitou o local quando os trabalhos
de resgate acabaram, oito dias depois
do terrível desastre 6 Em 1992,
ao anúncio das separações conjugais
de três dos seus quatro filhos,
juntou-se um gigantesco incêndio
no castelo de Windsor, no dia do
aniversário do seu casamento

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TERRY FINCHER/PRINCESS DIANA ARCHIVE/GETTY IMAGES


PRINCESS DIANA ARCHIVE/GETTY IMAGES

SÍMBOLO 1 A princesa Diana com um “devastador chiffon negro”, em 29 de Junho de 1994,


no dia seguinte a Carlos ter assumido o adultério numa entrevista televisiva 2 O ‘vestido Travolta’,
da fase áurea, usado numa recepção na Casa Branca em 1985, na qual a princesa deslumbrou
em dueto com o protagonista de “Saturday Night Fever” 3 Os príncipes de Gales na varanda
do Palácio de Buckingham, no dia do seu casamento 4 Isabel II no funeral de Diana,
Princesa de Gales. Mais de um milhão de pessoas assistiram ao cortejo fúnebre

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PETE SOUZA/THE WHITE HOUSE VIA GETTY IMAGES

PETER TURNLEY/CORBIS/VCG VIA GETTY IMAGES

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sanções ao regime da Rodésia. Mais recentemente, 1891 para caracterizar o ano em que Pio IX defi-
Boris Johnson meteu-a numa das maiores e mais niu o dogma da infalibilidade papal. Ao anúncio
humilhantes embrulhadas constitucionais do seu das separações conjugais de três dos seus quatro
reinado, com os juízes do Supremo Tribunal a pro- filhos (André, em Março; Ana, em Abril; Carlos,
nunciarem-se por unanimidade, em Setembro de em Dezembro), juntou-se um gigantesco incên-
2019, pela ilegalidade da decisão da soberana em dio no castelo de Windsor, no dia do aniversário
suspender o parlamento por cinco semanas. Des- do seu casamento; a publicação de uma biografia-
conhece-se, como é óbvio, o que a rainha pensa- -bomba de Diana, da autoria de Andrew Morton,
rá do ‘Brexit’, ainda que por certo a preocupem os apontando o dedo a Camilla Parker-Bowles, então
efeitos colaterais sobre o destino da Escócia, entre casada com um oficial católico que havia sido na-
outras calamidades. A tal propósito, deixou tão- morado da princesa Ana; a revelação de fotografias
-só a mensagem essencial, exortando os políticos de Sarah Ferguson a fazer topless em Saint-Tropez,
do país a abandonarem querelas e divisões para se na companhia de um amante fortuito, milionário
concentrarem no bem-estar do povo, o que, pare- e texano, que lhe chupava os dedos dos pés; a di-
cendo uma banalidade, constitui oportuno aviso vulgação, pelos tablóides, de conversas íntimas de
em face da polarização crescente, nos antípodas Diana de Gales com um amigo chegado, o “Diana-
daquela que, bem ou mal, sempre foi a sua visão do gate”. No final desse ano, e numa decisão inédita,
reino: uma grande família unida e coesa, imbuída o Palácio de Buckingham processou o “The Sun”,
de valores cristãos, próspera porque harmoniosa, obtendo uma indemnização milionária do jornal de
ou vice-versa. Rupert Murdoch, o magnata australiano dos me-
O seu longo reinado, metade do século XX e dia que os Windsors sempre consideraram a sua
já um quarto do corrente, tem batido recordes de némesis, e a quem atribuem um plano diabólico,
duração (em 2015, destronou a rainha Vitória; em não de todo infundado, para derrubar a monar-
2017, foi o primeiro monarca britânico a comemo- quia e substituí-la por uma república. Em contra-
rar o jubileu de safira; em Fevereiro próximo, atin- partida, pela reconstrução de Windsor, Isabel acei-
girá a platina; se chegar a Maio de 2024, ultrapas- tou passar a pagar IRS, sendo as finanças reais um
sará a marca lendária de Luís XIV), facto de que dos domínios mais obscuros e controversos do seu
frequentemente se orgulha, gostando de figurar-se reinado, até por ignorância de muitos críticos, que
como uma sobrevivente a sobressaltos vários, que desconhecem que as valiosíssimas obras da colec-
a obrigaram a decisões de risco, quase todas acer- ção real, as jóias da coroa ou as residências oficiais
tadas. Para o seu casamento com Filipe, da Casa de como Buckingham e Windsor são detidas como
Glücksburg, em Novembro de 1947 (uma ocasião trust, não como propriedade sua. Ainda assim, a
fulcral para elevar o moral da nação em tempos de rainha é dona de Sandringham House e do castelo
pós-guerra e de racionamento), as cunhadas não de Balmoral, na Escócia, e tem uma fortuna pessoal
foram sequer convidadas, por estarem casadas com considerável, estimada em 350 milhões de libras,
príncipes alemães que apoiaram Hitler, um dos ocupando, todavia, e ao contrário do que se pensa,
quais ainda em processo de desnazificação. Seria o uma modesta 372ª posição na lista dos mais ricos
marido a dar-lhe a notícia da morte do pai, em Fe- do Reino Unido (outro sinal dos tempos: em 1989,
vereiro de 1952, quando se encontravam em viagem estava em nº 1).
pelo Quénia, o que pôs termo às suas aspirações de Passadas as tormentas de 1992, a crise maior
ter mais uns anos de vida “normal”, como aquela ocorreria depois, em Agosto de 1997, com a morte
que experienciou nos felizes tempos de Malta, em trágica de Diana de Gales, a “princesa do povo”, epí-
1949-1951, quando Filipe aí se encontrava coloca- teto cunhado por um spin doctor de Tony Blair e que
do em serviço naval. Nos preparativos para a coro- calou fundo em muitos corações, mas que não tem
ação, teve de gerir um grave conflito com o marido a mínima correspondência com a realidade: quan-
e com o tio, lord Mountbatten, tomando o partido do casou com Carlos em 1981, a filha do 8º conde de
de Churchill e da sua avó, a rainha Mary, e acaban- Spencer era uma jovem tímida de 20 anos, com va-
do por manter a Casa Real com o nome Windsor, gos estudos suíços e um curso de culinária avança-
ao invés de Mountbatten, como pretendia Filipe, o da, que vivia num apartamento oferecido pela mãe
qual terá desabafado em tom audível que era o úni- e que trabalhava como babysitter para uma família
co homem do país a quem haviam retirado o direito americana e como auxiliar num jardim de infância
de transmitir o apelido aos filhos. Pela mesma al- em Pimlico, e cujos interesses não iam muito além
tura, outra decisão difícil, quando teve de se opor da música dos Duran Duran e dos folhetins cor-de-
ao plano da irmã para casar com um divorciado, -rosa escritos pela mãe da sua madrasta, a inenar-
Peter Townsend, o que, segundo se diz, precipi- rável Barbara Cartland, uma das artífices do “ca-
tou a instável Margarida numa espiral de loucura e samento do século”; depois, deixou-se deslumbrar
excessos e num matrimónio infeliz com um fotó- pela fortuna e pelo glamour da realeza e pelo jet set
grafo da moda, tornado à força conde de Snowdon internacional, morrendo nos braços de um playboy,
e visconde Linley, do qual se divorciaria em 1978. filho de um milionário egípcio com fortuna feita no
Isabel descreveu 1992 como o seu annus horri- negócio de armas e a quem sempre foi negada a ci-
bilis, expressão usada por um jornal anglicano em dadania britânica. Quando se deu o acidente em

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VICTORIA JONES/POOL/AFP VIA GETTY IMAGES

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PAUL EDWARDS/WPA POOL/GETTY IMAGES
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POLÍTICA
1 A rainha Isabel II,
4 com o príncipe Carlos e a
princesa Ana, à conversa
com Sir Winston
Churchill , que foi o
primeiro-ministro mais
querido e mais próximo
2 A rainha Isabel II dá as
boas-vindas ao recém-
-eleito líder do Partido
Conservador, Boris
Johnson, numa audiência
no Palácio de Buckingham,
em Maio de 2019
3 A rainha Isabel II
e o príncipe Carlos na
cerimónia de abertura do
Parlamento, em Outubro
de 2019 4 Isabel II com
o neto, Harry, e a mulher,
Meghan Markle, no
centenário da Royal Air
Force, em 2018. Harry
MAX MUMBY/INDIGO/GETTY IMAGES

e Meghan gozam de
vultosas heranças de
Diana e da rainha-mãe

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Paris, os Windsors encontravam-se de férias em infância decorresse num ambiente tranquilo e fe- Serviu no exército em 1945, assistiu à recons-
Balmoral e a demora da sua reacção à tragédia, en- liz, longe de preocupações dinásticas, com tempo- trução e aos sixties, foi monarca da Guerra Fria, viu
tre outras falhas (não pôr a bandeira de Buckingham radas de três meses de Verão na Escócia e a harmo- esfumar-se um império (dos 400 milhões súbditos
a meia-haste), provocaram comoção e vivo repúdio nia de “nós os quatro”, como o seu pai se referia ao de Vitória, restam hoje 149 milhões). Foi alvo de
entre as massas, que, espicaçadas pela imprensa inexpugnável clã que, até à abdicação de Eduardo dois atentados, de uma invasão do seu quarto, de
sensacionalista, sofreram a perda da princesa como VIII, só tinha os benefícios da monarquia e qua- iconoclastias sem fim, chegando ao final da vida
se de uma grande figura histórica se tratasse (um tu- se nenhuns dos seus encargos. Tudo mudaria com como chefe de uma nação em crise, na amargura
rista italiano e um casal de eslovacos, ela professora a entrada em cena de uma americana duas vezes do declínio. Entrou em funções desde o dia em que
de liceu de meia-idade, foram severamente agredi- divorciada, que odiava a popularidade da peque- veio ao mundo, ou até antes disso, sendo inimagi-
dos e condenados a pesadas penas por terem furtado na princesa (a quem chamava depreciativamente nável, para nós comuns, ter uma vida como aque-
11 ursinhos de peluche da gigantesca pilha de flores e “Shirley Temple”), mas que esta trataria com co- la, uma existência inteira, tanto pública como pri-
recordações). No final, e com o auxílio de Tony Blair, movente carinho em 1972, aquando do funeral do vada, predeterminada até à morte por um simples
exemplarmente mostrado no filme “The Queen”, de tio em Windsor, o que não impediu Wallis Simp- facto biológico — o nascimento completo e com
2006, com uma interpretação notável de Helen Mir- son de, num derradeiro gesto de vingança, deixar vida —, com total supressão do livre-arbítrio e da
ren, a rainha conseguiu dar a voltar por cima e re- todos os seus bens e fortuna à República francesa. autonomia da vontade. Ao nascer, Isabel teve pela
conquistar o apreço dos súbditos, cuja volatilidade O sucesso da rainha de platina explica-se, pois, frente uma vida em que não pôde fazer escolha al-
de sentimentos há muito conhece e domina. A par e como sempre, devido a circunstâncias fortuitas guma, não pôde decidir que profissão ou que inte-
da desorientação inicial, da intenção de proteger os — a paz do núcleo familiar de base; a felicidade resses teria, quem seriam os seus amigos, a rede de
príncipes da voragem mediática e da incapacidade do casamento com o único homem que conheceu sociabilidades, a cidade onde morar, que educação
em perceber o pulsar do povo e os sinais dos tem- e amou; a longevidade inusitada da rainha-mãe, daria aos filhos, onde e com quem passaria as férias
pos, o desastroso timing de Isabel pode ter ficado a a sua confidente e conselheira durante décadas — ou os tempos livres. Tudo o que iria fazer, em mui-
dever-se também a uma inibição psicológica já pa- que permitiram minorar agruras várias, nos planos tas décadas de vida, já estava disposto à partida: o
tente em ocasiões anteriores, e à qual não tem sido nacional e caseiro, como a existência atormentada ritmo de todos os seus dias, as pausas e os descan-
dado o devido realce: em Outubro de 1966, quando da irmã Margarida e os muitos desvarios dos filhos sos, as ocupações próprias de cada mês e semana,
o colapso de uma mina de carvão em Aberfan, no e, agora, de alguns netos. No momento em que es- o que iria fazer dentro de dez, 15, 20 anos. Como
País de Gales, matou 116 crianças e 28 adultos, a rai- crevemos, o predilecto, o príncipe André, enfren- notou a sua prima Margaret Rhodes, foi uma exis-
nha só visitou o local quando os trabalhos de resga- ta sérias acusações de abuso sexual de uma menor, tência programada ao milímetro, sem o mínimo de
te acabaram, oito dias depois do terrível desastre. Os tendo sido desafiado a comprovar em tribunal o seu espontaneidade e de privacidade, observada à lupa
argumentos aduzidos pelos seus biógrafos — aversão álibi, uma incapacidade sudatória supostamente 24h/dia por seguranças e por paparazzi, com uma
a gestos fáceis e demagógicos, não querer perturbar contraída durante a Guerra das Malvinas, em 1982. agenda sufocante de, em média, 341 compromis-
as acções de socorro — podem ter um fundo de ver- sos oficiais ao ano, tudo agravado por algo de que
dade, mas não explicam por inteiro a sua paralisia A SÓS COM DEUS nem sempre se fala, mas que todos sentem: devido
em cenários de elevada comoção, nos quais é mais Dos milhões de imagens que existem do reinado de ao cargo que ocupa, há sempre uma enorme ten-
difícil gerir o equilíbrio entre proximidade e distân- Isabel II, poucas há tão comoventes como uma ti- são no modo como as pessoas, sejam quais forem,
cia (a chave das monarquias), o seu pudor extremo rada há pouco, em Abril passado. Na capela de São se relacionam com ela, e vice-versa, o que reforça
em expor os sentimentos próprios e em lidar com os Jorge, no castelo de Windsor, vemo-la no funeral a importância do conforto dado pelo círculo fa-
alheios, aliada a uma dificuldade no contacto directo do marido, toda vestida de preto, máscara sanitária miliar mais restrito de “Lilibet”, o único espaço
com os súbditos, sobretudo em público e em grupo. incluída, inteiramente só. A rainha encontra-se em de descontracção que detém — daí o papel fulcral
Desde sempre, e já o disse, a rainha sabe não ter o abandono completo, “alone with God”, expressão que tiveram a rainha-mãe e o marido, daí a espe-
carisma e o à-vontade pessoal da sua mãe, cuja pre- associada a Thomas More, nas vésperas de ser exe- cial agrura das desavenças de filhos, noras e netos,
sença nos escombros do Blitz, bem como a decisão cutado na Torre de Londres. E, por detrás dos ócu- e daí, também, a necessidade de uma rotina régia
de permanecer em Londres durante a guerra, cons- los caídos, os seus “olhos de vidro azul”, como lhes estabelecida com regularidade implacável, com
tituíram um poderoso elemento de legitimação dos chamou Cecil Beaton, miram-nos tremelicantes, o Natal passado em Sandringham (este ano can-
Windsor, capaz de, em simultâneo, fazer esquecer o em quase súplica de desamparo e de perda, como celado), a Páscoa em Windsor, o Verão na Escó-
drama da abdicação e as simpatias nazis de Eduardo se murmurassem as palavras de Ricardo II: “You cia e os Invernos dedicados a viagens pela querida
VIII e de pavimentar a tranquila subida ao trono de may my glories and my state depose,/ But not my Commonwealth.
uma princesa de 25 anos. griefs; still am I king of those.” A tonalidade cre- Quem ali nos surge, pois, sentada no banco de
Para o efeito — e para o indiscutível sucesso do puscular desse retrato pressagia um fim vizinho, uma igreja, é tanto rainha como escrava, serva de
seu reinado —, muito contribuiu outro facto deci- para ela e para o seu reinado (o que, tratando-se um destino alheio, cativa de uma condição im-
sivo, mas nem sempre referido: Isabel não nasceu dos dois corpos do rei, é uma mesma e única coi- posta. Em todo o caso, Isabel de Inglaterra tem-
como filha de rei nem foi educada para ser rainha, sa). Despojada da presença da mãe e de um mari- -se mostrado ciente, pois foi educada para isso, de
ainda que essa possibilidade tenha estado no ho- do de sete décadas, pouco confiante na prudentia e que a perenidade da instituição que serve assen-
rizonte desde o dia em que viu a luz. A qualidade nas capacidades do primogénito para suceder-lhe ta na transitoriedade da sua pessoa física. Um dia,
de herdeira presuntiva e a circunstância de estar no ofício, Isabel surge ali velhinha, na solidão de si quando morrer, outro irá suceder-lhe, para enver-
colocada em terceiro lugar na linha de sucessão do mesma, como, aliás, sempre teve de reinar, pese a gar uma coroa que também é cruz, e para que nele
seu avô, Jorge V, trouxeram imposições específicas multidão dos conselheiros, a pletora dos cortesãos, enfim se cumpram os insondáveis mistérios do du-
— o médico do rei teve de obter a autorização do a vozearia dos media, os humores variáveis de mi- plo corpo dos reis. b
monarca para provocar o parto, este foi testemu- lhões de súbditos, que, note-se, continuam a vene-
nhado por um membro do governo, o rei teve de rá-la, com consistentes taxas de apoio na casa dos e@expresso.impresa.pt
aprovar os nomes próprios da bebé –, mas eram 82%, dos quais 60% entendem que tem realizado
suficientemente remotas para permitir que a sua um “trabalho muito bom”. António Araújo escreve de acordo com a antiga ortografia

E 31
Os
caminhos
para
o poder
Quando os resultados
eleitorais não apontam
para uma maioria, é
essencial negociar
soluções equilibradas que
permitam a desejada
estabilidade governativa.
E opções há muitas

E 32
NENOV BROTHERS PHOTOGRAPHY/GETTY IMAGES

TEXTO
DIOGO QUEIROZ
DE ANDRADE
JORNALISTA,
EM BERLIM

E 33
dos eleitores e a combinação de valores e priorida- OLAF SCHOLZ, o novo

Q
des adequa-se melhor a cada momento”, explica. chanceler da Alemanha,
Ainda assim, as coligações não são necessari- fotografado em agosto
amente a única opção. O que estará à partida fora de 2021, em Berlim
de causa é uma maioria absoluta monopartidária,
mas isso não exclui coligações ou mesmo governos
minoritários, como refere Pedro Magalhães. “Há
duas maneiras de governar com minoria: uma coi-
sa é ter um governo minoritário como já tivemos,
que procura um apoio para cada medida, a chama-
da geometria variável; a outra solução é o chamado
parlamentarismo de contrato, em que os partidos
chegam a acordo para a duração de uma legislatura,
mas sem coligação. Isso funcionou em vários pa-
íses, incluindo em Portugal: permite que partidos
sem apoio de uma maioria possam governar e per-
mite que os partidos que apoiam essa solução não
tenham de entrar no Governo”, diz.
Entramos, para efeitos de comparação, no caso
ue os sistemas políticos europeus estão fragmenta- alemão: um sistema político dividido entre dois
dos é uma evidência. Isso mesmo deverá ser con- grandes partidos tradicionais, que se começou a
firmado na eleição portuguesa do final deste mês, fragmentar anos antes do português, e que premeia
em que não se espera que qualquer partido consiga soluções de coligação. Quando as eleições que de-
garantir sozinho uma maioria estável para gover- finiram o sucessor de Angela Merkel terminaram
nar durante quatro anos. E quanto mais se fala em com uma diferença de apenas 1,6% entre os dois
soluções de governo, acordos estáveis e entendi- maiores partidos, foi necessário recorrer à imagi-
mentos de poder, mais vale a pena procurar exem- nação e ao pragmatismo para evitar soluções como
plos de sucesso. na Holanda ou na Bélgica, onde não é raro pas-
A Alemanha, que assistiu já à fragmentação do sar mais de meio ano sem solução governativa. O
sistema político, está desde há muito habituada a exemplo alemão é interessante a vários níveis: pela
soluções de coligação — até porque o seu modelo foi capacidade negocial e pragmatismo revelado pelos
pensado para as beneficiar. Mesmo assim, o acordo vários partidos, pela recusa da inclusão da extre-
que deu posse ao novo Governo juntou três partidos ma-direita nas esferas de poder, pela tradição em
numa coligação que há uns anos seria impensável: manter coligações estáveis que duram mandatos
sociais-democratas, verdes e liberais alinharam inteiros e pelo respeito nas esferas de intervenção
um detalhado programa de governo que se lê como das várias forças políticas.
um mapa de intenções. E isso justifica um exercício Todo o processo negocial em Berlim foi extenu-
que olha para diversas formas de governo, de forma ante, mas um óbvio sucesso. Na própria noite elei-
a tentar tirar ilações do que aí pode vir na noite de toral de 26 de setembro, todos os líderes partidári-
30 de janeiro em Portugal. os cumpriram a tradição e foram à televisão pública
OMER MESSINGER/GETTY IMAGES

Começando pelo contexto político de fragmen- debater os resultados e dar o tiro de partida infor-
tação do sistema, interessa explicar as suas razões. mal para as negociações que começariam duas se-
E aqui importa ouvir Pedro Magalhães, cientista manas depois. Os três partidos da coligação Social-
político do Instituto de Ciências Sociais da Univer- -Democrata-Liberal-Verde nomearam 300 especia-
sidade de Lisboa. “O que aconteceu na Europa foi a listas para 22 grupos de trabalho, especialistas esses
introdução de novos temas que, de alguma manei- capacitados para negociar dentro das linhas defini-
ra, são ortogonais ao conflito esquerda/direita tra- das por cada força política. E, à boa maneira alemã,
dicional. Quando olhamos para os novos partidos pouco foi deixado ao acaso: o planeamento obrigava
políticos, o que vemos é a manifestação dessa nova
abordagem política: libertários, verdes, direita ra-
dical tradicionalista... todos têm posições que não
encaixam de forma simples no conflito económi-
co esquerda-direita. Há uma direita radical na Eu-
Aí está outra
ropa a defender políticas redistributivas e há uma lição a retirar
esquerda libertária que tem posições muito pro-
gressistas e que muitas vezes acaba por ser mais da Alemanha:
sensível a questões de mercado”, descreve. O sis-
o pragmatismo CHRISTIAN
CLEMENS BILAN - POOL/GETTY IMAGES

tema português acabou por afastar mais tempo a


LINDNER, o líder
pulverização do voto precisamente por causa das
barreiras colocadas pelos partidos tradicionais. Mas
face ao exercício dos liberais, garantiu
a toda-poderosa
agora, apesar dos esforços, a desmultiplicação do
voto é uma realidade que deverá implicar imagina-
do poder e à missão de chefiar
as Finanças
ção para chegar a soluções estáveis de governação.
Michael Meyer Resende, diretor do Democracy
capacidade
Reporting International, reconhece as mesmas ten-
sões em vários sistemas políticos. “Com mais parti-
de alterar
dos, há mais hipóteses de representação adequada a realidade
E 34
ANNALENE BAERBOCK
e ROBERT HABECK, a
liderança de Os Verdes. O
partido é muito mais duro
com a Rússia e a China do
que o SPD pretende ser
SEAN GALLUP/GETTY IMAGES

MICHELE TANTUSSI/AFP

E 35
a que as negociações decorressem entre as 11h e as Lindner há oito anos: “A abordagem à governação
17h, com uma rápida interrupção para almoço; o de Lindner está ostensivamente aberta aos Verdes
resultado para cada grupo de trabalho teria de ser e, em certa medida, também aos sociais-demo-
um documento de entre 3 a 5 páginas com tipo de cratas. A sua sensibilidade às questões ecológicas
letra Calibri, corpo 11, espaçamento entre linhas 1.5. tem sido uma característica tão importante da sua
O tomo agregador ficou pronto no dia 11 de no- campanha política que uma coligação verde-ama-
vembro, a tempo de resolver diplomaticamente rela já seria mais provável desde o início da última
os últimos desacordos em cimeiras de topo entre legislatura. No que diz respeito ao projeto de libe-
os líderes partidários, onde se discutiu também ralização da sociedade, eles convergem facilmen-
a distribuição dos ministérios. Foi depois torna- te”, refere Claudia Gatzka, professora e investiga-
do público e votado individualmente pelos três dora da Universidade de Friburgo na área das co-
partidos. Menos de um mês depois, a 8 de dezem- ligações políticas.
bro, o Governo tomou posse, com o documento de Já os Verdes tiveram a última experiência de
176 páginas a servir de programa. Mais notável do governação na viragem do século, nos dois gover-
que o formato, foi o secretismo do processo. Nada nos liderados por Gerhard Schroeder, entre 1998 e
de substancial transpirou para a imprensa, não se 2005. Ambos estiveram prestes a formar Governo
usaram fontes anónimas para atacar ou promover com Angela Merkel em 2017, mas as negociações
uma determinada visão, e só quando foi dado como ruíram quando os Liberais as abandonaram — com
terminado é que o documento foi tornado público. o seu líder a proferir a frase lapidar: “É preferível
Este é na prática o verdadeiro guia de um go- não governar do que governar mal.” Isso abriu ca-
verno original, que tem a vantagem de arredondar minho para a atual liderança bicéfala dos Verdes,
as arestas mais difíceis da coligação, mas que na- que tem sido bem sucedida e agora se concretiza
turalmente não resolve todos os desacordos. Há zo- com uma coligação que está a anos-luz daquela
nas cinzentas onde a discordância entre os vários que foi protagonizada por Joschka Fischer na mu-
parceiros é clara. As primeiras questões que se po- dança do século. “Os Verdes tornaram-se ‘capazes
dem revelar fraturantes estão na política externa: os de governar’, para recordar um termo influente na
Verdes são muito mais duros com a Rússia do que o linguagem política alemã (indicando a reprovação
SPD pretende ser e, se a crise na fronteira ucraniana da política fundamentalista)”, prossegue Claudia
se agravar, há o risco de a ministra Annalena Baer- Gatzka. “A geração líder dos Verdes de hoje orien-
FABIAN SOMMER/PICTURE ALLIANCE VIA GETTY IMAGES

bock (Verdes) querer ir mais longe do que o próprio tou a sua política principalmente para a governa-
chanceler; da mesma forma, os Verdes quererão bilidade, enfatizando questões de acessibilidade
ser mais duros com a China, mas liberais e soci- de transformações ecológicas para os pobres bem
ais-democratas são mais sensíveis à dependência como para a economia, e reconhecendo o impor-
financeira que as empresas alemãs têm do merca- tante dogma dos Conservadores, Liberais e Sociais-
do chinês. Por força dos acordos negociais, há tam- -Democratas que a Alemanha é e deve continuar a
bém uma distribuição de pastas que se pode reve- privilegiar as indústrias.”
lar problemática. É certo que todos conseguiram o Já o chanceler Olaf Scholz está bastante mais
que queriam, tendo o líder dos liberais, Christian habituado a estas voltas. O SPD passou os últimos
Lindner, garantido a toda-poderosa missão de che- quatro anos como parceiro minoritário do gover-
fiar as finanças; ao mesmo tempo os Verdes ficaram no de coligação de Angela Merkel e, por isso, Mi-
com um superministério de Assuntos Económicos e chael-Meyer considera que ele sabe bem “analisar
Ambiente, que foi entregue ao vice-chanceler Ro- o momento”. “Acho que Scholz tem um bom faro
bert Habeck. Isso dará a Habeck poder na gestão para isto — ele era um parceiro júnior, por isso sabe
dos dinheiros para a energia, incluindo os muito melhor como é estar nessa posição. Mas também
discutidos subsídios para combustíveis fósseis, e penso que Scholz é um político que compreende o
a Lindner veto sobre os planos de investimento na poder e está a jogar a longo prazo.”
transição verde. Pelo meio ficam questões como a Claro que todos os sistemas são um reflexo do
reforma fiscal, onde os partidos têm visões marca- seu povo e da sua história, e neste caso Claudia
damente diferentes. Mas a “coligação do semáforo” Gatzka oferece uma leitura à luz dos valores ale-
(nome dado graças às cores dos partidos envolvi-
dos) tem também muito em comum, pelo que não
mães de base. “O principal ethos da cultura polí-
tica alemã, ainda mais depois de Hitler, é a racio-
As eleições
faltarão áreas para explorar a inusitada parceria.
Não sendo estruturalmente uma estreia no po-
nalidade. Os alemães do pós-guerra adoram a ideia
de uma política sóbria e admiram o sucesso e efi-
terminaram com
der para estes membros de coligação, a verdade é ciência na política, em vez de ideias de justiça ou uma diferença
que quer liberais quer verdes são muito diferentes outras questões suscetíveis de serem descartadas
dos partidos que em tempos partilharam respon- como ‘ideológicas’ — e de facto, os interesses ‘ide- de apenas 1,6%
sabilidades governativas. Os liberais estiveram no
segundo governo de Merkel, em 2009, mas a expe-
ológicos’ são no discurso político alemão enten-
didos como prejudiciais ao ideal de comunidade, entre os dois
riência revelou-se desastrosa: na eleição de 2013
perderam toda a representação parlamentar, pas-
ao qual, inversamente, o sucesso e a eficiência po-
dem servir. Neste contexto, esta coligação e a forma
maiores partidos.
sando de 93 deputados para zero; a crise económica
levou ao abandono de todas as promessas aos elei-
como foi estabelecida refletem e abordam bastante
bem a virtude da cultura democrática na Alema-
Foi necessário
tores, que castigaram o partido em função disso.
Depois de um processo de reformulação doloroso,
nha. No entanto, a partir de agora, só vai contar o
sucesso político.”
recorrer à
quatro anos depois recuperaram 10% dos votos e
agora conseguiram ser parte da solução de gover-
Valerá por isso a pena apostar num acordo go-
vernamental em Portugal, independentemente do
imaginação e
no, completando a reformulação iniciada pelo líder modelo formal ou informal de coligação? Pedro ao pragmatismo
E 36
PROGRAMA Acordo que deu posse ao novo Governo alemão juntou três partidos numa coligação
que há uns anos seria impensável, com um pormenorizado programa de Governo que se lê como um
mapa de intenções. Que lições é possível tirar para a noite de 30 de janeiro em Portugal?

Magalhães considera que “não é fundamental que Michael Meyer Resende considera que a Alemanha que se devem tomar medidas contra um discur-
exista um acordo escrito”. “Esse pormenor é mais deu um bom exemplo ao resto da Europa. “O que so que alimenta uma imagem de ‘o sistema’ como
um reflexo da solidez do acordo do que a causa funcionou bem na Alemanha é que não nos deixá- algo estranho ou mesmo hostil para ‘o povo’. Esta
dessa solidez; mas o escrito significa o conjunto mos tornar reféns do extremismo — e penso que ação tem tudo a ver com uma comunicação política
de compromissos que vinculam pelo menos as li- esta é uma boa lição para o resto da Europa. Não transparente, a explicação de políticas através dos
deranças dos partidos.” E reforça que o mais im- permitir que estes partidos dominem o discurso, representantes eleitos, e a demonstração honesta
portante não é fazer uma coligação, é que ela faça ignorá-los tanto quanto possível e não lhes ofe- de alternativas políticas pelos partidos do ‘siste-
sentido. “Sim, uma solução minoritária é sempre recer credibilidade. Se lhes concedermos muito ma’. Isto requer, por sua vez, a discussão aberta de
menos estável, e sabemos que esses governos so- tempo nos meios de comunicação social e no de- conflitos e interesses divergentes no seio das nossas
brevivem menos tempo. Mas também sabemos bate público, emprestamos-lhes uma credibilidade sociedades plurais. Poder-se-ia argumentar agora
que quanto mais incongruente for o acordo, quan- que eles não têm. Evitámos isso e agora a AfD pa- que esta exigência parece estar em desacordo com
to mais diferentes os partidos forem entre si, mais rou de crescer. Todos os partidos devem ser claros a perceção da fragmentação do sistema político em
instável será uma coligação.” E a maturação dos na demarcação das suas linhas vermelhas e recusar muitos países. Não creio, contudo, que esta frag-
partidos também conta: não é incomum que a fal- alianças com extremistas. Ao mesmo tempo, seria mentação reflita um sentido crescente do sistema
ta de preparação para ser parte de uma solução de bom não falar demasiado deles, para não lhes dar — e da forma como comunica — para a pluralidade
governo faça parte destas novas forças políticas. Aí uma atenção desmedida.” de interesses políticos. É antes uma representação
está outra lição a retirar da Alemanha: o pragma- Claudia Gatzka vê a mesma questão de um da pluralidade política sem a capacidade da maior
tismo face ao exercício do poder e à capacidade de ponto de vista mais complexo. Visto que o parti- parte dos políticos (e eleitores) de articular e mo-
alterar a realidade. do mais extremista, a AfD, considera ser a voz do derar interesses e ideias conflituosas dentro e na
Um último aspeto que os comentadores da situ- antissistema, refere Gatzka, “qualquer estratégia comunidade política”, concretiza. b
ação política alemã analisam como relevante é a re- deve combater esta lógica do sistema como algo
sistência à partilha de poder com a extrema-direita. que está contra os interesses das pessoas”. “Creio e@expresso.impresa.pt

E 37
TEXTO
MARIA JOÃO
BOURBON

Como ‘matar’ o criminoso e


salvar o homem? Esta foi uma
das questões que levou um
advogado e jornalista a
desenvolver um modelo de
prisões sem armas nem guardas
no Brasil. E é uma das questões
que, direta ou indiretamente,
estão presentes no debate e nas
experiências de humanização
das cadeias que têm surgido em
vários pontos do mundo

As grades
não fazem
a prisão
E 38
E 39
MARCO DI LAURO/GETTY IMAGES
Também ela tinha ido ali parar por causa do olhá-lo no rosto, chama-me pelo nome…”, recorda

H
tráfico de droga, ao qual se entregou como forma Robson. Simone concorda: “Na APAC somos trata-
de sustentar as filhas de cinco e seis anos, uma vez dos como pessoas, somos chamados pelo nome, não
que não tinha emprego nem contava com a aju- podemos dizer palavrões ou andar à luta. Estudamos
da do pai delas ou da família dele. “Os traficantes e trabalhamos, temos psicólogo, assistente social,
de outras cidades vinham procurar quem quisesse acompanhamento direto da família. Muito diferen-
vender. Fui vendendo, vendendo até entrar de ca- te do sistema comum.”
beça no mundo do crime.” E explica melhor: “uma Hoje são eles que são inspetores de segurança e
pessoa entrega-se totalmente ao mundo do crime que dizem frases semelhantes a quem chega. Simone
e da criminalidade, só vive pelo crime. Começa-se trabalha na APAC após ter passado por empregos na
a matar, a roubar… tudo. Eu realizava assaltos para reciclagem, numa padaria e num restaurante, Rob-
conseguir dinheiro.” son deste que deixou os regimes fechado e aberto ao
Neste processo, foi presa três vezes. À terceira interior e começou a trabalhar no regime semiaber-
apanhou 25 anos e seis meses, mas conseguiu uma to ao exterior, que permite que os reclusos trabalhem
redução de pena superior a nove anos por ter uma fi- para empresas locais fora das instalações prisionais.
lha menor. Foi nessa altura que decidiu mudar. Aper-
cebeu-se que estava a perder a juventude e o cresci- SEM ARMAS NEM GUARDAS
mento das filhas. “Não vale a pena praticar um cri- Fundada em 1972 na cidade de São José dos Cam-
á uma imagem que Robson nunca mais apagará da me para ficar privada da liberdade. Não há nada mais pos, por um conjunto de voluntários cristãos sob
memória. Ele, algemado, na parte de trás do carro da precioso do que a nossa liberdade.” a liderança do advogado e jornalista Mário Otto-
polícia com os olhos do filho colocados em si, cober- Foi essa sensação de liberdade que tanto ela boni, a APAC nasceu inicialmente para evangeli-
tos de lágrimas. Sentado no banco da frente, ao colo como Robson encontraram quando foram transfe- zar e apoiar os reclusos. Dois anos depois evoluiria
da mãe, o filho de um ano chorava, chamava por si. ridos de uma prisão convencional para uma da APAC para associação sem fins lucrativos, com o objetivo
A vida de crime encontrou-o quando a mãe mu- (Associação de Proteção e Assistência ao Conde- de apoiar a justiça na execução da pena através da
dou de casa. Robson tinha apenas três anos, e a mãe nado). Antes disso manifestaram ao juiz da cidade recuperação dos reclusos, do apoio às vítimas e da
fora viver com o namorado para uma favela em Itaú- vontade de mudar. Ficaram em lista de espera até promoção da justiça restaurativa (por oposição à
na, Minas Gerais, onde a droga e o crime eram rotina. que um dia conseguiram entrar – Robson em Ita- meramente punitiva). Nem sempre foi assim, mas
Cresceu no meio da criminalidade e, dentro de casa, úna, Simone primeiro em Governador Valadares e hoje estas cadeias são aceites e financiadas maio-
de discussões e violência (a mãe era alvo de violên- depois em Rio Piracicaba. Aí descobriram um mo- ritariamente pelo Estado, tendo muitas uma fonte
cia doméstica). Aos dez anos, foi viver com a avó na delo prisional que assenta na humanização da pena, de recursos complementar que advém de oficinas
mesma cidade. Mas as cicatrizes já lá estavam. em cadeias com grades mas sem armas nem guardas profissionalizantes e parcerias com empresas locais.
Fugia sistematicamente de casa da avó para a fa- prisionais e onde os reclusos participam na sua ges- O foco está na recuperação e reinserção na so-
vela, onde começou a consumir drogas aos 12 ou 13 tão e organização – de tal forma que até as chaves ciedade dos reclusos — a designação ali é “recupe-
anos, a vendê-las, a praticar pequenos furtos para lhes são confiadas. randos”. Sob os lemas “matar o criminoso e salvar
manter o vício… “Vendia canábis de manhã para Simone e Robson estiveram em prisões distintas, o homem”, “ninguém é irrecuperável” e “aqui en-
manter à noite o vício do crack. Entrava a noite, en- mas o que sentiram quando lá chegaram foi seme- tra o homem, o crime fica lá fora”, a APAC acredita
trava o dia e a rotina era essa.” Chegou a estar em clí- lhante. Os dois relatam a surpresa que tiveram ao que a mudança de mentalidade e de vida só é pos-
nicas de reabilitação, incentivado pela avó que não serem recebidos por um recluso que tinha as chaves sível acreditando, confiando e dando responsabi-
desistia de tentar resgatá-lo do mundo do crime, mas desse estabelecimento e por um inspetor de segu- lidades a quem cometeu um crime, com uma boa
continuou a vender. Até que um dia foi preso. rança que lhes disse para tirarem os braços de trás dose de disciplina na rotina. Para o conseguir, apli-
Quando naquela noite, aos 19 anos, pôs os pés na das costas, erguerem a cabeça e olharem-no nos ca uma metodologia assente em 12 elementos, entre
penitenciária de Itaúna, pensou que a sua vida tinha olhos. “Naquele momento percebi que ia passar a os quais a participação da família e da comunidade
acabado. Que já não havia volta a dar. Fora conde- ser tratado de uma forma diferente, o que me assus- local, o trabalho, a entreajuda entre recuperandos,
nado por tráfico de droga, com uma sentença de seis tou. O rapaz estende-me a mão, pega nela, faz-me a valorização humana, a reintegração social e a es-
anos e dez meses. piritualidade (mas aceitam ateus, agnósticos e pes-
O sofrimento era enorme. Estava comprimido soas de outras religiões).
numa cela de seis metros quadrados, com seis camas
de alvenaria e 32 pessoas. Da família só teve notícias Com a terceira “A APAC é uma alternativa viável ao sistema pri-
sional comum, pelo facto de ter taxas de reincidên-
ao fim de um mês. “Quando alguém ia preso naquela
altura ficava em observação durante 30 dias. Sem vi- maior cia na ordem dos 15% [contra 80% ou 85% no resto
do país] e um custo per capita bem mais baixo: às
sitas, sem nada”, conta o brasileiro de 33 anos. “É uma
tortura psicológica muito grande. Ficamos destruídos população vezes metade, às vezes um terço dos 2400 a 3550
reais do sistema comum”, contextualiza Eduardo
psicológica, mental e espiritualmente.” Mais tarde, fi-
cava trancado na cela grande parte do tempo. “Às ve- prisional do Oliveira, diretor do Centro Internacional de Estu-
dos do Método APAC (CIEMA), que é uma extensão
zes suspendiam as visitas, a comida era muito má…
Quando alguém na cela cometia um erro, os agentes mundo, o Brasil da instituição que gere e coordena as APACs no Bra-
sil e no mundo. Apesar disso, “não é a solução para
penitenciários descarregavam em todos os que lá es-
tavam. Isso tudo vai alimentando o ódio no coração.” é uma todo o sistema prisional”. “Há pessoas que querem
cumprir a sua pena numa APAC, outras não: é uma
Tal como Robson, Simone Alves Moreira não re-
corda com saudade os tempos passados no sistema realidade escolha”, explica. E a expansão do modelo está de-
pendente da vontade da comunidade – população,
comum. Também a sua cela tinha capacidade para
oito mulheres, mas concentrava quase 30. De tal for- muito diferente empresas, poder público – em participar e abra-
çar a causa.
ma que tinham que se revezar para dormir. As roti-
nas eram inexistentes. “Não vivia, vegetava”, relata a da que se vive Fugas “não são muito comuns, mas acontecem
ocasionalmente”, reconhece. Geralmente com re-
mulher de 39 anos. “Uma pessoa apenas come, dor- cuperandos com menos de seis meses de casa ou
me e espera a sentença deitada.” Sentia constante-
mente medo, ansiedade, vontade de fugir para saber
em Portugal e que ainda não abandonaram o mundo do crime e
das drogas. Ainda assim, 90% ocorrem não pela
da sua família. “No sistema comum somos muito an-
siosos, vivemos à base de medicação: para a depres-
noutros países baixa segurança mas em momentos em que o re-
cuperando usufrui de uma saída temporária ou do
são, para dormir…” da Europa direito a trabalhar ou a estudar no exterior, não

E 40
MARCO DI LAURO/GETTY IMAGES
ALTERNATIVA A prisão de Bastoy, na Noruega, é uma cadeia de segurança mínima. Não tem grades, ainda que esteja cercada pelo mar, e os guardas que lá trabalham não estão
armados. Os cerca de 300 prisioneiros vivem em pequenas casas de madeira e cada um tem as suas chaves. Estudam ou trabalham no supermercado da ilha, na pecuária ou na
agricultura — a ideia é que, quando regressarem à sociedade, possam aplicar tudo aquilo que aprenderam. E têm direito a atividades de lazer: podem ir ao ginásio, à biblioteca,
pescar, montar a cavalo, jogar ténis ou futebol, ou até fazer esqui no inverno. A prisão assemelha-se a uma comunidade, com uma escola, uma igreja e um mercado
MARCO DI LAURO/GETTY IMAGES

E 41
MARIO TAMA/GETTY IMAGES
OCUPAÇÃO A penitenciária Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, foi inaugurada em 1904 e encerrada em 2017. Com capacidade para 250 reclusos, chegou a ter
uma população prisional de mais de 700. A sobrelotação das cadeias é um problema no Brasil, um dos países com maior número de detidos a nível mundial

regressando no dia e no horário previsto. “Na maio- modelo está presente, de forma integral ou parcial, devem ainda assumir responsabilidades nas tarefas
ria dos casos, arrepende-se e apresenta-se algumas em mais de 20 países, entre eles a Argentina, a Ale- do dia a dia, negociando as tensões que surgem com
horas ou poucos dias depois, respondendo em juízo manha, a Coreia do Sul e a Itália. aqueles com quem vivem.
pelas infrações.” A verdade é que já há vários casos no continen- “A ideia é que o tempo na prisão se aproxime
O que faz com que, com tantas oportunidades te europeu que mostram que é possível cumprir a tanto quanto possível à vida em sociedade”, especi-
de fuga, a maioria dos reclusos não o queira fazer? pena com dignidade. A prisão de Bastoy, localizada fica Inês Viterbo, referindo-se a uma das regras mí-
Simone e Robson respondem que, embora no início na ilha com o mesmo nome, é disso um exemplo. nimas das Nações Unidas para o tratamento de re-
lhes tenha passado pela cabeça fugir, não o fizeram. Com uma taxa de reincidência de 16% (ainda mais clusos, também conhecidas como regras de Nelson
“Somos tão bem recebidos e acolhidos, a nossa fa- baixa do que a média norueguesa de 20%), é uma Mandela. “Acharmos que vamos conseguir reinse-
mília é acolhida, não somos humilhados como nas prisão de segurança mínima. Não tem grades, ainda rir estas pessoas na sociedade através do isolamento
prisões comuns… a APAC trabalha na base da con- que esteja cercada pelo mar, e os guardas que lá tra- total não é o meio certo para atingir o fim. Mesmo
fiança, devolve-te a confiança. Não queremos que- balham não estão armados. Os cerca de 300 prisio- que olhássemos para esta questão numa ótica ego-
brá-la.” Simone concorda: “ali dão-nos uma opor- neiros vivem em pequenas casas de madeira e cada ísta, chegaríamos à conclusão que estas pessoas vão
tunidade, temos a oportunidade de ser alguém. Fu- um tem as suas chaves. Estudam ou trabalham no voltar a viver nas nossas comunidades. Por isso, é
gir não compensa”. supermercado da ilha, na pecuária ou na agricultu- do nosso interesse que saiam melhores do que en-
“Do amor ninguém foge”. O slogan, que a ci- ra – a ideia é que, quando regressarem à sociedade, traram. E é do nosso interesse que o nosso dinheiro
neasta Simonetta d’Italia Wiener viu em todas as possam aplicar tudo aquilo que aprenderam. E têm seja investido num sistema que cumpra a sua função.
APACs que visitou, resume as possíveis respostas a direito a atividades de lazer: podem ir ao ginásio, É dinheiro dos contribuintes que está a ser posto no
esta pergunta. “É uma frase do prisioneiro José de pescar, montar a cavalo, jogar ténis ou futebol ou sistema prisional. E o atual sistema prisional é, mui-
Jesus, que tinha uma sentença de 57 anos e que já até fazer esqui no inverno. A prisão assemelha-se tas vezes, uma escola de criminalidade.”
escapara da prisão 12 vezes”, conta a realizadora e a uma comunidade, com uma escola, uma igreja e Na Europa, o que existe hoje são casas de transi-
produtora do documentário “Unguarded”, sobre um mercado. ção para a liberdade (para os últimos 18 meses ou dois
esta alternativa ao sistema prisional. “Foi ele que, Mas há quem defenda modelos de menor escala anos de pena), mas o seu modo de funcionamento é
quando lhe perguntaram porque nunca tinha fugi- e não isolados da sociedade. É o caso do movimento semelhante. Noruega, Bélgica, Holanda, França e Itá-
do da APAC, respondeu isto.” Rescaled – constituído por associações em Portugal, lia são alguns dos países que as têm. Em alguns casos
na Bélgica, na Holanda, na Noruega e em França –, são diretamente geridas pela administração prisio-
MIMETIZAR A VIDA EM SOCIEDADE que considera que a alternativa ao sistema prisional nal, noutros através de protocolos com associações
Com a terceira maior população prisional do mundo, atual passa por substituir as prisões por “espaços de do terceiro sector, com taxas de reincidência meno-
o Brasil é uma realidade muito diferente da que se pequena dimensão, inseridos na comunidade e que res e custos per capita que muitas vezes são duas ou
vive em Portugal e noutros países da Europa. Ainda permitam um tratamento individualizado” de cada três vezes inferiores aos das prisões convencionais.
assim, a APAC é um modelo que pode ser exporta- pessoa, explica a coordenadora de políticas públi- Na Holanda existem 15 casas destinadas aos últimos
do. Além de existirem 62 destas prisões no Brasil (e cas da associação portuguesa Reshape, que integra dois anos do cumprimento da pena e a associação que
de 90 outras estarem a serem implementadas), este o movimento. Nestas casas de detenção os reclusos as gere, a Exodus, atua há mais de três décadas, em

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parceria com o Ministério da Justiça, a administra- está coordenado com os sistemas de saúde, de edu- para ele”. E garante que a rotina é inexistente, des-
ção penitenciária e as autarquias. Inicialmente tinha cação e de ação social. de que em 2008 a atividade que existia nas cadeias
apenas casas de saída (para pessoas que já cumpri- O Norte da Europa serviu de inspiração. Na Di- foi extinta. “Até então os reclusos trabalhavam nos
ram a pena ou estão em liberdade condicional, para namarca, por exemplo, de uma parceria entre ar- campos, formavam-se carpinteiros, encadernado-
lhes dar apoio no seu regresso à sociedade), mas ex- quitetos, faculdades e serviços prisionais resultou res de livros… Hoje passam os dias a vaguear pelos
pandiu a sua atuação. As suas casas de transição estão um projeto para reinventar o espaço que antes al- pátios e pelos corredores, sem saberem o que fazer.”
localizadas em zonas urbanas, de modo a facilitar o bergava a antiga prisão de Vridsløselille, a 15 quiló- Não é isto que mostram os números da DGRSP. De
acesso a alguns serviços e oportunidades de emprego. metros do centro de Copenhaga. Tentando preservar acordo com o Relatório de Atividade de 2020, 48,6%
Em cada casa, as 15 pessoas que aí vivem são acom- ao máximo a geometria das instalações anteriores, os dos reclusos tinha uma ocupação laboral, dentro ou
panhadas, de forma personalizada, por uma equipa arquitetos derrubaram os muros para criar um novo fora das instalações do EP. Aquele organismo diz ain-
de 10 a 12 funcionários, na qual se inclui psicólogos, bairro ecológico no município de Albertslund, com da ao Expresso que, embora em agosto de 2018 a taxa
assistentes sociais e criminólogos. Não existem guar- espaços verdes e o objetivo de atrair novos residen- de ocupação fosse de 100,1%, a 31 de dezembro de
das prisionais. A partir da elaboração de um plano in- tes e atividade comercial. 2020 esta era, “no seu conjunto, 86,9%”, com 11228
dividual, os residentes adotam rotinas dentro e fora “Quase todos os países estão a debater o novo reclusos para 12923 lugares, fruto da descida da po-
de casa, realizando tarefas domésticas, contactando paradigma prisional”, garante Jorge Mealha. “Até pulação prisional (e antes da publicação da lei que
com a família, procurando emprego, trabalhando ou nos Estados Unidos, que têm um sistema horrível, previa um regime excecional de perdão de algumas
fazendo voluntariado, podendo recorrer a terapias e massificado e com condições draconianas, o debate penas como forma de combate à pandemia). Mas o
a momentos de lazer. Em função deste plano, podem está muito intenso”, com o arquiteto norte-ameri- diretor-geral da APAR contesta os números, subli-
ser autorizados a sair de casa para trabalhar ou visi- cano e canadiano Frank Gehry envolvido num gru- nhando que a DGRSP considera trabalho “varrer um
tar a família. A taxa de reincidência é 4,6% inferior à po de trabalho para idealizar o que podem ser estas vão de escada durante dez minutos ou trabalhar nos
taxa comum na Holanda, segundo um estudo de 2017 prisões do futuro. serviços de apoio à prisão 1h por dia”, e que todos os
da Universidade de Leiden. A arquitetura pode ser assim um ponto de par- reclusos de substituição (que estão à espera de uma
Em Portugal existem apenas casas de saída, geri- tida para uma reforma maior no sistema prisional – vaga para trabalhar) são considerados ativos. “O tra-
das por associações como a Confiar e O Companhei- ainda que a Direção-Geral da Reinserção e dos Ser- balho efetivo deve representar um sexto da popula-
ro e pela Santa Casa da Misericórdia, destinadas a to- viços Prisionais (DGRSP) considere que, embora a ção reclusa.” Em relação à taxa de ocupação explica
dos aqueles que – tendo cumprido a pena de prisão humanização do sistema prisional possa ser influen- que “a maioria das prisões aparece como não estando
ou estando em liberdade condicional – não têm para ciada pelo espaço, não depende deste. Também Car- sobrelotada”, uma vez que se decidiu que em alguns
onde ir. O objetivo é ajudá-los na reinserção social. los Rato, diretor-geral da APAR (Associação Portu- pisos as celas deixavam de ser individuais e passa-
guesa de Apoio ao Recluso), realça que as condições vam a ter duas pessoas – algo que “é ilegal, uma vez
HUMANIZAR A PENA PARA REINSERIR de habitabilidade das prisões, embora necessárias, que a lei diz que qualquer recluso tem direito a uma
O próprio debate sobre a humanização das prisões, não constituem o aspeto fundamental da reforma cela individual e apenas provisoria e excecionalmen-
que se acendeu em vários pontos do mundo, parece do sistema prisional. “Evidentemente, é indigno ter te pode estar com outros”.
já ter arrancado em Portugal. O que está em causa pessoas no estabelecimento prisional (EP) de Lisboa “O nosso sistema prisional é obsoleto”, continua.
nos vários países é uma reforma do sistema prisio- com ratos, o esgoto e fios elétricos a sair, sem luz… “Existe com um espírito meramente punitivo e re-
nal, num contexto em que este cumpre muitas ve- isto é medieval, não devia existir!”, atira, conside- pressivo, mas a nossa legislação é totalmente resso-
zes a sua função punitiva, mas nem tanto o propósito rando o programa base muito positivo. cializadora – considera que toda a pena deve moti-
ressocializador e de reinserção social – o que leva a Carlos Rato descreve um cenário de isolamento var o cidadão a integrar-se na sociedade, sem vol-
que continuem a existir taxas de reincidência ele- da comunidade e de ligação ténue à família nas pri- tar a cometer crimes.” Também a coordenadora de
vadas. Embora não existam estatísticas oficiais, es- sões portuguesas, com falta de condições e sobrelo- políticas públicas da associação Reshape (que além
tima-se que no mundo a reincidência se situe entre tação em várias, escassez de psiquiatras, técnicos de da área de advocacy realiza programas de relações
os 70% e os 75%. reinserção social assoberbados e uma taxa de reinci- humanas, empregabilidade e mentoria dentro e fora
Em 2019 foi apresentado em Portugal um progra- dência a rondar os 70%. Embora reconheça que há das prisões, contando ainda com um gabinete de in-
ma base para aquilo que deveriam ser as prisões do situações muito díspares, relata casos, como no EP serção sociolaboral e o negócio social Reshape Ce-
futuro, na sequência de um protocolo estabelecido de Lisboa ou de Setúbal, com “condições da Idade ramics, que só emprega reclusos ou ex-reclusos na
entre a Faculdade de Arquitetura da Universidade Média”, onde “vivem oito pessoas num espaço mi- produção de cerâmica), refere que “a legislação por-
de Lisboa (FAUL) e o Instituto de Gestão Financeira núsculo”. Dá ainda o exemplo de “cadeias com be- tuguesa é muito humanista”. “A lei tem ferramentas
e Equipamentos da Justiça. A proposta passava pela liches de três lugares onde só há espaço para uma que se fossem implementadas eram ótimas”, realça.
construção de novas prisões, começando pelas de pessoa entre o beliche e a parede, com a sanita à “O problema é que não são.” E exemplifica, dizen-
Ponta Delgada e do Montijo. Estas duas deveriam frente das camas”, o que faz com que “quando um do que menos de 1,7% dos reclusos estão em regime
estar prontas até 2023, mas seriam empurradas pelo está a urinar ou a defecar” os outros estejam “a olhar aberto ao exterior (que permite saídas para trabalhar
Governo para o final da década: a primeira ainda não e para estudar, sem vigilância) e apenas 12,5% no
teve aprovação na câmara; a segunda está avançar, aberto ao interior (que dá a possibilidade de traba-
com o processo de seleção do ateliê de arquitetura
a terminar. A arquitetura lhar dentro e nas imediações da prisão, desde que
acompanhado).
Sem grades nem celas, estas desenvolvem-se
em torno de pátios habitacionais (que podem ser pode ser Carlos Rato não está com meias-medidas: “Nin-
guém quer investir no sistema prisional, porque isso
espaços de jogos, ter um jardim, uma horta), com o
intuito de criar pequenas comunidades. Ao contrá- um ponto não tem visibilidade. Ninguém quer saber”, atira.
“Os muros das prisões não servem para impedir que
rio do que acontece hoje, as deslocações são livres
e desafogadas dentro do complexo (para estudar, ir de partida as pessoas fujam de lá. Servem para impedir que nós
vejamos o que se passa lá dentro.” Visão semelhan-
ao médico, entre outras coisas) – ainda que o pro-
jeto tenha, no final, ficado com “uma dimensão se- para uma te tem Jorge Mealha, que vê as prisões como “lo-
cais onde estão os esquecidos da sociedade”. “Es-
curitária mais intensa do que o desejável”, fruto das
divergências entre as várias entidades envolvidas maior quecidos pela educação, pela ação social… Pessoas
normais que estiveram abandonadas, locais onde
no processo, detalha um dos arquitetos envolvidos vai desaguar tudo o que não funciona a montante.
na sua elaboração, Jorge Mealha. “O que se propõe
é uma mudança de paradigma: as prisões enquan-
humanização É um sistema sobre o qual o resto da sociedade não
quer saber. Desde o 25 de Abril que fingimos que
to equipamentos de reabilitação e tratamento, com
adequação ambiental, funcionalidade, economia e
do sistema não há prisões.” b

segurança”, explica, acrescentando que tudo isto prisional mjbourbon@expresso.impresa.pt

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Entrevista
Paulina Chiziane

Moçambique
nunca
conheceu
momentos
de paz”
Foi a primeira mulher a publicar um romance no seu país.
E a primeira africana a ganhar o Prémio Camões, em
2021. Ser tudo isto levou-a a perguntar: “Porquê agora?”
A resposta ocupa a conversa com o Expresso.
Nela recua-se aos inícios, fala-se do rumo do continente
africano, da autocolonização e da colonização da língua

POR LUCIANA LEIDERFARB

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tenho escrito muito, mas estou a fazer para aqui a dizer? Depois corrigiu a de amor há sempre conflitos. As mi-

E
textos para música”, conta ao Expres- minha redação, colocou-a como deve nhas lutas com a língua portuguesa são
so. “Canções?”, perguntamos. “Sim, ser, e foi lida no Domingo de Páscoa, várias. Moçambique é este país enorme,
bonitas. Junto-me aos jovens e já lan- na igreja. Isso encheu-me de orgulho. com diferentes línguas locais, e falar
çámos alguns vídeos. A temática é a li- Mas ficou aquela dúvida: o que é isso em português é algo que nos dá comu-
berdade, o povo africano, o meio am- de as palavras terem alma? Mais tar- nicação e mobilidade. Saio de Moçam-
biente. Valores universais.” de, no ensino secundário, entrei em bique, viajo pelo Brasil, por Portugal,
contacto com a poesia de Florbela Es- vou para outros países, comunico com
Disse que nunca teve a intenção de ser panca e encontrei um verso que nunca outras culturas e povos a partir da lín-
a primeira. Mas foi a primeira mulher mais esqueci: “O coração das pedras gua portuguesa. Contudo, do ponto de
em Moçambique a publicar um ro- a bater.” A minha confusão aumen- vista prático, existem conflitos. A lín-
mance — abriu esse caminho. O que é tou. Então, as pedras têm coração? As gua portuguesa, porque veio da Euro-
que isso significa para si e para as mu- palavras têm alma? Nos meus tempos pa, nomeia a cultura, a flora e a fauna da
lheres do seu país? de adolescente, tinha a mania de fazer Europa. É muito comum entre nós, es-
Significa muita coisa. Quando come- um diário, o ‘diário dos sonhos’. Acor- critores africanos, falarmos de pássaros.
cei a escrever, existia o preconceito dava de manhã, tentava lembrar-me Nesta região, onde se fala xangan, a lín-
cultural segundo o qual as mulheres dos sonhos que tivera durante a noite e gua nomeia-os. Mas a língua portugue-
eram seres inferiores. Havia também escrevia-os no diário. Chegava sempre sa não penetra tão fundo, porque este
m Maputo, esta é a estação do grande preconceitos coloniais, de que as mu- atrasada à escola. Era sempre a última pássaro é característico deste lugar. De
calor. “Calor de derreter uma pessoa”, lheres podiam apenas escrever poemi- a tomar banho, a última a sair de casa, vez em quando dou por mim a rir-me
confirma Paulina Chiziane. Coisas que nhas de amor e cantigas de embalar e porque tinha de registar o sonho da dos glossários que faço. Temos uma fru-
só o ciberespaço permite: de um lado não tinham a capacidade de trabalhar noite anterior. Infelizmente, esse ca- ta muito bonita, a que chamamos mas-
alguém em Maputo a passar um len- na língua portuguesa. Essas foram al- derninho perdeu-se. Posso dizer que sala, redonda, bem cheirosa, que todas
ço pelo rosto suado, do outro alguém gumas das barreiras que tive de vencer. sou um ser noturno. Ainda hoje, du- as crianças comem, mas o que é que eu
em Lisboa a abrigar-se contra o frio, a Não foi fácil e não sabia exatamente o rante o dia, vejo o mundo a correr e a digo para falar dela num texto em por-
olharem um para o outro. Paulina está que estava a fazer, mas o gosto de con- passar, mas as noites, para mim, têm tuguês? Massala é uma fruta esférica
lá fora, no jardim, a derreter, e o verde tar uma história fez com que eu fosse um encanto especial. Fico a pensar no de casca dura que parece um coco mas
contrasta com os olhos acinzentados. O escrevendo e escrevendo. que aconteceu, no que as pessoas fize- não é um coco? É um palavreado sem
filho Domingos, a quem ela chama “as- ram, e quando dou por mim já estou fim para dizer que há uma fruta, neste
sistente”, corrige a posição do ecrã — E de onde vem esse escrever? Como a rabiscar palavras. Ser escritora faz lugar, que a língua portuguesa não con-
ambos abrem o mesmo sorriso. Paulina começou? parte da minha natureza. Posso estar segue nomear. O mesmo se passa com
tem também uma filha e cinco netos. E Lembro-me de uma marca na esco- no meio de uma multidão, mas estou as flores. Acredito que o tempo vai re-
11 livros num catálogo que traça o re- la primária [católica]. Fizemos uma sempre só, a processar o que vejo. solver estes problemas, que o léxico vai
trato de Moçambique — um país ainda redação, e a professora, que era uma acabar por abrir-se.
em busca de uma identidade. freira, disse que o meu texto esta- O Prémio Camões coloca-a como uma
Em 2021, Paulina venceu o Prémio Ca- va muito mal escrito em português, das principais representantes da escri- Disse uma vez que o conflito tem tam-
mões e mais uma vez inaugurou uma mas que eu tinha escolhido palavras ta em português. Qual é a sua relação bém a ver com o facto de o português
era. À circunstância de ter sido a pri- com alma. Olhei para ela — era a irmã com a língua portuguesa? ser uma língua de dominação — o que
meira mulher a publicar um roman- Francisca — e pensei: o que é que está É uma relação de amor. E nas histórias a torna uma língua de segregação.
ce em Moçambique, com “Balada de Eu, de vez em quando, dou assim uns
Amor ao Vento”, em 1990, somou-se berros, uns gritos. Porque nós usamos
a de ser a primeira mulher africana a sobretudo dicionários que são proveni-
receber a mais prestigiosa distinção da entes de Portugal — ainda não produ-
língua portuguesa. Amar a língua não zimos os nossos. E nestes dicionários
lhe evita as lutas que por vezes trava portugueses há uma supremacia que
contra ela, os conflitos com um léxi- muitos de nós ainda não tivemos capa-
co que resiste a nomear África e que, cidade de ver. Andamos distraídos com
quando o faz, não impede um discurso o assunto, tal como os próprios portu-
de supremacia. gueses. No dicionário da Porto Editora
Nascida em Manjacaze, província de
Gaza, a sul de Moçambique, em 1955,
Paulina Chiziane cresceu em Maputo,
Ser escritora faz vem a palavra ‘catinga’, que para eles
é mais ou menos isto: “Cheiro nause-
abundo característico da raça negra.”
onde frequentou a escola católica e es-
tudou linguística na universidade. Foi
membro da Frelimo (Frente de Liber-
parte da minha Isto não é um insulto? O meu trabalho
exige que mexa muito com dicionári-
os, e estas definições deixaram-me cu-
tação de Moçambique) na juventude e
trabalhou na Cruz Vermelha durante a
natureza. Posso riosa, de modo que comecei a andar de
folha em folha. E encontrei, por exem-
guerra civil. Mudou-se para a Zambé-
zia, a norte, onde hoje reside.
Em Portugal tem publicados os roman-
estar no meio de plo, ‘palhota’, que vem descrita como
“habitação rústica característica dos
pretos”. Isso é uma asneira: a palho-
ces “Balada de Amor ao Vento”, “Ven-
tos do Apocalipse”, “O Alegre Canto da
Perdiz” e “Niketche: Uma História de
uma multidão, mas ta é reconhecida como uma habitação
ecológica.

Poligamia”, todos pela Caminho.


Depois de “A Voz do Cárcere”, o seu estou sempre só, Sente que há um tom pejorativo?
Exatamente, a vários níveis. A palavra
último livro, escrito a meias com Di- ‘prostituta’ aparece como “mulher de
onísio Bahule — com as vozes dos re-
clusos nas prisões, que os dois foram
a processar má conduta”. Já ‘prostituto’ é “aquele
que se diverte fazendo sexo”. Há aqui
ouvir —, impôs a si própria uma para-
gem. “Estou a fazer umas folgas. Não o que vejo” qualquer coisa que não está bem. Por-
tanto, temos a questão do racismo e

E 46
também a do lugar da mulher. É uma
linguagem de supremacia. Veja outra
palavra: ‘matriarcado’ é “costume tri-
bal africano”. Pelo seu lado, ‘patriarca-
do’ é a “nobreza dos grandes homens
de feitos heróicos”. ‘Heroína’ é uma
mulher de beleza extraordinária. ‘He-
rói’ é o homem bravo na guerra.

Aprende-se muito sobre a ordenação


do mundo a ler um dicionário…
Eu aprendi, e foi um acidente. Isso
mostrou-me a necessidade urgente de
descolonizar a própria língua, sobre-
tudo nestes livros, que são obrigatórios
para quem quer aprendê-la e estudá-
-la. Porém, toda a descolonização, toda
a libertação é um processo. E é sempre
preciso que alguém grite para as coi-
sas se modificarem. Por curiosidade,
fui ver o dicionário brasileiro, e desco-
bri que o Brasil, que tem muitos mais
anos de liberdade, faz dicionários que
integram todo o léxico deles. A palavra
‘catinga’ no Brasil já tem um significa-
do diferente. Eles fizeram esse trabalho
de limpeza das impurezas e dos vícios
da língua.

É a primeira escritora negra a ganhar


o Prémio Camões — e agora hesito em
dizer ‘negra’ ou ‘preta’. O que é mais
correto?
Para mim, tanto faz. Mas faz bem em
perguntar, porque não é igual. Usa-se
‘negro’ ou ‘negra’ para incluir todos os
que têm sangue negro. Temos os pretos,
que somos nós, e temos os mulatos, que
são considerados negros. Quando se
diz ‘negro’ inclui-se muita coisa. Mas
‘preto’ é específico. Eu sou preta.

Voltando à pergunta, li que o prémio


lhe despertava interrogações: porquê
agora?, quem somos nós?, para onde
vamos? Como responde?
São questões muito profundas. Come-
çaria por falar da trajetória da literatu-
ra em Moçambique. Os primeiros no-
mes de mulheres que aparecem são de
mulheres brancas. Estou a lembrar-me
da Glória de Santana, da Clotilde Silva,
pessoas que eu admiro, que li bastante
e com quem aprendi muito. O tempo
foi passando e surgiram nomes como
Noémia de Sousa, Lília Momplé e de-
pois Lina Magaia e eu própria. Ora, o
que é que aconteceu para haver esta
hierarquia racial? Primeiro, quem ti-
nha acesso à educação durante o perí-
odo colonial, devido à segregação raci-
FOTOGRAFIAS ANTÓNIO SILVA/LUSA

al, eram os homens brancos. Aos pou-


cos, esse acesso foi aberto aos filhos dos
brancos com as negras. Os últimos a ter
educação foram os pretos. Essa é a ex-
plicação que eu encontro.

Ou seja, o acesso tardio à educação


condicionou uma literatura plena-
mente moçambicana.

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Determinou o rumo das coisas. Viemos A colonização assume novas formas,
de um regime colonial, houve lutas de é isso?
libertação e finalmente entendimen- A colonização levou muitos séculos,
tos. É por isso que só agora aparece- quase 400 anos. E a libertação não será
mos nós. feita de um dia para o outro. Repare:
400 anos de colonização produziram
A literatura de um escritor é o que o uma maneira de ver o mundo, de pen-
escritor é. É possível escrever igno- sar. Digo-o sem rodeios: o projeto co-
rando o ângulo político e social a par- lonial foi bem-sucedido, porque trans-
tir do qual se está?
É uma pergunta ao mesmo tempo
simples e complicada de responder.
Digo-o sem rodeios: formou o negro ou o preto em qualquer
coisa que se autorrenega constante-
mente. Renega a sua língua, o seu cor-
Porque eu estou neste chão, estou
neste meio, há uma mangueira atrás
de mim, consegue vê-la? Ouvem-se
o projeto colonial po, a sua pele, o seu cabelo. De vez em
quando digo umas loucuras como esta:
Deus criou o ser humano à sua imagem
os pássaros a cantar, cujos nomes não
existem na língua portuguesa. Tenho
foi bem-sucedido, e semelhança, portanto, cá por mim,
Deus é negra. É mulher. Então, vamos
uma cultura e uma vivência. Não sou
capaz de me dissociar do meio onde
estou inserida. Por outro lado, venho
porque transformou lá interpretar os factos e tirar as con-
clusões a partir daí. Esta terra é minha,
este chão é meu, se Deus me fez assim
de uma história, desde o colonialismo
às lutas pela libertação, aquele fervor
da alma, aquele grito pela liberdade,
o negro ou o preto é porque quis que assim fosse. Porque é
que tenho de aceitar mudar o meu ser
para agradar a outro, como se o outro
o choro coletivo dos povos africanos.
Nos livros que escrevi em Maputo, em qualquer coisa fosse um novo Deus? Que beleza terá o
mundo com apenas uma raça?
dou por mim a ter mangueiras, caju-
eiros — nomeio as plantas desta flora
que me rodeia. Mas quando escrevia
que se autorrenega Como descreve hoje, então, a identi-
dade moçambicana?
na Zambézia, qual não foi o meu es-
panto ao descobrir que coloquei de-
masiadas palmeiras? A Zambézia já
constantemente” É uma busca permanente. A identida-
de tem de ser construída e reconstru-
ída todos os dias. Não é um produto
foi o maior palmar do mundo. Sem acabado. Falar de identidade é falar de
me aperceber, o meu subconscien- um processo de libertação. É saber vi-
te foi fazendo o que achava que devia chorámos. Foi a primeira vez que sen- O que diz hoje ao ver que a violên- ver com todas as culturas, conhecendo
fazer. Depois, há um outro aspeto in- ti a profundidade da guerra. Isso mo- cia no seu país não acabou, que ainda de onde venho. A cultura que vem para
teressante para nós, moçambicanos. veu-me a escrever algumas notas e a há focos de presença devastadora em destruir a minha tem de saber que eu
A minha geração foi a primeira a ter perseguir a história da guerra, para Moçambique? tenho valores, valores culturais que se
acesso à educação. Somos os primei- dar o grito coletivo e dizer: chega de É uma tristeza profunda, mesmo. Por- calhar ela precisa e não tem. Então, em
ros a ter acesso ao mundo. Então, para sofrimento. Produzi o livro, mas ao que este país nunca conheceu mo- lugar de opressão, porque não uma ne-
que servirá a minha literatura? Ape- tentar publicá-lo deparei-me com os mentos de paz. E não é apenas o nosso gociação? Parece muito simples.
nas para imaginar, para dizer frases obstáculos de um tempo de várias ca- país: infelizmente, o continente afri-
bonitas? Ou para ajudar o meu povo rências, como a falta de papel, de ele- cano está a ser assolado por diferentes Mas não é...
a dar o grito de liberdade e a negociar tricidade. A editora da Associação dos interesses do mundo. Ontem foram os Pois não. Vou dar um exemplo. Quan-
a sua identidade? Escritores só tinha papel para um livro portugueses, hoje não sabemos quem do as mulheres europeias chegaram a
mais pequeno. Eu disse: não, não vou são nem porquê, mas é sempre usando África, a Moçambique, e mais concre-
“Ventos do Apocalipse” foi o primeiro mutilar este trabalho, mas vou escre- os argumentos mais terríveis. Alguns tamente a Tete — uma das províncias
romance que escreveu, embora não ver outra história. Assim, publiquei a destes conflitos atuais, nomeadamen- mais quentes —, vinham com aquelas
tenha sido o primeiro a ser publica- “Balada de Amor ao Vento”. te em Cabo Delgado, usam o nome da saias, contrassaias e espartilhos, cha-
do. O seu contexto é o da guerra civil religião, dos profetas, profetismos, pro- péus, luvas, botas... Chegavam a Tete
a que assistiu “em direto” — nas suas Que memórias guarda da guerra civil? selitismos: isto parece o que aconteceu e encontravam um calor de 50 graus.
palavras —, como cidadã e ao serviço Foi terrível. Guerra civil é coisa que durante as invasões europeias, que vi- A primeira impressão que tiveram foi
da Cruz Vermelha. Como é que surge devia apagar-se da história da Huma- nham com aquele palavreado bonito de dizer: “Estes pretos não são civilizados,
este livro e o que representa para si? nidade. Não havia uma única família cristianização, de civilização, de evan- andam nus, é um povo pecaminoso,
É um livro que está no centro do meu que não estivesse de luto. De norte a gelização... Que no fundo não era nada devia vestir-se e ter mais pudor.” Isto
coração. Eu estava a trabalhar num sul, eram só mortes, massacres. Do disso: era pilhagem, tortura e morte. aparece em vários escritos históricos.
campo de refugiados e vi uma senhora lado da minha mãe perdi muitos fa- Costumo dizer às pessoas: OK, tivemos Passado algum tempo, as europeias
idosa. A primeira vez que nos encon- miliares, do lado do meu pai um pou- uma invasão colonial e vieram os ditos começaram a tirar o chapéu, as luvas,
trámos frente a frente ela fugiu. Isso co menos. Foi nessa altura que come- civilizadores com a sua religião, pro- e aos poucos descobriram que a nudez
voltou a acontecer algumas vezes. Até cei a compreender a importância da metendo levar-nos ao céu. Mas qual foi ou o andar de tanga é um valor, porque
que fui atrás dela, entrei na sua ten- expressão ‘bom dia’. Porque dormí- o preço desse céu desde que fomos in- preserva a frescura e o bem-estar. Hoje
da e perguntei-lhe: “O que se passa?” amos e não sabíamos se íamos acor- vadidos? Todos os pretos conheceram já reconhecem isso, foi um processo
Ela começou a chorar e explicou-me: dar. E, quando despertávamos, a ale- o inferno da colonização e da escrava- que levou muito tempo. Como conse-
“Quando te vi, imaginei que a mi- gria de acordar vivo e dizer ‘bom dia’ tura. Nem sempre sou compreendida, quência, hoje, os pretos vestem mais
nha filha estava a regressar da morte.” era algo de muito profundo. E, logo a sobretudo por aqueles grupos radicais roupa do que os brancos. Mas há outro
Aquilo interessou-me. Perguntei-lhe seguir, correr para casa dos vizinhos evangélicos. A eles respondo: é bom exemplo de que gosto muito ao falar
o que acontecera, e ela começou a re- para saber se tinham tido um bom dia. conhecer a história, conhece o teu pas- dos valores da cultura africana. Para
latar que a filha tinha sido morta dias Ao chegar a noite, saudávamos ‘boa sado e saberás ver o presente e projetar o europeu, o corpo da mulher é um
antes e, segundo ela, era muito pare- noite’, mas era um desejo verdadei- o futuro. A nova colonização, mais uma lugar de pecado. A criança é batiza-
cida comigo — a altura, a voz. Então, ro, porque não sabíamos o que podia vez, virá para o continente africano em da em nome do pai e do filho, e a mãe
sentia-se chocada. Abraçámo-nos e acontecer nessas horas de sono. forma de religião. que a pariu e que durante nove meses

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a carregou é completamente excluída, tinha uma estratégia de governação, É do norte ou do sul? é uma tentativa de ter o cabelo de
porque o lugar dela é o do pecado. Em mas os livros só referem que era boni- Sou do sul, de Gaza, a província mais um branco. Isto é uma prova de au-
Moçambique, as mulheres mais colo- ta. O mesmo se passou com Cleópatra, machista do país. E fui trabalhar para tonegação muito evidente. Por vezes
ridas, as que cuidam mais do corpo, por quem Júlio César caiu de amores. a menos machista, que é a Zambézia digo-lhes, a brincar mas a sério: ca-
são as do norte, de Nampula. A razão Mas aquela mulher governava o Egito, e Nampula, onde os homens são me- belo é corpo, este é o teu corpo. Por-
— simples e complexa — é que, na cul- conduzia carros de guerra, enviava ca- nos agressivos e menos possessivos. que é que o negro ou a negra tem de
tura local, o corpo da mulher é o lugar ravanas diárias de trigo para o Império procurar ser aquilo que jamais será?
do sagrado, porque guarda dentro de Romano. Falar disto é falar da história Noutro livro seu, “O Alegre Canto E quando é que vai sentir orgulho em
si as sementes da eternidade. Hoje es- de África, da mulher africana. Porque a da Perdiz”, põe o dedo na ferida das ser quem é?
tamos nestas guerras, nestas lutas pela ‘modernice’ de se colocarem mulheres questões raciais. Nele, a personagem
libertação e pelos direitos da mulher, no exército já era uma prática comum de Delfina quer ter filhos brancos, No fundo, reverter a colonização
mas esse é um valor que nós, na cul- neste continente. “para aliviar o negro da sua pele co- mental e identitária. Tem dito que o
tura africana, já temos. As mulheres mo quem alivia as roupas do luto”. É mundo nunca quis saber o que África
daquelas regiões são umas verdadeiras “Niketche” é uma história da poliga- um livro duro, que fala da violência tem para lhe ensinar. Que coisas são
flores, por causa deste aspeto cultural. mia. Porque é que o escreveu? dos negros contra si próprios, certo? essas, hoje, no século XXI?
Mas quando houve a invasão — porque Não procurei este livro, ele veio ao meu Essa é outra história verídica. Co- Não só no século XXI, mas no milé-
não houve comunicação, muito menos encontro. Eu estava sentada na minha nheci uma senhora que era mulata e nio. África é virgem, completamente
negociação, e sim supremacia de um varanda do segundo andar, na Zam- que tinha uma empregada preta. Um virgem. Quando a colonização che-
sobre o outro — cada um dizia as as- bézia, quando vi uma confusão de rua. dia descobri que as duas eram irmãs. gou, decepou os ramos da árvore.
neiras que queria. Concluindo: todos Duas mulheres insultando uma tercei- Apanhei um susto. O que se passava Houve muito sofrimento, mas não
os povos têm valores, é preciso nego- ra com aqueles palavrões de peixeira. é que a filha preta ficou no papel de houve tempo para parar e perceber
ciar. Não é preciso agredir. Fiquei atenta, porque aquilo se passava empregada doméstica da filha mu- que este indivíduo é um ser humano e
na casa em frente da minha. A senhora lata, nascida do segundo marido da que tem as suas raízes escondidas no
Falamos de mulheres, e o júri do Pré- que ali vivia tinha um bebé de uns três mãe. Esta história levou-me a que- chão. Essas raízes, aos poucos, estão
mio Camões destacou o papel que meses. E as outras diziam-lhe: “Vie- rer compreender melhor essa coisa a dar forma a uma nova árvore, que
lhes tem dado nos seus romances, a mos informar que nós também somos chamada racismo. Porque muitas ve- é uma nova África. Podemos falar da
discussão do que é o lugar do femini- mulheres do teu marido. Enquanto zes pensamos que o racismo é aquilo nossa fauna, da nossa flora, do nosso
no africano e a evolução desse lugar estavas na maternidade, era connosco que o branco faz contra o negro. Mas, subsolo. Como natureza, temos aquilo
— estou a pensar no livro “Niketche”. que ele vivia.” Achei aquilo estranho, numa situação de colonização de 400 que o mundo inteiro ambiciona, mas
Gostava de a ouvir falar sobre isto. peguei no telefone, liguei para o meu anos, em que o negro perdeu a sua todos os dias somos bombardeados
Por vezes, quando as africanas falam vizinho e contei-lhe o que estava a ver. identidade e se renega a si próprio, é com ideologias da supremacia do ou-
da questão das mulheres, colocamos Ele veio a correr e, ao chegar, viu as muito normal encontrar casos como tro. Temos uma terra, um mar, temos
preconceitos dos outros sobre nós três mulheres juntas a discutir e a in- este. São casos comuns na província tudo. E é por isso que as grandes po-
mesmas, porque desconhecemos as sultar-se. Virou-se e desapareceu. Fi- da Zambézia, que é a província com tências não se querem afastar de Áfri-
raízes da nossa identidade. Nós, mu- quei muito zangada com este homem e maior miscigenação, e na de Nampu- ca. É preciso despertar a consciência
lheres africanas, não conhecemos as não falei com ele durante uns dias. Uns la. E o que é o racismo? Quem o pro- desta nova geração de africanos para
raízes da nossa identidade. E tem de meses depois, quando dei por mim, já move? Estamos num país indepen- continuar a lutar pela sua dignidade,
haver um trabalho muito profundo e estava a escrever os palavrões e toda dente, livre, mas ainda não estamos pelo seu espaço — um espaço que, a
de muita coragem para resgatar a nos- aquela confusão, e o livro saiu. Apro- livres dos preconceitos do mundo. cada dia que passa, está a ser usurpa-
sa própria história. A mulher africana veitei para confrontar as culturas do Veja só: hoje as mulheres, sobretudo do. Este é um tema que me apaixona,
tem um passado de grandeza. Fale- norte e do sul de Moçambique, que são as jovens, sentem-se mais bonitas se e eu uso a literatura para contribu-
mos do Egito, onde tivemos uma rai- muito diferentes. puserem extensões no cabelo, o que ir para esse despertar. Temos muito
nha poderosíssima, de uma dimensão para dar ao mundo, e o mundo des-
intemporal, que é a Cleópatra. Depois conhece-nos, ou melhor, julga que
tivemos a rainha de Sabá, originária sabe o que não sabe. Os livros escri-
da Abissínia. E fomos tendo figuras tos sobre nós pelos europeus podem
femininas de relevo. Um dos últimos até ser bons livros, mas falam daqui-
monomotapas aqui da região tinha no lo que eles entendem que nós somos.
seu exército uma guarda feminina, que Um exemplo disto é o feminismo:
fazia parte da tradição banto. Quando querem implantá-lo em África, como
os colonos chegaram, seja o colonia- se por cá isso fosse novidade. Mas,
lismo árabe ou o europeu, disseram: veja, não há continente que tenha so-
pobres mulheres, estão a ser usadas e
abusadas por esses homens podero-
sos. Depois houve a cristianização, a
A mulher africana frido uma sangria como o continente
africano. Os melhores filhos de Áfri-
ca foram vendidos, e quem ficou para
islamização, e as mulheres passaram a
ficar na cozinha. A tradição da mulher
tornou-se tomar conta deste espaço foram as
mulheres. Choraram, sofreram, mas
guerreira não é nova na nossa história.
E na história da escravatura, no rei-
no de Daomé, tivemos um dos piores
a pedra basilar não desistiram. A mulher africana
tornou-se a pedra basilar da constru-
ção deste continente. A construção de
exércitos da caça de escravos — e esse
exército era feminino. Portanto, tudo o
que eram valores intrínsecos foi retira-
da construção África é feminina. Então, claro que eu
preciso de saber a história das mulhe-
res da Europa e dos Estados Unidos,
do, e a mulher foi posta na cozinha, em
nome da civilização. O que é que a li- deste continente. claro que aprendo com a sua luta, é
cultura, mas, se quer saber como se
teratura europeia diz sobre a rainha de luta e como se resiste, o mundo tem
Sabá? Que era bonita, que ofereceu 80
sacos de ouro ao rei Salomão e que este
A construção de de se ajoelhar perante as mulheres
africanas. E pedir perdão b
se apaixonou por ela. Ora, se tinha tan-
to ouro, tinha poder, tinha exércitos, África é feminina” lleiderfarb@expresso.impresa.pt

E 49
FRACO CONSOLO

“The Waste Land” é


uma “expressão da
época”, dos anos
entre-as-guerras

VINTE E DOIS

A
SE UM POEMA NOVECENTISTA DE ESCASSAS 30 PÁGINAS SE QUER CONFUNDIR
COM OS ÉPICOS CANÓNICOS, É PORQUE CONTÉM FRAGMENTOS DE UMA TOTALIDADE

utor de um dos colossos literários épicos canónicos, é porque contém fragmentos de uma totalidade, sem
de 1922, T. S. Eliot escreveu um que no fim da jornada haja totalidade alguma. Numa “cidade irreal” e
veemente artigo sobre a outra massificada que é Londres e não é Londres (como se pode dizer da Paris
obra maior desse ano, “Ulisses”: de Baudelaire), num mês de Abril que é “o mês mais cruel” (e não a
“Considero este livro a mais sagração da Primavera), Eliot mistura “memória e desejo”, dando-nos
importante expressão da época em extraordinária contiguidade estilhaços de grandes textos universais
actual; é um livro ao qual todos e coloquialismos, cançonetas, estribilhos à hora do fecho dos pubs ou
devemos alguma coisa e do qual discussões conjugais neurasténicas (assunto sobre o qual sabia o seu quê).
ninguém pode escapar.” Elogiando a As personagens são muitas e estranhas, meio arquétipos, meio gente com
substituição do “método narrativo” uma densidade esboçada: a rapariga dos jacintos, a vidente, o marinheiro
pelo “método mítico”, em constante fenício, a Lil que precisa de dentes novos, o pobre Albert, o mercador de
diálogo com a “Odisseia”, Eliot Esmirna, o velho Tirésias, a dactilógrafa, o jovem carbuncular. Vivem,
comenta: “Nunca ninguém tinha construído um romance sobre tal como fantasmas, num mundo que conjuga o desânimo antropológico
fundação — nunca tinha sido necessário. Não discuto se se deve chamar do pós-I Guerra, o pessimismo sexual agostiniano, o enfado burguês, a
a ‘Ulisses’ um ‘romance’; se lhe quiserem chamar um épico não importa. exaustão e a mesmice das cidades, a mascarada pós-metafísica (anterior
Se não é um romance, é simplesmente porque o romance é uma forma à conversão de Eliot). O “eu”, se é que há aqui um “eu”, está consciente
que já não nos serve; é porque o romance, em vez de ser uma forma, era de que não irá longe com “um amontoado de imagens quebradas”, mas
simplesmente a expressão de uma época que ainda não tinha perdido confessa que “com estes fragmentos escorei as minhas ruínas”, formulação
suficientemente a forma para precisar de uma alguma coisa mais estrita.” que afirma e impugna a tese eliotiana da “impessoalidade”. Mais tarde,
O romance enquanto género, garante Eliot, morreu com Flaubert e Henry em “Quatro Quartetos” (1943), o Blitz e a escatologia cristã darão algum
James. Tornava-se por isso urgente encontrar uma outra forma que fosse sentido às multidões, e aos indivíduos no meio da multidão, mas em 22
capaz de causar “surpresa”, “deleite”, “horror”. a terra está devastada, desolada, sem vida. Hoje, cem anos depois, “The
Diz-se muitas vezes que os ensaios de Eliot são intervenções em causa Waste Land” ainda causa deleite e horror. Ou até, quem sabe, surpresa. b
própria, na medida em que leem determinados livros com intenção de pedromexia@gmail.com
estabelecer uma legibilidade que convenha aos autores modernistas. Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
A defesa de um novo método, que vale para o romance de Joyce,
vale também para os então novos poetas, do mesmo modo que a
reivindicação da “dificuldade” ou o já citado “método mítico” (“The
Waste Land” baseia-se em mitologias como os sermões budistas, a Bíblia,
as “Metamorfoses”, os “Upanishads”, as gestas arturianas, a “Divina
Comédia” ou “The Golden Bough”, aspecto que as notas finais do volume,
um pouco facetas, fazem questão de lembrar). Em 1922, houve quem
se enchesse de surpresa e deleite com “Ulisses” e “The Waste Land”, e
houve quem se deixasse dominar pelo horror, o que valeu a ambos os
livros diatribes literárias e políticas, e a “Ulisses” até actos de censura.
“The Waste Land” (que nas edições em português tem sido traduzido
como “terra sem vida”, “terra devastada”, “terra desolada”) é sem
dúvida uma “expressão da época”, mais exactamente da disforia do
/ PEDRO
período de entre-as-guerras, que, aliás, convivia com uma euforia MEXIA
epidérmica e vistosa; mas trata-se de uma expressão nada “típica”,
antes inaudita, “clássica” à força de ser absolutamente moderna. Se um
poema novecentista de escassas 30 páginas se quer confundir com os

E 50
“Gin Lane”
(1751),
de William
Hogarth

Hogarth, pintor europeu


“Hogarth e a Europa”, na londrina Tate Britain, mostra uma Europa alinhada artisticamente.
ANDREW EDMUNDS

O pintor inglês é apresentado como o mais inovador e subversivo do seu tempo


TEXTO JORGE CALADO EM LONDRES

E 51
O
lhar para uma pintura ou gravura
de William Hogarth (1697-1764), o
primeiro grande pintor britânico, é
abrir um livro. Mais do que vistas, as
detalhado mapa de Jean Rocque e
John Pine, “Plano das Cidades de
Londres e Westminster, e do Bairro
de Southwark, com os edifícios
suas obras destinam-se a ser lidas. contíguos” (1746), composto de 24
Há sempre uma história por detrás (8x3) painéis, num total de cerca de
de cada imagem – em geral, crítica e 2,0x4,5 metros, ocupa uma parede
satírica – pronta para ser decifrada. inteira da exposição!
Com a emergência de uma abastada Hogarth visitou Paris em 1743, e
classe média (mercantil, e não só), novamente em 1748, quando foi
os artistas ganharam então uma preso e acusado de espionagem
nova liberdade e independência, e por estar junto à Porta de Calais
a arte desceu do Olimpo dos deuses a desenhar o que via. O episódio
e soberanos para se fixar na rua e inspirou-lhe uma alegoria da
na intimidade doméstica do lar. É supremacia britânica, “Oh! Rosbife
também a época do apuramento da da Velha Inglaterra” (1748), também
novela e do romance moderno por conhecida por “A Porta de Calais”. É
escritores como Henry Fielding, o uma das pinturas de maior impacto
autor da picaresca “História de Tom na exposição, típica de um artista
Jones, Um Enjeitado” (1749) que que via a rua como o grande teatro
veio morrer a Lisboa em 1754 (está do mundo, com “todos os homens e
sepultado no Cemitério dos Ingleses, à mulheres simples atores”. No centro,
Estrela). A sorte de Hogarth, nascido enquadrado pelas imponentes
em Londres no seio da classe média fortificações de Calais, um ajudante
baixa — o pai, professor de latim, transporta uma enorme peça de
acabou preso por dívidas e bancarrota rosbife para a estalagem inglesa,
— foi ter começado a carreira como enquanto os franceses, pobres e
aprendiz de gravador. Seria através magricelas, se contentam com uma
das gravuras que rentabilizaria as sopa aguada ou um naco de pão;
suas pinturas e se tornaria popular e a exceção é um frade gorducho —
célebre, não só na Grã-Bretanha como modelado no amigo do pintor, John
internacionalmente. A propósito, Pine, o gravador de ascendência
Hogarth lutou pelos direitos dos africana do mapa londrino — a
artistas e viu a lei de copyright apalpar a apetitosa carne de vaca; ao
aprovada pelo Parlamento em 1735. A fundo, no canto esquerdo, Hogarth
suprema homenagem, porém, viria representou-se a si próprio pintando
com a generalização do qualificativo a cena rodeado de hortaliça. O tema
hogarthiano ainda em vida do artista, e título do quadro vinham de uma
nomeadamente em França e nos popular balada patriótica, “The Roast
estados germânicos. Beef of Old England”, celebrando
a saudável e energética comida
LONDRES, CAPITAL EUROPEIA inglesa que ‘enobrecia as veias e
A atual exposição da Tate Britain, fortalecia o sangue’; composta por
“Hogarth e a Europa”, apresenta a Henry Fielding para a sua peça
extensa obra do pintor e gravador “The Grub-Street Opera” (1731),
no contexto das práticas dos seus viria mais tarde a ser adotada pela
colegas europeus, nomeadamente Marinha Real Britânica. O curioso
franceses, neerlandeses e italianos. é que o suculento corte de rosbife
Quatro grandes mapas de Londres, do quadro de Hogarth reproduz a
Paris, Amesterdão e Veneza no século trancha saignant de carne de vaca ‘pinturas de género’, isto é, cenas e satírica da vida, às vezes mesmo
XVIII assinalam o espaço expositivo. da “Natureza-morta: A Mesa da da vida quotidiana — o tipo de subversiva e escandalosa. Eis a
Com cerca de 750 mil habitantes em Cozinha” (c. 1733-34) de Jean- pintura inventado nos Países essência do adjetivo hogarthiano.
1760, Londres era a maior metrópole Siméon Chardin (1699-1779), Baixos no século anterior. O que De certo modo, Hogarth retomava
europeia, em parte pela imigração também exibida na exposição. distingue Hogarth dos antecessores o atrevimento despudorado das
continental; atingiria o milhão de neerlandeses é a sua postura como ‘comédias de restauração’ do
habitantes antes do final do século TEMAS MORAIS MODERNOS crítico social: liberdade na escolha período anterior (1660-1710),
(com três por cento da população de A “Porta de Calais” contém de temas e coragem em enfrentar a de dramaturgos como William
etnia africana). O famoso e muito material para meia dúzia de verdade com uma visão perspicaz Congreve ou George Farquhar,

E 52
“O Tête à Tête” (1743-45).
Segunda obra da série de seis
pinturas “Matrimónio à-la-Mode”,
onde o artista mostra
as consequências ruinosas
dos enlaces arranjados

produção famosa (John Cox) da


ópera de Stravinsky no Festival de
Glyndebourne. Em “Matrimónio
À-la-Mode” (1743-45), outra série
de seis pinturas, o artista mostra
as consequências desastrosas
dos enlaces arranjados, neste
caso o casamento do filho de um
aristocrata arruinado com a filha
de um mercador avaro e rico. (A
sequela do “Matrimónio Feliz”, isto
é, por amor, nunca passou da fase
de esboços.)

A HONESTIDADE DO RETRATO
A novidade não estava apenas na
arte narrativa, moderna e direta,
de Hogarth. Havia também um
público apreciador, e patronos
suficientemente livres e seguros do
seu estatuto (nas artes, comércio,
indústria e serviços) para a comprar.
Quando encomendavam um retrato,
não esperavam lisonja; queriam
parecença, com rugas e verrugas.
A camaradagem e a solidariedade
masculina também ajudavam.
(Hogarth aderiu à maçonaria por
volta dos 30 anos.) A verdade
começou consigo próprio: no
conhecido autorretrato “O Pintor
com o seu Pug” (1745), o artista
representou-se informalmente de
boné, casaco de trabalho e cicatriz
na testa bem visível; em vez do
costumeiro buldogue inglês, o cão é
um pug de olhos grandes e focinho
achatado, chamado Trump (que
figura em mais quatro ou cinco
THE NATIONAL GALLERY, LONDRES

das suas pinturas); três volumes


de Shakespeare (drama), Swift
(sátira) e Milton (poesia épica) e a
paleta com a linha em S da beleza
e graça, completam a composição.
(Na “Análise da Beleza” publicado
em 1753, o pintor consideraria a
linha ondulada como o epítome
da beleza.) Notar ainda que se
trata de um retrato (oval) dentro
mas agora com propósitos morais. conhecidas do pintor podem ser 1951. Uma dezena de anos depois, de um retrato, com a teatralidade
Aliás, Hogarth gabava-se de “tratar lidas como storyboards, como são David Hockney produziria uma série acentuada pelo panejamento à
os assuntos como um escritor os casos do “Progresso de uma de dezasseis gravuras, “Progresso direita, em jeito de cortina de
dramático; o meu quadro é o meu Rameira” (seis pinturas de 1731, de um Libertino”, sobre a carreira cena. Para que não restem dúvidas
palco”. perdidas em incêndio; restam de um jovem gay na Nova Iorque sobre a aproximação europeia,
A sua especialidade passou a ser as gravuras) e “Progresso de um dos anos 1960, tomando-se como a exposição mostra também o
aquilo a que chamou ‘temas morais Libertino” (oito pinturas, 1733- modelo; em 1975 desenharia os autorretrato (1739) do actor e pintor
modernos’. Estava-se a milhas do 35), que inspirou a ópera de Igor cenários e figurinos (evocando as neerlandês Cornelis Troost (1698-
cinema, mas várias das obras mais Stravinsky com o mesmo título em gravuras de Hogarth) para uma 1750), outro retrato oval dentro de

E 53
TATE BRITAIN
1

1 Vista da exposição
com o busto de Hogarth
3 (1741) por Louis François
Roubiliac ao centro
2 “O Pintor e o seu Pugh” (1745)
3 “Miss Mary Edwards” (1742)
4 “Cabeças de Seis Servos
de Hogarth”, 1750-55
THE FRICK COLLECTION, NOVA IORQUE

4
THE NATIONAL GALLERY, LONDRES

TATE BRITAIN

E 54
um quadro, revelado por reposteiro
de bainha sinuosa. Há, todavia,
A grande virtude de que o marido esbanjava-lhe a
fortuna, repudiou-o, mas conservou
Libertino” terem sido compradas
por William Beckford de Fonthill
uma diferença significativa, além “Hogarth e a Europa” o filho de ambos (que passou a ser Splendens (condado de Wiltshire),
da muito maior formalidade do
vestuário neerlandês: enquanto
é mostrar que considerado ilegítimo). O contraste
com a impressionista “Rapariga
antigo Lord Mayor de Londres e pai
do escritor William Beckford que
o retrato de Hogarth assenta em Hogarth não estava dos Camarões” (1740-45), de face viveu vários anos em Portugal no
livros, o de Troost está apoiado rosada como uma lagosta e de final do século XVIII. O problema
numa balaustrada marmórea. sozinho e que canastra à cabeça (na National é que Beckford de Fonthill tinha
Troost, conhecido como o ‘Hogarth
dos Países Baixos’, pintou também
“ninguém é uma ilha”, Gallery de Londres), não podia ser
maior.
plantações de açúcar na Jamaica
(onde nascera) e era ‘dono’ de 1356
“Cinco Cenas da Vida de um nem mesmo na escravos. Lembrou-me a fábula do
Libertino, ou as Consequências
da Frivolidade” (hoje perdidas),
Grã-Bretanha, como “HOGARTH E A EUROPA”
No século XVIII, a Europa já
lobo e do cordeiro: “Se não foste tu
a sujar-me a água, foi teu pai.” Se
obviamente inspiradas pelo artista proclama o soneto funcionava. Artistas e cientistas não se pode atribuir o opróbrio a
britânico. viajavam para visitar os colegas quem pintou, toca de afrontar quem
de John Donne noutros países, onde às vezes o comprou.
TODOS SÃO CHAMADOS ficavam a trabalhar. O intercâmbio Devemos reconhecer os erros e
O génio de William Hogarth facilitava as trocas comerciais. Não crimes do passado, e aprender
reflecte-se no engate com o público. era apenas a Itália (em geral) e Paris com eles para construir um
Faz-nos pensar e convida-nos a (em particular) que atraíam os presente e um futuro mais dignos
entrar na conversa das suas ‘peças artistas. Londres acolheu pintores e igualitários. Mas não podemos
de conversação’. Amigo do grande como Canaletto (entre 1746-55), condenar retroativamente o
ator (shakespeariano) e empresário Zoffany (a partir de 1760) ou a suíça passado segundo os critérios,
David Garrick, Hogarth pintou-o Angelica Kauffman (entre 1766-81); direitos e leis do presente. Fazê-lo
duas vezes: em 1745 no papel de os dois últimos contam-se entre os é negar o progresso cívico e moral
Ricardo III, e em 1757 na companhia cofundadores da Royal Academy ao longo dos tempos. Sim, havia
da mulher, a bailarina vienense of Arts em 1768. “Hogarth e a sexismo, antissemitismo, racismo
Eva-Maria Veigel, conhecida como Europa” dá conta disto e procura e xenofobia no século XVIII. E não
Violetti. O ator está sentado à também afinidades hogarthianas continuam hoje a pulular por todas
mesa, ocupado na escrita de um no continente europeu. Há obras de as nações, apesar de universalmente
prólogo à comédia de Samuel Foote, mais de trinta pintores continentais, condenadas? Urgente é o presente!
“Gosto” (1752); por detrás, em pose entre os quais se destacam o Quanto à abominável escravatura,
graciosa, temos Violetti. O que é neerlandês Troost (já referido), preferia vê-la combatida e punida
isto? Uma representação tradicional os franceses Nicolas Lancret e agora, nomeadamente no Alentejo
de um génio inspirado pela sua valete ou pajem, todas pintadas com Etienne Jeaurat, o veneziano Pietro português com os milhares
musa, ou a mulher a chamar o sensibilidade e simpatia. Há indícios Longhi ou o bolonhês Giuseppe de imigrantes recrutados pela
marido para a cama? Inclino-me de que o artista tencionava incluir Maria Crespi. O problema (?) é agricultura intensiva.
mais para a segunda interpretação, uma sétima cabeça no canto inferior que a genialidade universal de A grande virtude de “Hogarth e a
enquanto Eva-Maria parece querer esquerdo — o quadro foi cortado William Hogarth eclipsa o talento Europa” é mostrar que Hogarth não
tirar a pena das mãos do marido — porventura numa alusão às ‘sete dos seus rivais — o que não seria estava sozinho e que “Ninguém é
e interromper-lhe o trabalho... À idades do homem’ e da mulher. propriamente o objetivo dos uma ilha”, nem mesmo na Grã-
vista também outro retrato (1763) Vindo da Frick Collection em Nova curadores Alice Insley e Martin Bretanha (como proclama o soneto
de Garrick pelo pintor alemão Johan Iorque, há ainda a oportunidade Myrone... de John Donne, o poeta metafísico
Zoffany (1733-1810), sem peruca, de admirar o mais espampanante Completamente disparatada e e deão da Catedral de São Paulo,
de cabeça rapada, mas com os dos seus retratos: “Miss Mary descabida é a atitude retintamente em Londres, no século XVII). As
atributos da sua arte — as máscaras Edwards” (1742), a mulher mais rica woke dos curadores, reforçada pelo Ilhas Britânicas sempre foram parte
da tragédia e da comédia. de Inglaterra. Vestida de damasco convite a dezassete personalidades integrante da Europa e o Brexit é
Hogarth não distinguia classes. vermelho e arreada de joias, acaricia (14 mulheres e três homens) e a um uma fraude. Em vez de separador, o
Tanto pintava os retratos das irmãs um cão-de-caça (e não um cão- coletivo, de várias origens e etnias, Canal da Mancha é afinal um traço-
— Mary e Anne, duas mulheres de-colo, próprio das damas finas); para escreverem comentários a de-união. Os políticos é que ainda
notavelmente independentes, na mesa, acabado de ler, um trecho dezenas de obras expostas. A dada não o perceberam ou souberam
proprietárias de uma loja de roupa da peça “Catão” (1712), de John altura do percurso expositivo somos explicar. b
de criança, The Old Frock Shop — Addison, sobre a liberdade e os avisados de que “as obras de arte
como reunia as cabeças dos seus direitos individuais; ao fundo, os nesta sala incluem imagens racistas
servos domésticos numa obra-prima retratos de Alfredo, O Grande (rei e temas de violência racial e sexual”.
de retrato coletivo, “Cabeças de dos anglo-saxões no século ix) e de E depois há notas peregrinas como
Seis Servos” (1750-55). Serão as da Isabel I fazem-lhe companhia. Uma o facto das séries “Progresso de HOGARTH AND EUROPE
governanta, duas criadas, cocheiro, mulher de garra: quando percebeu uma Rameira” e “Progresso de um Tate Britain, Londres, até 20 de março

E 55
escapar em conversa com um jorna-

E Todos
lista da revista “Rolling Stone” que
“talvez” tivesse um álbum pronto a
editar no final “desta quarentena”;
em maio do ano passado, numa
outra entrevista, à revista “Variety”,
desenvolveu mais, revelando: “Se

os olhos
o último disco era o ‘after hours’
da noite, então a alvorada [‘dawn’
em inglês] está a chegar.” O “FM”
m 2011, quando o seu nome come- depois de “Dawn” não é, obviamen-
çou a andar de boca em boca devido te, colocado no título ao acaso. Há
a uma arrojada trilogia de mixtapes, dois meses, Weeknd esclareceu, nas
discos que eram mais compilações páginas da “Billboard”, que o ál-

nele
de canções do que álbuns conven- bum que estava a construir poderia
cionais, ninguém sabia muito bem ser entendido como uma “estação
quem era The Weeknd. Não mos- de rádio a emitir eternamente no
trava a cara facilmente, não dava purgatório”. A ideia foi colocada em
entrevistas, só lhe conhecíamos a prática com a ajuda de Jim Carrey,
música e uma não assumida von- que, bem recentemente, descreveu
tade de dominar o mundo. O R&B o disco como “profundo e elegan-
futurista de canções como ‘High for te”, confessando-se muito entusi-
This’, ‘Wicked Games’ (não confun- asmado por ter tido “um papel na
dir com ‘Wicked Game’, o clássico
de Chris Isaak), ‘The Zone’, em par-
Há dez anos, vestia-se de mistério e quase sinfonia do [seu] bom amigo Abel”.
“Está a ouvir a 103.5 Dawn FM.
ceria com o rapper Drake, ou uma ninguém sabia quem ele era, mas hoje não há Esteve na escuridão demasiado
estrondosa versão de ‘Dirty Diana’, tempo, chegou agora o momento de
do ídolo Michael Jackson, não só como escapar às suas canções. The Weeknd caminhar em direção à luz e aceitar
ficava na cabeça como denunciava
uma ambição que nunca se coadu-
está de volta. É o novo rei da pop o seu destino de braços abertos.
Assustado? Não se preocupe. Nós
naria com um perfil anónimo. Foi TEXTO MÁRIO RUI VIEIRA estaremos lá para segurar a sua mão
preciso esperar até meados de 2013 e guiá-lo nesta transição indolor.
para que, na sua primeira grande Mas qual é a pressa? Relaxe e apro-
entrevista, à revista “Complex”, o compostos para bandas sonoras de coproduzidas por nomes tão in- veite esta hora de música comercial
músico canadiano, cujo verdadeiro filmes como “As Cinquenta Sombras contornáveis quanto Calvin Harris, de libertação aqui na 103.5 Dawn
nome é Abel Tesfaye, assumisse que de Grey” ou “Black Panther” que o Swedish House Mafia, Max Martin FM”: é desta forma que o ator nos
parte do secretismo em seu redor artista, nascido e criado em Toron- ou Oneohtrix Point Never, com recebe logo na faixa homónima
se devia a insegurança e ao facto to, regressa neste início de ano com quem Tesfaye já tinha colaborado, e, de abertura do álbum. A locução
de sentir que não tinha nada para “Dawn FM”, um muito aguardado apesar de apresentadas como fazen- de Carrey empurra-nos para uma
dizer. “Sou a pessoa mais abor- sucessor para o êxito planetário do parte de um “novo universo so- viagem psicadélica que começa na
recida com quem poderão falar”, “After Hours”, editado nesse fatídi- noro”, a verdade é que não destoam pista de dança, ao som de umas
defendia. “No início, era muito co mês de março de 2020. do trabalho que o artista tem vindo infeciosas ‘Gasoline’, ‘How Do I
inseguro. Detestava ver-me em Apesar de ter sido possível arran- a desenvolver ao longo dos anos. Make You Love Me?’ ou ‘Sacrifice’,
fotografias. Deixei-me levar pela car The Weeknd do anonimato, a Apesar desta edição-relâmpago, os assentes num festim de sintetiza-
cena toda do ‘artista enigmático’. sua elevação ao panteão da música sinais de que Weeknd estaria pronto dores que não enjeita um ou outro
Ninguém conseguia encontrar fotos pop global permitiu-lhe continuar para continuar aquilo que começara sample de guitarra, mas que muda
minhas... Mas não há como escapar a fazer as coisas à sua maneira e a desenvolver no intenso e tre- de tom logo depois de um poderoso
da internet.” nos seus próprios tempos. Sem que mendamente bem-sucedido disco discurso de Quincy Jones. Os ambi-
Uma década volvida, Weeknd está lhe conhecêssemos os contornos, anterior estavam bem à vista de entes luxuriantes de ‘Out of Time’,
entre os artistas mais populares do “Dawn FM” começou a ser desven- todos. Em setembro de 2020 deixou ‘Is There Someone Else?’ ou ‘Don’t
mundo, tendo sido considerado, dado ainda no verão passado com Break My Heart’ só são corrompidos
em 2020, uma das pessoas mais o single ‘Take My Breath’, chegan- por umas acutilantes ‘Best Friends’
influentes do planeta pela revista do, agora, praticamente sem aviso e ‘Every Angel Is Terrifying’. Como
“Time”. Com as mãos cheias de prévio. Anunciado oficialmente na um todo, o disco assenta na visão
sucessos e de prémios, cinco álbuns primeira segunda-feira de 2022, elegante da pop que Weeknd herdou
editados e uma conta bancária o disco saiu no final dessa mes- de Michael Jackson e naquela forma
bem recheada, a sua cara está em ma semana. E veio com estrondo, desempoeirada de abordar assuntos
toda a parte. E, certamente, terá abrilhantado por participações dos do coração sem abafar a libido que
muito mais para dizer do que tinha rappers Tyler, The Creator e Lil Way- aprendeu com Prince. “Dawn FM”
quando deu início ao seu percurso ne, do ator Jim Carrey e de Quincy acaba por soar menos negro do que
musical. É na senda de canções Jones, que ajudou Michael Jackson “After Hours”, equilibrando-se en-
omnipresentes — quem nunca ou- a construir álbuns como “Thriller” DAWN FM tre a celebração da vida e a acalmia
viu ‘Can’t Feel My Face’, ‘Starboy’ ou “Bad”. As 16 novas canções, The Weeknd que chega no final de uma noite de
ou ‘Blinding Lights’? — e de temas tendencialmente dançáveis, foram XO/Universal dança intensa.

E 56
“Sou a pessoa mais
Abel Tesfaye, aos 31 anos.
aborrecida com
Em 2020 foi considerado
uma das pessoas mais
quem poderão
influentes do planeta falar”, defendia.
pela revista “Time”
Com as mãos
cheias de prémios,
cinco álbuns e uma
conta bancária
recheada, o mundo
desmentiu-o

Talvez, nestas novas canções, o


artista canadiano tenha querido
‘aligeirar’ o ambiente, depois de
todos os traumas que vieram com a
pandemia. Talvez tenha, também,
tentado mostrar um lado menos
explosivo da sua personalidade
musical, que, no disco anterior,
lhe rendeu o seu maior sucesso
de sempre com ‘Blinding Lights’.
Sem ter podido levar para a estrada
“After Hours” — que incluía ainda
os sucessos ‘Heartless’, ‘In Your
Eyes’ e ‘Save Your Tears’ —, devido
às restrições relacionadas com
as viagens, Weeknd promoveu-o
principalmente em cerimónias de
entregas de prémios, programas
de televisão e numa estrondo-
sa atuação no intervalo da Super
Bowl, em fevereiro de 2021. E não
ficou parado, entretanto. Enquanto
mergulhava na sua própria música
para criar aquilo que viriam a ser as
canções de “Dawn FM”, atirou-se
a duetos com Kanye West, Rosa-
lía, Doja Cat, Post Malone ou FKA
Twigs, tendo também editado, em
fevereiro do ano passado, a coletâ-
nea “The Highlights”, que juntava
num só disco os seus 18 maiores
sucessos. A digressão que chegou
a estar programada para salas fe-
chadas, e que chegaria a Portugal —
mais precisamente à Altice Arena,
em Lisboa — a 25 de outubro deste
ano, foi cancelada e, no seu lugar, o
músico promete anunciar concer-
tos em estádios. “Quero fazer algo
maior e mais especial para vocês”,
revelou, ao explicar que a renome-
ada “After Hours til Dawn Stadium
Tour” chegará aos quatro cantos
do mundo já a partir do próximo
verão. Em grande. b
mrvieira@blitz.impresa.pt

E 57
Li
vros
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt

QQQQQ
INVENTÁRIO DE
ALGUMAS PERDAS
Judith Schalansky
Elsinore, 2021, trad. de Isabel Castro
Silva, 292 págs., €18,79
Ensaio/Narrativa

Gravura de Villa
Sacchetti, em
Roma, Itália, feita
por Alessandro
Specchi, em 1699

Museu do A
escritora alemã Judith fazer parte do “Atlas”, se o atol de
Schalansky (n. 1980) Tuanaki (nas Ilhas Cook do Sul) não
tornou-se conhecida com tivesse submergido completamente
a publicação de um “Atlas de Ilhas no Pacífico, devido a um maremoto,
Remotas” (“Atlas der Abgelegenen em 1843, tornando-se uma ‘ilha-

que se foi
Inseln”, no original), um livro fantasma’ que ainda fez parte dos
belíssimo que recolhe mapas e mapas, mesmo já não existindo,
histórias de pequenos territórios durante mais três décadas.
rodeados de mar, nos mais distantes O que acontece às coisas que o
recantos do mundo, num registo tempo destrói ou eclipsa? Como
algures entre a erudição geográfica lidar com a ausência das coisas que
e a experimentação lúdica dos um dia tiveram o seu lugar debaixo
limites da literatura. Curiosamente, o do sol? De que forma se poderá
A alemã Judith Schalansky resgata do primeiro dos 12 textos sobre objetos, fazer o resgate do que já não está,
lugares ou animais desaparecidos, nem voltará a estar, daquilo que se
esquecimento objetos, lugares e tempos que compõem o seu “Inventário foi de vez na voragem esmagadora
perdidos, num limbo entre o ensaio e a ficção de Algumas Perdas”, com uma
esmeradíssima tradução de Isabel
do esquecimento? É com estas
questões que a autora se confronta,
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA Castro Silva, poderia perfeitamente escolhendo quase amorosamente os

E 58
los; e faz muito bem. A brilhante
reflexão que nos oferece no prefácio
Há um grau
incide apenas sobre o impulso que a de arbitrariedade
levou a olhar para trás, procurando
interromper momentaneamente a
na escolha destes
“inevitável” transitoriedade de tudo. temas, figuras,
O que conduziu a essas escolhas em
concreto, nunca saberemos. E não lugares e tempos,
precisamos de saber, como leitores.
Até porque o programa desde logo
mas a autora nem
esboçado – o de “deixar que algo perde tempo
sobreviva, de tornar presente o que
está no passado, de conjurar o que foi
a justificá-los;
esquecido, de dar voz ao que é mudo e faz muito bem
e de chorar o que se perdeu” – é
plenamente cumprido.
Num dos contos mais fortes, que se extinguiu a meio do século
intitulado “O Unicórnio de passado, evocada no contexto da
Guericke” (mas será mesmo um Roma Antiga, em combate épico com
conto?), a narradora relata as um leão, numa arena cheia de gente,
semanas que passou em retiro numa diante do Imperador. E também da
aldeia abandonada dos Alpes, onde aproximação à religião maniqueísta,
se instala para escrever “um guia de Mani, o profeta babilónio, cujo
da natureza sobre monstros”. É a sistema de crença, apoiado numa
história de um falhanço. Enquanto visão nítida do Bem e do Mal, sem
deambula pelas redondezas, meios termos, foi absolutamente
faz longas caminhadas e tem esmagado pela História. O texto
pouquíssimos encontros com outros mais exigente, no entanto, é capaz
humanos, cuja fala não entende, de ser o que nasce da evocação de
ela vai desistindo aos poucos do “O Porto de Greifswald”, de Caspar
seu projeto, ao perceber que a David Friedrich, um quadro a óleo
maior parte das representações de destruído em 1931, num incêndio no
monstros correspondem aos mesmos Palácio de Cristal de Munique. Tal
arquétipos, com escassas variações. como o pintor, Schalansky é natural
Quando, para fugir ao impasse, de Greifswald, cidade portuária do
tenta ela própria criar monstros, Báltico, e no seu conto arrisca fazer
pintando-os, os resultados são uma espécie de reverso da pintura
ICAS94 / DE AGOSTINI VIA GETTY IMAGES

igualmente desencorajadores. “Não perdida. Se nela se via o porto,


se podia negar que a evolução era ela procura a nascente do rio que
incomparavelmente mais inventiva nele desagua, o Ryck, e segue-o
do que a fantasia humana”, conclui, meticulosamente desde a origem
antes de fazer as malas e voltar para — à imagem do que Claudio Magris
a civilização. fez com o Danúbio, mas com as
Os limites humanos são um tema descrições pormenorizadíssimas da
recorrente, talvez levado ao extremo flora e da fauna a ocuparem o lugar
em “O Rapaz de Azul”, que começa das derivas pela cultura da Europa
por evocar um filme perdido de F. Central que encontramos no livro do
W. Murnau, de que só restam 35 escritor italiano.
fragmentos na Cinemateca Alemã, O texto mais surpreendente é aquele
objetos desta sua espécie de museu ruína, em que os mortos falam, o para logo se transmutar num em que Schalansky evoca o antigo
imaginário, porque “à semelhança passado vive, a escrita é verdadeira mergulho na psique atormentada de Palácio da República da RDA,
de uma concavidade, a experiência e o tempo suspenso” — enquanto Greta Garbo, ao andar pelas ruas de obsoleto depois da reunificação,
da perda faz ressaltar os contornos veículo de informação e lugar de Manhattan, consciente de que é já demolido por causa das suas muitas
daquilo que se lamenta e não experimentação estilística. Para tarde demais para voltar à ribalta, toneladas de amianto (parte do
raramente transforma-se, à luz cada item encontramos um registo uma década após a sua retirada aço das suas fundações serviu para
transfiguradora do luto, num objeto diferente, umas vezes mais próximo voluntária, aos 36 anos, tarde demais construir o Burj Khalifa, no Dubai,
de desejo”. do ensaio, outras da ficção pura, para conseguir um último papel. o que não deixa de ser irónico). Em
Designer gráfica, além de escritora, outras ainda de uma rememoração “Quando começara este maldito vez de uma lição de arquitetura ou
Schalansky constrói os seus livros autobiográfica que nos transporta envelhecer?”, pergunta-se a atriz, de política, a escritora oferece-nos
com um agudo sentido da proporção para a Alemanha de Leste, esse país que em tempos fora considerada um conto realista sobre a vida de um
e da simetria (neste caso, por também entretanto desaparecido, a mulher mais bela do mundo, casal da RDA, em que o objeto em
exemplo, os capítulos têm todos onde Schalansky nasceu e viveu a mas agora se sente “um fóssil causa, o Palácio, não passa do cenário
o mesmo número de páginas em infância (tinha nove anos quando se vivo”. Se aqui o tom é terra a terra, longínquo de uma possível disrupção
alemão: 16), mas o foco da sua deu a queda do Muro de Berlim). quase cru no seu desencanto, há amorosa. A sua extrema simplicidade
criatividade heterodoxa concentra- Há evidentemente um grau de capítulos quase barrocos, de prosa pode parecer algo deslocada, neste
se nas potencialidades elásticas do arbitrariedade na escolha destes densa, voluptuosa, pródiga em conjunto, mas o certo é que não
texto — esse “espaço utópico, não temas, figuras, lugares e tempos, mas pormenores. É o caso da história destoa entre os outros capítulos, mais
desprovido de afinidades com uma a autora nem perde tempo a justificá- sobre o tigre-do-cáspio, espécie originais e inventivos. b

E 59
imagens que, no exílio, costumam
despertar mais fortemente
a saudade — as imagens da
infância.”
É uma despedida não sob a
forma de uma narrativa linear
mas de uma série de imagens
e impressões, sobre as quais o
autor constrói glosas densas e
sugestivas: o Tiergarten, a caça às
QQQQ QQQQ
borboletas, os livros para rapazes, OS GESTOS IRMÃOS INESPERADOS
uma determinada esquina ou Djaimilia Pereira de Almeida Amin Maalouf
uma manhã de inverno, as meias Relógio D’Água, 2021, Marcador, 2021, trad. de Helder Guégués,
dentro de um armário, histórias de 160 págs., €17,50 232 págs., €16,90
crimes e desgraças, um carrossel... Ensaios Romance
A história da obra é rica ela
própria, com sucessivas versões Em “Os Gestos”, Djaimilia Pereira de Empédocles, poeta, médico e tauma-
elaboradas ao longo dos anos 30, Almeida usa a colagem como método turgo, autor dos poemas “Da Nature-
num processo que lembra — a e como motivo. A colagem em senti- za” e “Purificações”, foi, juntamente
ideia vem fatalmente à cabeça de do estrito, a que sabemos que se de- com Parménides, um dos grandes
ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES

um leitor português, mesmo antes dica, mas também enquanto processo sábios da Antiga Grécia, antes de esta
de a lermos no prefácio — o “Livro literário, num cut-up inesperado, em- descarrilar em modos de pensamen-
do Desassossego”. bora não aleatório. As imagens que to de que ainda hoje se sentem as
Um ensaio dessa obra pode a autora aqui trabalha são “gestos” consequências. Em “O Naufrágio das
ser encontrado em “Crónica (de infância e juventude, africanos Civilizações”, o autor escreveu: “Me-
Berlinense”, embora pouco texto e portugueses) ou acções (as mãos, lhor enganar-se na esperança do que
seja depois reutilizado. Quanto a a hospitalidade, o cuidar). Talvez acertar no desespero.” Desespero é o
“Rua de Sentido Único”, por vezes ficções ou talvez ensaios, os textos que sente Alec, desenhador canadi-
Walter Benjamin, pensador-chave considerado a introdução ideal à vão acumulando e aproximando ma- ano, a viver em Antioquia, pequena
da primeira metade do século XX obra de Benjamin, é uma coleção teriais diversos: uma lembrança, uma ilha do arquipélago de Quíron, na
de peças de natureza diversa, mágoa, uma homenagem, comentá- costa atlântica francesa, quando um

Sinuoso desde aforismos (não tomando este


termo no sentido simples de uma
rios a livros de fotografia, a origem de
uma queimadura, uma miniaventura
dia tudo parece ter parado: não há luz
nem comunicações. A outra habitante

Benjamin
frase lapidar que condensa uma amorosa, um exemplo duradouro ou da ilha, a escritora Ève Saint-Gilles,
ideia mas de algo mais substancial; fugaz de empatia (um órfão angolano, autora de um único livro, “O Futuro Já
mais Schopenhauer do que La quase-irmão, um velho que passa Não Vive Aqui”, não parece muito in-
Rochefoucauld, digamos) até todos os dias com um saco num jar- comodada, já que renunciara ao con-

T
endo sido redescoberto nas listas de instruções para autores dim). O que une esses casos e figuras vívio humano. Alec procura respostas
décadas que se seguiram à e críticos, descrições de objetos é como que uma abstracção do “eu”, para os estranhos acontecimentos e
sua morte — judeu alemão e lugares, reflexões sociológicas, alguém que se chama Dezassete e conversa com Agamémnon, o bate-
em fuga ao nazismo, suicidou-se psicológicas e políticas. que é Djaimilia aos 17 anos, qualquer leiro, de origem grega. Por fim, conse-
na fronteira franco-espanhola, “Um paradoxo estranho: as outra pessoa com 17 anos ou até o gue falar com Moro, um amigo, agora
aparentemente por lhe terem pessoas, quando agem, só pensam facto de se ter tido 17 anos, idade na conselheiro do Presidente americano.
negado a passagem —, Walter no seu interesse pessoal mais qual “não se é sério”, dizia Rimbaud, Decide iniciar um diário, onde narra a
Benjamin (1892-1940) é um mesquinho, mas, ao mesmo mas se é o quê?, verdadeiro? O livro sucessão de factos espantosos que se
pensador-chave da primeira tempo, o seu comportamento é emprega uma estratégia clássica, o desenrolam numa vertigem inespera-
metade do século XX. Nele mais do que nunca determinado ubi sunt, a pergunta sobre onde estão da. Aconteceu o impensável, depois
encontramos ao mesmo tempo pelos instintos das massas”, os nossos mortos, os jovens que já não de meses de tensão internacional, que
um crítico literário (ensaios escreve Benjamin. /LUÍS M. FARIA são jovens, os fantasmas de tempos quase levaram o mundo à destruição.
importantes sobre Leskov, Proust, idos, a pergunta sobre se somos quem Um poder desconhecido interveio
Baudelaire, Karl Kraus, Kafka), um fomos antigamente, se sobrevive- quando menos se esperava. A ordem
filólogo, um filósofo da história e remos na memória dos outros como das coisas foi subvertida por interven-
da modernidade (“A Obra de Arte jovens ou como velhos. E com essas ção dos amigos de Empédocles, até
na Era da Reprodução Mecânica”) recordações vêm algumas incertezas, então desconhecidos e possuidores
e um memorialista. Nesta última acontecimentos evocados no texto de uma tecnologia, nomeadamente
vertente destacam-se as obras aqui e logo contraditados, porque não é médica, altamente superior. O que
reunidas. certo que tenha sido assim. Uma co- se segue é o confronto entre duas
“Infância em Berlim por Volta de lagem é, até certo ponto, um retorno: humanidades com resultados imprevi-
1900” é um texto iniciado quando “Recortar, rasurar, sublinhar, cortar, síveis. Neste conto filosófico, uma
Benjamin se preparava para partir QQQQQ amachucar reabre uma segunda distopia benévola, onde se especula
para o exílio, eventualmente RUA DE SENTIDO ÚNICO / infância que julgava estar-me vedada. sobre a possibilidade de regeneração,
para sempre. “Por mais de uma CRÓNICA BERLINENSE / A colagem não é o início de uma coisa o escritor propõe reflexão sobre os
vez experimentara na minha INFÂNCIA EM BERLIM nova, mas um regresso.” E, no entanto, destinos da Humanidade. Os herdei-
vida íntima como o processo POR VOLTA DE 1900 cada gesto tem qualquer coisa de ros dessa sabedoria antiga regressam
de vacinação era benéfico”, Walter Benjamin irremediável, como aquele funcioná- para encaminhar o mundo para uma
escreve. “Também nesta situação Relógio D’Água, 2021, trad. de António rio de uma loja de penhores que avisa: nova via, sem conflitos: a força do
me mantive fiel a ele, e foi Sousa Ribeiro, 313 págs., €18 “Aqui não se volta atrás.” amor repondo o equilíbrio na balança
deliberadamente que evoquei as Ensaios /PEDRO MEXIA da vida. /JOSÉ GUARDADO MOREIRA

E 60
E ainda...

ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

QQQQQ
HOJE NÃO LIVRO DE RECEITAS DOS
Ana Margarida Matos
Chili Com Carne, 2021,
LUGARES IMAGINÁRIOS
Alberto Manguel
O bar da ressaca
128 págs., €10 Tinta-da-China, 2021, trad. de Rita
Banda desenhada Almeida Simões, 176 págs., €21,90 Todos os olhares convergiram para aquela
Depois de “Dicionário dos Lugares que fora a musa inspiradora de Gainsbourg...
Vencedor do concurso anual da Chili Com Imaginários”, o autor dá a conhecer a

F
Carne, que culmina com a publicação culinária dos mesmos, porque “toda oi Prune Berge — então attachée de presse das Éditions du Seuil,
de um livro, “Hoje Não” é um dos traba- a comida é, na sua essência, uma inconfundível nos seus óculos em forma de coração — quem mo
lhos mais disruptivos da BD portuguesa prova da nossa humanidade comum”. apresentou num já longínquo Salão do Livro de Paris. Estávamos
dos últimos anos. Num registo diarístico em 1988, ele acabara de publicar o seu segundo livro, “Bar des Flots
que percorre cerca de seis meses desta Noirs”, era um homem jovem e bonito, e um brilhante conversador,
pandemia que nos assola, o livro de Ana ISRAEL além, claro, de um escritor talentoso, a despontar no meio literário
Margarida Matos escapa a todos os Daniel Sokatch parisiense. Um ano depois, esse “Bar des Flots Noirs” transformou-
Bertrand, 2021, trad. de
lugares-comuns do “diário da quarente- se em “O Bar da Ressaca” (pela mão da saudosa Tereza Coelho) e
Paulo Tavares e Sara M.
na”, explorando as categorias de espaço reforçou-se entre nós uma amizade que dura até hoje. Falo, claro, de
Felício, 384 págs., €18,80
e tempo a partir das infinitas potenciali- Olivier Rolin, e orgulho-me de Portugal ser o país (depois da França,
dades da linguagem da banda desenhada. evidentemente) onde a sua obra está mais publicada; obra que inclui,
As breves entradas textuais dialogam, “Um guia sobre o conflito israelo-pa- entre outras preciosidades, um romance extraordinário que dá pelo
em cada prancha ou dupla prancha, com lestiniano para os curiosos, os confusos nome de “Porto-Sudão”, galardoado com o Prémio Femina em 1994.
sequências de vinhetas cuja relação com e os indecisos”é o subtítulo deste livro Ao longo de todos estes anos, Rolin visitou inúmeras vezes Portugal
as palavras não é imediatamente óbvia. escrito pelo CEO da New Israel Fund. e por cá criou uma extensa rede de amizades (e de alguns amores
Há excertos de manuais de instruções, impossíveis...) e um círculo de leitores fiéis e atentos. Sempre que eu
pedaços de informação retirada da passava por Paris, também o procurava, para jantarmos no seu bairro
internet, retratos, espaços — os da casa, Top Livros Semana 52 ou bebermos um copo no seu predileto Bar Noir, onde ele carpia
quase sempre, mas estilhaçados em De 27/12 a 2/1 desgostos de amor e anunciava projetos literários. E recordo-me bem de
Ficção
ângulos inesperados e cortes cuja frieza uma noite em que, depois de uma festa organizada pela editora Anne-
Semana
informativa se anula na relação entre anterior Marie Metailié, ficámos os dois bêbedos como cachos e caminhámos
texto e imagem. Essa relação, trabalhada Se Me Amas Não Te Demores horas à-toa até conseguirmos chegar a Odéon, onde ele então vivia e
1 2 Raul Minh’alma
de modo engenhoso e sempre forçando ficava o meu hotel.
limites narrativos e nexos visuais, cruza a O Jardim dos Animais com Alma Em determinado momento da sua vida, Olivier Rolin viveu com a atriz
2 1 José Rodrigues dos Santos
angústia trazida pela pandemia com a in- e cantora Jane Birkin e por essa altura tivemos a oportunidade de jantar
certeza do futuro da narradora perante a 3
Inês de Castro
4 Isabel Stilwell
os três num restaurante de Saint-Germain. Na realidade, não éramos
conclusão da licenciatura em Belas Artes, três, éramos quatro — Jane fazia-se acompanhar do seu inseparável cão,
passando também por inúmeras reflexões 4 -
Último Olhar que ficou calmamente deitado debaixo da mesa durante toda a refeição.
Miguel Sousa Tavares
sobre o processo de criação artística. A A entrada de cães era interdita, mas havia evidentemente exceções...
ligação entre estas categorias narrativas Astérix e o Grifo Aliás, ao entrarmos no restaurante, senti isso mesmo — houve um
5 5 Jean-Yves Ferri
nasce de uma urgência de não perder a sussurro geral na sala e todos os olhares convergiram para aquela que
As categorias consideradas para a elaboração deste top
noção do tempo, como se registar tudo foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada fora a musa inspiradora de Serge Gainsbourg. Rolin sentiu o mesmo
em todas as dimensões fosse uma espé- e confidenciou-me, entre o irónico e o desgostoso: “Andamos nós,
cie de salvação (e como se fosse possível Não ficção escritores, a publicar livro após livro e ninguém nos reconhece...”
registar tudo). De certo modo, esse Semana
anterior Com raríssimas exceções, é verdade: os escritores passam anónimos
registo e o recurso às imagens fragmen- entre quem os lê. Talvez por isso Rolin se refugie agora na sua casa da
Torne-se um Decifrador de Pessoas
tadas, multiangulares e em sequências 1 1 Alexandre Monteiro Bretanha ou, velejador experiente, atravesse as ondas à procura de um
inesperadas mimetizam uma existência Como se Transforma Ar em Pão
qualquer Porto-Sudão onde o amor seja ainda possível. b
quotidiana que sobrepõe aos gestos e aos 2 - Nuno e Tanja Traxler Maulide
movimentos que vamos protagonizando Feito com Amor
3 -
diversas linhas de pensamento, tantas Catarina Gouveia
vezes incontroláveis. Afirmando-se como Ser Herói Todos os Dias
4 4 Robim Sharma
um diário, “Hoje Não” facilmente se lê
como um ensaio sobre essa categoria de A História da China
5 3 Michael Wood
espaço-tempo a que os físicos dedicam
o pensamento, aqui declinada nas suas As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
muitas variações quotidianas, confir- Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
Olivier Rolin
mando que em cada existência há tantas Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, (à esq.)
através do estudo de um grupo estável de pontos
curvas quânticas e buracos negros como de venda e de dois canais de distribuição: livrarias/outros numa das
(hipermercados e supermercados). Esta monitorização
no Universo que não sabemos como é feita semanalmente, após a recolha da informação suas visitas
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
apreender. /SARA FIGUEIREDO COSTA A cobertura estimada do total do mercado é de 80% a Portugal

E 61
Ci
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Recordações
da casa
dos mortos
A sexta longa-metragem de Mathieu
A
o longo dos últimos 20 Se começamos este texto com
anos, Mathieu Amalric uma referência ao trabalho de
Amalric instala-nos na fronteira entre afirmou-se como um dos Amalric enquanto ator, é porque ele
mais singulares atores franceses estabelece uma invulgar linha de
o real e o imaginário para decifrar os da sua geração. O que o distingue continuidade com o seu trabalho
segredos de uma personagem torturada. é uma série de inimitáveis traços
físicos (os olhos esbugalhados, o
enquanto cineasta. De facto, desde
1997 (o ano da estreia de “Mange
“Abraça-me com Força” chegou às salas sorriso rasgado…), mas sobretudo a Ta Soupe”), as obras realizadas por
sua rara capacidade de dar corpo a Amalric têm vindo, de um modo
TEXTO VASCO BAPTISTA MARQUES personagens em desequilíbrio que, cada vez mais vincado, a debruçar-
muitas vezes, partem em busca se sobre personagens instáveis
de si próprias — apenas para se que parecem viver numa terra de
descobrirem perdidas no interior dos ninguém situada algures entre a
seus labirintos. Exemplo máximo realidade e a ficção.
disso mesmo são, sem dúvida, os Trata-se de uma fixação temática
filmes em que Amalric se colocou, que, no seu último filme — “Barbara”
como alter ego, ao serviço das (2017), um biopic sobre a cantora
investigações autobiográficas de francesa com o mesmo nome —,
Arnaud Desplechin (de “Comment Je contaminava já a própria estrutura
Me Suis Disputée…”, de 1996, a “Os da narrativa, que se fazia permeável
Fantasmas de Ismael”, de 2017). à sobreposição de diferentes níveis

E 62
Daqui em diante, o filme seguirá em
montagem paralela entre a descrição
O trabalho de
da fuga de Clarisse (elipticamente Amalric enquanto
narrada por via da justaposição de um
conjunto de fragmentos desconexos)
ator estabelece
e a descrição do quotidiano da sua uma invulgar linha
família, que vai comentando a sua
ausência como se ela tivesse partido de continuidade
há muito e fosse certo que jamais
voltará. A realização de Amalric
com o seu trabalho
põe-nos então na senda de uma falsa enquanto cineasta.
pista de leitura (a que insinua que
a protagonista teria abandonado a
Desde meados dos
família), ao mesmo tempo que sugere anos 90 que nos
a sua falsidade: ficamos, desde o
começo, com a nítida sensação de que mostra personagens
a narrativa omite uma informação
fundamental. Mais: pressentimos
instáveis, entre a
que é precisamente essa ‘verdade realidade e a ficção
sonegada’ que, de alguma forma,
justifica a estrutura líquida e porosa
de um filme que vai procedendo linhas com que a sua ficção se
por meio da montagem sequencial cose, os ‘exercícios de hibridação’
de cenas que parecem pertencer a que ele promove tornam-se menos
tempos muito diferentes. estimulantes. Desde logo, porque o
Veja-se, por exemplo, como espectador se sente então chegado
passamos num ápice da cena em a uma terra que, não sendo embora
que Clarisse pára numa estação firme, foi já cartografada por um
de serviço para verificar o nível de cineasta como Alain Resnais:
óleo do carro, para uma cena que aquela onde o cinema se faz
dá a entender que ela trabalha há cúmplice da dolorosa tentativa de
muito como guia turística numa sublimação de um trauma. Outro
aldeola à beira-mar. Além disso, é problema é o que diz respeito à
difícil descortinar qualquer nexo desproporção entre a complexidade
(crono)lógico entre as vinhetas que do dispositivo (assente numa
detalham a deriva de Clarisse e as montagem paralela que faz
que relatam os afazeres dos seus comunicar diferentes tempos e
parentes (as aulas de piano da filha, estratos ontológicos) e aquilo que
as idas do marido à fábrica onde dele resulta.
É em montagem paralela que se descreve a trabalha…). Cria-se, portanto, um Com efeito, salvo um par
fuga de Clarisse (Vicky Krieps) e o quotidiano tempo excêntrico onde os planos de sequências que tornam
da sua família. Comentam a sua ausência se ligam por força das ressonâncias absolutamente permeável a
como se tivesse partido há muito afetivas que vão estabelecendo fronteira entre a realidade e a ficção
entre si, de acordo com uma lei que, — como aquela em que Clarisse
apesar de desconhecida, constitui se infiltra em voz off na vida
um mundo que é emocionalmente imaginária da família, para pedir
coerente. ao fantasma do marido que dispa a
de representação para baralhar o essas que ela depressa empilhará É preciso esperar que o filme chegue a sua t-shirt —, a segunda metade do
verdadeiro e o falso. É também por num gesto de raiva, atendendo à sua meio para que Amalric divulgue, por filme parece estar mais preocupada
esse caminho que se aventura a incapacidade de se lembrar da ordem fim, o segredo da sua montagem. A com a reiteração da inteligência de
sexta longa de Amalric (“Abraça-me que lhes deu. sequência que opera essa revelação é um esquema narrativo do que com
com Força”), que, como “Barbara”, Como mais tarde perceberemos, aquela em que Clarisse recorda as férias o estudo da psique da protagonista.
procura estreitar ao mínimo os laços este plano de abertura comporta de inverno que passou com a família Ainda assim, pelo arrojo e
que cria entre a forma e o tema, consigo a chave de leitura cifrada numa estância de montanha. Através sensibilidade de que faz prova, este
o drama da sua personagem e o de uma ficção que, de início, se dessa evocação, ficamos a saber que melodrama em forma de puzzle
dispositivo que o enuncia. destaca pela maneira como ‘faz o marido e os filhos morreram em é um claro passo em frente para
O esqueleto do filme é composto mistério’ acerca da lógica que rege consequência de uma avalanche que Amalric, depois desse complexo
pela adaptação de uma peça teatral a articulação das suas sequências e ainda não permitiu recuperar os seus malogro chamado “Barbara”. b
da francesa Claudine Galea (“Je os movimentos da sua personagem. corpos. Percebemos, pois, o que temos
Reviens de Loin”), que, tendo embora Na verdade, logo a seguir — e sem pela frente: a articulação em imagens
sido publicada em 2003, nunca que nenhuma explicação para isso da psicologia torturada de uma mulher
fora encenada. No seu centro está nos seja dada —, Clarisse fará as que, na tentativa de manter vivos
Clarisse: uma mulher na casa dos 40 malas à pressa para, munida delas, aqueles que perdeu, se agarra agora QQQ
(interpretada por Vicky Krieps) que, se lançar à estrada, deixando para às recordações e fantasias onde eles ABRAÇA-ME COM FORÇA
no primeiro plano, encontraremos trás a casa onde dorme o seu marido podem ainda existir. De Mathieu Amalric
a jogar à memória com um molho (Arieh Worthalter) e os seus dois Infelizmente, assim que o filme nos Com Vicky Krieps, Arieh Worthalter,
de polaroides viradas ao contrário filhos ainda pequenos (Anne-Sophie entrega a chave que abre os seus Anne-Sophie Bowen-Chatet (França)
em cima de uma mesa — polaroides Bowen-Chatet e Sacha Ardilly). mistérios, assim que ele expõe as Drama M/14

E 63
Recordar é viver?
N
a base do novo Muccino nostálgico que a maioria das cenas Quem habita esse tempo paradoxal
parece ter estado o desejo de parece ter sido expressamente são personagens que, uma vez
fazer um remake encapotado encenada para figurar num álbum chegadas à idade adulta, se verão
de um célebre filme de Ettore Scola: de fotografias. agrilhoadas a tipos psicológicos
“Tão Amigos Que Nós Éramos” Tudo se passa como se (o intelectual sensível, a rapariga
QQ
(1974). De facto, as semelhanças estivéssemos a assistir a um problemática) e a dilemas de SEIS MINUTOS
entre as duas obras são tantas (há desfile de recordações a priori, fotonovela. Junto dos seus corpos, PARA A MEIA-NOITE
sequências inteiras que foram isto é, a uma série de episódios o filme nunca se demora: o que lhe De Andy Goddard
simplesmente decalcadas) que o biográficos que trazem já consigo interessa é ir acumulando momentos Com Eddie Izzard, Judi Dench,
espectador depressa percebe que o as marcas — bem visíveis — de de rutura (um casamento, uma Carla Juri (Reino Unido)
Drama, Thriller M/12
efeito de pastiche só pode ter sido um passado que se evoca. São traição, um divórcio), para poder
intencional. Entre essas parecenças, inúmeros os elementos que passar tão depressa quanto possível ESTREIA No Verão de 1939, um homem
salta à vista a que diz respeito às concorrem para essa ‘sensação de de uma peripécia para a seguinte candidata-se a um lugar de profes-
narrativas: trata-se, em ambos pretérito’: desde o tom crepuscular — raramente se permite que as sor no Augusta Victoria College, em
os casos, de contar a história da da luz até ao modo como as personagens respirem, o que nos Bexhill-on-Sea, uma pequena cidade
maturação de um grupo de amigos, personagens desempenham impede de nos tornarmos íntimos inglesa, costeira, como o nome indi-
detalhando os seus sucessos e funções narrativas, interrompendo delas. Além disso, Muccino mostra- ca. Ele vem substituir outro professor,
reveses ao longo do período que vai a ação para a comentar de frente se incapaz de articular os trajetos desaparecido dias antes, porventura
da adolescência à meia-idade, e para a câmara. Estamos perante das figuras que filma com a história assassinado, sabe o espectador de
aproveitando o ensejo para tomar o um aparato formal e narrativo sociopolítica que vão atravessando. “Seis Minutos para a Meia-noite” desde
pulso à sociedade italiana da época. que, impondo uma espécie de Com efeito, a passagem do tempo vai a sequência de abertura. O Augusta
Nesse âmbito, a única coisa que retrospeção permanente, nos sendo marcada pela referência a um Victoria não é apenas uma das mui-
muda é mesmo a época, com o impede de encarar o drama como conjunto de grandes acontecimentos tas instituições de ensino privado do
filme de Muccino a arrancar em uma coisa vivida: a sensação (o 11/9) que são irrelevantes para Reino Unido. É uma escola destinada a
1982, para mergulhar na vida com que se fica é a de que ele só as personagens, motivando da sua receber alunas da alta sociedade alemã
familiar e sentimental de quatro existe num passado que nunca foi parte pouco mais do que um par de que ali obtêm um certificado Cambrid-
colegas de um liceu romano (três presente. frases de circunstância: é como se o ge que atesta competências na língua
rapazes e uma rapariga) que vão seu tempo histórico fosse apenas um inglesa, o que, na segunda metade da
crescendo juntos sem sobressaltos bibelô, que aqui é usado para dar um década de 30, significa quase sempre
de maior. De início, o que mais mínimo de cor local às suas vidas. que são filhas de altos-dignatários
cativa a atenção da câmara é a Por todas estas razões, o resultado nazis. Aliás, o emblema da instituição,
possibilidade de coreografar o Q é tão original e estimulante como pondo lado a lado a bandeira alemã, a
romance (ora demasiado genérico, ÀS COISAS QUE aquela banda de covers que, às Union Flag britânica e a cruz suástica,
ora hiperdramatizado) que nasce NOS FAZEM FELIZES tantas, aparece no casamento de um não deixa nenhuma dúvida quanto ao
entre a rapariga e um dos rapazes. De Gabriele Muccino dos amigos, para tocar uma versão caráCter da escola. Depressa sabere-
Quanto à nossa atenção, essa, fica Com Kim Rossi Stuart, Micaela Ramazzotti, do ‘Don’t You (Forget About Me)’, mos que o novo professor é, como o seu
desde logo grudada ao look postiço Pierfrancesco Favino (Itália) dos Simple Minds. Para esquecer. antecessor, um agente secreto inglês
do filme, que se quer a tal ponto Drama M/14 /VASCO BAPTISTA MARQUES que tenta descobrir quais as inten-
ções alemãs quanto às alunas — que o
governo de Londres quer aprisionar em
caso de guerra que parece iminente —
suspeitando ainda de que o colégio é
fachada para uma rede de espionagem.
A história que o filme conta é rocambo-
lesca e não muito bem arquitetada (o
ator protagonista, Eddie Izzard, é assaz
desadequado ao perfil do personagem
e às ações que desenvolve, algo que
ele mesmo ajudou a delinear enquanto
argumentista). E há inconsistências no
seu desfecho, mormente quando reser-
va os ódios do espectador diretamente
para os espiões alemães (que, finalmen-
te, existem mesmo), em vez de deixar
medrar a inquietude quanto à perversi-
dade intrínseca do Augusta Victoria e
dos valores ali celebrados. Mas o filme
tem o mérito de revelar ao espectador
aquele colégio que existiu de facto,
embora o seu termo tenha sido bem
diverso do que, no filme, se fantasia. A
suástica e a Union Flag irmanadas? Sim,
Aqui, e à semelhança de Ettore Scola em “Tão Amigos Que Nós Éramos”, Muccino conta a história da maturação de um grupo de amigos aconteceu. / JORGE LEITÃO RAMOS

E 64
Q QQQ E ainda... CORREU TUDO BEM
O PERDÃO A TÁVOLA De François Ozon
De Maryam Moghadam DE ROCHA Filme da Seleção Oficial do Festival
e Behtash Sanaeeha De Samuel G. Barbosa de Cannes deste ano, em compe-
Com Maryam Moghadam, Alireza Sani Far, (Portugal) DEPOIS DO MEDO tição, centra-se num homem idoso
Avin Poor Raoufi (Irão/França) Documentário M/12 De Bruno Nogueira — hospitalizado após um derrame
Drama M/14
Depois de uma década sem espetá- — que pede à filha que esta o ajude
ESTREIA “O Perdão” não perde tempo Este documentário fascinante tem culos de stand-up, Bruno Nogueira a pôr termo à vida. Com Sophie
a dizer ao que vem, arrancando com o condão de fazer justiça a um dos voltou a subir ao palco e a percor- Marceau, André Dussollier, Géraldi-
a visita de uma mulher de meia idade nossos maiores cineastas, Paulo Rocha rer o país com “Depois do Medo”. ne Pailhas e Charlotte Rampling nos
(Mina) à prisão de Teerão onde, nesse (1935–2012), pilar fulcral da moderni- Agora é tempo de a versão filmada principais papéis. Em exibição.
mesmo dia, o marido será executado dade no cinema português. E é de justi- desse espetáculo ser mostrada nos
pelo crime de homicídio. Fica assim ça que se trata, já que a obra do grande cinemas.
definido o tema que comandará a ação: realizador do Porto, autor de “Os Verdes
o da pena de morte no Irão dos nossos Anos” (1963) e “Mudar de Vida” (1966),
dias. Após essa sequência inicial, o filme permanece por vicissitudes várias pou-
inventaria as dificuldades que marcam co conhecidas pela generalidade dos
o quotidiano de Mina numa sociedade espectadores. Samuel G. Barbosa co-
patriarcal. Através de uma realização meçou a trabalhar como assistente de
que privilegia os planos fixos — por produção de Rocha na rodagem de “Va-
norma longos e abertos —, mostra-se nitas”, acompanhou-o depois até ao seu
como a protagonista assegura sozinha derradeiro filme, “Se Eu Fosse Ladrão...
a educação da filha (uma rapariga surda Roubava”. E dá-nos um documentário 355 BEST SELLERS
de sete anos), ao mesmo tempo que muito rico na sua multiplicidade de De Simon Kinberg De Lina Roessler
trabalha numa fábrica e tenta lidar com a registos, capaz de condensar vida e obra Thriller de ação sobre uma agente É uma história de editores e de livros
intrusiva família do seu falecido marido. em hora e meia, recorrendo aos filmes da CIA (Jessica Chastain) obrigada e apresenta o desafio que muitas pe-
Não será preciso esperar muito até que e a arquivos, maioritariamente inéditos, a juntar-se à sua rival (Diane Kruger), quenas empresas de edição enfren-
Mina seja chamada ao tribunal, onde lhe que Rocha deixou em legado à Cine- a uma ex-aliada do MI6 e especi- tam: a salvação do negócio. Agora,
é comunicado que o marido foi, afinal, mateca Portuguesa, bem como a outros alista em informática (Lupita Ny- uma jovem editora (filha do funda-
injustamente condenado à morte. Para que Barbosa foi encontrar no Japão, da- ong’o) e a uma psicóloga (Penélope dor) terá de convencer um antigo
reparar o ‘erro’, as autoridades propor- tados do período em que Rocha viveu, Cruz). Em causa está a recuperação escritor de sucesso — hoje amargo
-lhe-ão uma compensação monetária, filmou e trabalhou naquele país como de uma arma ultrassecreta caída nas e alcoólico — a apresentar o volume
mas Mina exige um pedido formal de adido cultural. A chegada do documen- mãos erradas. Em sala. há muito prometido. Em cartaz.
desculpas (que nunca receberá). É por tário às salas antecipa, aliás, a reposi-
essa altura que lhe bate à porta um ale- ção em sala, anunciada para breve, do
gado amigo do marido, que deseja saldar fabuloso “A Ilha dos Amores”, realizado ESTRELAS DA SEMANA
junto da viúva uma avultada dívida que entre 1978 e 1982 (assim como o com- Jorge Vasco
Francisco
teria contraído com ele. As cenas se- plementar “A Ilha de Moraes”, 1984), em Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
guintes encarregar-se-ão de denunciar torno da vida de Wenceslau de Mora-
a verdadeira identidade desta persona- es, filmado entre Portugal e o Japão, Abraça-me com Força QQQ
gem: trata-se do juiz que foi responsável e que é, tão-só, o filme em que Rocha O Acontecimento QQQQ QQQ
pela condenação do marido de Mina à investiu mais ambição e empenho. Os Às Coisas Que Nos Fazem Felizes Q
morte, e que, devorado pelos remorsos, depoimentos recolhidos são de um valor
Correu Tudo Bem QQ
pretende agora zelar pelo bem-estar afetivo inegável, de Jorge Rocha, irmão
da família do morto (sem nunca dizer de Paulo há muito emigrado no Brasil, a Homem-Aranha: Sem Volta a Casa Q
quem é). Entre as duas personagens três dos mais importantes colaborado- The King’s Man: O Início QQQ
principais cedo nascerá uma relação de res do cineasta: Isabel Ruth, claro, atriz Licorice Pizza QQQQ QQ QQQQ
afeto mútuo, que humaniza o contexto de sete filmes seus (devem uma carreira
opressivo da ação. Infelizmente, o filme um ao outro), Luís Miguel Cintra, ator do Matrix Ressurections Q
não permite que essas duas figuras seminal “Pousada das Chagas”, que de- Não Olhem Para Cima QQ QQ
perdidas se reconciliem, pondo-as antes terminaria toda a obra futura de Rocha, O Perdão Q
ao serviço de uma narrativa que, por via e também Regina Guimarães, argumen-
Seis Minutos Para a Meia-Noite QQ
da história do seu encontro, quer fazer tista, entre outros, de “O Rio do Ouro”. “É
valer uma tese: aquela que é enxertada um filme para o Paulo”, contou Samuel Sem Hora Marcada b
de um modo inorgânico na sequência G. Barbosa, “traz o desejo de provocar A Távola de Rocha QQQ QQQ
final — que, deixando-se reger por uma a revisão e a descoberta da obra dele
Tom Medina QQ
lógica retributiva, se limita a replicar os por espectadores novos. Que se torne
vícios do sistema político que o filme uma mesa-redonda em que todos nos West Side Story QQQ QQQQ QQ
justamente critica. É pena. / V.B.M. juntamos”. / FRANCISCO FERREIRA DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 65
C
omo muitos sabem, Ethan E assim volta pela enésima vez aos à que Orson Welles realizou e
Coen decidiu colocar ecrãs a história do nobre do título, interpretou para a Republic no final
uma pausa na carreira que, instigado por forças demoníacas dos anos 40.
cinematográfica, deixando Joel e apoiado pela sua Lady, assume Enfrentará “A Tragédia de Macbeth”
prosseguir o seu caminho — o trono escocês após assassinar à um problema de base ao qual o
assim entenderam os irmãos de traição o rei que fielmente serviu no próprio filme, sejamos objetivos, é
Minneapolis de sua justiça (até campo de batalha, não sobrevivendo, alheio? A resposta surgirá a todos
ver). O que certamente poucos também ele, à sua própria vilania aqueles que, após o visionamento,
adivinhavam é que o último e sede insaciável de poder nem ao se atreverem a revisitar o filme de
escolhesse, como primeiro passo a remorso que o atormentava. Não Welles. Não estamos a falar de décors,
solo, aquele que é porventura o mais menos surpreendente é que Joel adereços ou figurinos, até porque
desolado ‘banho de sangue’ de toda tenha transformado esta opulenta Joel, a mais de 70 anos de distância,
a literatura anglossaxónica (‘banhos produção num filme a preto e branco trabalhou com meios de produção
de sangue’ são coisas que os Coen, com o formato 4:3 dos clássicos, que Orson não teve. Enquanto o
Coordenação João Miguel Salvador de resto, nunca dispensaram...), exercício que, por mais que se tente novo filme de Joel é esplendoroso
jmsalvador@expresso.impresa.pt nem mais nem menos do que o evitar, nos conduz às mais célebres a nível visual e tira partido dessa
“Macbeth” de Shakespeare. adaptações da peça, nomeadamente aposta — o castelo de Macbeth, por

A loucura
do poder
Joel Coen não escolhe
caminho fácil no seu primeiro
filme a solo e arranca do
“Macbeth” de Shakespeare
uma versão em que o estilo Frances McDormand
vence a alma — mas a interpreta Lady Macbeth,
numa versão não tão sombria
audácia merece ser vista. quanto se esperava

Uma estreia da Apple TV+


TEXTO FRANCISCO FERREIRA

E 66
exemplo, surge-nos agora como

E ainda...
um imponente edifício modernista
rodeado de planícies desoladas —, a
produção da Republic escondia como
podia o seu paupérrimo orçamento
em jogos fabulosos de luz, névoa e
sombra, coisas de série B.
Não estamos igualmente a falar de
interpretações, porque “A Tragédia FANTASY ISLAND
de Macbeth” está quanto a isso
QQQ QQQQ De Gene Levitt
superiormente servido (ao passo CAUSA PRÓPRIA DEATH TO 2021 AXN White, segundas, 21h25
De Edgar Medina e Rui Cardoso Martins De Ben Caudell (Temporada 1)
que na obra de Welles nenhum
outro ator estava à sua altura): Com Margarida Vila-Nova, Nuno Lopes, Com Hugh Grant, Joe Keery, Reboot da série “A Ilha da Fantasia”
Frances McDormand não é uma Ivo Canelas, Catarina Wallenstein Lucy Liu, Diane Morgan estreada nos anos 70, centra-se
Lady Macbeth tão sombria quanto se RTP 1, quartas, 21h; RTP Play, em streaming Netflix, em streaming agora numa apresentadora de TV,
(Temporada 1)
esperava mas tem talento que baste que depois de uma humilhação
para passar o teste com distinção, A produção de séries portuguesas está É a segunda vez que o serviço de strea- pública decide fazer um retiro.
Kathryn Hunter é incrível a dar em incremento quantitativamente ming nos brinda com um pseudocumen-
corpo ao pesadelo das três feiticeiras notável. E como a quantidade favorece tário sobre o ano que passou — e a ideia
que anunciam a desgraça, Bertie a diversidade e torna mais provável a não podia vir de outras mentes. Charlie
Carvel e Corey Hawkins servem erupção da qualidade, é com agrado Brooker e Annabel Jones, responsáveis
respetivamente Banquo e Macduff que se assiste ao trilhar de caminhos por “Black Mirror”, foram os criadores do
com inegável consistência. Dir-se-á mais seguros que permitem, também, formato que promete continuar a mos-
com acerto que Denzel Washington que se assumam riscos formais. Dois trar o que fica do que passou. E, como
não é, de facto, o grande ator anos depois de “Sul”, a Arquipélago Fil- se percebe ao longo de uma hora neste
shakespeariano que Orson Welles mes volta a propor uma ficção que ousa especial televisivo, este ano pandémico SUPERSTORE
foi, mas Denzel tem a voz bestial e descarrilar do ramerrame audiovisual também foi rico em acontecimentos De Justin Spitzer
FOX Comedy, estreia segunda, 20h
o carisma que todos sabemos, o seu sem cometer tresvarios que afastem o (mesmo que com vários confinamen-
(Temporada 6)
Macbeth é digníssimo de ser visto. grande público (afinal de contas, “Causa tos). É certo que a receita é simples, aqui
Não, o problema de “A Tragédia de Própria” é uma série para o horário no- juntam-se imagens de arquivo docu- Última temporada da série cómica
Macbeth” é de outra ordem, pois bre da RTP). Na base está um caso po- mental com sketches ficcionais prota- sobre o quotidiano de um grupo de
mais do que uma vez se sentiu licial: um jovem do liceu é assassinado gonizados por nomes fortes da televisão empregados da Cloud 9, com Ame-
que as imagens superestilizadas no parque central de uma não identifi- e do cinema, mas o resultado dificilmen- rica Ferrera (a eterna Betty Feia) no
de Bruno Delbonnel tendem cada pequena cidade de província. Os te poderia ser melhor. Das mudanças papel de Amy.
a sobrepor-se e até a ofuscar indícios recolhidos apontam para um na família real britânica (entrevista de
as palavras — nem sempre caso de bullying homofóbico levado a Harry e Meghan a Oprah incluída) à cor-
isso acontece, mas quando cabo por três outros jovens. A narrativa rida multimilionária ao espaço, passando
acontece incomoda. O espaço centra-se em dois polos: de um lado a pelas temperaturas recorde no Cana-
cinematográfico é de tal forma juíza Ana (Margarida Vila-Nova), mãe dá e pelas inundações na Alemanha,
ambicioso que ganha o primeiro de dois filhos colegas de liceu da vítima; poucos terão sido os grandes temas a
plano, e, com isso, o que sai de outro os inspetores (Nuno Lopes e escapar à equipa do argumentista Ben
comprometida é a capacidade Catarina Wallenstein) que investigam Caudell — que também abordou a inva-
fantástica da imaginação, o próprio o caso. Nó górdio da questão: David são do Capitólio, a saída do Afeganistão
delírio febril tão necessário, afinal, (Afonso Laginha), filho da juíza, não (“uma submissão bem sucedida”), o EUPHORIA
à definição do herói egocêntrico, esteve em casa durante a noite do acordo AUKUS, a estreia do novo James De Sam Levinson
HBO Portugal, em streaming
maníaco e por fim desesperado crime, mente em tribunal, paira a dúvida Bond e a Cop26, sem esquecer as falhas
(Temporada 2)
desta tragédia — algo que Welles sobre se teve alguma coisa a ver com o nas redes sociais e a mudança do grupo
recriava exemplarmente. ocorrido. Mas o problema central que do Facebook para Meta. A realidade é Zendaya regressa a Rue, o seu pri-
Não se perde um filme com isso, de a série aborda é o vivido pela mãe que aqui comentada por personagens-tipo meiro grande papel na idade adulta,
todo, nem o Bardo sai desonrado da devota a vida à aplicação da justiça como um homem posh britânico de e à cidade de East Highland. Após a
empreitada. Aliás, se a questão for quando as suspeitas se aproximam de mente conservadora, uma americana overdose, é tempo de reconstrução.
ponderada, “A Tragédia de Macbeth” alguém que ama de modo incondicio- negacionista apoiante de Trump e fã de Mas não será fácil.
bate à distância qualquer adaptação nal. Conta mais o amor ou a consciência teorias da conspiração, uma pivô pouco
recente de Shakespeare ao cinema, moral? A escrita de “Causa Própria”, imparcial que “apenas faz as questões”
honra lhe seja feita. Acontece que autoria de Edgar Medina e Rui Cardoso ou uma jornalista da velha guarda que
houve no passado quem fizesse Martins, sopesa, genericamente com não quer ser cancelada (mas que acaba
melhor com muito menos. E esta é acerto, quer o mistério quer o dilema da por fazer os melhores comentários so-
seguramente a diferença que separa a protagonista, num ritmo narrativo que bre a realidade). A estes junta-se ainda
competência do génio. b nos impele sempre para diante e onde um investigador de novas variantes da
as derivações ao fio central, com outros covid, que se questiona sobre o porquê
pequenos casos de polícia em julga- de as televisões colocarem músicas CRISIS
mento, contribuem para a consistência dramáticas sobre as suas entrevistas. De Nicholas Jareckis
TVCine Top, domingo, 21h30
do conjunto. Os atores sustentam os “Make american germs again”, ouve-
A TRAGÉDIA DE MACBETH personagens com densidade bastante. -se de um lado. “As teorias absurdas são Longa-metragem em estreia, sem
De Joel Coen A ‘máscara’ de Catarina Wallenstein é epidémicas”, escuta-se do outro. “Death passar pelos cinemas, apresenta-
Com Denzel Washington, Frances um primor, pena que o espúrio perso- to 2021” está cheio de frases que ficam -nos um conjunto de histórias autó-
McDormand, Alex Hassell (EUA) nagem de Maria Rueff a torne um erro no ouvido. A recolha para 2022 já co- nomas com o ponto em comum: a
Apple TV+, em streaming de casting. / JORGE LEITÃO RAMOS meçou. / JOÃO MIGUEL SALVADOR epidemia de opióides nos EUA.

E 67
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

Charlyn Marie Marshall


celebra 50 anos dentro
de uma semana. “Covers”
é o seu 11º álbum

E 68
É sempre a canção
Cat Power começa o ano com o seu terceiro álbum de versões.
Canta originais de Nick Cave, Lana Del Rey ou Iggy Pop como se fossem seus
TEXTO LIA PEREIRA

J
á lá vão quatro verões desde “Covers”, não surge uma versão um círculo de amigos dizimado pelo cantora Kitty Wells (1919-2012), com
que, na edição de 2017 do tão desconstruída como aquela que vício e pela sida; na ‘Grande Maçã’ ‘It Wasn’t God Who Made Honky
Festival Paredes de Coura, os abre “The Covers Record” — será encontrou um meio atento à música Tonk Angels’) são outros destaques
espectadores foram surpreendidos possível ouvir a leitura de Cat Power experimental que a incentivou a deste mosaico de Cat Power, que
por uma das atuações mais para ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’ explorar a sua criatividade. Mas os quis ainda recordar os tempos em
singulares que passaram alguma sem perceber, de imediato, que é fantasmas continuaram por perto, que gastava o último dólar para pôr
vez por palcos portugueses. A noite o clássico dos Rolling Stones que só se tendo dissipado em meados a tocar, na jukebox de um bar em
ia longa quando, na jornada inicial ali se encontra a ser esventrado. dos anos 2000. “O amor da minha Nova Iorque, ‘Here Comes a Regular’,
do evento minhoto, subiu ao palco Mas, mais uma vez, a seleção de vida era esquizofrénico e tornou-se dos seus adorados Replacements.
Kate Tempest. Acompanhada de canções é pessoalíssima (incluindo viciado. Foi aí que decidi tornar-me Quanto à versão de ‘Hate’, canção
histórias e personagens saídas da até um tema da própria artista) alcoólica”, explica à revista “Mojo”. da sua lavra, inicialmente incluída
sua mente brilhante, mas para as e as transformações revelam-se “Ele estava sempre a entrar e a sair em “The Greatest”, a mudança de
quais facilmente encontramos ocasionalmente surpreendentes. da prisão e do hospital psiquiátrico, título para ‘Unhate’, diz muito sobre
correspondência na vida dita real, Para Cat Power, cantar uma canção e eu a vê-lo desintegrar-se. Nessa a nova forma de olhar para a vida
a artista — que em 2020 se assumiu escrita ou popularizada por outrem dor, fiz um pacto comigo mesma: de Miss Marshall. “Todos temos
como pessoa não-binária — intrigou não impede que a ligação à mesma ‘Vou viver numa garrafa.’ E foi o dias maus”, diz agora, à laia de
a plateia com uma espécie de livro seja íntima. “Quando vi o [Bob] que aconteceu até à semana em justificação. “Todos temos traumas.
falado, que entrecortava com o Dylan ao vivo, reparei que em cada que o ‘The Greatest’ saiu”, recorda, E há alturas em que nos sentimos
‘sinal horário’: “It’s 4.18 am”. No mencionando o seu álbum de 2006. assim. Mas precisava de corrigir isso.”
universo de “Let Them Eat Chaos”, Em 2022, Chan Marshall vive com o Nas restantes duas canções, ‘Pa Pa
álbum que Kate Tempest (agora, A vivência de filho, Boaz, de seis anos, em Miami Power’, dos Dead Man’s Bones, que
Kae Tempest) então apresentava, (tendo recentemente afirmado no podia ter sido escrita por Cat Power,
eram sempre 4h18 da madrugada,
Cat Power já não podcast de Marc Maron, “WTF”, e na cristalina versão de ‘These
hora a que uma multitude de figuras é em carne viva, que gostaria de se mudar. Portugal Days’, criada por Jackson Browne e
enfrentava os seus demónios de surge como uma das opções, ao gravada originalmente por Nico em
estimação. No universo de Cat mas continua lado da Dinamarca e da Sicília). 1967, uma das grandes intérpretes da
Power, nascida Chan Marshall há 50
anos em Atlanta, no estado norte-
a pressentir-se A sua vivência já não é em carne
viva, como a que lhe inspirou os
sua geração faz aquilo que diz que a
acompanha desde cedo: cantar, com
americano da Georgia, o relógio um entendimento primeiros álbuns, mas na forma tudo. “Quando era criança, cantava
deve apontar uma hora semelhante. como interpreta as canções dos para cima e para baixo, de pernas
Mesmo quando se apresenta como
profundo das outros continua a pressentir-se para o ar, do avesso”, ilustrou ao
uma figura mais solar, como no trevas alheias um entendimento profundo das “Stereogum”. E mesmo que, na sua
disco eletrónico “Sun”, de 2012, a trevas alheias. Em “Covers”, alinha voz de lusco-fusco, passe sempre
cantora-compositora busca e disseca canções de ‘dinossauros’ como Nick da meia-noite, a luz está lá. Afinal,
as sombras como poucos. Isto não concerto ele apresentava versões Cave (‘I Had a Dream Joe’) e Iggy como escreveu Clarice Lispector:
significa que a sua obra — e com diferentes dos seus temas”, disse ao Pop (‘Endless Sea’), mas também “São quatro horas da madrugada e é
“Wanderer”, de 2018, já lá vão dez site “Stereogum”, referindo-se a um das jovens estrelas Frank Ocean uma hora tão bela que todo o mundo
álbuns de originais — seja desprovida dos seus grandes heróis. “E quem (cantando ‘Bad Religion’, cuja letra que estiver acordado está de algum
de esperança, pelo contrário. tem aulas de guitarra... a primeira confessional assenta-lhe como modo rezando.” b
Da sua voz lânguida emana um coisa que vai tocar é Guns N’ Roses uma luva) e Lana Del Rey (‘White lipereira@blitz.impresa.pt
calor palpável, como se, talvez ou a ‘Stairway To Heaven’ [dos Led Mustang’), a quem quis agradecer
devido ao seu trajeto turbulento, Zeppelin]. Ou AC/DC. As pessoas pelo convite para acompanhá-la
conseguisse ver o que os outros vão e vêm, as versões vão e vêm, numa digressão pela Europa, numa
viveram, transportando-o para as mas as canções são nossas, porque altura em que passava por momentos
suas interpretações, que assim se se tornam parte das nossas histórias de penúria financeira e desnorte.
quedam mais perto do conceito individuais.” Talvez as versões mais peculiares
de ‘encarnações’. Esta facilidade Depois de uma infância complicada sejam, porém, as dos Pogues (‘A
em entrar em pele alheia torna-a (que, segundo a própria, incluiu 13 Pair of Brown Eyes’) e de Bob Seger
especialmente apta para cantar escolas no espaço de dez anos) e de (‘Against the Wind’) — nestas
versões, e “Covers”, agora lançado, uma juventude a condizer, Chan canções, joviais à superfície, Chan
MARIO SORRENTI

é já o terceiro álbum nesse registo, Marshall tornou-se a primeira pessoa Marshall escava todo um negrume, QQQQ
depois de “The Covers Record”, de da sua família a deixar o sul dos tão comovente como justificado. Duas COVERS
2000, e “Jukebox”, em 2008. Estados Unidos, procurando refúgio lendas da música americana (Billie Cat Power
Na dúzia de temas reunidos em em Nova Iorque. Para trás deixara Holiday, em ‘I’ll Be Seeing You’, e a Domino

E 69
O som
do eterno
QQQQ
retorno TONEBEDS FOR POETRY
Stick In The Wheel
From Here Records

J
á se sabe que Kanye West só
ouve o que Kanye West quer
— ou precisa... — de ouvir. Na Deveremos estar eternamen-
belíssima ‘Answers Me’, canção te gratos a Leo Allatius, erudito,
número 3 no alinhamento da teólogo e bibliotecário do Vaticano
obra-prima “World of Echo” do século XVII, não apenas por ter
do cantautor e violoncelista sido pioneiro na investigação do
Arthur Russell (1951-1992), na trepidante tema dos vampiros como,
poética abstração de “Baby lion em particular, por haver finalmente
goes/ where the islands go”, Mr. esclarecido a dilacerante interro-
West escutou o gancho que lhe gação que atravessou os séculos:
permitiu escrever ‘30 Hours’, tendo Jesus ascendido fisicamen-
talvez o melhor tema de “The Life te aos céus após a ressurreição, o
of Pablo”, o seu álbum de 2016. que teria acontecido ao santíssimo
Por via de mágica ou alquímica Trinta anos após prepúcio, circuncidado no seu 8º dia
repetição, o sussurro contraído e a morte de Arthur de vida, de acordo com a tradição

AUDIKA RECORDS
depois amplificado das palavras Russell, o regresso judaica? Em “De Praeputio Domini
“where the islands” transforma- à obra-prima Nostri Jesu Christi Diatriba”, Allatius
se em “thirty hours” na cabeça “World of Echo” tudo desvendaria: tal como o seu le-
e depois na performance de gítimo proprietário, também o divino
Kanye West, o que é, simbólica e prepúcio se elevara ao firmamento,
praticamente, uma profunda vénia descatalogado durante décadas. Sound, com Russell a assumir a constituindo, a partir daí, aquilo
à música do artista desaparecido Sucessivos relançamentos voz, o violoncelo, leves percussões que conhecemos como os anéis de
há 30 anos: é que no eco das trouxeram o disco até ao presente, e, sobretudo, a imersão emocional Saturno. Curiosamente, escutan-
desoladas canções de Russell foi com a Audika e a Rough Trade no mesmo eco que expandia o do “Tonebeds for Poetry”, é muito
sempre possível escutar o que a terem o ano passado assinado dramático impacto das versões dub tentador imaginar que algo muito
a nossa própria vida dita que um acordo para manterem estas de temas disco sound assinadas semelhante poderá ter aconteci-
precisamos de ouvir em cada preciosidades nos escaparates. por gente como François Kevorkian do a Nicola Kearey e Ian Carter, o
momento. Com “World of Echo”, reeditado e tocadas nas madrugadas do duo britânico que dá pelo nome de
E isso é especialmente verdade em dezembro último, à cabeça. Paradise Garage, de que o autor Stick In The Wheel. Se, há seis anos,
em relação a “World of Echo”, Gravado no Battery Sound, estúdio de “World of Echo” era assíduo a propósito do álbum de estreia,
talvez o mais reconhecido que pertencia a um endinheirado frequentador. “From Here”, era inteiramente
trabalho do artista nascido em Mark Freedman (habituado De facto, o espaço sónico criado legítimo descrever a sua música
Oskaloosa, Iowa, em 1951. Editado a trabalhar com figuras da através de efeitos e domado na como “crua, abrasiva, no nonsen-
originalmente pela pequena vanguarda nova-iorquina como mesa de mistura, tal como definido se, proletária e encardida, com a
indie americana Upside Records Peter Gordon, Peter Zummo ou por génios jamaicanos como alma dos Watersons e faca punk
em 1986, aquele que foi o único David Van Tieghem) e que estava King Tubby ou Lee Perry, por na liga”, “Hold Fast” (2020), “rude e
álbum a solo gravado, organizado instalado numa penthouse com um lado, e a estática submissão sofisticado, eletrónico e artesanal”,
e lançado por Arthur Russell vista para o World Trade Center, ao ritmo enunciada pelo disco, assinalava o instante em que “a raiz
em vida mereceu logo em 1987 “World of Echo” foi em parte transformado em progressiva tradicional, a História, a literatura
nova exposição através da sua financiado pela Experimental banda sonora da comunidade gay popular e o remoinho da(s) folk(s) se
inclusão no catálogo da britânica Intermedia Foundation de que e negra de Nova Iorque nas mãos embrenham na modernidade e re-
Rough Trade, beneficiando assim fazia parte Phill Niblock, que assim de DJ evangelizadores como Larry nascem mais uma vez”. A ascensão
do contexto de um catálogo ganhou um crédito de produção Levan, por outro, são as grandes que aí se iniciava conclui-se agora,
que no mesmo ano acolheu no disco. Mas, na verdade, este balizas estéticas que enquadram algures entre os milhares de anéis
entradas assinadas pelos Smiths, conjunto de espectrais canções o ADN de “World of Echo”. Este de Saturno e um qualquer exopla-
Opal, Youssou N’Dour, Thomas nasceu de solitárias e noturnas é um álbum que soa como se lhe neta onde se desfibra a memória das
Mapfumo, Shelleyan Orphan, explorações da abundante tivessem sido subtraídos quase origens, a pura abstração sonora é
The Woodentops ou, entre tecnologia existente no Battery todos os elementos instrumentais rasgada por interferências — pulsa-
vários outros nomes, My Bloody para depois ser gravado de ções oriundas do ‘Tottenham Hale
Valentine. O selo Audika, criado madrugada no meio de um Monolith’, vozes autotuned trope-
para gerir postumamente o vasto Guggenheim vazio, tamanha a çando em estilhaços de Sonic Youth,
acervo de gravações deixado QQQQ cúpula de reverberação que parece ficheiros midi de 1600 vaporizados
por Russell, relançou depois o WORLD envolver a voz e o violoncelo em jogos de vídeo — e o exato
trabalho em 2005, devolvendo OF ECHO de Russell. É nesse mundo de ponto onde tudo começou ficou
à contemporaneidade um Arthur Russell eco que resiste um universo de para sempre perdido. Sem regresso
trabalho de culto injustamente Audika/Rough Trade maravilhamento. / RUI MIGUEL ABREU possível. / JOÃO LISBOA

E 70
E ainda...

QQQQQ
SKYLINE
Gonzalo Rubalcaba, Jack DeJohnette,
Ron Carter
5Passion Records
RUI REININHO
Conheceram-se nos idos dos anos Lux, Lisboa, quinta, 22h30
90, com a chegada de Gonzalo O concerto de apresentação de “20.000 Éguas Submarinas”,
Rubalcaba, cubano radicado na segundo e mais recente disco a solo de Rui Reininho, dos GNR,
República Dominicana, a Miami. no Lux, chegou a estar marcado para o início de dezembro, mas
Passados quase 30 anos e já com foi adiado para a próxima quinta-feira. Consigo em palco, estarão
vários encontros gravados em Paulo Borges nos sintetizadores, Alexandre Soares na guitarra,
disco, foi o pianista quem deu a Pedro Oliveira na percussão e Julius Gabriel nos sopros.
ordem para reunir. Jack DeJohnette
para a bateria, Ron Carter para o
baixo, Rubalcaba ao piano, numa
conversa a três a fazer lembrar os
clássicos trios de jazz, cada um com
o seu arsenal e de mente aberta
para qualquer improviso que do
encontro possa surgir. É um desses
momentos, ‘RonJackRuba’, que
encerra o disco, e até lá a viagem
é das mais prazenteiras do jazz
gravado no ano passado. O arranque
é assegurado pela reinterpretação
de um clássico cubano dos anos 20, CAPICUA
‘Lágrimas Negras’; segue-se ‘Gypsy’, Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada, hoje, 21h
composição de Carter em que é o Ainda com “Madrepérola”, editado em 2020, bem vivo na memó-
baixo a tomar a dianteira, e depois ria, Capicua leva hoje o seu hip-hop de intervenção a Almada. Te-
‘Silver Hollow’ e ‘Promenade’, duas mas como ‘Passiflora’, ‘Gaudí’ ou ‘Planetário’ já marcaram um lugar
composições que demonstram que a de destaque no reportório aguçado da rapper portuense, que na
idade baixou os níveis de exuberância última década desenvolveu também os projetos paralelos Língua
ao piano de Rubalcaba, mas que, em Franca e Mão Verde, dedicado aos fãs mais novos.
contraponto, lhe reforçou a classe.
Gradualmente, ganha forma um
grande disco. Ron e Jack sabem CAROLINA DESLANDES
conservar o seu som e têm a noção da Coliseu de Lisboa, dias 20 e 21, 21h30;
Coliseu do Porto, dias 22 e 23, 21h30
responsabilidade que os seus nomes
carregam, assumindo-se “Skyline” Enquanto não regressa com novo álbum, Carolina Deslandes sobe
não tanto como uma composição aos palcos dos Coliseus para provar, mais uma vez, por que razão
singular mas antes como uma é uma das artistas mais populares do momento. Depois de êxitos
conversa a três. E que três. Ron Carter como ‘A Vida Toda’ ou ‘Avião de Papel’, editou, em 2020, o EP
anda por cá há 84 anos, DeJonhette “Mulher” e, no ano passado, participou no Festival da Canção com
há 79, e ambos, no currículo, exibem o tema ‘Foi Por Um Triz’.
mais do que uma gravação histórica.
Entre muitas outras, Carter toca
em “Somethin’ Else”, o colosso de CONCERTO DE ANO NOVO
Cannoball Aderley, DeJohnette em Orquestra Metropolitana de Lisboa
Auditório Municipal do Fórum Cultural,
“Bitches Brew”, “Jack Johnson” e “On
Seixal, domingo, 17h
the Corner”, discos de Miles Davis.
Na juventude dos 58, Rubalcaba não Composto maioritariamente por
se deixa envergonhar — aparecendo obras de Johann Strauss, o tradici-
em “Flesh on Flesh” de Al Di Meola ou onal Concerto de Ano Novo da Or-
“Rendezvous in New York”, de Chick questra Metropolitana de Lisboa no
Corea — e consuma agora um salto Seixal, que deveria ter tido lugar no
de gigante na hierarquia do jazz. Mais passado dia 9, mas foi adiado para
que promover uma genial conversa, o próximo domingo, contará com
Rubalcaba, sem desperdícios ou direção musical do maestro Pedro
espalhafatos, brilha entre dois Neves e terá como solista principal
gigantes. / FILIPE GARCIA o clarinetista Nuno Silva.

E 71
Coordenação Cristina Margato
cmargato@expresso.impresa.pt

As histórias mitológicas

Mitos
são matéria inextinguível
da criação artística.
Dimítris Dimitriádis é disso

e
um exemplo maior

JORGE GONÇALVES
homens
Nas peças
“O
bstrução” é uma das quatro pequenas peças que que não sois/ dai-me Narciso”, exclama um Amínias
constituem o espetáculo com o mesmo nome. apaixonado, pouco antes da grande reviravolta ontológica
que integram É sobre Narciso e Amínias; ou parte destas duas que a narração vai operar no seu destino. As palavras de
figuras da mitologia antiga. Narciso, aquele que olha Narciso vão dar conta dessa mudança com uma acuidade
o espetáculo para a sua imagem refletida num espelho aquático e vertiginosa: “Não fiz o que dizem que fiz.” Esta clareza
“Obstrução”, nela se afunda para a eternidade; Amínias, o rapaz que
se apaixonou por Narciso e, sendo por ele ignorado, se
discursiva está noutras palavras, as de Sócrates, na peça
com que começa o espetáculo, “Licáon”. Também ele, do
Dimítris Dimitriádis suicidou. Poderia ter sido por esse crime que Narciso foi seio da sua discursividade argumentativa, de uma aparente
punido; mas pode não ser também assim. As histórias crença nas virtudes da linguagem para dizer não apenas
reconfigura para mitológicas e as figuras que as constituem são movíveis, o pensamento mas aquilo que ele, Sócrates, é, vai abrir
os dias de hoje plásticas, metamorfoseiam-se ao sabor de necessidades,
de culturas, consoante os lugares, os tempos, os homens
uma brecha naquilo que as palavras construíram como
imagem de Sócrates. São as palavras dos outros, “outros/
a grande reserva e as mulheres que as mantêm vivas; elas, as histórias falaram no meu/ lugar/ Pronunciei/ palavras de outros”.
e as suas personagens, transformam-se e mantêm-se Sócrates, perante Licáon, vai ser “a própria/ natureza/ que
das histórias idênticas. Alguns dirão que têm uma natureza, ou valor, falava/ nas suas/ palavras”. Vai deixar que o desejo guie o
mitológicas eminentemente funcional; é muito possível; são úteis,
também. São matéria inextinguível da criação artística,
seu olhar para Licáon, “o belo/ jovem/ Licáon/ vinte anos/
acabados de fazer”. Vai entrar em Atenas e vai deixar que o
TEXTO JOÃO CARNEIRO Dimítris Dimitriádis é disso um exemplo maior. Narciso, seu olhar e o seu gesto, não as palavras sobre temperança,
nas suas palavras, é aquele que diz não, que recusa todo sejam veículos do desejo físico, carnal, que sente por
e qualquer outro. “Sou Narciso/ E ele Amínias”, afirma Cármides, ainda que isso desencadeie a fúria dos habitantes
lapidarmente; “É isto que eu sou/ Um não/ Um só não/ da cidade, de Atenas, e abale uma filosofia na qual ele
Não aceito nenhum amor/ De ninguém.” Narciso é aquele mesmo, Sócrates, deixa de se reconhecer.
que é a sua imagem, e é só isso que ele vê. O desejo não É, ainda, de maneira particularmente concisa que Tântalo,
pode assim ser satisfeito; é o preço de não haver nenhum numa das outras peças, recita o sofrimento a que o castigo
outro no mundo, no universo, o preço de ser um “eu” da imobilidade o condena. Tântalo é o que tem sede e
absoluto. Mas o Narciso de Dimitriádis é tão plástico tem fome, vê as águas e vê os frutos, mas apenas colhe
como qualquer outra figura mitológica; faz infletir a o desespero da insatisfação, numa imobilidade que,
história, a sua história; as suas palavras, aquele “eu” que parente da morte, apenas convoca o gelo. E é a morte,
as palavras dizem dele e que ele parece assumir com uma na sua vertente mais evidente, mais avassaladora e mais
retórica tão perfeita, abrem uma fissura, aquela que as inquietante, que, na última peça, recobre o discurso de
palavras também já referiram, a do desejo insatisfeito. Télefo, perante um Aquiles ferido de morte. A perfeição do
E Narciso renasce, recria-se, reinventa-se, quando olha herói não lhe retirou a sua vulnerabilidade. “Télefo” é assim,
para o outro, quando impede o suicídio de Amínias; “Pela e também, um avassalador memento mori, recapitulação
primeira vez/ em vez das águas/ olhei-me/ nos seus melancólica das histórias de deuses, heróis, humanidade.
OBSTRUÇÃO olhos/ Aí/ Vi o meu eu/ Nos seus olhos.” Encenação de Jorge Silva Melo. Interpretação de André
De Dimítris Dimitriádis As palavras são a matéria do artista, tanto como das figuras Loubet, Diogo Freitas, Simon Frankel, Pedro Caeiro e
Teatro da Politécnica, Lisboa, até dia 29 das histórias. “Ah, palavras, ajudai-me… tornai-vos no Pedro Lacerda. b

E 72
e é o resultado mais recente deste uma nova designação: “New Age,

E ainda...
trabalho. A ideia foi criar um espetáculo New Time” passa a “Novas Ações,
a partir de um lugar, que neste caso Novos Tempos”. O tema deste ano é
foram várias ilhas do arquipélago dos “Dar o corpo ao manifesto”. Destaque
Açores. A palavra não deveria ter para “HIP. A Pussy Point of View”, da
um papel preponderante, enquanto coreógrafa e intérprete Piny.
RICARDO REIS

material expressivo, cedendo o lugar


ao discurso das imagens, dos gestos,

VICTOR RORIZ
dos sons. O grupo criativo do Teatro
Meridional deixou que o “espírito do
ILHAS lugar” operasse em cada um dos seus
De Natália Luiza e Miguel Seabra membros e transpôs essas experiências
Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, até dia 23
para um material que, devidamente INSÓNIA
trabalhado dramaturgicamente por De Olga Roriz
CCB, Lisboa, hoje
A vocação para a itinerância é uma das Natália Luiza e organizado cenicamente
características do Teatro Meridional, por Miguel Seabra, criou ocasiões para o Num misto de novo elenco de
que não ser entendida apenas como discurso plástico de Hugo F. Matos, para bailarinos e antigas cumplicidades
uma vocação para levar os espetáculos o discurso sonoro de Fernando Mota e (mantêm-se Catarina Câmara e
a diferentes lugares; trata-se de para o discurso interpretativo, na criação Marta Lobato Faria), resultado de DAS GAVETAS SAEM SONS:
entender a deslocação física como de personagens ou de figuras, dos atores uma audição internacional, Olga
INSTRUMENTO MUSICAL
COLECTIVO
motor da criatividade. A concretização Ana Santos, David Medeiros, Emanuel Roriz revisita em “Insónia” alguns dos
De Sonoscopia
deste tipo de viagem criativa é evidente Arada, Joana de Verona, Miguel Damião seus temas fetiche, como a noite, o
Culturgest, Lisboa, amanhã
no Projecto Províncias, que, desde e Rosinda Costa. A presença do mar, amor, o erotismo, a sensualidade do
2004, apresentou os espetáculos “Para a mutabilidade climática, a força da corpo ou a memória. Um objeto/instrumento musical
Além do Tejo”, “Por Detrás dos Montes”, religião e da fé, a violência da natureza, composto por “42 Gavetas” é o
“Por Causa da Muralha, Nem Sempre assim como o deslumbramento e ponto de partida para uma proposta
Se Consegue Ver a Lua” e “Ca_Minho”, o espanto perante um universo tão NANT — NOVAS AÇÕES, invulgar de teatro, apresentada no
resultado de estadas no Alentejo, em imprevisível como excecional guiaram
NOVOS TEMPOS âmbito da AMOSTRA — mostra-
Teatro Viriato, Viseu, até dia 29
Trás-os-Montes, em Guimarães e no o trabalho de transformação da -plataforma nacional de artes
Minho, respetivamente. “Ilhas” estreou- experiência da viagem em material Na décima edição, o encontro de performativas para a infância e
se em dezembro, em Ponta Delgada, cénico e dramático. / J.C. dança contemporânea NANT ganha juventude, da companhia Caótica.
FOTO: JOÃO MARIANO

ARTE COM CANDIDATURAS ATÉ 17 FEVEREIRO 2022


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e@expresso.impresa.pt

Mais do que uma criação


artística, performance
ou obra de arte, “Terzo
Paradiso” é um modelo
de pensamento

A urgência de outro mundo


“Venere degli
E
m 1967, muitos milhares de portugueses estavam Convento de Jesus, em Setúbal, cidade que acolhe a Rota
prestes a abandonar o país, clandestinamente, rumo Clandestina, não perdeu, por isso, significado ou atualidade.
Stracci”, obra a Paris, onde viveriam em bairros de lata, construídos Ganhou mais camadas de sentidos, num momento em
à pressa, na ânsia de encontrarem um novo mundo. Não que estamos, ou deveríamos estar, mais conscientes, não
de Pistoletto podiam então imaginar a velocidade com que os americanos só das condições de trabalho daqueles que produzem os
que critica trocavam de roupa ou compravam objetos que rapidamente
consideravam inúteis. Mas, 1967 é também o ano em que o
trapos, como também do impacto ambiental que estes têm.
Mas, “Venere degli Stracci” também revela o compromisso
o consumismo, artista italiano Michelangelo Pistoletto (n.1933) demonstra que Pistoletto fez com ele próprio ao pensar numa arte
uma clara perceção da fealdade e dos riscos que essa que não se distancia da vida, que é interventiva e que se
pode ser vista pela sociedade norte-americana de abundância e consumo propõe como agente de construção de um novo mundo, de
representa, ao criar uma obra que critica aquilo que ainda que uma das suas últimas produções, “Terzo Paradiso”, é
primeira vez em não estava ao alcance dos europeus pobres, de que eram um bom exemplo (apresentado em 2012, através de uma
Portugal, 55 anos exemplo os emigrantes portugueses. Exposta agora pela intervenção urbana coletiva, que decorreu em Guimarães,
primeira vez em Portugal, no âmbito da plataforma dedicada na Capital Europeia da Cultura). Mais do que uma criação
após ter sido criada aos processos de criação das artes performativas Rota artística, performance ou obra de arte, “Terzo Paradiso”
Clandestina, de que Renzo Barsotti é programador e curador, é um modelo de pensamento, um movimento para a
TEXTO CRISTINA MARGATO “Venere degli Stracci” (em português, “Vénus de Trapos”) é construção de modos de vida mais equilibrados, que parte
uma das criações mais emblemáticas do trabalho do artista e da representação matemática do infinito e o divide em
da Arte Povera, de que Pistoletto é representante. três círculos consecutivos: dois do mesmo tamanho, e um
Olhando retrospetivamente, “Venere degli Stracci” — maior ao meio, para corresponder a “três paraísos (jardins
composta por estátua clássica de Vénus que sustenta protegidos)”. O primeiro paraíso é o da natureza, o segundo
um monte de trapos — afigura-se como um marco num está do lado oposto ao primeiro e representa o paraíso
caminho que nunca se interrompeu nos 55 anos que se artificial, e o terceiro, colocado ao meio dos outros dois,
seguiram à sua conceção. Com o tempo, o consumismo não é o ponto de reunião e de fusão, em harmonia, dos dois
só cresceu como colonizou cada canto do planeta, poluindo anteriores. Uma espécie de útero, de barriga, capaz de fazer
com os seus trapos, plásticos e objetos inúteis territórios, face aos desafios que enfrentamos a nível global, a que essa
VENERE DEGLI STRACCI oceanos, peixes, animais e seres humanos pobres que, “Venere degli Stracci” não é alheia, enquanto ponte entre o
De Pistoletto sem outra alternativa, trabalham para essa máquina de velho mundo e a urgência de um outro mundo. b
Convento de Jesus, Setúbal, até março produção, a troco de quase nada. A obra, agora exposta no cmargato@expresso.impresa.pt

E 74
E ainda...

DINIS SANTOS
BRUNO LOPES

VI UMA CADELA
MINHA COM LOBOS
Jaime Fernandes
QQQQ Centro de Arte OIiva, São João
LACUNAS, FISSURAS da Madeira, até 20 de março
E OUTROS FINGIMENTOS Exposição dedicada à obra de
Rui Macedo Jaime Fernandes (1899-1969),
Ermida de Nossa Senhora da Conceição, um dos mais reconhecidos artistas
Lisboa, até amanhã portugueses de arte bruta, reunindo
Com a sua arquitetura devocional do mais de 40 desenhos provenientes
início do século XVIII, a ermida de Nos- de diversas coleções particula-
sa Senhora da Conceição é um espaço res de Portugal, França, Suíça e
que pede uma abordagem consciente Áustria e de instituições nacionais e
do contexto. Nessa medida, é o cenário internacionais.
ideal de intervenção para um artista
que tem orientado a sua pesquisa para
a relação da pintura com o circuito de
objetos e situações que a rodeiam.
Aqui, a pintura “finge” permanentemen-
te que o não é, apresentando-se como
prolongamento ou espelho do que
existe, em forma de duplicação, falha
ou descuido. É um processo que pede
NMI

um afinamento da atenção que começa


logo nas pinturas que se sobrepõem aos
azulejos da ermida e que duplicam os EILEEN GRAY. E.1027,
seus motivos como se fizessem parte
ARTE TOTAL
Museu Nacional de Arte
da parede e tivessem sido deslocadas
Contemporânea do Chiado, Lisboa,
do seu lugar. Mas a segunda parte da
até 27 de fevereiro
exposição é ainda mais desafiante.
Macedo colocou ali uma grande es- Réplica da casa de férias da de-
Casa com quartinho para mais um
trutura pictórica tripartida que produz signer anglo-irlandesa Eileen Gray
uma invasão do chão e de uma das (1878-1976). Esta exposição/ins-
paredes como se a surpreendêssemos talação mostra uma reprodução do
no momento da montagem. A pintura quarto principal da casa e uma série
simula acidentes, lascagens, estudos de peças de mobiliário.
de cor deixados ao acaso, lápis e outros
instrumentos, e uma folha onde se lê
“pisar como quem pisa uma pintura”.
Estes são elementos que produzem
uma zona de opacidade ou confusão,
também espácio-temporal, entre o
DINIS SANTOS

real e as imagens que o artista vem nele


depositar, trabalhando o expectável e
o pré-existente na própria intervenção,
de modo que essa gere um território
movediço onde o observador tem de
ERRO 417:
EXPECTATIVA FALHADA
navegar por conta própria e de modo
Galeria Municipal do Porto,
permanentemente ativo. Tudo se passa
até 13 de fevereiro
como se o “trompe l’oeil” e o simulacro
não fossem já expedientes ao serviço Resultado do concurso “Expo’98 no Abra uma nova página na sua vida.
da ilusão, mas uma proposta de disse- Porto”. Da escultura à performance,
cação dos próprios modos da observa- sob a ótica do falhanço e do suces- Encontre a casa dos seus sonhos
ção que conduz a uma crise do “real”,
porque, como diz João Pinharanda no
so. Obras de Alice dos Reis, Aliza
Shvarts, Ana Hipólito, Carlota Bóia
em BPI Expresso Imobiliário.
texto que acompanha a exposição, Neto, Catarina Real, Daniela Ângelo,
“bastam esses segundos de hesitação Elisa Azevedo, Gisela Casimiro, Hil-
entre o verdadeiro e o falso para tudo da de Paulo, Jota Mombaça, Odete QUEM COMPRA E QUEM VENDE,
pôr em causa”. / CELSO MARTINS e Xavier Paes. NA MESMA PÁGINA.
QUE COISA SÃO AS NUVENS

O JARDIM
DE LOURDES CASTRO

L
SEMPRE QUE A VISITEI, UMA PARTE SIGNIFICATIVA DA NOSSA CONVERSA
FOI O JARDIM. E FEZ SEMPRE QUESTÃO QUE PASSEASSE ATRAVÉS DELE

ourdes Castro, quando falava da eventualidade como testemunhava uma manifesta singularidade. Mas se
da sua morte, usava uma imagem: dizia que quisermos definir genericamente essa etapa, recorrendo
havia de partir para o “jardim das nuvens”. A a palavras suas, podemos dizer que é a etapa da produção
verdade é que nem na morte ela se imaginava a artística que cabe num museu.
existir longe de um jardim. Um dia, conversando no ateliê de Lourdes Castro,
Quem viu, por exemplo, o filme que Catarina perguntei-lhe com ingenuidade se estava a pintar. Levantou-
Mourão dedicou à artista, “Pelas Sombras” se e foi buscar uma vara que ela própria manipulou no
(de 2010), compreendeu a importância “Teatro de Sombras”. Agarrou nela à altura da sua cintura
daquele jardim situado numa encosta da e começou a caminhar assim, sem dizer nada, até embater
freguesia do Caniço, na ilha da Madeira. contra a parede branca. A impressão que dava é que a parede
E concluiu, certamente, que se tratava deixava de ser um obstáculo, que descobria naquele branco
de um elemento sem o qual já não seria intransponível uma passagem, que ela atravessava a parede.
possível pensar a globalidade do seu percurso artístico. O Arrumou a vara e veio sentar-se. Eu estava aturdido. Quando
jardim do Caniço é um jardim, claro. Contudo, é também a acendeu um cigarro e me perguntou se compreendera, sentia-
obra de arte mais complexa, mais conceptual e encantatória me a balançar ao vento, no meio das páginas do “I-Ching”. O
na qual trabalhou. Lourdes apresentava-a assim: “Vem ver “Teatro de Sombras” foi, assim, a segunda etapa.
a pintura que estou a fazer. Um bocado grande, não cabe em A terceira etapa foi a dos jardins madeirenses. Inicialmente — e
museu nenhum. E tão pequena, tão pequenina, que todos os como que cumprindo uma espécie de transição —, o jardim da
que passam por aqui nem dão por isso. Uma tela com forma sua infância, na casa da Praia Formosa, onde captou a sombra
esquisita. O que vale é que não é preciso esticá-la. Por si só, das espécies botânicas que entrariam no “Grande Herbário
ela está sempre pronta a receber pinceladas, ventos, estações, de Sombras” (1972). Depois, o jardim da Quinta do Monte,
chuva, sol…” que servira de exílio ao imperador Carlos de Habsburgo. Aí
Há três etapas marcadas no itinerário de Lourdes Castro, habitou com Manuel Zimbro, entre 1983 e 1988, e nesse espaço
que ganhamos, porém, em não ler como ruturas. Cada uma nasceram grande parte dos desenhos de “Sombras à Volta de
delas representa uma transformação radical (de linguagem, um Centro” (1980-1987). E, por fim, o jardim do Caniço. Os
de procedimentos, de formato), mas, na verdade, dentro de jardins da Praia Formosa e da Quinta do Monte estiveram na
uma continuidade fundamental. A primeira etapa é aquela origem de algumas obras. O jardim do Caniço tornou-se, de
que vai até ao “Teatro de Sombras” e constitui, talvez, a parte forma deliberada, a própria obra.
mais reconhecível da sua produção artística. Existiu sempre Sempre que a visitei, uma parte significativa da nossa conversa
um lado experimental neste trabalho que se disseminava foi o jardim. E fez sempre questão que passeasse através dele.
pela pintura, desenho, assemblages, colagens, por livros de Primeiro na sua companhia. E depois, nos últimos tempos,
artista, trabalhos em tecido, plexiglas ou acrílico fluorescente quando já não caminhava, pedia-me que fosse ver o jardim
recortado. E que perseguia tanto uma ideia forte de coletivo enquanto ela esperava sentada na cadeira de rodas. Na cadeira
(pensemos no carácter geracional que teve a “KWY”) de nuvens, quero eu dizer. b

AGARROU NUMA VARA


E COMEÇOU A CAMINHAR
ATÉ EMBATER CONTRA
A PAREDE BRANCA.
A IMPRESSÃO QUE DAVA
É QUE DESCOBRIA NAQUELE / JOSÉ
BRANCO INTRANSPONÍVEL TOLENTINO
UMA PASSAGEM MENDONÇA

E 76
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Neve,
ibérica neve
Em Portugal e Espanha é possível chegar
de carro a muitos ‘oásis’ de inverno iluminados
por paisagens brancas, onde o tempo é passado a deslizar
nas montanhas, em esqui ou snowboard, a beber
chocolate quente e no conforto dos hotéis
TEXTOS CONCEIÇÃO ANTUNES

E 77
E
stá a ser um ano de muita neve, sobretudo
a norte da Península, até mesmo “fabuloso”
como descrevem alguns amantes de esqui. Se
o momento não é propício a viagens longas, pela
atual situação sanitária, também nada proíbe de se
fazer uma pausa e uma escapada de proximidade,
em segurança e usando meios próprios na deslo-
cação, para viver momentos de inverno marcados
pela visão de montanhas brancas.
Numa espécie de ‘desforra’ por terem tido prati-
camente dois anos perdidos de temporada de neve,
devido à pandemia, muitos portugueses vão no seu
carro com a família até às estâncias de esqui, em
percursos de oito a 12 horas. “As pessoas estão com
muita vontade de voltar à neve, as nossas vendas
em dezembro atingiram números próximos do pas-
sado. Maioritariamente vão para Espanha e Andor-
ra, e 99% vão de carro, todas as pessoas ganharam
nesta altura aversão a andar de avião”, adianta Bru-
no Vilar, diretor-geral da Sporski, agência portu-
guesa especializada em neve com mais de 25 anos.
À exceção desta agência, não existe de momen-
to no mercado muita oferta nacional ‘empacotada’
para estâncias de esqui, e, por exemplo, na Abreu as
férias de neve podem ser pedidas diretamente pelos
clientes aos balcões das lojas, sendo-lhes feito um
programa à medida.
A Sporski mantém na temporada de neve de
2022 programas consolidados para estâncias em
Andorra (Grandvalira e Vallnord) e em Espanha
(Formigal-Panticosa, Cerler, Baqueira Beret e La
Molina-Masella, também nos Pirenéus, além de Si-
erra Nevada, em Granada), à custa de muita nego-
ciação prévia com os operadores, e até conseguin-
do nesta altura condições mais vantajosas, como
hotéis a oferecerem uma noite grátis.
“Começámos esta temporada os programas de
neve com muita antecedência, em julho de 2020, e
tentando adaptar-nos ao que aí vinha”, refere Bru-
no Vilar. Este ano, as condições ficaram mais faci-
litadas, com flexibilidade na alteração de reservas
ou seguros cobrindo cancelamentos por motivos
de covid, como pessoas a testar positivo antes da
viagem. “Acabam por comprar com mais confian-
ça, pois as circunstâncias estão sempre a mudar”.
“Temos bastante oferta para janeiro”, salien-
ta o mesmo responsável, destacando as ‘semanas
brancas’ até 6 de fevereiro, com a opção de escolher O conforto e as paisagens de tirar o fôlego
são uma das marcas da Sierra Nevada.
entre sete estâncias e 50 alojamentos em Andorra
Na foto, o hotel El Lodge, Ski and Spa
e Espanha indo de domingo a sexta-feira, a preços
desde €211 por pessoa (neste caso em Grandvalira,
o maior domínio esquiável dos Pirenéus, com 210
quilómetros de pista para todos os níveis), preços de maior procura do ano. Como têm condições incluir uma a três crianças, podendo-se fazer ajus-
que incluem hotel, forfait (passe diário para esqui), mais facilitadas, as pessoas estão na expectativa de tes à medida para famílias numerosas com maior
guia e seguro de viagem. ver o que pode acontecer”, nota Bruno Vilar. número de filhos.
A oferta de programas de neve, sem avião, man- “Oferecemos ainda várias atividades para cri-
tém-se na agência para fevereiro, e com pacotes PREÇO ÚNICO DE FAMÍLIA NA PÁSCOA anças, além do tradicional chocolate quente, en-
especiais para as férias do Carnaval, em que vários Para a Páscoa, a agência espera que a situação sa- tre outras coisas”, refere o responsável da Sporski,
hotéis de estâncias dos Pirenéus oferecem noites nitária já esteja mais estabilizada, mas teve este ano prevendo que “vamos ter uma boa Páscoa, estamos
grátis ou estadas de crianças sem custos. Previa-se de fazer alterações nos seus programas, alargando na expectativa de as coisas melhorarem”.
aqui um pico de procura de famílias com crianças, a oferta também à semana de 10 de abril, dado que
mas este ano tanto o Carnaval como a Páscoa fica- a semana de 3 de abril ficou abrangida pelo adi- SERRA DA ESTRELA JÁ REABRIU PISTAS
ram condicionados devido à semana de contenção ar do final do ano letivo. A aposta forte da Sporski A única estância de esqui em Portugal, a da Serra
após as festas, que levou o Governo a alterar o ca- na Páscoa são pacotes de preço único para famíli- da Estrela, tem permanecido encerrada este inver-
lendário letivo reduzindo as férias neste período. as em Andorra ou Espanha, a preços desde €891 no devido a condições meteorológicas adversas que
“Continuamos a ter muita procura para o Car- por uma semana, incluindo hotel, forfaits, aluguer impediram níveis suficientes de neve, mas reabriu
naval, sobretudo para Grandvalira, apesar da redu- de equipamento, seguro, e em alguns casos cur- a 9 de janeiro tendo em funcionamento duas pis-
ção das férias escolares. Claramente, seria o período sos para crianças ou refeições. Os pacotes podem tas de iniciação, entre as suas 20 pistas, e mantendo

E 78
OFERTAS ESPECIAIS
ATÉ À PÁSCOA
Data: 30 de janeiro a 4 de fevereiro
Estância: Formigal-Panticosa (Espanha)
Hotel: HG Alto Aragón. Preço: €484 por adulto
O que inclui: Cinco noites de alojamento em meia-
pensão (pequeno-almoço e jantar) incluindo oferta
de uma noite pelo hotel, forfait para todo o período e
seguro de viagem

Data: 27 de fevereiro a 4 de março (Carnaval)


Estância: Baqueira-Beret (Espanha)
Hotel: Montarto. Preço: €937 por adulto
O que inclui: cinco noites de alojamento com meia
pensão (pequeno-almoço e jantar), forfait para todo
o período, guia, seguro de neve e oferta de cinco
refeições nas pistas

Data: 27 de fevereiro a 4 de março (Carnaval)


Estância: Vallnord Pal Arinsal (Andorra)
Hotel: Abba Xalet Suites. Preço: €578 por adulto
O que inclui: cinco noites de alojamento em meia
pensão, forfait para quatro dias, guia, seguro de viagem
e primeira criança grátis até aos 11 anos

Data: 27 de março a 1 de abril


Estância: Grandvalira (Andorra)
Hotel: Himalaia Soldeu. Preço: €435 por adulto
O que inclui: cinco noites de alojamento em meia
pensão (com uma noite grátis), forfait para quatro dias,
guia e seguro de viagem

Data: 27 de março a 1 de abril


Estância: Vallnord-Pal Arinsal
Hotel: Ushuaia Mountain Hotel. Preço: €435 por adulto
O que inclui: cinco noites de alojamento em meia
pensão (com oferta de uma noite), forfait para quatro
dias, guia e seguro de viagem

Data: 10 a 15 de abril (Páscoa)


Estância: Cerler (Espanha)
Hotel: Monte Alba
Preço: €1286 por família, com criança até 11 anos
O que inclui: cinco noites de alojamento em meia
pensão, com forfait e aluguer de equipamento em
todos os dias e para toda a família, curso de esqui de 15
horas para crianças e seguro de viagem
JEREMY.M.A.RATA

Data: 10 a 14 de abril
Estância: Sierra Nevada (Espanha)
Hotel: Mont Blanc
Preço: €1349 por família, com criança até 11 anos
O que inclui: quatro noites de alojamento em meia
pensão, três dias de forfait e aluguer de equipamento
passeios turísticos em telecadeira (a €7,50) sempre espaços abertos, apesar de o ser para frequentar para todos, curso de esqui ou ski baby de nove horas,
que o tempo o permite, numa “forma diferente” restaurantes ou hotéis. “Em Espanha, cada região estacionamento e seguro de viagem
de usufruir da paisagem de montanha. Este ano os autónoma dita as suas regras, e temos de estar sem- (Ofertas disponíveis na Sportski)
bilhetes são de venda exclusiva online, tal como a pre atentos a isso”, frisa Bruno Vilar.
marcação de aulas terá se ser requerida por e-ma- E o mais importante, a própria neve, está no seu
il (estancia@turistrela.pt).A Serra da Estrela não é auge, em particular nos Pirenéus. “Nevou muito em
RESTRIÇÕES
Em Andorra, para entrar nas estâncias de esqui é
considerada uma estância para grandes esquiado- dezembro, como eu já não me lembrava há bastan- necessário apresentar certificado de vacina, de
res, mas representa um sítio de proximidade onde te tempo, pelo menos nos últimos dez anos”, sali- recuperação ou teste negativo. Em Espanha, o
famílias e principiantes podem viver experiências enta o diretor-geral da Sporski, adiantando que a certificado não é requerido para ir às pistas ou outros
de neve, sendo os forfaits a €25. agência movimentou mais de 20 mil portugueses a espaços abertos, apesar de o ser nos seus espaços de
Atualmente, também há que atender a regras estâncias de esqui no ano antes da pandemia, e que restauração ou para entrar nos hotéis
que são fruto da época: as estâncias de esqui em esta paixão está a passar para as gerações mais no-
Andorra pedem certificado de vacina, de recupe- vas. “As pessoas vão voltar a esquiar quando hou- O QUE LEVAR NA MALA
ração ou teste negativo para se poder entrar — não ver oportunidade e se sentirem confiantes para vi- Roupa quente e leve, impermeável e resistente, luvas
sendo o caso de Espanha, onde o certificado ou tes- ajar”, garante. “A pandemia não vai travar o cres- de boa qualidade, gorro para o frio, óculos de sol ou de
te não é requerido para aceder às pistas ou outros cimento das viagens à neve.” b neve, protetor solar e batom para o cieiro.

E 79
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Beterrabas assadas
com mel de cana,
pomelo e mizuna
Para 4 pax / Preparação 30 min / Confeção 35 min

INGREDIENTES Cozer as beterrabas em águas separadas, com


4 beterrabas vermelhas / 4 beterrabas amarelas /
4 beterrabas chioggia / 1 pomelo / Mel de cana q.b. /
sal. Depois de cozidas, descascar e cortar em
pedaços, temperar com azeite, sal, pimenta e Produtor
Sal q.b. / Flor de sal q.b. / Pimenta q.b. / Vinagre
de framboesa q.b. / Mizuna q.b. / Azeite q.b.
mel de cana. Levar ao forno a 180oC durante 10
a 15 minutos até ganharem cor.
Ribeiro Sêco
Se quando foi fundada, em 1883, a fábrica
Tirar os gomos do pomelo, retirando toda a Ribeiro Sêco produzia sobretudo aguardente,
casca branca e reservar. hoje é a única em toda a ilha da Madeira a de-
Preparar uma mistura de vinagre de framboe- dicar-se exclusivamente ao mel de cana. Uma
sa, azeite e flor de sal. opção que vem dos anos 30 do século passado
Temperar as beterrabas assadas com esta mis- — devido a restrições impostas na época à
tura, colocar numa travessa e terminar com os produção de aguardente de cana — e que se
pomelos e a mizuna. b mantém até hoje, tal como o cariz familiar da
empresa, gerida atualmente por João Carlos
Melim e pelo cunhado Luís Camacho, mas
onde a geração seguinte já vai também dando
o seu contributo. Durante 11 meses do ano
reina uma absoluta tranquilidade nesta fábrica
funchalense, onde trabalham em permanência
apenas oito pessoas. É entre meados de abril
e maio — “quando a cana de açúcar atinge o
grau brix ideal”, refere Luís Camacho — que
o rebuliço toma conta das instalações, com a
chegada e processamento da matéria-prima.
“Nesse período, não paramos, a fábrica labora
24 horas por dia.” A cada campanha são usadas
cerca de 120 toneladas de cana de açúcar, uma
parte dela produzida de modo biológico, para o
mel com a respectiva certificação, que, explica
Luís, “é mais rico em minerais, como o cobre e o
ferro”. Tanto o mel tradicional como o biológico
não levam quaisquer aditivos, corantes ou con-
servantes. “Só o modo de produção da cana é
que muda”, garante o responsável. O grosso da
produção (80%) fica na Madeira, onde é muito
apreciado o sabor característico deste produ-
to, bem distinto do do mel floral, por exemplo.
A doçaria local também lhe dá protagonismo
em algumas receitas, caso dos típicos bolos de
mel ou das broas, que a Fábrica Ribeiro Sêco
comercializa na respectiva loja.

PROJECTO MATÉRIA
É um projeto sem fins lucrativos,
desenvolvido pelo chefe João
Rodrigues, que pretende promover
os produtores nacionais com boas
TIAGO MIRANDA

práticas agrícolas e produção animal


em respeito pela natureza e meio
ambiente, enquanto elementos
fundamentais da cultura portuguesa.
Ler mais em projectomateria.pt

E 80
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Salto arriscado… bem saboroso, mas picante (de novo


a surpresa para incautos!!), de chouri-
ço e farofa, a contrastar com o par de
ACEPIPE
Quatro amigos abriram um restaurante de fusão, cefalópodes previamente grelhado e
com notas fumadas. As guarnições são
Tendências
mas a conta pesada e o leve conceito tudo levou… em separado, por isso vieram os “Ver- e sinais para
des” (€10), ou seja, legumes escalda-
dos e salteados em óleo de sésamo,
2022
onde havia espargos, ervilhas tortas, O alemão Cem Özdemir é
e o pico suave dos jalapeños. Da carne, o primeiro descendente de
imigrantes (turcos) a chegar
pediu-se “Wagyu com glaze de soja —
a um cargo ministerial naci-
300g” (€59), um corte da vazia (uma onal, e chegou de bicicleta
espécie de posta vistosa) esvaziado do à recente tomada de posse.
marmoreado que caracteriza esta raça Özdemir é vegetariano e fi-
asiática de novilho. O nível de gordu- cou com o cargo de ministro
ra intramuscular, que dá suculência da Alimentação e da Agri-
à carne e o aspeto marmoreado, está cultura. Na Alemanha, 10%
entre A7 e A9 (máximo) para animais da população é vegetariana
ou vegan.
australianos. Aqui, veio só uma carne
Em vários países europeus
de qualidade regular, pincelada com a pandemia trouxe a tendên-
uma redução de soja (que não falha cia de jovens cozinheiros
JOÃO GIRÃO

na adição de sabor extra), trinchada abrirem restaurantes fora


em nove fatias em ponto rosado, a um das grandes cidades ou em
preço despropositado. À parte, o “Ar- zonas urbanas de peque-
roz frito” (€5,50) soltinho, mas sem na ou média dimensão.
O fenómeno valoriza os

N
um mundo ideal imaginávamos O espaço é acanhado e escuro, com alma nem o tom ocre da fritura que lhe
territórios, fazendo circular
estar na fase de recuperação da uma débil luz pontual sobre as me- confere sabor, e uns “Bimis” (€12) seis
produtos locais, melhorando
pandemia, mas... Afinal, não. sas, sem permitir pouco mais do que pezinhos do brócolo italiano grelhados a economia e o emprego. Em
Ainda aqui andamos num navegar ti- o vislumbre daquilo que vai chegan- com puré de miso, ao lado. Portugal, Espanha e França a
tubeante, de variável em variante à do à mesa. A saborosa “Sopa de shita- A carta de vinhos não se enjeita nos onda está a crescer.
espera que a ‘pan’ passe a ‘end’, e que ke e wonton de camarão” (€5,50) era preços. O serviço, entre o esforçado e Em França, 2022 será o Ano
a endemia seja o very end desta crise um agradável caldo clarificado de sa- o irritado (sem formação) teve pratos a da Gastronomia. O Presi-
universal. Neste cenário de exaspera- bor terroso e notas de café, próprias serem ruidosamente pousados, servi- dente Macron nomeou o seu
antigo chefe de cozinha e
ção económica, abrir um restaurante deste fungo, mas incisivo no cariz pi- dos a cortar conversas com os braços,
atual representante para a
é um ato de coragem, e para quem os cantinho (sem avisar), em particular e raspados na mesa (!). Um dos anfi- área da Gastronomia, Guil-
frequenta uma centelha de esperan- para incautos com surpresas na escala triões vozeava em voz alta para a mesa laume Gomez, presidente do
ça em que tudo se normalize da forma de Scoville. O wonton que guarnecia o de outros clientes, sentado ao balcão júri que vai avaliar projetos
mais rápida e melhor possível. caldo cumpriu no sabor ao crustáceo. e sobrepondo-se à música ambiente, sazonais que encaixem
Entre os que vão tentando reer- Os “Croquetes de pato” (€8/4 unids.), transformando o ambiente num café. nestes perfis: “O inverno da
guer parte da muita oferta de restau- agradáveis no recheio com lascas des- Nos doces, o “Brownie de 3 chocola- gastronomia comprometida
ração que Lisboa perdeu, surgiu um fiadas, a trazerem um desnecessário tes” (€9) veio seco, salvando-se o ge- e responsável”; “A primavera
da gastronomia inclusiva e
espaço apresentado como “a concre- molho translúcido doce com notas lado de mascarpone e a base de praliné
benevolente”; “Verão para
tização do sonho de quatro amigos de tamarindo, que perturbava o sa- de avelãs. No “Pudim de manga” (€8) celebrar a partilha e a vida
com muitos anos na área da gastrono- bor conseguido no estufado da carne. a floral granita de líchias e a tapioca em comunidade”; “O outono
mia e produção de eventos”. O menu Em versão ‘taco’, o “Pato à Pequim” com leite de coco soterravam o mini- dos produtores”.
pretende “unir as cozinhas asiática e (€14/2 unids.) surgiu sob a forma de pudim com 2cm de altura. Os investidores da Butler In-
centro-americana com uma atitude duas minitortilhas de massa fina com Parece que Salta é a abreviatura do dustries compraram 85% da
leve e moderna, mas ao mesmo tem- a carne, cortada em juliana curta (bar- termo colonial espanhol saltapatrás. Se Maison Pierre Hermé, para
po acolhedora”, lia-se numa das notí- rinhas), perdendo-se a perceção da o restaurante saltasse para trás 5 anos ajudar o mago da pastelaria
francesa a internacionalizar
cias acerca da abertura. A ideia de abrir pele crocante que é a essência do pra- talvez a ousadia do conceito confu-
a sua marca de pastelaria,
numa zona pouco explorada, e ainda to, e a surgir seca e desinteressante. A so e o precário disparatado tivessem o mundialmente conhecida
menos turística, da capital, também envolver com tiras de pepino e julia- amparo da mole turística. A capitação pelos macarons.
sublinha a ousadia da proposta. na de alho-francês. A mesma parci- avarenta das porções, o food cost min-
mónia na “Beringela” (€10/2 unids.) guado ante os preços exagerados de
com dois paralelozinhos do vegetal produtos regulares, cozinha esforçada
(5cmx2cm) panados e molho picante e um serviço errático fazem deste Salta
SALTA agridoce (com pré-aviso) de tónus for- um salto arriscado. b
Rua Rodrigo da Fonseca, 82A — Lisboa te, sobre couve pak choi, e cebolo fres-
Telefone: 211 325 822 ou 211 650 637 co, porém, o picante dominou tudo. Desde 1976, a crítica gastronómica
Encerra à segunda e à terça-feira. Nos pratos principais, as “Lulas do Expresso é feita a partir de visitas
De quarta a sexta-feira só jantares. grelhadas” (€19) foram o ponto mais anónimas, sendo pagas pelo jornal
positivo que se viu, com um recheio todas as refeições e deslocações

E 81
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
As ironias do clima
Tudo junto, aplaudir e protestar

F
az agora 15 dias que vi na SIC Notícias, se não será necessário introduzir novas castas bem assinalada na reportagem: com este au-
no programa “60 Minutos”, uma repor- mais resistentes ao calor e repensar a localiza- mento das temperaturas, as colheitas, diga-
tagem que preencheu cerca de metade ção das vinhas; em Bordéus foi autorizada, por mos, dos últimos 15 anos têm tido uma cons-
do tempo sobre as alterações climáticas e os exemplo, a introdução da Touriga Nacional, tância de qualidade invejável.
seus efeitos na produção de vinho. A notícia entre outras, para se estudar o seu comporta- Por cá foi uma década (de 2010 a 20) de
centrava-se em França, na região de Bordéus, mento em novo ambiente climático. ouro, nomeadamente para vinho do Porto, em
mas focava também outras zonas onde, ines- Falou-se no programa da caminhada em que se conseguiu a proeza de declarar vinta-
peradamente, se começa agora a produzir vi- direção ao norte que a vinha tem conhecido; ge clássico três anos seguidos e, em Bordéus,
nho com muita qualidade. eu sou do tempo em que os primeiros vinhos a qualidade tem-se mantido num patamar
Apontaram-se os problemas sérios que a da Bélgica foram recebidos com incredulida- muito alto colheita após colheita. Longe vão os
viticultura enfrenta, como sejam as geadas de, mas, depois, já não ficámos tão admirados anos da miséria (bordalesa) em que, na década
fora de época — o que foi dramático em 2021 quando vimos surgir no mercado os primeiros de 50, encontramos apenas um ou dois anos
— e que irá reduzir muito a produção de zonas vinhos espumantes produzidos no sudoes- bons (53 e 59) e na década de 70 ninguém fala
como a Borgonha ou até Bordéus; o facto de te da Inglaterra, país que nunca associámos à de vinhos dignos de nota.
termos invernos amenos (tal como este que es- produção de vinho. A seguir virá a Dinamarca O clima está a desgraçar-se, estamos a
tamos a viver) e que não permitem que a planta e a Noruega e ficamos sem saber onde irá pa- dar cabo do nosso futuro, mas os vinhos es-
se recomponha, se veja livre de bicharada que rar. Sobe-se em latitude e também em altitude tão melhores e há vinhos bons com mais fre-
seria aniquilada com frio, gelo ou neve, o que com a consequente desertificação do sul, onde, quência. Veja-se o simples exemplo dos tintos
também não augura nada de bom. para mal dos nossos pecados, nos situamos. topo de gama DOC Douro que se têm produ-
Com as podas agora a decorrer, e se o clima O vinho que provei da Bélgica passava zido ano após ano, sem falhas. Poder-se-ia
continuar ameno, vamos ver a vinha renascer, facilmente por um Borgonha branco de boa perguntar: agora, afinal, é sempre bom? Não
se calhar, um mês antes do normal, o que de qualidade e o espumante inglês bate-se com há variações? O preço é sempre alto? Em que
normal não tem nada e de vantajoso também os seus congéneres de Champagne (até no ficamos? Pois é, o clima tira e dá e resta-nos
não. As alterações do clima levaram a que os preço). Tudo a ficar virado ao contrário, por- pouco mais do que agradecer. Ou, para os que
sinos tocassem a rebate e se comece a pensar tanto. Chegados aqui, fica a ironia, de resto vejam nisso uma solução, rezar! b

Pedra Cancela Vinha Vinha Grande Quinta do Noval LBV


FORNECIDOS PELOS PRODUTORES)
(OS PREÇOS, MERAMENTE INDICATIVOS, FORAM

da Fidalga branco 2019 tinto 2019 Unfiltered 2016


Região: Dão Região: Douro Região: Douro
Produtor: Lusovini Produtor: Sogrape Vinhos Produtor: Quinta do Noval
Casta: Cerceal-Branco Castas: Várias Castas: Lote de cinco castas tradicionais
Enologia: Sónia Martins Enologia: Equipa dirigida Enologia: Carlos Agrellos
PVP: €10,50 por Luis Sottomayor PVP: €21,50
A casta renasce no Dão e também existe PVP: €10 Feito só com uvas da própria quinta.
no Douro, como Cerceal. A Lusovini tem Uma das marcas mais antigas da Após cinco anos em casco foi
vinhos no Dão, Bairrada e Portalegre. Sogrape e a produção atinge quase engarrafado sem filtração, podendo
Em comum a excelente relação qualidade/ 500 mil garrafas. No lote dominam por isso apresentar ligeiro depósito
preço. Fizeram-se 1300 garrafas as duas Tourigas, um tinto de inegável Dica: Ambiente químico com notas
Dica: Algum “peso” na cor, aroma maduro qualidade para o preço que apresenta de frutos negros e chocolate.
onde cabem resinas e leve nota de compota. Dica: Não requer guarda e deve Macio, doce, envolvente, grande
Branco de inverno, perfeito no corpo mesmo ser desfrutado desde já. textura na boca, apetece mastigar.
e na acidez. Intensamente gastronómico Notável harmonia de conjunto Final longo cheio de classe

E 82
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Alentejo Gadanha — Mercearia


& Restaurante
Tombalobos Largo Dragões de Olivença, 82,
Rua 19 de Junho, 2, Portalegre. Estremoz. Tel. 268 333 262
Tel. 245 906 111 Michelle Marques cria pratos
Não faltam os pezinhos de coen- consoante a estação, mas o mil-
trada, nem a perdiz de escabeche, -folhas de bacalhau, os croquetes
ou a fraca, também de escabeche, de borrego, a terrina de pezinhos
ou o coelho vilão. Muitas destas de coentrada ou a farinheira com
especialidades podem ser adqui- ovinhos e esparregado não saem
ridas na forma de “enfrascados”.. da ementa. A garrafeira tem vinhos
Preço médio €30. de Estremoz. Preço médio €35.

Palma By Miguel Laffan Fialho


Herdade Torre de Palma, Travessa dos Mascarenhas, 16,
Vaiamonte. Tel. 245 038 890 Évora. Tel. 266 703 079

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Privilegiam-se os produtos e oferece alguns dos pratos mais tí-
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Rua dos Penedos, 6,
Com estreia este sábado na Évora.
SIC Notícias, e repetições ao Tel. 266 713 105
longo da semana também A cozinha alentejana
é polvilhada com
na SIC Mulher, SIC Radical e
a criatividade de Joaquim
SIC Internacional, o programa
de Almeida, como atesta
sugere uma rota de descoberta a emblemática almofada
no Alentejo, entre Portalegre e de porco preto. Coelho
o Alqueva. Com partida na serra à São Cristóvão, Sopa de Cação
de São Mamede, o roteiro dá Berardo a uma nova adega, ou de Beldroegas e sargalheta
a conhecer a beleza natural do que também é garrafeira e de perdiz tostada no forno
norte alentejano, com paragem restaurante. Prove os sabores da são outras opções. Excelente
em Marvão. A gastronomia é região na Gadanha — Merce- oferta vínica, com vinhos
apresentada por um dos maio- aria e Restaurante e siga até ao de autor. Preço médio €30.
res embaixadores desta região, Alqueva. Na Reserva Dark Sky
o chefe José Júlio Vintém, do conheça o Montimerso, um SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
recente projeto turístico com símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
famoso TombaLobos. A viagem
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
segue para Estremoz, do Museu vista para o Grande Lago.

E 83
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

Estes candeeiros, que parecem


de metal enferrujado, são feitos
de cogumelos, usando um novo
material chamado mycelium,
que tem várias vantagens
ecológicas, além da sua
resistência durabilidade

É melhor parecer
do que ser? O designer japonês Kosuke
A tendência é que os novos materiais mimetizem Araki criou uma série de peças a
partir de comida reciclada. Esta,
visualmente outros que já existem, sabendo nós chamada “Anima Collection”, é
que a sua origem é radicalmente diferente finalizada com Urushi, uma laca
japonesa fazendo-os parecer

P
antigos objectos, feitos em
arecer ser nunca é melhor do que ser. polida que parecia ser envernizada, couro tão materiais diferentes
Nem mesmo à mulher de César — a delicadamente curtido que parecia ser uma
quem sabemos que se pede que para lá seda, metais tão habilmente trabalhados que
de ser o que é, ela pareça sê-lo — se pede que mais pareciam hastes de trepadeiras, em re-
pareça aquilo que não é. Uma das muitas coi- dor de uma coluna. Depois passámos para a
sas que diferenciam estes dois estados, ser e terceira fase: começámos a entrar no mundo
parecer, é que o primeiro pode não ser visí- do design dos materiais em si e não só do de-
vel, podemos ser alguma coisa e ninguém sa- sign dos artefactos. E aí surgiram hipóteses
ber, enquanto o segundo só existe quando se infinitas, sendo que estamos ainda no prin-
revela a terceiros. “Parecer ser” faz parte do cípio, quase, desta aventura.
Feitos de matéria reciclada,
jogo social; ser é infinitamente mais profundo O que é extremamente interessante é a
desde plástico a vidro e outros
e pode existir independentemente dos outros. tendência, que se tem vindo a consolidar, que resíduos, estes bancos parecem
Se entre humanos isto poderá ser consensual, indica que estes novos e até então inexisten- ser feitos em cimento colorido
A porcelana tem sido um dos quando passamos para outras áreas a conclu- tes materiais são comercialmente mais bem
materiais que mais tem evoluído são já não é tão linear, nem cristalina. sucedidos se parecerem ser materiais que já
no sentido de inovar a dimensão Uma delas é o vasto território dos ma- conhecemos, a maior parte deles de origem
da sua eficiência funcional mas teriais. Enquanto os materiais eram aqueles natural e que nos acompanham ao longo dos
também, e muito, da dimensão que extraíamos directamente da natureza e tempos. Ou seja, se um novo material, mais
estética com que se apresenta, enquanto eram usados sem que fossem pro- ecológico, mais resistente, mais eficaz, mais
acima de tudo na área dos fundamente transformados, aquilo que um económico é desenhado ele entra melhor no
pavimentos. Aqui quatro material parecia ser ao integrar um produto mercado se for formalizado parecendo ser um
versões onde é mimetizado o produzido pelo ser humano estava em con- material antigo, cuja memória de uso ances-
aspecto da madeira e da pedra sonância com o que ele era. Uma pedra ao ser tral temos e cujo statu é reconhecido. A ten- Os holandeses Studio
usada como parte de um pequeno machado dência é que os novos materiais mimetizem Klarenbeek & Dros criaram um
era e parecia ser uma pedra; um pedaço de visualmente outros que já existem, sabendo bioplástico através de algas
marinhas prontos para ser usado
madeira ao ser escavado e usado como taça nós que a sua origem é radicalmente dife-
numa impressora 3D. Estas taças
para recolher água era e parecia ser um peda- rente. Parecendo ser o que não são, serão eles
parecem, propositadamente,
ço de madeira. À medida que os séculos evo- menos ou mais por isso? Melhores ou piores? ser feitas em vidro
luíram, e tornámos mais complexo o nosso Porque é que os queremos parecidos com o
sistema produtivo e social, fomos transfor- que não são?
mando os materiais naturais. Uns por moti- Interessante, sem dúvida, e muito elo-
vos claramente técnicos e funcionais, como a quente sobre a nossa espécie. b
fusão de metais para fazer uma liga mais re-
sistente e forte, mas muitos outros por razões Guta Moura Guedes escreve de acordo
estéticas ou de percepção social: madeira tão com a antiga ortografia

E 84
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

Sobretudo isto
A peça-chave que está para a moda como
a sopa está para a comida de conforto,
só que com mais diversão

N
ão há peça mais popular no in- étnicos, geométricos tecnológicos e
verno. Afinal, nada nos dá mais ilustrações, que fazem dos sobretudos
aconchego do que um sobretudo autênticas obras de arte.
quente, ‘pesado’ e confortável quando Os padrões mais extravagantes são
as temperaturas baixam. Além disso, é contrabalançados por cortes minimais,
uma peça que encaixa perfeitamente na que têm o mesmo efeito em peças bor-
tendência da roupa sem género, nesta dadas e com aplicações, como golas em
temporada ainda mais forte. pele ou emblemas e monogramas, e até
Sobretudos pesados, com linha re- em modelos em patchwork. Por isso,
tas e em tecidos encorpados e texturiza- para não cair em excessos, ou dá tudo
dos ganham, nesta estação, o primeiro no corte ou no padrão e textura.
prémio de popularidade. A escolha de Muito importante é também o com-
cor e padrão é variada, mas os primei- primento do sobretudo. Embora a co-
ros lugares do pódio vão certamen- queluche deste inverno seja o modelo
te para os mais ousados, ou não fosse mais comprido, quase a roçar o chão,
o sobretudo uma peça que vale por si nem todas as mulheres poderão adotá-

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


só, capaz de transformar por completo -lo. Se for mais baixa, o ideal é escolher
um look neutro e aborrecido. É por isso peças que não passem muito do joe-
uma peça com que os criadores gos- lho, mas se tiver mais uns centímetros,
tam de brincar e fazer experiências no aplica-se o inverso, ou seja, deve evitar
seu laboratório criativo. Destaque para os sobretudos demasiado curtos. E, so-
o xadrez, tweed, espinhados e florais, bre sobretudos, é sobretudo isto que vos
mas há também lugar para os padrões queríamos dizer. b

Shopping
SOBRETUDO EM TWEED
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ASSERTOADO EM LÃ MAXI GG XADREZ EM LÃ €194,10
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€495 €5500 €450

E 85
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Liberdade
para projetar
Quem já viu um holofote pode achar familiar o
Freestyle, que a Samsung acaba de anunciar no
Consumer Elec-
tronic Show (CES)
de Las Vegas, mas
o pequeno foco de
luz cilíndrico é um
auspicioso projetor
de 830 gramas
que permite uma
rotação de meia
circunferência (180
graus). O projetor
está apto a operar
com baterias
externas e pode

Visão a dobrar conectar-se à rede elétrica através de ligações


de 50 Watts/20 Volts para cima — que o pode
tornar uma solução a ter em conta para locais
onde não há tomadas disponíveis. A Samsung
A Asus surpreendeu o CES com um portátil que se dobra garante mesmo que o Freestyle é o primeiro
projetor que se conecta às tomadas convenci-

U
onais sem ser necessário um cabo adicional.
m ecrã de 4:3 ou dois ecrãs de 3:2? A questão ha- teclado virtual como conectar-se a um teclado físico.
Além de um brilho máximo de 230 Ansi Lumen
verá de ser recorrente em todos os dias da vida E esta versatilidade também pode ser aproveitada para
e de um contraste de 300:1, o novo projetor
do novo portátil Zenbook 17 Fold OLED. Como o transformar um portátil num tablet, ou num compu- está apto a reproduzir imagens em Alta Resolu-
nome indica, o dispositivo apresentado em Las Vegas tador de secretária — ou apenas num ecrã de ocasião ção (HD; 1080p) em dimensões que vão dos 76
durante o Consumer Electronic Show (CES) é revesti- para visionamentos em grupo. aos 254 centímetros (de 30 a 100 polegadas).
do por um ecrã OLED e é dobrável, permitindo passar Está equipado com processadores Core i7, e unida- Dispõe de portas HDMI e permite conexões
do formato 4:3 com quase 44 centímetros (17,3 pole- de gráfica Iris Xe, da Intel. Dispõe de 16 gigabytes de por bluetooth e Wi-Fi, bem como emparelha-
gadas) para dois ecrãs de 3:2 com 31,75 centímetros. RAM e 1 terabyte (TB) de armazenamento. Tem duas mento com dispositivos iOS ou Android. Tem
A modalidade plana supera a Alta Resolução com portas USB-C, uma de Thunderbolt 4 e permite carre- assistente digital Alexa e som em 360 graus.
2,5K, e os dois ecrãs gerados pela modalidade “do- gamentos rápidos de 75 Watts-hora e ligações a outros Chegará à Europa entre o final de janeiro e o
brada” garantem resoluções 1920x1280. Sendo o ecrã ecrãs. Pesa 1,65 quilos. Ainda não se conhece o preço. início de fevereiro, com preço ainda a confirmar
tátil, o utilizador tanto pode optar por escrever com Deverá estrear a meados de 2022. b (nos EUA, custará 899 dólares).

UM PORTÁTIL O RELÓGIO FALANTE A SONY ESTÁ BRAVIA CABECEIRA ANIMADA


CHAMADO G3 Há quem fale para o boneco e há quem A Sony anunciou uma nova gama de Os nostálgicos dos anos 1980
Na HP, a principal novidade tem menos prefira falar para o Venu 2 Plus. O relógio televisores Bravia XR, com modelos de quase possivelmente ficarão enternecidos com
de um quilo: chama-se Elite Dragonfly inteligente da Garmin tem como atrativo todos os tamanhos. Z9K 8K, X95K 4K Mini Smart Clock Essential que acaba de ser
G3, dispõe de ecrã de 34,2 o uso da voz – que pode ser útil para LED, A95K e A90K, ou X90K 4K LED são apresentado pela Lenovo, mas, mais do que
centímetros (13,5 polegadas), ecrã telefonemas através de alguns dos modelos destacados pela marca “apenas” um relógio de mesa de cabeceira
rotativo, e quatro colunas que emparelhamento como o telemóvel e nipónica. A nova gama Bravia estreia ou secretário, o novo dispositivo distingue-
reproduzem som com tecnologia da para interagir com os assistentes Siri, tecnologia que “percebe” a visão e audição se como um acesso direto ao assistente
Bang & Olufsen. Tem 32 gigabytes Google Assistant ou Bixby. Tem ecrã humana, retroiluminação renovada, digital Alexa. Dispõe de ecrã LED que reduz
(GB) de memória RAM e 2 terabytes AMOLED protegido por vidro Gorilla capacidade de reprodução de milhares de a luz para não perturbar o sono, dá previsões
(TB) de armazenamento. Tem Glass. Permite pagamentos e localização milhões de cores e reforço de contraste, meteorológicas. Mas há mais inovações que
processadores Intel e um peso de cerca por satélite. Faz monitorização de sono e câmara que permite controlo por gestos e não existiam há 40 anos: tem porta USB para
de 1 Kg. Deverá chegar ao mercado em sinais vitais, e tem 25 aplicações localizar espetadores, Google TV, tecnologia carregar telemóvel e tanto pode emitir luzes
março, mas a marca americana ainda desportivas pré-instaladas. Armazena Acoustic Multi-Audio e três opções de de presença como de ambiente, com
não forneceu indicações quanto ao até 650 músicas e tem autonomia para 9 posicionamento. Os diferentes modelos animações que prometem surpreender os
preço nas diferentes configurações. dias. Preço: €449,99. deverão estrear ao longo do ano mais pequenos. Preço: €59,99.

E 86
AU TO M ÓVE IS
POR RUI CARDOSO

ALUMIAR SEM ENCANDEAR


Os faróis led, como os do novo
Opel Mokka (na foto), não só iluminam
mais que os clássicos como o fazem
de forma inteligente, distribuindo
o máximo de feixe luminoso sem
ofuscar terceiros. Além disso, consomem
menos corrente, o que significa
que puxando menos pelo alternador
e pela bateria, o carro gasta menos
combustível e, portanto, tem
menores emissões de CO2.

Admirável mundo eletrónico


Nos carros modernos as tecnologias da informação tornaram-se
tão indispensáveis como as rodas ou os travões. Ou mesmo mais

A
crise dos semicondutores pôs situações de ultrapassagem ou mu- RECUO SEGURO
em evidência que os carros FICHA TÉCNICA dança de direção. A existência de câmaras de marcha-atrás
são cada vez mais informa- As informações essenciais podem (como as do Kia EV 6, na imagem)
tizados e, por consequência, depen- Olhos na estrada O head-up display ser projetadas virtualmente na face representou um enorme progresso,
dentes dos chips. Durante o ano findo, projeta virtualmente no parabrisas interior do pára-brisas, para não ti- mas não é propriamente uma novidade.
a produção planetária automóvel não algumas informações essenciais: rarmos os olhos de onde devem estar: Esta consiste na associação daquele
velocidade, sinalização, navegação, etc. sistema aos sensores periféricos
foi além dos 72 milhões de exempla- na estrada, à nossa frente (exemplifi-
res, ou seja, menos dois que em 2020 e cado na foto principal com o Nissan e à travagem automática de
Noite A condução no escuro torna-se emergência, tornando totalmente
menos 16 milhões que em 2019, o ano mais segura graças a luzes led Qashqai). Graças ao head-up display,
anterior à pandemia. podemos ver informação do velocí- seguras manobras ingratas, como
comandadas eletronicamente e é o caso da saída em marcha-atrás
Apesar disso, a eletrónica nos au- sistemas de visão noturna metro, caminho a seguir (sistema de
de estacionamentos em espinha.
tomóveis parece ter vindo para ficar. navegação), sinalização, limites de ve-
E, com esta, a inteligência artificial: Recuo Em manobras complicadas locidade, etc.
enquanto num avião comercial há 17 podemos contar com câmaras de O eventual estado de fadiga do
milhões de linhas de código informá- marcha-atrás, sistemas de deteção condutor (potenciador de acidentes)
tico, calcula-se que num carro haja periférica e travagem automática pode ser detetado e o sistema alerta
nada menos de 70 milhões, quando em conformidade. Em manobras de
não uma centena. Espelhos Sensores de ângulo morto marcha-atrás, muito em especial ao
eliminam a intrusão não detetada de
Enquanto há dez anos um carro sair de estacionamentos em espinha, a
veículos dos dois lados do carro
trazia quatro ou cinco calculadores conjugação da câmara traseira com os
eletrónicos, agora traz dez vezes mais, sensores periféricos do carro e o siste-
ou mesmo 20 se pensarmos nos mode- ma automático de travagem de emer-
los de topo de gama. Até algo aparen- Os faróis projetam, iluminam mais gência impede encontros imediatos VER NO ESCURO
temente tão simples como os faróis se longe e mais para os lados sem encan- do terceiro grau com ovnis furtivos A condução noturna, sobretudo
sofisticou: para comandar as luzes led dearem quem vem em sentido con- circulando à nossa retaguarda. em condições limite como as associadas
a chuva intensa ou nevoeiro, é um
é preciso eletrónica e esta já representa trário. Para situações extremas pode Já outros dispositivos muito preza-
desafio, devido à existência de perigos
20 a 50% dos sistemas de iluminação. haver sistemas de visão noturna que dos pelos construtores estão no limite
ocultos, de peões, ciclistas ou animais,
Daqui resultam duas coisas: por parecem saídos da ficção científica. da intrusão nas funções do condutor, como obstáculos, estreitamentos de
um lado, os carros tornam-se mais O temido ângulo morto dos espe- caso do “auxílio à manutenção na fai- via, etc. Daí que, como se mostra
complexos, caros e complicados de re- lhos retrovisores que pode esconder xa”, que na prática se comporta como na foto, sem prejuízo das luzes
parar; por outro, dispomos de ajudas veículos próximos do nosso é elimi- um gnomo maléfico escondido dentro convencionais, carros como
à condução com que os automobilis- nado graças a sensores que alertam do volante e dando intempestivos sa- o DS4 venham equipados com sistemas
tas da geração anterior não sonhavam. para esse perigo, nomeadamente em cões no mesmo. b de visão noturna.

E 87
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

TUDO E UM PAR Amar é proteger?


DE BOTAS
A pensar nos dias frio de Inverno a
marca portuguesa Atlanta Mocassin A proteção, como o amor, pode ser volátil

N
propõe um conjunto de modelos
que se destacam pelo conforto as cerimónias de casamento os noivos prometem amarem-se
característico dos mocassins e protegerem-se, na saúde e na doença. Nos que não casam
tradicionais mas com a vantagem formalmente, mas decidem viver juntos, sem que seja anunciada
de serem mais subidas até à zona
publicamente, está implícita a mesma promessa. Mas será que o amor e as
do tornozelo. As Fringed Mocassin
suas vicissitudes permitem cumprir este desiderato? Comecemos pelo que
Boots in Suede estão disponíveis em
pode significar proteger. Mais fácil de definir do que amar.
várias cores, para senhora, criança e
bebé. E são ideais para os looks mais
Na proteção pensamos imediatamente em defender o outro de ataques
descontraídos de fim de semana. exteriores, apoiar numa doença, mais ou menos grave, colaborar no apoio
atlantamocassin.com aos seus familiares, prescindir de desejos próprios em função de necessidades
ESCRITÓRIO inadiáveis do cônjuge ou da sua família. Tudo isto se “encaixa” nos valores

PARA TODO humanos universais, que também seríamos capazes de cumprir com amigos
e até conhecidos, sem rede familiar. Mas será possível proteger o outro de
O LADO nós próprios? Não falo evidentemente de situações extremas de agressão
física, indiscutivelmente incompatíveis com uma relação amorosa, mas
Quem tem de transportar o portátil
paradoxalmente difíceis de resolver. Mas isto é outra história que fica para
de um lado para o outro pode agora
outra crónica.A compreensão e a aceitação de atitudes do parceiro/parceira
recorrer à intemporal mochila Kånken
da Fjällräven. A versão Laptop pode
face a terceiros, familiares ou não, que nos são estranhas, exige um trabalho
ser adquirida em três tamanhos interior complexo, para não se sentir desprotegido e desapoiado no seu
(13 polegadas, 15 polegadas e 17 comportamento. Um casamento não é uma fusão de personalidades e de
polegadas) para responder a outras formas de estar e de sentir. Mas é uma fonte de estranhezas e de diferenças.
tantas dimensões de computadores Até onde deve ir a nossa “obrigação” de proteger quando estes desacordos
e está disponível numa enorme são mais fundos? Qual é o limite de cada um de nós nesta elaboração do
variedade de cores. Apesar das entendimento, sem pôr em causa a outra dimensão da relação, o amor?
semelhanças com o modelo original Se é fácil definir o que é a solidariedade na alegria, na tristeza, na doença,
de 1978 esta variante tem também na perda, nas fases menos felizes, é muito mais difícil definir o que é a
um compartimento separado, com mutualidade possível quando a relação é posta em causa. Amo-te, mas agora
fecho e acolchoado, e garante mais
quero fazer um intervalo. Não me refiro a uma separação. Se amar alguém é
conforto através das alças de ombro
sentir que se é amado, os intervalos deviam ser insuportáveis. E nem sempre
acolchoadas.
são. Podem ser apenas para poder respirar com os próprios pulmões. Talvez
JOGAR NO fjallraven.com
experimentar, sem sair da entubação comum, que o casamento ainda não
NÍVEL SEGUINTE atingiu a fase do “enfisema” e que, se aí chegar, ainda temos alvéolos para
sobreviver.
A marca especialista em áudio JBL Nestes intervalos a proteção não desaparece. Fica desligada do sentimento
quer garantir que os gamers têm uma amoroso, ou melhor, agarrada à sua memória. É esta memória que pode
vantagem competitiva. Para tal, lançou funcionar quando tudo parece perdido. Se a memória não for suficiente
a linha completa de auscultadores avança a ética... Quando se respira melhor sozinho do que a dois, ou quando
designada Quantum, dedicada ao
se encontra outro aparelho respiratório que nos põe a hiperventilar, o
universo dos jogos de PC e consolas.
caso é mais sério. Alguém quer ser protegido por quem decide ir respirar
Consoante o modelo, e há para todas
onde sente ter mais oxigénio? Acho que não. No entanto, por muito que
as bolsas, podem estar disponíveis
funcionalidades como o cancelamento
pareça inverosímil, o sentimento de proteção pode manter-se e funcionar.
ativo de ruído, som surround, software Estranho, não é?
específico para PC ou tecnologia Nem sempre se respira fora, por amor. Nem sempre o ar que se vai
wireless (com ligação 2.4G e até 22 procurar tem o equilíbrio certo dos seus gases. Agora que ouvimos tanto
horas de bateria, por exemplo). falar da saturação dos gases do sangue, podemos perceber melhor o difícil
mstore.pt equilíbrio entre eles durante uma vida a dois. Se quisermos usar esta
metáfora podemos pensar que o ar clandestino pode ter oxigénio a mais,
provocar euforia, energia transbordante, mas esgotar-se. Ao fim de algum
tempo ou fica mais respirável, ou desaparece. A proteção desliga-se do amor
e extingue-se quando, perante um incidente destes, ou uma longa fase de
tensão, a zanga e a raiva não deixam espaço para qualquer preocupação com
o outro. Pode mesmo dar lugar a fantasias destrutivas do tipo nunca mais
serás feliz, ainda vais ter saudades da proteção que sentias comigo. Voltando
ao título desta crónica, amar é proteger?
Sim, é, mas convém ter alternativas, porque a proteção, tal como o amor,
pode ser muito volátil… b
josemanuelgameiro@sapo.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº2400

5 9 1
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
6
3 2 4 7 5 6 1
2 7 5 9
2
3 7
1 8 3 6 3
6 4 1 5 8 7
4
3
8 7 4 1 5

Sudoku Muito difícil 6


7 9
7
8 9
2 6 3 8
4 5 8
9
2 3 4 5
1 7 4 10
3 2 1
7 1 11
8 6
Horizontais Verticais Soluções nº 2399
1. Não se lhe dá a mão facilmente 1. Oportuno 2. Ganharam a guerra. HORIZONTAIS
2. Deles dependia o imperador do Pesca ao centro 3. A dobrar cobre uma 1. estalagmite
Soluções Sacro Império Romano Germânico grande extensão. Estrume animal 2. neofobia; és
Fácil Muito difícil 3. Coberto pelo seguro. Empunho 4. O carro que pode ser conduzido com 3. criadores 4. abr; ibos;
9 1 3 6 4 7 8 2 5 6 7 2 5 3 9 4 1 8
4. Basta! O amigo que aparece com 16 anos. Símbolo químico do ruténio. ar 5. lios; OS; ale 6. ia;
4 5 6 8 3 2 9 1 7 4 3 5 8 1 7 9 6 2
presente no Natal 5. Símbolo na Mora no meio 5. Divide a peça. tortilha 7. ar; aa; ear
2 7 8 5 1 9 4 6 3 8 9 1 2 6 4 3 7 5
8. talão; tenda
6 3 2 7 8 1 5 9 4 2 4 9 6 7 8 1 5 3 escrita 6. Pronome papal. Portanto Mistura de cereal com outros
9. antúrio; tá 10. dias; lã
5 9 7 4 2 6 3 8 1 1 5 7 4 9 3 8 2 6 está divertido. Separa a Alemanha ingredientes 6. Chama-se ao porco.
11. ol; suspiros
1 8 4 9 5 3 6 7 2 3 6 8 1 5 2 7 4 9 da Polónia 7. Dano. À Alegria é hino O primeiro pecado 7. Microanimal de
8 6 5 1 7 4 2 3 9 5 8 3 7 4 6 2 9 1
europeu 8. Foi miss Daisy nos palcos baixo para cima. Não têm interior VERTICAIS
7 2 9 3 6 5 1 4 8 7 2 6 9 8 1 5 3 4
portugueses (nome próprio) 9. Possuir. 8. Diz em poucas palavras. Fim da meta 1. encalistado 2. Sérvia;
3 4 1 2 9 8 7 5 6 9 1 4 3 2 5 6 8 7
Neto de Jacob. Conjunto inglês 9. Separado. O que dizem os noivos anil 3. toiro; alta
10. Filosofia medieval 11. Barreira quando casam 10. Cede ao centro. 4. afã; Strauss 5. Lodi;
australiana. A quanto obrigas! Não traz nada de novo 11. Fazer or 6. abóbora; IOS
o que Zeus fez a Prometeu. 7. giróstato 8. mães; li
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2398 9. alentar 10. te; alhada
“Zalatune”, de Nuno Gomes Garcia, para Augusto 11. estreara; ás
Santos, de Leiria; “Judeus Portugueses”, de Esther Retificação: As palavras cruzadas nº 2399 publicadas na passada semana
Mucznic, para Filipe Pinto, de Póvoa de Santa Iria; tinham falhas na quadrícula. Por tal pedimos desculpa aos leitores
“Um Longo Caminho para Casa”, de Alan Hlad, para
Maria Alcobia Portugal, de Castelo Branco. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 89
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
J
SEMÂNTICA DO ‘EMOJI’
ESCREVER APENAS “PARABÉNS” NÃO CUMPRE O PROPÓSITO DE FELICITAR,
MAS ACRESCENTAR UM BALÃO E CONFETTIS JÁ SATISFAZ
á sei, já sei. Há novas formas de expressão que felicitar, mas acrescentar um balão e confettis já satisfaz. Recordo que
enriquecem muito o modo como comunicamos, e estamos a falar de gente adulta, cujos aniversários deixaram de incluir
tal. Ninguém tem paciência para esses aborrecidos balões e confettis há décadas. Costumo contrapor, ao argumento da
luditas que suspiram por antigamente. Certo. Mas poupança de tempo, o facto de a pessoa com a qual estou a debater não
podemos falar um bocadinho sobre o assunto? ser especialmente atarefada. Em resposta, recebo frequentemente um
Prometo argumentar com alguma elevação, sem gesto com a mão para o qual, curiosamente, também existe um emoji.
catastrofismos primários. Ainda assim, continuo convencido de que pessoas como os paramédicos,
É o seguinte: creio que o mundo está perdido. por exemplo, que costumam, de facto, ter pressa, resistem a exprimir-se
O progresso tecnológico gera nas pessoas um através de bonecos. “Vamos a caminho do hospital com doente em falência
amor desproporcionado. Pronto, está dito. Sou cardíaca. Precisamos de 300 cc de soro e um desfibrilhador à chegada.
reaccionário por causa disso? Muito pelo contrário: Emoji de uma seringuinha. Emoji de um relampagozinho.” Duvido que
o que se passa é que eu esperava mais do progresso. alguma vez tenha acontecido, em toda a história da paramedicina.
Sou ainda mais moderno do que os modernos, Uma vez, John Austin estava a explicar que, embora uma dupla negativa
uma vez que o progresso tecnológico fica aquém de me satisfazer. O mais tenha muitas vezes um significado positivo (por exemplo: “Eu não fiquei
evidente sinal de deslumbramento rústico com as novas tecnologias é insatisfeito com esta chanfana”), não há nenhuma língua em que uma
a designação “produtor de conteúdos”. É assim que algumas pessoas dupla positiva produza um significado negativo. Outro filósofo, chamado
definem o seu trabalho: “produzo conteúdos para a internet”. Essa frase Sydney Morgenbesser, que estava a assistir à conferência, gritou do fundo
indica, evidentemente, que as pessoas dão mais valor ao continente do que da sala: “Está bem, está.” Recordo muitas vezes esta história quando, ao
ao conteúdo. Ofereço gorda recompensa a quem me indicar um — atenção: fazer às minhas filhas uma importante recomendação por SMS, recebo
basta um — vinicultor que alguma vez tenha dito: “Produzo conteúdos como resposta uma mão amarela com o polegar levantado. É, sem dúvida
para garrafas.” Nunca aconteceu, porque ninguém se deixa encantar nenhuma, o equivalente não-verbal a “está bem, está.” Por isso, passarei
por vasilhame. E, no entanto, as garrafas já viram nascer e morrer as a responder com aqueles três macaquinhos que estão a tapar os olhos, os
cassetes, as disquetes, e o Windows 1, 2, 3, 4, etc. — até ao 10. Não sei se ouvidos e a boca. Não sei que significado têm, mas espero sinceramente
já repararam, mas não há garrafas 2.0. É tecnologia que já era moderna que seja ofensivo.b
quando nasceu. “Essa garrafa está desactualizada” — eis uma expressão Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
que nunca foi proferida.
A popularidade dos emojis é, sem querer ser alarmista, outro sinal do
apocalipse. Não só são usados com uma frequência despropositada como,
ao que me dizem, deram à beringela uma surpreendente má reputação,
que o fruto, na minha opinião, nada fez para merecer. Tendo verificado que
um número crescente de pessoas adultas se exprime através de bonecos,
procurei escutar os seus argumentos — que, aliás, fornecem a contragosto.
O primeiro é o seguinte: a palavra escrita é demasiado fria, e por vezes
transmite a ideia errada. O emoji serve para suavizar a mensagem, sublinhar
que se trata de uma brincadeira. Ou seja, faz as vezes da cotoveladazinha
galhofeira com que atingimos ao de leve o nosso interlocutor, para garantir
que ele percebe que estamos a ser irónicos. Sucede que a cotoveladazinha
galhofeira tem, no mundo real, um prestígio quase nulo. Considera-se, e
bem, que é um gesto cabotino. Não é fácil compreender a razão pela qual o / RICARDO
seu equivalente digital haveria de ser entendido de outro modo.
O segundo argumento é uma consequência do primeiro: os emojis
ARAÚJO
poupam tempo. Escrever apenas “parabéns” não cumpre o propósito de PEREIRA

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