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A caminho da vitória?

Nos últimos dias, a ofensiva ucraniana tem registado


inesperados avanços nos territórios ocupados. A guerra está longe
de terminar, mas o exército russo encontra-se isolado e exausto.
Terá chegado a hora de começar a pensar no fim de Putin?
Por Bernard-Henri Lévy, na Ucrânia, e Anne Applebaum

A Revista do Expresso
EDIÇÃO 2605
30/SETEMBRO/2022

Volodymyr Zelensky,
Presidente da Ucrânia,
com o general Oleksandr
Syrskyi, comandante-
-chefe do Exército
ucraniano, a 14 de
setembro, depois de terem
retomado o controlo
da cidade de Izium
Nós, os adolescentes, jovens, zoomers ou alphas, que estamos na idade
de estudar, estagiar e viajar, lutamos pelo que acreditamos, vivemos rápido
e criamos.
Nós, os adultos, pais, millennials ou X, que estamos na idade de trabalhar,
investir e poupar, mantemo-nos ativos, equilibramos tudo e aproveitamos.
E nós, os envelhescentes, séniores e experientes, estamos na idade de usar
a nossa sabedoria para vivermos com serenidade e qualidade, todo o tempo
do mundo.
Nós, todos nós, seja qual for a nossa Fidelidade, vivemos mais,
sabendo que podemos viver muito.
Uma vida com mais saúde, património, assistência e poupança.
Há uma Fidelidade para todas as idades. Há 200 anos que pensamos
no futuro, para todos os dias podermos estar presentes.
Poucos pensam no futuro há tanto tempo como a Fidelidade.
Porque o para sempre, faz-se todos os dias.
PLUMA CAPRICHOSA

LISBOA, CAPITAL DO LIXO


A SUJIDADE É RAINHA, JUNTAMENTE COM A POLUIÇÃO DO TRÁFICO INSANO. POEIRA E PARTÍCULAS
NOS PULMÕES DE UMA CIDADE MARÍTIMA QUE É DAS QUE TÊM PIOR AR NA EUROPA

É
e tentar não pisar os detritos e vidros partidos dos Lisboa. Nem para ter filhos. Os estudantes? Sabemos
noctívagos. Muros, parapeitos, vãos de portas, que sobram umas despensas a preço de ouro.
canteiros ou qualquer saliência do prédio, da casa e E no fim do desconsolo, que até uma internacionalista
da rua servem de abrigo às garrafas da libação, que empedernida como eu acha deprimente, já que
por ali jazem dias a fio. Os sacos de plástico fazem vivo na capital portuguesa gostava de ter alguns
companhia às garrafas e isto não é o pior. O pior é a portugueses como vizinhos, está a selvajaria da
poeira que cobre tudo e todos, as pedras, as plantas, EMEL. Lendária. Para-se o carro num estacionamento
as árvores, os muros, as ruas, os jardins, os relvados, onde o dístico de morador nos aquece a alma, aqui
os parques, o asfalto, o sapato, a poeira seca e não me rebocam. Errado. Um hotel de cinco estrelas,
acastanhada que é o resíduo acumulado de anos sem mil euros por noite, ou mais do que um, garantiram
caro viver em Lisboa. Os estrangeiros com lavagem urbana. No outono, as folhas secas cobrem a uma faixa para táxis privados e uma plaquinha
rendimentos gostam, amparados por um sistema poeira e volteiam juntas no vento. A seca é a grande invisível alerta e atesta que os lugares, mal sinalizados
fiscal benévolo que os isenta de grandes obrigações, desculpa para a falta de higiene de Lisboa, mas sobra e com dimensão obscura, são para veículos com
enquanto o resto do povo, ou o povo e a elite como a água para o novo campo de golfe da Comporta. “a marca T”. Os ditos táxis privados, esclareceu-
lhe quiserem chamar, paga os impostos devidos sem As fontes estão secas, e duvido que no meu tempo se tarde demais. A zona é uma mina de ouro. A
um pio. de vida volte a ver água jorrar do verdete das ninfas EMEL anda em círculos porque sabe que ninguém,
Viver em Lisboa num condomínio privado de luxo do Rossio. A sujidade é rainha, juntamente com a rigorosamente ninguém, vê a plaquinha, e estaciona
com vista para o Tejo e dois lugares de garagem, um poluição do tráfico insano. Poeira e partículas nos munido de inocência. Lá vem a rapace carrinha com
para o Tesla e outro para o Fiat Gucci da senhora, não pulmões de uma cidade marítima que é das que têm os bloqueadores. Curiosamente, os outros carros
é mau. Entra-se e sai-se pela boca aberta e automática pior ar na Europa. Apesar dos ventos atlânticos. sem senha no para-brisas levam com um sobrescrito
do prédio, e estaciona-se de garagem para garagem. Os turistas não se importam, tal como os e uma pequena multa, mas os da zona obscura de
O importante é nunca pisar a rua nem negociar com estrangeiros do circuito privado do condomínio veículos T são logo bloqueados. Espera-se uma hora
a selvajaria da EMEL. Já lá iremos. Se se é estrangeiro, privado, garagem a garagem, descrevem círculos e meia pelo desbloqueamento, depois de monólogo
e não se fala a língua, resta a suprema vantagem de dentro da cidade vulgarmente conhecidos por digitado com gravadores. Nunca um ser humano do
não ter de confraternizar com o povo encarregado percurso turístico, e fazem-se transportar em ubers outro lado da linha.
dos serviços adjacentes, o cardápio de serviçais que e tuk-tuks onde um jovem desempregado berra Ao cabo de hora e meia a carrinha surge, para
deslizam invisíveis nos intervalos. Governantas, aos quatro ventos a maravilha que é amar e viver desbloquear é mais lenta, com dois miúdos
criadas, mulheres da limpeza ditas “a dias”, porteiros, em Lisboa. Há uma obsessão nossa em vender o malcriados lá dentro. Porque é que os outros são
trolhas, canalizadores e outros “homens das obras”, que é nosso aos estrangeiros, exaltando as defuntas multados e nós bloqueados? Porque calhou, sei lá,
jardineiros, carteiros, seguranças, e por aí fora. qualidades imperiais, a arquitetura religiosa, a não fui eu que fiz isto. O que são veículos de marca
Genericamente conhecidos por “empregados”. grandeza do passado, a beleza da paisagem e o T? Dê exemplos. É, sei lá, por exemplo a carrinha do
Mais os estafetas da Glovo, um rebanho asiático. privilégio climático. Isto resulta bem, exceto nos Cristiano Ronaldo. Porque é que eles têm direitos
Conversa-se apenas com o motorista. dias de calor opressivo, de frio opressivo ou de céus superiores ao dos moradores? Porque pagam. Ah! E
O resto da população oscila entre o povo típico dos manchados da poeira do deserto do norte de África. porque é que não deixam um aviso aos moradores
bairros antigos e turísticos, mulheres que estendem Nas pastelarias, padarias e cafés do centro, não se e bloqueiam logo? Para os moradores perceberem
a roupa no estendal da varandinha do prédio ouve falar português. O croissant recheado é ubíquo. que não podem parar ali? É preciso ter um mínimo
entalado em Alfama ou no Bairro Alto e homens A carcaça de maminha morreu. Nasceram, fruto de bom senso. Sei lá! Mostre os documentos. São 133
que cospem para a rua, e uma burguesia ou uma da nossa invenção, o pão bio insípido e o croissant euros. Paga com multibanco. Ah!
pequena burguesia citadinas, casas compradas ou com queijo fresco e alface ou com barriga de leitão. Assim vivemos, num sistema totalitário que nasce da
herdadas nos velhos tempos antes da especulação, Nos restaurantes caros, inflacionados pelo turismo, omnipotência inoperante da Câmara Municipal de
acantonadas em meia dúzia de bairros residenciais e com preços de Londres e Paris, também não se Lisboa e das leis abstrusas do Governo no saque ao
que só sofreram melhorias se tinham hotéis como ouve a língua pátria, tornada uma mixórdia de contribuinte. Que bom é viver em Lisboa! b
vizinhos, tendo os hotéis dado direito a passeio jargão internético com brasileirismos, anglicismos
forrado a laje em vez dos tradicionais buracos na e abreviaturas amarfanhadas. Em certos dias,
calçada. Esta população acossada foi sujeita a dura atendida pela cortesia de imigrantes brasileiros ou
convivência com os milhares de Alojamentos Locais, com ascendência africana, mais baratos do que
muitos ilegais, albergando turistas que desembarcam os portugueses, fico com saudades do Brasil. Bom
com malas e barulho, festas e garrafas de vinho e clima.
cerveja, enchendo os caixotes do prédio de um lixo O pessoal vindo dos subúrbios cada vez tem menos
odoroso que transborda. dinheiro para luxos, e terá ainda menos no futuro, e
Em ruas com recolha seletiva, a dita morre quando o pessoal menos abonado que vive em Lisboa come
os caixotes seletivos são roubados pelos restaurantes em casa ou em raríssimos lugares onde o Instagram
da vizinhança. Não há caixotes suficientes para não chega. De resto, não existem muitos lisboetas, / CLARA
tanto lixo e há que sobreviver palmando os caixotes
alheios. O turismo cresceu tanto, e nasceram tantos
escorraçados da cidade pela especulação imobiliária
e os preços das rendas e a escassa oferta de casas, e FERREIRA
hotéis, que os caixotes não dão para tudo. O lixo
indiferenciado cresce. A Câmara tarda em repor os
existem ainda menos jovens. Casais com crianças
como se vê em Roma, Madrid ou Barcelona?
ALVES
insuficientes caixotes. Inexistentes. Os filhos da burguesia lisboeta
E cresce não apenas dentro dos caixotes com tampas estão nos subúrbios, quando a família não
abertas que regurgitam sacos que rebentam nos tem casa disponível para os abrigar. Por
passeios. O lixo cresce por toda a Lisboa como um mais que ganhem, na miserável média
fungo invasor. A cidade está tão suja, tão suja, que salarial portuguesa, nunca terão dinheiro
há que escolher o caminho com o pé bem apoiado, para arrendar ou comprar uma casa em

E 4
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2605 | 30/SETEMBRO/2022

fisga +E Culturas Vícios

36
RUI OLIVEIRA

7 | Jogos e apostas 22 | Ucrânia 51 | Ricardo III 73 | Workshops


São uma questão cultural, Putin, como todos os Perdeu o cavalo, o reino O interesse por novas
mas também estão ditadores encurralados, e a vida. Os súbditos experiências tem crescido
na moda. Num momento jogará porventura o tudo perderam-lhe os restos nos últimos meses e a oferta
Casas-museus em que o online ganha por tudo para evitar a mortais. A sua história está a acompanhar
Viagem de norte popularidade, faltam debandada, a capitulação é agora contada a tendência. É tempo
estudos para medir e os tribunais internacionais. de pôr as mãos na massa
a sul pelos lugares o problema Reportagem na linha 54 | Andrei Kurkov
que guardam a da frente da guerra O maior escritor ucraniano 76 | Receita
memória de ilustres 10 | Os Cadernos e os Dias dos nossos dias assume-se Por João Rodrigues
Corpo, futuro, inflação 30 | Alimentação como testemunha da
e desconhecidos Por Gonçalo M. Tavares Mais do que conhecer a “guerra do século XXI” 77 | Restaurantes
portugueses qualidade do animal que Por Fortunato da Câmara
12 | Passeio Público comemos, parecemos estar 56 | Livros “48 Ensaios”,
37 Minutos com cada vez mais preocupados de Virginia Woolf, 78 | Vinhos
Diogo Piçarra: “Às vezes em saber tudo o que se na Relógio D’Água, Por João Paulo Martins
penso que gostaria de ter passa com ele antes de
nascido nos anos 70” 60 | Cinema “Fogo-Fátuo”, 79 | Recomendações
se tornar uma refeição. De “Boa Cama Boa Mesa”
Preocupações éticas estão de João Pedro Rodrigues
16 | Planetário
A moda do cinema
agora sobre a mesa — e nós 62 | Televisão “Chef’s Table: 80 | Moda
FICHA precisamos de falar Pizza”, na Netflix Por Gabriela Pinheiro
Por João Pacheco sobre isso
TÉCNICA 64 | Música “Fossora”, 82 | Tecnologia
44 | André Luís de Björk Por Hugo Séneca
Diretor
João Vieira Pereira Entrevista ao líder da Trojan
Horse Was a Unicorn, que 68 | Teatro & Dança 84 | Automóveis
Diretor-Adjunto Por Vítor Andrade
Miguel Cadete criou uma comunidade “Tutto Brucia”, de Motus
mcadete@impresa.pt global de entretenimento
digital e quer fazer de 70 | Exposições “Oracle”, 87 | Passatempos
Diretor de Arte
Marco Grieco Portugal uma referência de Paulo Nozolino, na Por Marcos Cruz
Editor nas indústrias criativas Quadrado Azul, em Lisboa
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores CRÓNICAS
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt 4 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 14 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
Luís Guerra 18 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia | 50 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça
59 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente | 72 Fraco Consolo por Pedro Mexia
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 86 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 88 Deixar o Mundo Melhor por Francisco Pinto Balsemão
Mário Henriques (Desenho) 90 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: METIN AKTAÅ/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

E 5
DE SEGUNDA A SEXTA

O SEGREDO DE UMA VIDA


VEJA MAIS

@sic.tv @sangueocultosic sic.pt


fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Os números
da sorte
OS JOGOS E AS APOSTAS SÃO UMA QUESTÃO CULTURAL,
MAS TAMBÉM ESTÃO NA MODA. NUM MOMENTO EM QUE O ONLINE GANHA
POPULARIDADE, FALTAM ESTUDOS PARA MEDIR O PROBLEMA
TEXTO CLÁUDIA MONARCA ALMEIDA INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

E 7
fisga RECEITA BRUTA DOS VÁRIOS TIPOS DE JOGO
EM PORTUGAL
Em milhões de euros, 2021

2,90

U
ma raspadinha com o café, uma aposta Estes números crescem fortemente alavancados
na equipa favorita, uma noite no casino. 509 numa base de jogadores jovens. “As pessoas que
Em 2021, os portugueses gastaram mais 157 jogam online são cada vez mais novas. Quase 60%
de €3,4 mil milhões em jogos e apostas. E “a têm entre 18 e 34 anos. Isto é que é preocupante
tendência é para crescer, não só em Portugal JOGO JOGO JOGO no desenvolvimento do problema”, afirma o
mas em todo o lado”, explica o psicólogo Pedro SOCIAL ONLINE TERRITORIAL psicólogo.
Apostas múltiplas, Jogos de fortuna Casinos e salas
Hubert. “Tem crescido imenso a quantidade e a Euromilhões, ou azar, de máquinas, Com o aumento da procura tem-se assistido
oferta do jogo porque há procura.” Totobola, Totoloto, apostas bingo fora a um maior número dos pedidos de ajuda e
Lotaria Nacional, desportivas dos casinos
Na Europa, não somos os maiores jogadores. Lotaria Instantânea, à quota
autoexclusão. “Quanto mais pessoas optarem por
Num mercado estimado em €87,2 mil milhões no Placard um comportamento que tem riscos associados,
ano passado, os lugares cimeiros estão, segundo mais o número daquelas que têm predisposição
a European Gaming and Betting Association, RECEITAS BRUTAS POR CADA JOGO SOCIAL para a dependência (seja biológica, psicológica
reservados para o Reino Unido, Itália, Alemanha Em euros, 2021 ou social) irá aumentar”, refere o especialista do
e França (todos com receitas brutas anuais Instituto de Apoio ao Jogador.
superiores aos €10 mil milhões). No caso dos jogadores online, “ao contrário
No caso português, é o jogo social — entregue Lotaria Instantânea 1.515.176.385 do que se vê em outras dependências,
em exclusivo à Santa Casa — que produz a maior maioritariamente estes têm uma licenciaturas,
fatia deste mercado. Segundo dados do relatório e Euromilhões 605.009.280 estão empregados, são casados ou têm uma
contas de 2021 a que o Expresso teve acesso, nos Apostas desportivas relação estável, têm a sua vida estruturada e
oito jogos disponíveis, o valor médio por aposta 502.052.394 um perfil de quem gosta de competir e de ter
à quota
ronda os €2,6 e a lotaria instantânea (as famosas sensações fortes. Isto faz com que enveredem
raspadinhas) é a que mais receitas gera. Lotaria Nacional 26.279.126 por um percurso de jogo porque está na moda,
O jogo social tem contudo a particularidade porque o acesso é fácil, porque a publicidade é
de ser gerido pela Santa Casa “em nome e por Totoloto 118.120.748 muita, porque também é um bocadinho cultural
conta do Estado”, de forma a depois distribuir os e da idade”.
resultados dessa exploração pelos “beneficiários Milhão 83.172.010 Assim, pelas características, a perturbação de jogo
previstos na lei”. Assim, dos quase €2,9 acaba por ser “um distúrbio muito escondido que
mil milhões de receita bruta, €816 milhões Lotaria Clássica 43.960.555 em muitos países já é considerado um problema
foram diretos para os cofres do Estado para de saúde pública, e isso diz tudo”.
serem redistribuídos por várias instituições, Totobola 6.076.515 Porém, em Portugal ainda faltam estudos sobre
incluindo os ministérios da Saúde e Educação, FONTE: RELATÓRIO E CONTAS JOGOS SANTA CASA 2021
esta questão. Os dados mais recentes do SICAD
governos regionais e a própria Santa Casa. (Serviço de Intervenção nos Comportamentos
Comparativamente, nos seis primeiros anos após Aditivos e nas Dependências) sobre a prevalência
EVOLUÇÃO DOS JOGADORES AUTOEXCLUÍDOS
a legalização (até 2020), o jogo online rendeu do problema são de 2017. Na altura estimava-se
DA PRÁTICA DE JOGOS E APOSTAS ONLINE
€400 milhões em impostos ao Estado. que metade dos portugueses jogava a dinheiro
Em percentagem, 2º trimestre de 2022
Mas o mercado português, tal como o europeu, e que o predomínio do jogo abusivo tinha
está a mudar. “Houve uma evolução muito quadruplicado desde o estudo anterior, em 2012
grande. Há 20 anos eram sobretudo jogadores de 128,1 (de 0,3% para 1,2%).
casino e de máquinas. Depois, toda esta realidade 118,9 De resto, existem investigações académicas e
109,4
foi migrando para o online”, refere Pedro Hubert. 100,8 alguns estudos mais direcionados. Há outros
Essa tendência preexistente acentuou-se com a 93,6 anunciados que ainda não foram divulgados
pandemia. De acordo com o Serviço de Regulação (como é o caso do estudo encomendado pelo
e Inspeção de Jogos (SRIJ), as receitas dos casinos Governo para compreender o impacto social da
e salas de máquinas rondaram no ano passado os raspadinha, que está atrasado devido à falta de
€144 milhões. Já as salas de bingo fora dos casinos fundos e à covid-19).
renderam quase €13,4 milhões. Os dois foram “Se não há investigação, não podemos
afetados por períodos de encerramento forçado caracterizar o problema de jogo nem podemos
devido às medidas de prevenção da pandemia. fazer a prevenção. O que tem acontecido é que
Em contrapartida, no online, as receitas brutas 30 JUN. 30 SET. 31 DEZ. 31 MAR. 30 JUN. a legislação tem ido muito atrás do que se faz na
dos jogos de fortuna e azar chegaram aos Europa”, explica Pedro Hubert, destacando a falta
2021 2022
€256,4 milhões e as apostas desportivas à quota de apoio a quem desenvolve problemas de adição.
arrecadaram €252,1 milhões. FONTE: SERVIÇO DE REGULAÇÃO E INSPEÇÃO DE JOGOS E acrescenta: “O jogo em si não é o problema.
O jogo tem alguns riscos com que é preciso ter
algum cuidado e algumas pessoas têm de ter
um cuidado muito grande. Eu dou sempre este
EM 2021, OS PORTUGUESES GASTARAM MAIS exemplo: se toda a gente começasse agora a andar
DE €3,4 MIL MILHÕES EM JOGOS E APOSTAS. de moto, haveria mais desastres. A moto em si
não tem problema nenhum — é preciso andar
E “A TENDÊNCIA É PARA CRESCER, NÃO SÓ EM PORTUGAL MAS EM de capacete, cumprir as regras, ter uma certa
TODO O LADO”, EXPLICA O PSICÓLOGO PEDRO HUBERT maturidade, etc.” b

E 8
fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

Corpo, futuro,
inflação
1.
Os homens na Rússia tentam escapar à
mobilização para a guerra na Ucrânia.
Há filas de carros em direcção às fronteiras, as fugas
normais. Há depois relatos de pesquisas na net sobre
como alguém se pode tornar inválido para a guerra,
mas não para o resto da vida; como partir um braço
sem excessiva dor, por exemplo. Eis a aprendizagem
perversa que estes dias exigem a alguns humanos.
Aprender como partir partes do corpo; como fazer o
corpo cambalear; perder potência.
Os homens viram-se para o próprio corpo
saudável e forte e tentam encontrar nele
problemas, doenças; se não há problemas
naturais ou doenças é preciso convocar, para estes 2. 3.
dias próximos, acidentes que tornem o corpo Morreu Godard. Imagino a morte de um cineasta a Dizem que o dinheiro está a ficar mais caro.
inútil para o acto de tentar matar ou de evitar ser transformada em imagem projetada algures entre Sempre esta estranheza. O dinheiro instável como
ser atingido por bala ou bomba. Não sou bom a as nuvens brancas e o céu mais ou menos limpo. se fosse coisa aquática ou mesmo vapor. Nada de
matar, não sou bom a evitar a morte. Sou, pois, Quando em certos dias, um humano levantasse sólido.
inapto para o serviço para o qual me chamam. a cabeça veria filmes, ou pelo menos cenas de O ouro, pelo contrário — que pertence ao mundo
Ginásios, imagino, perversamente, para filmes, neste caso cenas como o “Desprezo” ou o dos metais nobres e pesados — fica um pouco
transformar os corpos fortes em corpos frágeis, “Acossado”. Ou apenas imagens. Jean Seberg, ao alheado deste mundo de um certo jogo volátil. Uma
inábeis, inaptos. Aprender a inaptidão, fabricar lado de Belmondo, a levantar os dedos que contam pedra que vale mais hoje, amanhã ainda mais,
a inaptidão, produzir a inaptidão. Procurar no o número de parceiros anteriores, por exemplo depois de amanhã muito mais; que estranho isto
espelho o maior dos erros possíveis no corpo, a — e assim o céu ficaria com mais imagens, para os agricultores que ainda hoje todos somos.
maior fraqueza. Como perder força, como perder substituindo na vertical o número de cinemas que Com a inflação, o dinheiro vale menos hoje,
visão, como perder braços? no chão do mundo vão sendo fechados. dizem, mas acima de tudo, quando se fala de
No século XXI, século da saúde infinita e Imagino ainda isto. Dia de chuva, nuvens negras, pedir empréstimos e de como os juros dos bancos
muscular, aqui estão os homens insatisfeitos com chuva termina, nuvens dissipam-se e, de repente, aumentam, trata-se de dizer, no fundo, que o
esse corpo senão perfeito pelo menos decente; em vez do sol, cinema. futuro é que fica mais caro. E dizer que o futuro
a deficiência torna-se referência e objectivo; fica mais caro é dizer que o futuro fica mais longe,
se possível deficiência passageira, mas, se mais distante.
necessário, é preferível um braço ou uma perna A inflação mexe com o metro quadrado, quer do
para sempre desajustados ao chão e às normais
O OURO IMAGINADO QUE PERTENCE pão quer da casa. Mas acima de tudo, e essa é
tarefas do mundo do que perder a vida inteira no AO MUNDO DOS METAIS NOBRES E talvez a sua maior potência, mexe com o tempo.
outro lado da fronteira. PESADOS FICA DE REPENTE ENVOLTO Com o aumento da inflação, o humano ergue-se,
Muitas vezes, então, estamos diante de uma questão levanta bem a cabeça, olha atentamente para o
de sacrifício, mas não global — analítico, digamos,
NUMA ESTRANHEZA QUALQUER DE horizonte e percebe de imediato: o futuro mudou
de uma forma terrível — não é sacrifício humano, no MÁGICO E ENTRA NO MUNDO DE UM de posição; recuou, já não se vê daqui, do sítio
sentido inteiro, dos pés à cabeça, da vida à ausência CERTO JOGO VOLÁTIL. UMA PEDRA onde estamos. Há quem diga mesmo — os mais
dela, mas apenas sacrifício de partes do corpo. desesperados — que subitamente deixou de existir.
Prefiro perder esta parte do corpo a perder o corpo QUE VALE MAIS HOJE, AMANHÃ Outra visão possível, a de um velho lema
inteiro, eis o que pensa um desesperado na Rússia. MENOS, DEPOIS DE AMANHÃ revolucionário: o futuro já está aí, o que está é
Há qualquer coisa de terrível, claro, quando um MUITO MENOS; QUE ESTRANHO mal distribuído. b
humano quer mutilar o corpo: quando olha para
o que é forte e saudável, em si próprio, e diz: ISTO PARA OS AGRICULTORES Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
como estragar isto? QUE AINDA TODOS SOMOS com a antiga ortografia

E 10
06 + 07 outubro
QUI, 20:00 / SEX, 19:00 — M/6

A Canção
da Terra

HANNU LINTU © VEIKKO K ÄHKÖNEN


Mahler

Orquestra
Gulbenkian
Hannu
Lintu
GULBENKIAN.PT
MECENAS MECENAS MECENAS MECENAS MECENAS MECENAS PRINCIPAL
ESTÁGIO GULBENKIAN CONCERTOS PAR A CONCERTOS DE DOMINGO CICLO DE PIANO ORQUESTR A GULBENKIAN GULBENKIAN MÚSICA
PAR A ORQUESTR A PIANO E ORQUESTR A
fisga
PASSEIO PÚBLICO
37 MINUTOS COM

DIOGO PIÇARRA
“ÀS VEZES PENSO QUE
GOSTARIA DE TER NASCIDO
NOS ANOS 70”
É UMA DAS GRANDES ESTRELAS POP DO NOSSO PAÍS, UM ROSTO COM VISIBILIDADE
REGULAR NA TELEVISÃO, COM PRESENÇA ASSÍDUA NOS GRANDES PALCOS E COM CANÇÕES
QUE ALCANÇAM MILHÕES DE REPRODUÇÕES NAS PLATAFORMAS DE STREAMING

ENTREVISTA RUI MIGUEL ABREU Neste domínio dos concertos, quais são os artistas que têm mantido a fasquia
elevada e que o têm inspirado?
Diogo Piçarra estabelece uma nova fasquia para a sua carreira: amanhã, dia 1 Não tenho conseguido, normalmente porque estou a trabalhar, ir tanto a
de outubro, sobe ao palco da Altice Arena numa grande produção em nome concertos como desejaria, mas vou usando o YouTube para ver muita coisa.
próprio que lhe firma o estatuto de nome de primeira linha da nossa cena Os Imagine Dragons são uma banda que me surpreende sempre pela força
musical. Repete a dose uma semana depois, no Multiusos de Guimarães. e nem sei como aguenta aquele vocalista uma hora e meia ou mais naquele
E para aí chegar, a sua caminhada, como diz a canção, obrigou-o a passar registo. Fora desse campo mais pop-rock, o DJ Eric Prydz também tem
muito. Mas Diogo Piçarra só olha para o lado bom da vida. inovado nesse campo, com imagens 3D e efeitos de luz especiais que até
fazem crer que as imagens estão a cair em cima do público. Também adorei
Passou um bom período em ensaios para os dois grandes concertos que se ver o resultado da parceria dos Swedish House Mafia com o The Weeknd, os
aproximam, na Altice Arena e no Multiusos de Guimarães. Quanto do que concertos da Billie Eilish são sempre visualmente incríveis. E em música com
o seu público vai poder ver e aplaudir nesses espetáculos nasceu na sala de mais “peso”, digamos assim, adoro o espetáculo dos Bring Me the Horizon.
ensaios?
Eu diria que 80% daquilo que as pessoas vão ver e ouvir nasceu em casa, Quando as coisas acalmam e a agenda se liberta, o que é para si um dia
primeiro. E quando chegámos aos ensaios, todos — eu e os músicos da tranquilo e bem passado?
banda — já trazíamos a lição estudada, com as canções bem dominadas, Talvez quando tenho espaço e tempo para criar, me posso sentar ao
e isso não liberta grande espaço para o improviso. O que de facto muda computador e me ponho a brincar com os meus gadgets de música, com
nos ensaios, porque vamos testando, é por exemplo a ordem com que as as caixas de ritmos, com os sintetizadores. E estar ali, sem pensar em nada
músicas vão ser apresentadas: nos últimos três dias de ensaios a estrutura só a ver o que aparece. Mas o tempo para isso escasseia. E, se calhar, nem
do concerto — porque o fomos tocando corrido — mudou algumas vezes, deveria dizer isto, mas às vezes penso que gostava de ter nascido nos anos
por irmos percebendo que faz sentido as canções encaixarem-se de 70 e de ter crescido nos anos 80 e 90, quando não havia tantas obrigações
determinada maneira. Esse processo é afinado, sim, tal como perceber quais digitais. Hoje, estar presente no TikTok e no Instagram, ter de pensar em
são os momentos certos para interagir com o público. Uma das coisas que novos conteúdos digitais, tudo isso exige mais tempo do que a própria
mais tempo esteve em aberto foi o momento em que me sento ao piano criação musical.
e posso, por exemplo, tocar uma música que não é minha. Demorei mais
tempo a decidir isso. São 575 mil seguidores no Instagram e quase meio milhão de ouvintes
mensais no Spotify. Essa visibilidade também condiciona na hora de decidir o
Estão preparadas novidades a nível cénico? que postar a seguir? Que música nova se deve lançar?
Claro: nesse domínio vamos poder finalmente usar ideias em que tínhamos Sem dúvida. Embora eu deva dizer que sinto que sou muito natural e
pensado já em 2019: terei um ecrã que foge ao tamanho normal, que transparente no que partilho. As pessoas ficam a saber pelos meus posts
resguarda um pouco a banda, e que ajuda a criar momentos íntimos
conforme desce ou sobe, abrindo espaço para a entrada em palco de
bailarinos.

Fazer um concerto desta dimensão deve ser um pouco como correr uma
maratona. Como é que se prepara o corpo para um embate destes?
Imagino que sim. Sei que puxei por mim nos ensaios um pouco como faria
RITA CARMO

um atleta que se leva ao limite nos treinos para estar preparado quando a
prova começar. Deve ser um pouco como num jogo de futebol: quando o
jogador entra, só a pressão, os nervos e a ansiedade já o deixam estourado.
PASSEIO PÚBLICO

“AS PESSOAS, DIGAMOS, MAIS FAMOSAS


AQUI LEVAM VIDAS BEM DIFERENTES
DAS QUE LEVAM AS PESSOAS EQUIVALENTES
NOS ESTADOS UNIDOS, POR EXEMPLO”

que eu estou a trabalhar no estúdio, ou que vou dar uma entrevista, ou que
tenho um compromisso qualquer numa rádio. E se não for isso, ficam a saber
que estou a brincar com a minha filha, no quintal ou num jardim... Trata-se
de encontrar o equilíbrio entre não esconder tudo e também não mostrar
demasiado, de nos resguardarmos a todos e também de eu não me cansar.

Essa exposição nas redes alguma vez comprometeu a sua segurança?


Bem, nada que me tenha colocado em perigo. Já aconteceu uma vez
depois de um post uma família que estava perto viu e foi ter comigo,
mas, pronto, não vieram propriamente do outro lado do país para isso.
Nesse campo, acho que o nosso país é muito seguro. Tenho até falado
com artistas brasileiros que escolhem o nosso país para viver por essa
razão, porque sentem que até os filhos aqui estão bem mais seguros. As
pessoas, digamos, mais famosas aqui levam vidas bem diferentes das
que levam as pessoas equivalentes nos Estados Unidos, por exemplo.
Aqui, só quem é mesmo muito fã é que me aborda se eu for na rua. A
maior parte das vezes fazem só um comentário: “Não é aquele cantor?”
E até me confundem com algum ator de novela. As pessoas aqui são
mais desligadas, creio.

Bem, têm-se ligado ao “The Voice”, por exemplo. O programa entrou agora
numa nova fase. Quais são as suas expectativas para o que aí vem?
Bem, temos agora connosco a Carolina Deslandes e o Dino D’Santiago
e isso levou a uma alteração da dinâmica entre os mentores, como seria
de esperar. Nós já nos conhecíamos os quatro e isso ajuda. Eu só conheci
o António Zambujo, por exemplo, no programa, não havia uma relação
prévia. E porque com os novos mentores já havia essa cumplicidade, penso
que encaixaram como uma luva no programa. Nós, mesmo quando os
concorrentes não têm as melhores prestações, tentamos dar sempre uma
explicação, uma justificação para as cadeiras não se terem voltado, algo que
não acontece noutros países onde o programa existe. O Dino e a Carolina
também têm esse espírito solidário e positivo.

Tem-se assistido à manifestação de alguma perplexidade nas redes quando


algumas estrelas globais lançam novos trabalhos e listam nos créditos de uma
única canção vários nomes. Os writing camps ainda são prática relativamente
rara por cá. O que tem a acrescentar a esse debate?
Essa forma de criação é perfeitamente válida, claro. É como se alguém
estivesse a escrever com a sua banda, no fundo. O que acontece nesses
writing camps é que se juntam pessoas quase de acordo com os seus
“superpoderes”: há sempre duas ou três pessoas com mais talento para os
chamados toplines, ou seja, as melodias; depois há os que são especialistas
nas letras; gente que pode só trabalhar no refrão; os produtores; os que
fazem os arranjos... Pode aparecer alguém no estúdio, estar cinco minutos e
dar uma ideia que depois é usada e essa pessoa terá de ser creditada. Acho
que neste campo vale tudo: eu já participei em writing camps, já escrevi
sozinho para um fadista, escrevo muito de forma solitária para mim mesmo,
também. Acho que colaborar dessa forma pode ajudar um artista a trabalhar
com novas ideias, e isso é positivo. b

E 13
fisga
O MITO LÓGICO
tecnologia tornaram-se nos falsos ídolos que com o objetivo de fazer com que os seus donos
se acham merecedores de veneração”, escrevia apareçam em fotos a exibir-se parrudos e a
a “The Atlantic” há dias. Já houve a era dos convencer-nos que tudo se deve a levantar cedo e
astronautas, ou a dos líderes dos direitos civis que a comer bagas de goji. Estima-se que a indústria
POR inspiravam esperança e empatia, agora torcemos ligada ao antienvelhecimento celular valha mais
LUÍS por inovadores de tecnologia cuja única métrica de 600 mil milhões de dólares em 2025. É muita
PEDRO de sucesso é a sua riqueza. Nesse mundo à parte, massa. Não é só pelo que irá fazer. É pelo que já
NUNES nessa bolha isolada da realidade, como tantas está a fazer.
vezes já aconteceu ao longo da História, uma Já a patologização do envelhecimento é uma
semente se coloca: como ser imortal? Ou como alteração cultural com ramificações em toda a

Bezos está viver até aos 150, 180 anos lúcido e fit?
Bezos agiu. Decidiu há poucos meses ser um dos
grandes investidores na Altos Labs, uma empresa
sociedade. Se envelhecer é ficar doente e não
um ciclo natural da vida, tal tem implicações
inimagináveis no quotidiano e no campo

com cabedal de investigação no campo da biotecnologia


cujo objetivo “é a extensão da vida humana
e reversão do processo de envelhecimento”.
relacional. Se o mundo rico conseguir aumentar
a esperança de vida generalizada até aos 100
anos (Bezos também financia grandes projetos no
Reuniu uns prémios Nobel em “reprogramação campo da demência e da doença de Alzheimer),
OS BILIONÁRIOS DEDICARAM-SE
celular”, e assim se criou a startup de biotech até que idade se trabalha? Que impacto tem na
À BUSCA DA JUVENTUDE ETERNA. com mais fundos de sempre. O CEO da Altos produção de CO2 um mundo de “imortais”? E,
A VELHICE TORNOU-SE UMA DOENÇA, Labs resumiu o objetivo: que os 90 sejam os suspeitemos disto, que mundo é este em que os
novos 50. Ou seja, que Jeff Bezos aos 90 anos bilionários querem fugir, rejuvenescidos, para o
MAS POUCOS SE PODERÃO “CURAR” se sinta com 50, digo eu. Mas há um problema espaço e deixar o planeta a fritar?
estrutural que faz estas empresas embaterem com A busca do elixir da juventude é uma obsessão tão
Jeff Bezos está com caparro. Mostra um bíceps a entidade que aprova a medicação nos EUA (a antiga quanto a existência do poder. Do imenso
com veia a latejar que parece querer rasgar FDA). É que estes investigadores consideram o poder. A busca pela imortalidade impulsiona
a manga da t-shirt. Tipo Hulk. Bezos — o envelhecimento uma “doença” (provocada pela e molda a civilização: da jornada do sumério
homem mais rico do planeta, ou o segundo inflamação, toxinas nas células, etc.), e esta é Gilgamés (2800 a.C.) em busca da imortalidade,
mais rico, dependendo do mês — ganhou uma uma proposta que choca com os valores éticos da após a morte do seu companheiro Enquidu, e
impressionante massa muscular e remoçou-se, nossa civilização. Envelhecer é uma consequência vertido em poema épico, até à obsessão de Quin
como que repassado a Photoshop. Aos 58, depois natural de viver, não uma doença que se pode Shi Huang Di, primeiro imperador da “China”,
do divórcio que o fez perder uns billions, claro curar com comprimidos. No fundo, querem dar que era tão neurótico com a sua imortalidade
que tem uma namorada nova, e mais nova, mas início a uma era de “imortalistas” — em que que se deixou ludibriar por um charlatão que lhe
parece também ter adquirido um corpo novo. a idade é uma doença tratável ao alcance de prometeu um elixir da juventude. Os charlatões
O “Wall Street Journal” até anuncia um “Bezos bilionários e a morte é indefinidamente adiada. A são tão antigos como a busca da imortalidade.
Effect”, a era do líder de negócios que podia fazer Alto Labs é apenas uma de dezenas de empresas Esta é uma era em que os bilionários acham
um anúncio de proteína, que treina às cinco da de Silicon Valley dedicadas à “tecnologia de que podem ludibriar os impostos e a morte. Os
manhã e faz jejum intermitente. “Seja por que reprogramação biológica”, ou biohacking, que impostos, ainda vá. Mas a morte ganha sempre. b
razão for, o símbolo de status corporativo de 2022 contratam os melhores cientistas do mundo lpnunesxxx@gmail.com
dos homens de meia-idade não são relógios ou
carros, mas um corpo bombado.” Adeus dad bod,
corpo desleixado — isso é tão 2021, tão covid.
O “WSJ” avança uma lista de executivos-
celebridades que nos últimos tempos se
tornaram autênticos modelitos de fitness aos
60 anos, a chamada meia-idade de rico. Todos
com abdómen tanquinho. Treinos bidiários,
alimentação altamente restritiva e suplementação
xpto. Há que dizer que no competitivo mundo
de negócios estar fit sempre foi uma exigência
colocada às mulheres — ou pelo menos, “não
se deixar ir”. Adiante. Por todas as revistas
de fitness e podcasts e canais de YouTube, há
conselhos de “como ter um corpo como Jeff
Bezos” — não deixa de ser engraçado ver umas
fotos dele de nerd de há uns anos. Os homens,
melhor, os executivos C (CEO, CFO, COO) querem
um “revenge body”, um “corpo de vingança”,
termo que era exclusivo das mulheres. Musk já foi
vítima de body shaming e terá perdido dez quilos
RAYMOND HALL/GC IMAGES

nos últimos meses.


Esta é a espuma. Bezos, como tantos outros, está
a sentir que, independentemente do dinheiro e
poder, irá ser confrontado com a sua mortalidade.
Dizem que esse momento psicológico se dá
aos 60 anos. E como muitos, desde a aurora
dos tempos, decidiu agir. Os “bilionários da

E 14
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR JOÃO PACHECO

FLASHES BARCELONA — SEVILHA

A moda
TAMPERE
do cinema

WILLIAM KLEIN
O que diria Marcel Duchamps sobre
a estreia mundial do ator norte-
-americano Brad Pitt como escultor,
acontecida há dias na Finlândia? A
exposição “WE” junta obras de Brad
Pitt a criações do artista britânico No início do filme, as modelos vão sendo vestidas com caso de filmes feitos em contextos orçamentais mais
Thomas Houseago e a peças como roupas impossíveis. Aliás, nem são roupas. O que vai apertados. Uma grande parte do que está agora exposto
esta (na imagem) do também sendo atarrachado à volta dos corpos das mulheres em Barcelona faz parte da coleção da Cinémathèque
músico Nick Cave. Agora e até 15 de são placas metálicas cortantes, transformando-as em Française, havendo também espaço para empréstimos
janeiro, este trio de artistas põe no esculturas móveis de pele, metal e olhos muito abertos. de coleções espanholas e internacionais, de moda e
mapa o Sara Hildén Art Museum, na São peças criadas para um desfile de moda, aquele de cinema. É que o cinema e a moda têm servido de
cidade finlandesa de Tampere. espetáculo que pode ser muito distante da realidade inspiração mútua e dessa mistura foram saindo muitos
quotidiana. O filme é de 1966, chama-se “Who Are You, dos padrões de beleza que vão vigorando. E também é
Polly Magoo?” e é uma sátira ao mundo da moda feita através da moda e do cinema que têm sido produzidas
LONDRES pelo realizador e fotógrafo William Klein (1926-2022), muitas das atualizações do que se espera de um homem
O músico sul-africano Abdullah Ibra- que aproveitou a rodagem para fotografar esta cena de ou de uma mulher, do ponto de vista da imagem e dos
him fará 88 anos daqui a dias. Partiu bastidores (na imagem). Esta fotografia de Klein tem comportamentos. Incluindo formas de vestir, de andar,
para o exílio durante o apartheid, agora lugar de destaque em Barcelona na exposição de correr e de despir.
vive na Alemanha e já foi conhecido
“Cine y la Moda”, com curadoria do estilista Jean Paul Além de cartazes de cinema, fotografias e ecrãs com
como Dollar Brand. Mais importante:
Gaultier. A exposição já passou por Madrid e está até excertos de filmes, o que se pode esperar ver por aqui
é um pianista e compositor genial e
inimitável, como se poderá ouvir a 15 23 de outubro no CaixaForum de Barcelona. Depois, a são roupas desenhadas por ícones da moda como Coco
de novembro às 19h30 no Barbican, próxima oportunidade será de 24 de novembro a 19 de Chanel e Yves Saint Laurent. Há também lugar para o
em Londres. O concerto faz parte março, no CaixaForum de Sevilha. imaginário de Pedro Almodóvar e do Super-Homem.
da trigésima edição do EFG London Desde o início da História do cinema, a moda tem E para guarda-roupa usado no cinema por Audrey
Jazz Festival, que acontecerá de 11 a tido um papel importante em muitas rodagens, tanto Hepburn, Catherine Deneuve, Grace Kelly, Madonna ou
20 de novembro em Londres. em superproduções de Hollywood como também no Sharon Stone. Moda, luzes, ação. b

ROMA
PHOTO
MATON Os passarinhos de Pasolini
Pai e filho caminham por uma Paolo Pasolini é de 1966, chama-
estrada em construção. Há um se “Passarinhos e Passarões”, tem
corvo que não se cala. Há sempre banda sonora de Ennio Morricone
aviões a aterrar, mas muitas cenas e conta com Totò e Ninetto Davoli
deste filme poderiam ter saído de (na imagem) como protagonistas.
BOWDOIN COLLEGE MUSEUM OF ART

“Lazarillo de Tormes”, um clássico É “um dos mais


da literatura pícara espanhola do crípticos e mais
séc. XVI. A prostituta está à beira importantes
da estrada e obriga a uma paragem, filmes de
com pequenas mentiras entre pai Pasolini”, como
e filho. Há dívidas e cobranças. A escreveu João
vida é um castelo de cartas, sendo Bénard da Costa.
os opressores os oprimidos daqui a E fará agora parte
nada, porque há sempre quem tenha da exposição
mais poder. Há um São Francisco “Pier Paolo Pasolini. Tutto è Santo”,
Esta imagem é uma criação de 1978 da fotógrafa Marcia Resnick e tem marxista. Nunca chove, mas Totò de 19 de outubro a 26 de fevereiro no
o título “She Became an Expert Shoplifter”, que em português poderia carrega o tempo todo um guarda- Palazzo delle Esposizioni, em Roma.
ser “Ela tornou-se uma ladra especializada”. Faz parte de uma exposição chuva, que servirá para fins não Se não tivesse sido morto em 1975,
retrospetiva da autora, até 11 de dezembro no Minneapolis Institute of Art, meteorológicos e que lhe dá ares de talvez Pasolini estivesse vivo. Nesse
no estado norte-americano do Minnesota. Charlot. Este filme do realizador Pier caso, teria agora 100 anos.

E 16
V E FAÇA O SEU BAIRRO
TE
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Ninguém melhor do que os vizinhos para saber o que o seu bairro precisa.
É por isso que, até 22 de outubro, sempre que visitar a sua loja Pingo Doce
e realizar uma compra igual ou superior a 10€*, recebe uma moeda
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* máximo três moedas por compra.


C A RTA S A B E RTA S

CERTOS MOVIMENTOS QUE DIZEM


TER COMEÇADO NAS REDES SOCIAIS
DA CHINA SÃO NOSSAS TRADIÇÕES

M
HÁ COISAS INCOMPREENSÍVEIS, E UMA DAS MAIS
DESTACADAS É DIZER QUE UMA COISA CHAMADA TIK TOK
DEU ORIGEM A UMA CULTURA ANTIGA, MUITO NOSSA
al li, fiquei indignado. imediatamente percebido que o quiet quitting, se não nasceu em
Centenas de Portugal, mesmo sem redes sociais e Tik Tok chineses, deve a
especialistas em este país anos, décadas, séculos de tradição segura. Claro que há
tudologia, cientologia, exceções, mas como afirmou o professor Coimbra, abandono ou
sociologia, desistência exercidos de forma silenciosa, não se sabe bem o que é,
antropologia cultural salvo que faz parte de uma mudança de fundo. Pois essa mudança,
e outras coisas que, estimado professor, opera-se neste país pelo menos desde que
por acaso, a episteme o Marquês de Pombal acabou com a escravatura no continente.
não me ajudou a Desde que os funcionários deixaram de depender dos caprichos
discernir, debatem o dos seus donos e passaram à condição de homens livres ou coisa
significado do quiet parecida, que a desistência silenciosa passou a ser uma atitude
quitting, que em português se pode traduzir por “desistência laboral muito disseminada em Portugal, nomeadamente nas
silenciosa”. funções públicas e relacionadas com o público.
Alguns empresários, dizem os especialistas, estão preocupados Essa desistência, ou abandono, não teria, quando muito, a
porque — e cito o quase vetusto “Público” — “Não é trabalhar consciência de que era um movimento, pois apenas respondia
menos, é fazer o que está no contrato e dentro do horário a duas coisas: a falta de vontade do funcionário e a tradição que
contratualizado. O quiet quitting surge como reação à encontrava no seu posto de trabalho. Esses dois fatores foram
precariedade laboral e é mais um sintoma da mudança na forma crescendo à medida que as suas remunerações foram caindo. Entre
como nos posicionamos perante o trabalho.” Como não achar alguns deles, rendia mais ficar de baixa do que ir trabalhar; outros
tudo isto mentira de quem pretende tornar um velho hábito numa preferiam pendurar o casaco nas costas da cadeira da repartição e
tendência nova, através da sua designação em inglês? Como não ter um emprego simultâneo no qual conseguissem, com um pouco
se ficar revoltado quando vemos uma tradição, um hábito — e dos de abandono silencioso, aboletar mais um salário, sendo que com
mais entranhados — ser aproveitado por académicos, jornalistas e dois já conseguiam viver e ir, talvez, a uma praia no verão.
outros sem-vergonha, para teorizarem uma coisa qualquer? Seria, do meu ponto de vista, muito salutar se os professores
Entendamo-nos, a já traduzida desistência silenciosa parece ter e especialistas que se debruçam sobre o assunto escrevessem
começado em terras de Xi Jinping e poderá ser entendida como ao “The Wall Street Journal” explicando-lhes que foi esta
uma recusa dos trabalhadores em fazer mais do que foi acordado, singularidade portuguesa que se espalhou pelo mundo (por algum
e dentro do horário contratualizado. O “The Wall Street Journal”, motivo fomos pioneiros da globalização), tendo chegado à China,
grande jornal económico, que zela pela saúde das empresas e dos onde, como se sabe, há uma enorme tendência para copiar o que é
seus trabalhadores, chama-lhe uma espécie de ‘greve de zelo’ e dos outros, em aspetos de alta tecnologia, como é o quiet quitting.
diz que o movimento provoca ‘violentas dores de cabeça’ (citei, Nunca termos dado um nome tão bom à moleza e à preguiça não
uma vez mais, o “Público”) aos empregadores, um pouco por nos tira os pergaminhos. b
todo o lado.
Especialistas consagrados, como o professor Pedro Gomes, que
escreveu o livro “Sexta-feira é o Novo Sábado’ (antecipando-se a
um livro que eu tinha no prelo, intitulado “Quarta-feira é a Nova
Quinta, que por Sua Vez é a Nova Sexta, que é o Novo Sábado”),
diz com muita razão que é difícil de avaliar, até porque não há
estatísticas. Outro reputado especialista, Joaquim Coimbra, da
Faculdade de Psicologia e Educação da Universidade do Porto,
afirma que vivemos uma mudança de fundo de que — e cito, o
quiet quitting, “seja lá o que isso for”, é mais um sinal. / COMENDADOR
Tenho para mim que falta mundo a estes especialistas. E não
digo colóquios em Pago Pago ou nas Bahamas. Nada disso, desses
MARQUES
podem ter muitos, até em locais sérios como a Universidade DE CORREIA
de Londres, do Porto, da Sorbonne ou de La Sapienza; o que
lhes falta, manifestamente, é um cartório, uma Autoridade
Tributária, um balcão da Segurança Social, quiçá, talvez até
de uma operadora de comunicações. Acaso o tivessem, teriam

E 18
BALANCE COLLECTION

BELEZA DA NATUREZA
intemporal E sustentável
Estamos aqui para fazer a diferença. Não apenas no conforto do lar, mas no mundo
que nos rodeia. Esperamos inspirar um ritmo de vida mais natural com produtos
que sejam suaves para os sentidos e mais amáveis para o ambiente

“A nova BALANCE COLLECTION faz


parte dos nossos esforços mais amplos
para reduzir o impacte ambiental. Para
esta coleção, explorámos a beleza
da natureza, materiais e
cores das estações em
constante mudança
que nos rodeiam.

O design intemporal
torna esta coleção
independente das
tendências. As peças
são ergonomicamente
concebidas para estimular uma
sensação de bem-estar e representa
uma atitude renovada em relação ao
design, abraçando um futuro mais
brilhante para a nossa indústria. O
nosso objetivo é que ela possa ser
utilizada durante várias gerações.

Estamos num novo caminho aliciante


e estamos orgulhosos das muitas
iniciativas sustentáveis por detrás
desta nova coleção de design.”
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A BALANCE COLLECTION assenta


perfeitamente nos valores que
desempenhamos diariamente na
nossa produção própria. Praticamos
e promovemos a responsabilidade,
a sustentabilidade, a eficiência,
o rigor e o compromisso com o
bom desempenho ambiental.

Toda a coleção foi pensada,


desenhada e produzida para decorar
cada espaço seu de forma exclusiva,
natural e sustentável. Esta coleção
é concebida por madeiras e pedras
naturais, ferro reciclado e tecidos
feitos de material 100% reciclado,
proveniente de garrafas de plástico
recuperadas dos nossos oceanos.

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A Ucrânia
vai ganhar
Putin, como todos os ditadores encurralados,
jogará porventura o tudo por tudo para evitar
a debandada, a capitulação e os tribunais internacionais.
Reportagem na linha da frente da guerra

BERNARD-HENRI LÉVY
FILÓSOFO E ENSAÍSTA
NA UCRÂNIA

E 22
E 23
FOTOGRAFIAS MARC ROUSSEL
É
Ao fim de poucos minutos toda a gente volta a
entrar nas viaturas ao som de um chinfrim de wal-
kie-talkies advertindo, imagino eu, que ele foi loca-
lizado e que não está a salvo de ser alvejado por um
drone. E, uma dezena de quilómetros mais adiante,
detemo-nos na orla de um bosque e de um imenso
campo ceifado.
Ele tem uma cabeça de jovem centurião. Uma
silhueta atlética, moldada numa camisola cor de
camuflagem, semelhante à dos homens do gru-
po. É lacónico e preciso. Quando lhe falta alguma
informação, está perto dele uma jovem oficial de
ordenança, muito Lee Miller 1944, com o cabe-
lo apanhado num boné bege da guarda nacional.
Por vezes ele fecha os olhos e cala-se, como se
escutasse, para além do rio e sob as árvores, um
eco longínquo. Por vezes a sua descrição da der-
rota russa ganha entusiasmo, ele exibe o sorriso
ofuscante dos vencedores e, como se para indi-
car o seu próprio espanto, uma estranha maneira
de alargar ao extremo as estreitas fendas dos seus
olhos cinzentos.
Não dá, em princípio, nenhuma entrevista. Mas,
um belo comboio cinzento que demora perto de daquilo que ele nos diz, na luz irreal da noite que
quatro horas a transpor os 500 quilómetros que vai caindo, retenho duas coisas. A siderante nuli-
separam Kiev de Kharkiv. Nesta manhã de 9 de se- dade da soldadesca russa, a sua fuga sem glória e,
tembro, um dia após a fulgurante contraofensiva após Balakliia, sem combater. E, no lado ucraniano,
lançada pelo Presidente Zelensky, está quase vazio. a operação engenhosa, amadurecida no maior se-
Estamos sozinhos na nossa carruagem, com a gredo e com a preocupação de poupar as vidas, não
pequena escolta de voluntários ucranianos que nos apenas dos civis, mas dos soldados.
acompanha desde Lviv. E a gare de Kharkiv, na luz O ministro da Defesa, Oleksiy Reznikov, com o
empoeirada deste verão que se prolonga, está, tam- qual nos avistámos anteontem, em Kiev, não nos
bém ela, deserta. confiou, entre duas considerações sobre a eficácia
A cidade, à primeira vista, é uma das mais atin- dos canhões franceses Caesar, que o general Syrs-
gidas pela guerra. Houve os bombardeamentos de kyi tinha, pelo menos, dois títulos para conduzir
março, quando os russos pensavam aterrorizá-la e esta ofensiva? Herói da batalha de Kiev, da qual foi
fazê-la vergar em três dias. Os de maio, quando eles o organizador e o artesão. Mas também, sete anos
se viram bloqueados nos subúrbios a norte e se vin- antes, herói da batalha de Debaltseve, aquela cidade
garam canhoneando, a toda a hora, os complexos de cercada do Donbas da qual ele conseguiu exfiltrar
edifícios que hoje continuam desmoronados. E hou- os 2475 defensores ali encurralados...
ve os das últimas horas, disparados a partir da zona Em Lyman, 20 quilómetros a leste de Izium, no
de recuo, 30 quilómetros a leste, para onde foram centro do parque nacional Sviai Hory, os russos re-
repelidos pela contraofensiva: um edifício de admi- constituíram uma posição. Mas os ucranianos não
nistração esventrado; uma creche, com o seu mul- os largam.
ticolorido parque infantil onde um último baloiço Estamos ali, com eles, entre Raïhorodok e Sta-
oscila ao vento; e depois aquela instalação elétrica rodubikva, distrito de Sloviansk, numa paisagem
cuja destruição deixará, na próxima noite, bairros de mata cortada e de ramagens fuziladas por onde
inteiros e um hospital à escuras. serpenteia uma rede de trincheiras e de chicanas,
A cidade, no entanto, vive. Está vazia, mas vive. cavadas na terra negra, que demoramos uma hora
E, mesmo nesta periferia devastada onde só nos a percorrer.
cruzamos com uma jovem mulher estranha, esga- É difícil apreciar, em tão pouco tempo, a exa-
zeada, vestida com uma jaqueta militar, a empurrar ta relação de forças. Mas vemos um canhão recu-
uma criança demasiado grande num carrinho ab- perado. Morteiros. Blindados ligeiros camuflados
surdo e que passara os últimos dois meses sem sair entre a folhagem. Homens que, ali reunidos, com
da sua cave, há qualquer coisa (um silêncio?, uma toda a força, o rosto pintalgado de negro e a farda
calma?, aquela alegria dos três soldados que, num couraçada de poeira, se postam, a cada 30 metros,
banco do parque infantil, descrevem a debandada em grupos de dois ou de três, com a arma automá- Literalmente, os guarda-fronteiras. Em francês,
dos russos, que abandonaram armas, bagagens e tica ao ombro, atrás de uma seteira de terra batida. chamar-lhe-íamos sentinelas. Fico então a saber
uniformes, trocados, em pânico, por vestuário ci- Por duas vezes a passagem interrompe-se. Trepa- que os guardiões da fronteira, na Ucrânia, são ver-
vil?) que diz que a cidade respira de novo, que ela mos uma colina despida, inclinada sobre a posição dadeiros militares. E ouço de bom grado o chefe de-
está livre e que o pesadelo irá terminar. russa e portanto vulnerável, em princípio. E estão por les, o coronel Yuri Petriv, explicar-me, ao fundo da
O general Oleksandr Syrskyi é o comandante ali outros homens que, ora abrigados sob uma prote- gruta escavada onde, sentados em cima de uns cai-
chefe do exército terrestre ucraniano e o arquiteto, ção de troncos, ora num contentor cilíndrico de ferro xotes de munições, se comem pepinos e se servem
no terreno, desta ofensiva no Leste. Na estrada de que é deslocado, durante a noite, para confundir a lo- rodadas de álcool local, que, sob a sua aparência
Balakliia, encontramo-nos no parque de estacio- calização, e ora a descoberto, por instantes, parecem pacífica, eles são um dos corpos de elite do exérci-
namento de uma das raras estações de serviço que estar mais perto de lançar o assalto que de o sofrerem. to. Há ali um outro sinal. São os que fazem a guerra
ainda se mantêm abertas. Estes homens são os “border control”. sem gostar dela que enfrentam os cães de guerra. E

E 24
ENCONTRO Bernard-Henri
Lévy com militares
ucranianos em Kharkiv, uma
cidade vazia, mas que vive

o facto é que a força tranquila, a iniciativa, a fé, mu- bortsch e velhas chips. Milburn conta a criação desta Quanto a isso, problema. A minha escolta ucra-
daram definitivamente de campo. ONG. A sua decisão de lhe chamar Mozart por oposi- niana, receando a iminência de uma ação inimiga
Em Bakhmut, mais a sul, mas ainda na frente ção ao Wagner dos comandos de mercenários russos e julgando-me demasiado exposto, opõe-se a tal.
leste, viemos à procura de Mozart. Ou seja, de An- assassinos. A época em que ela assegurou algumas das Dou-lhe ouvidos. Mudo de ideias. Tento, com Marc
drew Milburn e da sua trintena de internacionais, evacuações de alto risco dos combatentes da Azovstal Roussel, apanhar os dois 4x4 dos Mozart. Mas é de-
muitos deles veteranos de forças especiais anglo- em Mariupol. A rede de correspondentes que, hoje em masiado tarde. Eles já estão longe. Desligaram os te-
-saxónicas, que tomaram a seu cargo a nobre tare- dia, o informam da presença, nesta ou naquela aldeia, lefones. E, depois do último check-point ucraniano,
fa de irem procurar, na zona cinzenta, os civis que de um inválido, de um idoso ou, simplesmente, de um encontramo-nos sozinhos no centro de Bakhmut, no
andem perdidos e em risco. indigente que gostaria de fugir mas não tem para onde silêncio da cidade vazia, diante da passagem de nível
O encontro faz-se junto de uma ponte do cami- ir, nem meios para pagar a um passador. E propõe-me que é o único ponto de referência evocado por Mil-
nho de ferro, num restaurante onde se serve um bom que o acompanhe na sua operação do dia. burn durante o seu briefing de que nos lembramos.

E 25
Ao fim de meia hora, estrondo de explosão. Mais modificá-los, o mesmo povo de curtidores, de pes- semeadas de buracos onde, a cada solavanco, as
um. E um terceiro. Os meus camaradas ucranianos cadores e de comerciantes arruinados que se sen- suspensões das nossas viaturas pareciam prestes a
tinham razão. É Mozart que estão a assassinar. Fo- tem mais decididos que nunca a retomar Mariupol quebrar-se e que foi assim que percorremos o arco
ram eles, os humanitários da Mozart, que três dro- e a Crimeia. tático que agora rodeia a cidade.
nes assassinos acabam de alvejar e de falhar. E depois, sobretudo, ele reservou-nos uma sur- Vimos morteiros, em grande quantidade, nos
Em Bakhmut, os russos andam por lá. Vencidos presa: lembrando-se dos longos serões em que Gil- matagais. Blindados de reconhecimento BRM-1K
lealmente, vingam-se sobre voluntários pacíficos les Hertzog contava aos seus homens a epopeia da da época soviética, bem como um lança-rockets
e desarmados que, correndo risco de vida, vieram França Livre, obteve autorização do alto comando múltiplo autopropulsado Furacão, enterrados entre
socorrer os mais humildes entre os humildes. Que das forças armadas ucranianas para que o seu bata- duas aldeias. Seguimos um Sukhoi que, por cima
vergonha! lhão, o 197º da Brigada A7363, seja rebatizado Bata- das nossas cabeças, ao som dos hurras dos aldeões,
Vimos, em Zaporíjia, uma cidade petrificada lhão Charles de Gaulle. foi atacar um depósito de munições nos arredores
pela chantagem de Putin, que posicionou a sua ar- A cerimónia teve lugar em redor de um púca- de Kherson e voltou a passar, poucos minutos mais
tilharia e as suas tropas no coração da central nu- ro servido, na calma campestre e húmida do seu tarde, em voo rasante, sem reação do inimigo.
clear. Dormimos em Kryvyïi Rih, onde um ataque quartel-general de campanha, em cima da capota Entrevistámos habitantes que, poucas horas de-
a uma barragem, poucas horas após a nossa passa- de um veículo 4x4. Juntamente com o nosso ami- pois de os russos terem bombardeado a ponte de
gem, inundou o bairro de Lioubov Adamenko e pri- go e companheiro de aventura Serge Osipenko, ele Bereznehuvate, sobre o rio Inhulets, vinham saltar
vou de eletricidade uma parte da cidade. mandou confecionar uma grande bandeira azul, sobre os blocos de alcatrão rebentados e, com um
Daí a importância estratégica, nesta batalha da branca e vermelha, com o tamanho exato da ban- metro de marceneiro, tirar as medidas dos buracos
energia lançada em todas as direções pelo terroris- deira ucraniana — e uma fileira de homens hasteia, e da obra a reconstruir.
ta de estado Putin, das minas de carvão do Donbas à força de braços, os dois estandartes, como se eles Ouvimos, numa trincheira de segundo escalão,
e, hoje, da mina de Pavlograd à qual iremos descer. fossem uma única bandeira. E, em conjunto, ucra- o sargento Andrei Loussenko, que era ator no teatro
Aqui, a linha da frente passa 245 metros abaixo da nianos e franceses em uníssono, entoamos os nos- de Mariupol onde muitos dos seus camaradas pe-
terra. Acedemos a ela pela gaiola, estreita e gemen- sos hinos nacionais. receram sob um míssil, e o soldado Serguei Serhiy-
te, de um ascensor metálico que mergulha a gran- Única sombra na nossa alegria. Mostram-nos, enko que, como patente militar, ostenta “poeta” no
de velocidade nas entranhas da terra. Depois uns no caminho da partida, em direção ao sul, um dro- seu dólman e compôs o hino do batalhão.
vagonetes conduzem-nos, três quilómetros mais ne que foi abatido na véspera. É um grande pássaro Em suma, um povo em armas. Armas em quan-
adiante, ao fundo de uma galeria debilmente ilu- branco esventrado, do qual saem as entranhas. E, tidade ainda insuficiente, mas que em breve estarão
minada e sustentada por arcadas de aço e redes de olhando bem, descobrimos componentes eletróni- próximas da paridade estratégica reclamada por Ze-
ferragens enferrujadas. E ali está a zona de extração cos made in France... lensky antes do verão. E um torno prestes a cerrar-
com as suas aberturas laterais, de um metro de al- Por força do segredo militar, comprometi-me a -se sobre um exército de ocupação isolado da sua
tura no máximo, onde é preciso entrar de gatas, ou não revelar aquilo que vimos do dispositivo ucra- retaguarda e exausto.
mesmo deitado sobre a barriga e a rastejar, para ver niano ao redor do porto sulista de Kherson, que foi, Tolstoi sustentava que, numa guerra, era impos-
os mineiros, num ar saturado de poeiras, atacarem no início da guerra, a única capital regional a cair sível cercar totalmente um exército. Ora Tolstoi es-
o veio com o martelo de ar comprimido... nas mãos de Putin. tava enganado e a prova disso fez-se em Kherson.
Mesmo que as normas de segurança sejam óti- Bastar-me-á dizer que, de Bereznehuvate a Yav- Em Mykolaiv, mais a oeste, na estrada de Odes-
mas, pensa-se numa saturação de grisu [mistura kine, Bilozirka e Kiselivka, andámos por estradas sa, a situação é menos clara. Um míssil, disparado
gasosa inflamável que se encontra nas minas de car- do mar Negro, atingiu esta noite uma antiga insta-
vão e por vezes provoca explosões]. Num corte de lação fabril que era ocupada, antes da guerra, por
corrente, que é sempre possível, com curto-circuito artesãos e pequenos estabelecimentos. Um outro
dos sistemas de arejamento, bloqueio das condutas
de água que se abrem em caso de incêndio, paragem
Os cidadãos caiu, algumas horas depois, ao alvorecer, numa es-
cola do bairro administrativo em que o regresso às
do tapete rolante que assegura a evacuação do pre-
cioso ouro castanho. Não se pode deixar de temer
já não têm aulas, graças a Deus, tinha sido adiado.
E o governador do Oblast, Vitaliy Kim, que, com
um ataque que destrua o cavalete de extração que
assegurará o regresso à superfície. Então, os rostos
medo. Já não o Presidente Zelensky e o presidente do município
de Kiev, Vitali Klitschko, é uma das personalidades
negros persignam-se, como se fossem para a frente
de combate, diante dos ícones de madeira dourada
ouvem as mais populares do país, explica-nos, calcorreando
as novas ruínas, e depois as grandes avenidas sem-
à entrada da primeira galeria. E cantamos o hino
ucraniano, quatro horas mais tarde, no regresso, sirenes nem pre sob a ameaça dos mísseis Iskander: “A nossa ge-
ografia regional, com os seus lagos e os seus cursos
antes de voltarmos ao ar livre.
A batalha do carvão, na França de 1945, concluiu os altifalantes. de água, foi, no início da guerra, inimiga dos ata-
cantes russos — mas eis que, pelas mesmas razões,
a epopeia da Resistência. Aqui, na Ucrânia, os mi-
neiros são heróis épicos, na primeira linha de uma E, na Maidan hoje em dia ela torna difícil o contra-ataque.”
Mas, lá está. Entre o início e a atualidade, há uma
guerra que se trava sobre a terra e debaixo da terra.
Em qualquer reportagem, mesma a mais peno- arborizada e diferença que muda tudo. Os mísseis bem puderam
cair. Os alertas sucederam aos alertas. As sirenes,
sa, há momentos de alegria inesperada mas inten-
sa. Aqui, foi no sul de Zaporíjia, na frente, na com- deliciosamente a meio do dia, podem ressoar continuamente e os
altifalantes dos momentos importantes bramir que
panhia daquele magnífico mau rapaz a que no meu
filme “Porquê a Ucrânia” eu chamei Scarface, e que meridional, a ameaça é máxima e que é preciso descer imedi-
atamente para os abrigos. Os cidadãos já não têm
nos dá três boas notícias.
A primeira: em junho tínhamo-lo deixado em os velhos medo. Já não ouvem as sirenes nem os altifalantes.
E, na Maidan arborizada e deliciosamente meridi-
Huliaipole, cidade natal do anarquista Makhno —
agora está muito além daí e, embora me seja proibi- cavalheiros onal onde nos demorámos na esplanada de um bar
de sushi, os velhos cavalheiros continuam a jogar
do revelar a sua posição, posso dizer que progrediu
várias dezenas de quilómetros. continuam a xadrez como se nada se passasse, as velhas damas a
aquecer ao sol as pernas inchadas por terem passa-
A segunda: ele avançou sofrendo perdas míni-
mas — e reencontramos, tais como a vitória está a jogar xadrez do demasiado tempo nas filas dos pontos de abas-
tecimento, os adolescentes a namorar, e o “herói da

E 26
OFENSIVA Lyman, 20 quilómetros
a leste de Izium, no centro do
parque nacional Sviai Hory, onde os
russos reconstituíram uma posição.
Mas os ucranianos não os largam

Ucrânia” que entrevistamos a contar-nos as suas o duque de Richelieu, continua sepultada sob a sua E uma vez que este exército ucraniano era atacado,
grandes façanhas. montanha de sacos de juta branca cheios de areia, há seis meses, sobre a terra, nos ares e sobre o mar,
Só os cães se assustam, correm entre as árvores caíram os muros que barravam o acesso à escadaria temos de nos render às evidências: tal como encer-
e uivam à morte. Potemkin e ao porto. rou o céu em Kiev e começou a retomar o terreno
Foi em Odessa que começou, há seis meses, o Embarcamos num dos navios-patrulha da ma- perdido no Donbas, em Odessa parece ter voltado
meu compromisso nesta nova guerra ucraniana. rinha de guerra ucraniana. Com 30 metros de com- a dominar os mares.
Ora, é em Odessa que ele encontra o seu desfecho primento, equipado com um canhão de 30 mm, ele Não digo que a partida esteja acabada. E Putin,
provisório! Porque, no fundo, tudo está ali. A cidade tem uma missão de vigilância e interceção. Está como todos os ditadores encurralados, jogará por-
de Babel e de Pushkin era, na época, uma Troia as- encarregue de perscrutar o mar em busca do me- ventura o tudo por tudo para evitar a debandada, a
sediada. Não sabia se viria a ser Teruel ou Guernica, nor sinal que indique uma presença hostil. E foi um capitulação e os tribunais internacionais.
se iria viver ou morrer. E, muito astuto, o viajante navio como este que, em 13 de abril, provavelmen- Mas é a lei. No fim dos fins, quando Golias perde
era então capaz de prever que Putin “não ousaria” te calculou as coordenadas de tiro que permitiram o vigor e David é intrépido, a vitória cabe a David.
fazer da mais europeia das cidades da Ucrânia uma a um míssil de cruzeiro afundar o navio almirante E chega sempre o momento em que as máquinas
outra Mariupol. russo “Moskva” e assinalar assim uma das primei- de aniquilação e de morte se avariam. A Ucrânia
Hoje em dia, Odessa respira. Odessa renasce. ras proezas militares da Ucrânia. está prestes a ganhar a guerra — e a salvar a Euro-
Como em Mykolaiv, os velhos cafés da rua Deriba- Hoje, não há nenhum movimento suspeito. Não pa com ela. b
sovskaya começam timidamente a reabrir. E se a há nenhum navio inimigo, dizem-me os homens
estátua de bronze do governador francês da cidade, da equipagem, pelo menos até à ilha das Serpentes. e@expresso.impresa.pt

E 27
Está na hora de nos
prepararmos para
uma vitória ucraniana
A libertação do território ocupado
pela Rússia poderá derrubar Vladimir Putin
TEXTO ANNE APPLEBAUM/“THE ATLANTIC”

e civis publicaram fotografias de veí- acontecimentos dos últimos dias de- irá, por si só, compensar os ucrania-

N
culos e equipamentos militares aban- veriam forçar os aliados da Ucrânia a nos por esta invasão catastrófica.
donados à pressa, bem como vídeos parar e pensar. Foi criada uma nova Mas mesmo que se justifique, a
que mostram linhas de carros, presu- realidade: os ucranianos podem ven- definição ucraniana de vitória con-
mivelmente pertencentes a colabora- cer esta guerra. Estaremos nós no Oci- tinua a ser extraordinariamente am-
dores, a fugir dos territórios ocupados. dente realmente preparados para uma biciosa. Falando bem e depressa: é
Um relatório de um general ucraniano vitória ucraniana? Sabemos que outras difícil imaginar como a Rússia pode
os últimos seis dias, as forças armadas dizia que os soldados russos estavam a mudanças essa realidade pode trazer? satisfazer qualquer uma destas exi-
da Ucrânia romperam as linhas russas abandonar os seus uniformes, a vesti- Em março, escrevi que era altura gências — territoriais, financeiras,
na zona nordeste do país, avançaram rem roupas civis e a tentarem regres- de imaginar a possibilidade de vitória legais — enquanto o seu atual Presi-
para leste e libertaram cidade após a sar ao território russo. O serviço de e defini vitória de forma bastante res- dente permanecer no poder. Lembre-
cidade no que era, até então, território segurança ucraniano criou uma linha trita: “Significa que a Ucrânia continua -se, Vladimir Putin colocou a destru-
ocupado. Primeiro Balakliya, depois direta para onde os soldados russos a ser uma democracia soberana, com ição da Ucrânia no centro das suas
Kupyansk, depois Izium, uma cidade podem ligar se quiserem render-se e o direito de escolher os seus próprios políticas internas e externas e no co-
situada nas principais rotas de abaste- também publicou gravações de algu- líderes e de fazer os seus próprios tra- ração do que pretende que seja o seu
cimento. Estes nomes não significarão mas das chamadas. A diferença fun- tados.” Seis meses mais tarde, são ne- legado. Dois dias após o lançamento
muito para leitores estrangeiros, mas damental entre os soldados ucrania- cessários alguns ajustes a essa defini- da fracassada invasão de Kiev, a agên-
são lugares que têm estado fora do al- nos, que lutam pela existência do seu ção básica. Ontem, em Kiev, assisti ao cia de notícias estatal russa aciden-
cance dos ucranianos, impossíveis de país, e os soldados russos, que lutam ministro da Defesa ucraniano, Oleksii talmente publicou, e depois retratou-
contactar há meses. Agora caíram em pelo seu salário, começou finalmente Reznikov, dizer que a vitória deveria -se, um artigo que declarava prema-
poucas horas. Enquanto escrevo este a fazer a diferença. agora incluir não apenas um retorno turamente o sucesso da operação. O
texto, diz-se que as forças ucrania- Claro que essa diferença pode não às fronteiras da Ucrânia, como esta- artigo dizia que “a Rússia está a res-
nas lutam nos arredores de Donetsk, ser suficiente. Os soldados ucranianos vam em 1991, incluindo a Crimeia, bem taurar a sua união”. A dissolução da
uma cidade ocupada pela Rússia des- podem estar mais motivados, mas os como Donbas no leste da Ucrânia, mas URSS — a “tragédia de 1991, essa ter-
de 2014. russos ainda têm um maior armaze- também reparações para pagar pelos rível catástrofe da nossa história” —
Muitos dados sobre este avanço são namento de armas e munições. Ain- danos e tribunais de crimes de guer- tinha sido superada. Era o início de
inesperados, sobretudo a localização: da podem infligir sofrimento a civis, ra para dar às vítimas algum sentido uma “nova era”.
durante muitas semanas, os ucrania- como fizeram no aparente ataque de de justiça. Essa missão original já falhou. Não
nos telegrafaram ruidosamente a sua hoje à rede elétrica em Kharkiv e nou- Estas exigências não são, de ma- haverá a tal “nova era”. A União Sovi-
intenção de lançar uma ofensiva im- tros locais do leste da Ucrânia. Muitas neira nenhuma, escandalosas ou ex- ética não será ressuscitada. E quando
portante mais a sul. O maior choque outras opções cruéis — opções horrí- tremas. Afinal de contas, isto nunca foi as elites russas perceberem por fim
não é a tática da Ucrânia, mas a res- veis — estão ainda em aberto até mes- apenas uma guerra por território, mas que o projeto imperial de Putin não é
posta da Rússia. “O que nos surpre- mo para uma Rússia cujos soldados antes uma campanha travada com a apenas um fracasso pessoal do Presi-
ende realmente é que as tropas russas não querem lutar. A central nuclear de intenção de genocídio. As forças rus- dente, mas também um desastre mo-
não estão a ripostar”, disse ontem de Zaporíjia permanece dentro da zona sas nos territórios ocupados tortura- ral, político e económico para todo
manhã o tenente-geral Yevhen Moi- de guerra. Os propagandistas russos ram e assassinaram civis, prenderam o país, elas próprias incluídas, então
siuk, comandante adjunto das forças andam a falar sobre armas nucleares e deportaram centenas de milhares de a sua pretensão de ser o governan-
armadas ucranianas, em Kiev. desde o início da guerra. Embora as pessoas, destruíram teatros, museus, te legítimo da Rússia irá desaparecer.
As tropas russas não estão a ripos- tropas russas não estejam a lutar no escolas, hospitais. Bombardeamentos Quando escrevo que os americanos e
tar. Mais do que isso: podendo esco- Norte, ainda resistem à ofensiva ucra- em cidades ucranianas, longe da linha os europeus precisam de se preparar
lher entre lutar ou fugir, muitos pare- niana no Sul. da frente, mataram civis e custaram à para uma vitória ucraniana, é isso que
cem estar a fugir o mais rapidamente Mas embora os combates pos- Ucrânia milhares de milhões em da- eu quero dizer: devemos esperar que
possível. Durante vários dias, soldados sam ainda dar muitas voltas, os nos patrimoniais. Devolver a terra não uma vitória ucraniana, e certamente

E 28
KREMLIN PRESS OFFICE/HANDOUT/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

ESCALADA Vladimir Putin,


a 21 de setembro, no dia
em que anunciou a
mobilização e ameaçou com
o uso de armas nucleares

uma vitória no entendimento do ter- repito: é inconcebível que possa con- retrógrada de grandeza russa. Não de- essa questão nos nossos planos. Os
mo por parte da Ucrânia, também tra- tinuar a governar se a peça-chave da vem planear negociar nos seus termos, soldados russos estão a fugir, abando-
rá o fim do regime de Putin. sua reivindicação de legitimidade, a porque poderão estar a lidar com ou- nando o seu equipamento e pedindo
Para ser claro: isto não é uma pre- sua promessa de voltar a unir a União tra pessoa completamente diferente. rendição. Quanto tempo teremos de
visão, é um aviso. Muitas coisas no Soviética, se mostrar não apenas im- Mesmo se provarem ser efémeros, esperar até que os homens mais pró-
atual sistema político russo são es- possível, mas ridícula. os acontecimentos dos últimos dias ximos de Putin façam o mesmo?
tranhas e uma das mais estranhas é a Preparar a saída de Putin não sig- alteram a natureza desta guerra. Des- A possibilidade de instabilidade na
ausência total de um mecanismo de nifica que os americanos, os europeus de o início que todos, europeus, ame- Rússia, uma potência nuclear, aterro-
sucessão. Não só não temos ideia de ou quaisquer estrangeiros interve- ricanos e o mundo empresarial em riza muitos, mas pode agora ser ine-
quem irá ou poderá substituir Putin, nham diretamente na política de Mos- particular, queriam um retorno à es- vitável. E, se é isso que está a aconte-
como não temos ideia de quem irá ou covo. Não temos ferramentas que pos- tabilidade. Mas o caminho para a es- cer, devemos antecipá-lo, planeá-lo,
poderá escolher essa pessoa. Na União sam afetar o rumo dos acontecimentos tabilidade na Ucrânia, a estabilidade pensar nas possibilidades, bem como
Soviética havia um Politburo, um gru- no Kremlin e qualquer esforço para duradoura, tem sido difícil de ver. No nos perigos. “Aprendemos a não ter
po de pessoas que teoricamente pode- intervir iria certamente sair furado. fim de contas, qualquer cessar-fogo medo”, disse Reznikov à sua audiên-
ria tomar tal decisão e, muito ocasio- Mas isso também não significa que o imposto demasiado cedo poderia ser cia em Kiev no sábado. “Agora, pedi-
nalmente, o fez. Na Rússia, pelo con- devemos ajudar a permanecer no po- visto, por Moscovo, como uma opor- mos-vos, a todos vocês, que também
trário, não existe nenhum mecanismo der. À medida que chefes de Estado, tunidade para se rearmar. Qualquer não tenham medo.” b
de transição. Não há nenhum delfim. ministros dos negócios estrangeiros oferta de negociação poderia ser en-
Putin recusou mesmo deixar que os e os generais ocidentais pensam so- tendida, em Moscovo, como um sinal Artigo publicado originalmente a 11 de
russos contemplassem uma alternati- bre como acabar com esta guerra, não de fraqueza. Mas agora é o momento setembro de 2022
va à sua marca gananciosa e corrup- devem tentar preservar a visão de Pu- de nos interrogarmos sobre a estabi-
ta de poder cleptocrático. No entanto, tin de si ou do mundo, a sua definição lidade da própria Rússia e de incluir e@expresso.impresa.pt

E 29
E 30
A carne
antes
do prato
Mais do que conhecer a qualidade
do animal que comemos,
parecemos estar cada vez mais
preocupados em saber tudo
o que se passa com ele antes
de se tornar uma refeição.
Preocupações éticas estão agora
sobre a mesa — e nós precisamos
de falar sobre isso

TEXTO E FOTOGRAFIAS RAFAEL TONON


JORNALISTA DE GASTRONOMIA

E 31
E
entregam sua vida. “Para nós, cozinheiros, é um “enojados ao saber que um milhão dessas aves in-
momento de consciência, de perceber o que está por teligentes e sensíveis está a morrer todas as semanas
trás daquilo que preparamos e servimos”, explica o para se conseguir pôr frango barato nos pratos”. “A
chefe Guido Tassi, que comanda o restaurante espe- miséria absoluta que esses animais enfrentam dia-
cializado em carne Don Julio, localizado na capital riamente é desnecessária e deveria causar indigna-
argentina. Há sete anos que toda a sua equipa sai do ção até nos comedores de carne mais fervorosos,
restaurante e se desloca para o campo a fim de rea- porque não serve para nada, além de satisfazer os
lizar a faena. “É um momento importante também lucros dos nossos grandes supermercados, que se
de tradição, ainda que com uma visão mais atual. De recusam a ajudá-los”, afirmou.
uma maneira geral, distanciamo-nos muito da ori- Os frangos mortos são principalmente de ra-
gem da comida e passamos a acreditar que tudo se ças de crescimento rápido, geneticamente adapta-
resume às embalagens que compramos nos super- dos para atingir o peso de abate em apenas 35 dias,
mercados, desprovidas de qualquer vida, história, chegando a ele pelo menos três vezes mais depres-
reflexão”, frisa Guido Tassi. sa do que as raças convencionais, que dominavam
o mercado há 50 anos. Trata-se de um dos maiores
NA LINHA DA FRENTE “sucessos” da indústria alimentar: frangos que são
O distanciamento de que fala Tassi tem-se tornado comercializados (juntamente com um manual de
uma questão cada vez mais premente numa socie- desempenho de 15 páginas, tal como os produtos
dade que parece estar a despertar (ainda que deva- eletrónicos) com baixos custos de produção e um
gar) para a relação existente com aquilo que come preço muito mais acessível para os consumidores. A
— principalmente no que se refere aos animais. Du- questão é o que está por trás de toda essa eficiência.
rante muito tempo, escolhemos distanciarmo-nos Em muitos casos, os animais crescem tão rapida-
de qualquer ideia de responsabilização que a nossa mente que os seus corações e estruturas ósseas têm
alimentação nos possa dar. A nós mesmos, muitas dificuldade em acompanhar o desenvolvimento —
ra o início de uma manhã gélida de quinta-feira em vezes, mas também aos outros e ao planeta, quase muitos apresentam doenças de mobilidade e mus-
Los Cardales, na zona rural de Buenos Aires, e cer- sempre. Com novos estudos científicos a comprova- culares ou acabam mesmo por morrer, como mos-
ca de 30 cozinheiros e empregados de mesa já es- rem a ligação da nossa atual alimentação aos muitos tram os dados da Open Cages.
tavam a afiar facas, martelar ripas, empilhar bacias danos ambientais (alguém falou em mudanças cli- Casos como os dos frangos ingleses (com reali-
de alumínio e acender uma pequena fogueira para máticas?) e a senciência de muitas espécies animais dades semelhantes ou idênticas em todo o mundo,
espantar o frio de 5 graus Celsius. Tinham saído de — ou seja, a capacidade que elas têm de sentir dor inclusive em Portugal) levantam questões urgentes
Buenos Aires às 7h para conseguirem chegar a tem- e sofrer —, enfrentaremos cada vez mais um impla- sobre o tratamento que damos aos animais que co-
po de realizar as tarefas que se estenderiam por dois cável e impreterível dilema moral sobre aquilo que memos. E que tipo de vida lhes oferecemos. “Deve-
dias. Num grande quadro de madeira, o roteiro das colocamos no prato. mos dar aos animais uma vida pela qual valha a pena
próximas horas, escrito a giz, dava conta de 37 ati- Na era da informação, com notícias expostas nas viver”, costuma afirmar a especialista em bem-es-
vidades, entre “picar salsinha”, “cortar o toucinho” nossas caras no metro, na televisão e nos ecrãs dos tar animal Temple Grandin, conhecida por ter cria-
e “limpeza das tripas”. Quando um dos cozinheiros telemóveis, tem-se tornado impossível fechar os do um método de gestão de rebanhos que respeita
riscou a primeira palavra da lista — “sacrifício” —, olhos aos factos — ainda que haja quem insista em o comportamento natural dos animais.
todos deixaram a pequena choupana, uma cabana, desviar o olhar. No meio de uma nova escalada de As recentes discussões sobre o tema estão a trans-
em direção ao curral onde estavam os porcos. Na- fome no planeta, reflexo da pandemia de covid-19 e formar o comportamento de muitas pessoas, que
quela manhã, o escolhido foi um animal adulto, gor- de uma nova estagnação económica com alta infla- têm abdicado do consumo de alimentos provenien-
do, da raça Duroc, com pelagem castanha. ção, a crise do sistema de produção alimentar tem tes de animais. Depois de a revista “The Economist”
Todos os anos, quando o inverno chega, os ar- ganhado maior debate, mostrando que o problema ter nomeado 2019 como “O Ano do Vegano” e a Or-
gentinos que vivem no campo organizam a faena. que enfrentamos na maneira de produzir a nossa co- ganização Mundial da Saúde ter publicado relatórios
É o nome que dão ao ritual de sacrifício do animal, mida é mais latente do que pensamos. a defender uma dieta baseada maioritariamente em
que é morto para se tornar alimento nos meses difí- Em julho, uma análise divulgada pelos jornais vegetais como a melhor opção para a saúde e para o
ceis que virão, quando as baixas temperaturas im- chocou a sociedade britânica: um levantamento planeta, o vegetarianismo e o veganismo parecem
pedem a Natureza de agir com generosidade. Mais feito pela organização de bem-estar animal Open crescer de forma exponencial: na Europa, o consu-
do que uma tradição, é um ato de respeito para com Cages, baseado em dados do Governo, revelou que mo de carne diminuiu quase 20% na última década.
todas as partes do animal, que depois são assadas cerca de 64 milhões de galinhas morrem prematu- Principalmente nas novas gerações, mais propensas
em confraternização e se transformam em todo o ramente todos os anos no Reino Unido. Isto signifi- à adoção de novos hábitos, o comportamento repe-
tipo de enchidos para os dias de inverno: pé, fíga- ca que a cada semana mais de um milhão de frangos te-se com maior frequência. Claro que isso não sig-
do, couro, intestino, rins... nada é desperdiçado. Ao de corte não chegam sequer a atingir o peso mínimo nifica que vamos acabar com a carne no nosso prato
final da 37ª atividade, os ossos do porco são exibidos para serem abatidos — morrem antes disso. Normal- — não, pelo menos a curto prazo. O jornalista Ezra
sobre a mesa onde foi dissecado e processado, como mente, as aves mortas são incineradas ou transfor- Klein escreveu na sua coluna no jornal “The New
forma de honrar sua morte. madas em farinha de proteína — que depois é dada York Times”: “Sou vegano, mas também sou realista.
Na Argentina, assim como em muitos outros paí- aos próprios animais. Não é possível que a Humanidade desista da carne,
ses, o rito da carneada é um resgate para se huma- Diante dos números, o naturalista e apresenta- em massa, tão cedo. Dito isto, não podemos apenas
nizar o facto de que somos animais que invariavel- dor inglês Chris Packham veio a público dizer que desejar que os riscos da pecuária industrial sejam
mente comemos outros animais que, para isso, nos esperava que os consumidores ficassem totalmente eliminados. Se não acabarmos com esse sistema, em

Na Europa, o consumo de carne diminuiu


quase 20% na última década. As novas gerações,
mais propensas à adoção de novos hábitos,
são as maiores responsáveis pela mudança
E 32
TRADIÇÃO Quando o inverno
chega, os argentinos que
vivem no campo organizam a
faena. Nada se desperdiça no
animal sacrificado, que se
transforma em todo o tipo de
enchidos para os dias mais frios

E 33
CHEFE Guido Tassi
comanda o restaurante
especializado em
carne Don Julio,
na capital argentina

E 34
A pecuária intensiva é a mais destrutiva de todas
as indústrias: é a principal causa da destruição
de habitats, da perda de vida selvagem, da degradação
de solo, do uso indiscriminado de água
e uma das principais causas do colapso climático
breve, coisas terríveis acontecerão connosco e com o das paisagens mais sustentáveis do mundo, pela alguns anos, segundo vários futuristas, poderemos
planeta. Coisas terríveis já estão a acontecer.” maneira integrada com que os animais são criados. ter propriedades com sistema de monitorização dos
“Aqui, desde que chegam, os animais ficam total- animais, para que possamos comprovar as condi-
REDUZIR OS MAUS-TRATOS mente livres, nunca são condicionados a um espaço ções a que são submetidos. Através de um QR Code
Nas últimas décadas, documentários, livros e desas- físico limitado. Podem expressar todos os seus sen- na embalagem, poderemos ver em direto as quintas
tres crescentes deixaram claro que o atual sistema tidos”, explica. E isso acontece desde que nascem. onde as vacas pastam alegremente, um autêntico Big
alimentar do mundo, repleto de fábricas e confina- As porcas, por exemplo, são deixadas para parir em Brother pecuário e distópico.
mentos, não pode ser sustentável sem deixar o plane- propriedades mais pequenas, com água e sombra, “O movimento crescente de uma ideia de ‘liber-
ta e o seu povo doentes. A pecuária intensiva, defen- onde podem estar mais próximas das crias por um tação animal’ deverá ser percebido como um movi-
dem cientistas e ambientalistas, é a mais destrutiva período de, no mínimo, 90 dias. Só depois os leitões mento típico de justiça civil, como hoje encaramos o
de todas as indústrias da Terra: é a principal causa da são transferidos para uma área de 10 hectares, onde feminismo, o antirracismo e outros movimentos se-
destruição de habitats, da perda de vida selvagem, da podem viver em total liberdade. “Para nós, tudo tem melhantes de luta por uma política antiopressiva”,
degradação de solo, do uso indiscriminado de água e como base o bem-estar animal. Os nossos animais afirma a investigadora Yamini Narayanan, professora
uma das principais causas do colapso climático que movem-se por pastagens novas todos os dias, num na Deakin University, em Melbourne, na Austrália.
vivemos. E ainda traz uma questão moral cada vez sistema de rotação. Nunca ficam em contacto com O futuro também nos reserva novas formas de
mais sensível: a crueldade animal, que tem man- os seus excrementos e têm sombra e a paisagem do produzir alimentos com base animal em que o sofri-
chado de sangue as mãos humanas durante décadas. montado ao seu dispor”, revela Francisco Alves. mento seja total ou parcialmente eliminado da equa-
Já lá vão mais de quatro desde que o filósofo aus- O criador alentejano acredita que Portugal tem ção. Ou até mesmo que os próprios animais estejam
traliano Peter Singer publicou o livro “Libertação potencial para se tornar um exemplo de produção gradualmente menos presentes, como na produção
Animal”, marco do movimento pelos direitos dos focada no bem-estar para todo o mundo. “Pela com- de carne real em laboratório utilizando apenas cé-
animais, em que pregava que eles podem sofrer e plexidade e pela heterogeneidade, o nosso país tem lulas-tronco retiradas de vacas, porcos, galinhas e
que deveríamos considerar moralmente condenável uma enorme potencialidade de construir um sistema peixes. A tecnologia, conhecida como carne culti-
infligir-lhes sofrimento contínuo e sistematizado, mais integrado, até porque temos a quase totalidade vada, já está em prática, ainda que seja financeira-
do nascimento à morte. Na altura, pouco se falava da criação de animais em método extensivo, e não mente inviável hoje transpô-la dos ambientes aca-
dos animais criados para alimentação nas quintas, intensivo, como os principais produtores do mun- démicos para os talhos e os mercados. Ainda que a
até então vistos de uma forma mais “funcional” na do”, diz Francisco, que não tem dúvidas de que, com boa notícia seja que isso deverá ser possível no fu-
nossa sociedade. “Cada vez mais, o que vai pautar as decisões certas, Portugal pode tornar-se uma mar- turo, a má indica que vai levar muitos anos para que
as nossas relações com os animais é a transparência. ca de sustentabilidade reconhecida mundialmente. tal se concretize.
Vivemos uma era de consciencialização. De onde Os métodos de criação que têm o conforto do ani- A solução mais provável vinda da inovação, para
vem a carne que comemos? Sob que condições é mal como maior foco tendem a crescer, já que cada amenizar métodos que possam causar alguns maus-
produzida? Essas preocupações vão crescer expo- vez mais o consumidor parece estar atento a isso — -tratos ou sofrimento animal, é a que os cientistas
nencialmente”, disse-nos Singer numa entrevista ainda que, admite, não seja possível criar animais defendem como edição genética (chamada tecnolo-
realizada há já sete anos. Desde aí, o debate tem vin- de forma extensiva para toda a população, por causa gia CRISPR). É o mesmo tipo de técnica usada para
do a ganhar mais visibilidade. do valor mais elevado que isso tem. Acabar com as as raças de crescimento rápido, mas com um propó-
Desde 1975 (data do lançamento do livro), po- mortes desnecessárias e o sofrimento é um objeti- sito mais nobre. Empresas de genética, em parceria
rém, muita coisa mudou na forma como a sociedade vo moral digno para quem pode fazer escolhas. “No com produtores de carne, podem criar animais re-
se relaciona com os animais. À medida que a indús- nosso caso, a carne que queremos vender e colocar sistentes a doenças, por exemplo — tanto congéni-
tria pecuária se intensificou para alimentar o dobro no mercado leva em conta nunca abater animais jo- tas como relacionadas com o meio ambiente —, ou
de pessoas no planeta nestes quase 50 anos, a ciência vens, por exemplo. A qualidade da carne dos animais eliminar características físicas, como os chifres nos
também descobriu novas evidências de que algum mais velhos é melhor, mais benéfica para a saúde, e bezerros (que acabaria com um procedimento dolo-
tipo de consciência não é exclusiva dos humanos (e também conseguimos oferecer mais tempo de vida roso, mas comum, conhecido como amochamento
primatas, em geral). Ao mesmo tempo, empresários aos animais, o que gera um impacto positivo”, afir- ou descorna).
e cientistas do ramo têm passado décadas a trabalhar ma Francisco. Um animal com stresse ou com fome Em março, a agência de segurança alimentar
para desenvolver alternativas à carne com alto teor não consegue expressar todos os seus instintos. “É norte-americana, a Food and Drug Administration,
de proteínas, a partir de plantas, e a encontrar formas um animal condicionado que acaba por perder o seu aprovou o consumo de duas espécies de bovinos ge-
de reduzir os maus-tratos aos animais — formas es- potencial e ter uma pior qualidade de vida.” E, con- neticamente modificados. Usando procedimentos
sas que, ironicamente, estão mais próximas do nos- sequentemente, de produção de carne. de alteração de ADN, os animais usados para a ali-
so passado do que de uma suposta ideia de “futuro”. mentação humana crescem com pelo mais curto, o
No Alentejo, a Herdade de São Luís olha para a FUTURO SEM SOFRIMENTO que os ajuda a tolerar melhor o calor e a sofrer menos
tradição para construir um caminho mais humano As quintas que têm como foco o bem-estar terão nas estações mais quentes. Ao que tudo indica, no-
para os seus animais — de bovinos Angus a cabras uma vantagem comercial no futuro, à medida que vas legislações e normativas devem surgir à medida
serpentinas. “Para termos mais respeito para com os métodos de criação pouco humanos são consi- que possamos avançar no entendimento científico
as outras espécies, não há dúvida nenhuma de que derados cada vez menos éticos... ou aceitáveis. Vi- do sofrimento dos animais. Assim, eliminá-los da
o equilíbrio se consegue ao estar em contacto com veremos um tempo em que comer carne de porcos nossa dieta poderá ser tão natural como restringir o
a Natureza, respeitando-a. Não há outra maneira de confinados e agredidos será moralmente reprovável, sal ou o açúcar de um alimento. b
ser”, afirma Francisco Alves, um dos proprietários à medida que o nosso conhecimento científico sobre
da quinta, localizada no montado alentejano, uma o sofrimento dos animais seja mais esclarecido. Em e@expresso.impresa.pt

E 35
RUI OLIVEIRA

Outros amarão
as coisas que eu amei
Viagem de norte a sul pelas casas-museu que guardam
a memória de ilustres e desconhecidos portugueses

E 36
CENÁRIO A Casa-Museu
Fernando de Castro,
no Porto, transporta-nos
para o mundo delirante
e fascinante de um dos
maiores colecionadores
de arte sacra do país

TEXTO ANA SOROMENHO

E 37
A
sala é ampla e luminosa, cheira a limpeza e a madei-
ra encerada. Em cima da mesa holandesa, do sécu-
lo VXIII, os pratos e as terrinas brancas e azuis estão
geometricamente dispostos. Mas, entre as valiosas
peças do serviço de louça de Cantão, é o amarelo e
laranja das cravinas que brilha nas jarras em cima da
mesa da sala de jantar. Foram recolhidas nos cantei-
ros do jardim logo de manhã. À mesma hora, todas
as cortinas da casa foram abertas, para que as jane-
las deixassem entrar o sol e o ar fresco.
Tudo parece estar no seu devido lugar: as lou-
do espólio literário da casa. A biblioteca científica
foi doada ao instituto com o seu nome, em Lisboa.
Era um homem prolífero e palavroso que gosta-
va de escrever. Escreveu muito. Entre os trabalhos
científicos e de divagação literária, deixou cerca de
300 obras. Uma delas foi “A Nossa Casa”, redigida
num desses verões, onde ao longo de 402 páginas,
incluindo gravuras, traça a autobiografia da infân-
cia e juventude e conta detalhadamente a história
da sua “família provinciana”. Ficamos assim a sa-
ber que a “Casa do Marinheiro”, como também é
ças, os móveis, os objetos, as pinturas de paisagens conhecida, foi o lugar dos seus antepassados. No
flamengas... Se por um breve instante fechássemos final do século XIX foi vendida em hasta pública,
os olhos e o tempo pudesse ser engolido numa ana- depois de um desaire familiar provocado pela mor-
RUI OLIVEIRA

lepse, como só acontece no cinema e nos sonhos, te por tuberculose da irmã Luciana e de o pai ter
era provável que quando os voltássemos a abrir en- emigrado para Moçambique.
contrássemos António Egas Moniz debruçado sobre Outras coisas turbulentas aconteceram no li-
a mesa dos drinks e das garrafas de cristal, pronto miar do século XIX para o XX, muito antes de Egas
para receber os seus convidados num fim de tarde Moniz ser projetado para a galeria das personali-
de setembro. dades nacionais. Em 1899, no ano em que termina preservando o legado patrimonial e afetivo, man-
Foi nesta sala de jantar que Egas Moniz nasceu, a licenciatura, perde os pais e todos os familiares tendo viva a memória do “professor”. A sua equipa,
a 29 de novembro de 1874, e era a esta casa da sua mais próximos. Tem apenas 25 anos, é um homem composta por cinco pessoas, não só trata da divul-
quinta em Avanca, no município de Estarreja, que só. Mas a casa familiar, dos verões da infância, é gação da obra, editando vários livros e organizando
regressava verão após verão, acompanhado de El- recuperada praticamente em ruínas e reconstruída um programa de eventos e de visitas guiadas, como
vira Macedo Dias, a luso-brasileira com quem ca- num projeto do arquiteto luso-suíço Ernesto Korro- cuida diariamente para que a casa se mantenha im-
sou em 1901. Chegavam sempre na última semana di, com a traça de chalet neoclássico que ainda hoje pecável. “No primeiro semestre deste ano tivemos
de agosto e aqui passavam o mês de setembro, num apresenta. Até à data da sua morte, será o centro do cerca de 800 visitas. As pessoas têm de sentir a casa
remanso entre convívios estivais e o descanso ne- seu mundo afetivo. como se estivessem a ser recebidas pelo professor.”
cessário para retemperar as forças da intensa ocu- Quatro anos antes de morrer, com 81 anos, An- A sua relação com a casa e o legado do “profes-
pação profissional e dos inúmeros afazeres a que se tónio Caetano Freire Egas Moniz tinha redigido um sor” é umbilical. Na primeira vez que lá entrou ain-
dedicava o professor e ilustre neurocirurgião, Pré- testamento onde expressava a vontade de que a casa da era vivo Joaquim, o mordomo do médico, que lhe
mio Nobel da Medicina em 1949, pela sua investi- de Avanca fosse transformada num museu regional. fez a visita, explicando tudo sobre os objetos e sobre
gação no campo da angiografia. Deixou indicações de como deveriam ser expostas as o “professor”, tinha ela então 10 anos. A impressão
Percorremos os salões. Passamos pela sala de coleções de arte acumuladas ao longo da vida, inte- que sentiu foi tão forte que logo formulou o desejo de
jogo, onde em cima da mesa aberta está um bara- grando também as do palacete da 5 de Outubro, em um dia ir para lá trabalhar. Formou-se em História.
lho de cartas e se destaca um contador indo-euro- Lisboa, onde o casal vivia. Foi Elvira Moniz, que lhe Quando terminou o percurso universitário, com 23
peu. Egas Moniz tinha gosto de colecionador. Ao sobreviveu 10 anos, que corporizou o desejo do ma- anos, veio. Foi a primeira funcionária da autarquia a
longo da vida foi adquirindo boas peças, compra- rido e preparou as condições para que a sua memó- entrar na casa, a reabrir as janelas e as portas, a es-
das nos antiquários do Porto e de Lisboa. Dizia que ria se perpetuasse neste espaço físico. Inaugurada vaziar os baús e a desatar os nós da correspondên-
gostava de se rodear de coisas belas, para sublimar em 1968, a Casa-Museu Egas Moniz foi a primeira a cia, a fazer o inventário... Nos álbuns procurou uma
a frieza do ato científico. Entramos na biblioteca, ser constituída a partir do ambiente íntimo de uma a uma fotografias da casa, para repor todos os mó-
com uma bay window projetada sobre o jardim. personalidade que se pôde visitar no país. Em 1985, veis e peças no sítio onde tinham estado em vida do
Há um esquisso de Domingos Sequeira, uns dos 12 depois de ter passado por um largo período de aban- casal. Pelas agendas ficou a par das rotinas. Desde a
desenhos feitos para “A Sagração dos Magos”. Ali- dono, foi incorporada no município de Estarreja. hora de ir ao alfaiate ou de ir buscar o chapéu novo às
nhada nas estantes, descobrimos a obra comple- “Todo o rés do chão mantém-se inalterável ao visitas aos antiquários, às saídas de casa a caminho
ta de grandes clássicos. Voltaire, Luís de Camões, tempo e vida do professor”, informa Rosa Maria das aulas e a todos os recados que o chofer tinha de
Lord Byron, Rousseau, Victor Hugo... São cerca de Rodrigues, cicerone na nossa visita, diretora da Ca- fazer. Até as horas a que começavam as partidas de
duas mil edições encadernadas que fazem parte sa-Museu Egas Moniz. Há 35 anos que aí trabalha, cartas eram anotadas. António Egas Moniz era um

E 38
ETERNIDADE
A Casa-Museu Egas
Moniz, em Avanca,
onde o Prémio Nobel
da Medicina português
nasceu e onde passou
todos os verões da sua
vida, mantém-se
praticamente inalterável

Se uma casa-museu é um lugar híbrido, cons-


truído pelos objetos que revelam uma vivência a
partir de uma interpretação museológica de quem
toma conta do espaço, para o visitante tanto maior
é o fascínio quando se pode resgatar pelas pistas
que lhe são reveladas o lado mais íntimo da perso-
nalidade que a habitou. “O que é uma casa-museu?
O que é que a caracteriza? Como se devem traba-
lhar?” Foi a partir destas interrogações que, em
2019, foi lançada a monografia “10 Anos de Refle-
xão sobre Casas-Museu em Portugal”. “O conceito
de casa-museu é bastante abrangente, servindo de
designação para um conjunto de unidades museo-
lógicas que não são enquadradas nos pressupostos
internacionalizados para definir unidades desse
tipo”, indicava António Ponte, responsável pela
matéria em reflexão e atual diretor do Museu Soares
dos Reis. Entre os vários artigos publicados sobre o
assunto, tenta-se esclarecer as questões que estes
espaços evocam, assim como se procura criar um
sistema de classificação das diversas tipologias que
Antes de morrer, homem obsessivamente meticuloso, o que lhe faci-
litou o caminho para ir construindo o personagem.
podem diferenciar cada um destes espaços.
Assim, ficamos a saber que existem casas de in-
Egas Moniz Numa sala, construída após a morte, é prestada
uma pequena homenagem ao cientista, com foto-
teresse histórico local, “onde o acervo é composto de
objetos de diferentes períodos históricos”; casas de
tinha redigido grafias de todos os colaboradores, os instrumentos
usados nas operações, imagens do cérebro em cai-
interesse social, nas quais os objetos que se apresen-
tam documentam a vida quotidiana dos ocupantes;

um testamento xas de luz e os primeiros estudos, com anotações


escritas à mão. Segundo nos diz a diretora, Egas
ou as de interesse biográfico, nas “quais as coleções
podem ser constituídas a partir de manuscritos, ob-

onde expressava Moniz teria dado indicações para a construção des-


ta sala. “Não só era muito meticuloso como extre-
jetos pessoais, peças de decoração ou coleções”. Re-
vela o mesmo estudo que os profissionais que tomam

a vontade mamente cioso do seu património”, indica.


Observamos os retratos cuidadosamente co-
conta destes espaços são o seu maior sustentáculo.
Regressamos à casa de Egas Moniz, que, apesar

de que a casa locados em cima de uma cómoda D. José. Lá está


ele, muito aprumado, de fato e gravata, cabelo bem
de ser o único português a receber o Prémio Nobel
da Medicina, viu a sua memória coletiva manchada

de Avanca, aparado, brilhantina e risco ao meio, de olhar segu-


ro e sério, vagamente fitando o infinito. No retrato
por ter inventado a técnica da lobotomia. O último
espaço que Rosa Maria Rodrigues nos indica foi se-

onde tinha ao lado, igualmente aprumada e de cabelo armado,


Elvira parece fitar o marido. Não tiveram filhos. A
guramente construído para ser a sala da memória,
onde toda a narrativa se ajusta. Saímos com a sensa-

nascido, fosse necessidade de deixar tudo destinado teria a ver


com o facto de não haver herdeiros diretos, inda-
ção de que Egas Moniz não deixou por mãos alheias
a construção que o projetou na eternidade.

transformada gamos, enquanto somos conduzidos ao átrio, onde


somos expostos perante uma série de retratos. Rosa A SÓBRIA MARTA

num museu Maria tem outra interpretação. Inumera as figu-


ras: o avô paterno, o pai, a mãe, o tio abade que o
A Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio transporta-
-nos para um universo diferente. Nada é imediata-

regional educou, a irmã que morreu jovem... “Nenhum dos


descendentes viu a projeção do homem que tudo o
mente revelado sobre a natureza da mulher que deu
o nome a este edifício de vários pisos e de facha-
que quis conseguiu.” E, depois de uma pausa, re- da modernista, desenhado e construído para ser a
vela: “Para mim, esta casa é uma homenagem ao sua residência e albergar as suas coleções. Projeta-
clã perdido, e é aqui que está o coração da casa.” do em 1958 e considerado à época um dos edifícios

E 39
mais arrojados do Porto, foi uma encomenda dela esmero de uma boa educação permitida às mulhe- tiveram na sobrinha é-nos revelada pela presença
ao arquiteto então emergente José Carlos Loureiro res que nasceram na transição do século XIX para das suas obras na casa-museu. Olhamos o tríptico
e é uma das raras, senão a única, casa-museu na- o XX. Estudaram música, desenho e pintura, tive- pintado em forma de biombo, a “História de Pedro
cional dedicada a uma mulher. Também por isso a ram acesso ao círculo artístico do pai, que convi- Coelho”, inspirado no conto infantil de Beatrix Po-
possibilidade de aceder a um espaço musealizado via com os pintores naturalistas como Silva Porto, tter, pintado para as sobrinhas, que tinha lugar de
e organizado em torno de uma geografia domésti- Marques de Oliveira, Carlos Reis, José Malhoa ou destaque na sala de jantar de São Mamede da In-
ca feminina tinha acrescentado interesse à visita. Artur Loureiro Roque, cujas obras podemos ver em festa, e para o retrato em pastel da sua mãe, Estela.
Embora tenha planeado morar nesta casa, Mar- vários momentos da visita. Observamos a imagem de alegria transmitida no
ta Ortigão Sampaio nunca chegou a mudar-se para Olhamos para uma sanguínea de António Car- autorretrato de Sofia de Sousa, que se representa a
o prédio da Rua de Nossa Senhora de Fátima. Na al- neiro, um dos raros retratos exposto de Marta, então rir, mostrando os dentes, “coisa que ninguém fa-
tura da construção da obra, Armando Sequeira, o com 17 anos. “O pai tinha um sentimento de grande zia, nem se pintava assim naquela época”, faz-nos
marido, falecera e ela, então viúva, não conseguiu proteção para com as filhas e educou-as sob princí- notar Zita Rocha. Sem dúvida um gesto de grande
sair da casa da quinta de São Mamede da Infesta, pios rígidos e austeros, muito preservadas no círcu- arrojo. Ao longo da vida, Marta colecionou todas as
em Matosinhos, onde o casal morava. Tem algumas lo familiar. Teve de esperar que o pai morresse para obras das tias que ia conseguindo comprar, e não só
particularidades este espaço nunca habitado pela casar com o amor da sua vida”, informa subitamen- aos familiares, resgatando-as da sombra.
mulher que o sonhou e mandou construir. Desde te Zita Rocha. Tinha então 52 anos, não poderá ter Descemos até ao piso onde se encontra expos-
logo, a escolha dos materiais do projeto de Lourei- filhos. Mas era uma herdeira rica e com posses su- to o ex-líbris da casa e ficamos a conhecer a obra
ro, como o revestimento em cerâmica vidrada da ficientes para acrescentar às coleções do pai outras maior da colecionadora, onde se albergam as 32
fachada do edifício e a relação com o jardim, cujas aquisições e a elas dedicar-se inteiramente. peças da melhor joalharia portuguesa do final do
janelas se rasgam para o exterior para receber a luz Um dos núcleos de pinturas mais interessan- século XVIII até ao século XX. Marta dedicou cer-
e as sombras projetadas pelas árvores e uma mis- tes que aqui se encontra é o de Aurélia de Sousa, tamente um particular empenho a esta magnífica
tura de desenhos e pormenores nos interiores que a singular artista portuguesa, cujo trabalho tem coleção de joias, a maioria das quais estava a uso
combinam detalhes de arquitetura depurada com vindo a ser exposto e estudado nos últimos anos, pessoal. Focamos a atenção no conjunto de alfine-
os ambientes clássicos de final do século XIX. dando-lhe o merecido destaque entre os grandes te de esmeralda e brincos de ouro e diamantes que
A grande preocupação de Marta eram as suas artistas das primeiras gerações do século XX. Por usou no dia do casamento.
coleções. Pouco antes de morrer, em 1978, legou-as via materna, Marta era sobrinha de Aurélia e Sofia O vestido era branco mas simples, como convi-
à Câmara Municipal do Porto (CMP), assim como de Sousa, e o convívio estreito com estas mulheres, nha a uma mulher da sua idade. Armando, o enge-
todo o edifício, para fazer dele um espaço de usu- que na sua juventude tinham frequentado a Escola nheiro por quem abdicara de parte da sua vida para
fruto público. Deixou também um prédio contíguo, de Belas Artes de Paris e a célebre Academia Julian, fazer a vontade ao pai, levava preso na gravata um
cujo rendimento sustentaria o projeto museológi- foi seguramente outro dos fatores determinantes na alfinete de pérola barroca e diamantes. Marta fizera
co. A conversão deste tipo de casa-museu exige formação do seu carácter. Nunca casaram. Adora- questão nesta joia em forma de pinguim, o animal
um compromisso de equilíbrios. Ao longo das dé- vam as sobrinhas, que recebiam assiduamente na que representa a fidelidade até à morte. E na expo-
cadas foi tendo várias intervenções, necessárias às Quinta da China, à beira do rio Douro, um lugar sição deste pequeno gesto extravagante e delicado,
condições de preservação e segurança, e a própria de ambiente particular, recolhido e mágico, onde tal como verificáramos no gesto artístico de Sofia
museologia, entre o que se considera ser o espaço as tias pintavam. de Sousa, intuímos a sua absoluta singularidade.
público de um museu e o que teria sido o espaço A admiração e influência que estas mulhe-
privado da uma casa, foi sendo adaptada e reflete res, emancipadas e avant-garde para a sua época, O DELÍRIO DE CASTRO
esta heterogeneidade. Tínhamos ouvido falar da Casa-Museu Fernando de
“Muitas vezes são espaços mistos que perderam Castro, mas nada nos preparara para o que iríamos
a função doméstica e tornam-se estranhos porque encontrar. A biografia que conhecíamos era escas-
fica uma espécie de resíduo que é preciso reinter-
pretar, para se ser fiel a um legado e a uma memó-
Uma sa. Nasceu em 1889. Foi filho de um comerciante
abastado do Porto. Na juventude chegou a trabalhar
ria, mas que, ao tentar recriar esse ambiente habi-
tado, fica presa a uma retórica de montagem. Como
casa-museu com o pai, mas quando este morreu herdou o ne-
gócio, que lhe deu sustento, e deixou de trabalhar.
um corpo sem alma”, indica Nuno Faria, respon-
sável pelos vários equipamentos culturais que in-
é um lugar Os seus interesses concentravam-se no universo da
arte, e ele mesmo tinha laivos de artista. Desenhou
tegram a tutela do Museu da Cidade.
Calcorreamos os vários pisos na companhia de híbrido, e para uma coleção de caricaturas humorísticas, escreveu
livros de prosa e poesia publicados, conviveu com
Zita Rocha, técnica superior da Divisão Municipal
de Museus da CMP, à procura da alma de Marta. Di- o visitante pintores e escultores e reuniu uma pequena cole-
ção de pintura, cujos melhores quadros se encon-
zem-nos que a descrição era um dos traços da sua
personalidade. Seria também uma mulher muito tanto maior tram no Museu Soares dos Reis. Mas o tema central
das suas coleções foi a arte sacra. A ela dedicou a
determinada. Deixou indicações precisas de como
queria expostas as coleções e de como se deveriam é o fascínio sua vida inteira, colecionando e acumulando todo
o tipo de objetos de culto que tinham pertencido a
ocupar as salas, a fim de recriar os ambientes fami-
liares onde tinha vivido. Para este propósito legou quando se igrejas por este país fora. Se não fosse esta casa, o
homem perdia-se.
parte do espólio do recheio da moradia de São Ma-
mede de Infesta e o da casa de verão na Foz do Porto. pode resgatar Chegamos perto das 11h de uma manhã sola-
renga ao número 716 da Rua Costa Cabral, no Por-
A sua maior preocupação era que não se dispersas-
sem as coleções realizadas por ela e pelo pai, Vasco pelas pistas to. É uma moradia discreta do final do século XIX,
mas mal a porta se abre toda a luz que trazíamos do
Ortigão Sampaio, prestando-lhe assim homenagem.
É grande a fidelidade da filha a este homem co- o lado mais exterior é imediatamente engolida pela monocro-
mia de madeira escura e de talha dourada que tudo
lecionador e mecenas, de personalidade destacável
na restrita sociedade portuense. Certamente foi ele íntimo da parece absorver como um mata-borrão. A organi-
zação de todos os espaços — salas, salão de festas,
que lhe formou o espírito e lhe deu a conhecer os
salões de pintura, os antiquários e as casas leiloei- personalidade escritório, sala de jantar, quarto de dormir — obe-
dece sempre à mesma lógica decorativa, cuja pro-
ras, incutindo-lhe o gosto pelo colecionismo. Pro-
porcionou-lhe a ela e às irmãs, Estela e Feliciana, o que o habitou fusão de madeira, talha retorcida, esculturas e pin-
tura e proliferação de peças é tanta que torna difícil

E 40
1

FOTOGRAFIAS RUI OLIVEIRA


2 3

4
DETALHES 1 Cozinha da
casa de Avanca de Egas Moniz
2 Escadaria da Casa-Museu
Medeiros e Almeida 3 Sala
da Casa-Museu Marta Ortigão
TIAGO MIRANDA

Sampaio 4 Pormenor
da cama da Casa-Museu
Fernando de Castro,
com o retrato dos pais

E 41
a tarefa de assimilar o espaço, tornando-o num la- transformação das peças. Teria certamente exce- o intuito de fazer uma sala de exposições, um ar-
birinto aparentemente indecifrável. lentes marceneiros a trabalhar para ele, basta olhar mazém e um ateliê. É nessa altura que abre a casa
Durante um bom par de horas vamos entrando para estas estruturas adaptadas de forma a parecer e começa a organizar visitas guiadas à coleção.
nas várias divisões e subindo lanços que nos con- que foram feitas para aqui”, revela. Morre em 1946, pouco antes de fazer 57 anos, com
duzem a galerias, tentando absorver o estranho Entramos na “Sala Minhota”, assim intitulada uma angina de peito. É a irmã, Maria da Luz Araú-
mundo de Fernando de Castro. Mais do que uma desde o tempo de Fernando de Castro, quando resol- jo Castro, que dá corpo ao desejo do irmão e inicia
casa, parece que o homem que aqui viveu se dedi- vera abrir as portas de casa a curiosos e começara ele o processo de transformar em museu a casa, fa-
cou a criar um cenário, uma grande mise en scène, próprio a fazer visitas guiadas. A conservadora cha- zendo uma doação à Câmara Municipal do Porto.
para que as peças pudessem brilhar. ma a atenção para uma estranha moldura com uma A doação não foi aceite. É Vasco Valente, diretor do
Ana Mântua, diretora da Casa-Museu Fernando fotografia de um casal. “Quando o pai saiu da Covi- Museu Soares dos Reis, que a convence a fazer um
de Castro (que se encontra sob tutela do Museu Soa- lhã, casou com uma conterrânea que, poucos meses legado ao Estado, para que não se perca a coleção,
res dos Reis), que nos acompanha na visita, indicara depois, morreu num acidente. Entre 1888 e 1889 teve e convence o Estado a aceitar o legado.
que o colecionador tivera ainda em vida a intenção dois filhos ilegítimos de uma criada, a Maximiliana, Conta Ana Mântua: “Há uma cláusula do con-
de a transformar num museu, abrindo as portas e fa- com quem só casou em 1906. Só nessa altura ele e trato em que ela deveria fazer uma triagem da do-
zendo visitas guiadas que ele mesmo acompanhava. Maria da Luz, a irmã, são perfilados e considerados cumentação para também ser doada ao museu. En-
A primeira intuição que temos sobre a natureza de filhos legítimos.” Tinha então o jovem Fernando de tretanto, o Vasco Valente morre e não há ninguém
Fernando de Castro é que seria um homem com hor- Castro 18 anos. “Penso que este aspeto irá compli- no museu que a pressione para que seja entregue
ror ao vazio, pois não existe um único espaço lim- car bastante a personalidade dele”, reflete. “Esta a documentação.” Deveria ser tremenda esta irmã
po onde se possa descansar o olhar. Esta perceção fotografia que ele manda fazer dos pais é uma foto- Maria da Luz que, depois do seu divórcio, na se-
é confirmada pela diretora, que acrescenta: “Cer- montagem de dois retratos dos pais feita no Estúdio quência da morte por meningite do filho com 11
tamente é um homem que se esconde.” Desde que Guedes, para ser embutida numa estrutura de uma meses, vem viver para a casa de família com o ir-
assumiu a coordenação desta casa-museu, há cerca cabeceira de uma cama que é aproveitada como mão, até à morte deste. Chegou a fazer seis testa-
de dois anos, a sua tarefa tem sido a de tentar deci- moldura. Será a cama onde nasceu?” interroga. mentos, onde entre um e outro vai retirando ou
frar as pistas que vai encontrando, para que as pos- Há mais mistérios. Não há, por exemplo, ne- acrescentando coisas e nomes, conforme os seus
sa juntar ao puzzle que vai construindo sobre o sin- nhum registo nem documentação sobre a prove- humores. Num deles escreveu: “As fotografias do
gular universo museológico de Fernando de Castro. niência e compra de cada uma das peças, o que não meu irmão vão comigo no caixão. O resto que se
A casa começou a ser construída em 1892 pelo deixa de ser estranho no caso de um colecionador queime, porque não serve a ninguém.”
pai, que também se chamava Fernando António de como Fernando de Castro, que teve o cuidado de Se calhar foi assim que desapareceram todas as
Castro. Natural da Covilhã, veio para o Porto, onde expressar o destino que queria para a sua coleção. notas, correspondência ou registos mais diarísti-
abriu uma vidreira especializada em vidro para a Também não há fotografias, notas pessoais, corres- cos, como era habitual naquela época, sobretudo
construção de espelhos e vitrais, com representa- pondência ou registos mais diarísticos. “Nada so- para um homem que gostava de escrever e editou
ção das melhores marcas francesas, e com este ne- brou para dar pistas sobre a natureza das obras e do cinco livros, publicados em edição de autor pelo
gócio fez uma fortuna que irá permitir ao filho viver seu colecionador. Tudo o que sabemos conhecemos seu bolso. Um deles chama-se “Altar sem Culto”.
de rendimentos e colecionar. “A primeira campa- através das entrevistas que na altura ele deu, quan- “Provavelmente, é aquilo que esta casa é. Um al-
nha decorativa foi iniciada pelo pai, durante o ad- do começou a abrir a casa ao público.” tar sem culto, onde ele vive, nesta espécie de espa-
vento da I República, quando as ordens religiosas Entre em 1935 e 1936, Fernando de Castro com- ço religioso, que também não o é, como se vives-
são extintas e as igrejas desmanteladas”, conta Ana prou os dois lotes adjacentes ao terreno da casa com se um grande conflito interior”, reflete Ana Mân-
Mântua. “O propósito era de as preservar. Eram tua. “Acho que o fantasma ainda está ali. Sinto-o
ambos muito religiosos e, quando o pai morre, o nas rendas, nos veludos, no coçar do sofá de cou-
filho dá continuidade ao projeto do pai, constituin- ro. Todos os dias esta casa me fascina e surpreen-
do assim uma das maiores coleção de arte sacra do
país. Muitas das peças têm qualidade artística e ou- No Porto, de.” Cruzamo-nos com os raros registos físicos que
existem de Fernando de Castro, um óleo pintado
tras não tanto. Só fazem sentido nesta construção
de imaginação delirante.” Continua a conserva- o espaço e dois retratos, cuja face nos lembra ligeiramente
Oscar Wilde. Em todos é retratado de fato escuro e
dora: “O que é particularmente interessante neste
processo museológico e de decoração tão excêntri- modernista camisa branca de colarinhos de goma, lenço na la-
pela, olhar sério, quase carrancudo, que se desvia
ca é a forma como ele se apropria das estruturas das
igrejas e dos conventos extintos, transformando-as mandado da câmara. Saímos para a rua como se tivéssemos
visitado um homem ainda preso dentro do seu so-
e dando-lhes uma nova funcionalidade. Por exem-
plo, este corredor é forrado com a estrutura de um projetar nho habitado. E, quando acordamos da sensação
de susto que esta casa nos provoca, rendemo-nos
cadeiral do coro de uma igreja”, indica, mostran-
do em seguida um conjunto de portas conventuais pela discreta finalmente à sua originalidade.

O COLECIONADOR PRAGMÁTICO
do século XVII que funcionam como painéis que
forram uma parede. “Há sempre portas que não Marta Ortigão De regresso a Lisboa hesitamos entre visitar Anas-
funcionam e janelas que não se abrem para lado
nenhum. Uma das suas marcas é a reutilização e a Sampaio tácio Gonçalves, o médico oftalmologista que ad-
quiriu o ateliê do pintor José Malhoa para reunir a
nova função das estruturas que tiveram uma vida
no espaço religioso e aqui ganharam outra vida. A para ser a sua sua coleção de arte, ou António Medeiros e Almei-
da. Ambas as casas-museu estão assinaladas como
casa era assim vivida, e assim se manteve até aos
nossos dias. Chegou a ser rotulada como ‘o barroco residência é as mais significativas da cidade. Optamos pela se-
gunda. Situada num edifício de gaveto na esquina
à moda de Castro’.”
Atravessamos um corredor e o vestíbulo, com uma das raras da Rua Mouzinho da Silveira com a Rosa Araújo,
num dos quarteirões do plano de Ressano Garcia
um bengaleiro colocado em cima da talha de um para ser o novo bairro da alta burguesia lisboeta
altar. Há relicários e anjos, altares e retábulos, pe-
ças de órgão, partes de púlpitos ou de tribunas. As
casas-museu na transição do século XIX para o XX, pouco mais
resta da memória desses alegres palacetes de re-
zonas de passagem têm exatamente o mesmo tra-
tamento artístico dos espaços nobres das salas.
dedicada a mate arte nova que a Casa-Museu António Medei-
ros e Almeida. Também ele era um homem elegan-
“Deveria haver plano e projetos de construção e uma mulher te e da alta burguesia, que nasceu na monarquia e

E 42
atravessou a Primeira República, o Estado Novo e a em paralelepípedos, propôs uma parceria com para a nova moradia, na Rua Rosa Araújo, já com
democracia. Morreu em 1986. uma garagem da zona, de modo a incluir na venda o intuito de criar a fundação. Poucos anos depois
Ainda em vida inventariou a sua preciosa cole- do carro um serviço de arranjo. Mais tarde, con- fecha a porta da sua residência e instala-se na mo-
ção, que achava digna de ser usufruída como bem seguiu um modelo expresso com suspensões re- radia ao lado, na Rua Rosa Araújo.
público, e tratou de tudo. Fez um ato de doação forçadas, tornando-se o importador exclusivo da Devia ser um homem curioso, este Medeiros e
ao país, a fim de garantir que não fosse dispersa- Morris Motors. A velocidade e o progresso seriam Almeida, que durante décadas habitou nas suas ca-
da, e constituiu a fundação que iria gerir o espólio seguramente motivos de grande entusiasmo para sas como se vivesse dentro de um museu. Atraves-
para garantir o seu financiamento. Doava à funda- o colecionador, que foi também pioneiro da avia- samos o vestíbulo de entrada forrado a mármore e
ção praticamente a totalidade do seu património, ção civil nacional. subimos as monumentais escadarias rasgadas por
que incluía este imóvel e o seu recheio assim como No início da década de 40 apostou com qua- três janelões em direção à zona privada. Olhamos
novo um prolongamento para albergar as coleções tro investidores açorianos na criação da Sociedade paras as estantes da salinha da senhora da casa,
e ainda o terreno em anexo, para ser constituído um Açoriana de Estudos Aéreos Limitada (SAEAL), a observando o casal rodeado de sobrinhos num dia
prédio de rendimento. Em agosto de 1972, viu apro- fim de se desenvolveram as ligações aéreas para o festivo, e para os retratos a óleo de Medina no quar-
vados os estatutos da fundação com o seu nome. arquipélago, dando origem à SATA. Pouco mais tar- to de casal, com camas separadas, como se usava, e
Se a maioria dos colecionadores se esconde de comprou a totalidade da Aero Portuguesa, uma espreitamos a belíssima casa de jantar, com a mesa
atrás dos objetos, sendo através deles que a perso- sociedade fundada em parceria com a Air France, posta a rigor. Entramos no salão onde se recebiam
nalidade se revela, a primeira constatação é de que de carreira regular entre Tânger e Casablanca. O os convidados mais próximos, homens de negócios
Medeiros e Almeida é um homem que se impõe. sentido de oportunidade, como se pode também e visitas estrangeiras relacionadas com o mundo
Dizem-nos os especialistas que tudo o que tem é ver pelas peças que adquiriu durante esta década dos colecionadores.
excecional. Adquiriu cerca de nove mil peças, só no rescaldo do pós-guerra, é revelado noutro ne- Viajava muito. Ficava sempre na mesma suí-
lhe interessavam as melhores, e comprava aos lo- gócio irrecusável, quando propõe à companhia de te no Ritz de Paris, em Londres escolhia o Clarid-
tes inteiros. Viajava muito, tinha conhecimento de aviação francesa a compra de um DC3, por 38 mil ge’s, e em Genebra, onde tinha o dentista, o Hotel
tudo o que circulava nos leilões das grandes casas dólares, onde contrata uma tripulação completa, des Bergues. Em todos eles tinha guardados fatos,
europeias, e também por aqui podemos perceber instalando música e vidros azuis para que os pas- camisas e objetos pessoais. Sempre que estava no
que era cosmopolita e tinha visão de colecionador sageiros possam usufruir da viagem sem serem in- estrangeiro, visitava leilões, antiquários e feiras de
internacional. Não obstante, era um colecionador comodados pelo sol. Em 1953, a companhia foi in- arte, embora a maioria das peças que comprava
de gosto clássico, um homem muito formal. tegrada na TAP, tornando Medeiros e Almeida num fossem assinaladas nas revistas e nos catálogos das
Começou por adquirir com o propósito de mo- dos principais acionistas. Durante toda a sua vida casas leiloeiras, confortavelmente, no seu palacete
bilar a sua primeira casa na Rua do Salitre, por al- irá somar vários negócios e lugares nas presidên- de Lisboa. Conhecia bem as mais importantes ca-
tura do casamento com Margarida Pinto Basto, em cias dos concelhos de administração de várias em- sas-museu de Londres e Paris, a Wallace Collection,
1924, e essa foi a génese que determinou o sentido presas, da construção à banca, como somou peças a Jacquemart André e, em Nova Iorque, a de Henry
da sua coleção. Interessavam-lhe sobretudo o mo- para a sua coleção. Clay Frick, um dos mais importantes coleciona-
biliário que compunha os salões franceses, algum Em 1946 muda-se para o palacete de 700 metros dores de arte do seu tempo. Metódico e pragmáti-
mobiliário português e indo-português, a pintura quadrados da Rua Mouzinho da Silveira, com obras co como era, provavelmente inspirou-se no modo
holandesa e as tapeçarias do século XVI e XVII, os realizadas pelo arquiteto Carlos Ramos, com uma de organização e nos seus estatutos para criar a sua
retratos ingleses do século XIX, as baixelas de pra- nova campanha de decoração de grande escala, e própria fundação.
ta inglesas, os serviços de cristal, as porcelanas e, no início da década de 70 muda-se definitivamente Tudo parece estar certo na vida deste homem
claro, Companhia das Índias... Gostava de peças cordial e de boas maneiras que pertencia à melhor
orientais, sobretudo chinesa, e a sua maior paixão elite social e financeira da sociedade lisboeta. No
eram as valiosas e sofisticadas peças de cerâmica final da vida, pouco antes de morrer, com 91 anos,
do Império do Meio e os relógios das melhores mar-
cas europeias. A estas coleções dedicou-se intensa- A Casa-Museu escrevera com “mão trémula”: “Parto confiante de
que aqueles que vierem depois de mim farão tanto
mente, conseguindo reunir um espólio completo de
peças raras que o referenciaram nas melhores re- Fernando ou melhor do que eu fiz.” Paramos no salão nobre
da casa, onde se recebiam as visitas mais formais
vistas estrangeiras do mundo das artes decorativas.
“A maioria das pessoas não sabe quem foi Me- de Castro nos dias dos grandes jantares de representação.
Maria Mayer chama a atenção para o canto mais
deiros e Almeida”, informa-nos Maria Mayer, a
diretora. “Quando visitam a coleção ficam mui- mantém-se aconchegado da sala, para os sofás postos em redor
da lareira de mármore verde de Viana, onde ele e a
to surpreendidas como é que ele ganhou dinheiro
para construir tudo isto.” Enquanto olhamos para inalterável “dona Margarida passavam os serões”.
Em cima da mesa está o transístor, que nos anos
o interior das vitrinas e atravessamos salas, vai-nos
pondo a par da biografia. “Foi um homem de negó- ao tempo da guerra era sintonizado na BBC. Aos seus pés sen-
tavam-se sempre os dois Grand Danois, companhia
cios muito bem sucedido. Um visionário na época.”
Primogénito entre os filhos do casal João Silvestre e à vida do seu fiel e inseparável do senhor da casa. E, neste cená-
rio solitário, atrevemo-nos a intuir que, tal como
de Almeida, médico, e Maria Amélia Tavares Ma-
chado de Medeiros, açorianos com posses em São proprietário. os outros habitantes sem descendência de todas as
casas-museu que tínhamos conhecido, tinha cria-
Miguel que vieram viver para Lisboa, António es-
tudou Gestão na Alemanha e não quis receber o di- Mal entramos do com a sua coleção a obra de uma vida. Para que
nela se perpetuasse a marca da passagem. Sophia, a
nheiro do pai para realizar o seu primeiro negócio.
Adorava carros. Resolveu ir a Londres conven- somos poetisa, num dos seus poemas de despedida, escre-
vera: “Outros em abril passarão no pomar em que
cer o senhor Morris, Lord Nuffield, para abrir em
Portugal o negócio da venda de automóveis, dan- engolidos eu tantas vezes passei. Haverá longos poentes sobre
o mar. Outros amarão as coisas que eu amei.” Saí-
do-se a si mesmo como garantia. Conseguiu con- mos do palacete. O pavimento está molhado com
vencer Lord Nuffueld, o dono da marca, e abriu um
stand na Rua da Escola Politécnica, contribuindo
pelo estranho as primeiras chuvas de setembro, que anunciam o
equinócio que aí vem. Em breve, as folhas das ár-
desta forma para a democratização do automóvel
em Portugal. Como as suspensões dos carros não
mundo deste vores irão começar a cair. b

resistiam às estradas nacionais, ainda construídas colecionador asoromenho@expresso.impresa.pt

E 43
Entrevista
André Luís

Querem
fazer filmes?
Procurem
investidores
como toda
a gente”
Criou uma comunidade global de entretenimento digital e quer fazer
de Portugal uma referência nas indústrias criativas, mas não poupa
nas críticas ao sistema atual. Da educação à política, passando pela
cultura, acredita que precisamos de um rutura para vingar

POR JOÃO MIGUEL SALVADOR (TEXTO)


E ANTÓNIO PEDRO FERREIRA (FOTOGRAFIAS)

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event, como lhe chama, que regres- E onde será o main event em 2023?

N
valor superior a um bilião de euros
sou a Troia nas últimas duas edições (numa altura em que a moeda úni- Ainda não sabemos onde será no pró-
(a mais recente acabou no passado ca vale menos do que o dólar nor- ximo ano. Estamos a analisar com
sábado) depois de ter estado em La te-americano), e neste momento já cuidado todas as propostas que re-
Valeta (Malta), encontrará nova mo- não há profissionais suficientes para cebemos até agora. Com calma va-
rada noutro país europeu por falta de tantas ofertas de emprego. O mundo mos decidir.
apoio nacional. do entretenimento digital represen-
É um contratempo que não o faz tará cerca de 10% do produto inter- Que futuro vê para o THU, num con-
desistir do objetivo de mudar a forma no bruto global até ao final da década texto como o atual?
como Portugal olha para as indústrias e André Luís quer que Portugal tam- 2023 penso será o ano de consolida-
criativas: ofereceram-lhe uma sede bém fique com uma fatia desse bolo. ção do THU com a comunidade mun-
na marina de Valência, mas preferiu Garante que está a fazer a sua parte. dial do sector. Estamos a fechar algu-
dizer não à Cidade das Artes e das Ci- mas parcerias que nos dão muito en-
ências espanhola e assinar um con- O THU main event terminou este tusiasmo e motivação para o futuro.
trato de arrendamento por 25 anos sábado, em Troia. Que balanço faz
unca quis dar entrevistas e diz que em pleno Chiado. E projetos não fal- desta edição? Estão a entrar numa fase diferente da
sempre teve síndrome do impostor. tam para o lugar onde antes funcio- Foi uma das melhores de sempre. Foi que viveram até hoje.
Durante 14 anos, “nunca quis apare- nou um hostel e que agora se transfor- a edição em que conseguimos mos- Até agora investi essencialmente do
cer, ter fotografias, dar opinião, mos- ma num laboratório sensorial multi- trar que o THU main event é transver- meu dinheiro, nunca tive investido-
trar a visão política” que tinha, tra- disciplinar. É ali, na casa do Trojan sal a quem trabalha na indústria, que res, foi ‘chapa ganha chapa gasta’.
balhou “quase na sombra” mas sente Horse was a Unicorn (THU) que tes- não é só para artistas. Tivemos grandes problemas de cash-
que agora chegou o momento de falar. tam tudo o que fazem nos eventos. E flow, tivemos de empurrar alguns
“Agora tenho um bocadinho mais de é também o lugar onde agora recebe Mas vão sair novamente do país. O planos com a barriga, para sobrevi-
confiança de que posso ter voz”, ad- o Expresso para uma entrevista so- que vos levou a tomar esta decisão? vermos, e chegámos mesmo a falir
mite. Mas este não foi um processo bre uma indústria que só na Europa Saímos de Portugal porque não ve- em 2015. Na altura era só um evento
rápido. A construção do André Luís está avaliada em mais de €500 mil mos interesse do Governo nesta in- e tivemos de fechar.
que hoje se mostra mais confiante do milhões e que emprega 12 milhões dústria, existe falta de visão. O Tu-
que sabe demorou tempo, mais de de pessoas, mas que não quer deixar rismo de Portugal mostrou-se aber- Mas depois recuperaram. Porque
uma década onde houve espaço para para trás os jovens mais desfavore- to a conversar, mas explicámos que não se focaram no evento principal
tudo. Começou de forma discreta, o cidos. Para contrariar o destino dos não somos uma empresa de even- [que terminou no último sábado em
evento que criou ganhou peso entre mais frágeis, está a criar um proje- tos. O que procuramos é criar uma Troia]?
a elite das indústrias criativas — Walt to “para os capacitar com as com- indústria. O main event é muito importante, tem
Disney Animation Studios, Netflix, petências necessárias”, através de notoriedade e traz retorno — se eu fi-
Lego, Sony, Epic Games e Ubisoft co- centros de conhecimento instalados Há falta de visão? zesse apenas o main event, num mo-
nhecem-no bem —, mas nem tudo em bibliotecas, com grande foco no As políticas e as conversas que es- delo tipo Estoril Open, era rico — mas
correu como esperado. Já subiu alto, profiling, para que consigam vingar távamos a ter com o antigo Governo não quero apenas isso. O main event
já caiu e já se levantou. Em 2015 che- nesta área. caíram. A visão foi-se. Sendo assim, não é definidor para o país, é preci-
gou mesmo a falir, mas reconstruiu- É que dentro de oito anos espe- entendemos que devemos procurar so muito mais. Todo o dinheiro que
-se e deixou de se focar apenas num ra-se que as indústrias criativas va- quem entenda a importância das in- tenho ganhado é para reinvestir. So-
encontro internacional para se de- lham 985 mil milhões de dólares, um dústrias criativas. mos uma comunidade com 111 países.
dicar à criação de uma comunidade
internacional de relevo. Chama-lhe
tribo, mas não podia ser mais diversa.
Junta profissionais e empresas de en-
tretenimento digital concorrentes (do
ramo dos videojogos ao streaming)
na mesma teia de contactos e garan-
te que quem faz parte nunca diz não
a outro membro. Os maiores talentos
de áreas como a animação digital, 3D
e os efeitos visuais não perdem uma
oportunidade para se juntarem a ele,
mesmo que fora do meio poucos se-
jam os que o reconhecem (ou ao seu
trabalho).
Saímos de Portugal porque
No último ano, André Luís pas-
sou por um burnout — admitiu-o em
Troia na semana passada, na abertura
não vemos interesse do Governo
do maior evento internacional de in-
dústrias criativas do mundo que or-
nesta indústria, existe falta
ganiza desde 2013 —, mas essa tam-
bém foi uma oportunidade para se
reorganizar e pesar o que realmen-
de visão. Não somos uma
te queria para os próximos anos. Não
o fará apenas em Portugal: o main empresa de eventos”
E 46
E onde é que estão?
Em dez anos temos o projeto presen-
te em 111 países, com muito trabalho
no Uganda, na Costa do Marfim, no
Japão. Temos vindo a ajudar como
podemos, desde o início da invasão
da Ucrânia que estamos a dar apoio.
O Governo veio logo falar connosco
e abriu-se uma escola aqui por cima
da nossa sede, havia essa necessida-
de. Tudo o que fazemos é para resol-
ver algum problema.

Em que sentido?
No Japão, por exemplo, tudo o que
estamos a fazer é relacionado com
o storytelling. Há um grave proble-
ma de novas ideias, é preciso inova-
ção em storytelling. Então criamos
um bootcamp, em Kaga City, mas que
será apenas por convite. Não é como
o main event do THU, com bilhetes
à venda. É assim que, à exceção do
evento principal, serão todos os en-
contros desta comunidade. No caso
do Japão, é ainda mais bizarro. Além
de só termos 120 pessoas por ano, é a
elite da elite da inovação — uma espé-
cie de Davos do storytelling — e onde
só se pode ir uma vez na vida. A pri-
meira edição será em maio de 2023.

Porque escolheram Kaga City?


Fomos a uma cidade grande, Kobe,
e a Kaga City, uma pequena cidade
rural onde não há sequer um McDo-
nald’s mas que tem um mayor inte-
ressado nas indústrias criativas. Des-
cobrimos, quando lá fomos, que tinha
uma escola de carpintaria, uma de
olaria. Na montanha já tinham sido
renovadas dez casas antigas para re-
ceber carpinteiros. Estamos a falar de
artesãos com um nível que não temos
em Portugal. Por causa das nossas
conversas, o mayor encetou conver-
sas para transformar Kaga City numa
smartcity. Conseguiram não só to-
dos os fundos centrais do Japão para
esse fim como, dentro de dois anos, o
comboio-bala já passará por lá.

Como é que garantem que os eventos


locais que criam têm impacto na co-
munidade local?
Criámos o Creator Circle, que é uma
espécie de “Shark Thank” composta
pelos grandes nomes [da indústria],
por quem realmente tem poder de
decisão. É feita uma call para novos
projetos, são eles quem vê os projetos
a concurso e que chamam os mais in-
teressantes para formação. Depois até
pode ser investido dinheiro em to-
dos eles, mas no limite é um projeto

E 47
educacional. O que queremos fazer é
que a cada evento que fazemos seja
criado um Creator Circle associado.
O ICA tem de servir para apoiar
Como é que um projeto destes se
mantém quase invisível em Portugal,
as primeiras obras. Mas a partir
sem financiamento?
Se falares de hidrogénio, €100 mi-
lhões ou €500 milhões é pouco. Se
daí cada um tem de ir à sua
falares de indústrias criativas, €10
mil ou €50 mil euros é muito. Mas vida. Tudo o resto devia ter
o problema não é só a questão de se
ser invisível. É que em Portugal só há
uma entidade que gere os fundos das
em conta o desempenho”
indústrias criativas, o ICA [Instituto
do Cinema e do Audiovisual] e o que
lá se passa é ilegal. Dou um exem-
plo: segundo as regras, não podes Claro, vá ao site do ICA e veja a quan- de inovação da SpaceX é um concept a escola como um sítio para apren-
candidatar-te com um novo projeto tidade de empresas que receberam artist, um futurista... Quem desem- derem, e há em Portugal um grande
sem completar o anterior, mas isso subsídios e onde está o resultado dis- penha este tipo de cargos são artistas. facilitismo. Os programas não estão
acontece. so. Esta malta odeia-me porque digo integrados, nada. Na educação, o que
publicamente que este dinheiro gas- O que é preciso mudar para que a si- interessa é o meu ego, não interessa
Apesar dos problemas existentes, o to deveria ser investido em jovens ta- tuação se altere por cá? ter alunos bem-sucedidos no merca-
objetivo de ter um subsídio do ICA lentos. Querem fazer filmes de ani- A questão é perceber como é que é do de trabalho. Isso não existe.
mantém-se entre os mais jovens. É mação? Procurem investidores como possível que não haja condições numa
quase um sonho para quem acaba toda a gente. Um euro investido pelo área que dá tanto que tem tanto em- Mas é um problema que se cinge à
um curso de realização. ICA, no cinema, tem de ter um retor- prego, onde são precisos tantos pro- sala de aula?
Sim, só que o ICA não está montado no de dez euros. É uma das indústri- fissionais. Gostava de começar a fazer Não. Quem está à frente das institu-
para o ajudar. E não funciona — em- as que mais cresce, das que tem mais lobbying, a apontar o dedo, pôr as pes- ições de ensino criativo não percebe
bora não possa deixar de dizer que dinheiro para investir, e em Portugal soas a questionar-se sobre esta situa- nada da área. São grandes burocratas.
tem feito trabalho de apoio à educa- estamos neste estado. Depois ainda ção, porque isto está mesmo mal. Es- O mundo mudou. Sei do que estou
ção, através da compra de material. vêm as ideias de taxar a Netflix para tou aqui para ajudar, mas a malta tem a falar, isto são factos. Quando vou
Se virmos, sempre que há um apoio ajudar a cultura, taxar o grande ca- de seguir as regras do jogo. Quero que a uma universidade, digo que sou o
que foi cortado numa escola de dan- pital como diz o PCP… Porquê taxar o o Governo português comece a olhar único ponto de contacto entre Net-
ça ou numa companhia de teatro, é grande capital em vez de taxar quem para o ensino criativo de uma forma flix, Amazon, HBO, DreamWorks e
noticiado como um corte à cultura não dá qualquer retorno? completamente diferente. O Governo Pixar. E hoje sou respeitado, ouvem-
de quem odeia a cultura. Mas tem de não percebe que tem de ver as indús- -me com atenção. Não há como fugir.
haver KPI [key performance indicators, Do vosso lado, também estão a fazer trias criativas com um olhar diferente Ou esta malta muda o sistema, e en-
indicadores-chave de desempenho]. esse trabalho de investir em novos daquele que tem para economia, ges- tende o que estamos aqui a falar, ou
Quando vamos analisar, são escolas projetos? tão, engenharia. Tem de haver uma todos os dias têm de perceber que es-
ou companhias que não apresentam Vamos criar o primeiro grande fundo política completamente diferente. tão a enganar e enganar-se.
nada, não têm resultados. de early stage desta indústria, que é o
que o ICA devia fazer. Vamos investir Porque é que não há mudança? E qual é o feedback que recebe?
Qual deveria ser o foco do ICA? apenas em primeiras ideias, de risco, Há um grande desconhecimento. Já tive várias mensagens de miúdos a
O ICA tem de servir para apoiar as vamos à fonte da fonte. Normalmen- Para mim é fácil porque falo com eles dizerem que lhes mudei a vida. Mas
primeiras obras, dar apoio para que te tens de ter já um pitch, um business todos os dias. Se a Netflix não olha houve um que me impressionou, a
um realizador possa testar-se. Mas a plan. Esta malta nunca vai fazer um para nós, se a Netflix não investe aqui, dizer-me que nenhum professor lhe
partir daí tem de ir à sua vida. Tudo o plano de negócio, mas faz sketchbo- se a Amazon não investe aqui, é por- tinha mostrado aquele mundo, que
resto devia ter em conta o desempe- oks, e é nestes sketchbooks que se en- que não existe nada aqui. Essa é a ver- podia fazer aquilo no futuro. Pergun-
nho, ajudar a criar um ciclo sustentá- contra o ouro. Se não souberem que dade. A verdade é que a indústria cri- tei-lhe do que falava. E ele explicou-
vel de apoio com base em resultados. têm ali alguém que os apoia, não con- ativa em Portugal está no fosso, é isso -me que nunca tinha percebido, em
Diz-se que o Estado tem de apoiar a seguem dar o salto. que vejo. Na indústria criativa não quatro anos de design na faculdade,
cultura, mas isso é diferente de sub- podemos ter pessoas a dar aulas, no que podia trabalhar na indústria dos
sidiodependência. Apoiar a cultu- E não há investimento estrangeiro a sistema, que não estão na indústria, videojogos, que podia ser technical
ra é levar as pessoas a ver cultura. entrar em Portugal, novas empresas que nunca estiveram na indústria. artist.
Se tens um espetáculo ou filme que da área a entrar no país?
ninguém vai ver, onde é que o Estado A parte tecnológica olha cada vez É esse descasamento entre a indús- E porque não há mais gente da in-
está a apoiar a cultura? Está a apoiar mais para nós, a parte artística nem tria e a academia que prejudica a dústria a dar aulas?
alguém a ganhar um salário. Posso tanto. O lado da engenharia é que tem afirmação de Portugal num sector Neste momento, quem está na indús-
dar-te cinco ou seis nomes de reali- ajudado a indústria, não é o artístico. como este? tria e é bom ganha entre os €4 mil e
zadores famosos cujo salário dos úl- Tem havido uma mudança de empre- Sim, e está tudo ligado ao dinheiro. os €6 mil por mês. Se fores dar aulas,
timos 20 anos foi pago por subsídios. sas para cá, há estúdios a abrir, mas A área da educação é muito suja, é recebes mil. Por outro lado, os títu-
tem muito que ver com engenheiros. muito corrupta. Eu já tive uma esco- los académicos também são engana-
Mais do que o valor recebido, a ques- Como é que explicamos a importân- la, a Odd School, e não quero voltar dores. Não há ninguém da Netflix, ti-
tão está no valor acrescentado? cia do lado criativo? Um dos diretores a ter uma. Muitos alunos não veem rando da parte técnica, que tenha um

E 48
mestrado. Não há nenhum artista que os números: se ninguém compra li- Não é fácil separar. Como criadores, não estar a falar de ganhar dinheiro.
eu conheça que tenha um mestrado. cenças é porque não há artistas. É isso temos de ensinar aos nossos miúdos Como já lhe disse, tudo o que ganho
Se eu for ver os créditos de um filme que os dados dizem. O facto de ser que o que estamos a aprender pode reinvisto. E as economias podem ser
da Netflix, há 400 ou 500 pessoas a tudo pirata, por exemplo, só preju- ser usado em várias áreas. Não estás circulares, e sem fins lucrativos, mas
trabalhar, muito poucas terão. dica. Quase ninguém paga pelo soft- a fazer animação apenas para filmes, tem de haver sustentabilidade. A sus-
ware que utiliza. Mais do que nunca, podes estar a fazer animação para tentabilidade tem de estar no centro
Sente que ainda existe uma pressão é preciso que haja uma mudança, que uma peça de teatro, ou para estudos de tudo isto. Faltam componentes de
social em Portugal para se ter títulos se perceba que a área científica ganha médicos — com recursos a óculos de gestão de carreira, de gestão finan-
académicos, para ser engenheiro, com esta indústria, a área médica ga- realidade virtual, por exemplo. So- ceira. Tens uma companhia de tea-
por exemplo? nha com esta indústria. A desportiva mos nós quem escolhemos para onde tro, tens uma companhia de dança,
Sem dúvida. Vão estudar sem ter a também. E na educação é a mesma queremos ir. A verdade é que estás lanças um filme: se os números são
mínima noção do que farão no futu- coisa. Quando se desenvolvem con- aqui e não há, por parte dos professo- maus, tens de rever a tua oferta.
ro. E isto causa uma pressão gigante teúdos pedagógicos visuais interati- res, uma preparação para isto. Tem de
sobre os miúdos, há muitos estudan- vos recorre-se à minha indústria. É haver uma componente de retorno. Porque quer mudar esta realida-
tes com depressões que estão sim- preciso que isto seja ouvido. de em Portugal? É algo que apenas
plesmente a despachar cadeiras. São Mas a cultura também pode ser acontece por cá?
milhares de jovens, a estudar em vá- Há áreas onde essa mudança já se vê, gratuita. Quando fiz o primeiro THU, em 2013,
rias áreas, que estão deprimidos. Os há artistas a explorar novas técnicas. Sim, a cultura pode ser gratuita mas achava que o que se passava em Por-
pais veem a licenciatura ou o mes- Sim, até costumo dizer que a única as pessoas têm de querer ir ver. De que tugal era apenas um problema por-
trado como uma garantia de empre- profissão onde não houve mudança serve termos uma coisa gratuita que tuguês. Estavam apenas 14 naciona-
go. Não há uma discussão sobre isto é a arquitetura. Os arquitetos con- não interessa a ninguém? Quero que lidades representadas, mas deu para
na sociedade civil portuguesa, é algo tinuam a ser explorados. Agora, em as pessoas entendam que com esta vi- perceber logo que as indústrias cria-
sistémico para a nossa economia. As todas as outras profissões criativas, são todos ganhamos mais, ninguém tivas são malvistas em todo o mundo.
indústrias criativas geram milhões. só és explorado se tu quiseres. Mes- fica a perder. Os únicos que vão per- Nos outros eu não posso mudar mui-
Portugal, com o THU, consegue mon- mo quem vem de pintura e escultura, der são aqueles que vivem do subsídio to, mas aqui eu posso tentar.
tar todos os pipelines para garantir quem tem essas bases, está a encon- para se alimentarem. Estão numa in-
que todo o sistema académico, que trar o seu lugar. Quando ouvimos fa- dústria onde o dinheiro é curto, então Que efeitos é que isso teria?
todos os mid-players se alinham. Es- lar do sucesso dos NFT, estamos a fa- tem de ser usado para ganhar mais di- Se houvesse uma indústria forte de in-
tamos numa indústria espetacular lar destes artistas. O problema é que a nheiro. Não pode ser um fundo perdi- dústrias criativas em Portugal, a eco-
onde dizem na hora se sou bom ou formação não acompanha, não mos- do para alguém que vai ganhar o seu nomia teria um crescimento muito
mau. Ou sou contratado ou não sou tra a mudança. Há um desfasamento salário sem criar retorno. Quando re- expressivo e tornava-se muito mais
contratado. Não é como um econo- entre a qualidade exigida pelas esco- cebo um euro do Estado, tenho de ter forte. É quase tudo serviços de expor-
mista ou um gestor. Há um portefólio las e pela indústria. As empresas não a preocupação de fazer mais com esse tação e funciona com a criação de roy-
que fala por ti. conseguem contratar porque não há euro. É a lógica do retorno. alties, é muito escalável. Tens um jogo,
uma faculdade que as ouça sequer. um filme e consegues escalar. Não
Mas o sector das indústrias criativas O preconceito que existe com ganhar tens de continuar a produzir leite, cai-
é visto como nicho. Não o é? Fala de indústrias criativas e associa dinheiro também tem a sua culpa? xas de plástico, cerâmica... Não tens
Só somos um nicho na mentalidade sempre à economia. Mas também Há muito preconceito com essa pos- desperdício. É incrível mesmo em ter-
tuga, colocamo-nos numa posição são cultura. Como é que se faz essa sibilidade. É uma coisa que tem de mos de sustentabilidade, porque são
má. Basta à própria Adobe olhar para separação? mudar, mas neste caso até podemos indústrias que não geram qualquer
desperdício. E depois é composta por
pessoas que têm a necessidade de es-
tar constantemente a reinventar-se….

Em que sentido?
Estamos sempre a reinventarmo-nos.
Os criativos são malta que vai ao tea-
tro, que vai ao cinema, que estimula
o consumo, que viaja dentro do país
em que está, que se preocupa com a
terra, que se preocupa com o seu cor-
po. Esta indústria é incrível em qual-

Se houvesse uma indústria forte quer sítio do mundo. Se olharmos


para a British Columbia, no Canadá,
já são as indústrias criativas que es-

de indústrias criativas em tão a carregar aquela economia. É um


exemplo de um país que soube rein-
ventar-se neste sector, e eu acredito

Portugal, a economia teria um que isso também pode acontecer cá.


Já há estúdios a abrir em Portugal,
mas ainda não tem o impacto econó-
crescimento muito expressivo mico que podia ter. Acho que temos
muito potencial. b

e tornava-se muito mais forte” jmsalvador@expresso.impresa.pt

E 49
QUE COISA SÃO AS NUVENS

UM TEMPO
QUE NOS É DADO

N
PASSAMOS O TEMPO À ESPERA UNS DOS OUTROS. ESPERÁMOS PARA ENCONTRAR
E DESPEDIR, PARA FALAR E OUVIR, PARA ACOLHER, REVER E RECOMEÇAR

ão sei como lida cada um de filho e vai ocupar-se de outra coisa. O brinquedo nessa ocasião
nós com a espera, mas a vida torna-se uma espécie de representante não exatamente da
está repleta de situações onde mãe, mas da esperança que ela regresse. Nesse sentido, expõe
ela se apresenta impositiva, tanto a espera como a promessa: e a criança precisa de ambas
como uma necessidade. Apesar as experiências para crescer. Uma, ajuda-a a progredir na
de assinalarmos como factos consciência do tempo que, no fundo, é outro modo de coloca-
memoráveis sobretudo as nossas la em contacto com a consciência de si. Outra, recorda-lhe que
realizações, os encontros que se não estamos condenados ao abandono, mas há uma promessa
concretizam, os desfechos que que ilumina a construção de nós próprios. A criança não vive,
vemos acontecer, a espera (pequena assim, a espera como o desconforto de uma ausência, mas
ou longa que seja) não deixa de como modalidade diversa da presença. O brinquedo, que
ser parte integrante dos processos Winnicott chama “objeto de transição, estimula-a a fantasiar,
internos e exteriores onde atuámos. Uma porção significativa a revisitar-se simbolicamente, a inventar novas situações,
da vida passámo-la à espera, mesmo se não notámos. A espera sedimentando a sua confiança.
é constitutiva do que somos, nós que estamos mais do lado das Até por nós próprios temos de esperar e essa é também uma
sementes, e do seu lento exercício de maturação, que das coisas tarefa árdua, ambígua e magnífica. A nossa biografia não se
que nascem acabadas. tece só de sincronias e sucessões regulares. Confrontamo-nos
O nosso trânsito no mundo é continuamente ritmado pela a vida inteira com o que nos parecem interstícios, pausas,
espera: habituámo-nos a esperar por coisas triviais (o semáforo estações intermédias, adiamentos, expectativas, transições.
para avançar a viagem, a nossa vez na fila do supermercado Há momentos em que pensámos que isso equivale a um
ou no consultório médico, o sinal para começar ou finalizar extenuante marcar passo, a um estado de irresolução que nos
uma atividade, a próxima estação) ou por aquilo que tem uma captura, a um titubeio inoportuno, que nos faz corar. Kafka
impacto decisivo na nossa existência, e que cada um sabe o que dizia que sim, que podemos designá-lo como um titubeio, mas
é. Se virmos bem, passamos o tempo à espera uns dos outros. um “titubeio antes do nascimento”. Na verdade, são as esperas
Esperámos para encontrar e despedir, para falar e ouvir, para que nos ensinam que a vida é o aberto da vida e que o nosso
acolher, rever e recomeçar. Essa espera pode ser perfeitamente património mais importante, até ao fim, é a possibilidade. Não
neutra e rotineira, pode ser atravessada pelo alvoroço da alegria por acaso o bíblico livro do Eclesiástico descreve deste modo o
ou sobrecarregar-nos com o peso de uma dor. Estas etapas, amadurecimento espiritual: “Meu filho. (...) prepara a tua alma
contudo, formam-nos na preciosa arte de habitar as esperas. para a espera” (Ecl 2,1). A espera não é um tempo que nos é
Uma aprendizagem importante é não recusarmos roubado: é tempo oferecido.
imediatamente a espera, julgando-a sem benefício. O pediatra No final do ano passado saiu em português essa pequena joia
e psicanalista Donald Woods Winnicott diz, por exemplo, que sobre a filosofia da espera que é o livro da alemã Andrea Köhler
os brinquedos nas mãos de uma criança servem para que ela (Guerra e Paz Editores, 2021). O seu título é “O Tempo que
trabalhe positivamente a espera. A mãe passa o brinquedo ao Passa”. Merece ser lido. b

A NOSSA BIOGRAFIA NÃO


SE TECE SÓ DE SINCRONIAS
E SUCESSÕES REGULARES.
CONFRONTAMO-NOS A VIDA
INTEIRA COM O QUE NOS
PARECEM INTERSTÍCIOS,
PAUSAS, ESTAÇÕES / JOSÉ
INTERMÉDIAS, ADIAMENTOS, TOLENTINO
EXPECTATIVAS, TRANSIÇÕES MENDONÇA

E 50
Sally Hawkins e Harry Lloyd,
no filme “O Rei Perdido”

Rei morto, rei reposto


Ricardo III perdeu o cavalo, o reino e a vida na batalha de Bosworth, em 1485;
os súbditos perderam-lhe os restos mortais, até serem descobertos em 2013.
Um filme e uma exposição na Wallace Collection, em Londres, contam a história
GRAEME HUNTER

TEXTO JORGE CALADO

E 51
E
Nada). Na tragédia de Shakespeare,
Ricardo, duque de Gloucester e
irmão de Eduardo IV, é um ator
que intriga para reinar, usando
o público como cúmplice da sua
vilania: corteja Lady Ana (depois
de lhe matar o pai e o marido),
ordena a morte do irmão Jorge,
duque de Clarence, e faz o mesmo
com os príncipes Eduardo e Ricardo
ntrados no outono, é tempo de (as crianças conhecidas como
nos prepararmos para o inverno ‘Príncipes na Torre’), filhos do rei. A
(frio) do nosso descontentamento, História, porém, talvez não seja tão
que não virará em verão glorioso severa. Como monarca, Ricardo terá
com o sol de Portugal. Sim, penso sido um bom legislador, justificando
na Ucrânia, mas veio-me à ideia uma reabilitação (parcial) ao longo
o monólogo inicial do último rei dos séculos, nomeadamente da
plantageneta, Ricardo III (1452-85), parte do homem de letras e político,
na homónima tragédia histórica de Horace Walpole, no século XVIII. A
Shakespeare, aproveitado por John má fama resultaria da propaganda
Steinbeck para título do seu último Tudor — o que levou à fundação
romance, “O Inverno do Nosso da Sociedade de Ricardo III, em
Descontentamento”, publicado 1924, com o objetivo de promover
em 1961. Toda a gente sabe qual é o a investigação da vida e época
monarca britânico que na hora da do caluniado monarca com vista
morte estava pronto para trocar o à reavaliação do seu carácter e
reino por um cavalo. Reles de figura, realizações.
“disforme, inacabado, lançado antes
de tempo para este mundo que À PROCURA DE RICARDO
respira, quando muito meio feito Cinco séculos depois, nada resta
e de tal modo imperfeito e tão fora do Convento dos Greyfriars, em
de estação que os cães [lhe] ladram Leicester. O túmulo de Ricardo
quando pass[a], coxeando, perto III perdera-se ou fora destruído.
deles”, Ricardo III não conseguiu Corria também que fora profanado
que lhe dessem um cavalo. Perdeu e os ossos deitados ao rio Soar.
o reino e morreu a 22 de agosto de O mistério continuaria se não
1485, derrotado por Henry Tudor — tivesse entrado em cena, em 2005,
o futuro Henrique VII — na Batalha a ricardiana Philippa Langley,
de Bosworth, a peleja decisiva fundadora do ramo escocês da
Retrato de Ricardo III (1452 – 1485), da Sociedade de Antiquários de Londres
da Guerra das Rosas, que selou a Sociedade de Ricardo III, mulher
mudança da Dinastia York para denodada com a vocação de
a Dinastia Tudor. Sepultaram-no historiadora amadora. E se a campa intuição e voluntarismo não A surpresa, para muitos ricardianos,
à pressa no Greyfriars Friary estivesse onde sempre esteve, chegam. Sabia-se que o antigo estava no facto de a coluna
(Convento Franciscano dos Frades no subsolo do convento? Desta convento fora erigido algures vertebral revelar uma acentuada
Menores), em Leicester, mas 10 vez, a determinação e o sexto no local onde agora se situava o curvatura espinal (sinal de escoliose
anos depois Henrique VII mandou sentido funcionaram. Embora parque de estacionamento dos aguda), compatível com a lenda
erigir um túmulo simples por cima sofrendo de encefalomielite Serviços Sociais de Leicester. Ao da deformação física associada ao
da campa. O convento, porém, foi miálgica (ou síndroma de fatiga visitá-lo, Langley notou um enorme monarca. Caía por terra a hipótese
destruído em 1538, na sequência da crónica), Langley nunca desistiu. R maiúsculo pintado a branco no de a monstruosidade física de
dissolução de todos os conventos e Conseguiu convencer as autoridades alcatrão do pavimento. Viu-o como Ricardo III não passar de uma
mosteiros católicos, ordenada por municipais e a Universidade de um aviso e arrepiou-se toda; mas o licença poética de Shakespeare
Henrique VIII. Shakespeare terá Leicester (serviços de arqueologia) R fora pintalgado no início dos anos — a expressão corporal de uma
escrito a peça por volta de 1593, no da importância e mais-valia 2000 por Mike Mistray, o guarda mente tortuosa e maligna. Exames
apogeu da era Tudor, mais de meio da sua obsessão, obteve as do parque, e designava apenas um posteriores e datação mostraram
século depois. necessárias autorizações, lutou pelo lugar reservado e não o nome do que o esqueleto pertencera a um
financiamento do seu projeto (2009) rei. Porém, tudo indicava que era homem de 30-34 anos, morto entre
SER OU NÃO SER ‘Looking for Richard’ (À Procura de ali, no extremo norte do parque, 1435-1530. A causa da morte fora,
Fiel ao seu destino, no dealbar Ricardo) — curiosamente, também o que se encontrava o coro da igreja sem dúvida, um golpe de alabarda
da batalha, o monarca terá dito título do documentário de estreia de do convento, o local mais provável ou espadeirada, que lhe decepara
(segundo uma testemunha): “Deus Al Pacino como realizador em 1996 da campa fúnebre, e foi aí que a parte traseira do crânio; outras
me livre de ceder um passo. Hoje —, interessou-se por/e acompanhou começaram as escavações. Logo no lesões do esqueleto resultariam de
morrerei como rei ou vencerei.” todos os aspetos da investigação. primeiro dia, 25 de agosto de 2012 vingança e humilhação póstumas.
Ser ou não ser, eis a questão. Quem As escavações, iniciadas em 2012, — por sinal o aniversário do enterro Entretanto, o historiador John
era Ricardo III? O poeta definiu-o ficaram a cargo de arqueólogos de Ricardo III em Greyfriars —, Ashdown-Hill começara a investigar
como um agente do mal, tal como especializados, acabando Langley encontraram um perónio (fíbula); em 2004 a genealogia descendente
Iago (que, segundo Verdi, acreditava por se sentir marginalizada. depois o resto de um esqueleto, de Ricardo III, com vista a uma
num Deus cruel, que o criara à sua Ciência e técnica exigem dúvida num arranjo claramente anatómico, hipotética identificação dos restos
imagem, e para quem a morte era persistente e rigor na execução; faltando apenas os pés. mortais do rei através do ADN

E 52
mitocondrial. Como o monarca com guião de Steve Coogan e Jeff technicolor “Ricardo III” (1955),
morrera sem descendentes, a
Os esforços de Pope. Sally Hawkins faz o papel Laurence Olivier contactou o diretor
pesquisa seguiu a linha feminina Philippa Langley de Philippa Langley e Coogan o da Casa-Museu para aconselhar
de uma irmã de Ricardo, Ana de do seu ex-marido, John. O rei do Roger Furse (designer do filme)
York (1439-76), até se encontrar para encontrar as título — a cargo do ator Harry Lloyd, em tudo o que respeitava a armas e
(2004) Joy Ibsen, uma descendente
da 16ª geração, a viver no Canadá.
ossadas perdidas um tetraneto de Charles Dickens
por via materna — perpassa pelo
armaduras. Na cena da Batalha de
Bosworth, Olivier vestiu uma réplica
A correlação dos ADN permitiu o de Ricardo III, filme como uma sombra muda (em borracha!) de uma armadura
anúncio, a 4 de fevereiro de 2013, assombrando Langley. Os maus dos anos 1480, para cavaleiro e
de que tinham sido finalmente a fim de lhes dar da fita são agora os académicos cavalo, pertencente à Wallace.
encontrados os restos do corpo de o repouso que universitários e os arqueólogos que Com quatro dos atores-cavaleiros
Ricardo III. não a apoiavam e a queriam riscar do teatro britânico (Sirs Laurence
Os ossos foram ordenados um monarca da história (atitude que os próprios Olivier, Cedric Hardwicke, Ralph
anatomicamente num caixão de
carvalho. No domingo de 22 de
britânico merece, negam). Hoje já ninguém se contenta
com os 15 minutos warholianos de
Richardson e John Gielgud), o
filme “Ricardo III” fez mais pela
março de 2015 — aniversário da são outra história fama. No Reino Unido reinam ‘as popularidade de Shakespeare no
batalha e da morte do rei —, com maravilhas de nove dias’, expressão mundo do que tudo o resto até
a urna coberta de rosas brancas de real capaz elizabethiana (século XVI) que se então ou de então para cá. Nos
York, o cortejo fúnebre dirigiu-se de ultrapassar aplicará aos 10 dias de luto pela EUA, o filme foi estreado (1956)
à Quinta de Fenn Lane, o local perda de Isabel II. Philippa não é em simultâneo nos cinemas e na
da Batalha de Bosworth, para um a melhor ficção doutorada nem professora, apenas televisão, tendo sido visto nesse
serviço religioso; Langley (que teria mulher. Altera-se a História em dia por cerca de 40 milhões de
preferido uma cerimónia católica, benefício da história (que foi talvez o pessoas. O envolvimento da Wallace
mais consentânea com a história) passei a olhar para os parques que Shakespeare terá feito). Collection no cinema repetiu-se em
acompanhava os descendentes de estacionamento com mais 2021, agora com o curador Tobias
genéticos de Ricardo III na segunda tolerância. Diga-se também que A EXPOSIÇÃO Capwell a atuar como consultor
limusine preta. Quatro dias depois, Fiennes é hoje um dos maiores A cereja em cima do bolo é uma histórico do filme “O Rei Perdido”.
Ricardo III seria oficialmente atores ingleses, a par dos grandes pequena exposição na Wallace Aliás, o dr. Capwell tinha sido um
ressepultado, desta vez na Catedral de um passado recente que também Collection, em Londres, “O Rei dos dois cavaleiros armados que
de Leicester (embora Langley vi ao vivo na peça de Shakespeare, Perdido: Imaginando Ricardo III”, acompanharam a procissão fúnebre
tivesse preferido a Catedral de como o aracnídeo de pernas e celebrando o 10º aniversário da com o caixão do Rei Ricardo do
York). O elogio coube à poetisa muletas Antony Sher (encenado descoberta dos restos do rei. O campo de Bosworth até à Catedral
laureada Carol Ann Duffy, na forma para a Royal Shakespeare Company famoso recheio da Hertford House de Leicester em 2015. Note-se que
de um poema, ‘Richard’, recitado por Bill Alexander, em 1984) ou resulta das paixões colecionistas a entrada na Wallace Collection é
por Benedict Cumberbatch: “Os Kevin Spacey (no Old Vic, dirigido dos marqueses de Hertford, gratuita, como aliás acontece em
meus ossos, gravados a luz, em por Sam Mendes, em 2011). Passo principalmente dos terceiro (amigo todos os museus nacionais.
terra fria/ um braille humano./ por cima da interpretação de Ian do príncipe regente, mais tarde A História continua. Encontrado
O meu crânio, cicatrizado pela McKellen no Teatro Nacional em Jorge IV) e quarto (que não casou, Ricardo III, Philippa Langley iniciou
coroa,/ vazio de história. Descreve a 1990, em produção transposta mas deixou casa e coleção ao filho outro projeto, o dos ‘Príncipes
minha alma/ como incenso, votivo, para o fascismo dos anos 1930 (que ilegítimo, Sir Richard Wallace, Desaparecidos’ (The Missing Princes
extinguindo-se; o mesmo/ que a correu mundo nos anos seguintes cuja viúva as legou à nação). Mais Project). O objetivo agora é provar
tua. Concede-me que gravem o meu e passou ao cinema em 1995), conhecida pelas suas fabulosas que o rei nada teve a ver com o
nome. Etc.” porque lhe faltaram o humor e a coleções de pintura francesa desaparecimento dos Príncipes na
sedução essenciais ao personagem. (século XVIII e não só) e flamenga, Torre. Infelizmente, a diafaneidade
REPERCUSSÕES A produção de Terry Hands para a a Wallace Collection inclui também da fantasia é, por vezes, mais
NO TEATRO E NO CINEMA Comédie Française em 1972, com aquela que será, talvez, a mais atraente do que a espessura da
Meses depois, no aniversário oficial Robert Hirsch no protagonista, importante coleção de armaduras e verdade. John Ford sabia-o bem
de Isabel II, Philippa Langley mostrara-me que os franceses armas (medievais, etc.) no mundo. quando ousou terminar “O Homem
e John Ashdown-Hill foram não são capazes de representar Entre as pinturas encontra-se Que Matou Liberty Valance”
galardoados com um MBE (Membro Shakespeare. uma obra fundamental de Paul (1962) com a máxima memorável:
da Ordem do Império Britânico), Os 10 anos de esforços de Philippa Delaroche, “Eduardo V e o Duque “Quando a lenda se torna facto,
enquanto o codiretor dos Serviços Langley para encontrar as ossadas de York na Torre” (Os Príncipes publique-se a lenda.” Fora essa a
Arqueológicos da Universidade perdidas de Ricardo III a fim de na Torre, 1831), lembrança vívida opção de Shakespeare. b
de Leicester, Richard Buckley, que lhes dar o repouso que um monarca daquele que será o maior crime
orientara as escavações, recebeu britânico merece são outra história atribuído (?) a Ricardo III: com 12
o grau mais elevado de OBE real capaz de ultrapassar a melhor anos apenas, Eduardo consola o
(Oficial). Houve quem se sentisse ficção. Pretexto para mais um filme? aterrado irmão com 9, enquanto o
ofendida... No ano seguinte (2016), Recorde-se que, em 1996, Al Pacino cão parece adivinhar a presença
THE LOST KING:
uma notável produção da peça de estreara no Sundance Film Festival sinistra de alguém do outro lado
IMAGINING RICHARD III
Shakespeare no Almeida Theatre “À Procura de Ricardo III”, uma da porta. (Delaroche famosamente
The Wallace Collection, Hertford House,
de Londres — juntamente com o longa-metragem onde combina declarou, c. 1840, em resposta à Londres, até 8 de janeiro de 2023
Bridge Theatre, um dos meus locais cenas da peça com uma análise do invenção da fotografia, que “a partir
de peregrinação teatral na capital papel de Shakespeare na cultura de hoje a pintura morreu”.) O REI PERDIDO
britânica —, encenada por Rupert contemporânea e entrevistas com O interesse da Wallace Collection De Stephen Frears
Goold, abria com o protagonista, atores famosos, como John Gielgud, pela figura do último monarca Com Sally Hawkins, Steve Coogan,
Ralph Fiennes, a emergir de uma Vanessa Redgrave, Kenneth Branagh da Casa de York tem mais de um James Fleet, James Rottger
escavação arqueológica algures e outros. Desta vez coube a Stephen século. Sabe-se que em 1953, Nos cinemas dia 27 de outubro
em solo urbano. A verdade é que Frears realizar “O Rei Perdido”, quando preparava o seu filme em Drama

E 53
A língua
que a
guerra fala
“Abelhas Cinzentas” é a primeira obra
lançada em Portugal do maior escritor
ucraniano dos nossos dias. Andrei Kurkov
escreveu-a a pensar nos civis entalados
no conflito do Donbas. Agora, assume-se
como testemunha da “guerra do século XXI”
TEXTO LUCIANA LEIDERFARB Andrei Kurkov, nome maior
da atual literatura ucraniana,
é agora editado em Portugal

palestras (o destino seguinte é a guerra, viu-a “tornar-se a norma”. então, “a força da sociedade ucrania-

A
Suíça e depois Portugal, antes de Sergeyich, o protagonista, ouve-a na” é aquilo que mais o impressiona.
regressar à Ucrânia), explica como sem a ouvir, integrando os seus sons “É uma surpresa para mim. Porque
aquela guerra em estado de “hiber- numa nova forma de silêncio. Depois os ucranianos são individualistas,
nação ativa”, com “movimentos de de publicar o romance, o autor co- não são coletivistas como os russos.
artilharia e snipers e vítimas”, mas meçou outro, que interrompeu a 24 Não é possível dizer-lhes para irem
sem combates como aqueles a que de fevereiro e até hoje não conseguiu todos na mesma direção. Mas quan-
hoje assistimos, foi recebida com retomar. “Não é o momento de escre- do estávamos a sair de Kiev, vimos
indiferença no Ocidente. “Na Europa, ver romances. Tenho escrito artigos e como as pessoas estavam disponíveis
era confortável não pensar na guerra ensaios para a imprensa internacio- para se ajudar entre si. Havia um
ntes de uma guerra há sempre outra. que decorria na Ucrânia. Sobretudo nal, e dado palestras sobre a guerra engarrafamento de 70 quilómetros
E antes daquela que desde fevereiro quando, após a anexação da Crimeia na Ucrânia. De escritor de ficção pas- nas montanhas, estavam 15 graus
assola a Ucrânia, havia um conflito e o início da guerra no Donbas, An- sei a testemunha da guerra do século negativos, não podíamos manter o
“silencioso” e silenciado, a decor- gela Merkel começou a construir um XXI”, afirma. Esta é a “sua” linha da motor ligado para não gastar gasoli-
rer desde 2014 no Donbas. Andrei gasoduto subaquático entre a Ale- frente. na. E um jovem abriu um velho hotel
Kurkov, o maior escritor ucraniano manha e a Rússia”, observa Andrei Andrei Kurkov, que nasceu em 1961 que estava fechado para obras, foi
contemporâneo, traduzido para Kurkov. O conflito “não era problema perto de Leninegrado, e cuja família para estrada e levou 30 famílias com
30 línguas, visitou a região em três dos europeus, no máximo era um cedo se mudou para Kiev, vive na ele para passar a noite.” Kurkov e a
oportunidades. Assistiu à chegada problema dos russos”. Porém, desde pele não só a guerra dos mísseis, mulher britânica, Elizabeth, assim
dos refugiados a Kiev e um deles, 2014, foram mobilizados 400 mil mas a da língua. Escreve em russo, como dois dos três filhos adultos qui-
que continuou a levar medicamen- ucranianos para o Donbas. “Nesse sentindo-se ucraniano. “Nem todos seram permanecer no país. A dada
tos e comida às sete famílias de uma sentido, a guerra esteve tão presente aceitam que eu seja um escritor altura, o casal saiu de Kiev, refugian-
aldeia próxima da linha da frente, de quanto hoje, em cada vila do país. ucraniano. A língua ucraniana é uma do-se na região da Transcarpátia, e
onde tudo tinha desertado (o gás, a Em cada uma delas há milhares de marca identitária e está a voltar a é a partir dali que ele tem reportado
eletricidade, a mais elementar loja), sepulturas.” territórios de onde foi banida pelos a vida de “deslocados internos” em
acordou-o para uma lacuna: dos 200 “Abelhas Cinzentas” é a história russos. E penso que, a cada ano, que a sua se transformou, ao mesmo
livros que tinham sido escritos sobre de um soldado reformado e torna- haverá menos pessoas a falar russo tempo que reflete sobre uma guerra
esta guerra, “não havia nenhum do apicultor, que vive na chamada no país. É a língua do inimigo”, diz, para muitos nova, para os ucranianos
sobre os civis”. E assim, sem o pla- ‘zona cinzenta’ da frente entre tropas notando que “as próximas duas (quase) histórica.
near, Kurkov começou a rendilhar ucranianas e separatistas pró-russos, gerações vão olhar para os russos Ele explica: “Os ucranianos nunca
“Abelhas Cinzentas”, agora lançado uma franja de 450 quilómetros que como os soviéticos olhavam para os tiveram um rei, e até 1664 a Ucrâ-
pela Porto Editora. foi das primeiras a esvaziarem-se no alemães após a II Guerra Mundial”. nia não fez parte do império russo.
Em conversa com o Expresso desde início das hostilidades. Quem lá ficou No segundo dia da guerra, ele e a fa- Os ucranianos eram anarquistas e
a Noruega, onde se encontra a dar passou a viver permanentemente em mília tiveram de fugir de casa. Desde individualistas, escolhiam os seus

E 54
prova de uma história separada da
deles no nosso território.” Eles, os
russos, ou ele, Vladimir Putin, para
quem a Ucrânia é um “mau exem-
plo”, por não querer fazer parte da
sociedade que tem vindo a construir
há 22 anos, uma sociedade “que de-
cidiu descartar as liberdades”. “Pu-
tin”, diz o escritor, “está a envelhe-
cer”. “O seu sonho é ficar na História
russa como alguém que restaurou o
grande império. Fala cada vez mais
sobre czares, comparando-se com
algum deles. Considera-se um czar
dos tempos modernos.”
Andrei Kurkov viveu o colapso da
URSS enquanto se estreava como
escritor. Com a crise económica que
se seguiu à queda do Muro, ninguém
publicava livros, e ele decidiu fazê-lo
de forma independente. Pediu em-
prestados 15 mil dólares — “o preço
de um bom apartamento em Kiev”
— e comprou seis toneladas de papel
ROBERTO RICCIUTI/GETTY IMAGES

ao Cazaquistão. Mandou imprimir


24 mil exemplares do romance “The
World of Mr. Bickford” e outros 20
mil de uma história infantil, e esteve
um ano a vendê-los por conta pró-
pria, distribuindo-os pelos quios-
ques de revistas do país. Vendia-os
também na rua de St. Andrew, a mais
frequentada da capital, ostentando
um cartão a dizer: “Eu sou o autor”,
próprios oficiais no exército cossaco, e onde “um homem da máfia”
tinham um sistema legal, serviços lhe ofereceu proteção. Com o que
diplomáticos, e estavam sempre a ganhou, não só pagou o empréstimo

OUTUBRO 2022
combater — contra a Rússia, a Poló- como comprou o seu primeiro com-
nia, por vezes a Turquia, ou ao lado putador. Hoje, banido desde 2005
dos tártaros contra os polacos ou os na Rússia e na lista negra desse país
russos. Houve mais de 40 decretos desde 2014, ter lá nascido não lhe diz
de diferentes czares russos a banir a nada. “Na última vez que estive na
língua ucraniana. No tempo soviéti- Rússia, em 2013, lembro-me de falar TEATRO SÃO JOÃO | 6+7 OUTUBRO TEATRO CARLOS ALBERTO | 19 OUTUBRO
co, os ucranianos foram punidos por
se recusarem a ceder as suas terras e
com as pessoas e de ter esta estranha
sensação: falamos a mesma lín- TUTTO BRUCIA SÃO HORAS DE JÁ
animais a favor das quintas coletivas. gua, mas não nos compreendemos. DIREÇÃO DANIELA NICOLÒ, ENRICO CASAGRANDE UM ESPETÁCULO DE CATARINA RÔLO
Em 1920, mais de 300 mil ucranianos Quando dizemos a mesma palavra, COPRODUÇÃO MOTUS, TEATRO DI ROMA – SALGUEIRO, VASCO BARROSO
foram deportados para a Sibéria. Em para cada um ela tem um significado TEATRO NAZIONALE (ITÁLIA), KUNSTENCENTRUM PRODUÇÃO CCB/FÁBRICA DAS ARTES
1932-33 houve a fome artificial, o diferente.” b VIERNULVIER (BÉLGICA)
Holodomor, em que foram privados lleiderfarb@expresso.impresa.pt TEATRO SÃO JOÃO | 20 OUTUBRO – 6 NOVEMBRO
de comida. E mesmo assim não nos
O FIMP NO TNSJ ESTREIA
conseguiram controlar. A prova do
individualismo na Ucrânia é que no PARA QUE OS VENTOS
Ministério da Justiça estão registados TEATRO CARLOS ALBERTO | 12 OUTUBRO
MAIAKOVSKI – SE LEVANTEM:
UMA ORESTEIA
mais de 400 partidos políticos. Cada
ucraniano que quer fazer política cria O REGRESSO DO FUTURO
ENCENAÇÃO IGOR GANDRA
o seu próprio partido.”
COPRODUÇÃO TEATRO DE FERRO, TEATRO DE DE GURSHAD SHAHEMAN
Portanto, “o que é isso de que a
MARIONETAS DO PORTO, FITEI (2021) A PARTIR DA ORESTEIA, DE ÉSQUILO
Ucrânia nunca existiu? Postulados ENCENAÇÃO CATHERINE MARNAS, NUNO CARDOSO
como esse são fáceis de contradizer”.
TEATRO CARLOS ALBERTO | 15+16 OUTUBRO COPRODUÇÃO THÉÂTRE NATIONAL DE BORDEAUX
Kurkov dá o exemplo da literatura do
CÓMO CONVERTIRSE EN PIEDRA EN AQUITAINE, TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO
país, que remonta ao século XVIII, e ENCENAÇÃO MANUELA INFANTE
de um dos seus maiores expoentes, o COPRODUÇÃO CENTRO CULTURAL MATUCANA 100,
filósofo e poeta Gregorius Skoworo- ABELHAS CINZENTAS FUNDACIÓN TEATRO A MIL, NAVE, PARQUE CULTURAL DE
da cujo museu foi destruído por um VALPARAÍSO (CHILE), FESTIVAL KYOTO EXPERIMENT (JAPÃO)
Andrei Kurkov
míssil em junho passado. “Eles não Porto Editora, 2022, trad. de
só impuseram a sua versão da Histó- Célia Correia Loureiro, 372 págs., €18,80
ria, como tentam destruir qualquer Romance

O TNSJ É MEMBRO MECENAS DO TEATRO NACIONAL SÃO JOÃ O


N
Virginia Woolf (1882-1941) o ensaio ‘Sobre Estar
começou a sua carreira com Doente’, Virginia Woolf
textos para jornais: recensões escreve: “Há na doença,
de livros, ensaios sobre autores

Li
temos de confessar (e a doença
antigos ou géneros literários é o grande confessionário), a
franqueza de uma criança; as coisas

vros
são ditas e gritadas verdades que
a cautelosa respeitabilidade da
saúde esconde. A solidariedade,
por exemplo — podemos passar
sem ela. (...) Assim que a cama
nos reclama ou, enterrados em
almofadas num cadeirão, erguemos
os pés nem que seja um palmo
Coordenação Luciana Leiderfarb acima do chão num outro, deixamos
lleiderfarb@expresso.impresa.pt de ser soldados do exército dos
sempre-em-pé e tornamo-nos
desertores. Eles marcham para a
batalha. Nós boiamos no rio com
os galhos; rebolamos com as folhas
mortas do relvado, irresponsáveis,
desinteressados, e capazes, talvez
pela primeira vez em muitos anos,
de olhar em redor, e para cima — de
olhar, por exemplo, para o céu.”
Estar doente não era estranho à
escritora, e o ensaio terá sido escrito
num desses períodos. Sofrendo de
desordem bipolar, em parte como
resultado de abusos sexuais na
juventude, Woolf chegou a um ponto
em que a vida se tornou insuportável.
Num dia de 1941, durante a II Guerra
Mundial, encheu os bolsos de pedras
e entrou no rio Ouse. Ao marido
deixou uma nota onde explicava que
sabia que vinha aí mais uma crise e
não queria continuar a destruir-lhe
a vida. O corpo seria encontrado
algumas semanas depois.
CULTURE CLUB/GETTY IMAGES

Ao longo das décadas seguintes,


Leonard Woolf publicaria
sucessivas coleções de textos de
não-ficção da mulher. Embora
famosa sobretudo como romancista
(“Orlando”, “Mrs Dalloway”, “As
Ondas” e “Rumo ao Farol” são
títulos que continuam a encontrar-
se nas livrarias), Woolf é uma das

Excesso
grandes ensaístas inglesas, e foi
nessa qualidade que se tornou
inicialmente notada no grupo de
Bloomsbury. Eruditos, inteligentes
e poéticos, os seus ensaios estão
ao nível dos seus romances, cuja

de realidade
evolução acompanharam.
Woolf começou a sua carreira com
textos para jornais: recensões de
livros, ensaios sobre autores antigos
ou géneros literários (a biografia,
por exemplo), ou questões gerais
(“Como se deve ler um livro”). Em
Nestes 48 textos, Virginia Woolf surge como a grande 1925 e 1932 foram publicadas duas
recolhas intituladas “The Common
autora de ensaios que sempre foi, embora hoje Reader”; o nome indica que se
seja sobretudo conhecida pelos seus romances destinavam a ser lidos e desfrutados
não apenas por um público
TEXTO LUÍS M. FARIA especializado.

E 56
22/23 OUTUBRO OCTOBER

Dançando
Organizado por ordem cronológica, no passado, para o impessoal, e 19:30 17:00
“48 Ensaios” não inclui apenas os seus romances serem agora, sáb dom
textos sobre literatura e sobre naturalmente, mais críticos da
1 2
escritores individuais (Lawrence
Sterne, Jane Eyre, Jane Austen, Walt
Whitman, Daniel Defoe, Montaigne,
sociedade e menos analíticos no
tocante às vidas individuais.”
Em “Profissões para Mulheres”,
com a sat
RIVOLI
sun

Christina Rossetti, Ivan Turgenev,


Thomas Hardy e Joseph Conrad).
Também há um que fala de cinema e
uma palestra de 1931, Woolf
explica que, pessoalmente, nunca
teve dificuldades em tornar-se
Diferença
outros sobre experiências que Woolf romancista. Não havia obstáculos
teve (viajar de carro no Sussex) materiais — o papel era barato — e François Tânia
ou não (voar sobre Londres). Este
último é um exercício ficcional.
o caminho já tinha sido aberto por
antecessoras como George Eliot. Chaignaud + Carvalho
O volume começa, adequadamente, O verdadeiro obstáculo que ela Blasons * Doesdicon *
com “O Declínio da Escrita enfrentou foi aquilo a que chama
Ensaística”. Woolf critica a um fantasma — o Anjo do Lar, uma
proliferação de ensaios pessoais na criatura encantadora que existia
sua época, atribuindo-a a fatores em todos os lares e se sacrificava
de facilidade. Evidentemente, ser permanentemente. Ao começar a
pessoal é da própria natureza do escrever a sua crítica ao romance
ensaio, pelo menos do tipo de ensaio de um autor famoso, ouviu o

Marco
19:30 19:30
que está aqui em causa, derivado fantasma instá-la a anular-se, e teve
de Montaigne. É quase inevitável de o matar — em legítima defesa, sex sáb
que quem sabe escrever — e hoje justifica. 21 22
em dia toda a gente sabe — acabe a
escrever sobre si mesmo, mas é só
sobre isso que a maioria das pessoas
A defesa da ficção modernista, sob
uma forma ou outra, é o tema de
vários ensaios. Em “O Sr. Bennett
da Silva fri
RIVOLI
sat

deviam escrever, segundo Woolf. O


problema é que quem nada percebe
e a Sra. Brown”, Woolf contrasta
autores eduardianos como H.G.
Ferreira
de arte ou literatura também tem as
suas simpatias, e isso é o “fardo” da
Wells e Arnold Bennett (que
tinha criticado um livro dela) CARCAÇA
crítica moderna. com georgianos, e os respetivos
O curto texto intitulado “A nota entendimentos no modo como
feminina na ficção” é um de se chega à realidade de uma
vários que exploram a posição da personagem. Como outros artistas
mulher enquanto autora. Aqui, a que perderiam a vida durante a
questão tem a ver com uma alegada guerra, Woolf enfrentou a alteração vários horários

Double
menoridade artística das mulheres das condições que a precederam. various times
e, portanto, o risco que implicaria Em “Porque é que a arte hoje segue qui sáb
escreverem romances. Dada a a política”, de 1936, nota que há
27 - 29
importância dos constrangimentos
económicos e sociais, é possível que
o homem que suscitou este ensaio
momentos em que o caos destrói as
condições normais de sobrevivência
do artista, a não ser que ele possa
Trouble thu sat
CAMPO ALEGRE
em 1905 já não tivesse a mesma
opinião após a I Guerra Mundial,
colocar-se ativamente ao serviço do
poder. Seja num caso, seja no outro,
#05
quando as mulheres entraram em o problema não é falta de realidade,
massa no mercado de trabalho. mas um excesso dela. Como, aliás, La Tierce + Ana Renata Polónia + David Marques *
“A mudança que transformou costuma acontecer. b Luísa Saraiva & Senem Gökçe Oğultekin *
a mulher inglesa de um ser de
influência neutra, inseguro e vago Anna Massoni *
em alguém que tem direito de voto, Ana Pais
que ganha o seu salário e que é uma La Tierce *
cidadã responsável, deu-lhe, tanto
na vida como na arte, um certo
pendor para a impessoalidade”,
dirá Woolf. “As suas relações já não
são só emocionais, são também
intelectuais e políticas. O velho
sistema que a condenava a olhar de
esguelha para as coisas pelos olhos * Espetáculos organizados no âmbito da Temporada Portugal-França 2022
de um marido ou de um irmão, Performances organised under the Portugal-France 2022 Season

deu lugar aos interesses práticos QQQQQ


e diretos de alguém que tem de 48 ENSAIOS
agir com autonomia e não de se
© José Caldeira

Virginia Woolf
limitar a influenciar os atos dos Relógio D’Água, trad. de Ana Maria
Mecenas da programação de dança
outros. Daí a sua atenção estar a ser Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Dance programme sponsor
CARCAÇA

desviada do aspeto pessoal, onde 454 págs., €27


estava exclusivamente centrada Ensaios

teatromunicipaldoporto.pt
Ossos e arestas

E ainda...
Este é o quarto livro de
poesia de Andreia C.
Faria, que reuniu os três
primeiros em “Alegria
para o Fim do Mundo”
(Porto Editora, 2019)
QQQQ RETRATO DE UM
A VALSA DO ADEUS DESCONHECIDO
Milan Kundera Nathalie Sarraute
D. Quixote, 2022, trad. de Miguel Serras Minotauro, 2022, 198 págs., €16,90
Pereira, 240 págs., €16,90 Autora judia, nascida na Rússia em
Romance 1900 e formada em Paris, foi advo-
MÁRIO MELO COSTA
gada até, em 1941, as leis nazis a im-
Um trompetista mulherengo, uma pedirem de exercer. Neste livro, iné-
enfermeira de esperanças, uma dito por cá e prefaciado por Sartre, a
beldade ciumenta, um ginecologista vida de um pai e de uma filha adulta
eugenista, um dissidente angustiado são olhadas ‘microscopicamente’.
e um cristão hedonista encontram-se

P
rovavelmente desde Luís nunca foi bondoso nem se quis/ numa estância termal. Esta sinopse
Miguel Nava que não surgiam intacto.” anedótica poderia definir as primeiras AO RITMO
imagens tão viscerais na É através da consciência aguda dezenas de páginas de “A Valsa do
DE HARLEM
Colson Whitehead
poesia portuguesa. Andreia C. do artifício que estes poemas se Adeus” (1976), que parecem anunciar
Alfaguara, 2022,
Faria (n. 1984) sempre trouxe para abrem, agrestes e intempestivos, uma comédia libidinosa e amoral,
408 págs., €20,45
os seus versos o corpo, o corpo à violência de um discurso em com traços de misoginia, povoada
feminino, como território onde constante vaivém entre revelação de homens devassos e mulheres
a escrita acontece (ou de onde e rasura. O efeito de uma “boca castradoras. E nesse registo Kundera Mais um romance do vencedor de
emana), como palco instável de aberta, brutalmente/ lírica”, diante escreve páginas sem contemplações dois Pulitzer, no qual, segundo o
uma experiência sensorial levada de tantas “coisas que se abatem acerca de temas como a beleza e a “NYT”, “se enredam” história urbana
às últimas consequências, no limite como um sonho”, é pouco menos fealdade, as armadilhas do desejo ou e estratificação racial.
explícito de uma materialidade em do que esmagador. Mas o melhor o rancor da meia-idade. Mas à medida
risco (porque sujeita à laceração do deste livro poderoso fica guardado que a história avança, cruzando Top Livros Semana 37
De 12/9 a 18/9
embate brutal com o mundo). para o fim, para os 16 poemas em diferentes eixos narrativos, em
Ficção
Em “Canina”, essa radicalidade prosa da secção intitulada ‘Beleza subcapítulos curtos e magistralmente
Semana
atinge uma espécie de paroxismo. O Suficiente’, nos quais se insinua o encadeados, o romance acentua a anterior

sujeito poético confronta-se com a fio de uma narrativa. “Há no mundo densidade e a tragédia. Aos habituais Isto Acaba Aqui
1 1
sua animalidade, apropriando-se do o labor excessivo da beleza”, uma excursos ensaísticos, ainda que Colleen Hoover
que há de mais selvagem na vida, de beleza que Andreia C. Faria assume dialogados, sobre Hegel e São Simeão 2 2
A Raridade das Coisas Banais
mais livre e “impraticável”. Sob um como “nota escrita à margem, Estilita, o socialismo de vigilância ou a Pedro Chagas Freitas
“céu irrespirável”, ergue-se uma texto-sombra da destruição”. Entre necessidade da procriação, soma-se 3 -
A Viúva e o Papagaio
cidade “fora de época”, vagamente ecos de Hiroxima e Chernobyl, uma notória progressão da misoginia Virginia Woolf
apocalíptica, mais paisagem mental sombras e fantasmas, instala-se para a misantropia, da auto-ilusão 4 -
Ulisses
Maria Alberta Meneres
do que outra coisa. É neste campo uma clareza de cortante nitidez: para a autodescoberta. Reunidas por
de ruínas e despojos, entre “o seco “Porque é belíssimo o erro dos diversos motivos, as personagens vão Lendas de Portugal
5 - Ana Oom
arvoredo dos signos”, que deambula homens na Terra. Ultimamente, interagindo (embora nunca tenham
As categorias consideradas para a elaboração deste top
uma voz “íntima e civilizacional” — olhando-os, penso naqueles toda a informação que o leitor já foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
ou seja, “invisível/ como vidro onde artesãos que cosiam o ventre de tem), entendem-se, desentendem-
embate a natureza”. reis mortos depois de lhes extrair se, desiludem-se, tornam-se mais Não ficção
Diante da “memória dos ossos” e do as vísceras, impondo à carne o conscientes e mais pessimistas. Todas Semana
anterior
fardo de ser humana, o “espúrio” definitivo espanto de uma frase, carregam uma mitologia, uma forma
Nunca Fiques Onde Já Não Estás
desejo de escrever não almeja o azul uma cicatriz.” / JOSÉ MÁRIO SILVA de superioridade moral, seja a gravidez, 1 1
Manuel Clemente
das alturas, mas antes o escuro do a ciência ou a resistência política, Contas Poupanças
lodo. “A minha língua é o animal mas todas vão percebendo, numa 2 - Pedro Andersson
mais sujo”, lemos. E também: ágil sucessão de episódios, que estão Conversando Com o Inimigo
3 2
“Quem dera à linguagem a nobreza enganadas acerca de si mesmas e dos Henrique Cymerman
fria,/ afundada, do excremento.” outros. A “valsa do adeus” refere-se Torne-se um Decifrador
Uma arte da queda, eis o que à visita às termas de um antigo preso 4 4 de Pessoas
Alexandre Monteiro
encontramos nesta poesia: “Escrevo político que conseguiu autorização
Ponha o seu Dinheiro a Trabalhar
ainda, qual aranha com as patas na para emigrar, e que se quer despedir 5 - Para Si
penumbra./ Escrevo as coisas que dos amigos; mas toda a gente neste Bárbara Barroso
das mãos/ me caem, rachadas e romance diz adeus a alguma coisa, As categorias consideradas para a elaboração deste top

celestiais.” Isto tudo na certeza do QQQQ seja à maternidade, ao patriotismo


foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

golpe, da ferida, da imperfeição: CANINA ou à conjugalidade, aceitando, na Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
“Arestas, é certo, esperam por Andreia C. Faria medida do possível, a ambiguidade e a pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
mim:/ toda a arte transfigura/ Tinta da China, 2022, 90 págs., €13,90 debilidade da natureza humana. é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
em deleite o próprio espelho/ que Poesia / PEDRO MEXIA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 58
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE

O príncipe agonia
As desventuras de um editor
italiano em Barcelona

A
o longo da sua vida de escritor, Luis Sepúlveda teve, na Europa, cinco
editores fiéis: a francesa Anne-Marie Metailié, das Éditions Metailié, o
italiano Luigi Brioschi, da Guanda, a espanhola Beatriz de Moura, da
Tusquets, o grego Yorgos Miressiotis, da Opera, e eu, primeiro na ASA e depois
na Porto Editora. Éramos todos muito diferentes, mas unia-nos a amizade
pelo autor e o empenho em criar leitores para o homem que tinha escrito uma
pérola chamada “O Velho Que Lia Romances de Amor”. É evidente que a
especificidade dos respetivos mercados impunha algumas nuances e recordo
ainda, com um sorriso interior, os protestos do Yorgos, que era sempre o último
a saber da existência de um novo livro e vinha desabafar comigo, talvez por
perceber que éramos (Portugal e a Grécia) os “parentes pobres” daquele grupo.
De todos, Luigi Brioschi era (e é) aquele que tinha um porte mais imponente,
quase aristocrático, aliado a uma expressão fechada e, de certo modo, triste.
O escritor e o seu grupo chamavam-lhe por isso, afetuosamente, “o príncipe
agonia”.
Luis Sepúlveda e a mulher,
a poetisa Carmen Yáñez,
tinham-se casado no Chile em
1971, mas o casamento durara
pouco e tinham sido diferentes
os caminhos do exílio de cada
um. Muitos anos mais tarde,
reencontraram-se, voltaram
a viver juntos e, em 2004,
decidiram tornar a casar-se,
oferecendo na sua casa de
DANIEL MORDZINSKI

Gijón uma festa que reuniu um


largo grupo de pessoas, entre
familiares, amigos vindos dos
quatro cantos do mundo e,
evidentemente, os seus editores
Luigi Brioschi com Luis Sepúlveda mais chegados. Luigi e a sua
e Carmen Yáñez mulher, Dolly, estavam na
primeira fila dos convidados.
Mas as ligações aéreas entre Milão e Gijón não eram particularmente fáceis e,
entre um voo matinal que os levava até Barcelona e um voo ao fim da tarde que
os depositaria nas Astúrias, mediavam muitas horas inúteis, sobretudo para
quem, como eles, conhecia os quatro cantos da cidade condal.
Não tenho arte para descrever o aspeto escandalizado com que o editor
italiano, ao chegar a Gijón, contou aos amigos o que lhe tinha acontecido em
Barcelona. Ele e a mulher, que já não eram propriamente uns meninos, haviam
decidido que o melhor a fazer era aproveitarem essas horas para descansar de
uma noite anterior mal dormida e retemperarem o corpo para a noitada que
certamente os esperava. Dirigiram-se pois, com toda a naturalidade, a um
dos melhores hotéis da cidade e Luigi Brioschi explicou ao rececionista que
pretendiam um quarto apenas por algumas horas, mas que pagariam, claro,
o preço de uma noite. O jovem ficou com um ar atrapalhado, disse que teria
de ir consultar o diretor do hotel e, quando regressou, informou um incrédulo
“príncipe agonia” de que lamentava, mas o hotel não alugava quartos para
‘aquele’ fim... b
Nova), não é coisa para o seu dente.
E quem disse que “Fogo-Fátuo” não

Ci
tem também no seu centro, acima
de tudo o que nos convence ser,
uma grande história de amor que

ne
batalha contra toda a espécie de
convenções? Se rimos duplamente
com a teatralização das cenas

ma
de Alfredo à mesa, já que ele e a
família observam e interagem com
a audiência, o dispositivo altera-se
radicalmente com a chegada do
rapaz à caserna dos soldados da paz
e o seu encontro com Afonso (André
Coordenação João Miguel Salvador Cabral). Não há, nunca houve,
jmsalvador@expresso.impresa.pt nem em Oliveira, em Rocha ou em
César Monteiro, realizador luso
mais forte a fixar o coup de foudre
como João Pedro Rodrigues. E é de
uma intensidade louca, voluptuosa,
libidinal, o grande amor que ali
se incendeia à nossa frente entre
o aristocrata branco que estudou
história de arte e o bombeiro negro
Mauro Costa no que o introduz a uma relação sem
papel do jovem as hierarquias que ficaram lá fora,
Alfredo, o rapaz que do mesmo modo que aqui não há
queria ser bombeiro hierarquias entre a grande arte de
Caravaggio e o erotismo popular
dos cartoons de José Vilhena. Pela
força dos artifícios, que Rodrigues

E depois cantou-se o falo! manipula com uma graça inédita e


uma liberdade que até hoje nunca
ousara (veja-se a felicidade dos
números musicais que, longe da
“Fogo-Fátuo”,
“F
ogo-Fátuo” é uma máquina esgota num primeiro olhar, nenhum métrica rigorosa hollywoodiana,
de matar preconceitos é abordado sem ironia. adaptam o pas de deux daquela
sobre a paixão raciais e sexuais, não foi à Falemos de incêndios, sim, ou não influência a condutas de salvamento
toa que já se escreveu que, por isso começasse tudo na Travessa da concretas), torna-se credível
de um príncipe mesmo, resultou num tremendo Queimada lisboeta e no (diz o senso o que à partida só poderia ser
e de um bombeiro, filme político. Como tremendo comum) libidinoso ano de 2069 em inverosímil. Os sexos com canção
filme político que é, não dispensa que Alfredo, um velho aristocrata politicamente incorreta de Amália
é uma maravilha uma relação com o tempo, com a falido, deitado no seu leito de morte, em pano de fundo não são sexos,
História e, em particular, com uma se comove com o boneco Playmobil são dildos — mas a cena de sexo é
de inventiva e malfadada realidade portuguesa ali deixado por um sobrinho-neto. belíssima e verdadeira! E é também
eficácia, regida pelo em que, tal como no fado do
‘Embuçado’ (a que Paulo Bragança
Um travelling à frente refoca o
boneco (é um bombeiro negro)
pelos artifícios que aquele Portugal
futurista atinge utopicamente
princípio do prazer dá uma nova versão), os mascarados e é nesse instante que Alfredo uma mentalidade que ainda lhe
se escondem, trocando o que pronuncia o nome do homem que falta, podendo o fatalismo do fado
TEXTO FRANCISCO FERREIRA são por aquilo que aparentam amou intensamente cinco décadas transformar-se, enfim, em elogio do
ser. À sua sexta longa-metragem antes: Afonso. A cena é antecâmara falo!
chamou João Pedro Rodrigues uma de um flashback que vai depois para Em “Fogo-Fátuo”, o preconceito
“fantasia musical”. É um filme 2011 e que logo convida ao tom de não tem hipótese de sobreviver, é
pirómano e pronto a despir, denso imaginação e de escárnio que há asfixiado à nascença, não há ditame
como uma rocha incandescente. de vir. São os tempos das primeiras que lhe dê guarida nem realismo que
A sua poética erótica responde ereções do menino Alfredo em cena lhe dê socorro. A equação conclui-se
incondicionalmente ao desejo e à coreografada por canção infantil sempre com um “além de...” Além
vontade dos corpos, elevando-os. de Joel Branco (que faz de Alfredo do juízo preconcebido... Além do
Está rodeado de incêndios futuros e no fim da vida) e que Rodrigues excêntrico quadro racista que José
passados que convergem em força classificou de “pré-ecologista”. Conrado Roza pintou no reinado de
para os dias de hoje. Incêndios que, Poucos anos depois, arde a Mata D. Maria I... Além do que os pais de
quer a nível literal quer alegórico, Nacional de Leiria e o rapaz de Alfredo gostavam que ele tivesse
QQQQQ passam pelo conflito monárquico- sangue azul (já com Mauro Costa no sido antes dele sair da casca... É
FOGO-FÁTUO republicano, pelo passado papel) sai-se com ímpeto que abala um ponto de inflexão incrível na
De João Pedro Rodrigues imperialista e colonial português os candelabros do seu berço real: obra do maior cineasta português
Com Mauro Costa, André Cabral, Miguel assim como pela crise climática e os quer ser bombeiro, algo que, aos da sua geração, em simultâneo
Loureiro, Margarida Vila-Nova (Portugal) anos da pandemia em que o filme se olhos dos pais (excelentes papéis de absolutamente coerente com os
Comédia/Fantasia M/16 fez. E se nenhum destes assuntos se Miguel Loureiro e Margarida Vila- princípios que a moldaram. b

E 60
E ainda...
NUNCA NADA ACONTECEU
De Gonçalo Galvão Teles
QQQQ QQ Drama português, sobre um grupo
BOA SORTE, LEO GRANDE A CONFERÊNCIA de jovens inseparáveis a braços com
De Sophie Hyde De Matti Geschonneck os dilemas próprios da mudança de
Com Emma Thompson, Daryl McCormack, Com Philipp Hochmair, Johannes Allmayer, OS JOVENS AMANTES idade, transporta-nos para a vida de
Isabella Laughland (Reino Unido/EUA) Maximilian Brückner (Alemanha) De Carine Tardieu Pedro (Bernardo Lobo Faria) — um
Comédia dramática Drama M/12 Romance dramático centrado em rapaz cuja vida familiar se apresenta
Shauna (Fanny Ardant), uma arqui- mais desafiante do que a de muitos.
ESTREIA Ela já passou o cabo dos 60. A 20 de janeiro de 1942 — e a pedido teta reformada, que se cruza com Como dará a volta à situação? E que
Professora, retirada das salas de aula do diretor do Gabinete Central de um médico mais novo (interpreta- escolhas fará? Em sala.
onde ensinou Moral, viúva, agora a mo- Segurança do Terceiro Reich (Reinhard do por Melvil Poupaud) que havia
rar sozinha, filhos andando vida fora, deu Heydrich) —, 15 altos dirigentes do go- conhecido há mais de uma década.
por si a pensar que só dormiu com um verno nazi e das SS reuniram-se numa Acabam por envolver-se, levando
homem na vida, nunca teve uma aven- mansão situada nas margens do lago Pierre a mudar de vida. Para Shauna
tura, nem fez, no sexo, a maior parte das Wannsee, nos arredores de Berlim. O não será tão fácil. Em estreia.
coisas disponíveis nos cambiantes da objetivo da reunião? Apresentar e de-
concupiscência humana. Nunca teve bater os procedimentos a adotar na im-
um orgasmo — e, deveras, já nem a fan- plementação da dita “solução final”, que
tasia de o vir a ter. Hoje, nesta tarde de haveria de resultar na deportação e no
um quarto de hotel onde entra meio a extermínio em massa dos judeus que,
medo, meio confusa, ela sabe que há um à época, se encontravam na Alema-
homem, jovem, para chegar. Contratou- nha ou nos territórios europeus por ela
-o, na oferta ao dispor na internet, horas controlados. É com essa conferência
reservadas, salário assumido e pago. Um realizada há 80 anos que se ocupará, 1618
gigolo. Mas será que ela quer mesmo em exclusivo, o filme de Geschonneck, De Luís Ismael SORRI
aquele encontro, aquela probabilidade, que, para o reconstituir, se socorreu No Porto de 1618, a fuga parece ser De Parker Finn
aquele conforto? É assim o arranque das atas que dela foram lavradas por o único caminho para os cristãos- Rose Cotter começa a viver mo-
de “Boa Sorte, Leo Grande”, a decor- Adolf Eichmann (usadas como prova de -novos, suspeitos de heresia. Matos mentos assustadores inexplicáveis,
rer quase por inteiro no espaço de um acusação nos Julgamentos de Nurem- de Noronha, visitador da Inquisição, espoletados por um incidente
quarto de hotel, com uma estrutura berga. Trata-se de uma tentativa de dirige-se para a cidade. O mercador traumático que envolveu uma pa-
similável à de uma peça de teatro para dramatização que assenta num efeito e filantropo António Álvares é o ciente sua. O terror apodera-se da
dois atores, em três atos e um epílogo. de tempo real (a duração do filme cor- primeiro alvo da visitação. O filme, sua vida e leva-a a fugir da realidade
No coração da coisa, um texto milime- responde, aproximadamente, aos 90 patrocinado pela Comunidade Ju- presente. As respostas podem estar
tricamente aparelhado por Katy Brand minutos da conferência) e que começa daica do Porto, chegou às salas. no passado. Em cartaz.
(atenção argumentistas, candidatos a por criar um atrito entre o espaço e as
argumentistas, dramaturgos & ofíci- palavras. De facto, a primeira coisa que
os correlativos: há que ver este filme, se nota é o contraste que se estabe- ESTRELAS DA SEMANA
aprender com ele). A dar corpo à coisa, lece entre o requinte do décor (aquela Jorge Vasco
Francisco
uma atriz divina e corajosa — Emma luxuosa mansão pintada em tons sem- Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
Thompson — com um desempenho que pre neutros e batida por um nevão que
se não estiver na grelha de partida para evoca a ideia de pureza) e o carácter Boa Sorte, Leo Grande QQQ QQQQ
os Óscares é porque os membros da monstruoso dos discursos que nele Cada Um na Sua Casa b
Academia andam todos cegos. A dar- tomam lugar. As personagens discor- A Conferência QQ
-lhe contracena, com um labor menos rem sobre a “solução final” com a frieza
matizado, ainda assim com exigências tecnocrática de quem procura aumen- Daniel e Daniela QQQ
de tom nada fáceis (veja-se tudo o que tar a produtividade de uma empresa, ou Fogo-Fátuo QQQQQ QQQ
faz na zona terminal do filme), temos com a repugnância de quem considera Os Jovens Amantes QQQ Q
um impecável irlandês muito pouco co- a sorte de uma trupe de baratas. É
Moonage Daydream QQ
nhecido: Daryl McCormack. Por detrás verdade que, dada a sua matéria-pri-
da câmara está a australiana Sophie ma (as atas da conferência), o filme se Não Te Preocupes Querida QQ QQQ
Hyde. História de mulher contada por condena à partida a não ser muito mais Nunca Nada Aconteceu Q Q
mulheres, “Boa Sorte, Leo Grande” é do que um desfile de talking heads,
Óculos Escuros QQQ QQ
uma sensível abordagem da sexualidade mas eleva-se acima da média pela sua
feminina para lá da idade em que se fala objetividade, isto é, pela sua capaci- A Rapariga Selvagem QQQ Q
desses temas. Ah!, sim, é uma comédia, dade de sustentar um tom que se quer Restos do Vento QQQ QQQ
dramática, mas comédia. O sorriso é a sóbrio e desapaixonado, evitando assim The Souvenir: Parte II QQQQ
última arma contra o desalento. Eis um os sublinhados que, por norma, marcam
bom começo de outono nas salas de este tipo de projetos evocativos. Três Mil Anos de Desejo QQQ QQQ
cinema. / JORGE LEITÃO RAMOS / VASCO BAPTISTA MARQUES DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 61
A pizza
(já não) é o
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
que era
Gosta? Ótimo.
Não gosta?
É indiferente.
A nova temporada
de “Chef’s Table”
é para os amantes
e não amantes
da pizza, que serve
de pretexto
para contar boas
histórias, conhecer
culturas e viajar
TEXTO CATARINA
BRITES SOARES

E 62
A
Netflix não descobriu a pólvora nem as
qualidades da pizza. Comer ficou na moda e
Bonci deu dignidade
hoje é fácil conseguir seduzir espectadores à pizza romana, usou
quando se trata de conhecer o backstage de um
prato. O formato Anthony Bourdain — a comida ingredientes naturais
como meio, uma boa fotografia e histórias fortes
— conquistou-nos e fez escola. A plataforma
e mudou a imagem
repetiu a fórmula xeque-mate na nova temporada da pizza como comida
de “Chef’s Table”, que desta vez acompanha seis
chefes que fizeram da pizza uma obra de arte. básica e simples 63 Artistas de 55 Nacionalidades
Dispensava-se o tom e a música (excessivamente) em 7 Salas!
dramáticos, que resultam numa tentativa forçada ser discretas, fazer o que lhes é dito e ser uma
de fazer dos protagonistas heróis. Afinal de minoria exemplar. Eu não sou nada disso”, vinca.
contas, o resto é suficiente para agarrar corpo e “Quando decidi fazer pizzas, recusei-me a ficar 20 Quinta 21 Sexta 22 Sábado
mente ao programa que conta como se fazem as no meu canto.”
PASSES À VENDA NA TICKETLINE E BLUETICKET
melhores pizzas. A ex-atriz profissional, que deixou o teatro por
“Shit in, shit out.” A frase é de Chris Bianco, que só lhe atribuírem papéis de asiática e escassear Teatro Tivoli BBVA Theater Stage →21h30
protagoniza o primeiro episódio, para explicar trabalho, redescobriu-se na cozinha: primeiro na
SARA CORREIA (PT) NGULMIYA (AU) FIRAS ZREIK (PR/USA)
que tão importante como o dom é a seleção dos Pizzaria Lola e mais tarde no Young Joni. “Queria ISRAEL FERNÁNDEZ (ES) AGUAMADERA (AR/FR) DANIEL HERSKEDAL (NO)
ingredientes. A exigência do pizzaiolo radicado um restaurante que expressasse as minhas MARK ELIYAHU (IL) RANGAMATIR BAUL (IN) GROOVE& (KR)
nos Estados Unidos é transversal, mas seria origens, de que tinha vergonha, os sabores, os
injusto delegar nos bons produtos a chave do cheiros. Estava pronta para aceitar a minha Cinema São Jorge Lusofónica Stage →21h45
êxito dos seis chefes que em 45 minutos explicam identidade”, refere a vencedora do prémio James SHEILA PATRICIA (ES) DUARTE (PT) KARYNA GOMES (GW/PT)
como se tornaram mestres da pizza. Beard. “Ninguém me vai dizer que não posso pôr PEDRO JÓIA (PT) BIA FERREIRA (BR) ANA LUA CAIANO (PT)
Aos italianos Gabriele Bonci e Franco Pepe kimchi ou molho coreano numa pizza.” KASTRUP QUARTET (BR) TITO PARIS (CB/PT) PRÉTU (CB/PT)
custou-lhes a vida pessoal e familiar. Bonci A forma como Yoshihiro Imai fala contrasta
ficou famoso como “Michelangelo da pizza”, com a de Ann Kin e denuncia onde um e outro Parque Mayer OffWomex Stage →21h00
por ter revolucionado a pizza romana. Por onde cresceram, mas o chefe japonês também fez do MARCO MEZQUIDA (ES) CORINA SÎRGHI STEFANO SALETTI
passava pediam-lhe autógrafos, fotografias e que poderia ter sido uma prisão — as raízes — uma SI TARAFUL JEAN & BANDA IKONA (IT)
abraços, graças à presença assídua na televisão. força. À pizza acrescentou sabores tradicionais AMERICANU (RO)
No episódio cujo início ressoa a thriller conta do Japão, como a cavala e os cogumelos shiitake, ISKWE (CA) PERIJA (MKD) SUONNO D'AJERE (IT)
que se esqueceu de quem era e se deixou levar respeitou tradições mas também transgrediu. No LE DIABLE À CINQ (CA) ORATNITZA (BG) KALÀSCIMA (IT)
pelo personagem. Cedeu ao álcool e às drogas. restaurante que abriu em Quioto, o Monk, diz que
Cineteatro Capitólio Capitólio Stage →21h45
Teve de parar. Afastou-se — pelo menos de onde os convidados sentem algo que só vão sentir uma
chegavam os holofotes — e recomeçou. “Chegas a vez. “Aquele momento parece um milagre.” LIA DE ITAMARACÁ (BR) DJAZIA SATOUR (DZ/FR) AYWA (MA/FR)
um ponto que enlouqueces. É bom quando se está POIL UEDA (JP/FR) AL BILALI SOUDAN (ML) DERYA YILDIRIM
em palco, mas é horrível quando se está fora.” CHEGA DE PEPPERONI, MOLHO E QUEIJO & GRUP SIMSEK
, , (TR/DE)
Especialistas e críticos da área — são vários os “Quando se pensa em pizza, pensa-se em SELMA UAMUSSE (MZ/PT) SON ROMPE PERA (MX) STARTIJENN (FR)
entrevistados durante a minissérie criada em pepperoni, molho e queijo. Não é isso que me
PASSES À VENDA NA BOL
2015 e nomeada para os Emmys — sublinham move. É mágico ir ao quintal e pensar: ‘É mesmo
que Bonci foi responsável por três revoluções: isto que vamos jantar’”, diz Sarah Minnick, que Coliseu dos Recreios Coliseu Stage →21h00
deu dignidade à pizza romana; usou ingredientes repete a ousadia dos restantes.
ETUK UBONG & AFROTRONIX (TD/CA) BRENDA NAVARRETE (CU)
naturais — inédito na altura; e mudou a imagem No Lovely’s Fifty Fifty, restaurante que abriu THE ETUK PHILOSOPHY (NG)
da pizza como comida básica e simples. em Portland, Oregon, comem-se pizzas com DJELY TAPA (ML/CA) THE DIZZY BRAINS (MG) FRA! (GH)
O mesmo sucedeu com Franco Pepe, que abre pêssegos e beldroegas; de batatas assadas de TEGIE
, CHLOPY (PL) LA MAMBANEGRA (CO) LA BRIGIDA
o episódio com uma ode ao artesanal. “Se Yukon com feno grego; e gelados de caramelo ORQUESTA (CL)
dependêssemos todos da tecnologia, as pizzas com pipocas de nozes e camomila ou de folha de
seriam todas iguais”, defende. A massa tem de ser figueira. Os especialistas garantem que Minnick LAV – Lisboa Ao Vivo Club Summit →01h00
feita com os braços e com o cérebro, acrescenta. É mudou o que a pizza pode ser, assim como Chris SAVAN (CO) IMED ALIBI
no Pepe in Grani, na vila de Caiazzo, a uma hora de Bianco, considerado o “Coltrane da pizza”, por FEAT. KHALIL EPI (TN/FR)
Nápoles, que se bate todos os dias para levar a pizza ter reinventado a arte de a fazer. Recorda-se de, DJ DIAKI (ML) AUNTY RAYZOR (NG)
a outro nível. “O meu trabalho é provocar emoções quando dobrava caixas de pizza depois de sair da ALLIGATORZ (FR)
e dignificar a profissão. Essa é a revolução do escola, torcer o nariz à presunção do slogan do
pizaiolo”, realça. A vontade de redefinir o conceito, restaurante onde trabalhava: “You tried the rest, AMBOS OS PASSES DÃO ACESSO
de experimentar e criar uma identidade custou-lhe À CINEMATECA PORTUGUESA
now try the best” — e não desistiu enquanto não
a relação com os irmãos, a mulher e os filhos. “O descobriu o segredo para chegar à melhor pizza. Cinemateca Portuguesa Night Film Room →19h00
sucesso foi a solução para me redimir”, desabafa. “Shit in, shit out”, garante o dono da Pizzeria
Bianco, em Phoenix, no Arizona. b THIS LIFE AND THE OTHER SINGING IN THE GIDAM, DRUMS OF PROTEST
by Luis Rojas WILDERNESS IN KHARTOUM
“NINGUÉM ME VAI DIZER QUE by Dongnan Chen by Arthur Larie & Bastien Massa
FOR REAL
NÃO POSSO PÔR KIMCHI NUMA PIZZA” by Ugo Mangin THIS IS NATIONAL WAKE
Ann Kim também sentiu o isolamento de by Mirissa Neff
levar a sua avante e encontrou na pizza o
CONSULTA TODO O PROGRAMA EM
grito contra preconceitos, os seus e os dos CHEF’S TABLE: PIZZA WOMEX.COM/PROGRAMME/SHOWCASES
Estados Unidos, onde cresceu no seio de uma De Andrew Fried, Brian McGinn e David Gelb
família de emigrantes sul-coreanos. “Havia Com Chris Bianco, Gabriele Bonci, Ann Kim, MAIN SPONSORS INSTITUTIONAL PARTNER
pouca representatividade do que uma mulher Franco Pepe, Yoshihiro Imai, Sarah Minnick
ásio-americana podia ser. São tantos os Netflix, em streaming
estereótipos... que as mulheres asiáticas devem (Temporada 1)
MEDIA PARTNER PRODUCER ORGANIZED BY
B
jörk tem persistido, desde
a década de 90, como uma
das vozes mais peculiares
e excitantes da pop. Facto
indiscutível. Depois de se libertar
da teia pós-punk dos Sugarcubes,
a banda que apresentou a sua voz
ao mundo, ouvimo-la estrear-se
em nome próprio com ‘Human
Behaviour’ e seguir à letra, desde
então, a mensagem dessa sua
primeira canção: “Se, por acaso, se
aproximarem de um ser humano
e do comportamento humano,
Coordenação Luís Guerra preparem-se para ficar confusos.”
lguerra@blitz.impresa.pt É emaranhada no caos da natureza
humana que tem criado as suas
grandes canções. Da guerrilha
de ‘Army of Me’ à sensibilidade
de ‘All Is Full of Love’, passando
pela dilaceração de ‘Hyperballad’,
quem a ouve dificilmente escapa à
humanidade que transpira da sua
arte. Três décadas volvidas, a eterna
curiosidade da artista islandesa
continua a permitir-lhe que se
destaque num cenário bem mais
competitivo do que aquele que
encontrou quando entrou em cena
— o maravilhoso universo da pop
está hoje, felizmente, bem servido
de excentricidade. Essa curiosidade
traz consigo não só uma forma
muito própria de explorar (e esticar)
os limites da sua arte como uma
necessidade contínua de encontrar
algo que a mantenha entusiasmada
na hora de criar música. “Fossora”,
o décimo álbum de um percurso
sem passos em falso, poderá não
ser o disco mais disruptivo ou ‘fora
de pé’ que já gravou, mas não deixa
por isso de estar enraizado na mais
pura das vontades de expandir os
seus horizontes e, pelo caminho, os
daqueles que a escutam — como o
compatriota, e baixista dos Sigur
Rós, Georg Hólm, nos admitiu
Björk pega no mundo, e nos recentemente: “Ela chegou e
ensinamentos da natureza, tornou-se um incrível furacão de
VIDAR LOGI

para lidar com as tragédias criatividade.”


que se abatem sobre si Cinco anos depois de, em “Utopia”,
se libertar das sombras de

Eterna curiosidade
Ao décimo álbum, Björk escava as profundezas da sua criatividade para encontrar
canções térreas, nascidas do luto mas enraizadas no ciclo renovador da vida
TEXTO MÁRIO RUI VIEIRA

E 64
“Vulnicura”, que assume ter sido se solta da sua Escandinávia,
o seu “álbum de luto” — enquanto e eternamente juvenil, voz. A
retrato do final da sua relação busca pela conexão de ‘Atopos’
com o artista norte-americano (“a esperança é um músculo que
Matthew Barney —, Björk apresenta nos permite criar ligações”), a
“Fossora” como materialização do inteligência romântica de ‘Ovule’
seu “período dos fungos”. “Um e a recusa da autocomplacência de
álbum assente nas raízes das árvores ‘Victimhood’ (ainda um resquício
seria bastante severo e austero, mas das dores do divórcio, “sacrifiquei-
os cogumelos são psicadélicos e me para nos salvar, rejeitei-me,
nascem em toda a parte”, explica sacrifiquei-me, senti pena de mim
a artista em entrevista ao site própria”) são três dos momentos
“Pitchfork”, depois de revelar que mais robustos do álbum, mas é
“Fossora” é uma palavra inventada quando a artista se confronta com
por si: “É o feminino de fossore, a morte da mãe, a ativista Hildur
que significa ‘escavador’, portanto, Rúna Hauksdóttir, desaparecida
resumindo, significa ‘aquela que no final de 2018, que “Fossora”
cava’ o solo.” Apesar de, como todos ganha uma gigantesca dimensão
os seus álbuns, estar assente num emocional. Em sequência,
conceito muito claro e específico, ‘Sorrowful Soil’ surge como louvor
pelo menos na sua cabeça, da sua figura materna (“deste o teu
“Fossora” parte, com liberdade melhor”) e ‘Ancestress” — com a
poética, da ideia da capacidade participação vocal do filho mais
transformadora e regeneradora dos velho, Sindri Eldon — apresenta-
fungos para seguir num ziguezague se como epitáfio, no qual Björk
de emoções, intensificado pelo recorda as canções de embalar
trabalho omnipresente de um “sinceras” que ouvia da voz da mãe
sexteto de clarinetes baixo e a forte quando era criança, agradecendo-
contribuição da dupla indonésia de lhe pela sua integridade. O ciclo
eletrónicas experimentais Gabber encerra quando, na canção final,
Modus Operandi (particularmente ‘Her Mother’s House’, a artista
sentida nas batidas intrigantes canta a sua própria condição de
de ‘Atopos’ ou ‘Fungal City’, que mãe, tentando lidar com a saída
conta, também, com a contribuição do “ninho” de Ísadóra, a filha
vocal de Serpentwithfeet). Na de 19 anos, em versos, escritos e
mente de Björk esta ligação poderá interpretados pelas duas: “Quanto
não fazer grande sentido, mas a mais te amo, mais forte tu ficas
dureza instrumental de “Fossora” e menos precisas de mim.” Tal
(o seu som é descrito pela própria como em todos os seus álbuns, o
como ‘tecno biológico’) e a sua caos de ideias encontra uma forma
humanidade levam-nos de volta a de fazer sentido em “Fossora”.
“Medúlla”, de 2004, que permanece Aquilo que continua em franco
até hoje um dos capítulos mais desenvolvimento é a cada vez mais
inabaláveis e, curiosamente, intensa intimidade da sua música:
dos mais impenetráveis da sua enquanto lá atrás a ouvíamos
discografia. O que isso significa, cantar de forma apaixonadamente
e falamos agora para quem se juvenil sobre as suas relações
deixou arrebatar pelas eletrónicas com os outros e com o mundo,
mais elaboradas de discos como agora Björk pega no mundo, e
“Homogenic” (1997), “Volta” nos ensinamentos da natureza,
(2007) ou mesmo “Vulnicura” para lidar com as tragédias que
(2017) — que deu início a uma se abatem sobre si. Essa evolução,
revitalizante colaboração com aguçada pelo engenho, é bonita de
Arca, continuada em “Utopia” testemunhar. b
—, é um certo esvaziamento do
binómio eletrónico-orquestral, em
detrimento de uma sonoridade mais
madura, que parece ter perdido a
sua aguçada sensualidade algures
pelo caminho.
Não há canções com a pungência
de ‘Bachelorette’ ou a enigmática
intimidade de ‘Cocoon’ em
“Fossora”, mas a maturidade de
Björk empurra-a por caminhos QQQQ
igualmente eficientes na hora de FOSSORA
nos convencer a continuarmos Björk
dedicados a cada palavra que One Little Independent
Maria João Pires no concerto
da passada quinta-feira (22),
no Auditório Gulbenkian

E ainda...
FESTIVAL GENTE SENTADA
Theatro Circo, Braga, hoje e amanhã,
a partir das 18h
O festival recebe o norte-ameri-
cano Helado Negro, a franco cana-
diana Ghostly Kisses e o português
Caio, hoje, e os irlandeses Villagers
(na foto) e Sean Riley & Legendary
Tigerman e Valter Lobo amanhã.

Voltar a respirar

RITA CARMO
‘F
iesta’ foi o nome escolhido entre os 13 e os 27 anos de idade. inicialmente previsto (K.365
para uma celebrada gravação Muitas centenas de jovens estudam de Mozart), referindo-se ainda
da Orquestra Juvenil Simón e também ensinam música a a uma queda que a pianista DIOGO PIÇARRA
Bolívar dirigida em 2008 pelo crianças e a adolescentes, numa sofreu recentemente depois do Altice Arena, Lisboa, amanhã, 21h
venezuelano Gustavo Dudamel. iniciativa de democratização das acidente na Letónia, em 2021. Adiado por mais de uma vez devido
Pois foi num ambiente de pletórico artes inspirada no celebrado El Com o seu passo miudinho e um à pandemia, o primeiro concerto de
festim musical que se viveu o Sistema. O projeto do venezuelano pouco vacilante, Maria João Pires Diogo Piçarra na Altice Arena serve
primeiro concerto da Temporada José António Abreu de música atravessou o palco para se sentar de apresentação ao álbum “South
Gulbenkian, ocasião em que a para todos quebrou as correntes em frente ao Steinway e, para Side Boy” (2019) e será a maior
assistência ficou galvanizada pela que mantêm na precariedade utilizar a classificação de Alfred produção de sempre do português.
atuação da pianista Maria João milhões de jovens e teve impacto Brendel, em vez de nos brindar
Pires (Lisboa, 1944) convocada mundial na criação de orquestras com a interpretação de uma obra
para interpretar o Concerto nº 3 juvenis em mais de 70 países. construída de forma caleidoscópica L’ELISIR D’AMORE NO TNSC
de Beethoven (op.37). O público Em Portugal, a repercussão por Mozart, ofereceu-nos a Teatro Nacional de São Carlos,
Lisboa, amanhã, segunda,
aplaudiu longamente a pianista não tardou com a criação da sua interpretação pessoal da
quinta e 8 de outubro, às 20h
e também os talentosíssimos Orquestra Geração e também arquitetura monumental de
(três primeiras datas) e 16h (dia 8)
instrumentistas da NEOJIBA, com o acolhimento apoteótico da Beethoven.
a orquestra juvenil que a orquestra juvenil venezuelana no Do compositor Jambaré Cerqueira Apresentada pela primeira vez
acompanhou com extraordinária Coliseu dos Recreios e no Auditório escutou-se Kamaramusik, neste teatro em 1834, a opera
consistência, brio e uma dose de Gulbenkian. título a jogar com as palavras buffa de Gaetano Donizettu, com
entusiasmo que os levou a ondular Em Lisboa, os músicos da Baía ‘câmara’ e ‘camará’ que significa libreto de Felice Romani, conhece
no palco como se fossem uma terminaram o espetáculo em folia, companheiro ou camarada na em 2022 encenação de Mário
seara ao vento. Quase parecia uma dançando em palco excertos dos cultura Capoeira. Professor de João Alvez e tem Rita Marques no
cena de luta e de insubmissão bis (Aquarela do Brasil e Tico Tico tuba e bombardino da NEOJIBA, papel de Adina.
quando se viram os seus jovens no Fubá), após interpretarem o Cerqueira é autor de diversos
punhos no ar como na ‘Terra hino composto pelo imperador arranjos orquestrais para Caetano
em Transe”, do cineasta baiano D. Pedro, a Abertura da ópera Veloso, Gilberto Gil, Daniela
Glauber Rocha! O Guarani de Carlos Gomes e a Mercury entre outros. Em Lisboa,
‘O baiano não nasce, estreia’ foi o quarta Bachiana Brasileira de Villa- o capoeirista e percussionista
ditado popular citado pelo maestro Lobos. A NEOJIBA já acompanhou Raysson Lima bailou e tocou em
e pianista Ricardo Castro (Vitória Argerich, Thibaudet, Vengerov palco essa brilhante peça de 13
da Conquista, 1964) ao apresentar e Lang Lang e, em 2022, tem minutos inspirada em canções e
a orquestra. O agrupamento acompanhado a digressão europeia ritmos afro-brasileiros.
juvenil baiano finalizou em Lisboa da pianista portuguesa. Saídos das experiências inéditas
a digressão por Itália, França, O maestro baiano anunciou ainda e paralisantes do ‘novo-normal’
Dinamarca, Holanda e Bélgica, na que se escutaria o concerto de criadas pela pandemia, o público
altura das comemorações dos 200 Beethoven em vez do concerto respirou de alívio com o regresso DAVID FONSECA
anos do início da independência ao ‘antigo-normal’ da Temporada Teatro Tivoli, Lisboa, terça, 21h30
do Brasil, proclamada em 7 de Gulbenkian com direito a O músico português apresenta ao
setembro de 1822 no Rio de Janeiro. programa de sala impresso em vivo o disco-filme “Living Room
O acrónimo corresponde a Núcleos papel, ao bar em funcionamento e Bohemian Apocalipse”, lançado
Estaduais de Orquestras Juvenis MARIA JOÃO PIRES à circulação à vontade no recinto este ano. Fazendo jus à natureza do
e Infantis da Bahia e, sob a sigla Orquestra NEOJIBA, Ricardo Castro (d) sem as peias do distanciamento projeto, o espetáculo terá uma forte
NEOJIBA, reúnem-se músicos Auditório Gulbenkian, Lisboa, dia 22 social. / ANA ROCHA componente visual. Dia 12 no Porto.

E 66
noite
de reis
Texto
William
Shakespeare

Encenação
Peter
Kleinert

criação

7 a 30 de Outubro
Qui. a sáb. às 21h • Qua. e dom. às 16h
Sala Principal • M/12

Av. Prof. Egas Moniz, Almada


21 2739360 • www.ctalmada.pt
Coordenação Cristina Margato
cmargato@expresso.impresa.pt

Este é um espetáculo
cheio de escuridão, na luz
cénica, mas principalmente
na atmosfera e na atitude

Quando tudo arde


“T
utto Brucia”. Em português: também atingiu Portugal; e também peça que traz consigo um manifesto
“As Troianas” Tudo arde. O fumo sobe ao em “Alexis”, em que passaram transfeminista, anunciado no final
e o tráfico sexual céu nas asas do vento. O pó uma temporada de pesquisa em por Hécuba (Silvia Calderoni),
e as cinzas mergulham o mundo Atenas, a acompanhar os tumultos onde se abre a possibilidade de um
de mulheres na escuridão. A história repete-se, iniciados a 6 de dezembro de 2008, novo mundo, fundado e erguido
uma e outra vez. As mulheres de “As quando Aleandros Grigoropoulos, por mulheres fortes, com voz e
no regresso Troianas”, de Eurípides, ressoam na um estudante grego de 15 anos, foi muito para dizer. É também uma
da companhia tragédia das mulheres que atravessam
o Mediterrâneo, vindas de África, para
morto por uma força da autoridade,
o que desencadeou uma escalada de
ode à transformação, de reconexão
à natureza, de vínculo a essas
italiana Motus serem exploradas numa nova vaga de protestos, revolta e violência. Em pano matérias vitais que fazem parte da
escravidão sexual. As duas narrativas de fundo o sentimento daqueles que paisagem do planeta que estamos
TEXTO CLAUDIA GALHÓS coexistem em “Tutto Brucia”, o não se reveem nas políticas públicas, a destruir. Este é outro dos temas
espetáculo que traz de volta ao Teatro nomeadamente os mais jovens no fundamentais para a companhia
Nacional de São João a companhia caso da Grécia de então. A cada nova Motus, o movimento transfeminista.
italiana Motus, depois de em 2020 ter criação de Motus, há questões que Por isso, para esta escrita, juntam-se
ali apresentado “MDLSX”, a partir de permanecem e que perseguem por outros textos fundamentais como
Jeffrey Eugenides. via do recurso teatral como ativismo fontes de inspiração: “Vida Precária”,
Daniela Nicolò e Enrico Casagrande político e poético. A tragédia dos de Judith Butler, ou “Há Mundo por
fundaram a companhia Motus migrantes é um desses temas. Vir?”, de Eduardo Viveiros de Castro
em 1991. O teatro contemporâneo “O Mar Mediterrâneo é aquele (escrito com Deborah Danowski).
que criam, com muito espaço para onde historicamente ocorrem mais Também por ali passaram Jean-Paul
formatos mais performativos ou tragédias”, diz Daniela ao Expresso. Sartre, Donna Haraway ou a escritora
instalativos e obras de performance Ainda hoje. Foi a realidade que zimbabuena NoViolet Bulawayo.
mais subterrâneas, cruza-se por impôs “As Troianas”. “As mulheres Porque este é um espetáculo da
vezes com textos clássicos. Em 2008 troianas estão à espera para serem companhia Motus, há música, há
trabalharam sobre “Antígona” e em transportadas, sem saberem nada rasgo nas estratégias de interpretação,
2010 criaram “Alexis. Uma Tragédia sobre o futuro. A terra que deixam há uma forte presença do corpo e
Grega”. Em cada nova criação, para trás está em chamas, destruída trabalho visual, e há música ao vivo,
como nestas duas, a realidade das pela guerra. Infelizmente podemos com R.Y.F. (Francesca Morello).
feridas abertas no tempo em que encontrar na nossa atualidade a E é nas letras das canções que
TUTTO BRUCIA vivemos entranham-se na escrita mesma tragédia”. O resultado é encontramos mais palavras de “As
De Motus dramatúrgica. Isso é evidente em um espetáculo cheio de escuridão, Troianas”, de Eurípides, expressando
Teatro Nacional de São João, “Antígona”, em que investigaram na luz cénica, mas principalmente em poesia o permanente drama da
Porto, 6 e 7 de outubro a crise económica grega, que na atmosfera e na atitude. É uma condição humana. b

E 68
Deixar
E ainda...

o Mundo Melhor
BLASONS + DOESDICON
De François Chaignaud
Podcast
Por Francisco Pinto Balsemão
+ Tânia Carvalho / Dançando
com a Diferença
Teatro Rivoli , Porto, amanhã e domingo

Duas peças compõem este progra-


ma da Dançando com a Diferen-
ça: uma nova criação, do francês
François Chaignaud, “Blasons”, e
A MINHA MORTE a coreografia magnífica de Tânia
De Mickaël de Oliveira Carvalho, “Doesdicon”.
Teatro Académico Gil Vicente,
Coimbra, amanhã

Estamos no final do século XXI. O sol


queima até matar. Não há recursos. Há
falta de afeto. As pessoas não comem,
não têm água e também já não se
amam. Há uma jovem sem nome (inter-
pretada pela atriz Siobhan Fernandes)
que saiu da cidade, viu o que se passa A CASA DE
lá fora, e voltou. É ela quem fala para a
BERNARDA ALBA
De Frederico García Lorca
comunidade a recomendar que não é
seguro sair. E se, e quando, decidirem
Teatro da Comuna, Lisboa, Podcasts já disponíveis
até 23 de outubro
partir, têm de ir todos. Para criar um
movimento político e propor um êxodo, Peça fundamental do teatro espa-
que no final ela propõe, as pessoas vão nhol do século XX e a última escrita J.M. Durão Barroso J. Germano de Sousa Leonor Beleza
ter de voltar a cuidar umas das outras. por Garcia Lorca, assassinado em
É por aqui que se desenrola “A Minha 1936, durante a Guerra Civil Espa- Manuel Alegre Mariza António Damásio
Morte”, o primeiro capítulo do díptico nhola. O espetáculo é encenado
teatral “Episódios da Vida Selvagem”, por Hugo Franco e Bernarda Alba é J.B. Mota Amaral Isabel Mota Isabel Jonet
da autoria do dramaturgo e encenador João Mota, o fundador do Teatro da
Mickaël de Oliveira para o seu Colec- Comuna, que celebra 80 anos em
Joana Carneiro António Vitorino Rui Chafes
tivo84. No regresso à cidade, a jovem outubro.
traz imagens e sons. Paisagem e música.
Com estes, desencadeia um dispositivo Tiago Pitta e Cunha Luís Tinoco Emílio Rui Vilar
teatral que alia a narrativa da atriz com o
canto, acompanhada pelo coro Tune Up José Tolentino de Mendonça Maria Manuel Mota Clara Ferreira Alves
Voices, inspirado nos coros de gospel,
mas aqui desconstruído pela dupla de Joana Vasconcelos Luís Marques Mendes António Horta Osório
músicos Rui Lima e Sérgio Martins, que
manipulam a música ao vivo. O coro
Miguel Albuquerque Simone de Oliveira Patrícia Mamona
traz a esperança. A fala da jovem sábia
tem um temperamento menos lumi-
noso, informado por uma perspetiva MANOBRAS — FESTIVAL Marcelo Rebelo de Sousa Arlindo Oliveira José Maria Neves
histórica: ela fala de antes, o tempo da
INTERNACIONAL
DE MARIONETAS
vida em si, uma idade pré-histórica em E FORMAS ANIMADAS Carlos Monjardino Manuel Aires Mateus Ana Pinho
que o homem não teve impacto sobre
Artemrede, vários locais,
o planeta; depois a primeira vida, a vida até 30 de outubro Nuno Maulide Vasco de Mello Carlos Pimenta
do antropoceno, a que vivemos e em
que estará a humanidade no final do Na quinta edição, este festival da
Artur Santos Silva Paula Amorim Daniel Oliveira
século – “é a vida lamentável deles”, Artemrede apresenta 23 espetácu-
diz Mickaël de Oliveira ao Expresso, los em 15 municípios, passando por
“uma vida muito longa”. A seguir virá a Abrantes, Santarém ou Tomar. Uma
terceira vida, como uma utopia, em que das propostas é “Bom Anfitrião”, de Dísponível em expresso.pt/podcasts/
todos terão de sair da cidade juntos e Filipa Francisco, sobre o tema das
erguer uma nova civilização. O primeiro alterações climáticas, que se estreia e em todas as plataformas de podcasts
ato político, urgente, é evidente: vão ter este domingo, no Cineteatro Curvo
de se amar. / C.G. Semedo (Montemor-o-Novo).

Com o apoio:
viagens do artista — Agrigento,
Palermo, Siracusa, Nápoles, Buenos
Aires, S. Domingos, Arles e Cefalù
segundo a numeração da mostra
—, a unidade delas é patente, mas
é poética, filha do olhar de Paulo
Nozolino, feita de sombras sobre
sombras como num jogo de véus
e de transparências, do construir
de cada imagem no contraponto
com o desfazer de edifícios, corpos,
paredes, santos, em vulto ou
pintados, lutando contra o tempo
que os desfaz e, contraponto maior,
o branco indecente de um magnífico
e@expresso.impresa.pt bode em Agrigento, furando todas as
penumbras, luciferino e brilhante.
O caminho faz-se imagem a
imagem, ou melhor, díptico a
díptico, sem esquecer as figuras que
se enfrentam dos dois lados da sala,
assim, o bode está acompanhado
por um túmulo mas faz frente ao
negrume de uma águia encimando
um atril, numa quase certa
referência ao apóstolo São João.
Depois dos contrastes é bom ir
mergulhando, imagem a imagem,
até àquela que se ergue centro e
ao fundo, como um menir, um
Uma águia encimando um monólito natural sobre o mar de
atril, uma das nove Cefalù (Sicília), pedra erguida pelo
fotografias de Nozolino tempo, pelo mar e pelo vento “em
louvor de...”
É traiçoeiro falar de imagens
a propósito desta exposição
tão certa com o tempo, com a
máquina do tempo, e tão fora
da contemporaneidade feita no
instantâneo, na imagem sem tempo
nem peso e na sua multiplicação
infernal; estas fotografias são o
contrário disso tudo, vivem com
o tempo, veem-no e pesam-no, e
são lentas como ele é trabalhando o
rochedo de Cefalù, estas fotografias
são parentes próximas da gravura,
não porque dela derivam, o que é

O trabalho do tempo
certo, mas porque nascem e crescem
numa luta amorosa e densa com a
matéria de sombra que as constitui,
num exercício mediato de ver, ver
mais, ver melhor, ver a matéria das

O
racle é uma exposição de partir de uma penumbra original, coisas a partir de dentro, tanto na
Como se pode nove fotografias verticais como janelas cinzentas numa nave sua força como na sua fragilidade.
ver o tempo numa (120 x 80 cm.) de Paulo branca, tendo uma peça central Nesta exposição o trabalho do
Nozolino (n. 1955) que nos fala ao fundo e quatro de cada lado, fotógrafo e o trabalho do tempo
fotografia? Parado continuamente do tempo, no que articuladas em dois dípticos; assim, estão tão próximos que não se
mora no interior de cada imagem, muito embora a numeração delas distinguem. b
o tempo deixa bem como daquele que está no respeite um percurso tradicional
de ser tempo e a inevitável trânsito entre elas, e,
ainda, da travessia do espaço
com leitura da esquerda para a
direita, a visita faz-se como numa
fotografia parece simbólico que a montagem gera no igreja viajando pela nave até ao altar
espaço branco da galeria. Vamos ver mor entre quatro capelas laterais QQQQQ
ser uma imagem passando do geral ao particular: cada uma com o seu díptico. ORACLE
fixa, mas não é! Entrei encandeado, pois estava A geografia mental (e física) De Paulo Nozolino
um sol intenso na rua, daí que as desta visita nada tem a ver com Galeria Quadrado Azul, Lisboa,
TEXTO JOSÉ LUÍS PORFÍRIO imagens surgissem todas elas a a geografia que se depreende das até 10 de dezembro

E 70
E ainda...

ANJOS E LOBOS
— DIÁLOGOS DA
QQQQ HUMANIDADE
NOITE Graça Morais
Galeria São Roque, Lisboa,
André Romão
até 28 de janeiro de 2023
Galeria Vera cortês, Lisboa,
até 28 de outubro São 72 as obras da pintora portu-
guesa — na sua maioria inéditas
A produção de André Romão (Lisboa, — que compõem esta mostra, onde
1984) favorece com frequência a se percorrem várias fases do seu
combinação de premissas de origem percurso artístico. Ainda assim, o
arqueológica e um conjunto de práti- foco está nos últimos quatro anos
cas artísticas que recodificam objetos de produção.
encontrados. Por arqueologia pode-
mos aqui entender o resgate de obje-
tos do passado já ausentes do circuito
de sentidos e presenças da contem-
poraneidade e que deste modo vêm
interpelá-la. No caso de “Noite”, o ato
de iluminar tem um duplo e comple-
mentar sentido: um, literal, porque
por um lado ele atua sobre os obje-
tos convocados, intervencionando
vários deles com lâmpadas e outras
marcações que se vão encaixar em
esculturas erodidas do século XVIII
provenientes de Espanha e da Alema- MEMÓRIAS DE UM FUTURO
nha. Por outro, porque essa ideia de
PASSADO: AS CORES
SÃO O QUE FORAM
(mútua) iluminação pode transferir-se
Luís Jesus
igualmente para a relação contamina-
Espaço Espelho D’Água,
dora que as peças estabelecem com Lisboa, até 13 de outubro
os pequenos poemas escritos nos
últimos anos pelo artista, tão noturnos O interesse de Luís Jesus pelo
como as intervenções objetuais. No desenho de locais emblemáticos
texto que acompanha a exposição, ganha força numa mostra onde
Romão sugere um estado insone que o pintor conjuga diversas técnicas
lhe permite mover-se por entre os e materiais.
objetos e associá-los num processo
de enxertia (onírica?) que resulta em
obras híbridas como a escultura de
madeira morta que entronca numa
ramada de árvore viva; na pontuação
lumínica de vários fragmentos do
corpo ou na associação de um molde
de cabeça (um autorretrato simpli-
ficado?) a uma tapeçaria do século
XVII. Há um princípio de afetação e
reconfiguração poética a partir desse CONFISSÕES
processo no qual ele assume o papel
DE UMA BATIZADA
Carla Filipe
de conciliador de tempos, contextos
Arquipélago — Centro de Artes
e estados da forma e da matéria. Pen-
Contemporâneas, Ribeira Grande,
duradas do teto, assentes em estrutu- São Miguel, Açores,
ras transparentes ou quase ocultas em até 26 de fevereiro de 2023
cantos, essas obras apresentam-se no
espaço com uma teatralidade crepus- O desenho, a bandeira, a impres-
cular o que adensa a estranheza dos são e a poesia são utilizadas por
seus corpos atravessados por mundos Carla Filipe numa verdadeira cele-
diferentes, mas agora investidos de bração das mulheres. O patriarca-
uma nova existência. / CELSO MARTINS do é alvo de uma mordaz crítica
FRACO CONSOLO

A morte de Freud num


jornal americano,
em 1939

A IGNORÂNCIA
DA MORTE

T
POR CAUSA DOS NOSSOS MORTOS, VIVEMOS COM A CERTEZA ACRESCIDA DA MORTALIDADE,
MAS GANHÁMOS A CAPACIDADE DE NOS ESQUECERMOS DELA INCONCEBÍVEIS DIAS INTEIROS

udo o que há a dizer sobre a morte, ou culpabilidade, a nossa frustração, seja a nível individual ou colectivo
antes, sobre a morte enquanto facto, é que (um ensaio gémeo deste, “A Desilusão Causada pela Guerra”, alarga a
é “natural, inegável e inevitável”. Lembrar discussão da mortalidade à mortandade, sem que nos esqueçamos de que
isto será óbvio, escusado? Segundo Freud, Freud tinha dois filhos na frente de combate). Mas a ideia de “preparação
bem pelo contrário. Numa conferência de para a morte” não se esgota em aceitarmos o “natural, inegável e
1915, o bom doutor escreveu mesmo que inevitável”, nem em mergulharmos no domínio do inconsciente; existem
ninguém acredita na sua própria morte e subterfúgios que nos ajudam na nossa ignorância da morte, ainda que
que ninguém aceita a morte dos outros. saibamos que a morte existe, como seja entregarmo-nos à ficção, à
A primeira é longínqua, inimaginável, e a literatura, às diferentes possibilidades de termos “uma pluralidade de
segunda, quando acontece, faz com que vidas” e de as experimentarmos, conscientes de que são inventadas.
rejeitemos, no imediato, qualquer hipotética De certa forma, fazemos com a morte em abstracto aquilo que fazemos
“substituição” daqueles que perdemos, com as mortes em concreto. Já perdemos pessoas cuja ausência
sobretudo pais, filhos, irmãos, cônjuges ou amigos próximos. Portamo- antevíamos como insustentável, mas feliz ou tristemente habituámo-
nos como se não houvesse morte, silenciando-a enquanto não acontece, nos, como nos habituamos a tudo. Por causa dos nossos mortos, vivemos
ou tratando-a como inacreditável, inaudita, quando se manifesta. E com a certeza acrescida da mortalidade, mas ganhámos a capacidade
tudo se agrava quando já não é uma morte, mas mortes consecutivas: de nos esquecermos dela inconcebíveis dias inteiros. Não estamos, nem
“Uma acumulação de mortes aparece-nos como uma coisa sumamente estaremos, preparados para a morte, mas talvez cheguemos a suportar a
assustadora.” vida. b
Nos últimos anos, tenho vivido “uma acumulação de mortes”. A geração pedromexia@gmail.com
anterior (família, amigos dos meus pais, velhos conhecidos) começou a Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia.
desaparecer, aos poucos e depois em bloco, às vezes num curto espaço
de tempo e numa sucessão angustiante. E a isso somam-se as figuras
históricas com quem todos crescemos e que definem a nossa época. E
os artistas que admirávamos ou nos entusiasmavam (como Godard,
nonagenário, sobre quem escrevi na semana passada, ou, precocemente,
Javier Marías, sobre quem escreverei na próxima semana). Isto tudo
somado causa grande perturbação. Porque estes mortos, sobretudo os
nossos mortos, levam-nos com eles: “Enterramos com eles as nossas
esperanças, as nossas exigências, os nossos prazeres, não deixamos que
nos consolem” (noção desenvolvida em “Luto e Melancolia”, concluído
em 1915, publicado em 1917).
A morte equivaleria assim a uma vida empobrecida para os vivos.
Mas “A Nossa Relação com a Morte” não se fica por esta conclusão
sombria, sugerindo igualmente que com a morte dos outros somos
/ PEDRO
enfim obrigados a acreditar na morte e a “suportar a vida”, enquanto MEXIA
nos “preparamos para a morte”, essa antiga exortação filosófica. Sendo
um texto psicanalítico, a conferência não deixa de interrogar, de modo
desconfortável, os nossos desejos reprimidos, a nossa agressividade e

E 72
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Aprender
a fazer
O interesse por novas
experiências tem crescido
FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES

nos últimos meses e a


oferta de workshops
está a acompanhar a
tendência. É tempo de
pôr as mãos na massa
TEXTO CATARINA BRITES SOARES

E 73
F
azer pastéis de nata e francesinhas, fotografar, a necessidade de fazer atividades fora de casa e de de Marketing e Comunicação. “Este novo cenário vai
liderar, cozinhar, melhorar a inteligência emo- estar com pessoas.” permitir-nos ter, na mesma sessão de formação, par-
cional, escrever, cultivar, comunicar… a lista do O Lisbon Street Art Tours, que organiza rotas pela ticipantes presencial e virtualmente.”
que se pode aprender e em pouco tempo é intermi- cidade e ensina a fazer graffiti entre outras artes urba- A pandemia tornou o último predominante, mas
nável. Os workshops — como ficaram conhecidos em nas também, notou um pico na procura no rescaldo a CEGOC não se ressentiu segundo Catarina Correia.
Portugal e assim designados em inglês dada a com- da pandemia. “O contexto de turismo atual fez-nos “Quando começou o confinamento, foi possível apre-
ponente prática — revolucionaram a aprendizagem. adaptar a abordagem sem prejuízo do que somos, um sentar de imediato programas totalmente remotos,
A pandemia ajudou e o fim dela mudou tendências. projeto sociocultural que assenta na investigação aca- embora a maioria dos nossos clientes, e a sociedade
O The Therapist, que dá workshops desde 2018, démica”, realça a cofundadora Véro Van Grieken. “Os em geral, não estivesse preparada para os implemen-
aproveitou para concretizar um plano antigo e cres- tempos de pandemia assim como o recomeço mar- tar. Após dois meses, aprenderam e ficaram prontos,
ceu. “Durante a pandemia, testamos o formato on- cado pela procura crescente foram definitivamente aliás ávido, para aderir a programas de formação to-
line que foi muito bem aceite. Tivemos alunos e um repto.” talmente digitais e à distância”, frisa.
clientes que vivem noutros países e que puderam A CEGOC — que opera há quase 60 anos no sec-
participar. Enquanto os cursos foram presenciais, tor da formação, consultoria e coaching — dá conta MELHOR AO VIVO E A CORES
nunca o fizeram”, realça a assessora de comunica- da transformação pós-pandémica. “Há uma tendên- Rute Silva, consultora e académica de desenvolvi-
ção, Ana Krausz. “Depois, com a abertura do espa- cia transversal para a popularização do modelo de mento pessoal, não sentiu o mesmo. “Tudo o que
ço Therapist by Una, ainda em pandemia, tínhamos aprendizagem híbrido — uma nova vaga de experi- era formação em Portugal parou em 2020. As em-
os cuidados recomendados e turmas menores. As ências formativas cada vez mais flexíveis, persona- presas estavam focadas em reorganizar-se. A priori-
pessoas aderiram muito desde o início. Notava-se lizadas, autodirigidas e imersivas”, refere a diretora dade era sobreviver”, lembra. “Em 2021, ressurgiu a

E 74
os alunos estavam online; em 2021, continuou na
universidade e já havia orientações para ser pre-
O QUE AÍ VEM
sencial mas com máscaras. “O que limita muito a É caso para ceder ao cliché e dizer que há para todos os
interação, fundamental na minha área”, sublinha. gostos. Basta escrever workshop e multiplicam-se as
Este ano, sente uma diferença abismal. “Voltaram páginas na internet. Para quem sabe exatamente o que
as caras.” quer, é melhor cingir a procura ao campo específico.
Caso contrário, é fácil que se passem minutos,
Na Escola de Gestão de Informação e de Ciência
demasiados. É um mundo. Ficou ainda mais fácil — ou
de Dados leciona ao terceiro ano das licenciaturas de
difícil — no que toca a decidir com a pandemia. Agora
cursos de sistemas de informação. “Nas minhas ca- que quase tudo é possível online, imagine-se. Em
deiras trabalha-se a inteligência emocional, compe- Portugal, sites como a Eventbrite e a Fever fazem um
tências de autogestão, de autoconhecimento e relação apanhado do que há. Pecam pela oferta centrada na
com os outros. Estamos a falar de estudantes que ti- zona de Lisboa, apesar da diversidade. No próximo mês,
picamente estão muito focados na parte tecnológica.” há cursos de desenho, dança na natureza e de escrita
criativa especificamente direcionado para mulheres e
NÃO É PRECISO SER CHEFE não-binários, entre outros. As universidades oferecem
PARA SABER COZINHAR igualmente cursos de curta duração com uma
Para as empresas concebe cursos à medida procura- componente mais prática, e logo há as associações
dos sobretudo quando há mudanças. “A formação é e negócios que se especializaram neste tipo de
desenhada privilegiando competências que vão fa- aprendizagem. A Oficina Criativa FICA é um dos
casos, com cursos regulares de cerâmica, marcenaria,
cilitar o sucesso dessa transformação. Fala-se mui-
serigrafia, croché, entre outros. Já a Workshops Pop
to em ser mais ágil e isso implica mudar processos”,
Up focou-se numa das áreas mais procuradas. Aqui
contextualiza. aprende-se a cozinhar de tudo e mais alguma coisa, da
Liderança, comunicação, gestão de equipas e in- longínqua Ásia ao bem próximo pastel de nata.
teligência emocional — uma das que cruzam com a
universidade — são as áreas predominantes no con- FICA — OFICINA CRIATIVA
texto empresarial, onde também se verificou um au- Rua de Arroios, 154 -B, 1150-056 Lisboa
mento crescente do interesse por outro tipo de forma- Tel: 919 194 823
ção nas últimas duas décadas. “Os workshops têm esta
WORKSHOP POP-UP
característica da componente prática e as empresas info@workshops-popup.com
começaram a ouvir mais as pessoas.” Tel: 966 974 119
Ou seja, perceberam o que faz sentido em ter-
mos de aprendizagem e que há competências além THE THERAPIST
das técnicas que têm impacto no dia a dia. “Se tenho Lx Factory
Rua Rodrigues de Faria, 103, Edif. H06, 1300-501
uma equipa com problemas de comunicação, certa-
Lisboa, lxfactory@thetherapist.p
mente não trabalha como outra que esteja oleada. Há
Tel: 913 648 993
20 anos, o foco era na componente técnica e o resto
logo se via.” Alvalade
Hoje, já não é assim. Catarina Correia diz que a Rua José D’Esaguy, 11C, 1700-266 Lisboa,
digitalização, a agilidade, a importância da experi- alvalade@thetherapist.pt
Tel: 213 620 268
ência do funcionário, a gestão do compromisso e as-
petos ligados à diversidade e inclusão serão as ten- LISBON STREET ART TOURS
dências. “O futuro passa necessariamente por estes info@lisbonstreetarttours.com
temas, precisamente por estarem na base de uma Tel: 936 825 383
cultura de trabalho diferente, que aposta na flexi-
bilidade, no bem-estar, na simplificação e no foco
em resultados, colocando as pessoas no centro das
WORKSHOPS
organizações.” WORKSHOP DE ESCRITA QUEERLYSH
A responsável da CEGOC fala de momento de dis- HONEST GREENS
rupção. “Ainda assim, a questão do investimento na Rua Maria Ulrich, 1, #loja 11/12, 1070-169 Lisboa
formação é mais complexa e estrutural. O facto de WORKSHOP DE DANÇA
necessidade de criar espaços de bem-estar. Retomei a maioria dos cursos não ter uma correlação direta IMERSIVA NA NATUREZA
os workshops online, mas encontrei toda a gente muito com indicadores de negócio faz com que a visão da IN TERRAIN
farta do ecrã. A dada altura suspendi os cursos e limi- formação se mantenha como ‘desejável’ e não ‘ne- Rua Moinho do Gato, 2710-650 Sintra
tei o meu trabalho a sessões de coaching, mas muito cessária’”, lamenta. WORKSHOP DE AZULEJOS
curtas. Notava-se o cansaço com o computador. Era A extensa oferta e diversidade comprova no en- ART OF AZULEJO
evidente a dificuldade em estar numa sessão sem ce- tanto que os workshops não são uma moda, pelo me- Todas as quartas-feiras e sábados, 10h30 às 14h
der ao multitasking”, aponta. nos passageira. Os cursos de culinária de alimentação
CAMINHADA FOTOGRÁFICA NOTURNA
Voltou ao formato original no fim do ano passado saudável e funcional no The Therapist são cada vez
Todos os dias, às 17h, Praça dos Restauradores
e deparou-se com um mundo novo, diz. “De repente, mais concorridos. De um pedido por mês passaram
aprecia-se de novo a presença. Antes da pandemia, para 20 de eventos de team building. “Temos muita
quase todos os participantes levavam o telemóvel. procura. Desde pessoas leigas na cozinha, a quem
Agora, ou não levam ou se o fazem não ficam com o trabalha na área ou em saúde. Também trabalhamos
aparelho. A qualidade da presença é uma das grandes com cada vez mais empresas”, refere Ana Krausz.
mudanças. Ainda assim, senti que os workshops têm A heterogeneidade e o crescimento do público,
de ser curtos. Estamos todos com menos tolerância realça Véro Van Grieken, também se sente no Lis-
para atividades longas”, ressalva. bon Street Art Tours desde que arrancou há dez anos.
Na Universidade Nova, onde é professora de De- “Procuram-nos para team buildings, escolas, empre-
senvolvimento Pessoal, o pós-pandemia a sério só sas, famílias e festas. O nosso público deixou de ser só
começou agora. Em 2020, estava na faculdade mas o turista alternativo que vem a Lisboa.”b

E 75
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Terramay
Junto à margem portuguesa do
Alqueva, com vista para as colinas
ondulantes do Alentejo e da Estre-
madura espanhola, encontramos
Terramay, uma herdade com 562
hectares localizada na freguesia
do Rosário, concelho do Alandroal.
Foi fundada em 2018 por Thomas
Sterchi e a família De Brito, que
compartilham um sonho: ter um lugar
único para receber amigos e viajan-
tes que partilham a mesma visão.
Uma quinta autossustentável com
um retiro regenerativo para criar uma
experiência extraordinariamente
hospitaleira, voltando a conectar
as pessoas à Natureza e a tradições
perdidas há muito tempo. Com uma
família cada vez maior, este projeto
tem por missão criar um ecossistema
equilibrado que produza alimentos
saudáveis, tratando o meio ambiente
e os animais com o respeito e o amor
que merecem. Os animais residen-
tes são bovinos de raça Merto-
lenga, porcos Pata Negra, cabras,
ovelhas, galinhas, patos e cavalos.
As áreas rurais incluem montado,
hortas biológicas, pastagens e terras
aráveis. Os alimentos Terramay, com
certificação biológica, são produzi-
dos de forma 100% natural, na terra
e ao ar livre. Além disso, são sazonais,
saudáveis, seguros e entregues sem
intermediários, a um preço acessível.
E possível encomendar diretamen-
te no site cabazes, com entregas
TIAGO MIRANDA

semanais, e comprar hortícolas, mel,


ovos de galinhas livres, alimentadas
exclusivamente com ervas e grãos
naturais, porco preto de bolota, vite-
lão, borrego e cabrito de pasto.

Gemada e frutos silvestres


Tempo de preparação 10 minutos | Tempo de confeção 20 minutos PROJECTO MATÉRIA
É um projeto sem fins lucrativos,
desenvolvido pelo chefe João
INGREDIENTES Numa tigela, bater o açúcar e as gemas e controlando a temperatura até Rodrigues, que pretende promover
os produtores nacionais com boas
6 gemas de ovo / 50 g de vinho da Madeira até o açúcar se dissolver. Adicionar o se obter um creme sedoso, fofo,
práticas agrícolas e produção animal
Bual 5 anos / 80 g de açúcar / Raspa vinho e bater bem até que fique fofo. delicado e areado. Retirar e nesta em respeito pela natureza e meio
de 1 limão / Frutos silvestres Colocar sobre um tacho com água a altura adicionar a raspa de limão. ambiente, enquanto elementos
ferver e cozinhar mexendo bem em Servir de imediato com frutos fundamentais da cultura portuguesa.
banho-maria, sempre com cuidado silvestres em cima. b Ler mais em projectomateria.pt

E 76
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Setenta e… Oitto! (€18,50), com a batata num puré mui-


to saboroso e os pimentos numa espécie
de emulsão. A “Açorda de peixe e cara-
ACEPIPE
Um restaurante de boa cozinha, descontraído, bineiro do Algarve” (€25) feita com pão
escuro de massa-mãe, que me parece
Sttau,
sem guião, ou à procura de sentido? Nem 8 nem 80 desadequado para a função (já consta- escritor
tei mais do que uma vez), ficou empa-
pada e conferiu sabor (do pão escuro)
e crítico
em vez de absorver os sabores do cal- O gastrónomo! É este lado
do, que por ser bem feito, com inten- menos conhecido de um dos
maiores e originais escritores
sidade piscícola, conseguiu sobressair.
portugueses que se pode
Boas tranches de corvina e um molho agora descobrir no novo livro
montado dos sucos do carabineiro, de de Ana Marques Pereira.
calibre médio e com o corpo firme. Sa- A autora é também ela sui
borosa e delicada a “Bochecha de por- generis, com uma bibliogra-
co estufada, tamarindo e puré de bata- fia na linha do detalhe, fora
ta” (€17,50) com a carne a desfiar-se e do óbvio. Com livros como
a envolver-se no aromático e adocicado “A Manteiga em Portugal”,
“Ginjinha Portuguesa”, o
molho de tamarindo, um puré sedoso e
belíssimo “Vestir a Mesa”,
agriões frescos ao redor a criarem bom ou o recente “Cadernos de
contraste. Enjoativo o “Arroz de pato à Dominguizo”, surge agora
chefe Carlos” (€18,50) com muito pato “Luís de Sttau Monteiro,
desfiado, num tachinho, ‘inho’, com o Gastrónomo”. Mais uma
JOSÉ FERNANDES

bago curto a absorver bem um caldo de- corajosa edição da autora


masiado avinhado com vinho do Porto. – que mostra como vai mal
O fim de boca era de um prato doce, in- o nosso mercado editori-
al – ricamente ilustrado e
fantilizando o palato, quando a carne do
paginado por Jorge Silva.
pato já é adocicada. De novo, o elevado Luís Infante de La Cerda de

O
campeonato dos bons restau- veio discretamente à sala pedir conten- nível da carne no “Entrecôte matura- Sttau Monteiro, autor do
rantes, entre os vários que fo- ção sonora, e ainda não eram 21h... Não do, coração de alface grelhado, batata êxito teatral “Felizmente Há
ram abrindo na zona do Chi- sei se houve aproveitamento de deco- frita” (€19,80) com o naco a vir cortado Lua”r e da novela “Chuva na
ado, ganhou um novo concorrente no rações existentes, mas a perceção é que em tranches rosadas e sumarentas, não Areia”, foi Manuel Pedro-
início do verão. O Oitto instalou-se no os lavabos estão desfasados e têm mais sangrantes, a alface estaladiça de notas so(a), crítico gastronómico
do “Diário de Lisboa”, e mais
largo do Picadeiro, num espaço am- conforto e glamour do que o resto. fumadas e a batata em chips.
uma dúzia de pseudónimos
plo que já teve demasiados conceitos Na mesa, as ambiguidades continu- Vinhos dentro da especulação ele- que a autora identificou nos
em poucos anos e que estava fecha- aram... O “Berbigão, coentros e lima” vada, poucos a copo, e o serviço sem diversos cadernos do seu
do há algum tempo, passando ao lado (€13,50) era uma minicataplana com briefing, entre o tímido, o discreto, e espólio que são a base desta
do apetite voraz de alguns grupos de uma porção generosa de bivalves de acelerado teatral. Nos doces, a “Enchar- completa biografia. Sttau
restauração. Talvez se perceba porquê calibre pequeno, alguns mirrados, ou- cada com sorbet de tangerina” (€5,50) Monteiro foi o terceiro cro-
quando as zonas de fruição do espaço tros suculentos, mas com pouco sabor desvirtuada para agradar a estrangei- nista gastronómico do país,
se desdobram em três níveis e nenhum no molho exsudado e a ser uma prepa- ros. Para descaracterizar até ao irreco- depois de Alfredo Morais
e Daniel Constant, tendo a
está ao nível da rua. As grandes janelas ração sem grande história. A “Empada” nhecível mais vale não fazer. No “Arroz
verve crítica e didática muito
de que a sala beneficia não dão grande (€3,50), anunciada com recheio de vi- doce” (€6,50), pouco ou nada doce, equilibradas. Raramente os
vista para o exterior. tela estufada e uma maionese de alho bago grande e inchado, moldado em críticos gastronómicos são
Numa das visitas, os agradáveis ca- assado, veio seca e desinteressante, quenelle e com gelado de nata. Boa a lembrados, embora os seus
napés semicirculares trouxeram uma vi- mas bem apresentada em frigideira de “Mousse de chocolate, avelãs, carame- escritos sejam essenciais
são ampla da decoração híbrida. Noutra cobre e sobre papel rendado. Repetiu- lo salgado” (€5,50) rica no fruto seco para se perceberem as
visita, ficando no plano mais rebaixado -se o pedido numa segunda visita, e lá torrado, com o caramelo no fundo e um épocas, e Sttau era moder-
da sala, o chão quadriculado e os azulejos trazia um creme branco a humedecer o gelado de toffee de avelã. níssimo na sua época. A obra
de Ana Marques Pereira é
banais em espinhas dão a estranha sen- interior e a valorizar o recheio, mas lar- O talento para a cozinha de Carlos
por isso muito relevante para
sação de se estar numa cantina. No me- gado sobre um corriqueiro pires e nem Afonso é notório. Deixou o belíssimo vermos o Portugal de ontem.
zanino fica o bar, uma sala privada mais um guardanapinho na base, como faria Frade em Belém e agora no Chiado tem Em garfadasonline.blogspot.
arejada, e a zona de DJ. A música subiu o café da esquina. Magnífico o “Tártaro uma nau grande para afinar. Com um pt na livraria Ferin, loja Vida
num dos jantares e o chefe Carlos Afonso de carne clássico” (€13,90) com carne ticket médio de €50/pax a expectativa Portuguesa e site Wook.
de altíssima qualidade, picada em cu- é outra, e o seu Oitto tem de valer mais.
binhos, os picadinhos ao lado a serem Há alguma dispersão de ideias e desali-
misturados na hora com a gema e sem nho entre sala e cozinha, mas só quem
OITTO o já enjoativo truque das maioneses de tenta alcança os oitenta. b
Largo do Picadeiro, 8 — Lisboa wasabi que disfarçam as matérias-pri-
Telefone: 210 403 199 mas de baixa categoria. Desde 1976, a crítica gastronómica
Não encerra Dos peixes vieram os tenros e fu- do Expresso é feita a partir de visitas
Serve apenas jantares e almoços ao fim de semana mados tentáculos de “Polvo grelhado anónimas, sendo pagas pelo jornal
com batata-doce e pimentos assados” todas as refeições e deslocações

E 77
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Em defesa das boas vinhas
Idade ou qualidade?

U
m dos temas preferidos dos produtores um grande vinho. À falta de legislação espe- vinhos do mundo, tal a idade e estado de-
de vinho é a idade das vinhas, quan- cífica que caracterize o conceito de “vinha crépito de muitas das cepas que foram então
do dizem, com orgulho, “o meu vinho velha” (lei de que muito se fala mas até agora arrancadas!
vem de vinhas velhas”. Ao afirmar isto estão não existe), usa-se e abusa-se dele, passan- O que se pode esperar então de uma vinha
a passar a mensagem que a qualidade vem do uma mensagem ao comprador que não é velha (digamos com uma idade superior a 30
da idade das vinhas e por isso merece ser re- necessariamente verdade. anos)? Pouca produção (por vezes baixíssima
ferenciada. Dizer que o tema é controverso é Vejamos: um vinho é bom por ter origem produção), grande concentração dos mostos,
pouco; o assunto ganhou destaque quando em uvas de vinha velha? Nim! A vinha velha originalidade aromática e boa longevidade.
os produtores começaram a usar e abusar do origina sempre bom ou mesmo excelente vi- E então, porque nem todas as vinhas velhas
epíteto que, diga-se, fica bem em qualquer nho? Nim! É tudo nem sim nem não porque dão vinhos extraordinários? Porque tudo de-
rótulo. Creio que entre nós se começou a usá- não existe uma relação direta e inequívoca pende da localização da cepa (solo, clima,
-lo, timidamente, em 1988. entre a idade da vinha e a qualidade do vi- casta e localização específica), ou seja, o tal
A ideia pegou e de então para cá tem sido nho. A cepa, tal como os humanos, tem de estafado conceito de terroir. Há boas vinhas
um fartar vilanagem. De tal forma se vul- nascer bem e ser bem-criada, protegida, ali- e vinhas vulgares. Quer vender caro porque
garizou que alguns produtores procuraram mentada e apaparicada para que o fruto seja o vinho vem de vinhas velhas? Pode não ser
nomes que pudessem ser mais originais — bom. Ora, isso também se consegue com argumento suficiente. Com as boas vinhas
vinha centenária, vinhas antigas, primeiras uma vinha nova, de boa casta, plantada no (independentemente da idade) pode fazer-se
vinhas — sempre com o intuito de marcar a local certo e que, bem trabalhada, pode dar um bom ou mesmo fantástico vinho; as ou-
diferença entre os vinhos que dali saem por vinho de grande qualidade logo ao 4º ou 5º tras obrigam a uma
comparação com os das vinhas novas. Uma ano, não é preciso esperar 20 ou 30. Muitos narrativa, útil para
amostragem de grandes vinhos do mundo (os milhares de hectares de vinha se renovaram enganar incautos.
mais famosos) revela-nos que praticamente em Portugal após a entrada na Comunidade Sobre o tema pode
todos têm origem em vinhas velhas e não é Europeia. Há uns anos dizia-me um enólogo consultar-se “Vi-
seguramente por acaso. Há assim um deno- que se fosse verdade que só das vinhas ve- nhas Velhas de Por-
minador comum, uma espécie de postulado lhas vinham os grandes vinhos, Portugal teria tugal”, de Luís An-
que nos diz que de uma vinha velha pode sair nessa altura obrigação de fazer os melhores tunes, Edição CTT. b

Aldeia de Cima Reserva tinto 2019 Fonte do Ouro Reserva Porto Vintage Quinta
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Região: Alentejo
Especial Encruzado da Gricha 2020
Produtor: Herdade Aldeia de Cima do Mendro branco 2021 Região: Douro
Castas: Trincadeira, Alfrocheiro; Alicante Bouschet Região: Dão Produtor: Churchill Graham
e Aragonez Produtor: Soc. Agrícola Boas Quintas Castas: várias
Enologia: António Cavalheiro/Jorge Alves Casta: Encruzado Enologia: Ricardo Nunes/John Graham
PVP: €16 Enologia: Nuno Cancela de Abreu PVP: €60
O vinho estagia em 4 tipos diferentes de depósito: PVP: €13,50 A empresa editou neste ano um outro
ânforas, barricas, tinajas e Nico Velo, correspondendo Esta é a variedade mais emblemática da vintage com o nome Churchill. Este
também a diferentes tempos de estágio e cada um região e uma das grandes castas brancas vintage de quinta, é feito
deles. Este é o projeto de Luísa Amorim no Alentejo. portuguesas. Pouco dada a viagens, tem-se exclusivamente em lagar com pisa a pé
36.000 garrafas produzidas. mantido quase exclusivamente no Dão. Este e corresponde a uma produção de
Dica: O vinho apresenta um excelente balanço entre branco fermentou e estagiou em barrica. apenas 600 caixas de 12 garrafas.
fruta, acidez e taninos, permitindo perfeita prova Dica: Leve austeridade aromática, com boa Dica: Aberto nos aromas — florais, entre
desde já. Seguramente muito polivalente à mesa, definição de fruta branca. Envolvente, outros —, vivo e jovem, muito elegante
nomeadamente com borrego assado ou em cheio e com ótima acidez. Um prazer e fresco, está a dar excelente prova
ensopado. à mesa. agora. Um vintage para 20/30 anos.

E 78
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Beira Interior Alojamentos


Helana Fonte Santa Hotel
Rua José Silvestre Ribeiro 35, Termas de Monfortinho,
Idanha-a-Nova. Tel. 277 201 095 Monfortinho. Tel. 277 430 300
Reabriu sob a liderança de uma
aluno do antigo proprietário. Da
anterior gerência herdou algumas
receitas como a do ex-líbris da
casa, o “Bacalhau com molho de
enchidos em papelote”. Pode ain-
da optar por “Lombinhos de porco
ibérico com molho de queijo de
Idanha”. Preço médio: €25. Foi construído no inícios dos anos
50, onde em tempos foi a casa do
Fiado Restaurante conde da Covilhã. Cresceu sempre
Rua do Espírito Santo, 5, Janeiro à volta das termas, apresentando
de Cima. Tel. 272 745 024 agora 43 quartos e suítes, perfei-
tas para descansar e usufruir de
toda a envolvência. Aproveite ain-
da os campos de ténis, percursos
pedestres e bicicletas.
A partir de €65.

50 ANOS, 50 RESTAURANTES Moinho do Maneio


1982: Natália Correia, o vulcão açoriano que abriu um bar icónico e deixou o Ribeira da Bazágueda,
“Chanfana”, “Cabrito no forno”, “Ma- parlamento em alvoroço Tel. 918 904 233
ranho com aroma hortelã” e “Naco Ninguém ficava indiferente a Natália Correia e há quem a coloque no grupo dos principais e mais ousados
de vitela” são as especialidades. pensadores portugueses do século XX. Almejou uma revolução “civilizacional” em Portugal a partir do Bar
Nos peixes predominam as suges- Botequim, que abriu na Graça, em Lisboa. Num debate parlamentar, em 1982, respondeu a um deputado
tões de bacalhau, “em crosta de com o poema “Truca-truca”, que entrou para a história.
broa”, “com pão de centeio e queijo
da Serra”. Preço médio €20.
Retiro do Castiço Robalo Entre Portas
Casa Ti’Augusta Rua de São João, Trancoso. Largo do Cinema, 4, Sabugal. Largo Ministro Duarte Pacheco,
Figueira. Tel. 965 099 711 Tel. 919 188 129 Tel. 271 754 189 13, Pinhel. Tel. 962 026 467 Quatro suítes com kitchenette e
Serve a mais pura gastronomia Uma taberna tradicional como As brasas são a base da confeção “Cogumelos silvestres com três quartos duplos, distribuídos
tradicional, como o pão cozido no já existem poucas. Os petiscos dos pratos da casa, como é caso papada ibérica” e o “Ossobuco de por várias casinhas, parecem for-
forno comunitário, o “Afogado da começam com enchidos, pão e do borrego e do cabrito. O “Baca- jarmelista certificada com puré de mar uma minialdeia. Junto a uma
boda”, e, claro, o maranho, e o plan- queijos da região, mas há também lhau assado em lenha de azinho” castanhas e legumes” nos pratos ribeira, permite passear de canoa,
gaio, enchido de Proença-a-Nova. especialidades como o “Arroz o de contínua com o estatuto de “ve- principais, “Molotov com crumble caminhar ou saltar no trampolim.
O “Cabrito assado” só está dispo- cabidela”, a “Desfeita de bacalhau” deta”, bem como o “Arroz-doce” e de amêndoa e frutos secos” para Reserve a bolha insuflável para
nível aos domingos. Termine com a e a “Feijoada de carne à Castiço”. as “Papas de milho”. terminar. Carta de vinhos com 100 uma noite em comunhão com a
“Tigelada”. Preço médio €20. Preço médio €20. Preço médio €30. referências. Preço médio €25. natureza. A partir de €80.

À DESCOBERTA DE IDANHA-A-NOVA, As Tílias


CIDADE CRIATIVA DA MÚSICA Restaurante
Rua dos Restauradores,
Símbolo maior da tradição e loja B, Fundão
riqueza musical do concelho, Tel. 275 772 269
Comece pelos clássicos da
o adufe foi o estandarte da
chefe Cláudia Diogo “Fritters de
candidatura de Idanha-a-
queijo de cabra com pickle de cere-
-Nova a Cidade Criativa da ja e verdura” e a “Morcela assada
Música da UNESCO, distinção com chutney de cebola e laranja”
conquistada em 2015 e e siga com o “Lombinho de porco
revalidada cinco anos depois. novas produções abrem os com cerejas e castanhas”, a “Perna
As Adufeiras de Monsanto e horizontes, com passagem por de pato confitada com molho de
as do Rancho Etnográfico de Monsanto, Idanha-a-Velha, frutos silvestres, almôndegas de
Idanha-a-Nova têm granjeado Penha Garcia e Monfortinho. risoto e mozarela” ou o “Maranho
notoriedade internacional. Na última década, o concelho XL”. Preço médio €20.
Ao som dos adufes desco- passou a dispor da maior área
bre-se uma região rica em contínua de produção de SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
história e património, e onde mirtilo em ambiente biológico símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
a herança gastronómica e as na Península Ibérica.

E 79
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

Na sua pele
Em nome da transparência, avisamos:
esta tendência é para quem tem coragem

O
outono chegou, mas a pele Quanto às transparências propria-
vai continuar à mostra. Nesta mente ditas, elas chegam mais anima-
temporada, as transparências das, não se cingindo às rendas e cores
regressam ainda mais ousadas, depois escuras. Os tecidos são muito varia-
de em estações anteriores os desig- dos, vão da mousse mais desportiva à
ners prepararem o terreno. Preparada seda e rede com cristais embutidos;
para arriscar? Nós é que decidimos as cores vão além do preto e viajam
a quantidade de pele que queremos entre os neutros e os néones; os mo-
mostrar e nada pior do que usarmos delos deixam de ser tão justos e são
alguma coisa que nos deixa descon- agora mais amplos. Aliás, a diversida-
fortáveis. Por isso, vamos aos poucos. de de cortes e estilos é tão grande que
Não vou mentir: para conseguir um permite compor looks que tanto fun-
all over transparente é preciso alguma cionam numa ocasião casual como

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


ousadia e sabedoria. Podemos sempre numa festa e até para desfilar na red
optar pela sobreposição, encontrando carpet. Arrisco mesmo a prever que no
as peças ideias para usar debaixo de domingo não faltarão transparências
uma transparência, como uma mi- na passadeira vermelha dos Globos de
nissaia e um sutiã opaco, ou até um Ouro. Homens e mulheres vão fazer
body, por baixo de um vestido com- desta tendência a grande vencedora
prido transparente. da noite. Vai uma aposta? b

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E 80
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SUSTENTABILIDADE

O desígnio holístico das próximas décadas


Cristina Castanheira Rodrigues 43% dos gestores sabe qual é a pe-
ADMINISTRADORA-DELEGADA gada ambiental do seu negócio e só
DA CAPGEMINI PORTUGAL 18% definiu uma estratégia abrangen-
te com objetivos e prazos concretos.
A sustentabilidade tornou-se numa A redução das emissões de carbono
das principais prioridades das agen- pode ser alcançada através da otimi-
das empresariais em todo o mundo zação das infraestruturas, dos siste-
e irá ganhar um protagonismo acres- mas e das arquiteturas tecnológicos,
cido a partir de 2023, quando todas mas exigem também uma estratégia
as empresas na Europa, com mais de responsabilidade social corpora-
de 250 colaboradores, bem como as tiva que terá de incluir as principais
de média e pequena dimensão mais ferramentas e impulsionadores da li-
orientadas para os mercados de ca- mitação dos impactos ambientais nas
pital, tiverem de apresentar relatórios várias áreas de negócio.
com medidas concretas para promo- É preciso termos a noção, desde o
ver a sustentabilidade, não apenas início, que a implementação de uma
ambiental mas também a social e de estratégia de TI sustentável, em qual-
governação. quer empresa, assenta num processo
Um estudo recente1 da Capgemini re- com objetivos claros e mensuráveis
vela que atualmente, 71% das empre- e com marcos definidos que também
sas tenciona reduzir as suas emissões espelhem as adaptações necessárias
de carbono em cerca de 37% até 2026, a fazer a nível da organização, dos pro-
um valor que consideram exequível. cessos e da cultura da empresa, e que,
No caso da Capgemini, definimos em nosso entender, incluem: Sensibi-
em 2016 como meta – validada pela lização dos Colaboradores para as TI
Science Based Targets (SBT), reduzir Sustentáveis; Estratégia de TI Susten-
as emissões de carbono por colabora- tável; Digitalização para um Negócio
dor em 30% até 2030. No entanto, al- Sustentável; Medir e Analisar os im-
cançámos já este objetivo em janeiro pactes da organização; Desenvolvi-
de 2020 – 10 anos antes do previsto e mento e Programação Sustentáveis;
antes da pandemia, e temos como am- Design e Planeamento; Ação; Aferição
bição atingir a neutralidade carbónica e FinOps.
e sermos net zero até 2025, liderando Nos próximos anos, as grandes ten-
a transição para uma economia baixa dências da tecnologia sustentável
em carbono, apoiando outras empre- irão assentar na mudança para uma
sas a cumprirem a meta da redução arquitetura de green cloud – respon-
de 10 M de toneladas de baixo teor de sável por reduzir custos até 19%; no
carbono CO2eq até 2030. desenvolvimento de arquiteturas sus-
Há uma mudança em curso, mas as tentáveis otimizadoras da utilização
Tecnologias de Informação (TI) ainda das aplicações – uma redução de Nos próximos anos, cumprimento das metas da sustenta-
não são uma prioridade nas estraté- custos até 11%; bem como no recurso bilidade, abrangendo os seus princi-
gias de sustentabilidade das empre- à Inteligência Artificial e ao Machine as grandes tendências pais pilares (ambiente; responsabili-
sas e, ainda que mais de metade já Learning – que podem, por exemplo, da tecnologia dade social e governação), em todos
possuam uma estratégia de sustenta- representar uma poupança de 9% na os setores de atividade, de uma forma
bilidade, apenas uma em cada cinco otimização da utilização dos data cen-
sustentável irão transversal e efetiva à escala global.
inclui as TI nesta estratégia, segundo tres, e uma redução de custos até 8% assentar na mudança Deste esforço, que terá de ser con-
dados do estudo “Sustainable IT: Why através da aplicação tecnologias de para uma arquitetura junto e concertado entre países, em-
it’s time for a Green Revolution for your Machine Learning no aperfeiçoamen- presas e cidadãos, depende o nosso
organization’s IT”1. to dos sistemas de arrefecimento dos de green cloud – futuro e o da humanidade.
Sabemos, de forma segura, que as data centres. responsável por
1
TI podem contribuir para diminuir as A forma como a tecnologia é proje- In “Sustainable IT: Why it’s time for a Green
emissões de gases poluentes de for- tada, implementada e utilizada pode
reduzir custos até 19% Revolution for your organization’s IT,” Capge-
ma significativa. No entanto, apenas e deve ser usada para acelerar o mini, 2021
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

O iPhone que
veio da Índia
Há algo que está em vias de mudar
na face traseira do iPhone: em vez de
“desenhado na Califórnia; montado na
China”, alguns espécimes da edição 14
do telemóvel da Apple já vão
indicar que continuam a ser
desenhados no estado da
Costa Oeste dos EUA, mas
foram montados na Índia.
A confirmação oficial surge
depois de rumores sobre a
intenção da gigante califor-
niana em procurar fábricas
alternativas às chinesas. A
ida para a Índia não é inédita
— e pode não represen-
tar um corte total com os
conglomerados industriais
chineses, que asseguram o fabrico do
iPhone. A produção dos novos iPhones
14 com “assemblagem na Índia” deverá

Microsoft em campo com novo 11 arrancar até ao final do ano numa fábrica
nas imediações de Chennai, e vai ficar
a cargo da Foxconn, grupo industrial de
Taiwan que, desde o início, suportou a
O novo Windows traz alguns mimos para os teletrabalhadores deste mundo produção dos iPhones. Desde 2017 que
há fábricas na Índia que montam iPhones,

E
mas geralmente a produção incide ape-
de súbito uma notícia que interessa a 1,4 mil milhões App Control, que apresenta estimativas quanto à segurança
nas em modelos antigos. A JP Morgan
de pessoas: o Windows 11 acaba de ser lançado em de um software antes de ser instalado. estima que 5% dos iPhones 14 comer-
todo o mundo. Segurança e teletrabalho são os pilares Os fãs de jogos também ficarão agradados com a ferra- cializados até ao final de 2022 poderão
da nova versão do sistema operativo de computadores pes- menta que ativa o modo HDR automaticamente, e a promes- vir da Índia. Em 2025, prevê-se que um
soais mais bem sucedido de todos os tempos. Na edição 11, sa de otimização de latência. Uma nova aplicação de fotos, o quarto dos telemóveis da Apple tenham
o Windows tem alguns mimos para quem trabalha em casa, explorador que distingue ficheiros mais usados e importan- igual proveniência. A deslocalização pode
como o bloqueio de notificações em períodos que exigem tes e sugestões de ações, e indicações de aplicações abertas ser justificada com a interdição aplicada
concentração, bem como melhorias no enquadramento das a partir da barra de tarefas figuram igualmente nas novi- nos EUA a produtos de marcas chinesas,
como a Huawei, mas também não será
videoconferências com base no olhar, ou a legendagem em dades. Exige computador com processador de 1 gigahertz e
de estranhar uma antecipação face a um
direto. Na segurança, destacam-se Defender SmartScreen, pelo menos 2 núcleos, 4 gigabytes (GB) de RAM, 64 GB de ar- potencial conflito entre China e Taiwan.
que alerta para a inserção de credenciais em aplicações sus- mazenamento, unidade gráfica compatível com DirectX 12, Resta saber se as polémicas em torno das
peitas, e um detetor de presença que bloqueia o computador ecrã de Alta Resolução (720p), entre outros requisitos. Pre- condições de trabalho disponibilizadas
quando o proprietário se afasta. Igualmente útil é o Smart ço: €145 (atualização grátis para quem tiver Windows 10). b pela Foxconn não se repetem na Índia.

REPETE LÁ ISTO O FILTRO A NU LAVA LETRAS GRAFISMO TOTAL


A rede sem fios não chega para a casa toda? O Instagram está a desenvolver um filtro O KC-600 promete tirar tudo a limpo A Asus promete dar largas às
A Devolo promete ajudar com a boleia automático que bloqueia imagens de nudez — ou, pelo menos, criar as condições expectativas de fãs de videojogos com
do Wi-Fi 6 e dois repetidores de sinal que sejam veiculadas por mensagens para que qualquer utilizador possa usar os lançamentos de novas unidades gráficas
hertziano. Repeater 3000 e Repeater trocadas entre utilizadores. A rede social água e detergente para fazer essa de topo de gama. Na lista de lançamento
5400 chegam às lojas com tecnologias detida pelo grupo do Facebook garante limpeza. O novo periférico da Hama acaba figuram GeForce RTX 4090 24 GB,
que evitam interferências em espaços urbanos, que a nova funcionalidade não tem acesso de ser lançado com o propósito de GeForce RTX 4080 16 GB e GeForce RTX
e facilitam a configuração de redes com vários aos dados dos utilizadores. A nova dar resposta aos estudos que apontam 4080 12 GB. Em comum, estas unidades
dispositivos. A funcionalidade que desliga ferramenta será ativada de forma autónoma os teclados como focos de sujidade, gráficas têm a arquitetura Nvidia Ada
automaticamente ligações para poupar no dispositivo do destinatário mas também contempla uma inclinação Lovelace, que promete melhorias
baterias de gadgets e eletrodomésticos das mensagens, que pode decidir quais ajustável, um sistema antiderrapante no desempenho e na renderização.
promete dar que falar. Repeater 3000: os remetentes que devem ser e atalhos associados aos conteúdos Os lançamentos ocorrem entre outubro
€99,90. Repeater 5400: €149,90. ou não sujeitos a esta filtragem. multimédia. Preço: €47,99. e novembro, com preços ainda por revelar.

E 82
5 MANUAIS | GRÁTIS COM O EXPRESSO

MANUAL

Em
Hotéis
e Spas

NAS BANCAS 14 DE OUTUBRO

PRÓXIMA SEXTA FEIRA

A caminho da comemoração dos seus 50 anos, o Expresso quer preparar os próximos 50


e discutir um país economicamente, socialmente e ambientalmente mais sustentável.

Porque não basta parecer, é preciso ser sustentável, ecológico e responsável.


Em parceria com
AU TO M ÓVE IS
POR VÍTOR ANDRADE

NOVO RENAULT AUSTRAL


Estão abertas as encomendas para o
novo Renault Austral, sendo que as
primeiras entregas aos clientes estão
agendadas para o início de 2023.
Os preços começam nos €33.300
para a versão equilibre Mild Hybrid de
140 cavalos de potência e o “coração de
gama” será na versão techno Mild
Hybrid 140 cv, que estará disponível

Conforto sobre rodas por €35.800

Com um design fluido e aerodinâmico, este Citroën C5 X híbrido


é um estradista por excelência. Uma silhueta nova e surpreendente

N
ão sei se consigo acontece o acrescentam-lhe distinção e dinamis-
mesmo, mas, no meu caso, mo, elementos que, bem vistas as coi-
sempre que o tema é um ‘Ci- sas, fazem uma certa ligação a mode-
troën’, há uma palavra que se me atra- los topo de gama históricos da Citroën
vessa imediatamente à frente: ‘Con- (e estou a lembrar-me do primeiro — e MITSUBISHI ASX REVELADO
forto’. É isso mesmo. É assim como icónico — Citroën DS, de 1955). A Mitsubishi Motors Europe apresentou
uma espécie de reflexo condicionado, Este é, claramente, um grande es- há poucos dias o novo ASX. O novo ASX
com ‘o seu quê’ de pavloviano. Citroën tradista, adotando um design original (acrónimo de “Active Sports X-over”)
= conforto. Siga (lá mais à frente volta- que combina o estilo de uma berlina vem substituir a geração anterior,
remos ao assunto). com o de uma break, numa propos- cujas vendas atingiram mais
No caso deste novíssimo C5 X Hy- ta inovadora, na mais pura tradição de 380 mil unidades na Europa.
brid 225 ë-EAT8 Shine Pack, no mo- Citroën. A chegada ao mercado está prevista
mento da sua apresentação mundial a Pegando no início desta prosa, so- para março de 2023, antecedendo
construtora francesa até começou por bre a questão do ‘conforto’, vem agora o novo Colt, agendado para outono
do mesmo ano.
dizer que seria como “viajar num ta- a propósito dizer que o habitáculo do
pete voador”. Pois bem — exageros de C5 X transmite uma sensação acolhe-
semântica à parte —, nunca andei em dora de boas-vindas, de serenidade e
nenhum mas, se for uma coisa suave e espaço, num convite a viajar. A ele-
confortável, então sim, podemos fazer gância e conforto, aparecem associa-
perfeitamente essa analogia. dos muita tecnologia inovadora, mas
Outra particularidade que sal- discreta.
ta logo à vista neste topo de gama da A bagageira, com um volume lí-
marca francesa é o design. A silhueta quido de 545 litros, responde, perfei-
do C5 X impõe-se imediatamente por tamente, às necessidades de um bom
ser algo afirmativa, robusta, distinta dia de viagem.
e, ao mesmo tempo, subtil. Na verda- FICHA TÉCNICA Em matéria de prestações, o C5 X
de, são linhas que rompem com uma Hybrid plug-in atinge uma velocida- DS7 EM NOVEMBRO
Motor Híbrido a gasolina O novo DS 7 será lançado no mercado
boa parte do que está para trás na casa com 290 cavalos de potência de máxima de 233 quilómetros/hora e
nacional em novembro, mas acaba
Citroën (mas não com tudo). É clara- Aceleração Dos 0 aos acelera dos 0 aos 100 km/h em 7,8 se-
de ser revelado. Desenvolvido
mente uma silhueta nova, em que foi 100 km/h em 7,8 segundos gundos. Os consumos em ciclo combi-
e afinado pela DS Performance,
dada especial atenção ao desempenho Consumo 1,3 litros por cada nado ficam-se pelos 1,3 litros aos 100 o novo DS 7 E-Tense 4x4 360 propõe
aerodinâmico. 100 km em ciclo combinado km em modo híbrido, o que faz dele um motor híbrido plug-in com 360
Apresenta-se com um capô lon- Preço €48.902 (mas disponível um carro não apenas amigo do am- cavalos de potência, tração inteligente
go, e as linhas fluidas e aerodinâmi- a partir de €34.907 biente mas também da carteira. Em às quatro rodas. Os preços,
cas, bem como a cintura elevada e os nos motores térmicos) suma, uma excelente opção, nos dias nas motorizações a diesel começam
guarda-lamas traseiros rebaixados, que correm. b nos €50.530.

E 84
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DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

EXPOSIÇÃO
A maioria absoluta
COM GRAÇA
Entre 30 de setembro
Muito perigosa, deslaça o tecido social
e 5 de fevereiro, a exposição e normaliza o tu cá tu lá...
"A Mascarada Política

N
- O Carnaval na Obra de Rafael ão vou escrever sobre política, muito menos sobre resultados
Bordalo Pinheiro (1870-1905)" vai eleitorais. Cada um pensará o que entender, o futuro a Deus pertence,
estar patente no Centro de Artes como diria um crente, sempre à espera de surpresas... Era um jantar
e Criatividade de Torres Vedras. de aniversário, como tantos outros. Gente muito simpática, não próxima,
O objetivo é dar a conhecer mas conhecida desde há muito tempo. Pelo menos ali não se falava de
as múltiplas abordagens ao doenças e doentes, como acontece nas festas de médicos...
Carnaval desta figura marcante As conversas giravam em torno de trivialidades do dia a dia e, claro,
da cultura nacional na sua obra dos filhos e, também, já de alguns netos. Mostravam-se fotografias
artística. criteriosamente escolhidas, ouviam-se comentários, sempre muito elogiosos
cm-tvedras.pt à capacidade de produzir novas gerações muito bonitas. Já não se falava da
neve em Courchevel, nem em Aspen, nem das férias de inverno nas Maldivas
ou nas Seychelles. Os que eventualmente tivessem ido às Canárias ou a Cabo
Verde calaram-se. Mas já se ouviam planos para a Comporta no verão, temos
COSMÉTICA de aproveitar antes que aquilo fique cheio de povo...
Com a idade vamos ficando mais tolerantes e aprendemos a não fazer
SUSTENTÁVEL ideias preconcebidas, por sinais efémeros que observamos. Mas ao fim de
tantos anos de democracia a estratificação social continua e os tiques de
A Freshly Cosmetics detém
classe mantêm-se, mais disfarçados, mas muito evidentes em contextos
um portfólio com mais de 70
tidos como endogâmicos socialmente. A forma mais vulgar de os irmãos se
referências, sendo a primeira
tratarem é por tu, assim como a forma de os pais tratarem os filhos, a não
marca vegan de venda online com
ser quando a coisa está grave e se ouve, com voz forte, venha cá já... Cada
cosméticos que contêm mais de
vez mais se ouvem filhos a tratarem os pais por tu, o que me faz alguma
99% de ingredientes naturais. Entre
impressão, mas deve ser de já estar antigo.
as suas insígnias encontram-se
Naquele jantar, como é normal, os amigos referiam-se uns aos outros, de
a Freshly Cosmetics (cosmética uma forma, como dizem os franceses, ils se tutoie. O mesmo não acontecia
natural), a Freshly Makeup entre irmãos. O menino para aqui, a menina para ali. Até é enternecedor
(maquilhagem vegan), a Freshly ouvir pessoas com 70 anos tratarem-se por menino. Fez-me lembrar um
Kids (produtos para crianças) e a amigo meu, solteirão, que no processo de seleção de uma empregada
Freshly Pets (produtos para animais doméstica, escolheu, como único critério, a que o tratou por menino e ainda
de estimação). A empresa conta lá está...
atualmente com cerca de um Entretanto, a conversa, já não sei como, evolui para a forma como os
milhão de clientes registados e jovens tratam os amigos dos pais. No meu tempo era pelo nome, agora são
mais de seis milhões de produto todos e todas tios e tias, raramente o nome é usado a até sentido como falta
vendidos, em 25 países. de regras sociais. Lembro-me sempre de um amigo do meu filho que vinha
freshlycosmetics.com cá a casa e nos tratava pelo nome. Tinha-se imposto perante os amigos. Os
meus pais não são vossos tios, portanto ou lhes chamam doutores ou pelos
seus nomes, escolham.
Subitamente, neste serão simpático, ouvi uma conversa notável. Uma
senhora volta-se para o marido: “Veja bem que outro dia foi lá a casa um
amigo do nosso filho, acho que é só conhecido, que me tratou por tu. Fiquei
CALÇADO COM chocada... Deve ser um desses miúdos das escolas públicas.” Os homens
PERSONALIDADE têm sempre uma explicação para tudo e, se querem paz, devem reforçar,
sobretudo à frente de amigos, as convicções femininas. “Não sei como é
Botas clássicas, com e sem tacão, que a menina ainda se admira com essas coisas. Eles reproduzem o que
cano alto ou cano baixo, modelos ouvem em casa. Se a menina pensar bem, é fácil de explicar. Com a maioria
chunky e mules irreverentes absoluta do PS, o que é que estava à espera?”
compõem as novidades da Melissa Nem queria acreditar no que estava a ouvir. Passámos dos comunistas
para a época outono-inverno. que comiam criancinhas e matavam os velhos com uma injeção atrás da
Prometem ser peça-chave na orelha, para os socialistas que já quase não usam o termo camarada, mas,
indumentária da nova estação, pelos vistos, tornam as relações entre gerações desrespeitosas... Mais uma
dando um boost de diversão e confirmação de que as maiorias absolutas são muito perigosas, deslaçam o
irreverência ao regresso à rotina. tecido social e normalizam o tu cá tu lá... Em breve, os psiquiatras vão ter de
A versátil coleção está pensada para lidar com isto. b
todas as mulheres com atitude que josemanuelgameiro@sapo.pt
gostam de deixar a sua marca por
onde quer que passem.
melissaportugal.com
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2434

6 3 8
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
5 2
5 3 1 4 6 1
7 8
2
4 7 6 5 8 9 3 1
2 6 3
1 8 3 7 5
4
7 1
2 9 4 5

Sudoku Muito difícil 6


2
7
7 2 5 9
5 6 9 8
3 5 7
9
4 8 1 2
9 8 1 10
6 7 8
1 5 6 4 11
5
Horizontais Verticais Soluções nº 2433
1. Juntar objetos semelhantes 1. Comemorados 2. Tipo de gado. HORIZONTAIS
Soluções 2. Esquivar-se. Porto romano na foz Determinar uma extensão de baixo 1. numismática
Fácil Muito difícil do Douro 3. A paciência tem-nos. para cima 3. Arredonda arestas. 2. anémona; iav
3. picareta; ti 4. oca;
4 6 1 5 9 7 8 3 2 5 2 6 4 1 3 7 9 8
Janeiro é o primeiro 4. Acometido Família italiana que gerou três papas
AM; trás 5. ló; pioneiro
9 8 3 4 1 2 7 6 5 4 7 3 8 2 9 6 5 1
por paixão 5. Meia bola. É mole no 4. Vocábulo que é origem de outro.
6. era; anulais 7. anel
2 5 7 3 8 6 1 4 9 8 9 1 5 7 6 2 4 3
5 7 4 9 6 3 2 8 1 3 1 4 6 5 7 8 2 9 centro. A de Noé transportou o futuro Não traz nada de novo 5. Obedece
8. oiro; Creta 9. OES; Aire
1 3 9 8 2 5 6 7 4 2 6 9 1 3 8 5 7 4 da Humanidade 6. Líder espiritual ao Papa. Letra grega 6. São Tomé teve
10. OAS; mês
6 2 8 1 7 4 5 9 3 7 8 5 2 9 4 1 3 6 muçulmano. Afluente do Reno de ver para o fazer. Estão abaixo do
11. SOS; anátema
7 9 6 2 4 1 3 5 8 1 4 7 9 6 2 3 8 5
7. Mete no bolso. Romanos 8. Estudo peso 7. Apelido. Ficam em frente das
de gravações sonoras 9. Grande igrejas 8. Língua provençal. O generoso
3 4 2 6 5 8 9 1 7 9 5 2 3 8 1 4 6 7
VERTICAIS
1. Napoleão; SS
8 1 5 7 3 9 4 2 6
aversão. Está cheio de flores com fá-lo com gosto. Quebra a monotonia
6 3 8 7 4 5 9 1 2

espinhos 10. Centésima parte do iene. do deserto 9. Fernando escritor. Furta 2. unicórnio 3. Meca;
Dos limões da autoria de Artur Ribeiro 10. Tipo de cerveja. Fio para prender aéreos 4. imã; Losa
11. Relatos fabulosos da Grécia Antiga. 11. Sobraria. Tem uma pinta 5. Soraia; sã 6. mnemónica
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2432
Não estão doentes 7. AAT; nu; rima 8. atelier
"Crónicas de Sabastopol", de Lev Tolstoi, para Luís 9. II; ria; teme 10. Catarina;
Romão, de Setúbal; "Os Suicidas", de Antonio di em 11. avisos; USA
Benedetto, para António Rio Tinto, de Viana do
Castelo; "Três Dias em Fevereiro", de Ricardo Fer-
reira de Almeida, para Hélder Carvalho, de Penafiel. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 87
DEIXAR O MUNDO MELHOR

15 SEMANAS PARA OS 50 ANOS DO EXPRESSO

DANIEL OLIVEIRA
“TENTO INCUTIR
NAS EQUIPAS
UMA CULTURA

NUNO BOTELHO
DO DETALHE”
Começou a trabalhar muito cedo. voltei mais preparado para as exigências da SIC, que é uma 600 edições, que já me deram muito a nível humano
Tinha 16 anos. Nessa época fazia o estação com uma pressão diferente. Na RTP, não senti essa pelas vivências que fui trocando com os entrevistados.
“Penálti”, um jornal muito rudimentar, pressão, fiz a cobertura de alguns eventos internacionais Isto acontece a par do que o programa significa para a
em papel, que custava cem escudos, desportivos, criei ou ajudei a criar programas como o SIC pelos resultados que tem.
e tirava entre 30 a 50 exemplares… “Só Visto”, o “À Volta”, e alguns especiais sobre futebol.
Essa experiência permitiu-me procurar Trabalhei de perto com a seleção nacional de futebol. Cristina Ferreira fez falta?
OUÇA O PODCAST figuras da SIC para as entrevistar. Fui A Cristina Ferreira foi importante em determinada altura
EM EXPRESSO.PT várias vezes à estação, e creio que De tempos a tempos, a sua carreira tem uma costela da nossa estratégia e foi por isso que a contratámos.
acharam graça a um miúdo que tinha a desportiva ou futebolística? Mas, depois de 17 de julho de 2020 — quando ela saiu —,
ousadia de ir para a porta da estação. Entrei quando a SIC É uma paixão que corre em paralelo com a paixão mostrámos que a SIC é um conjunto de pessoas e talentos,
tinha cinco anos, no auge do seu lançamento. pela televisão. Sempre procurei trabalhar as matérias que não se circunscreve a uma pessoa. A SIC continua
desportivas de modo diferenciado. O último evento a ser uma estação forte como sempre foi, com uma
Também gostava de jogar xadrez. Com que idade desportivo que acompanhei na SIC foi o Mundial de 2014. plataforma de streaming, uma plataforma de podcasts,
começou a jogar? uma plataforma de gaming e vários canais.
Com nove ou dez anos. Aprendi com o meu avô, que é uma Gosta de dizer que nunca foi jornalista?
grande referência na minha vida. Tive outros professores, Mas fui, e tenho muito respeito pela profissão de Existe um excesso de novelas na programação
comecei a entrar em torneios. Aos 14 anos, fui campeão jornalista. Quando saí da SIC Notícias tinha carteira generalista?
nacional de sub-14, na categoria de rápidas. Neste profissional de jornalista, mas decidi não a renovar, Acho que o público continua a ter apetência pelas
momento, só jogo com o meu avô de vez em quando, para porque queria ter espaço para fazer coisas incompatíveis novelas, que o género está a evoluir e que absorveu
recordarmos os velhos tempos. com a profissão de jornalista. temáticas que associamos às séries. Portugal produz
muitas novelas, alguns dos melhores técnicos que
O seu avô continua a ser uma figura de referência na sua Fez anúncios? trabalham a nível internacional em séries e filmes
vida? Fiz anúncios para algumas marcas nacionais. Foram bem nasceram nas novelas, que dão um grande traquejo aos
Absolutamente. Tem 82 anos, está ótimo, e dá-me muitos pagos, a publicidade é bem paga. técnicos, atores e guionistas. As novelas representam
conselhos. Incutiu-me a noção da humildade desde muito uma fatia de audiências muito relevante.
cedo, e esse é o modo com que procuro estar na vida. Por que motivo regressou à SIC?
Tento não me achar mais do que ninguém, e a forma como Voltei quando o Nuno Santos — que era diretor de O que vai surgir depois das novelas ou em sua lenta
estou na vida e na profissão faz-me relevar a importância Programas — me convidou para integrar a equipa de substituição?
das outras pessoas no trabalho de equipa. Faço questão de Direção de Programas e para construir novos formatos Temos procurado trilhar um caminho alternativo com a
sublinhar este aspeto, porque acredito estar a fazer o que o como o “Fama Show”, o “E Especial” — que ainda hoje Opto, que foi uma grande aposta, com as séries que já
meu avô me aconselhou. existem. Depois, vieram o “Alta Definição”, “Os Incríveis”, produzimos ao longo destes dois anos. A Opto foi lançada
e fui criando esse tipo de magazines mais ligeiros. no auge da pandemia, e foi uma decisão inteligente. A
Teve uma infância dura. O seu primeiro livro aborda isso. Trabalhámos sempre em conjunto, as equipas trabalhavam relevância dos conteúdos vai estar diretamente ligada à
Cresci no seio de uma família disfuncional. Os meus pais muitas horas a fazer diretos. Tentei incutir nas equipas uma capacidade que iremos ter de os integrar em plataformas
foram tomados pelo flagelo da droga, tinham 16 anos cultura do detalhe, porque acho que isso em televisão faz diferentes para chegar a públicos diferentes. É isso que
quando nasci, e eu vivi uma série de realidades que não toda a diferença. todos queremos na SIC. Para o conseguir, é essencial ter
deveria ter vivido. O livro surge da necessidade de fazer planeamento e honrar o que se fez ao longo de 30 anos, de
um retrato do que foi a minha vida, e acabou por funcionar Tem saudades de estar no terreno? olhos postos nos próximos anos. b
como um virar de página dessa infância. Para os meus pais, Tenho. E tenho saudades da pressão de ter de enviar uma
foi como que um espelho do que tinha sido a vida deles, e reportagem por dia para os programas. A vida muda, fui pai,
uma porta para que, a partir desse momento, se escrevesse as responsabilidades são outras.
uma nova página.
O “Alta Definição” é o programa mais importante em que
Chegou à SIC aos 16 anos e fez a sua carreira na SIC? esteve envolvido?
Sim, com um intervalo de cinco anos na RTP. Houve uma Seguramente. Se chegar aos 80 anos — e espero POR
altura em que entendi que a RTP me oferecia um caminho chegar — acho que ainda me irão perguntar o que é que FRANCISCO
diferente e alternativo em relação àquilo que estava a fazer dizem os meus olhos, porque é algo que é recorrente PINTO
na SIC. Saí da SIC em 2003 e regressei em 2008. Acho que acontecer... O programa começou há 13 anos, tem quase BALSEMÃO

E 88
Ano letivo
inscrições abertas

Educação: o seu melhor investimento.


Investir em educação é a melhor forma de atingir objetivos pessoais e profissionais,
alargar oportunidades e construir um futuro melhor.
Aulas presenciais ou por videoconferência.
www.cambridge.pt INGLÊS | FRANCÊS | ALEMÃO | PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
UMA SENTENÇA JAVARDA

U
É POSSÍVEL CONSIDERAR QUE OUTRA PESSOA É MAL-EDUCADA. MAS NÃO
SE PODE SER MAL-EDUCADO A CHAMAR MAL-EDUCADO, PORQUE A FALTA
DE EDUCAÇÃO, AO QUE TUDO INDICA, AGORA É PUNIDA POR LEI
m homem chamou javardo a outro o disseste”. É possível, por enquanto, considerar que outra pessoa é
e foi condenado a pagar €2200 de mal-educada. Mas não se pode ser mal-educado a chamar mal-educado,
multa e €6 mil de indemnização. Não porque a falta de educação, ao que tudo indica, agora é punida por lei.
há dúvida nenhuma de que a vida Nem toda, no entanto. Se é verdade que o réu “poderia ter dito o que
está caríssima. Em 1881, Alexandre disse”, isto significa que o tribunal entende que a substância do que foi
da Conceição propôs, referindo-se dito não é difamatória. Talvez o queixoso seja mal-educado, e não será
a Camilo Castelo Branco, “a ver ilícito apontar-lhe a falta de educação. Mas é obrigatório fazê-lo de forma
se amaciamos os lombos hirsutos educada. É, por isso, uma questão de grau. A hipotética falta de educação
deste javardo espumante”, e Camilo do queixoso não seria punida, nem a observação do réu. Mas tendo o réu
respondeu, entre outras coisas, “eu sido malcriado a assinalar má-criação, essa grosseria merece castigo. O
peço vénia ao sr. Conceição para tribunal é um requintado escanção de faltas de educação, e determina
o capitular de besta; mas quer-me parecer que me corre mais restrito que umas são legítimas e outras ilegítimas. Façamos todos um esforço
dever de pedir licença às bestas para lhes chamar Conceições”. O custo para sermos apenas moderadamente rudes. b
desta troca de ideias foi: nenhum. Chamar javardo era grátis no fim do Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
século XIX e custa €8200 no início do século XXI. Temos mesmo de fazer
alguma coisa acerca da inflação.
No caso cujo desfecho conhecemos esta semana, o delinquente é um
antigo embaixador e o ofendido é treinador de futebol. O ex-embaixador
é administrador não-executivo de 157 empresas, pelo que tem tempo
para andar a executar desaforos; o treinador melindra-se facilmente
porque, nos campos de futebol, está habituado a escutar apenas as
mais elevadas considerações. O desastre era previsível. Falta dizer
que a sentença foi proferida pelo tribunal do Bolhão e que a injúria foi
publicada no Twitter. É preciso um talento especial para viver no Bolhão
com a convicção de que “javardo” é um insulto grave, e uma habilidade
ainda maior para descobrir que, no Twitter, era aquela a opinião
criminosa. A juíza teve a bondade de explicar que, e cito: “Somos livres
de entender que uma pessoa tem má educação, mas a palavra conta e
a palavra tem peso. É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. / RICARDO
Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa.
Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar.” Ou seja, trata-se da
ARAÚJO
versão jurídica do clássico “não foi o que tu disseste, foi a forma como PEREIRA

E 90
hyundai.pt Hyundai Portugal

7 Garantia
ANOS

sem limite de quilómetros

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