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D.

Manuel
Clemente
na hora da
despedida
“A questão dos
A Revista do Expresso abusos feriu-me
EDIÇÃO 2648
pela dor de quem
28/JULHO/2023 sofreu o que
nunca devia
ter sofrido”
Última entrevista ao
patriarca de Lisboa
nas vésperas da visita
do Papa Francisco
Por Maria João Avillez
e Tiago Miranda

+
Livros de verão
37 sugestões
de leitura para
as férias
PARCEIROS:
ILUSTRAÇÃO: RUI GARRIDO
PLUMA CAPRICHOSA

A GRANDE INVASÃO PAPAL

A
O PARQUE EDUARDO VII LOGO DEPOIS DA MISSA SERÁ UMA DESOLAÇÃO ABANDONADA E PISADA
moradores, e às portas das residências as prostitutas instaladas junto da ladeira central. Um cano de esgoto
tomam assento como se fosse um bordel a céu aberto. longo e castanho descia em direção ao Marquês de
Os estrangeiros que vivem na zona admiram-se. Um Pombal. Imagine-se a multidão no calor, aliviando-
bairro caríssimo, anunciado como sendo um paraíso se naquele lugar. O cheiro inconfundível, a sujidade
com um parque ao fundo, ter esta fauna criminosa e paralela a estas intimidades. Ver isto no meio de um
insolente nos passeios. A pista de bicicletas modificou parque que deveria ser verde (não é) e para todos, é
os tropismos da fauna, que entra pelo bairro dentro vagamente obsceno. Pode ser que me engane, mas o
e se encosta às esquinas. Dentro do Parque, atrás das Parque vai ficar ainda mais destruído do que está. E os
camionetas estacionadas, já lá iremos, a prostituição nossos impostos pagarão as casas de banho, fornecidas
exerce-se em liberdade e quem tiver a ideia de pelo Governo de Portugal, e suponho que as limpezas
atravessar o parque na horizontal reparará que umas e os consertos do Parque se os houver. Não é possível
senhoras abastecem clientes e motoristas em pleno albergar uma multidão naquele espaço sem danos
dia, nos recônditos ensombrados pelas árvores. para o espaço. Sem dejetos humanos e sem lixo. Sem o
frase que se ouve em Lisboa, nas redondezas do As camionetas e autocarros, e durante a estação espaço verde calcado e aniquilado.
acontecimento, é “vamos fugir antes que venha o turística as centenas de camionetas de turismo, têm O Cutileiro foi enterrado. Supõe-se que, infelizmente,
Papa”. “Claro.” A frase aparece sempre rematada o seu estacionamento no Parque. Na parte inferior, regressará depois do “evento” mais luzidio e
por este “claro”. Claro, claríssimo, que vamos fugir. estão as paragens de autocarros, e por todo o lado pontiagudo. Tudo isto custa muito dinheiro, e acenam-
Os moradores já apanharam a festa do Benfica e estão as outras camionetas, mais os carros. Porque o nos com o “retorno” para a cidade e o país e com o
o barulho do Wonderland, que é o menos mau de Parque, apesar de ter um parque de estacionamento facto de o Tribunal de Contas estar atento
todos os acontecimentos, e festas do Parque Eduardo subterrâneo, é um parque de estacionamento. aos ajustes diretos, que são de milhões e têm tudo
VII. O Papa trará dez vezes mais gente e um aparato Prostíbulo e parque de estacionamento de camiões, menos transparência. A urgência determinou a
policial, mais as restrições de mobilidade, que tornam de camionetas, a combinação perfeita. No Parque violação da lei.
a vida das pessoas ainda mais difícil. Imagino que o passa-se, ou passeia-se o cão, ou atravessa-se, não se O que se pretende saber é de que modo, eu, moradora
Presidente da República, que, dizem os peritos, foi o fica. Não há ambiente. E o ar está irremediavelmente e habitante da cidade, vou beneficiar com o “retorno”.
autor da ideia de ter uma missa naquele cenário, nunca poluído pelos escapes dos monstros rodoviários, tanto Vão finalmente acabar com a prostituição licenciosa
use o Parque. Nem o conheça. Cascais fica longe. Isto mais que insistem em manter os motores ligados, e obscena? Com os insultos das prostitutas aos
não o afeta. não se percebe porquê. O Parque, como tantos outros moradores que ousam protestar? Vão limpar o Parque
Há anos que tenho a esperança de ver reabilitado lugares da cidade, presta um serviço a utilizadores do estacionamento gratuito? Vão fazer do pavilhão
o Parque Eduardo VII. A decadência do Parque, vindos de fora, não aos moradores. um lugar “cultural” decente com “eventos” que o
tendo sido durante anos um lugar noturno a evitar e Os moradores pagam a fatura, não são chamados a justifiquem? Vão arranjar os canteiros e torná-los
diurno cheio do que se configurava na época como exercer os direitos. O alto do Parque é também um menos decrépitos? Vão correr com as bancas de
um “tarado sexual”, mirones e pedófilos atentos estacionamento de camionetas, donde descem as toalhas com bordados da Madeira? Vão arranjar os
ao movimento adolescente do Liceu Maria Amália manadas turísticas, embasbacadas com a vista tão pavimentos e aprimorar os equipamentos? O Parque
Vaz de Carvalho, nunca foi uma prioridade dos bonita. Juntam-se a este folclore as barracas e bancas vai deixar de ser um lugar de feira? Um terminal
presidentes da Câmara. Apesar de um deles, Jorge que vendem toalhas com “bordados da Madeira” e suburbano?
Sampaio, morar ali. João Soares teve a boa ideia de bugigangas para turista ver. A desolação estética está Estou certa de que não. O Parque Eduardo VII logo
construir o belo Jardim Amália, com a inspiração de completa. Portugal parece um lugar sem leis, onde depois da missa será uma desolação abandonada
Gonçalo Ribeiro Telles, e teve a má ideia de construir servir o estrangeiro é a única motivação espiritual. E e pisada, cheia de garrafas de plástico, com cheiro
o monumento ao 25 de Abril do Cutileiro, uma ganhar algum. pestilento junto das casas de banho.
aberração estética que não foi possível eliminar. Em Os passeios estão rebentados pelas raízes das árvores, Espera-se apenas, modestamente, que em setembro o
todo o caso, gratos pelo Amália. os pavimentos estão velhos, o estado dos jardins é tenham retornado ao estado anterior. E até sobre isto
O Jardim Amália é um sucesso, sempre cheio de gente deficiente. Nenhumas melhorias na jardinagem. Não tenho dúvidas.
na relva ou na esplanada, e muito mais atraente do há praticamente flores. O Pavilhão Carlos Lopes é mais Fugimos. Pagamos. b
que a ladeira rodeada de árvores que é o Eduardo VII. um equipamento “cultural” fechado, que serviu para o
O problema não está na ladeira. Se a configuração Partido Socialista fazer lá a almoçarada de aniversário.
do Parque, em subida e descida, em rampas, não é Claro que os automóveis e motoristas do Partido
a ideal, e se os canteiros, sebes e árvores parecem Socialista estacionaram no Parque, como quiseram,
desesperadamente secos e amarelados com a falta contribuindo para a poluição e o desarranjo. Afinal,
de chuva, nada disto é responsável pela desolação são eles que mandam.
que pode ser o Parque, exceto em pequenos guetos O contraste do Parque Eduardo VII com um parque
do interior, como a Estufa Fria e o diminuto parque inglês é total. Hyde Park recebe concertos e grandes
infantil. A desolação tem a ver com outros problemas. espetáculos, mas está impecável. Bem tratado, com
O maior de todos é ser o Parque o que nunca deveria a relva verde, as flores e a limpeza, e uma circulação
ser. Uma subcultura criminosa e um lugar de tráfico de gente que não é afetada pela circulação automóvel. / CLARA
humano. A desregulação da prostituição em Portugal,
não é ilegal nem antes pelo contrário, é mais uma das
Os ingleses respeitam um espaço verde. Nós não nos
respeitamos. Usamo-lo para outras coisas. FERREIRA
nossas apreciadas “zonas cinzentas”, faz do Parque
um prostíbulo diurno e noturno. Para todos os gostos,
Passei esta semana no Parque, novamente invadido
por um “grande evento”. O aparato é o de um grande
ALVES
de um lado prostituição masculina, do outro feminina. concerto rock, se os Metallica viessem tocar
As ruas laterais ao Parque, parte do Parque, atraem ao Parque não seria diferente. Nada tenho
toda a espécie de arruinada fauna humana, que desliza contra a vinda do Papa e o concerto/missa,
colada às veredas sem ser incomodada. De noite, as mas é impossível evitar um sobressalto
discussões e lutas entre prostitutas pelo “território”, de horror ao ver o desfile de casas de
com os proxenetas à mistura, são ouvidas pelos banho em contentores que estavam a ser

E 3
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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2648 | 28/JULHO/2023

PEDRO LOURENÇO
fisga +E Culturas Vícios

47
Páginas de verão
9 | Apps de encontros
O bilhetinho a pedir namoro
já está há muito no fundo da
gaveta. Agora, é o telemóvel
quem dita as regras: para a
esquerda ou para a direita
22 | Os sikhs no Sul
Do Punjab para o Algarve,
são exemplo de uma
integração de sucesso
em tempos de cólera
para as comunidades
54 | Cinema
O documentário do italiano
Gianfranco Rosi segue
o Papa Francisco
por esse mundo fora
65 | Frescura interior
A magia das hortas
tecnológicas
68 | Receita
Por João Rodrigues
Sugestões de livros
hindus em Portugal 56 | Televisão
para todos os gostos, 12 | O Que Eu Andei A nova colaboração 69 | Restaurantes
recheados com gula Para Aqui Chegar 28 | Tempos de guerra entre Ed Solomon e Steven Por Fortunato da Câmara
e prazer, política, Um currículo visual Se a invasão da Ucrânia Soderbergh cruza as vidas
de Carles Puigdemont parece ter-se iniciado de um extenso grupo 70 | Vinhos
romance e história. há demasiado tempo, de personagens na Nova Por João Paulo Martins
São 37 propostas de 14 | Planetário os 70 anos do conflito entre Iorque atual
Graças a quem? 72 | Recomendações
leitura para o tempo as Coreias fazem refletir De “Boa Cama Boa Mesa”
Por João Pacheco a essência da paz 58 | Música
quente de ócio Lloyd Cole conta histórias
18 | Ideias 74 | Design
34 | Património em com o charme de um Por Guta Moura Guedes
A próxima rutura imagens A digitalização crooner
na criação de animais da história do cinema 76 | Moda
português como forma 62 | Teatro & Dança Seis Por Gabriela Pinheiro
de preservação da memória artistas partilham urgências
FICHA em “All Tomorrow’s Parties”, 78 | Tecnologia
TÉCNICA 40 | Manuel Clemente dos SillySeason Por Hugo Séneca
Em tempo de despedida
Diretor e na véspera do evento que 63 | Exposições Estampas 81 | Passatempos
João Vieira Pereira japonesas flutuam na Por Marcos Cruz
expõe a dimensão da Igreja,
Diretor-Adjunto o ainda cardeal patriarca fala Fundação Gulbenkian
Miguel Cadete Expressinho
mcadete@impresa.pt do que custa e do que dói
Dias ao ar livre
Diretor de Arte
Marco Grieco
Editor
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
Luís Guerra
CRÓNICAS
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 16 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 46 Os Cadernos e os Dias por Gonçalo M. Tavares | 64 Fraco Consolo por Pedro Mexia
Mário Henriques (Desenho) 80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: TIAGO MIRANDA

E 6
FRANCK MULLER VANGUARD SLIM

MANUFATURA. PRECISÃO.
ESPESSURA PERFEITA.
DIVERSÃO
DIVER
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SÃO P
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PARA
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ARA T
TODA
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ODA A F
FAMÍLIA
AM
AMÍLIA

JOGOS
GO SORTIDOS!!
T

DE 4 A 18 DE AGOSTO
DESTACÁVEL JOGOS SORTIDOS l GRÁTIS COM O EXPRESSO

MAIS DE 40 PÁGINAS COM MUITOS PASSATEMPOS | DENTRO DA REVISTA DO EXPRESSO


PALAVRAS CRUZADAS | SUDOKU | CAÇA-PALAVRAS | CRIPTOCRUZADAS | PALAVRAS QUEBRADAS
| MAXICRUZADAS | CRUZADAS COM IMAGEM | JOGOS JÚNIOR | DESCUBRA AS DIFERENÇAS
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Queres namorar comigo?


Swipe left ou right
JÁ LÁ VAI O TEMPO DO BILHETINHO COM UM QUADRADINHO PARA O SIM E OUTRO PARA O NÃO.
ATUALMENTE, O MUNDO DOS ENCONTROS ACONTECE TAMBÉM ONLINE E A RESPOSTA É DADA DESLIZANDO,
NO TELEMÓVEL, PARA A ESQUERDA OU PARA A DIREITA, OU DE DIVERSAS OUTRAS MANEIRAS.
ENCONTRAR A PESSOA CERTA PODE MESMO ESTAR À DISTÂNCIA DE UM CLIQUE
TEXTO JOANA MAGALHÃES INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

E 9
fisga

S
wipe, match, ghosting ou catfishing são termos de comunicação. No entanto, sublinha, “ainda
AS 10 PLATAFORMAS MAIS UTILIZADAS
a que os utilizadores de plataformas de existe algum estigma face a estas aplicações e
EM TODO O MUNDO
encontros, sejam aplicações para telemóvel aos seus utilizadores”. Segundo a especialista,
Em milhões de downloads
ou páginas de internet, estão já habituados. Dizem o uso destas apps está associado a “alguém
os números que o “rei dos encontros” é o Tinder, 1 Tinder 530 que não tem habilidades sociais ou que não é
com mais de 530 milhões de downloads em todo 2 Bumble 100 capaz de conhecer pessoas noutros contextos”.
o mundo. Mas antes de ir aos dados quisemos 3 Badoo 100 A somar a isso, existe ainda uma narrativa
perceber o que é esta tecnologia, como se utiliza e 4 Happn 100 de que as plataformas de encontros “são só
porque tem ganho cada vez mais utilizadores. 5 Ashley Madison 80 para ter relações sexuais e não para encontrar
Há largos anos que Rita Sepúlveda, 42 anos, 6 Plenty of Fish (POF) 50 relacionamentos duradouros”.
estuda relacionamentos e plataformas digitais e 7 OkCupid 50 No caso concreto de Portugal, a desmistificação
sobre as apps de encontros diz que o principal 8 Grindr 30 desta forma de comunicar pode estar a ser travada
objetivo é conhecer pessoas novas, o que pode 9 Hinge 23 “pela nossa forma de ser, estar, as nossas tradições
acontecer através dos mais diversos tipos de 10 Eharmony 10 e a nossa cultura”. Para as gerações mais velhas,
serviços, com diferentes regras de utilização. a forma habitual de conhecer pessoas era através
“O utilizador tem de criar um perfil — que no dos amigos ou no contexto escolar e profissional,
PERFIL DE UTILIZADORES DE PLATAFORMAS
mundo ideal é fidedigno àquilo que a pessoa é estratégias que se mantêm atualmente, mas
DE ENCONTROS EM PORTUGAL
e tem informação sobre si, desde as fotografias com mais uma camada, que é a tecnologia. Em
à biografia — e a partir daí poderá acontecer alguns casos, este choque de gerações pode
PERFIL
uma combinação com outras pessoas, um Na maioria HOMENS
levar casais a ocultar a amigos e familiares mais
match, que pode originar uma conversa e depois IDADE velhos a sua história ou até mesmo a alterá-la.
um encontro presencial, ou não”, explica, em Entre os 25 e os 35 anos Mas Rita Sepúlveda alerta que a mudança passa
entrevista ao Expresso, a coordenadora do UTILIZAM precisamente por, nessas situações, “se ter vontade
Dating Lab do Centro de Investigação e Estudos Várias plataformas e à vontade para dizer abertamente que se utilizam
de Sociologia (CIES) e investigadora da ICNOVA MOTIVAÇÕES MAIS COMUNS estas plataformas”.
(Universidade Nova de Lisboa). Conhecer pessoas novas,
O perfil pode ser mais ou menos extenso, ter relações sexuais e PERFIS E SEGURANÇA
consoante o que é exigido pela própria aplicação. desenvolver um relacionamento Na sua maioria homens, com idades entre os 25 e os
Desde as características de personalidade, físicas, 35 anos, motivados pela expectativa de conhecer
gostos pessoais e hobbies, passando pela orientação FONTE: RITA SEPÚLVEDA, AUTORA DO LIVRO “SWIPE, MATCH, DATE” alguém, ter relações sexuais e desenvolver um
religiosa e sexual, são incontáveis as formas como relacionamento. Assim é o perfil do utilizador em
cada pessoa se pode apresentar no mundo digital. Portugal. De acordo com a investigadora, na sua
É até possível definir um raio de ação, em termos GLOSSÁRIO maioria utilizam vários serviços, que acabam por
de distância, para a procura de pessoas. Para o ser mais um meio para conhecer pessoas, além
utilizador mais rigoroso, a aplicação escolhida SWIPE Movimento de deslizar que permite, dos formatos ditos tradicionais. À semelhança
pode ser, já em si, uma pré-seleção dos perfis em muitas das plataformas, passar de perfil do mundo, também os portugueses preferem as
que vão ser apresentados. Isto porque existem em perfil de utilizadores. aplicações Tinder e Bumble.
plataformas generalistas, como o Tinder, o Bumble Mas seja qual for a plataforma escolhida, se
ou o Badoo, mas também outras opções dirigidas, MATCH Ter uma combinação com falamos do mundo digital, temos de falar de
outra pessoa numa plataforma.
por exemplo, a homossexuais, como é o caso do segurança e também nessa área há aspetos a ter
Grindr. em atenção na hora de iniciar uma relação online.
DATE Ir num encontro.
“Seja qual for o serviço na internet existe um
ESTIGMA PERMANECE GHOSTING Deixar de comunicar, conjunto de ações que temos de ter em conta,
De acordo com a página de internet www. sem razão aparente, com a outra pessoa. como não partilhar dados demasiado pessoais”,
datingadvice.com, que se dedica aos afirma a investigadora. E acrescenta: “A questão
relacionamentos online, o Tinder é, com um CATFISHING Quando nos referimos a alguém que, é que nas plataformas de encontros nós estamos
grande avanço, a aplicação com maior número no contexto das plataformas de encontros, cria um disponíveis para conhecer outras pessoas e isso
de downloads em todo o mundo — 530 milhões perfil para enganar outra pessoa. pode abrir espaço a alguma insegurança.”
—, à qual se seguem o Bumble e o Badoo, ambos Para isso, há algumas precauções que devem
com 100 milhões cada. Ainda no ‘top 10’ estão as ser tomadas, como marcar encontros em locais
aplicações Happn (100 milhões de downloads), recorreram a estas plataformas nesse período, públicos, ter transporte próprio na ida e regresso
Ashley Madison (80 milhões), Plenty of Fish não necessariamente para marcar encontros e comparar o perfil da plataforma de encontros
(50 milhões), OkCupid (50 milhões), Grindr presenciais, mas para terem companhia ou por com o de outras redes sociais. Estes são alguns
(30 milhões), Hinge (23 milhões) e finalmente entretenimento. dos conselhos que podem ser encontrados no
Eharmony (10 milhões). “Por outro lado, a referência a estas plataformas livro “Swipe, Match, Date”, da autoria de Rita
Não sendo possível delinear dados concretos para está cada vez mais presente, se há alguns anos Sepúlveda, lançado em fevereiro deste ano. As
Portugal, Rita Sepúlveda aponta a certeza de que elas eram vistas como uma situação de recurso, plataformas de encontros e os seus utilizadores
o número de utilizadores tem vindo a crescer. agora são vistas como algo possível de ser foram o objeto de estudo da investigadora durante
A pandemia mantém o estatuto de “suspeita utilizado”, refere, dadas as inúmeras menções o doutoramento em Ciências da Comunicação,
do costume” e acredita-se que muitas pessoas em programas de rádio, jornais e outros meios terminado em junho de 2021.
Depois, surgiu a oportunidade de transformar
um conjunto de estudos em livro, não dedicado
PARA AS GERAÇÕES MAIS VELHAS, A FORMA HABITUAL DE à Academia, mas com uma linguagem dirigida
CONHECER PESSOAS ERA ATRAVÉS DOS AMIGOS OU NO ao público em geral. O título faz alusão à gíria
utilizada nesta área do mundo digital e, ao mesmo
CONTEXTO ESCOLAR E PROFISSIONAL, ESTRATÉGIAS QUE SE tempo, espelha o objetivo destes serviços: procurar,
MANTÊM, MAS COM MAIS UMA CAMADA: A TECNOLOGIA combinar e sair para um encontro. b

E 10
fisga
O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL

Carles Puigdemont
Há sete anos em Bruxelas para fugir à Justiça espanhola — que o acusa de desobediência e desvio de fundos —, menos
influente do que já foi no independentismo catalão, o ex-presidente do governo autonómico pode tornar-se crucial
para a formação do próximo Governo. A atual coligação entre socialistas (PSOE) e esquerda radical (Somar) precisa
pelo menos da abstenção do seu partido, Juntos pela Catalunha, para assegurar a recondução. / PEDRO CORDEIRO

1962
Berço e bolos
Nasce a 29 de dezembro em Amer
(Girona), segundo de oito irmãos de
família com simpatias franquistas e 2023
antepassados autarcas. Sonha ser Desaire e esperança
astronauta, sem se interessar pela
pastelaria fundada pelos avós. No início deste mês o Tribunal
de Justiça da UE nega-lhe
a imunidade a que aspirava
enquanto eurodeputado (eleito
1975 em 2019). Após as legislativas
Padre escandalizado espanholas de domingo, e
mesmo tendo perdido um
Ainda o caudilho vivia quando
deputado, os votos do seu
o pequeno Carles, no colégio
partido, Juntos pela Catalunha,
interno religioso de Santa Maria
podem ser cruciais para Sánchez
de El Collell, escreveu na bata
se manter no poder. Avisam que
“Queremos o Estatuto” (de
não será “sem receber nada em
autonomia, leia-se). E explicou
troca”. A justiça espanhola pediu
exatamente o que pretendia
a sua prisão na segunda-feira.
dizer ao padre incrédulo que
Indulto à vista?
com ele ralhou.

2016
130º Molt
Honorable
President
1981 Desentendimentos entre
Militância convicta nacionalistas afastam o
presidente catalão Artur
“Pugdi” adere à Crida a la Mas e abrem caminho a
Solidaritat, organização Puigdemont. Compara o
cultural catalã nascida cargo a uma “cadeira elétrica”.
nesse ano. Já militava na No ano seguinte promove o
Juventude Nacionalista da
ANA BAIÃO

referendo ilegal, proclama a


Catalunha, ramo juvenil da independência durante 10
Convergência Democrática segundos e é afastado pelo
do presidente autonómico primeiro-ministro Mariano
Jordi Pujol. Foi fundador Rajoy, que suspende a
da respetiva secção em autonomia da Catalunha.
Girona.
2000
Amor ortodoxo
Casa-se com a
jornalista romena
Marcela Topor, que
conhecera num festival
1982 de teatro amador. A
Jornalista encartado
cerimónia segue o rito 2006
ortodoxo professado
Entra ao serviço do jornal independentista pela noiva. Virão a ter Entrada na política
“El Punt”, onde chegará a redator-chefe. duas filhas, Magalí (16 Torna-se deputado pela Convergência. Fica
Antes criara a revista “Espelt” (Lança). O anos) e Maria (13). no Parlamento regional até 2011, tornando-se
percurso jornalístico começou aos 16 anos em seguida presidente da Câmara de Girona
no jornal regional “Los Sitios”, passando (conquistada aos socialistas, que a dominavam
pela revista “Preséncia” e pelo “Diari de há 32 anos), cuja Casa de Cultura chefiara
Girona”. A paixão pelo ofício fê-lo deixar a anos antes. Reeleito em 2015, presidiu à
meio o curso de Filologia Catalã. Associação de Municípios Independentistas.

E 12
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

LONDRES — MELBOURNE

Olhos
nos olhos
O chão é de terra, a imagem vive a preto e branco e este poderia
ser um retrato duplo feito pelo fotógrafo alemão August Sander
(1876-1964), tirando alguns pormenores atuais como os sapatos.
Não sendo uma fotografia de Sander, tem uma abordagem parecida.
As duas protagonistas são meninas turcas e estão olhos nos olhos
JEAN-BAPTISTE CARHAIX/GALERIE VRAIS RÊVES

com a fotógrafa britânica Vanessa Winship, que viveu quatro anos


na Turquia. Esta fotografia faz parte de uma série de retratos feitos
na Anatólia por Winship, de forma sistemática, sempre à mesma
distância da máquina fotográfica de grande formato. São pares
de raparigas em idade escolar, todas retratadas com os uniformes
obrigatórios, acompanhadas por uma irmã ou por uma amiga
próxima, ou ainda sozinhas quando assim escolhessem. Talvez por a
roupa ser quase igual, saltam à vista as expressões faciais, as mãos,
os sapatos, a paisagem envolvente. Vivem num bairro pobre? São
irmãs ou amigas? Será que alguma vez usaram aquela tabela de
basquetebol? O que gostariam de ser quando forem grandes? E
aquela pena que vemos a ser pisada pela rapariga mais nova aparece
ali por acaso? A Turquia está longe de ser o paraíso terreno da
liberdade de expressão, mas há uma semente de otimismo sempre PARIS — LISBOA

Graças a quem?
que mais meninas estudarem, seja em que país for. A autora deste
retrato tem 63 anos e é uma das 12 pessoas selecionadas este
ano para nomeação ao Prix Pictet. Trata-se de um dos prémios de
fotografia mais importantes do mundo, que entre outras benesses
inclui como prémio pecuniário 100 mil francos suíços, o que equivale
a 91 mil euros. A vitória será anunciada a 29 de setembro, quando
for inaugurada no Victoria and Albert Museum uma exposição Há por aí demasiados buracos nas quilómetros de papel para escrever
de fotografias dos 12 finalistas, que ficará até 22 de outubro em estradas e ainda mais injustiças. Ou leis aperfeiçoantes e muitas toneladas
Londres. A seguir, esta seja, se tiverem a desfaçatez de existir, de lenha para alimentar fogueiras
exposição passará por as deusas e os deuses terão pouco punitivas e purificadoras. Serve esta
mais de 12 moradas, tempo para debater temas como a introdução para explicar uma espécie
em vários países. Antes orientação sexual e as preferências de Errata: onde se lê Deus, leia-se
de ser anunciado em e praticâncias dos habitantes da agora Toda-Esta-Complicação. A
Londres se ganha Terra. Já se estivermos a falar sobre palavra de ordem “Sou Gay, graças
ou não o Prix Pictet religiões, sobre partidos e sobre a Deus” foi assim fotografada por
deste ano, o trabalho outras coletividades, há muito quem Jean-Baptiste Carhaix em outubro de
de Vanessa Winship tenha tempo e vocação de sobra para 1983, junto ao sorriso de protesto de
pode ser conhecido na definir quais são as opções corretas Sister Sadie the Rabbi Lady. A imagem
Austrália, na exposição na sexualidade alheia. É frequente faz parte da série de Carhaix “The
VANESSA WINSHIP/AGENCE VU

coletiva “Walking que os mandamentos ditados para Sisters of Perpetual Indulgence” (As
Through the Darkness” a sexualidade das outras pessoas Freiras da Indulgência Perpétua), feita
(Andando Através da sejam promovidos como emanados em São Francisco ao longo de dez
Escuridão), até 10 de de uma ou várias entidades divinas. anos. E o sorriso do ativista seria mais
setembro no Centre E, quase sempre, é suposto as opções de desafio e performance do que de
for Contemporary ditas corretas serem seguidas por alegria, porque o contexto era o início
Photography, em todos os outros condóminos do da pandemia de sida. Sim, há outras
Melbourne. planeta. Assim se gastaram muitos fotografias de Carhaix que têm tudo a

E 14
ver com a morte, protagonizadas por FLASHES FRANKFURT
ativistas das Freiras da Indulgência
Perpétua. Tempo para fazer uns
minutos de silêncio pela longa
O pagamento
atitude do Vaticano contra o uso de
preservativos. A História não abranda.
E, até 13 de novembro, esta imagem Era uma pintura sacra e foi
de um homem gay agradecido faz encomendada em 1507 pelo
parte de uma seleção de mais de comerciante de Frankfurt Jakob Heller.
500 obras de arte e documentos Destinava-se a uma igreja dominicana
que compõe em Paris a exposição onde Heller seria sepultado. Só que

HISTORICAL MUSEUM FRANKFURT/HORST ZIEGENFUSZ


“Over the Rainbow” (Acima do VIENA às tantas o artista que aceitara a
Arco-Íris), no Pompidou. As peças Os corpos ideais presentes encomenda apercebeu-se da injustiça
mais antigas são do início do século na arte de Michelangelo do pagamento, por ser demasiado
XX e há por aqui criações de artistas (1475-1564) são o ponto de baixo para compensar os gastos com
como Jean Cocteau, Brassaï, Jean partida da exposição “Mi- materiais, além do trabalho do próprio
Genet ou Florence Henri. E também chelangelo und die Folgen” e dos ajudantes. O artista contratado
de Man Ray, que por encomenda de (Michelangelo e as Conse- era Albrecht Dürer (1471-1528), que
Jean Cocteau fotografou em 1926 o quências), que estará de 15 depois de muitos esforços lá acabou
travesti e trapezista norte-americano de setembro a 14 de janeiro por conseguir um aumento do valor a
em Viena, no Albertina.
Barbette Vander Clyde Broadway, receber, apesar de Heller se mostrar
Numa evolução até ao início
mais conhecido como Barbette. Antes contrariado e de Dürer continuar a
do século XX, haverá tam-
da fama, o travestismo começara bém corpos vistos por outros achar aquele valor demasiado baixo.
como solução de recurso. Barbette artistas fundamentais como Segundo o jornal britânico “The
respondeu a um anúncio de jornal Dürer, Rembrandt, Rubens, Guardian”, esta história será agora
e travestiu-se para substituir uma Klimt e Schiele. contada em detalhe num novo livro
trapezista em falta, nas Alfaretta a ser lançado pela Oxford University a posteridade salvou-se esta cópia
Sisters. Depois, manteve o número Press, em agosto. Chama-se “Dürer’s que fora feita por Jobst Harrich em
e passou a atuar assim, vestido Lost Masterpiece” (A Obra-Prima 1614, para a mesma igreja. Pode agora
de mulher. No final da atuação, Perdida de Dürer) e foi escrito por ser vista no Historisches Museum
costumava tirar a cabeleira para que Ulinka Rublack, que é professora em Frankfurt e é provável que não esteja
todos vissem que estava travestido. Cambridge. à altura do original. Mas o que importa
Fotografado por Man Ray, num dos Anos depois da morte do comerciante é saber que Dürer decidiu incluir-se na
retratos Barbette aparece ao espelho, e do artista, a pintura foi vendida pintura. Lá está o autor, em protesto,
de tronco nu, com os lábios pintados pela ordem religiosa. E quase dois de pé, junto à linha do horizonte. Talvez
e uma cabeleira loira. No horizonte séculos depois da morte de Dürer, o o comerciante Jakob Heller contasse
imaginário desse retrato que dá ares AMESTERDÃO original acabou por desaparecer num com um lugar no Céu, mas sem a
de autorretrato, Man Ray incluiu uma Esta Torre de Babel foi pinta- incêndio em Munique, em 1724. Para bênção de Albrecht Dürer.
imagem mais pequena de Barbette a da por Pieter Bruegel, o Ve-
dançar em cena, em equilíbrio sobre lho. E costuma estar em Ro-
o trapézio. terdão, no Museum Boijmans
Nem sempre é possível o equilíbrio Van Beuningen. Mas como
entre religião e amor, para quem o museu está em obras, uma
vive uma sexualidade fora da norma. parte da coleção pernoitará
entre 29 de setembro e 14 de PHOTO
E são muitos os tristes exemplos na
janeiro em Amesterdão, no MATON
ficção e na História, em qualquer
Rijksmuseum. São mais de 90
parte do mundo. O filme recente
obras, numa Torre de Babel
de Darren Aronofsky “A Baleia” formada por artistas como
(2022) tem também outros assuntos Edgar Degas, Yayoi Kusama,
importantes como a solidão, mas Edvard Munch, Vincent van
há um drama atrás do aspeto mais Gogh, Hieronymus Bosch,
visível do protagonista. Tem tudo Cindy Sherman, Salvador Dalí
a ver com a perseguição e com e Pablo Picasso.
o sofrimento vividos por muitas
pessoas, graças a religiões que se
ocupam da sexualidade das outras NOVA IORQUE
pessoas. Mais divertidas são as Se desenhar, beba? Não sei,
freiras do filme de Pedro Almodóvar mas sugiro moderação. A 17
“Negros Hábitos” (1983), que de agosto, o “Drink and Draw”
podem agora ser úteis à ginástica (Bebe e Desenha) terá copos,
COLINE JOURDAN

de preparação, no caso de se estar modelos, a orientação de


por Lisboa durante a Jornada uma artista visual e a música
de um DJ. Entre as 19h e as
Mundial da Juventude, sem sofrer
21h30, este início de noite
de catolicismo. Este filme genial de
será dedicado ao desenho,
Almodóvar foi estreado em Espanha no jardim de esculturas do
no mesmo ano em que Jean-Baptiste Brooklyn Museum, em Nova Este rio contaminado foi fotografado há quatro anos em Espanha, por
Carhaix fotografou assim este Iorque. Os bilhetes incluem Coline Jourdan. Agora, fará parte em Berlim da exposição “Image Ecology”
ativista, com palavras de ordem e de uma bebida e uma visita (Ecologia da Imagem), entre 16 de setembro e 18 de janeiro, no C/O Berlin.
agradecimento. Sim, já se sabe que noturna à exposição “Africa Com esta exposição será lançado o novo prémio anual de fotografia After
Deus está nos detalhes. b Fashion”. Com ou sem gelo? Nature, Ulrike Crespo Photography Prize. Vai um mergulho?

E 15
O MITO LÓGICO

O FIM DA ESCRITA MANUAL

O
DENTRO DE POUCO TEMPO, UMA FOLHA DE PAPEL E UMA LAPISEIRA SERÃO
DOIS OBJETOS OBSOLETOS E NINGUÉM SABERÁ O QUE FAZER COM ELES
título do jornal inglês era o seguinte, o papel usado, as expressões eram formas de manifestar distinção de
e dá-me muito jeito para estabelecer classe e estatuto, mas tal como na missiva de amor (louco, perdido,
o tom a esta crónica: “Homem não descoberto, adormecido, morto, não correspondido), as formas como as
consegue roubar banco porque letras vão correndo rápidas ou lentas, como a caneta se vai afundando
funcionários foram incapazes de no papel, saída das margens, tremendo aqui e ali, são reflexo de uma
perceber a letra com que escreveu meteorologia interior que obviamente os emojis do digital não dão.
nota a anunciar o assalto.” Exato. É A escrita à mão era uma linguagem por si. Mas o problema maior de
um problema que não teve em conta. retirar a capacidade de ler manuscritos a todas as gerações futuras é que
Está a perder-se a capacidade de ficarão incapazes de aceder ao passado. Ah, sim, claro, a inteligência
escrever à mão. E não só de escrever artificial fará isso por eles.
como de entender a própria escrita A assinatura também está a acabar. Criar a sua própria assinatura era
cursiva (manual). Sem grandes um drama identitário que se apresentava na adolescência. Na primeira
alarmismos, podemos dizer que é uma questão de tempo para que as vez em que fui fazer o Bilhete de Identidade, o local para assinar era
novas gerações deixem mesmo de saber fazer uso de um instrumento de muito estreito e alto, e aquilo não saiu como eu queria e passei a vida
escrita para estruturar um pensamento, ou de escrever uma nota com toda a repetir esse momento falhado. Tive sempre o drama de não
um pedido de auxílio (ou de assalto), ou tenham sequer criado aquilo conseguir imitar de forma convincente a minha própria assinatura
que chamamos de “assinatura”, um obsoleto rabisco apenas repetível nos cheques, e mesmo estando no meu banco, na minha agência, à
pelo próprio e que serve de prova indesmentível de que aquela pessoa e frente de funcionários que até me conheciam, colocava-se uma dúvida
não outra do universo colocara a sua honra no documento. quanto à minha existência por causa da assinatura que me tinha visto
Nos EUA, há muitos estados que estão a desistir de ensinar muito mais fazer. “Tente lá fazer outra vez porque senão ‘eles’ não aceitam.” Terei
do que o básico da escrita cursiva às crianças, sendo que passam dos mudado? Estarei outro? Que diz a minha letra? Convivemos anos
ecrãs com bonecada para a escrita em letras já em formato digital, dado com a pseudociência da grafologia, que alegadamente conseguia ler
não terem tempo a perder com o ensino da escrita manual. Assumem determinados traços da personalidade da pessoa através da letra.
que podem arriscar criar já uma geração que eventualmente será Tudo treta. Fiz o meu ensino primário durante a euforia revolucionária
incapaz de usar um pedaço de papel e uma lapiseira. Estive a ler uns no Alentejo. A minha caligrafia reflete a anarquia desleixada desses
fóruns de jovens que se insurgem por terem de aprender a escrever à tempos — impercetível e destrutiva —, o que teve custos quando os
mão, algo que não usam para nada nem lhes serve para coisa alguma. professores universitários não conseguiam entender a minha letra:
Em Portugal, do pouco que sei, há um paradoxo. Os miúdos passam a aprendida nos tempos do PREC versus a dos que tinham estudado
o tempo a exprimir-se de forma digital, mas nos testes e exames na bolha dos colégios lisboetas. Mas defendo que saber escrever uma
é-lhes exigido formular ideias, pensamentos e teorias em escrita frase num papel com um lápis não se deva tornar algo tão obsoleto
manual. E aqui temos uma questão. A forma como se pensa quando se como ver um homem a enviar um telegrama. Se retirarem às crianças a
escreve num computador ou em escrita cursiva não é completamente capacidade de ler um texto manuscrito e de um dia escreverem — quem
idêntica. Caprichos do cérebro. Recentemente, concluiu-se através de sabe — uma carta de amor daquelas desesperadas, de dor de corno, irão
ressonâncias magnéticas — e ao arrepio do “ar dos tempos” — que há tirar-lhes a possibilidade de vivenciar parte do mundo que, escrevendo,
efetivamente uma “letra feminina” e uma “letra masculina”, dado que nos fez como somos. Muitas vezes esborratados, riscados por cima,
ativam áreas diferentes do cérebro. Lá se foi a teoria de que as diferenças impercetíveis: nós. b
de género na caligrafia eram uma questão cultural ligada à forma como lpnunesxxx@gmail.com
ensinavam a escrita aos meninos e às meninas.
Sendo dos que viveram metade da vida de forma analógica e
outra metade de forma digital, consigo por vezes fazer uma ponte.
Ou pensar que sim. (Pode ser um erro: um centauro não tem
necessariamente as melhores qualidades de um homem e de um
cavalo.) Efetivamente, há certo tipo de sínteses mentais que só
consigo plasmar no papel. Se for uma questão de discorrer de forma
argumentativa, o digital serve-me. Mas se tiver de estar a ver a big
picture, não há nada mais eficaz do que o papel e uma caneta. Há um
processo de formação do pensamento em que a conexão psicomotora
/ LUÍS
entre o cérebro e a mão e o traço e o tamanho, forma, intensidade PEDRO
da caligrafia são emanações da luta interior. E isso não consigo que
o computador me dê. Só consigo pensar nessas coisas com papel e
NUNES
caneta. Talvez seja eu (não é por acaso que há quem diga que não
percebe nada do que digo).
Mas alertam os especialistas que manuscritos como as cartas,
nomeadamente as cartas de amor, não eram só conteúdo, mas uma
dança de nuances de escrita. Não vou aqui discorrer como a caligrafia,

E 16
video

LAGOS
ALGARVE | PORTUGAL
IDEIAS

A PRÓXIMA RUTURA
NA CRIAÇÃO
DE ANIMAIS
SE AS ALTERAÇÕES DRAMÁTICAS ANUNCIADAS PELOS RECENTES
DESENVOLVIMENTOS NA PRODUÇÃO DE CARNE E DE LATICÍNIOS SE
VERIFICAREM, A MAIOR PARTE DA SUPERFÍCIE TERRESTRE BENEFICIARÁ,
E O PESCADO CELULAR PODERÁ SALVAR OS OCEANOS

TEXTO PETER SINGER PROFESSOR DE BIOÉTICA


NA UNIVERSIDADE DE PRINCETON

U
m dia, poderemos olhar para 2023 como o ano dificulta a digestão do leite nalgumas pessoas, e
quando se tornou visível que a gigantesca indústria que também está isento de colesterol, antibióticos
da criação de animais para alimentação caminhava ou hormonas de crescimento.
no mesmo sentido que a indústria que, durante a A Remilk afirma que os seus laticínios são idên-
maior parte do século XX, dominou a forma como ticos em sabor, textura e custo aos laticínios tradi-
gravámos e armazenámos imagens. Será este ano o cionais, apesar de usarem apenas 1% do solo e 5%
equivalente, para a criação de animais, a 1989, al- da água, e de emitirem apenas 4% dos poluentes
tura em que foi lançada a primeira câmara digital (as vacas são grandes emissores de metano, um gás
destinada ao grande público? com um efeito de estufa extremamente potente).
Existem sinais de que isso poderá ser verdade, Se isso não for motivo suficiente para experimen-
a começar pela aprovação do Ministério da Saúde tar o produto, considere que a produção de laticí-
de Israel, em abril, de um laticínio que não provém nios sem vacas também elimina a prática corrente
das vacas ou de outros animais em lactação. O fa- de todos os anos inseminar vacas e de lhes retirar
bricante, Remilk, é uma empresa com uma missão os vitelos logo a seguir ao nascimento, para que o
ambiciosa: “criar laticínios que sejam uma versão leite fique disponível para os humanos.
muito superior de si próprios”. Um outro momento memorável ocorreu em ju-
Há 40 anos, a Genentech usou as então inovado- nho, quando o Departamento de Agricultura dos Es-
ras técnicas do ADN recombinante para criar bac- tados Unidos aprovou duas candidaturas indepen-
térias geneticamente modificadas, que produziriam dentes, uma da Good Meat, uma divisão da Eat Just,
uma insulina humana melhor e menos dispen- e a outra da UPSIDE Foods, para vender frango pro-
diosa que a insulina obtida a partir dos pâncreas duzido a partir de células de frango. Também aqui
de porco. De modo semelhante, a Remilk copia o não estão envolvidos organismos vivos, e a amostra
ADN de vaca em leveduras para que estas consigam original de células pode ser usada sem acrescentar
criar um produto que é, afirma a Remilk, idêntico nem mais uma morte aos mais de 70 mil milhões de
ao leite de vaca, mas que não contém a lactose que frangos abatidos todos os anos pela sua carne.

E 18
ALIMENTAÇÃO “Natureza Morta
com Carne”, de Claude Monet (1864),
Musée d'Orsay, em Paris

importante fórum de inovação tecnológica em Bei-


jing. O “Beijing Daily” noticiou que a tecnologia do
Centro cultiva células musculares de animais in vi-
tro e usa a impressão 3D para dar-lhes a forma de
bifes ou peito de frango, com um conteúdo nutri-
cional idêntico ao da carne de animais.
Mesmo que só uma parte desta I&D atinja os
seus objetivos, as consequências serão muito mais
significativas do que as da deslocalização da in-
dústria cinematográfica. Afinal, a criação de ani-
mais ocupa a maioria dos solos agrícolas do mundo
— nomeadamente, os terrenos para pastagem e os
terrenos usados para o cultivo de rações — e contri-
bui também de forma relevante para as alterações
climáticas. Se as alterações dramáticas anunciadas
pelos recentes desenvolvimentos na produção de
carne e de laticínios se verificarem, a maior parte
da superfície terrestre beneficiará, e o pescado ce-
lular poderá salvar os oceanos da exaustão de mui-
tos recursos piscícolas.
Como o consumo de carne continua a aumen-
tar quando os países se tornam mais prósperos —
DEAGOSTINI/GETTY IMAGES

sendo a China um caso exemplar — é desespera-


damente necessária uma forma mais eficiente para
produzir carne e outros produtos animais. Vaclav
Smil, uma autoridade mundial na alimentação, na
energia e no ambiente, enunciou cinco categorias
de “encargos inegáveis” provocados pela depen-
dência do cultivo de rações para animais. Incluem
as monoculturas para o cultivo de ração, que re-
forçam a erosão dos solos; a conversão ineficien-
Os EUA não foram os primeiros a aprovar a car-
ne celular, também conhecida como carne culti- É claro que se te de plantas em produtos animais, especialmente
no caso do gado; a geração de enormes volumes de
vada ou de cultura. O frango de cultura é vendi-
do em Singapura desde 2020, mas não tem conse- todas as pessoas resíduos animais concentrados que excluem a reci-
clagem adequada nos cultivos; as emissões de ga-
guido, até agora, concorrer com o preço do frango
produzido pelo método convencional de aglome- adotassem ses com efeito de estufa provenientes das rações e
do metabolismo animal; e as questões de bem-es-
rar dezenas de milhares de aves num barracão, de
as engordar durante 6 a 7 semanas, e a seguir de uma dieta de tar animal relacionadas com o tratamento de um
enorme número de animais confinados.
as abater. Mas com o mercado dos EUA de muito
maior dimensão agora a acenar, a esperança é que base vegetal, É claro que se todas as pessoas adotassem uma
dieta de base vegetal, poderíamos eliminar todos
as economias de escala reduzam o preço e expan-
dam a produção. poderíamos estes fardos e, como demonstra um relatório recen-
temente publicado, reduzir o risco de novas pande-
A investigação e desenvolvimento centrados
na carne de cultura são hoje um fenómeno global. eliminar todos mias. Apesar do aumento encorajador da alimenta-
ção de base vegetal, porém, não parece ser provável
A empresa holandesa Mosa Meat foi a pioneira, ao
apresentar um hambúrguer de cultura em 2013, e estes fardos e uma transição completa nos próximos tempos. Será
mais fácil persuadir as pessoas a evitar a carne de
ao prever que demoraria uma década para colocar origem animal se ainda puderem consumir carne
o produto no mercado. Essa previsão parece estar
correta, já que a Mosa abriu uma unidade produti-
reduzir o risco e outros produtos de origem animal com um sabor
idêntico aos produtos que conhecem, mas que não
va ampliada em maio e espera iniciar brevemente
vendas em Singapura, e noutros mercados à medi-
de novas obrigam a criar, a alimentar e a abater um animal
vivo. E isso alimenta a esperança de vermos bre-
da que for obtendo aprovação.
Em maio, o Centro de Investigação Abrangente
pandemias vemente o fim de uma indústria cruel, ineficiente,
destrutiva e perigosa. b
sobre Carne para Alimentação da China demons-
trou o seu interesse na carne celular durante um e@expresso.impresa.pt

E 19
COMUNIDADE Kala Singh, fundador e
presidente da Gurudwara de Albufeira,
calcula que haja 10 mil sikhs no Algarve

E 22
Os Singhs
do Algarve
Na vaga de imigrantes
indianos que têm chegado
a Portugal, são mais
conhecidas as situações em
que se veem explorados e as
condições degradantes em
que vivem. Mas também há
casos de sucesso. A forma
como a comunidade sikh,
proveniente do Punjab,
se está a integrar no Sul de
Portugal é um desses casos
TEXTO JOÃO MIRA GODINHO JORNALISTA
FOTOGRAFIAS RICARDO NASCIMENTO/STILLS

E 23
indiana apareceu entre as 10 maiores em Portugal

S
(na 9ª posição) no Relatório de Imigração, Fronteiras
e Asilo do SEF, foi em 2019, com 24.550 indivíduos.
No mais recente relatório, referente a 2022, já era a
quarta maior comunidade estrangeira no território
nacional, com 35.416 pessoas. À frente tem apenas
a brasileira (239.744), a britânica (45.218) e a cabo-
-verdiana (36.748). O mesmo documento revela que
os indianos foram os residentes estrangeiros que
mais aumentaram percentualmente em Portugal,
entre 2021 e 2022, com um crescimento de 17,1% (a
par com o dos brasileiros).
Abtar Singh, de 65 anos, terá sido dos primeiros
indianos a chegar nesta vaga. Também ele natural
do Punjab e igualmente sikh de religião, passou pri-
meiro por Inglaterra — onde diz que não gostou de
estar por sentir alguma arrogância dos britânicos
em relação aos estrangeiros — para depois se fixar,
em definitivo, em Albufeira. Estávamos em 2001 e
“só havia dois sikhs aqui”, lembra. Por isso, come-
çou a ser conhecido na cidade algarvia como Mister
Singh — explique-se que todos os homens da reli-
gião sikh têm Singh (que significa leão) como ape-
lido, da mesma forma, as mulheres são todas Kaur
(princesa).
entados na esplanada do Indian Palace 2, em Olhos Abtar, claro, vinha “à procura de trabalho, de
de Água, Albufeira, rodeados pelos empregados do uma vida melhor”, e tornou-se cozinheiro num res-
restaurante, Pargat Singh, 51 anos, e Ranjit Kaur, 49, taurante indiano. Hoje, 22 anos depois, mantém a
sorriem. A humildade é um dos símbolos e princí- profissão. E também o objetivo de melhorar a vida.
pios da identidade sikh, a religião que seguem, mas “Quero abrir o meu restaurante”, garante. Mas, com
será difícil não sentirem uma ponta de orgulho, no maior convicção, afirma: “Sinto-me português. Sin-
momento em que são fotografados para a reporta- to-me em casa em Albufeira e não penso voltar à Ín-
gem do Expresso. dia.” E explica a opção: “Aqui, quem quer trabalhar
Foi em 2006 que o — então jovem — casal aterrou arranja emprego e é bem pago.”
em Lisboa. Como quase todos os imigrantes, Pargat e Se todos os imigrantes com quem o Expresso fa-
Ranjit, naturais do Punjab indiano, traziam na mala lou garantem que chegaram à Europa, e a Portugal,
pouco mais do que um sonho de futuro. Passados 17 de forma legal — viajaram de avião e obtiveram o
anos, são proprietários de três restaurantes no Al- visto de residência no país justificado pelo emprego
garve: dois em Olhos de Água e um no Carvoeiro, no que arranjaram —, fonte policial garante que gran-
concelho de Lagoa. “Quando chegámos, estivemos de parte dos imigrantes indostânicos (do Paquistão,
três meses em Lisboa”, recorda Pargat. Mas a vida Índia, Bangladesh ou Nepal) recorre a redes especia-
na capital não era o que procuravam. “Queríamos lizadas em ajudar migrantes para conseguir fazer a
algo diferente e, depois de umas férias no Algarve, viagem, e numa grande percentagem dos casos com
achámos que era altura de mudarmos e decidimos base em pressupostos fraudulentos.
vir para cá”, explica. Ele foi trabalhando em restau-
rantes. Ranjit, entre outros empregos, esteve três
Desde a primeira década deste século que os
pedidos de concessão de vistos na generalidade No mais recente
anos numa loja de roupa. Até que, em 2015, abriram
o primeiro Indian Palace. Depois o segundo e, mais
dos consulados e embaixadas da União Europeia
“passa por empresas de documentação e agências Relatório de
recentemente, o King Palace, no Carvoeiro.
Os restaurantes, naturalmente especializados em
de imigração e emigração”, explica a referida fonte.
“Por um valor entre 5 e 7 mil euros estas empresas Imigração,
comida indiana, são um sucesso e, no total, já têm
10 empregados. Todos também indianos e também
e agências conseguem organizar um processo com
extratos bancários, declarações de entidades em- Fronteiras e
do Punjab, mas de diferentes religiões — só num dos
restaurantes, além de um funcionário sikh, têm um
pregadoras, cartas-convite para trabalho e outros
documentos”, que garantem a aprovação do visto Asilo do SEF,
hindu e ainda um cristão.
Em 2023, e com o sucesso económico evidente,
de trabalho ou de turismo, que permite a entra-
da na Europa. Até porque quem dá o parecer final referente a
o casal afirma-se perfeitamente integrado em Por-
tugal e à Índia já só vai para ver a família. “Temos
raramente vê a pessoa que fez o pedido, decidin-
do com base no processo que lhe foi enviado. Uma 2022, a
amigos portugueses, com quem convivemos regu-
larmente, e as pessoas são todas muito simpáticas”,
busca rápida na internet permite encontrar diver-
sas empresas e sites que oferecem esses serviços. comunidade
refere Ranjit, que apenas encontra dificuldade na
língua, apesar de fazer um esforço diário para falar
Até nas redes sociais existem centenas de grupos
dedicados a esta atividade. indiana já era
português. “Deviam fazer aulas para adultos, depois
do horário de trabalho, até ia ajudar a que conse-
Por um pouco mais de dinheiro, entre 10 e 12
mil euros, os imigrantes conseguem o que as auto- a quarta maior
guíssemos uma melhor integração”, sugere. ridades classificam como “vistos de trabalho fan-
Pargat e Ranjit fazem parte da vaga de imigran-
tes indianos que, pouco depois do início deste sécu-
tasma”. “É um esquema que existe há vários anos,
mudando apenas o país onde são emitidos. Já tive-
no território
lo, começaram a chegar a Portugal. Uma vaga que,
em especial nos últimos cinco anos, tem aumenta-
mos vistos de trabalho italianos, polacos, cipriotas,
eslovacos...”, continua a fonte policial contactada
nacional, com
do grandemente. A primeira vez que a comunidade pelo Expresso. “Estão normalmente vinculados a 35.416 pessoas
E 24
UNIÃO Pargat Singh e Ranjit Kaur (sentados), 17 anos
depois de chegarem a Portugal, têm dois restaurantes em
Olhos de Água e um no Carvoeiro; humildade, dignidade,
higiene, contenção e castidade são regras dos sikhs

empresas-fantasma, nesses países, que durante um


curto período de tempo usam um consulado especí-
fico, onde têm um contacto, para emitir uma série de
vistos que mais não são do que um expediente para
permitir a entrada na UE e a posterior obtenção de
um título de residência.”
Existe ainda uma terceira forma de entrar no es-
paço europeu, que passa por atravessar a fronteira de
países como a Turquia ou a Sérvia, de forma ilegal.
“Esta é a forma mais barata, custando cerca de 1000
euros”, diz ainda a referida fonte, acrescentando que
“uma vez na UE, Portugal apresenta uma diversida-
de de expedientes de regularização da situação, bem
como garantias que impedem a expulsão, que tor-
nam o país uma boa opção de destino”.
As autoridades nacionais têm noção desta reali-
dade e, gradualmente, têm intensificado o comba-
te à imigração ilegal a partir do Indostão e às redes
que apoiam e lucram com esta deslocação de pes-
soas do subcontinente indiano para a Europa e, em
particular para Portugal. Exemplo disso foi a recente
operação conjunta da PJ, com SEF e ASAE, em Lis-
boa, que levou ao encerramento, no dia 18 de julho,
de 11 alojamentos locais que serviam de casa para
mais de uma centena de imigrantes, alguns em si-
tuação ilegal.
Na véspera, a Judiciária tinha anunciado a deten-
ção de seis pessoas numa operação que se desenro-
lou em diversos países europeus e que se destinou a
desmantelar uma rede suspeita de tráfico de pessoas
e auxílio à imigração ilegal, que operava em Portu-
gal, Espanha, França e Alemanha. Em território na-
cional foram feitas buscas em Lisboa, Vila Franca
de Xira e várias localizações na Margem Sul do Tejo.
Cerca de duas semanas antes, quatro pessoas
(três portugueses e um vietnamita) tinham sido de-
tidas numa outra operação, da Autoridade Marítima
Nacional, que visou as redes que exploram imigran-
tes para a apanha ilícita de bivalves, nos concelhos
do Montijo e Alcochete. Na altura foram identifi-
cados mais de 200 imigrantes que se dedicavam a
esta atividade.

TRABALHAR A SUL
Não são conhecidos números oficiais dos indianos a
viver no Algarve, mas, a seguir à Grande Lisboa e,
eventualmente, ao concelho de Odemira — onde há
muitos a trabalhar nas estufas agrícolas — a região
sul será aquela que acolhe, em Portugal, mais natu-
rais daquele país. Aqui, onde o turismo é o principal
motor da economia, encontram emprego principal-
mente na hotelaria e restauração.
Albufeira, o concelho algarvio com maior ofer-
ta turística — e onde, inclusivamente, o grupo de
hotéis indiano Muthu Hotels tem sete unidades
— acaba por se tornar um destino natural para os
imigrantes. Além de terem atividades relacionadas
com o turismo, outra característica dos indianos no
Algarve é que são maioritariamente provenientes
do Punjab — uma região dividida entre Índia e Pa-
quistão, onde a economia se baseia grandemente
na agricultura e onde tradicionalmente existe uma
grande percentagem da população que emigra.
A juntar a isso, um grande número dos punjabis

E 25
INTEGRAÇÃO Major Singh vive com a mulher e o filho de 7 anos em Armação de Pêra,
onde abriu uma loja de telemóveis; Paramjit diz-se completamente adaptado à vida no Algarve

segue a religião sikh (que surgiu precisamente no Gurudwara é barrada a quem esteja sob efeito de Primeiro ainda trabalhou na agricultura, mas fo-
Punjab, no século XV). drogas ou álcool. ram apenas três ou quatro meses. Depois abriu uma
“Devem viver mais ou menos 10 mil sikhs no Al- A religião impõe ainda outras regras, com sig- loja de reparação e venda de telemóveis, a Mobiex-
garve”, calcula Kala Singh, presidente e líder espiri- nificados simbólicos, mas hoje em dia nem todos as press. Atualmente já dá emprego a duas pessoas —
tual da Gurudwara Sri Guru Teg Bahadur Sahib Ji Al- seguem à risca. Por exemplo, é proibido o corte do indianos, de religião hindu. “Damo-nos todos bem,
bufeira — o único templo da religião a sul de Lisboa. cabelo (significa humildade) e devem andar sempre quem cria os conflitos são os políticos”, argumenta,
Kala Singh que, depois de viajar pela Europa, che- com um pequeno punhal (dignidade), uma bracele- para desvalorizar os confrontos entre os seguidores
gou ao Algarve em 2004, criou-o em 2012, quando te de aço (contenção), um pente em madeira (higie- de diferentes religiões (sikhs, hindus e muçulma-
a comunidade na região começava a crescer. “Nessa ne) e uns calções de algodão (castidade). Por outro nos) que marcaram a história da Índia e, especial-
altura já havia cá 4 ou 5 mil [siks] e procuravam um lado, e ao contrário dos hindus, os sikhs não têm um mente, do Punjab.
templo”, explica. O líder da comunidade em Lisboa sistema de castas que os divida. E as mulheres não Major, que vive com a mulher e os dois filhos, de
ajudou-o no processo de legalização e abertura do usam o bindi, o tradicional ponto colorido na testa. 3 e 7 anos, já nascidos em Portugal, também des-
espaço e, desde então, Kala Singh tornou-se o líder Os seguidores da religião devem meditar duas mente as acusações de machismo que são apontadas
no Algarve, tendo sido sempre reeleito nas eleições vezes por dia. E o templo serve como local para o aos indianos que emigram para a Europa. Exemplo
realizadas para o cargo. fazerem — mas também podem praticar a medita- disso, há menos de um mês, o “The New York Ti-
Apesar de ser frequentada essencialmente por ção noutros locais, até mesmo em casa. Não há um mes” publicou uma reportagem sobre muitas mu-
sikhs, a Gurudwara “funciona como uma associa- dia específico para se ir à gurudwara, mas o domin- lheres que, atualmente, vivem sozinhas no Punjab,
ção que ajuda quem precisa, com comida ou o que go acaba por ser quando se que junta mais gente no depois de casarem com homens que emigraram e as
for necessário, e pessoas de todas as religiões podem local. “Chegamos a ter 200 ou 300 pessoas aqui”, deixaram para trás. Algumas das mulheres sikhs ou-
entrar”, refere Kala Singh. A religião sikh acredita destaca Kala Singh. Em Portugal, além do templo vidas pelo jornal norte-americano, queixavam-se de
no lema do ‘bem-estar para todos’. E na sequência de Albufeira existem apenas mais três gurudwaras. pressões e até de agressões para contribuírem com
dessa ideia, aceita (e ajuda) seguidores de todas as Duas em Lisboa e uma no Porto. dinheiro para as viagens dos maridos. Estes, quando
crenças. “Na Índia, o nosso templo [o Templo Dou- chegam ao país de destino, esquecem-nas e cons-
rado, na cidade de Amritsar] tem quatro portas, uma MUDAR DE VIDA troem uma nova família. “Não percebo como isso é
de cada lado do edifício, o que significa abertura Major Singh, de 37 anos, está no Algarve desde possível”, duvida Major, “a nossa religião baseia-se
para o mundo”, continua Kala Singh — que destaca 2016. Quando decidiu emigrar do Punjab, começou no respeito, nós, os sikhs, temos respeito pelas mu-
a liberdade religiosa que existe em Portugal como por viver na Alemanha. Experiência que terminou, lheres, acreditamos na igualdade”, garante.
uma das razões que o levaram a ficar cá. em 2015, devido “a uns problemas com o depar- Já em relação à ideia que os imigrantes indianos
A única obrigação para quem entra na Gurudwa- tamento de imigração”, resume. Mudou-se então têm uma baixa escolaridade e, por isso, se sujeitam
ra, em particular, na sala onde está o Granth Sahib para Lisboa, onde já tinha família e, com forma- a serem explorados em empregos pouco remunera-
— as escrituras sagradas da religião que, ao mesmo ção em eletrónica, arranjou emprego numa loja de dos, Major Singh reconhece que em parte é verdade,
tempo, são o guru (líder espiritual) vitalício de to- telemóveis. “Ganhava pouco, 500 ou 600 euros”, “algumas pessoas que vêm para cá têm pouca edu-
dos os sikhs — é que esteja descalço e com a cabe- descreve, “e era mês a mês, sem contrato”. Ao fim cação, mas também há quem tenha formação, em
ça coberta. Os sikhs distinguem-se precisamente de um ano, rumou ao Algarve e instalou-se em Ar- Lisboa até existem médicos indianos a trabalharem
por andarem sempre com turbante. A entrada na mação de Pêra. em hospitais”, exemplifica.

E 26
Apesar de alguns preconceitos mais negativos, que gera algumas dúvidas, mas Paramjit defende- e acredita que mesmo que a mulher não queira vol-
Major considera que os indianos são bem recebidos -a com as ligações que ficaram desde o tempo dos tar, pelo menos o filho, que gosta de futebol e “quer
em Portugal e a cultura sikh é bem aceite. “Não há Descobrimentos. ser como o Cristiano Ronaldo”, um dia vai juntar-se
racismo”, diz sem hesitações, “e podemos manter os Durante os primeiros anos em Portugal, viveu a ele em Portugal.
nossos hábitos, ao contrário do que acontece em ou- com a mulher. Entretanto nasceram dois filhos. Mas E quando acabamos de falar com Paramjit, mais
tros países”. Por isso, também ele não pensa voltar à agora está sozinho. Ela e as crianças, já com 17 (um do que pensar que é o protótipo do sikh do sécu-
Índia. As únicas viagens que ainda faz ao Punjab são rapaz) e 10 anos (uma rapariga), mudaram-se para lo XXI, ficamos com a ideia que, na verdade, ele é o
para visitar os pais, que lá vivem. E só porque não os Inglaterra. Paramjit preferiu ficar. Gosta mesmo de retrato do imigrante sikh que veio para o Algarve e
consegue convencer a virem embora. Portugal e por cá pensa continuar. Mesmo que haja encontrou o que procurava. Como aconteceu a Par-
Alto, mantendo uma postura muito direita ao momentos menos agradáveis. “Vi há pouco tempo, gat e Ranjit, e a Major. Como aconteceu a Kala, o lí-
andar, o que ainda o faz parecer mais alto, Param- numa rede social, uma portuguesa a queixar-se de der da comunidade, ou até a Abtar, o Mister Singh de
jit Singh, 43 anos, não andará longe do protótipo uns indianos. Diz que foi perseguida por eles. Acho Albufeira, que, passados 22 anos em Portugal, ainda
do sikh perfeito no século XXI. Turbante encarna- que é preconceito. Os sikhs não fazem isso, temos pensa abrir o próprio restaurante.
do, barba cuidada e sorriso enquanto fala, ele é ou- uma tradição de proteção das mulheres”, defende. Em abril passado, a comunidade sikh realizou
tro caso de sucesso entre os imigrantes indianos Em fevereiro passado, uma situação foi além do um Nagar Kirtan pelas ruas de Albufeira. O Nagar
no Algarve. A viver em Olhão, agora explora dois preconceito. Um grupo de jovens agrediu e roubou Kirtan é uma tradição das religiões indianas em que
restaurantes na cidade, ambos com o nome Indian um imigrante nepalês, nas ruas de Olhão. O ataque um desfile percorre uma zona residencial, com os
Hut, mas quando chegou, em 2003, começou por foi filmado e acabou igualmente nas redes sociais. participantes a entoarem hinos religiosos, em cele-
trabalhar na construção civil. Depois, foi juntan- Depois, foi noticiado pela imprensa. Não era a pri- bração. Por ser organizado pelos sikhs, o desfile foi
do poupanças e, em 2011, com a ajuda dos pais, que meira vez que os jovens faziam um ataque do géne- encabeçado pelo Granth Saib, colocado no primei-
lhe emprestaram algum dinheiro, abriu o primeiro ro. E as vítimas eram sempre imigrantes. Paramjit, ro carro do cortejo. Participaram largas centenas de
espaço. O negócio foi crescendo e, em 2020, surgiu que empregava uns amigos do nepalês, acompanhou pessoas que, além de cantarem, distribuíram bana-
o Indian Hut 2. tudo de perto. Até porque sabia quem eram os agres- nas por quem assistia — simbolizando a vontade que
“Em Portugal é mais fácil entrar, é mais fácil sores. Já os tinha visto a passar junto ao restaurante os sikhs têm de ajudar quem precisa.
conseguir o visto de residência”, assume sem pro- à procura de vítimas para assaltar. O caso terminou Os espectadores, maioritariamente portugueses,
blemas, para explicar o crescente número de imi- com a detenção dos suspeitos e Paramjit acredita reagiram com algum espanto, pela inusitada distri-
grantes indianos nos últimos anos. Depois, há tam- que foi apenas uma situação pontual em que, mais buição das bananas, mas, acima de tudo, pela grande
bém a facilidade em arranjar emprego. “Os punjabis, do que racismo, as vítimas eram sempre imigrantes dimensão do desfile, inédito em Albufeira. Contudo,
quando estão lá, na Índia, não querem fazer nada, por serem um alvo vulnerável e mais fácil. na generalidade, a festa foi bem recebida e terá sido
aqui fazem tudo. A agricultura é sempre a primeira Já com muitos amigos portugueses, diz estar mais um passo na integração da comunidade sikh
hipótese, mas há os restaurantes, os bares ou até os completamente adaptado à vida no Algarve — até na sociedade algarvia. b
Uber.” Finalmente, refere, “não há muitas diferen- tem um grupo que de vez em quando se reúne para
ças na cultura entre os dois países”. Uma opinião jogar cricket no Parque Natural da Ria Formosa —, e@expresso.impresa.pt
Guerra inacabada

E 28
ANTHONY WALLACE/AFP VIA GETTY IMAGES

Quanto tempo pode durar um conflito? E quando regressará a paz à Ucrânia? Na


península coreana, as duas Coreias ainda vivem em estado de guerra. O armistício
assinado há 70 anos nunca foi substituído por um tratado formal de paz

TEXTO ANTÓNIO CAEIRO


JORNALISTA, ANTIGO
CORRESPONDENTE
DA LUSA NA CHINA

E 29
S
“O povo coreano tem vivido num estado de sus- da Coreia do Norte. Visto de Pequim, o avanço das
pensão nos últimos 70 anos”, escreveu um autor “forças imperialistas” era uma ameaça direta às
sul-coreano, Kim Seong-kon, num artigo publicado suas fronteiras e uma escalada “inaceitável”.
há um mês num jornal de Seul. “Aos olhos da gera-
ção eletrónica, é como se o ecrã estivesse em pausa A CHINA ENTRA NA GUERRA
e pudesse recomeçar a qualquer momento quan- Em meados de outubro, centenas de milhares de sol-
do alguém carregasse novamente no botão ‘play’. dados chineses atravessaram o Yalu, o rio que sepa-
Estranhamente, muitos coreanos parecem não se ra a China da Coreia do Norte. “Resistir à agressão
aperceber da sua situação precária.” americana e Ajudar a Coreia” era a palavra de ordem,
e ainda é assim que o conflito é descrito nos manuais
INVASÃO NORTE-COREANA escolares chineses. No total, quase três milhões de
E INTERVENÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS chineses combateram na Coreia. Mesmo sem o apoio
A fronteira entre as duas Coreias, designada por da infantaria e dos blindados soviéticos, os voluntá-
DMZ (Zona Desmilitarizada), foi acordada entre a rios do Exército Popular de Libertação chinês, como
União Soviética e os Estados Unidos no final da Se- eram oficialmente designados, conseguiram fazer
gunda Guerra Mundial. Após a derrota do Japão, que recuar as forças da ONU para lá da DMZ e em janei-
anexara a Coreia em 1910, deveriam realizar-se elei- ro de 1951 reocuparam Seul.
ções para escolher um governo unificado da penín- O general Douglas MacArthur chegou a advogar
sula, mas as forças ocupantes promoviam modelos a extensão da guerra até ao interior da China, in-
antagónicos. No sul, sob controlo dos Estados Uni- cluindo com armas nucleares. O seu plano previa o
dos, vingou o capitalismo; no norte, o comunismo lançamento de “30 a 50 bombas atómicas táticas”
soviético. Nesta parte do mundo, a Guerra Fria aque- ao longo da fronteira sino-norte-coreana, criando
cia em ritmo acelerado. “uma cintura de cobalto radioativo” que duran-
Na madrugada de 25 de junho de 1950, tropas te “pelo menos 60 anos” impediria a passagem de
norte-coreanas invadiram a Coreia do Sul, iniciando quaisquer tropas. “Tínhamos capacidade para des-
a “Guerra de Libertação da Pátria”. “Foi uma inicia- truir o Exército Vermelho Chinês e o poder militar
eul, dezembro de 2022. A grande notícia acerca tiva do camarada Kim Il-sung (o líder da Coreia do chinês, provavelmente para sempre”, diria mais tar-
dos BTS, a mais conhecida boys band sul-coreana, Norte) e foi apoiada por Estaline”, assumiria Nikita de MacArthur. O Presidente norte-americano, Harry
não tinha a ver com o tempo que o grupo esperou Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista Truman, preferiu demiti-lo.
até atingir o primeiro milhão de seguidores no Ins- da União Soviética entre 1953 e 1964. (Oficialmente, Em julho de 1951, quando se iniciaram as
tagram (43 minutos) ou qualquer outro recorde. a URSS não se envolveu na guerra e a sua propagan- negociações de paz, a situação no terreno era basica-
Desta vez tratava-se da incorporação no exército da, seguida por todos os partidos comunistas, in- mente igual à que existia antes de Kim Il-sung tentar
de Jin, nome artístico de Kim Seokjin, o mais ve- sistia que as hostilidades foram iniciadas pela Co- “libertar o Sul” à força. Igual, sob o ponto de vista
lho dos sete músicos da banda. Jin acabara de fa- reia do Sul). militar. Tudo o resto — os muitos mortos e desalo-
zer 30 anos, a idade limite para todos os cidadãos Em três dias, as colunas militares do Norte, equi- jados, cidades inteiras arrasadas — era desolador.
sul-coreanos considerados aptos cumprirem as padas com armamento soviético, ocuparam Seul, As conversações arrastaram-se durante qua-
suas “obrigações militares”. Quatro meses depois, cerca de 50 quilómetros a sul da DMZ. Poucas se- se dois anos. A União Soviética, de quem a Coreia
J-Hope (Jung Hoseok) também entrou para a tropa manas depois atingiram os arredores de Busan, no do Norte e a China passaram a depender mais, não
e até 2025 os outros membros do grupo — incluin- extremo sul da península, dominando quase todo o tinha pressa. Após a morte de Estaline, em março
do o mais novo, Jungkook, nascido em 1997 — te- país. Os cálculos geopolíticos de Estaline pareciam de 1953, as negociações avançaram e quatro meses
rão cumprido os 18 meses de serviço militar obri- certos: “O campo reacionário estava enfraquecido”. depois representantes da China (o marechal Peng
gatório. Ao contrário do que os espetáculos dos BTS A União Soviética já possuía a bomba atómica; na Dehuai), da Coreia do Norte (Kim Il-sung e o general
podem sugerir, a guerra da Coreia — uma das mais vizinha China, com quem a Coreia do Norte parti- Nam Il) e do Comando das Nações Unidas (os gene-
devastadoras do século XX — ainda não acabou. lha uma longa fronteira, o Partido Comunista esta- rais William Harrison e Mark W. Clark, ambos dos
O armistício assinado a 27 de julho de 1953 — va agora no poder. EUA) assinaram o armistício.
depois de cerca de três milhões de mortos — nunca Reunido de emergência, o Conselho de Segu- Escrito em coreano, chinês e inglês, o acordo vi-
foi substituído por um tratado de paz, os Estados rança da ONU aprovou uma proposta para “ajudar sava “assegurar uma cessação completa das hosti-
Unidos mantêm mais de 20 mil soldados na Co- a Coreia do Sul e restaurar a paz”. (O representan- lidades e de todos os atos de força armada na Coreia
reia do Sul e a península coreana continua divi- te soviético, que tinha direito de veto, não partici- até ser alcançada uma solução pacífica final”. Essa
dida por uma barreira de arame farpado com 250 pou na reunião). A missão foi confiada a uma for- “solução” ainda não se materializou, mas, mesmo
quilómetros de extensão, estabelecida ao longo do ça multinacional, comandada pelo general nor- assim, a Coreia do Sul conseguiu tornar-se uma das
paralelo 38. te-americano Douglas MacArthur e constituída mais dinâmicas economias do planeta. Outro sinal
Como qualquer recruta, Jin teve de rapar o ca- em grande parte por efetivos dos Estados Unidos. dos tempos, desde há 20 anos, o maior parceiro co-
belo. A foto com a sua nova imagem saiu nas redes Canadá, Grã-Bretanha, França, Turquia, Austrá- mercial da Coreia do Sul, à frente dos Estados Uni-
sociais. “É mais giro do que eu estava à espera”, dis- lia e mais de uma dezena de outros países também dos, é a China, país que continua a ser o principal
se o músico dos BTS sobre o serviço militar. O con- integraram o contingente da ONU, mas em muito aliado da Coreia do Norte.
texto não é propriamente “giro”. Apesar da pobre- menor número. Navios da 7ª Esquadra norte-ame- Nos Estados Unidos a guerra da Coreia é por
za em que parte da sua população vive, a Coreia do ricana deslocaram-se, entretanto, para o Estreito vezes referida como “a guerra esquecida”. Embora
Norte tornou-se uma potência nuclear e, ignorando de Taiwan, forçando a nova República Popular da as baixas tenham sido elevadas (morreram cerca
as sanções internacionais, testa novos mísseis balís- China a suspender os preparativos para “libertar” de 36.500 americanos), nos anos 60 e 70 o país vi-
ticos com assustadora frequência. a última parcela do território chinês sob domínio ria a envolver-se numa guerra ainda mais mortífe-
O teste mais recente, envolvendo dois mísseis do antigo governo. ra e traumática: a Guerra do Vietname (ou Guerra
de médio alcance, ocorreu na semana passada, ho- No dia 15 de setembro, tropas da ONU desem- Americana, como dizem os vietnamitas). Na Chi-
ras depois de o submarino nuclear americano “USS barcaram em Inchon, perto de Seul, numa opera- na, a memória da “Guerra de Resistência à Agres-
Kentucky” ter chegado a Busan, o maior porto da ção anfíbia envolvendo 75 mil homens e mais de são Americana e de Ajuda à Coreia” parece cada
Coreia do Sul. Foi a primeira embarcação do género a 250 navios que acabaria por cortar a retaguarda vez mais viva, acompanhando a crescente tensão
atracar no país nos últimos 40 anos. Antes de caírem norte-coreana e inverter a correlação de forças. Me- nas relações sino-americanas. O conflito, que pro-
no Mar do Japão, a leste da península, os dois mísseis nos de um mês depois, tropas sul-coreanas e dos porcionou a primeira e única confrontação direta
percorreram cerca de 550 quilómetros, o equivalen- Estados Unidos já tinham conseguido atravessar entre tropas dos dois países, é recordado em Pe-
te à distância entre Pyongyang e Busan o paralelo 38 e conquistado Pyongyang, a capital quim como “uma grande vitória” e “um marco

E 30
KIM JAE-HWAN/SOPA IMAGES/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES
MILITAR Jin, o mais velho dos
sete músicos da boys band
importante na marcha da nação chinesa em dire- potências ocidentais e emergiu invicta”, afirmou o sul-coreana BTS, começou
ção ao grande rejuvenescimento”. historiador Chen Jian. a cumprir o serviço militar
A guerra da Coreia “esmagou a conspiração dos Num estudo publicado em 1994, aquele historia- obrigatório aos 30 anos.
agressores para cortar a Nova China pela raiz e de- dor chinês, formado na Universidade Fudan, em A notícia fez parar o país
monstrou plenamente a vontade férrea do povo chi- Xangai, realça também que durante a guerra da Co-
nês de desafiar a hegemonia”, disse o Presidente Xi reia “Mao Zedong e outros líderes chineses desco-
Jinping nas comemorações do 70º aniversário da briram que os Estados Unidos eram um inimigo com
entrada dos “voluntários” chineses na Coreia. Sem muitos recursos e a União Soviética um aliado incer-
nunca referir que o conflito foi iniciado pela Coreia do to”. Segundo Chen Jian, o diferendo sino-soviético,
Norte, Xi proclamou que “depois de vencer a guerra, que na década de 60 dividiu o movimento comu-
o povo chinês livrou-se completamente do rótulo de nista internacional e provocou sangrentos confron-
‘homem doente da Ásia Oriental’. O preço que a Nova
China pagou por esta “vitória” foi igualmente “gran-
tos armados entre os dois países, começou a germi-
nar precisamente nessa altura. Na opinião de um A fronteira entre
de”: cerca de 200 mil mortos, entre os quais o filho
mais velho do Presidente Mao Zedong, Mao Anying. E
outro historiador chinês, Shen Zhihua, “as decisões
de Estaline visavam sempre defender os interesses as duas Coreias,
a desejada “libertação de Taiwan” — a ilha onde se re-
fugiou o governo da antiga República da China depois
da União Soviética” e o antigo líder soviético “nun-
ca decidiu nada apenas para promover os interesses designada por
de ter perdido a guerra civil no continente — conti-
nua por concretizar. Mais de 70 anos depois, Pequim
da China ou ajudar a Coreia do Norte”. A China teve,
aliás, de pagar as armas e todo o equipamento mé- DMZ (Zona
advoga a “reunificação pacifica” com Taiwan, mas
ameaça “usar a força” se a ilha declarar a indepen-
dico e militar fornecido pelos camaradas soviéticos.
Desmilitarizada),
UMA COREIA, DOIS MUNDOS
dência ou em caso de ingerência externa.
Em 2021, o ano do centenário da fundação do MUITO DIFERENTES foi acordada
Partido Comunista Chinês, o maior sucesso de bi-
lheteira nas salas de cinema do país foi um filme
No calendário norte-coreano o 27 de julho (data do
armistício) é “o dia da vitória”. Económica e social- entre a União
passado na guerra da Coreia. Chama-se “A Batalha
do Lago Changjin”, uma superprodução dirigida
mente, porém, a comparação do nível de vida nas
duas Coreias não favorece o regime de Pyongyang, Soviética
por Chen Kaige, o autor de “Adeus Minha Concu-
bina”, galardoado em Cannes em 1993, e dois ou-
um dos mais isolados e herméticos do planeta. O ano
passado — estimou o Programa Alimentar da ONU e os Estados
tros realizadores (Tsui Hark e Dante Lam). A ação — cerca de 10,7 milhões de norte-coreanos (mais de
evoca uma dura batalha travada em dezembro de
1950, sob um frio glacial, em que os soldados chi-
40% da população do país) estavam “subalimenta-
dos” e “a necessitar de assistência humanitária”. A
Unidos no final
neses forçaram as tropas norte-americanas a re-
cuar. “Pela primeira vez na sua história moder-
Coreia do Sul, pelo contrário, faz parte do G20, grupo
que reúne as 19 maiores economias do mundo mais
da Segunda
na, a China conseguiu enfrentar uma coligação de a União Europeia. Pelas contas da ONU, em 2021, o Guerra Mundial
E 31
morte em 1996 pelo seu papel na sangrenta repressão
do movimento democrático de Gwangju.
A evolução do sistema político norte-coreano foi
muito diferente. Aparentemente, nem houve evolu-
ção: caso único entre os países republicanos, o poder
está concentrado na mesma família há mais de 70
anos. Antes do atual líder, Kim Jong-un, governou o
pai, Kim Jong-il, que sucedeu ao avô, o “Presidente
Eterno” Kim Il-sung, falecido em 1994.
No Congresso do Partido dos Trabalhadores Co-
reanos realizado em 2016 — o primeiro em 36 anos
e, até à data, o último —, Kim Jong-un repetiu que
a Coreia do Norte é “o baluarte do socialismo”. “A
seguir ao fim da Guerra Fria, vários países abando-
naram os seus princípios e, assustados com a pres-
são militar dos Estados Unidos, optaram pelo com-
promisso e a submissão”, disse. A Coreia do Norte,
não: “nunca vacilou” e, “respondendo com as mais
duras contramedidas, esmagou a odiosa pressão e
os desafios do imperialismo”. Deve-se “empunhar
uma espada quando o inimigo puxa de uma faca e
apontar um canhão quando ele saca de uma pisto-
KIRILL KUDRYAVTSEV/AFP VIA GETTY IMAGES

la”, explicou.

UM “MODELO” PARA A UCRÂNIA?


Yõng-ho Ch’oe, professor da Universidade de Hawai,
qualificou a divisão da península coreana como uma
das “duas épicas tragédias produzidas pela Guerra
do Pacífico”. A outra — escreveu o mesmo acadé-
mico em 2010 — foi o bombardeamento atómico de
Hiroxima e Nagasáqui.
Dezenas de milhares de coreanos esperaram
mais de meio século para poderem reencontrar-se
com os pais, filhos, tios ou primos que ficaram do
AMEAÇA A Coreia do
outro lado da DMZ. A última reunião familiar acor-
Norte de Kim Jong-un
valor per capita do seu PIB era de 34.940 dólares, en- dada pelos dois governos, em agosto de 2018, envol-
tornou-se uma potência
nuclear e testa novos quanto na Coreia do Norte rondava os 650 dólares. veu 330 pessoas de 87 famílias, “muitos em cadeiras
mísseis balísticos com O milagre económico sul-coreano nem sempre de rodas”, testemunhou o correspondente do jornal
assustadora frequência foi pacífico. Durante mais de duas décadas dois che- britânico “The Guardian”, Benjamin Haas. O encon-
fes militares ascenderam ao poder através de golpes tro, de 11 horas, decorreu num resort turístico do
de Estado. Em maio de 1980 — sete anos antes da Monte Kumgang, na Coreia do Norte. O jornalista viu
institucionalização de eleições presidenciais por su- Han Shin-já, de 99 anos, abraçar as duas filhas, de 72
frágio direto — estudantes e trabalhadores de Gwan- e 71 anos. “Quando fugi de casa durante a guerra...”,
gju, no sul do país, sublevaram-se contra a lei mar- começou a mãe a dizer, antes de ficar sufocada pela
cial imposta pelo general Chun Doo-hwan. Além de emoção. Na altura, estavam registadas na Coreia do
ocuparem a universidade, os manifestantes ataca- Sul cerca de 132.600 pessoas provenientes de famí-
ram esquadras de polícia. Alguns cidadãos, acusados lias separadas, mas a Cruz Vermelha só tinha identi-
de “agentes comunistas” pelo governo, pegaram em ficado 57 mil sobreviventes, referiu “The Guardian”.
armas. Várias zonas de cidade ficaram sob controlo Tecnicamente, as duas Coreias continuam em
do “movimento de democratização de Gwangju”. A estado de guerra. Desde a assinatura do acordo de

Em 2022, repressão foi brutal.


Segundo as autoridades, morreram cerca de 200
1953 registaram-se muitos incidentes ao longo da
fronteira. Alguns causaram dezenas de mortos,

cerca de pessoas, incluindo 22 soldados e quatro agentes da


polícia. Outras estimativas do “massacre de Gwan-
como aconteceu em março de 2010, quando um tor-
pedo norte-coreano afundou um navio sul-coreano.

10,7 milhões de gju” apontam para mais de mil mortos. Han Kang
evoca esse período no romance “Atos Humanos”,
Oito meses depois houve um violento duelo de ar-
tilharia, iniciado pelo Norte contra uma ilha do Sul.

norte-coreanos publicado em 2014. “Quando as manifestações es-


tavam a ganhar força em Gwangju, o exército usou
Mas o armistício mantém-se em vigor e, segundo
alguns observadores, a solução adotada na penínsu-

(mais de 40% lança-chamas contra cidadãos desarmados”, escre-


veu a autora. Han Kang conta também que no ano
la coreana poderá servir para a Ucrânia. “Os para-
lelismos são evidentes”, escreveu o professor Carter

da população anterior, a propósito das manifestações pró-demo-


cracia registadas em Busan e Masan, o chefe dos
Malkasian, presidente do Departamento de Análise
de Defesa da Escola Naval dos Estados Unidos, num

do país) estavam guarda-costas do então Presidente Park Chung-hee,


Cha Ji-cheol, declarou: “O governo do Camboja ma-
ensaio publicado este verão na revista “Foreign Af-
fairs”. “Na Ucrânia, tal como na Coreia há sete dé-
tou mais de dois milhões dos seus. Não há nada que cadas, uma frente de batalha estática e divergências
subalimentados. nos impeça de fazer o mesmo.”
Preso pelos militares sob a acusação de ter insti-
políticas insanáveis exigem um cessar-fogo que in-
terrompa a violência, adiando as questões políticas
A Coreia do Sul gado aquela rebelião, Kim Dae-jung seria eleito Pre-
sidente da República 17 anos mais tarde — um destino
espinhosas para outro dia.” b

faz parte do G20 oposto ao do general Chun Doo-hwan, condenado à e@expresso.impresa.pt

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A hora do digital
Scanners de 4K que limpam os riscos existentes no negativo e
restauros digitais quando necessário. A alta tecnologia está ao
serviço dos filmes que fazem a história do cinema português, agora
em processo de digitalização à boleia do PRR. O objetivo é tratar
1000 filmes em quatro anos e preparar o património para o futuro

TEXTO
JORGE LEITÃO RAMOS
CRÍTICO DE CINEMA

E 34
ATRIZ Leonor Silveira
no papel de Ema,
em “Vale Abraão”,
de Manoel de Oliveira,
exibido na Quinzaine
des Cinéastes deste
ano, em Cannes

E 35
Q
uando, na primeira década deste milénio, a proje-
ção digital começou a ser introduzida nas salas de
cinema de todo o mundo, pensava-se que o pro-
cesso ia ser lento. Não seria fácil mudar todos os
equipamentos dos cinemas, substituindo as robus-
tas máquinas equipadas para colocar nos ecrãs um
feixe de luz a atravessar imagens fixadas em pelí-
cula por processos fotoquímicos — 24 vezes por
segundo. Em 2009 estimava-se que apenas 1% das
salas estivessem equipadas com a nova tecnologia.
Na segunda década do milénio tudo mudou, muito
depressa, em todo o lado.
Hoje é o contrário: praticamente não há cine-
mas onde se possa exibir um filme em película. Sal-
vo casos muito especiais — como as cinematecas ou
alguns grandes festivais —, só é possível projetar
obras cinematográficas em DCP (Digital Cinema
Package), a tecnologia padronizada dos formatos
digitais para a distribuição e a exibição de filmes.
O resultado disto foi uma revolução sem preceden-
tes, porque, de repente, o património mundial do
cinema ficou obsoleto. Foi como se toda a música
gravada estivesse em discos de vinil e só houvesse,
no mercado, leitores de CD.
Felizmente, precedendo e acompanhando este
processo, a comercialização muito bem-sucedida
de filmes em suporte DVD e Blu-ray tinha propi-
ciado a digitalização de muito desse património,
por vezes acompanhada de processos de restauro.
Mas cinematografias sem notória vertente indus-
trial, como a portuguesa, ficaram ultrapassadas
no sistema.
A digitalização dos filmes portugueses roda-
dos em película foi escassa e frequentemente defi-
ciente, paralisando a exibição pública da larga
maioria. As obras não estavam em risco — o Arqui- digitalizações por ano, no máximo umas 10. Depois
vo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), surgiu o FILMar [projeto com apoio norueguês, is-
um dos departamentos da Cinemateca Portuguesa, landês e luxemburguês, através dos EEA Grants],
mantinha-as em boas condições de conservação já com verbas da ordem dos 800 mil euros, em que
—, todavia não se podiam exibir fora dos circui- tínhamos de digitalizar e tornar acessível 10 mil
tos das cinematecas ou exibiam-se em condições minutos de filmes ligados com a temática do mar,
defeituosas. que para nós já era um grande projeto. Tornou-se
A necessidade urgente de digitalizar o cinema pequeno quando veio a onda PRR. O que estamos
português em alta definição 4K foi, ao longo dos a fazer é muito ambicioso. Eu acho que não houve
últimos anos, batalha continuada da atual Direção nenhum país que tivesse esta meta: digitalizar 1000
da Cinemateca (José Manuel Costa, Rui Machado). filmes em quatro anos. Nesse número está incluído
Um ou outro filme ia sendo feito, nomeadamente todo o universo das longas-metragens [600, nú-
para o projeto das edições em DVD, de iniciativa meros redondos], e o resto são curtas-metragens.”
própria ou em parceria com a Academia Portuguesa Alguma ordem prioritária? “Não, estamos a di-
de Cinema. Porém, as elevadas verbas necessárias gitalizar de uma forma abrangente filmes de todas
para desencadear um programa sistemático e glo- as épocas, de todos os géneros, de todos os realiza-
bal, descomunais para os esquálidos orçamentos dores. Já temos parte do cinema mudo, comédias
dedicados pelo Estado aos vários sectores da Cul- dos anos 30/40, filmes do Cinema Novo, filmes do
tura, pareciam fazer desse combate uma utopia. 25 de Abril, que vão ser uma prioridade, dadas as
Entretanto, acendeu-se uma inesperada luz: com a comemorações do cinquentenário, e todo o cinema
chegada inusitada do Plano de Recuperação e Resi- contemporâneo, Manoel de Oliveira, João Botelho,
liência (PRR), foi possível disponibilizar 8 milhões Pedro Costa, Paulo Rocha, tudo isso.”
de euros para que o processo se efetue. Tarefa gi- Permita-se-me um parêntesis particular. Aqui
gantesca a efetivar num curto horizonte temporal. há uns anos, não muitos, vi na Cinemateca “Pla-
Desafio magno. nície Heróica”, de Perdigão Queiroga. Cópia he-
dionda. Na época falei com alguém da casa, que me
1000 FILMES EM QUATRO ANOS informou que aquela cópia “é o que há”, numa re-
“Nós começámos a digitalizar muito antes do PRR”, ferência ao mau estado de algum cinema português
explica Rui Machado. “Mas eram muito poucas ali arquivado. O que se vai passar, na digitalização,

E 36
FILME Guida Maria e João Mota em “A Promessa”,
de António de Macedo, que depois de digitalizado
entrou no catálogo da plataforma de streaming Filmin

em película connosco para decidir se considera ser


uma boa referência para continuarmos a trabalhar
e para nos dar informações; depois, já com o DCP,
vemos em conjunto a projeção do produto final.”
No plano não faltará a digitalização dos filmes
de que apenas existem matrizes incompletas, como
é o caso de “Feitiço do Império”, de António Lo-
pes Ribeiro (1940), de que só subsiste a banda de
imagem, ou de “Três Dias sem Deus”, de Bárbara
Virgínia (1946), que só se conhece parcialmente.
São obras importantes para o estudo do cinema e
também do ponto de vista histórico. É impossível
analisar a ideologia do Estado Novo sem passar pela
observação detalhada dos filmes de Lopes Ribeiro.
1000 filmes em quatro anos é uma conta fácil
de fazer. Em média são mais de 20 filmes por mês.
Onde foi a Cinemateca buscar capacidade humana
e técnica para fazer isso tudo? “Tivemos de fazer
um concurso externo. Foi uma decisão transversal
a todo o PRR”, precisa José Manuel Costa. “Houve
a decisão política do Governo de, apesar de ser-
mos um serviço do Estado, não dever ser o Estado
a gastar diretamente as verbas envolvidas. Mesmo
quando é para o Estado, tem de haver empresas in-
dependentes e concursos públicos, contratos es-
crutináveis, passados a pente fino pelo Tribunal de
Contas, é tudo transparente.”
Rui Machado detalha: “Estamos a trabalhar
com os dois laboratórios que ganharam o concurso,
um português e um outro sucursal de um laborató-
com esses casos que ainda subsistam? Rui Machado feita para todos os filmes. Há também reparação rio americano. Além do equipamento que a Cine-
explica: “A ‘Planície Heróica’ é um bom exemplo. de originais. E temos muito bons equipamentos de mateca já possuía, instalaram máquinas no ANIM e
Nós já o preservámos, depois. Muito antes de pen- captura, scanners de 4K, muitos deles equipados de é lá que está a ser feito o processo de captura. Esses
sar em digitalizar, preservámos. Fomos aos negati- modo a limpar os riscos existentes no negativo. E, laboratórios contrataram muita gente, neste mo-
vos — que estão em relativamente bom estado — e, depois, há uma componente de pós-produção que mento está a trabalhar no ANIM o dobro das pesso-
com alguns componentes de restauro, fizemos um pode envolver restauro digital. Mas o que estamos as que ali tínhamos há três anos. A componente de
interpositivo e um positivo de som, ficámos com a fazer não é um plano de restauro digital do pa- pós-produção é feita fora das nossas instalações. Os
dois novos materiais de arquivo nos cofres e fize- trimónio cinematográfico português, é um plano de números estão definidos. Em 2022 devíamos fazer
mos uma cópia direta dos negativos, uma boa cópia digitalização. Vamos restaurar alguns filmes, algu- 100 filmes, fizemos 103. Este ano 300. 2024 é o ano
em película. O que vamos fazer agora? Na digita- mas partes de filmes, conforme haja, ou não, degra- mais ambicioso: 400 filmes. No ano seguinte, o úl-
lização, em vez de irmos aos negativos, vamos aos dação grave dos materiais, mas não vai ser possível timo, 200. Mas é preciso pensar que nestes núme-
interpositivos, que estão em muito bom estado.” restaurar tudo — nem temos tempo. Mas alguns ros há uma componente de curtas-metragens em
Todavia, deverá por certo haver filmes em que os tem mesmo de ser. Estou a lembrar-me de ‘Rap- que o tempo de laboração é muito mais pequeno.”
materiais em depósito na Cinemateca têm proble- sódia Portuguesa’ e de ‘Sangue Toureiro’, em que
mas. A questão é: farão restauros? a degradação da cor nos negativos era enorme. Em QUE FAZER COM ESTES FILMES?
“Faremos uma cuidadosa seleção técnica dos todo este processo, se o realizador ou o diretor de Ter todo o cinema português de ficção digitalizado
materiais existentes e escolheremos sempre os me- fotografia de cada filme estiverem vivos, tentamos em 4K é excelente. Contudo, a questão essencial é
lhores. É uma fase muito importante e está a ser envolvê-los. Em dois momentos: vendo uma cópia o que vai ser feito com ele. Digitalizar para voltar a

Ter todo o cinema português de ficção digitalizado em


4K é excelente. Contudo, a questão essencial é o que
vai ser feito com ele: o cinema só existe quando um ser
humano está diante de um ecrã
E 37
guardar, já não nos cofres, mas nos servidores da Ci- que percentagem. Estabelece-se, também, como E os filmes em que ninguém pegue, que não se
nemateca Portuguesa, seria importante, mas triste. O deve ser feita a gestão dos direitos de autor (rea- considerem rentáveis? Rui Machado explica que,
cinema só existe quando um ser humano está dian- lizador, argumentista, compositor da música). Os nesses casos, “a Cinemateca irá ter com os deten-
te de um ecrã. Exibi-lo nas salas da Barata Salgueiro produtores contratualizam depois a distribuição tores de direitos e dirá que vai assegurar a distri-
também parece pouco. A edição em DVD, cultural- com outras empresas, definindo territórios e pra- buição”. Em suma, embora não seja essa uma ati-
mente relevante, encontra o mercado em fortíssima zos envolvidos. vidade nas tradições da casa, irá ter uma vertente
retração, em Portugal mesmo quase extinto. Como qualquer outro bem, os bens imateriais, de distribuidor, até à data só exercida com títulos
Quando os distribuidores portugueses decidi- de que os direitos são exemplo, também podem ser que eram propriedade do Estado.
ram parar de editar DVD dos filmes americanos e a vendidos. E, como em tudo, as empresas cinema- Uma coisa se assegura: “Os filmes não vão ficar
Fnac deixou de comercializar esse formato, o mer- tográficas podem mudar de dono, extinguir-se, fa- quietos, não vão ficar nos servidores. Iremos fazer
cado morreu de um dia para o outro. De cada vez lir ou, simplesmente, ‘apagar-se’, porque, no caso a melhor distribuição possível e, evidentemente,
que a Cinemateca edita um daqueles filmes mudos português, muitas delas não eram bem empresas, dividiremos a pouca receita com os detentores de
da Invicta, em cópias soberbas, com as tintagens eram associações, cooperativas, entidades a labo- direitos. Tentaremos pô-los no circuito de cinemas,
originais e as partituras regravadas, ou a Acade- rar numa época em que a Direção-Geral de Contri- nas televisões, nas plataformas.” E haverá a hipó-
mia põe cá fora uma obra do Cinema Novo rara de buições e Impostos não era tão competente quanto tese de avançarem para a instalação de uma plata-
encontrar — como ainda recentemente aconteceu a Autoridade Tributária... Muitas vezes encontrar o forma própria.
com “As Ruínas no Interior”, de Sá Caetano —, é fio à meada é trabalho de Sísifo. “Pode passar por aí. Não dizemos que não, es-
óbvio que há que sentir um grande regozijo e, ao Pode a Cinemateca começar a disponibilizar as tamos a estudar o assunto.” Todavia, nesta fase do
mesmo tempo, a sensação de que a instituição da novas matrizes digitais a quem as queira utilizar — percurso em que tudo está em aberto, a Cinema-
Barata Salgueiro está um passo atrás da realidade. salas de cinema, televisões, editores de DVD, pla- teca não deseja ter nenhuma posição de princípio,
Vender os DVD apenas na livraria Linha de Sombra taformas de streaming? Não, não pode. E não pode nenhuma orientação estratégica. “O nosso esfor-
é pouco, talvez não justifique nem o esforço nem por uma razão basilar: os filmes só são comerciali- ço”, enfatiza José Manuel Costa, “é que comecem
o investimento. A utilização das plataformas de záveis por quem detenha direitos para tal. todos pela sala de cinema.” E expressa o desejo de
streaming parece um destino provável, nesta épo- Em certos casos — o espólio da Tobis, a obra de ver um tecido de salas de cinema independentes,
ca em que essa janela de divulgação está pujante. Paulo Rocha (por disposição testamentária) e al- de rua e com programação competente a voltar a
“O nosso primeiro objetivo deste projeto de di- guns outros —, os direitos de produtor são da Ci- preencher as vilas e cidades do país onde o tsuna-
gitalização é voltar a ter estes filmes na sala de ci- nemateca, havendo apenas que cuidar dos direitos mi dos anos 90 as arrasou. Matéria para uma outra
nema”, sublinha Rui Machado. “Quando tivermos de autor. Mas, na generalidade, os direitos perten- questão onde o PRR poderia ter mexido se tivesse
uma cópia em DCP da ‘Planície Heróica’, o filme cem a diferentes pessoas, pelo que será necessário havido visão política nessa direção.
pode voltar a ser visto em sala. Neste momento — envolver entidades exteriores à Cinemateca na cir- Entretanto, está em curso a definição de proce-
é outro investimento do PRR, nada a ver com a Ci- culação dos filmes. dimentos e a sua validação pela tutela — o Ministé-
nemateca — estão a equipar-se os cineteatros mu- Existe interesse dessas entidades em fazer o tra- rio da Cultura — para se poder começar sistemati-
nicipais com projeção em DCP. Isso vai aumentar a balho e o (pequeno) investimento envolvido (a ce- camente a fazer contactos e a gerar acordos. Mas a
oferta de espaços, o que facilitará que os filmes cir- dência das matrizes digitais pela Cinemateca não gestão de problemas ligados aos direitos vai ser um
culem. E, ainda este ano, vamos começar uma ativi- é, naturalmente, gratuita; é devido um pagamen- dos tópicos mais intrincados em todo o processo.
dade de descentralização para sensibilizar o país de to de 1000 euros por longa-metragem)? Uma ron- Há filmes envolvidos em questões nunca desen-
que há estas novas cópias de cinema português que da junto de distribuidores e detentores de direitos vencilhadas de falência de produtores; há querelas
podem ser vistas e programadas. A Cinemateca não permite afirmar, genericamente, que sim. Antes de de heranças pendentes; há conflitos pessoais por
deseja programar, deseja que as entidades que pro- tudo, há alguma apetência das televisões e das pla- resolver; há contratos desaparecidos, de maneira
gramam — cineclubes, festivais, associações cultu- taformas de streaming por conteúdos portugueses, que não se consegue saber com exatidão a quem
rais — estejam despertas para esta nova realidade.” pois a lei determina quotas a serem preenchidas. pertence o quê; e, sobretudo, não há registos nota-
E há sempre a componente internacional. “Vale Foi por iniciativa da Filmin que “A Promessa” está riais sistemáticos.
Abraão”, de Manoel de Oliveira, foi exibido na agora no seu catálogo. Um grande detentor de di- Se ser dono de um filme é como ser dono de
Quinzaine des Cinéastes deste ano, em Cannes, reitos, como a NOS, já mostrou interesse em aceder um prédio, não existe para o cinema português a
numa cópia resultante do trabalho de preservação às digitalizações, adianta a Cinemateca. mesma prática legal que para a propriedade ur-
e digitalização da Cinemateca. A sua distribuição Também existem pessoas com vontade e mili- bana. Toda a gente que alguma vez se envolveu na
internacional está assegurada pela empresa france- tância cultural bastante para voltar a pôr em cir- comercialização de filmes com alguns anos sabe
sa Luxbox, que terá adquirido os filmes de Oliveira culação obras que herdaram de pais ou avós. Falei que deslindar direitos, obter documentos legais
fora do catálogo da NOS. com vários. Todavia, ninguém espera proveitos de válidos é andar de Anás para Caifás, de candeia na
monta (um pequeno distribuidor expressou a ideia mão, em busca de um caminho para levar a car-
A QUESTÃO DOS DIREITOS de que não é com isso que se pagam salários e cus- ta a Garcia. b
Quando um filme é feito estabelece-se contra- tos de estrutura, mas será útil para arredondar as
tualmente quem detém a sua propriedade e em contas ao fim do mês). e@expresso.impresa.pt

Pode a Cinemateca começar a disponibilizar as novas


matrizes digitais a quem as queira utilizar —
salas de cinema, televisões, editores de DVD,
plataformas de streaming? Não, não pode
E 38
E 40
Entrevista
Manuel Clemente

A dificuldade
em escutar
os outros
é muito
grande”
Fez há dias 75 anos, está prestes a deixar o
Patriarcado de Lisboa, mas antes disso acolherá
a Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023,
uma ideia sua, celebrando a primeira missa
no Parque Eduardo VII no dia 1 de agosto

POR MARIA JOÃO AVILLEZ JORNALISTA (TEXTO)


E TIAGO MIRANDA (FOTOGRAFIAS)

E 41
L
paróquias e dioceses, movimentos e O Evangelho é o legado de Jesus, tão
grupos, para que tudo corra o melhor convincente hoje como quando nos foi
possível, já isso marca muitos jovens, deixado. Ainda há muito a fazer para
que têm demonstrado uma dedicação que germine totalmente, quer no gran-
e criatividade espantosas. Isto ficará e de mundo de todos quer no pequeno
marcará a Igreja e a sociedade no fu- mundo de cada um, fora e dentro de
turo. É a “geração 2023”. nós mesmos. Desde que me conheço
sempre me senti atraído por Jesus e
A próxima JMJ — seja onde for — já o Evangelho e gostei de estudar a sua
não será consigo, qualquer dia Lisboa germinação na sociedade e na cultura.
terá um novo patriarca...
Lisboa terá em breve um novo patriar- Que idade tinha quando “conheceu”
ca, escolhido pelo Papa Francis- Jesus? Lembra-se?
co. Confio inteiramente na escolha Lembro, lembro... Desde que me co-
e no critério. É certamente alguém nheci a mim. Uma das coisas mais
ongo é o caminho desde o sacerdócio, que coincida de coração e de prática antigas que recordo é a minha mãe a
fértil a caminhada: Manuel José Macá- com o próprio Papa, sendo homem ensinar-me a rezar. Sempre senti Jesus
rio do Nascimento Clemente foi reitor de oração e muita entrega pastoral, como alguém presente, que nos acom-
do Seminário Maior dos Olivais, bispo simples e próximo das pessoas e das panha e interpela agora, numa palavra
do Porto, bispo auxiliar de Lisboa, car- comunidades. que nunca mais acaba.
deal-patriarca de Lisboa, presidente
da Conferência Episcopal. É doutor em Com esse “retrato” refere-se a quem? Ao fim de muitos anos desse “estu-
Teologia Histórica pela Universidade Não me estava a referir concretamen- do” sobre a germinação do Evangelho
Católica Portuguesa, magno chanceler te a ninguém. Há muitos sacerdotes conclui que ele tem de facto “germi-
da Universidade Católica Portuguesa, com essas características, tão do agra- nado” na sociedade e na cultura?
autor de vasta obra publicada contem- do do Papa Francisco, amigos de Deus Além da maior ou menor crença ou
plando a História e a Fé: em 2009, o Pré- e do povo. descrença de cada um, creio que o
mio Pessoa distinguiria a qualidade do Evangelho nos deu outro sentido para
teólogo e historiador, o brilho do inte- Leva uma longa vida de serviço à a vida e para a morte. Não é por acaso
lectual. Admirado pela humildade, cul- Igreja. Com que sentimento se des- que algumas parábolas evangélicas se
tivando a simplicidade e a proximida- pede agora do Patriarcado? Missão tornaram linguagem geral para referir
de, D. Manuel Clemente serviu a Igreja cumprida ou, pela sua natureza, nun- sentimentos e atitudes. Assim, o “bom
como sempre entendeu que deveria ser ca se poderá dizer “cumprida”? samaritano”, para indicar alguém
servida: atendendo à fidelidade mas Desta ou doutra forma, a missão con- mais generoso e solidário. Ou os “ta-
sabendo ler o que o tempo ia trazendo, tinuará. No Evangelho, Jesus tanto lentos”, para designar as qualidades
compaginou sempre as duas dimen- convoca jovens como velhos. Que o que devem ser postas a render para si
sões. Nunca a sua noção de serviço foi diga Nicodemos, a quem Jesus propôs e para os outros. Também a consciên-
substituída pela tentação do desalento, “nascer de novo”. cia de que a eternidade depende do
nem sequer nas mais adversas estações bem que agora realmente se pratique,
do seu longo exercício eclesial — como Como padre e como bispo procurou como na parábola do “juízo final”. Se
em agosto do ano passado, quando, a estar sempre próximo, logrando uma lermos ou ouvirmos com atenção o que
propósito da questão dos abusos sexuais forte síntese entre a proximidade e o se escreve e o que se diz, encontramos
na Igreja, sofreu impiedosas afrontas testemunho de fé: nas comunidades facilmente o fundo evangélico que aí
mediáticas (“Claro que me custou ler e onde oficiou, na obra publicada, na subjaz. Aliás, a nossa agregação mais
ouvir o que se escreveu e disse. Sobre- presença nos media, em conferências antiga foi a freguesia, que significa “fi-
tudo quando não correspondia à verda- e catequeses de norte a sul de Portu- lhos da Igreja” e que permanece ainda,
de, no todo ou em parte... ou não reco- gal, percebia-se o seu imperativo de mesmo quando os que vivem na cida-
nhecia o que estávamos a fazer na Igre- trazer o Evangelho aos nossos dias. É de “vão à terra” nas férias e nas festas
ja para resolver o problema”). A dias da este um dos seus principais legados? dos respetivos padroeiros. Trata-se de
JMJ Lisboa 2023, acedeu a rever toda
a sua matéria. Talvez por se tratar de
uma despedida. Melancólica, quis-me
parecer, mas talvez eu esteja enganada.
Deus não estará certamente.

Foi D. Manuel Clemente quem lançou


a ideia de trazer a Portugal a Jorna-
da Mundial da Juventude. Eis hoje o
patriarca de Lisboa a protagonizar
um dos últimos atos do seu mandato.
Está confiante no sucesso da Jornada,
confiante no seu impacto na juventu-
de portuguesa?
A questão dos abusos feriu-me
A Jornada Mundial da Juventude é já
uma grande realidade entre nós. Cer- certamente, especialmente
tamente ainda maior quando se jun-
tarem tantos jovens do mundo inteiro
em Lisboa. Mas o que tem acontecido
pela dor de quem sofreu
de há três anos para cá com os mi-
lhares que colaboram ativamente nas o que nunca deveria ter sofrido”
E 42
EVENTO Manuel Clemente, há uma
semana, no palco-altar do Parque
Tejo, em Lisboa, onde vai decorrer a
Jornada Mundial da Juventude

uma junção de culto — cultura muito Algo do seu legado pode ter sido “ma- a si, apesar de ter pertencido à Igreja portuguesa, pelos portugueses?
determinante do que somos, mesmo goado” pelo impacto dos episódios do a iniciativa de “destapar” o flage- Correspondido sem desvios nem
nas comunidades da diáspora. verão passado relacionados com as lo, sancioná-lo e tentar cuidar das sobressaltos?
denúncias de abusos sexuais na Igreja vítimas? Criaram-se Comissões Diocesanas,
Falámos de um dos seus legados, mas portuguesa? Claro que me custou ler e ouvir o que constituídas por pessoas de várias es-
há mais legados: o que é que gostaria A questão dos abusos feriu-me cer- se escreveu e disse. Sobretudo quando pecializações e que trabalham com
de destacar em tantos anos de dedi- tamente, especialmente pela dor de não correspondia à verdade, no todo total responsabilidade e independên-
cação à Igreja? quem sofreu o que nunca deveria ter ou em parte... ou não reconhecia o que cia, ajudadas pela Coordenação Na-
Lembro a expansão do Escutismo no sofrido. Segui e sigo inteiramente as estávamos a fazer na Igreja para resol- cional, assessorada agora pelo Grupo
Oeste e o seu acompanhamento nos orientações papais para combater tal ver o problema, atendendo à lei civil, Vita. Também os Institutos Religiosos
anos 60 e 70. Foi a minha principal flagelo e evitar que se repita. A Igreja às determinações canónicas e ao espí- criaram instâncias semelhantes. En-
motivação nesses tempos, como a de está empenhada em que tudo se re- rito evangélico, em que justiça e mise- tretanto, quer a anterior Comissão In-
outros companheiros que trabalha- solva pelo melhor, em si mesma e na ricórdia andam a par. dependente quer vários responsáveis
ram com igual entusiasmo. Também sociedade que integra. políticos propuseram que se fizesse o
o relançamento do Centro de Estudos Esse “empenho” da Igreja de que mesmo nos vários âmbitos onde hou-
de História Religiosa da Universida- Ficou “ferido” pela dor de quem não “tudo se resolva pelo melhor” tem vesse menores. É que, de facto, a infor-
de Católica, em que colaborei, a par- a merecia. Mas a minha pergunta era sido seguido e correspondido pelas mação policial e mediática mostra que
tir dos anos 80, com vários colegas de pessoal: sofreu com as tentativas de Comissões que trabalham nesse te- se trata de algo não só muito transver-
inexcedível dedicação. ofensa e humilhação que o visavam ma? E pelos católicos, pela sociedade sal como muito grave na sociedade.

E 43
Em 2013, como novo patriarca de Entre 2007 e 2013 deixou memória radicalmente nas últimas décadas e Durante a sua presidência da Confe-
Lisboa, convocou um Sínodo — um gratíssima na Igreja do Porto: a cidade num país como o nosso. De facto, o rência Episcopal saíram documentos
instrumento muito antigo da Igreja sabia o seu bispo mobilizado e ativo. que é institucional perdeu a audição muito importantes para o diálogo da
para procurar soluções para os seus Não sei se Lisboa terá tido a mesma e o acatamento que encontrava an- Igreja com o mundo, houve reflexão
problemas concretos ou novas normas “tipologia” de atuação, sobretudo nos tes e só por si, dando lugar à diversi- e decisão. E no entanto... que caso se
jurídicas. O último fora há mais de últimos anos: há a impressão — admi- dade de opiniões e sentimentos, que fez? O mundo católico está hoje divi-
300 anos, mas em 2013, na diocese de to que desfocada — de que as ovelhas passaram a determinar o que se quer dido e confuso. Posso pedir-lhe um
Lisboa, tratou-se de procurar corres- da diocese ouviram “de menos” o seu ou se recusa imediatamente. Mais do balanço sobre a Igreja portuguesa du-
ponder os desafios do Papa Francisco pastor; que ele marcou menos presen- que “tomadas de posição” institucio- rante o “seu tempo”?
a toda a Igreja. Que sementes ficaram? ça na sociedade portuguesa e na vida nais, aliás indispensáveis, hoje valem Foram 10 anos muito preenchidos na
Que avaliação fez dessa caminhada? do país; que terá usado menos audi- os testemunhos pessoais e concretos, “frente” externa e interna, com a in-
O Sínodo Diocesano de Lisboa, cele- velmente a sua autoridade eclesial, se- que também não faltam. O substanti- tensidade, quase catadupa, que a in-
brado em 2016, quis concretizar en- ja nos temas fraturantes, seja na ques- vo “Igreja” cede a primazia ao subs- tensificação mediática nos trouxe.
tre nós o programa pontifical do Papa tão social — pobreza, sem-abrigo, tantivo “cristãos”, no que digam e fa- Creio e verifico que, de um modo ge-
Francisco, apresentado em 2013 na marginalizados, emigrantes... Não? çam. Também foi assim que a nossa ral, a Igreja no seu conjunto tanto ul-
exortação “Evangelii Gaudium” [“A Lisboa é um mundo diversificado e história começou... trapassou o confinamento pandémi-
Alegria do Evangelho”]. Durante cin- contrastado, onde cada voz facilmen- co como respondeu convictamente ao
co trimestres, mais de 20 mil diocesa- te se dilui no todo. As minhas inter- De que paradigma falamos? Pode desafio dos abusos e vai procurando
nos de Lisboa (sacerdotes, diáconos, venções seguiram os mesmos tópicos especificar um pouco melhor a sua refazer a sua indispensável concreti-
consagrados/as e leigos/as) estudaram e insistências de anteriormente, tanto natureza? zação comunitária num mundo tão
os cinco capítulos da exortação e de- no que respeita à vida interna da Igreja Falo da mudança estrutural do modo disperso e transeunte como o nosso.
ram sugestões para a sua aplicação en- como no que pode e deve ser a incidên- de comunicar e conviver. Na socieda- Valorizo de modo especial o que vai
tre nós, nos vários campos de ação, da cia sociocultural do Evangelho [cf. ho- de anterior, as convicções e vizinhan- crescendo no campo das atividades ju-
catequese à liturgia, da ação caritativa milias e conferências publicadas no site ças eram muito mais estáveis. Essa es- venis (Missões País dos universitários,
à corresponsabilização na vida comu- do Patriarcado de 2013 em diante]. Até tabilidade garantia-se em instituições campos de férias para quem dificil-
nitária. Tudo foi depois partilhado e 2020 fui também presidente da Confe- geralmente acatadas e em normas que mente as teria, movimentos e equipas
votado na Assembleia Sinodal, resul- rência Episcopal Portuguesa, e foram perduravam. Esse mundo foi sucessi- de jovens), das associações profissio-
tando na Constituição Sinodal de Lis- sucessivas as minhas conferências de vamente desconstruído depois da Se- nais católicas e das instituições socio-
boa, que seguimos desde então. Creio imprensa nesses anos. Como respon- gunda Guerra Mundial e ainda mais caritativas. Sem esquecer a formação
que, de um modo geral, algo progre- di numa delas, estou sempre “mais do desde os anos 80, por fatores como a cada vez mais adequada de novos sa-
dimos nesse sentido. lado da cola do que dos cacos”, e isto intensificação mediática, a globaliza- cerdotes, diáconos e colaboradores lei-
pode não ser a apetência mediática. ção e a deslocação em massa para os gos, que vai prosseguindo com êxito.
Em quê, por exemplo? centros urbanos. No ponto em que es-
Podemos resumir a proposta do Síno- Apesar das posições e recomendações tamos, as instituições que sobram têm Mas então de onde pode vir a con-
do Diocesano de Lisboa em termos de da Conferência Episcopal — pouco de demonstrar na prática a bondade fusão, a incerteza, nalguns casos a
corresponsabilidade e missão. Assim divulgadas pelos media, é certo —, a dos valores que promovem, e as vizi- divisão? Este “leque” de palavras que
se une ao que o Papa Francisco nos verdade é que a legislação dos últimos nhanças podem ser mais virtuais do agora abri não é um “achar” meu...
tem proposto e ao que a Igreja preten- anos contraria os valores e preceitos que reais. Daqui que o testemunho ga- É o constatar de um estado de coisas
de em todas as dioceses. Correspon- do Evangelho, não só nas questões nhe maior relevo, porque só ele pode que — não excluindo o que de positivo
sabilidade significa que os membros fraturantes como nas relações entre o agregar e mobilizar adesões. No caso e substancial referiu — é real, existe.
de cada comunidade, no que trans- Estado e a sociedade, não respeitando católico, o Papa Francisco é exemplo A confusão, a incerteza e a divisão
mitam e celebrem, no que planeiem e por exemplo a subsidiariedade. Devo cabal disto mesmo, e a ação da Igreja, existem na sociedade em geral e afe-
levem por diante, tenham mais parti- concluir que a Igreja se tornou menos a nível mais local ou sectorial, terá de tam igualmente os meios eclesiais. São
cipação e não sejam apenas ouvintes influente em Portugal? Com pouco segui-lo. Aliás, vivemos há dois mi- próprias de um mundo tão desencon-
e assistentes mais ou menos assíduos peso nos processos de decisões? lénios do testemunho de uma pessoa trado como o nosso, onde a própria
ou ocasionais. Missão significa que as Quanto à influência da Igreja na socie- concreta, como foi Jesus, e dos teste- conversa se torna desconversa, por-
comunidades não vivam fechadas em dade e nas questões socioculturais e munhos de tantos que o seguiram e que a dificuldade em escutar os ou-
si mesmas, mas irradiem o que cele- políticas que se levantam, levemos em seguem. Testemunhos que constroem tros é muito grande. A comunicação é
bram, com testemunho vivo e coe- conta que o “paradigma” se alterou e reconstroem a comunidade. mais quantitativa do que qualitativa,
rente em todos os sectores sociais e
culturais. Creio que em tudo isso se
tem crescido, e nunca tivemos tantos
encontros de oração e reflexão, como
de preparação conjunta de ativida-
des nos vários campos, além do que
a internet nos permite fazer agora no
mesmo sentido. Também crescem as
iniciativas de evangelização nos vá-
rios meios, desde os universitários aos
socioprofissionais e aos familiares. Em
tudo isto tem crescido efetivamente a
vivência sinodal de caminho conjunto
e testemunho alargado. Grande parte
O Papa tem sido para todos
da minha ação liga-se a encontros a
todos os níveis, envolvendo clérigos e nós um claro exemplo de vida
leigos, e com os meus colegas passa-
-se o mesmo. O que noutros tempos
se decidia com uma indicação pessoal
evangélica. Está onde é preciso
acontece agora com diálogo e partilha
de opiniões e propósitos. estar e diz o que é preciso dizer”
E 44
sentido corrente do termo, mas como
um serviço, e que a grande dignidade
dos cristãos e cristãs lhes advém do ba-
tismo, que é acessível a todos.

O Papa Francisco convocou um Sí-


nodo dos Bispos, colocando temas
como a comunhão, a missão da Igre-
ja, a corresponsabilidade de todos
no centro da vida eclesial. Como tem
acompanhado esta caminhada sino-
dal, que ficará como um ex-líbris do
pontificado?
Acompanho a caminhada sinodal com
a mesma convicção com que realizá-
mos em Lisboa o nosso Sínodo Dio-
cesano, que visava o mesmo fim e se-
guindo o que o Papa nos dissera na sua
exortação de 2013. Comunhão e mis-
são só podem acontecer sinodalmen-
te, isto é, como caminho conjunto em
que são reconhecidas e valorizadas as
capacidades que Deus concede a cada
um para o bem de todos.

Falou da “formação de sacerdo-


porque só o título chama a atenção e historiador, investigador e professor coisas de Deus só se fazem com Deus, e tes”. Deixou uma marca impressiva e
quanto mais estrondoso for melhor. e é alguém particularmente inspirado procura responder a cada um, porque constante nos jovens que formou ou
Vive-se do contraste e não da concor- e lúcido quando escreve sobre Por- cada pessoa é o lugar mais certo em com quem se cruzou, numa atenta
dância, palavra que apela ao coração. tugal e os portugueses. A História e que Deus nos espera e reclama. proximidade e nunca os desacompa-
Se na vivência cristã aprendermos a Deus nunca colidiram? nhando. Um legado seu talvez menos
escutar realmente, a compreensão A História e Deus não colidem, antes O Santo Padre tem abordado de vá- conhecido?
crescerá e os reencontros também. É coincidem, porque o cristianismo — rios modos e várias vezes o papel da Durante muitos anos estive ligado à
um grande e incontornável desafio. ou o judeocristianismo — é uma reli- mulher na Igreja. O tema tem impor- formação sacerdotal e, como bispo, o
gião histórica. Quando Deus se reve- tância e consequências. Qual é a sua acompanhamento dos padres tem sido
Numa das suas intervenções, em ju- la a Moisés, diz que é quem vai sendo opinião? prioritário. Quando a vocação é certa
lho de 2013, aludindo à Igreja, disse com o seu povo. Pouco a pouco, essa Só quem não leu os Evangelhos e os e bem discernida, os padres dão um
que “falando de Igreja falamos de co- revelação apura-se com os profetas e primeiros escritos cristãos é que não excelente contributo humano e espi-
munidade e não de subjetivismos dis- os sábios de Israel. Jesus Cristo tam- repara na relevância feminina de tudo ritual à Igreja e à sociedade — que não
persos”. A que é que chamou “subje- bém diz aos seus discípulos que o es- o que lá se diz. Sem Maria nada pode- os dispensariam, aliás — e muito além
tivismos”? A Igreja — dentro e fora de pírito os guiará para a compreensão e ria acontecer, da conceção à cruz do do âmbito eclesial estrito. Fui semina-
portas — reflete ou incorpora mesmo absorção de tudo o que disse e fez. Na seu Filho. Do grupo de Jesus faziam rista nos anos 70, quando muita gen-
demasiados “subjetivismos”? verdade, subsistem dois protagonistas parte algumas mulheres, que o acom- te perguntava se os seminários ainda
Muitos sujeitos, necessariamente. — Deus, que é perfeito, e a Humanida- panharam até ao fim e foram as pri- tinham lugar, e fui formador a seguir.
Alguns subjetivismos, infelizmente. de, que Ele aperfeiçoa — na história de meiras testemunhas da ressurreição. Hoje, nos diálogos que mantenho com
Acontecem quando a maneira indi- cada um e na história do mundo intei- Paulo elogia no seu discípulo Timó- padres e seminaristas, verifico que o
vidual de ver prevalece sobre a escuta ro. Assim queiramos aprender. teo a fé recebida da mãe e da avó, caso que me trouxe a mim ao sacerdócio é
dos outros. Por vezes, nem se trata de que se repete até hoje. Na história da essencialmente o mesmo que os traz
ver com realismo, mas apenas de sen- Recebeu o Prémio Pessoa em 2009. Foi Igreja, várias mulheres foram deter- agora, o que, só por si, demonstra a va-
tir sem mais. A Igreja acontece de ou- também o reconhecimento da sua ca- minantes em momentos difíceis e de- lidade de algo que permanece e atra-
tro modo quando a nossa maneira de pacidade de “falar” para diversos mun- cisivos e não faltam “doutoras da Igre- vessa épocas tão diversas e desafios
ver e sentir coincidem com a de Jesus dos fora da Igreja? Como é que viveu ja” cujo magistério deve ser tido muito tão grandes. Essencialmente, trata-se
e do Evangelho, única realidade que essa escolha, que foi aliás seguida de um em conta. Não exercendo o ministério de aderir ao modo de viver e de servir
nos agrega e se torna critério de deci- belíssimo discurso seu? sacerdotal, que representa Cristo Ho- do próprio Jesus, criando uma família
são e ação. Assim continua a tradição Recebi o Prémio com muita surpresa, mem na oferta do seu próprio sacri- de filhos de Deus e verdadeiros irmãos.
viva e criativa que herdámos e pros- sim, muita surpresa... Distinções deste fício, nem por isso têm ou devem ter
seguimos. No processo sinodal que o género são responsabilidades acresci- um lugar secundário numa Igreja que, E porque a última pergunta é, afinal, a
Papa Francisco desencadeou insiste- das. Assim o senti e tenho de cumprir. não por acaso, é substantivo feminino. primeira, como soube que Deus que-
-se muito em que tudo comece com ria contar consigo? Como se descodi-
um tempo de oração, em que cada um Vem aí o Papa Francisco. Que mais o Não devem exercer esse ministério? fica um recado de Deus?
se disponha a avançar segundo a von- interpela no Santo Padre? Onde resi- Ainda não? Nunca? Ou esse tempo virá? O “recado” que Deus nos dirige só
tade de Deus comunitariamente dis- de a sua “diferença”? Estamos no campo do simbólico (Cris- se apura conjugando o apelo interior
cernida. É um desafio grande e exige O Papa Francisco tem sido para todos to Esposo da Igreja). Por isso, o Papa que se sinta com o chamamento exte-
disponibilidade permanente. nós um claro exemplo de vida evan- Francisco escreve que “o sacerdócio rior que a comunidade nos faça. A co-
gélica. Está onde é preciso estar e diz reservado aos homens, como sinal de munidade é o lugar da vocação, que é
A História e a investigação foram o que é preciso dizer. Como Cristo o fez Cristo Esposo que se entrega na Euca- sempre para o seu serviço. Aconteceu
importantes na sua vida, e a recen- em relação a tudo quanto aflige a Hu- ristia, é uma questão que não se põe comigo e acontece com todos, quando
te obra editada por Manuel Bra- manidade e contraria o desejo de Deus, em discussão” [“Evangelii Gaudium”, realmente acontece. b
ga da Cruz é um sinal disso mesmo. que é de paz e de justiça para todos. 104], lembrando logo a seguir que não
Tem uma carreira brilhante como Insiste sempre na oração, porque as deve ser entendido como um poder, no e@expresso.impresa.pt

E 45
OS CADERNOS E OS DIAS

SOBRE A CRENÇA

P
SERVE PARA A RELIGIÃO, PARA A POLÍTICA E PARA A SEMANA DOMÉSTICA
DE QUALQUER CIDADÃO: QUEM PROMETE É PORQUE NÃO FEZ; QUEM FEZ
NÃO PRECISA DE PROMETER. DIANTE DOS HIMALAIAS, SOBE OU CALA-TE

ara um observador entusiasta, como 3.


eu: alguém que vê de fora, mas De qualquer maneira, é evidente que a fé, para quem a pratica, é
entusiasmadamente, a fé individual mesmo isso, uma prática, não apenas uma linguagem. E há atletas
— não falemos de instituições ou de profissionais, nessa prática religiosa, e atletas amadores. E há depois os
igrejas —, essa fé que um humano muitos que simplesmente não jogam esse jogo.
diante de mim revela tantas vezes na A fé que apenas se diz por vocábulos repetidos é uma fé verbal, uma fé
forma como os seus olhos parecem que coloca palavras no mesmo ar onde certos ventos fortes dominam.
ligeiramente mais abertos, como que E não é preciso saber muito de Física para perceber que uma ação
constantemente espantados, essa fé, em estado sólido (as ações são sempre em estado sólido) resiste bem
dizia, é para mim um mistério benigno; melhor ao vento do que a promessa de uma ação. Prometer uma ação é
uma energia-a-mais que o outro tem e não ter feito ainda essa ação.
que eu gostaria também de tomar para mim. Mas não se aprende a Serve para a religião, para a política e para a semana doméstica de
crença como se aprende uma língua. qualquer cidadão: quem promete é porque não fez; quem fez não
precisa de prometer. Diante dos Himalaias, sobe ou cala-te.
1.
Ou talvez isto não seja verdade e a fé seja logo ensinada na primeira 4.
casa em que o bebé humano cai. De qualquer das maneiras, se estás a Estar junto, um objetivo. E atleta, portanto: alguém que treina para
meio da vida perdido na floresta, não é fácil tornares-te, de domingo exercer a compaixão como outros treinam para ganhar um campeonato
para segunda, um crente. O teu cérebro treinado, já há muito, para de futebol ou para apurar a pancada no ténis com a mão esquerda.
resolver questões práticas, quando perdido na floresta pede uma Pode a bondade treinar-se? Ou a maldade?
bússola, não uma religião. Podem alguns frequentar treinos de ética como outros frequentam o
A crença como algo que, nos dias racionais e quadriculados da ginásio logo pela manhã?
cidade, parece sempre não urgente no meio das cem mil urgências E que exercícios de ética serão esses? Que máquinas poderão
que um simples dia urbano exige. Mas há aqui um paradoxo que a aperfeiçoar a capacidade de estar-junto? Que músculos exteriores, ou
vida circular dos cidadãos põe em movimento sem cessar: muitas mais ocultos, devem ser estimulados diariamente?
urgências são insignificantes e muito do essencial é adiado para Quem conhece os exercícios espirituais de Loyola e de muitos outros
o dia a seguir à resolução das infinitas insignificâncias urgentes. religiosos ou filósofos — exercícios de pensamento, de linguagem e de
Mas, como todos sabemos, não há dia seguinte à resolução de corpo — sabe que todas as qualidades mentais ou religiosas são treináveis.
todas as emergências. Acordar na vida normal é acordar no meio Talvez não seja tão fácil, mas há tantos métodos para o treino da vontade
da vida apressada, num corpo que parece — mesmo que acorde de de um indivíduo como para o treino dos seus bíceps ou dos seus peitorais.
madrugada — sempre atrasado em relação ao dia. Claro que um indivíduo com uma vontade firmíssima não causa tanto
impacto na praia como alguém que tonificou durante meses os seus
2. músculos exteriores. Mas a vida, claro, nem sempre é verão. b
Mas nestes dias em que tanto se fala de fé e também de seitas e de
outros termos que muitas vezes chocam entre si, como um choque
entre duas viaturas que vão em dois sentidos diferentes, falemos
então deste assunto central.
Seita, sectário, secção e etc., palavras que vêm de corte e de
separação. Religião, pelo contrário, como tantos já o lembrarem, vem
de ligação, religar, um regresso à ligação — não é corte, é convite.
O religioso definido, por Régis Debray, como “um
atleta-do-estar-junto”.
Estes atletas que treinam essa capacidade para estar-junto, e com
isso conseguem evitar a solidão ou o desespero do outro, estes
/ GONÇALO
atletas-de-Cristo, por exemplo, muitas vezes fazem-no para fugir M. TAVARES
individualmente a alguma coisa — para fugir ao ultrapassado inferno,
por exemplo, essa imagem que, apesar de tudo, tanto ainda hoje nos
assusta, mesmo que simbolicamente, inferno que, como definiu Santa
Teresa de Ávila, é “o lugar que cheira mal e onde não se ama”.
Mas talvez o trajeto mais forte de um destes atletas éticos seja o que
resulta não de uma fuga mas de um desejo. Estou contigo, evito o teu
desespero, não por medo mas por vontade.

E 46
A insustentável
leveza de ler
37 sugestões de livros para
todos os gostos em dias de férias
ILUSTRAÇÃO PEDRO LOURENÇO

E 47
Romance+conto

Sejamos
pantagruélicos
T
Um clássico hilariante rabalhando com um
sistema de crowdpublishing
e venturoso de (financiamento coletivo), a
Rabelais para ler E-Primatur vem realizando um
trabalho absolutamente notável
nas tardes de estio de disponibilização de grandes
clássicos da literatura, alguns pela
— e rir, rir primeira vez em versão integral no
nosso país. Exemplos recentes: “Os
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA
Cantos de Cantuária”, de Chaucer;
e o primeiro volume dos “Ensaios”
de Montaigne. Em 2023, a editora
apostou num empreendimento
que podemos considerar a todos os pessoalíssimo”, os grandes poderes e crítico Manuel de Freitas é, também
títulos gargantuesco e pantagruélico da época em que viveu o seu autor, da ela, um triunfo de inteligência,
— fazendo jus aos adjetivos que os religião aos saberes cristalizados da sentido rítmico, ouvido apurado,
dois gigantes de Rabelais (1494-1553) Universidade (em particular a muito compreensão da obra e conhecimento
introduziram na língua portuguesa satirizada Sorbonne). Vertiginoso e dos respetivos estudos críticos ao
como sinónimo de ‘enorme’, inventivo, sensorial e corpóreo, lírico longo dos séculos. O feito maior do
‘desmesurado’ e ‘excessivo’. Neste e escatológico, sarcástico e hilariante, tradutor foi mesmo o de criar para
primeiro volume, de quase 800 o “realismo grotesco” de Rabelais cria Rabelais “um português que não
páginas (o segundo está previsto para a sua própria realidade, as suas regras, o envergonhe”, uma linguagem
novembro), reúnem-se três dos cinco a sua verosimilhança. Mergulhar rabelaisiana até à medula, com o
livros — embora a autenticidade neste universo é um puro deleite, uma auxílio de “[s]ete dicionários, dois
do quinto seja questionável — em aventura, uma descoberta fascinante, atris,/ três candeeiros servis” e uma
GARGÂNTUA & que Rabelais narra as andanças de apesar de aos leitores ser dito, logo na excelente seleção de vinhos franceses,
PANTAGRUEL — VOL. 1 Gargântua, pai, e Pantagruel, filho, advertência inicial, que “aqui pouca bebidos durante o “árduo combate”
François Rabelais por um mundo caótico, fustigando perfeição aprendereis, exceto em e devidamente elencados no final do
E-Primatur pelo caminho, num “idioma matéria de riso”. A tradução do poeta prólogo. b

A língua N em sempre, aos 80 anos, os


grandes escritores mantêm
o fôlego e a garra. Nesse
um livro de poemas em polaco e
que ela tenta traduzir.
“O Polaco” é a continuação da
prévio de existir numa outra
língua antes de ser comunicada.
E no entanto o diálogo acontece,

que o sentido, não seria incorreto dizer


que também se envelhece na
escrita. Mas há alguns para quem a
indagação de Coetzee sobre o
que é ter uma língua, estar numa
língua, iniciada já na Trilogia de
ainda que não conduza a lado
algum. Apenas à reflexão — que, de
qualquer modo, Coetzee não torna

amor
chama permanece acesa, e um dele Jesus. Aqui, as personagens falam evidente — sobre como o próprio
é J. M. Coetzee. Depois de, em 2019, um inglês para todas estrangeiro, sentimento amoroso pode tornar-
ter lançado o último livro da Trilogia segunda língua que oferece a se, a partir de certo momento, uma

(não) fala
de Jesus — “A Morte de Jesus” —, literalidade a que recorremos a bem língua estranha, um lugar vago, um
o que agora deu à estampa foi um de sermos (bem) compreendidos. ideal, uma ilusão, a curiosidade, um
exemplo de como um pequeno Cada frase possui esse momento prazer derradeiro.
livro, um livro simples, conciso, Neste romance existe também
quase minimal, pode resultar numa a música como elo relacional, a
lição brilhante de como contar que o pianista faz e Beatriz ouve,
uma história. Coetzee agarra-se ao um Chopin mais frio do que o
tempo linear para narrar o encontro habitual mas capaz de conectar
(ou desencontro?) de uma mulher dois seres entre os quais não há
O último romance catalã de meia-idade com um
pianista polaco idoso que a corteja.
hipótese de comunicação: “Não
compreende porque eu não explico
de J. M. Coetzee O amor consuma-se, mas não se bem em inglês, nem em nenhuma
concretiza, e o livro é uma ode a língua, nem sequer em polaco.
é uma lição de esse não amor, a esse vazio cheio Para compreender tem de estar
contenção narrativa de tudo o que poderia ter sido e não O POLACO em silêncio e escutar. Deixe que
foi. Witold e Beatriz, porém, ficarão J. M. Coetzee seja a música a falar, e nessa altura
TEXTO LUCIANA LEIDERFARB unidos na morte dele, que lhe deixa D. Quixote compreenderá.” b

E 48
Poesia
A BONECA RECEITAS DE
DESPIDA INVERNO DA
Paulo M. Morais COMUNIDADE
Casa das Letras Louise Glück
Relógio D’Água
Entre a aurora e o
crepúsculo, a vida de Nesta colectânea
Julieta vem ao encontro do leitor, pós-Nobel, Glück continua Glück: a
num estilo despojado que vale pela natureza, a família e a maternidade, os
narrativa em si mesma. Romance relâmpagos do passado, o desajuste
curioso e temerário, pelo compro- afectivo, a secura e a ternura, a an-
misso com a singeleza de um tempo tecipação ou a negação da morte, a

TIAGO MIRANDA
linear. / LUÍSA MELLID-FRANCO esperança contra a esperança. / P.M.

UMA VALSA ILUMINAÇÕES


COM A MORTE Arthur Rimbaud

Uma outra mulher


João Tordo Guerra & Paz
Companhia das Letras
“Iluminações” (escri-
O autor conversa ame- to na adolescência)
namente sobre o medo começa: “Assim que
da morte e o impulso da vida, num a ideia do Dilúvio serenou.” Só que
livro que valsa por entre sentimentos Poesia em processo, sobre corsárias o dilúvio Rimbaud nunca serenou,
contraditórios, mas onde a serenida- estancou, e muito cedo, talvez por
de, que bebe da arte e da espirituali- e demais: a voz de Margarida Vale de ser impossível escrever poemas tão
dade, nos desassossega o suficiente
para nos deixar viver. / L.M.-F.
Gato surge em resposta a outras vozes devastados e devastadores depois
da juventude. / P.M.
TEXTO PEDRO MEXIA
HISTÓRIA POESIA

O
DO REPOUSO nexo entre “mulher da Costa e Luiza Neto Jorge e a Luiza Neto Jorge
Alain Corbin Assírio & Alvim
ao mar” (alarme que sua “tão extraordinária oferta e
Quetzal
especifica o género do ansiedade”. O feminismo não é Com edição de Fer-
Depois de estudar o mais genérico “homem ao mar”) nestes poemas uma militância, nando Cabral Martins,
silêncio, a sombra e o e “corsárias” (piratas com carta de mas uma evidência; as convicções esta poesia completa
vento, Corbin apresenta vários aspe- corso e aqui mulheres-corsárias) não impedem a inquietude, nem lança-nos na vertigem de uma
tos da evolução da ideia de repouso, estabelece bem a inteligência e a inquietude as convicções; o escrita em que as imagens — quase
da dimensão religiosa à terapêutica, a vivacidade deste livro. É uma espírito crítico e sarcástico do sempre fulgurantes — deflagram.
culminando na conquista social das colectânea que desde 2010 teve ‘eu’ inclui o ‘eu’ no mundo, O resta está na ‘Minibiografia’: “Um
“férias pagas”. A prosa é erudita, já diferentes edições, sempre não o faz pairar acima dele; a poema deixo, ao retardador: Meia
amena, sempre desenvolta. / J.M.S. intituladas “Mulher ao Mar”, mas sofisticada intertextualidade palavra a bom entendedor.” / J.M.S.
com uma designação adicional que funciona mesmo quando não
vai mudando e poemas novos ou a detectamos; os momentos
CONTOS reescritos. Um work in progress. À que supomos confessionais POESIA REUNIDA
HIEROGLÍFICOS inteligência e vivacidade podemos mostram-se reticentes ou opacos; João Luís
Horace Walpole Barreto Guimarães
acrescentar a versatilidade, porque e combinam-se admiravelmente
Antígona Quetzal
neste livro encontramos textos a seriedade de processos e a leveza
Estas seis “bagatelas longos ou coloquiais e sonetos de resultados (ou vice-versa). É Nestas obras reunidas
fantasistas”, publicadas silabicamente minuciosos; a um livro que não acabou, que veio do Prémio Pessoa 2022,
no final do século XVIII, são precur- vida doméstica e o desamparo para ficar. b basta abrir o livro e ler: “estamos den-
soras do surrealismo e do nonsense. amoroso e o fervor erótico; a tro dos dias/ na cidade do mar hoje é
Com a sua imaginação e liberdade maternidade e a desmitologização Pedro Mexia escreve de acordo Dezembro”, e: “Crescer: resta-nos a
formal, elas subvertem os códigos das mulheres como ‘musas’ (as com a antiga ortografia tímida consolação de com os dedos
ficcionais com desaforo, ironia e um Ofélias, as Isoldas); variações podermos fazer (quase) tudo”, para
enorme sentido lúdico. / J.M.S. sobre Soares de Passos e viagens não mais o querer fechar. / L.L.
num Intercidades; um poema em
que “placebo” rima com “libido”
A VIDA ERRANTE e outro que usa a expressão, CANINA
Guy de Maupassant hermética para a maioria dos Andreia C. Faria
Tinta-da-china Tinta-da-china
leitores, “eis, pois, advogada
Farto de viver o “tédio nossa”. As corsárias-mor desta Livro pequeno e gran-
absoluto” de Paris, edição bifronte são “Dickinson de, no qual cabe uma
Maupassant parte em Plath Woolf Kahlo”, que fazem poesia funda e carnal,
viagem — Itália, Argélia, Tunísia — e de Margarida Vale de Gato “uma altamente depurada, de uma jovem
documenta-a num belo diário, aten- voz a responder a uma voz”. MULHER AO MAR poetisa do Porto que já venceu o
tíssimo ao inesperado e em busca Ou são Safo, Rich, Pizarnik. E CORSÁRIAS Prémio Literário Fundação Inês de
do “aspeto que não tenha sido visto Ou Sharon Olds, Anne Carson, Margarida Vale de Gato Castro. “Nada do que importa está
e dito por mais ninguém”. / J.M.S. Maya Deren. Ou Maria Velho Mariposa Azual escrito”, lemos a páginas tantas. / L.L.

E 49
História
poder, o que acontece na atualidade PÁTRIAS
é visto à luz de exemplos romanos. Timothy Garton Ash
Quando Trump recusou aceitar a sua Temas e Debates
derrota nas eleições de 2020, houve
quem o contrastasse com Cincinato, Com o subtítulo “Uma
o general romano que renunciou História Pessoal da Eu-
voluntariamente ao cargo de ditador ropa”, este volume que
uma vez cumprida a tarefa de que o se lê de um fôlego fala das mudan-
Senado o incumbira. ças ocorridas no continente europeu
Trump é assumidamente uma das de 1945 aos nossos dias, passando,
motivações de Edward J. Watts claro, pela queda do Muro de Berlim
para escrever “O Eterno Declínio em 1989. São os ‘anos zero’ ou os
e Queda de Roma”. Não por causa vários recomeços de um território
dos eventos de 6 de janeiro de com milhões de ideias diferentes de
2021, que ainda estavam a meses ‘pátria’. O autor parte da sua própria
de distância quando o autor memória para mostrar como as
terminou o texto, mas por causa da histórias pessoais são influenciadas
narrativa trumpiana de declínio pelos movimentos tectónicos da
da América — um declínio que só História, ou, ao contrário, como esta
ele teria capacidade para reverter. se constrói de narrativas individuais.
Conforme Watts mostra, as ideias de Esse é o grande trunfo do livro.
declínio e queda são muito antigas, / LUCIANA LEIDERFARB
mesmo em Roma. Já no século II
A.C., Catão o Velho as usava para
defender a renovação da República, UMA PEQUENA
recuperando antigas virtudes
CIDADE
NA UCRÂNIA
supostamente perdidas. Ao longo
Bernard Wasserstein
dos séculos, vários imperadores e
Temas e Debates
pretendentes a imperadores fizeram
o mesmo, adotando retóricas Este livro é daquelas
abertamente messiânicas que ecoam raridades inclassificáveis que um
hoje em dia não só em Trump como dia nos caem nas mãos. É, todo ele,
GETTY IMAGES

em gente como Duterte, Bolsonaro sobre uma pequena cidade ucrania-


e Abascal, para não referir exemplos na, Krakowiec, de onde a família do
mais próximos. autor e historiador é originária. Ele
A estratégia é poderosa e apela a conta, no início, como uma “curio-

Ser ou não
pessoas cansadas das confusões sidade genealógica” se tornou uma
inerentes a uma sociedade complexa “obsessão” e como passou 25 anos
e a um sistema político competitivo. a pesquisar aquela povoação, tendo
Acima de tudo, cansadas de elaborado uma lista de 17 mil habi-

ser romano
mudanças que vieram alterar uma tantes nos últimos quatro séculos.
ordem supostamente estável e Para nosso alívio, não é o que propõe
próspera e aspiram à restauração neste volume, que se serve daqueles
nacional. Tais narrativas, quase elementos apenas para construir
por definição, atacam os alegados uma (maravilhosa) autobiografia
responsáveis pela decadência. familiar. / L.L.
Edward J. Watts escreve sobre Em alternativa, perante uma situação
O ANO I DA
difícil, pode tentar-se unir a nação.
como a retórica do declínio de Roma Foi isso que fez o imperador Marco
REVOLUÇÃO
Victor Serge
foi usada ao longo dos séculos Aurélio, quando uma epidemia de
varíola devastou a população em 165
Bookbuilders
TEXTO LUÍS M. FARIA A.D.(outro exemplo que contrasta Escritor de imensos
com o que aconteceu nos EUA e variados talentos,
durante a epidemia de covid-19). Viktor Serge cresceu fora da Rússia

S
e a História é sempre filha do Roma oferece mais exemplos e só voltou lá em 1919. Originalmen-
momento em que a escrevem, positivos, os quais podem servir de te anarquista, nessa altura aderiu
a história romana é-o ainda inspiração nos nossos dias. Este livro, ao regime bolchevique. A presente
mais do que as outras. Governantes que traça o progresso da retórica de história, não tendo origem numa
em variadíssimos tempos e lugares declínio e queda ao longo de mais experiência direta, foi considera-
têm usado o exemplo de Roma para de 20 séculos, vale não só como uma da ingénua nalguns pontos — por
validar os seus atos e a sua posição. digressão extremamente legível pela exemplo, ao ver na revolução de
Os Estados Unidos, onde instituições história de Roma e do seu império — 1917 um genuíno movimento popu-
políticas (o Senado, entre elas) incluindo tentativas de o ressuscitar lar, não um golpe de Estado —, mas
foram beber inspiração a Roma, na primeira metade do século XX — é suficientemente lúcida e detalha-
O ETERNO DECLÍNIO são apenas um caso, que gerou como por confirmar que a História, da para proporcionar uma narrativa
E QUEDA DE ROMA imitações em muitos outros países. sendo com frequência usada para aliciante a qualquer leitor interessa-
Edward J. Watts Mesmo em aspetos particulares enganar e mentir, às vezes também do no assunto. E foi escrita em prosa
Bertrand como a renúncia a um lugar de ajuda a compreender. b excelente. / L.M.F.

E 50
Biografia Política

O passado
O DEVER DE o conflito entre estes dois Estados
DESLUMBRAR à inevitabilidade. Uma dessas
Filipa Martins dinâmicas é o dilema da segurança,

explica o presente
Contraponto fortemente alimentado pela onda
de democratização pós-1989.
É um dos livros do Aplicado ao caso da Ucrânia e da
ano, a biografia Rússia, este dilema pode resumir-se
de Natália Correia quando se na afirmação de D’Anieri: “Como
completam 100 anos do seu O grande contributo deste livro as novas democracias desejavam
nascimento e 30 da sua morte. aderir às instituições democráticas
O livro, escrito com pluma esti- é investigar as condições que conduziram internacionais da Europa, a União
lizada e assumindo as (poucas)
lacunas que ficaram, lê-se como
ao atual conflito russo-ucraniano Europeia e a NATO, a democratização
enfrentava consequências geopolíticas
um romance, ou não fosse a vida TEXTO DANIELA NUNES que o Ocidente via como favoráveis
da poetisa — como gostava e a Rússia como ameaçadoras. Esta
de ser chamada — um retrato dinâmica associada à construção de

A
do que era ser mulher, mesmo utor de “Interdependência muitos livros acerca da guerra na duas narrativas opostas, a russa e a
uma mulher muito invulgar, sem Económica nas Relações Ucrânia têm omitido, sendo este o ocidental, tem vindo a impedir que
filhos e deputada da nação, em Russo-Ucranianas”, de principal valor acrescentado desta ao final da Guerra Fria suceda uma
meados do século XX, nascida 1999, e de “Compreender a Política obra: o regresso à História e ao fim da paz verídica e efetiva, principalmente
nos Açores e vinda, com a mãe e Ucraniana”, de 2007, Paul D’Anieri, Guerra Fria, à separação geopolítica na Europa.” É sobretudo esta chave
a irmã, para Lisboa. / L.L. pode ser considerado um veterano no das irmãs russa e ucraniana (duas interpretativa que eleva este livro ao
estudo das relações entre a Ucrânia e antigas repúblicas soviéticas), assim patamar da análise e compreensão
a Rússia desde o prelúdio do colapso como à construção da Ucrânia das Relações Internacionais.
A VIDA DE da arquitetura soviética. Nesta obra pós-soviética durante os anos 1990, Em 2023, a atualização desta obra
BEETHOVEN mais recente, por cá lançada em a que sucede, mais de uma década (cuja versão original remonta a 2019)
Romain Rolland
março, o primeiro elemento distintivo depois, o turbulento período de Yuri conta com três novos capítulos e com
Guerra & Paz
é o índice: um elenco irrepreensível Yanukovych. Esta história não se o exercício provavelmente pioneiro de
Há biografias que dos mais importantes eventos pré- cinge aos constrangimentos internos uma interligação entre 2014 e 2022 —
não sobrevivem guerra, cada um fundamental para e aos interesses antagónicos nascidos entre a invasão da Crimeia pela Rússia
pela sua exatidão informativa, uma leitura completa sobre o que se no pós-Guerra Fria entre a Federação e o deflagrar da “operação militar
mas pelo teor autoral que carre- passa hoje entre a Rússia e a Ucrânia. Russa e a Ucrânia independente. especial” — baseada nas suas origens
gam. Esta é uma delas, nascida Das ‘Origens do Conflito’ (1º capítulo) Outras dinâmicas mais abrangentes mais profundas e não apenas naquelas
da pena de um grande escritor, à ‘Guerra Quente’ (último), o livro — ou fatores estruturais inerentes à exclusivamente ligadas às pretensões
construída em torno de dados oferece uma proposta explicativa política internacional — conduziram de Vladimir Putin relativamente à
concretos mas também de uma para aquele que começou por ser Ucrânia (este problema é, em rigor,
compaixão infinita pela figura um “divórcio civilizado” — na feliz anterior à chegada de Putin ao poder,
de um Beethoven que, sim, é expressão do autor — entre russos e A UCRÂNIA E e isso é explorado por D’Anieri).
imenso, mas também suscetível ucranianos, e culminou num cenário A RÚSSIA: DO O objetivo do autor não é, pois, o
de grade sofrimento e dor psi- bélico de que o Velho Continente não DIVÓRCIO de profetizar acerca do futuro da
cológica, um leão irado a quem era palco desde o final da Segunda CIVILIZADO guerra. O seu principal desígnio é o
lhe retiraram o que lhe era mais Guerra Mundial. À GUERRA de explicar as condições, tão antigas
precioso — a audição — e o que Partindo de 1989 e da implosão da INCIVIL quanto a própria dissolução da URSS,
o conduziu a uma solidão difícil União Soviética em 1991, a história Paul D’Anieri que conduziram ao catastrófico ano
de imaginar. / L.L. contada por D’Anieri é aquela que Relógio D’Água de 2022. b

A VIDA
POR ESCRITO “Fracassaram as sondagens.” A frase, As fronteiras regressaram às notícias.
Ruy Castro
repetida a propósito das últimas Após uma fase de otimismo em que se
Tinta-da-china
eleições em Espanha, não surpreende. pensou que o termo da Guerra Fria e o
“Ciência e Arte da Desde o ‘Brexit’ que as sondagens fra- advento da internet tornariam irrelevan-
Biografia” é o sub- cassam mais do que acertam. Empoli tes quaisquer barreiras físicas, as crises
título escolhido pelo jornalista e avança pistas. Analisa o trabalho das de refugiados e uma série de guerras, a
biógrafo de figuras como Nelson novas campanhas e dos seus “magos” última das quais na Ucrânia, provaram
Rodrigues, Garrincha e Carmen (é autor de “O Mago do Kremlin”, que está longe de ser esse o caso. Neste
Miranda, entre outros (escreveu romance inspirado na figura do spin volume, o professor de geopolítica
uma trintena de livros). Neste, OS doctor de Putin). Steve Bannon é mais GUERRAS na Universidade de Londres traça um
acabado de sair, explica em que
ENGENHEIROS famoso. Mas o trabalho destes magos
DE panorama estruturado não a partir de
DO CAOS FRONTEIRA
consiste o trabalho do biógrafo, não seria bem-sucedido se o mundo conflitos concretos mas de tipos de
Giuliano Klaus Dodds
o que deve a todo o custo evitar, não fosse menos racional. Empoli diz fronteiras: além das que nos são fami-
da Empoli Edições 70
em que pecados não deve cair Gradiva que vivemos na era da política quânti- liares, há fronteiras móveis — glaciares
e a postura ética da qual não ca. Os eleitores já não são átomos com que derretem —, aquáticas, inteligen-
convém afastar-se, “sob pena convicções ideológicas e compor- tes, virais, não reconhecidas, em vias
de, em vez de uma biografia, tamentos previsíveis. São partículas de desaparecer, no espaço... Com as
escrever outra coisa qualquer”. instáveis. Geram paradoxos. E até alterações climáticas e as perspetivas
Castro é radical: a única arma do podem ter duas faces, como a estrela de exploração de Marte, o tema só
biógrafo é a verdade. / L.L. Janus. / CRISTINA MARGATO aumentará a relevância. / L.M.F.

E 51
Ciência Música+fotografia
Hossenfelder é uma física teórica OUTRA
alemã que, até ao ano passado, AUTOBIOGRAFIA
foi investigadora no Instituto de Rita Lee
Estudos Avançados de Frankfurt. Contraponto
Em paralelo, desenvolveu uma
carreira de divulgadora científica Na apresentação de
onde se valeu não só dos “Uma Outra Biogra-
conhecimentos como do seu estilo fia”, Rita Lee, que morreu em maio,
direto (neste livro admite que não é escreveu: “Quando decidi escrever
conhecida por ser simpática). Numa [a primeira biografia], achei que
área conhecida pelo elevado nível nada mais tão digno de nota pu-
de abstração, isso pode ser uma desse acontecer em minha vidinha
vantagem. Hossenfelder distingue besta. Mas enquanto a gente faz
GETTY IMAGES

claramente o que já sabemos — a planos, Deus dá uma risadinha


ciência tem de facto respostas sarcástica.” Essa risada fez-se
— daquilo que não sabemos e ouvir quando, durante a pandemia,
provavelmente nunca iremos saber. a cantora descobriu ter cancro. A

Nem
O início do Universo, por exemplo, forma como lidou com a doença é o

A
infância e a adolescência são será por definição um problema tema de um livro no qual, de forma
os períodos em que dedicamos impossível, não obstante a força de comovente, volta a esgrimir a sua

sempre
alguma atenção às chamadas dogma assumida por certos mitos arma predileta: o humor.
questões existenciais. Depois disso, a de criação — ela chama assim, / LIA PEREIRA
vida prática e profissional impõe-se, abertamente, a uma teoria como a


e já não há vagar. Se por acaso nos do Big Bang. Não é não científica,
dedicámos a, por exemplo, perceber apenas “acientífica”, diz um dos 12 NOTAS
o que é o tempo, o mais natural é quatro cientistas entrevistados em
SOBRE
A VIDA E A

respostas
termos chegado à conclusão de que capítulos individuais, neste caso o
CRIATIVIDADE
não havia uma resposta totalmente físico britânico Tim Palmer, que a
Quincy Jones
satisfatória. No entanto, as perguntas põe ao nível da criação do Universo Penguin Random House
continuam lá, à espera de serem por um Deus.
respondidas. O que passou perde- Em qualquer inquérito que Quincy Jones, produtor musi-
Pode tratar-se como se para sempre? Existem outros misture questões existenciais e cal, compositor e executivo da
mundos? Este foi criado para nós e ciência, a cautela epistemológica indústria discográfica, tem 90 anos
‘dogma’ a teoria do por quem? Com que propósito? Como é indispensável, mas não tem de e um currículo ímpar. Fixemo-nos
Big Bang? Neste foi o seu início? Há também questões
sobre a natureza da vontade, outro
estragar a narrativa. Pelo contrário.
Ao manter aberta a porta do mistério,
no pináculo: foi ele o homem atrás
dos ‘botões’ em “Off the Wall”,
livro, que tenta assunto tão misterioso e irredutível devolve-nos à tal época afortunada “Thriller” e “Bad”, os três discos mais
como o tempo. Ou saber se toda em que tínhamos vagar... b importantes da carreira de Michael
balizar até onde a matéria tem consciência ou se o Jackson, que em conjunto vende-
chega hoje o Universo ‘pensa’, o que quer que
isso signifique. Estas são algumas
ram mais de 120 milhões de cópias.
Este livro traduz a experiência do
conhecimento das questões abordadas por Sabine veterano em 12 lições, sendo a
Hossenfelder neste livro, que tem a A FÍSICA mais importante, talvez, esta: “Faça
científico, sim dupla vantagem de nos fazer voltar E AS GRANDES o que nunca foi feito.”
a pensar em grandes problemas que QUESTÕES / LUÍS GUERRA
TEXTO LUÍS M. FARIA
um dia nos ocuparam, ao mesmo DA VIDA
tempo que nos transmite uma boa Sabine
quantidade de informação sobre a Hossenfelder
1964: EYES
física moderna. Bertrand
OF THE STORM
Paul McCartney
Allen Lane
275 imagens da banda
“Os avanços na compreensão da O ano passado, esta dupla espanhola que reescreveu a his-
genética (...) rivalizam com quais- — um escritor e um paleontólogo — tória da música no século XX, pro-
quer conhecimentos sobre o mundo escreveu um livro em que um Sapiens venientes da exposição homónima
natural que a imaginação humana e conta a vida a um Neandertal. Agora, patente na National Portrait Gallery,
as investigações cuidadosas alguma chegou a vez da morte. Tal como o em Londres. Há três anos foram
vez conjugaram”, diz o geneticis- anterior, o livro é uma conversa entre encontradas cerca de mil fotografias
ta David Goldstein. Se a ciência dois amigos, entre almoços e viagens, tiradas por Paul McCartney, com
progrediu velozmente, a consciência sobre a morte vista a partir do seu um câmara de 35 mm, entre 1963
dos seus efeitos fê-lo mais deva- oposto — a eternidade. Cada vez mais, e 1964, precisamente na altura em
O FIM DA gar. Numa altura em que se fala da A MORTE é esse o anseio humano e para lá que que o fenómeno da ‘beatlemania’
GENÉTICA possibilidade de os pais decidirem a
CONTADA POR a ciência caminha. É a morte evitável? explodiu no Reino Unido e nos Esta-
David B. Goldstein UM SAPIENS A
composição genética dos filhos, este UM NEANDERTAL Ou melhor, o que é a morte? E quantas dos Unidos. Os “Fab Four” estavam
Guerra & Paz
livro faz o ponto da situação, com respostas possíveis há na natureza para a caminho de se tornarem ícones de
Juan José Millás e
dúvidas e otimismo, por exemplo so- Juan Luis Arsuaga esta pergunta? Será a morte o que uma geração. Para ver, ler (as me-
bre o papel da genética na preven- Editorial Presença nos acontece quando deixamos de ser mórias de McCartney) e guardar.
ção de doenças infecciosas. / L.M.F. eternos? / LUCIANA LEIDERFARB / RICARDO MARQUES

E 52
Banda desenhada Infantil+Juvenil
REINAÇÕES
DE NARIZINHO
Monteiro Lobato
Tinta-da-china

Com ilustrações de
André Leblanc, este
é um dos clássicos brasileiros da
literatura para os mais novos, cujo
FEYNMAN cenário é o Sítio do Picapau Amare-
Jim Ottaviani e Leland Myrick lo, e as personagens são o Narizinho,
Gradiva
a boneca Emília, a dona Benta, a tia
Nastácia, entre outros. / L.L.
Longe do simplismo que recorre à
linguagem da banda desenhada para
O LIVRO
Afinal, os ideais contar certas histórias, acreditando
na sua suposta simplicidade, Ot-
taviani e Myrick fazem deste livro
COM FRIO
André Madaleno
e Patrícia Furtado

desenham-se uma biografia bem documentada de


Richard Feynman, o físico que parti-
cipou na criação da bomba atómica e
que ajudou a desvendar a mecânica
Jacarandá

O livro fala connosco,


desde o momento em que o abri-
quântica, tendo recebido o Nobel da mos. Afinal, não podemos lá entrar
Dominique Grange cruza autobiografia e Física em 1965. Ao mesmo tempo, sem trazer “algo que impeça este
ficção, assinando o retrato de uma geração criam uma narrativa que tira o melhor
partido da estruturação em vinhetas
frio de entrar”. E parece que o livro
vai fechar-se só para não ter frio.
TEXTO SARA FIGUEIREDO COSTA e das elipses, onde não é difícil ver um Mas... um abraço resolve tudo. / L.L.
reflexo de alguns dos problemas que
o próprio Feynman tentou resolver
AVÓ, ONDE É

P
ublicada em França em 2021, sempre que procurou explicar o mun-
esta banda desenhada traz do e o seu funcionamento. / S.F.C.
QUE ESTAVAS
NO 25 DE ABRIL?
à cena uma jovem cantora
Ana Markl
francesa que se muda de Lyon
e Christina Casnellie
para Paris, em 1958, movida pela Lilliput
vontade de aliar a música à luta
política. Cruzando autobiografia e Revolução e cravos andam juntos,
ficção, Dominique Grange assina um e o Manu já não consegue ouvir
argumento que ecoa parte da sua vida falar deles. Até que, ao render-se à
— também ela cantora simpatizante evidência de que aqueles andam por
da esquerda e autora de um hino toda a parte (ao menos em Portugal),
que deu título ao livro — e constrói, registo didático-cronológico e decide tirar dúvidas com a avó. / L.L.
em simultâneo, uma narrativa assume a voz narradora como uma
assumidamente comprometida sobre protagonista entre muitas, revelando MAR NEGRO
as últimas décadas. as ilusões e desilusões, mas também Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho O MUNDO
De certo modo, esta é a história de aquilo que se salvou, uma vontade de
Planeta Tangerina DE SOFIA
Jostein Gaarder
parte da esquerda francesa entre prosseguir a luta contra as injustiças,
Editorial Presença
os anos 60 e 70, com o Maio de 68 que entretanto ganharam novas É a segunda vez que Ana Pessoa e
pelo meio e as referências vindas de formas. No traço inconfundível do Bernardo P. Carvalho assinam uma O livro existe há anos,
outros países (entre eles, Portugal, mestre Tardi, ainda assim pontuado banda desenhada (a primeira foi com mas em 2023 saíram
com o 25 de Abril e a aparição por planos surpreendentes e “Desvio”), e o universo narrativo volta por cá duas novas edições, e esta é
de José Mário Branco numa das pormenores que evitam a monotonia a fixar-se na adolescência, esse terre- uma delas. Prova de que ainda está
vinhetas). É, sobretudo, um olhar do reconhecimento, a jovem cantora no sempre tão minado. “Mar Negro” vigente? Sim: tanto é um romance
sobre essa história que foge do e o seu percurso não espelham é nome de gelado, mas é também o como um guia básico de filosofia
apenas parte da vida de Dominique lugar ao qual é difícil atribuir fron- para ser lido pelos jovens que co-
Grange. Entre os movimentos pela teiras, porque nele se cruza uma meçam a aprender a disciplina. / L.L.
independência da Argélia, o Maio leveza ainda conservada da infância
de 68 e as lutas nas fábricas e nos e as várias cargas que a chegada à
bairros na década de 70, este é vida adulta desvenda, entre elas o A LADRA QUE
um retrato vívido de parte de uma confronto direto com a morte, gatilho
CANTAVA
TEMPESTADES
geração, um coletivo heterogéneo permanente ao longo deste livro. É
Sophie Anderson
que a posteridade acabou por esse lugar que os dois protagonistas
Minotauro
assumir como monolítico. enfrentam e aprendem a habitar, num
Desvendar as idiossincrasias desse tempo balizado entre duas férias de Há uma ilha, Morovia,
coletivo e o capital emocional que verão. / S.F.C. cuja forma é a de um coração parti-
ELISE E OS NOVOS ajudou a cimentar escolhas políticas, do. E há uma história de quem ocupa
PARTISANS e a assumir ou ignorar derrotas, é cada uma das duas metades e de
Dominique Grange e Jacques Tardi uma das muitas qualidades deste que forma a ilha pode vir de novo a
Ala dos Livros livro. b ser uma só. / L.L.

E 53
Ci
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Papa A
reboque da Jornada onde elas tomaram e continuam
Mundial da Juventude — a tomar lugar, estão longe de ser
que decorrerá em Lisboa estranhas às preocupações e à
entre os dias 1 e 6 de agosto —, a agenda de Francisco — e supomos
Risi Film decidiu estrear nas salas até que, na génese deste projeto,

móvel
portuguesas um filme que se propõe tenha estado a constatação de uma
documentar, sinopticamente, certa ‘afinidade de inquietação’
as viagens realizadas pelo Papa entre o cineasta e o Papa. Que essa
Francisco no decurso dos primeiros afinidade se traduziu, por vezes,
nove anos do seu pontificado numa coincidência no espaço
(2013-2022). O responsável pela é o que prova o início do filme
empreitada é o italiano Gianfranco (sobretudo composto a partir da
Rosi, que, em 2013, se destacou montagem de imagens de arquivo
No seu novo documentário, com um belo documentário sobre disponibilizadas pelo Vaticano),
a vida quotidiana dos habitantes onde se recicla uma das sequências
o italiano Gianfranco Rosi segue dos subúrbios de Roma (“Sacro de “Fogo no Mar”.
o Papa Francisco por esse mundo fora, GRA”) e que, de então para cá, se
tem debruçado sobre alguns dos
Falamos daquela que nos mostra
como, em 2013, Francisco se
oferecendo-nos pelo caminho uma principais dramas sociopolíticos do deslocou até à ilha italiana
nosso tempo: da crise dos refugiados de Lampedusa para prestar
leitura demasiado resguardada dos (“Fogo no Mar”) à guerra no Médio homenagem e consolo aos
primeiros nove anos do seu pontificado Oriente (“Nocturno”).
Escusado será dizê-lo: essas
milhares de migrantes que ali se
encontravam estacionados (e, muito
TEXTO VASCO BAPTISTA MARQUES tragédias, bem como os territórios em particular, aos sobreviventes do

E 54
que, obedecendo a uma lógica
cumulativa, vai ilustrando os
movimentos efetuados pelo Papa
no mapa-múndi, sem conseguir
nesse processo tornar-nos mais
próximos ou mais cúmplices dele:
o Francisco que aqui descobrimos
é, mutatis mutandis, aquele que
nos é diariamente oferecido pelos
noticiários televisivos. Refira-se,
QQQ
aliás, que um dos motivos visuais BARBIE
mais fortes do filme é, precisamente, De Greta Gerwig
o da distância. Com Margot Robbie, Ryan Gosling,
De facto, para a câmara de Rosi, o America Ferrera, Will Ferrell,
Papa constitui amiúde uma figura Michael Cera (EUA)
Comédia/Aventura M/12
que só se deixa observar de longe,
enquanto circula no papamóvel
(ladeado por um sem-número de O novo filme de Greta Gerwig
seguranças) ou enquanto discursa coescrito com o seu companheiro
do alto de um qualquer palco-altar. Noah Baumbach é um pau de dois
É por isso que consideramos tão bicos, e essa natureza ambivalente vai
sintomática como exemplar a certamente tocar nas suscetibilidades
sequência em que o vemos dialogar, de grande parte da audiência. Por um
com delay, com um grupo de lado temos a ‘publicidade escondida’
astronautas que se encontra a bordo da Mattel que financiou o filme da
da Estação Espacial Internacional, Warner (era desejo antigo da grande
numa sequência que tem, de construtora de brinquedos) e que
resto, o mérito de sugerir um não se esgota naquela empresa, pois
desfasamento temporal entre as também lá anda a Chanel e há mesmo
palavras de Francisco e um mundo um momento em que à personagem
que parece sempre demorar a de Margot Robbie é dado a escolher,
entendê-las. em grande plano (imagine-se!), um sa-
Quanto à questão acessória de pato de salto alto rosa ou uma sandália
saber se Rosi quis ou não dar Birkenstock... É, portanto, um filme que
conta desse distanciamento neste não tem pejo algum em pespegar à
documentário, digamos desde já audiência a apoteose consumista a
que nos é impossível responder-lhe. que a boneca está diretamente ligada,
Quando mais não seja porque o que mas deveria ter sido mais apurado o
aqui mais distingue o ponto de vista simplismo na passagem da Barbieland
do cineasta é, sem dúvida, a sua para o mundo real (e de volta àquele
extrema ambiguidade. Ou por outra, com Ken já contaminado pelo ‘papão’
a sua incapacidade de se posicionar capitalista). Greta Gerwig está pois
de uma maneira franca em relação prestes a pegar numa tocha de fogo
ao seu objeto de estudo, que — a que facilmente se poderia pegar aos
O Papa Francisco que aqui
naufrágio que acabara de vitimar julgar pelo que neste quadro se seus cabelos. Mas o que é curioso nes-
descobrimos é aquele que nos
cerca de 400 deles). Essa é apenas é diariamente oferecido pelos vê — lhe suscita tanta admiração te quadro é que a cineasta consegue
a primeira das várias pit stops que, noticiários televisivos quanto reserva: sente-se que o filme realizar com uma liberdade artística e
ao longo de 80 minutos, serão oscila entre o discreto elogio do uma visão pessoal (humanizando Bar-
feitas por um documentário que, pensamento de Francisco e a crítica bie) que são assumidas sem rodeios do
daí para a frente, tratará de seguir velada da sua impotência para agir, início ao fim: se esta é a entrada defi-
o Papa no seu périplo pelo mundo, de um modo efetivo, sobre os males nitiva de Greta no mainstream, o filme
num trajeto que o transportará do costume ou de um narrador na que denuncia. não deixa de satirizar quem permitiu
Chile até aos EUA, e da República terceira pessoa, procede quase Daí que, chegados ao fim, tenhamos que ele existisse nesse ‘meio’ (é ótima
Centro-Africana até à Turquia. sempre por via da combinação de ficado sinceramente sem perceber a escolha de Will Ferrell para o CEO
Neste contexto, o que mais salta à três elementos distintos. A saber, lá muito bem onde quis, afinal, Rosi trapalhão da Mattel). O filme con-
vista é a aparente inexistência de um fragmentos dos discursos papais em chegar com esta “Viagem”, que, de vence menos pelo discurso feminista
princípio de organização das etapas voz on ou em voz off, imagens das tão repetitiva, distante e indecisa, palavroso que o domina (podia ser
desta digressão, que — não fazendo receções populares ou estatais do não faz jus ao corpo à volta do qual muito mais contundente) do que pelo
caso da cronologia — vai justapondo Sumo Pontífice e, ainda, imagens de circula sem cessar. b seu trabalho com as cores, os décors
imagens das diferentes visitas do arquivo (maioritariamente extraídas e o kitsch, efusivos e explícitos, assim
Papa, sem tornar claro aquilo que de outros filmes de Rosi) que como pelos momentos musicais. É um
justifica a passagem do ponto A para procuram estabelecer um vínculo filme que em parte desaponta, mas
o ponto B. Igualmente saliente é, entre as palavras que ouvimos e não chateia. E menos ainda chateia
há que dizê-lo, o esquema formal os acontecimentos históricos aos QQ Ken, o “eterno nº 2” desta história, a
(bastante rígido e mecânico) quais elas aludem: das alterações A VIAGEM DE PAPA FRANCISCO quem a realizadora oferece um ines-
que parece regular a composição climáticas ao genocídio arménio. De Gianfranco Rosi perado protagonismo: Ryan Gosling
interna de cada segmento, que, Aquilo que assim se constrói é, em (Itália) não fica nada atrás de Margot Robbie.
na ausência das talking heads do suma, uma espécie de travelogue Documentário M/12 / FRANCISCO FERREIRA

E 55
N
o passado dia 13 de julho, Sudden Move”) quer na televisão adolescente com cerca de 15 anos
a HBO Max estreou os dois (“Mosaic”). que vive com os pais (Danes e
primeiros episódios de uma O seu novo projeto constitui um Olyphant) num apartamento de
série que, a julgar pela sua ficha thriller criminal em seis episódios, luxo, sempre banhado por uma
técnica, tem diversos ventos a seu que nos instala na Nova Iorque dos meia-luz de efeitos sedativos.
favor. De facto, “Full Circle” — nossos dias para coreografar os Quem, por razões que
assim se chama ela — conta com um movimentos interligados de uma permanecerão obscuras até ao
elenco onde constam vários nomes extensa galeria de personagens desenlace da história, incumbe
sonantes (de Claire Danes a Timothy (e elas são a tal ponto numerosas um bando inverosimilmente
Olyphant) e com um realizador que, no fim, temos dificuldade em amador de rufias de levar a cabo o
que, goste-se ou não, marcou a lembrarmo-nos de todas elas). O sequestro é Savitri Mahabir. Ela é a
história do cinema americano dos acontecimento que as relaciona vetusta matriarca de uma família
últimos 40 anos. Falamos de Steven entre si e comanda a mecânica da de imigrantes guianenses que,
Soderbergh, que, aqui, se apoia na narrativa, esse, deixa-se descrever para quebrar uma maldição que
Coordenação João Miguel Salvador escrita de um argumentista — Ed em três rápidas penadas. Trata- fora alegadamente lançada sobre
jmsalvador@expresso.impresa.pt Solomon — com quem já colaborou se, em suma, da tentativa falhada o seu falecido marido, recorrerá
por duas vezes, quer no cinema (“No de rapto de Jared Browne: um aos serviços de um feiticeiro que,

O puzzle de
Soderbergh
Resultado de uma nova colaboração
entre Ed Solomon e Steven Soderbergh,
“Full Circle” instala-nos na Nova
Iorque dos nossos dias para cruzar
as vidas de um extenso grupo de
personagens, ligadas pela tentativa
falhada de rapto de um adolescente
TEXTO VASCO BAPTISTA MARQUES

FULL CIRCLE
De Ed Solomon
Com Claire Danes, Timothy
Olyphant, Dennis Quaid
HBO Max, em streaming
(Temporada 1)

E 56
para isso, lhe ‘recomenda’ o rapto cada passo dado pelas personagens Nos primeiros Soderbergh nos deixa do lado de
de Jared. A pergunta que, a partir parece implicar a enunciação de um fora: à margem da intimidade de
daí, fica a pairar é, claro está, a que novo enigma: percebemos depressa episódios, um grupo de personagens que estão
se prende com a misteriosa eleição
de um tal bode expiatório: em que
que, abusando da nossa fé em
coincidências, o argumento sugere
cada passo sempre de passagem, que mal temos
tempo de conhecer e que, por isso,
medida poderá estar Jared (ou a sua a existência de um qualquer vínculo dado pelas se mostram incapazes de suscitar
abastada família) relacionado com o entre Nicky e o pai de Jared (que em nós um mínimo de preocupação
passado de uma mulher guianense está mais ansioso do que seria de
personagens ou interesse. Igualmente
ligada ao mundo do crime? esperar quanto ao eventual resgate parece implicar subdesenvolvidos ficam alguns
Ainda que os três episódios iniciais do rapaz). aspetos salientes da história, que,
nos deem, a espaços, algumas Perante as sucessivas esfinges com a enunciação de na sua bulimia, se recusa a ‘entrar
pistas que nos ajudarão a decifrar o
enigma (a família do rapaz refere-
as quais “Full Circle” o confronta,
o espectador vê-se forçado — para
um novo enigma em detalhes’: nunca chegamos
a perceber em que consistem as
se, às tantas, à longínqua compra de não se perder — a manter um atividades criminais da família de
um terreno, na Guiana), a verdade registo atualizado das figuras com Mahabir, e mesmo o motivo colonial
é que eles trabalham, sobretudo, as quais se cruza e das relações que espoleta a ação acabará por ser
no sentido de o tornar tão opaco mais ou menos vaporosas que as desperdiçado (visto que nenhuma
quanto possível. Na realidade, é para unem. O esforço redobrado que é leitura nos é proposta sobre ele).
complicar ao máximo o problema assim exigido à sua atenção, esse, No fundo, “Full Circle” redunda
que o texto se apressa a multiplicar não será devidamente compensado. numa exibição extralonga de
as personagens e os subenredos, Desde logo, porque a realização de virtuosismo narrativo: o que de facto
seguindo em montagem alternada o cativa é o desejo de espalhar os
ou paralela, ora a família de Jared, elementos de um quebra-cabeças
ora a família de Mahabir, ora o que os seus três últimos episódios
miúdo que foi sequestrado por tratarão de resolver. E de um modo
engano (Nicky), ora os três jovens tão perfeito (não ficam pontas soltas
guianenses que tentam salvá-lo, por atar) que o resultado final prima,
ora a detetive da polícia que decide sobretudo, pela artificialidade: é, se
investigar o caso, ora o detetive da quisermos, demasiado certinho para
polícia que, por motivos suspeitos, que possa ter a aparência de uma
procura evitar que ela o faça. coisa viva. Dir-se-á, talvez, que é
O que daqui nasce é uma narrativa gratificante ver o engenho com que
dispersiva e fragmentada que — Solomon e Soderbergh montam o
como se de complexidade já não seu puzzle; a imagem formada
bastasse — se vai (des)compondo pela combinação das peças,
como uma boneca russa. Com essa, é que deixa um pouco a
efeito, nos primeiros episódios, desejar. b

Claire Danes, no papel de


Sam Browne, e Zazie
Beetz, como Mel Harmony,
são dois dos nomes fortes
no elenco de “Full Circle”
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt
PAUL SHOUL

A vida nova de Lloyd


U
ma voz quente e sedutora, antiga: a música eletrónica. Foi no para pagar. Então criei uma página
O músico inglês voando com elegância sobre seu estúdio caseiro, onde conversa [na plataforma de financiamento]
aprofunda no álbum canções inspiradas por com o Expresso por videochamada, Patreon e, durante um ano, apliquei
temas tão diversos como os motins que começou por explorar as toda a minha energia nisso. Foi
“On Pain” a direção de Paris (‘Warm by the Fire’) ou o possibilidades que os sintetizadores essa página que fez com que não
período berlinense de David Bowie lhe ofereciam. Confinado e perdêssemos a casa”, revela, com
eletrónica que há e Iggy Pop (‘The Idiot’): assim é, impossibilitado de continuar a sua desarmante franqueza. Cerca de um
muito o apaixona, em pinceladas gerais, o 12º álbum
do inglês Lloyd Cole, “On Pain”.
digressão pela Europa, devido ao
começo da pandemia, Lloyd Cole
ano mais tarde, quando percebeu
“que a covid não iria durar para
mas sem abandonar Radicado nos Estados Unidos há sentou-se a pensar neste álbum em sempre”, voltou a olhar para os

o charme de crooner mais de 30 anos, o homem que


Portugal começou por conhecer (e
março de 2020. “Depois percebi que
não tinha dinheiro para o futuro
rascunhos de canções e para os
sintetizadores que, garante, não
e contador de histórias adorar) enquanto jovem vocalista
dos Commotions volta a explorar,
próximo, e fazer um álbum não me
ia render dinheiro”, explica. “E tinha
alteram a essência da música que faz.
“A Apple Music ainda diz que
TEXTO LIA PEREIRA no disco deste ano, uma paixão uma casa, uma família e contas sou um singer-songwriter!”,

E 58
Aos 62 anos, Lloyd David Bowie se mudaram para
Cole editou o seu Berlim]. Andava a ler umas coisas
12º álbum a solo. Vive sobre isso e acredito que, se
nos Estados Unidos eles não tivessem ido viver para
há mais de 30 anos Berlim, provavelmente não teriam
sobrevivido. Estavam ambos à beira
de se matarem em Los Angeles.
Então, é uma canção sobre dois
amigos que se salvam um ao outro.
É uma ideia bonita, e, como eu não
tenho muitas ideias bonitas, é de
‘Isto pode ser um ré menor, isto aproveitar”, remata, risonho.
pode ser um fá!” Ainda que temas Ainda que ‘Wolves’, a última
como ‘This Can’t Be Happening’, canção do álbum, pareça remeter
de uma eletrónica mais ambiental, para o trabalho que David Bowie
possam surpreender os fãs da se encontrava a desenvolver nos
velha guarda, que conheceram últimos anos da sua carreira,
Lloyd Cole num contexto mais Lloyd Cole nega uma influência
acústico, o autor de “Rattlesnakes” direta: “No seu último período,
considera que o seu ofício não se ele parecia muito desiludido com
alterou com a chegada de novas a Humanidade. Por isso, talvez
matérias-primas. “Quando estou [haja algum paralelismo]”, reflete.
a fazer um projeto, gosto de ter “Mas, para ser sincero, encontro
uma palete limitada de sons. Não um grande buraco no catálogo
quero ter um número infinito [de do David Bowie, provavelmente
sons], senão tenho demasiadas do ‘Scary Monsters (and Super
escolhas na hora de tomar decisões. Creeps)’ [de 1980] quase até ao fim.
Só quero encontrar sons que Naqueles anos todos, não encontro
me apeteça juntar. Não é muito nada que me entusiasme como
diferente nem mais difícil do que me entusiasmou entre 1974 e 1977.
trabalhar com pianos e guitarras, Mas o último álbum [‘Blackstar’,
simplesmente estes são os sons que de 2016] é muito bonito. Não sinto
mais me atraem, neste momento. que esteja a tentar fazer o mesmo
E aquele tipo de música que tinha que o David Bowie, mas sou um
tendência a fazer com guitarras – grande fã, sobretudo da trilogia
rock and roll, folk, pop — já não me de Berlim.” O que, aos 62 anos,
entusiasma tanto.” Lloyd Cole está a tentar fazer é,
É sobre uma cama de sintetizadores mantendo a sua queda para o
etéreos que “On Pain” começa a songwriting, torná-lo mais leve,
desvendar-se: “I can’t be trusted mais aéreo, eventualmente mais
with your money (...)/ but you exploratório. “Peguei no que tinha
can trust me with your sorrow feito no ‘Guesswork’ [de 2019] e
and your pain”, promete Lloyd tentei tornar as peças minimalistas
Cole, não abandonando a sua ainda mais minimalistas, os
postura de cavalheiro crooner, sons densos ainda mais densos e

Cole
por um lado, e de contador de multifacetados. Queria seguir mais
histórias, por outro. Logo de a fundo nesta direção, e sinto que
seguida, ‘Warm by the Fire’, belo a música drone que ando a ouvir
pedaço de jangle pop, leva-nos me prova que posso ir ainda mais
de volta para territórios sonoros longe”, acredita. “Não me parece
mais familiares, apesar de o mote que vá chegar tão longe como
ter sido tudo menos confortável o Scott Walker, mas é excitante
(“Pareceu-me amoroso chamar tentar.” b
exclama, entre risos, referindo-se ‘Warm by the Fire’ a uma canção. lipereira@blitz.impresa.pt
à classificação da sua obra naquela “Aquele tipo Mas a inspiração foram os motins
plataforma de streaming. “O meu
processo de escrita mudou, sem
de música que de Paris: quando vi as imagens dos
bairros sociais a arder, pensei que
dúvida. Muitas vezes escrevo a eu tinha tendência este seria um título ligeiramente
partir do som, das possibilidades irónico sobre esse tipo de caos”).
sónicas. A ‘Wolves’, por exemplo, a fazer com Em ‘The Idiot’ aproxima-se da
nasceu de uns sons em loop que
eu criei aqui atrás, usando este
guitarras — rock pop eletrónica confessional a que
o norte-americano John Grant se
sintetizador”, diz-nos, apontando and roll, folk, tem dedicado nos últimos anos —
para um dos muitos instrumentos
que o ladeiam. “Pensei: ‘Olha que
pop — já não me aqui, o título da canção (o mesmo
do álbum de 1977 de Iggy Pop) QQQQ
lindo, será que consigo transformar entusiasma tanto” não engana. “Quando a escrevi, ON PAIN
isto em algo que consiga cantar?’ E estava um bocado obcecado por Lloyd Cole
só passados uns dias é que percebi: LLOYD COLE esse período [em que Iggy Pop e Edel Music

E 59
Anohni Hegarty ao
quinto álbum com os
seus Johnsons, o
primeiro desde 2010

QQQQ
KEEP YOUR COURAGE
novo álbum é um conjunto de Natalie Merchant
canções com forte apego à soul Nonesuch/Warner
que coloca questões, instiga a
mudança e exige respostas para “A palavra ‘coragem’ tem a raiz no
as emergências de um mundo que latim para ‘coração’, ‘cor’, e encontra-
parece permanecer em negação mo-la em muitas línguas: ‘le coeur’, ‘il
enquanto contempla o abismo. cuore’, ‘o coração’, ‘el corazón’. Este
“Algumas destas canções reagem a é um ciclo de canções que desenha
preocupações globais e ambientais o mapa da jornada de um coração
que começaram a ganhar voz corajoso”, esclarece Natalie Mer-
na música popular há mais de chant, desde o início nas liner notes,
50 anos”, assume Anohni na de “Keep Your Courage”. E, como
apresentação do disco. que para sublinhar isso, na imagem da
O sentimento de emergência capa do álbum, vemos uma represen-
climática atinge o pico no intenso tação de Joana D’Arc, figura feminina
minimalismo de ‘There Wasn’t de guerreira medieval. Na verdade,
Enough’ (“hungry hearts for apenas um entre muitos objetos da
hungry hands/ grab the Earth/ sua coleção de ephemera — nega-
take her life, chain her life”) e tivos fotográficos em placa de vidro,
no premente questionamento de daguerreótipos, dezenas de caixas
‘Why Am I Alive Now?’ (“I don’t de postais, catálogos, fotografias
want to be witness/ seeing all of vitorianas, cartões de publicidade,
this duress/ aching of our world”). revistas, imagens de infância, trajes
Contudo, pelo caminho, escutamos étnicos, flores, insetos, livros infan-
Anohni cantar sobre opressão social tis — que começou a reunir por volta
em ‘It Must Change’ (mais um grito dos 14 anos: “Jamestown, onde nasci,
de revolta do que uma reflexão: “the era uma pequena cidade na qual
truth is that our love will ricochet não havia muito para fazer. Pretendi
NOMI RUIZ

through eternity”) ou a filosofia do criar o meu pequeno museu dentro


ódio na áspera ‘Go Ahead’ (“you de uma caixa. Quando os 10,000
are an addict/ go ahead, hate Maniacs começaram a gravar discos,
yourself”), homenageando ainda eu era responsável pelo design de

Anohni muda
o amigo Lou Reed numa hipnótica capas e pósteres em que recorria à
‘Silver of Ice’, com um poema minha coleção de ephemera”. Para
assente em palavras que este lhe “Keep Your Courage”, sucessor de
terá dirigido pouco antes de morrer. “Butterfly” (2017), poderia dizer-se
“Aprendi em ‘Hopelessness’ que que Merchant se decidiu por outra

P
rovavelmente, depois musa na capa e prestando- posso criar uma banda sonora coleção de figuras (míticas e reais)
da estreia a solo, lhe a devida homenagem no com o potencial de fortificar as como entidades tutelares. Afrodite,
há sete anos, com o título. Esta nova fase do seu pessoas no seu trabalho, ativismo, Narciso, São Valentim, Walt Whit-
sublime (e excruciante) álbum percurso, contudo, nasce da sonhos e tomada de decisões”, man, William Blake, Joan Didion ou
“Hopelessness”, poucos intersecção entre a pegada pop assume a artista, “quero que o meu Buffy Sainte-Marie, em não menos
admiradores de Anohni vanguardista da primeira vida trabalho seja útil e ajudar outros amplo espectro de idiomas musi-
esperariam voltar a escutar a sua do grupo e a veia combativa e a moverem-se com dignidade e cais — gospel, soul, New Orleans,
voz ao lado dos Johnsons, coletivo intervencionista do eletrónico resiliência nestas conversações folk britânica, clássica de câmara —,
mutante que fundou em 1995 disco a solo. Na sua essência, o que agora enfrentamos”. Criado chamam a si intérpretes tão distintos
inspirando-se no nome da ativista em parceria com Jimmy Hogarth, como Abena Koomson-Davis, do Re-
trans Marsha P. Johnson — uma produtor e compositor escocês que sistance Revival Chorus, o coletivo
das figuras mais reverenciadas deixou a sua marca em trabalhos folk Lúnasa, o virtuoso clarinetista
dos motins de Stonewall, de Amy Winehouse, Tina Turner sírio Kinan Azmeh, o trombonista
momento-chave da luta pelos ou Sia, “My Back Was a Bridge for Steve Davis ou o compositor Gabriel
direitos LGBTQIA+ nos Estados You to Cross” afirma-se como uma Kahane, unidos no espírito do apelo a
Unidos. Pois bem: após uma longa viagem musicalmente sofisticada, Afrodite: “Make me head over heels,
pausa, a cantora e escritora de com um tanto de desolação e dor e make me drunk, make me blind, over
canções abraça o inesperado para QQQQ um tanto de bálsamo e vontade de the moon, half out of my mind, oh,
apresentar “My Back Was a Bridge MY BACK WAS A BRIDGE agir. Embrenhada nela, Anohni dá o make me weak in the knees, tremble
for You to Cross”, quinto álbum FOR YOU TO CROSS seu melhor, tentando equilibrar-se inside, give up easy and swallow my
de estúdio com os Johnsons, Anohni and the Johnsons na corda bamba de um mundo em pride, oh, make me, make me love.”
colocando uma imagem da sua Rough Trade/Popstock (auto)destruição. / MÁRIO RUI VIEIRA / JOÃO LISBOA

E 60
www.citemor.com
E ainda...

45º
SHERVIN LAINEZ
FESTIVAL
21 JUL _12 AGO _2023
QQQQ MONTEMOR-O-VELHO_COIMBRA_FIGUEIRA DA FOZ
ESTILHAÇOS DA ESCURIDÃO
Estilhaços NORAH JONES SEX 21 JULHO - 21:30 QUI 3 AGOSTO - 21:30 SAB 12 AGOSTO - 22:30
COIMBRA COIMBRA FIGUEIRA DA FOZ
Rastilho Festival Cool Jazz, Hipódromo Manuel TAGV - Teatro Académico Teatro da Cerca Praia do Cabedelo
Possolo, Cascais, amanhã, 21h Gil Vicente de São Bernardo JESSICA PINA
ROGÉRIO NUNO COSTA OLGA MESA | CONCERTO |
cooljazz.pt RETROSPECTIVA UNA MESA PROPRIA (DANZA DE MANOS)
Os primeiros dois minutos do tema
de abertura do álbum “Estilhaços de Dona de uma das melhores vozes SAB 22 JULHO - 22:30 SEX 4 AGOSTO- 22:30
MONTEMOR-O-VELHO MONTEMOR-O-VELHO MONTEMOR-O-VELHO
Escuridão” parecem prometer uma do jazz-pop reveladas neste século, Fábrica de Mármores Teatro Esther de Carvalho 21, 22, 27, 28 e 29 - JULHO
bem-disposta canção de balanço Norah Jones atua na derradeira noi- EL POLLO CAMPERO, ANDRÉ e. TEODÓSIO 3, 4, 5, 10, 11 e 12 - AGOSTO
COMIDAS PARA LLEVAR HAIKUS de SÓNIA BAPTISTA
leve pontuada por guitarra acústica te do Cool Jazz após longa ausência EL FUTURO 18:00 - 24:00
SAB 5 AGOSTO - 22:30 Alcáçova
e piano. Mas depois de uma nota dos palcos nacionais. Consigo traz QUI 27 JULHO - 22:30 MONTEMOR-O-VELHO
GENADZI BUTO
suspensa na guitarra escuta-se uma a música de oito álbuns de uma dis- MONTEMOR-O-VELHO Fábrica de Mármores
SÓNIA BAPTISTA TOO BIG DRAWING
Teatro Esther de Carvalho
voz grave e familiar que nos puxa cografia iniciada em 2002 em nota ANGÉLICA LIDDELL SWEAT, SWEAT, SWEAT (UM CONJUNTO
LA HORA LLEGÓ DE PEQUENOS AFRONTAMENTOS)
esse melódico tapete debaixo dos alta, com o premiado “Come Away
pés: “Boa noite! Bem-vindos à nossa with Me”, e que tem como último SEX 28 JULHO - 21:30 QUI 10 AGOSTO- 22:30
COIMBRA MONTEMOR-O-VELHO
escuridão!” Adolfo Luxúria Canibal e álbum de originais “Pick Me Up Off Teatro da Cerca Teatro Esther de Carvalho
de São Bernardo DAVID BENITO + ELENA CÓRDOBA + RESERVAS
António Rafael, ambos dos Mão Mor- the Floor”, lançado em 2020. SÍLVIA REAL LUZ PRADO E.: reservas@citemor.com
ta, juntaram-se uma vez mais a Jorge CONCERTO Nº1 PARA LAURA AY, JACINTO T.: +351 916 688 601
(14:00 - 20:00)
Coelho (Zen) e Henrique Fernandes SAB 29 JULHO - 22:30 SEX 11 AGOSTO - 22:30 No acesso a todos os
MONTEMOR-O-VELHO MONTEMOR-O-VELHO
para interromperem o silêncio de Fábrica de Mármores Fábrica de Mármores
espectáculos do programa
é o espectador que define
GONÇALO AFONSO

quase uma década para novo tomo de TIAGO RODRIGUES & TÓNAN QUITO JOÃOZINHO DA COSTA o preço do bilhete.
ENTRELINHAS ATOS ISOLADOS ORGANIZAÇÃO: CITEC
Estilhaços — o quarto no intermitente
percurso deste grupo. O projeto é
também uma homenagem a Susana
Saldanha, documentarista sonora
recentemente desaparecida — a sua
peça de radio art, “As Listas de Lillith”, FESTIVAL CONTRASTA
surge em dois momentos do alinha- Cortinas de São Francisco, Valença,
hoje e amanhã
mento. Quando se chega à segunda
faixa do álbum, é a voz ressoante Na segunda edição do festival da For-
de Adolfo que primeiro se faz ouvir: taleza de Valença perfilam-se hoje
“a noite cai repentina espalhando a concertos de Valter Lobo (20h30),
escuridão”, diz, antes de uma marcha Niño de Elche (21h35) e Pedro Abru-
de tonalidades fúnebres nos envolver nhosa (23h05), sendo a programação
a imaginação. Ao Expresso, o poeta- de amanhã composta por São Pedro
-cantor admite que durante muito (20h30), MARO (21h35) e Ana
tempo se defendeu quando escre- Moura (na foto; 23h05).
via ao pensar “estou só a escrever
letras de canções”, mas, com alguma
hesitação, lá admite que talvez exista
uma dimensão literária nas palavras
que escreve. “O Que Tenho a Di-
zer” confirma isso: sobre cinemática
tensão traduzida para piano, não nos
engana ao sugerir “o que tenho a dizer
não interessa a ninguém” porque a FESTIVAL PONTE D’LIMA
nossa atenção não arreda pé, sendo Expolima, Ponte de Lima,
3 a 5 de agosto
depois recompensado esse natural
festivalpontedlima.pt
ceticismo quando aquela voz que
também representa explica que às Estreante no panorama festivaleiro
vezes é tomada por “uma vertigem em 2023, o festival limiano tem
de violência incontrolável” antes início na quinta-feira num dia de Abra uma nova página na sua vida.
de concluir que o que tem a dizer é
que “a valorização do livre arbítrio” o
receção ao campista, apresentando
na noite seguinte (4 de agosto) um
Encontre a casa dos seus sonhos
“aborrece”, deixando, enfim, a poesia cartaz que inclui nomes como Le- em BPI Expresso Imobiliário.
entrar de rompante na sua voz quando gendary Tigerman (21h15), Capitão
inesperadamente declara que “ainda Fausto (00h45) e Throes + The
hoje” viu “uma árvore a levantar voo Shine (1h45). A 5 de agosto, o menu
conduzida por uma resplandecen- passa por Linda Martini (22h), David QUEM COMPRA E QUEM VENDE,

te nuvem de pássaros chilreantes”. Bruno (23h), os australianos Wolf- NA MESMA PÁGINA.

Quem nunca? / RUI MIGUEL ABREU mother (24h) e Moullinex (1h30).


Coordenação Cristina Margato
cmargato@expresso.impresa.pt

ALÍPIO PADILHA
Filipa Bossuet, João Cachola, Jorge Neto, Lara Mesquita, Joana Petiz e Paula Lovely partilham as suas pesquisas nos dois dias

Estado de
Em sintonia com a identidade do reinterpreta e ‘resignifica’ “Otelo”,
próprio programa artístico dos em que as personagens negras
SillySeason, “All Tomorrow’s Parties” se tornam brancas e vice-versa,
está aberto a todas as linguagens para “reimaginar um mundo onde

emergência
artísticas. Ricardo chama-lhe “uma o privilégio racial funcione ao
espécie de espetáculo dilatado”, contrário”. Jorge Neto pesquisa sobre
por relação com o que são as o amor, tendo como referências os
criações do grupo, onde entra teatro, livros “Tudo Sobre o Amor” de Bell
movimento, vídeo, artes plásticas e Hooks e “O Desafio Poliamoroso”
mais o que a imaginação permita. de Brigitte Vasallo, mas numa
Seis artistas
A
“ ll Tomorrow’s Parties” é Em quatro edições, o formato performance onde o tema não será
mais do que uma mostra também se foi alterando. Em 2020, literalmente expresso. João Cachola
partilham de criações artísticas. acolheram artistas em primeiras prossegue uma pesquisa que leva
Com curadoria do coletivo teatral criações. Agora, a curadoria procura três anos sobre desencantamento,
urgências em SillySeason, é um convite a seis a emergência, como sinónimo de numa exploração ainda muito aberta,
“All Tomorrow’s criadores, para estarem dez dias em
residência no espaço Gaivotas 6,
“urgência do discurso, o que está a
fervilhar, o que precisa de ser dito,
que é atravessada por palavras como
“morte, o fim de algo, família, restos,
Parties”, dos em Lisboa, e no final, em dois dias, o que precisa de ser desconstruído, fósseis, mamutes, criopreservação,
partilharem e discutirem as matérias o que precisa de ser desmontado de etc.” Filipa Bossuet combina o
SillySeason que andaram a investigar. um legado que está na terra e está pergaminho enquanto simbólico
TEXTO CLAUDIA GALHÓS Paula Lovely, João Cachola, Filipa nos nossos corpos”. do oficial e formal para criar uma
Bossuet, Jorge Neto, Joana Petiz e Todos os criadores partilham as suas instalação no foyer do espaço das
Lara Mesquita abordam questões pesquisas nos dois dias. Em muitos Gaivotas 6 que promova a rutura
como a gentrificação das cidades, casos não têm ainda sequer um título da formalidade e de organização
a construção de identidade de de trabalho, apenas temas ou ideias espacial hierárquica.
uma pessoa queer no seio familiar, por explorar. Joana Petiz, que vem do “All Tomorrow’s Parties” é também
o racismo ou a ‘resignificação’ teatro, pesquisa a ideia de pântano — uma provocação, segundo Ricardo,
de conceitos como amor, morte, “um ‘reencantamento’ do pântano para interrogar “o que são as festas
desencantamento... de forma a torná-lo habitável” — do amanhã”. Diz que “o amanhã, às
“Este é o projeto mais político das associada à crise na habitação, tendo vezes, é muito tarde. E há discursos
nossas vidas”, diz Ricardo Teixeira, como media artísticos a instalação e que não podem ser adiados, têm de
criador e ator que, juntamente com o som. Paula Lovely está a trabalhar ser para já, não podemos esperar
Cátia Tomé e Ivo Saraiva e Silva numa criação com o título “Sangue mais. O ‘All Tomorrow’s Parties’
formam os SillySeason. A primeira do Meu Sangue”, que parte de um é um primeiro ato, uma primeira
edição aconteceu em 2020, em plena projeto fotográfico em que veste as tentativa. Não há uma ideia de
pandemia, mas a ideia nascera um roupas dos pais, problematizando a alcançar uma meta ou um resultado.
ano antes de criar “um espaço onde identidade de uma pessoa queer no É uma tentativa de diálogo que pode
vários artistas das mais diversas contexto da relação familiar, para o findar no último dia de apresentação
áreas pudessem coabitar, onde desenvolver enquanto performance. ou pode resultar em algo que
existisse troca livre de pensamento Para Lara Mesquita, a residência surge mais tarde”. É na urgência
ALL TOMORROW’S PARTIES urgente, pensamento político funciona como mais um momento do presente que talvez se abra a
Gaivotas 6, Lisboa, também, sobre os tempos em que na pesquisa da sua próxima criação possibilidade de o amanhã poder ser
hoje e amanhã vivemos”. artística, “O Que Seria?”, onde dia de festa. b

E 62
em leilões da casa Sotheby’s,

A sedução que lhe assegurava a qualidade e


proveniência. A maioria são primeiras
edições e estão acompanhadas pelos

do Japão
catálogos originais das vendas.
Podemos vê-las agora reunidas
em “Mundo Flutuante: Estampas
Japonesas ‘Ukiyo-e’”, referência a
uma das expressões artísticas mais
prolíferas na cultura japonesa entre
A delicadeza poética da arte impressa sobre 1603 e 1868. “Ukiyo”, que significa,
precisamente, “mundo flutuante”, é
papel: estampas japonesas na Gulbenkian a tradução de um programa artístico
cuja produção foi uma das mais
TEXTO ANA SOROMENHO marcantes do período Edo, como se
e@expresso.impresa.pt chamava então a cidade de Tóquio.

E
m março de 1856, o mítico mais famosos artistas japoneses No texto de apresentação do catálogo
mundo nipónico encerrado também influenciaram os ateliês de da exposição, informa-nos Francesca
até então desde o século Monet, Manet, Van Gogh ou Gauguin, Neglia, curadora científica da mostra,
XVII revelou-se ao Ocidente. Este fascinados com as novidades exóticas, que a política xogunal levada a cabo
acontecimento, provocado pela explorando nas suas composições a pela dinastia Tokugawa conseguiu
diplomacia norte-americana, inspiração daquelas cores, formas e promover no conflituoso Japão
assinado no Tratado de Kanagawa e paisagens. As xilografias japonesas daquele tempo um período assinalável
logo seguido por toda a Europa com tornaram-se icónicas. de paz, a fim de poder garantir o
o objetivo de abrir aqueles portos Tal como todos os grandes poder militar e governamental e
ao comércio internacional, teve um colecionadores do seu tempo, o florescimento económico. Neste
efeito inesperado na cultura ocidental. também o cosmopolita Calouste contexto, foi possível implementar
Pela primeira vez chegavam aos Gulbenkian aderiu à onda movimentos artísticos, onde se
consumidores as belas peças feitas nipónica, integrando na sua encontram autores consagrados na
ao longo de séculos pelas mãos de coleção universalista um conjunto arte da xilogravura como Utamaro,
artistas e artesãos japoneses. Pouco significativo de peças de arte japonesa Hokkei, Hokusai, Hiroshige ou Eizan,
depois já os melhores antiquários de onde, a par das lacas, das caixas e presentes na exposição.
Paris e as casas e mansões das capitais dos estojos, se inclui um conjunto de Mal entramos na sala mergulhada
europeias se enchiam de objetos duas centenas e meia de estampas na penumbra, deparamos com essa
produzidos na Terra do Sol Nascente, japonesas produzidas pelos mais primeira visão de delicadeza poética
dando origem ao fenómeno global a importantes artistas daquela arte. posta na elegância e subtileza dos
que se deu o nome de “japonismo”. Segundo nos indica Jorge Rodrigues, desenhos e na precisão do traço. A
MUNDO FLUTUANTE: A delicadeza poética da arte impressa um dos curadores da exposição, perícia e técnica da arte de estampar
ESTAMPAS JAPONESAS sobre papel e nas gravuras e nas Gulbenkian era um colecionador é mostrada através de um vídeo onde
“UKIYO-E” estampas produzidas ao longo de criterioso e, entre 1911 e 1923, podemos seguir as mãos dos artesãos.
Gulbenkian, Lisboa, até 16 de outubro séculos nos ateliês de alguns dos comprou a sua coleção de estampas As estampas, que nos continuam a
seduzir, vão-se revelando a partir de
cursivos também impressos e que, ao
serem pela primeira vez traduzidos,
propõem uma outra visão do conjunto
da obra. As temáticas abordadas
centram-se sobretudo em cenas
ilustrativas da cultura popular de Edo,
gestos quotidianos. As comemorações
do novo ano, as lojas, as crenças, os
mitos, a paisagem ou tudo aquilo
que faz parte da vida nesta sociedade
japonesa onde, como sublinha Jorge
Rodrigues, “as relações são muito
complexas e codificadas”.
“Mundo Flutuante” refere-se
também a um mundo velado de
prazeres que decorria em redor
do bairro de Yoshiwara, onde se
encontravam as casas das cortesãs,
um mundo também altamente
hierarquizado e delineado por
MARA ABRANCHES

códigos e rituais. Para servir e


entreter os senhores, estas belas
mulheres eram, na verdade, as
figuras mais cultas e letradas de uma
sociedade fortemente vigiada. b
Mal entramos na sala mergulhada na penumbra observamos a subtileza dos desenhos e a precisão do traço asoromenho@expresso.impresa.pt

E 63
FRACO CONSOLO

José Régio
(1901-1969)

OS GRAUS
DE DEUS

N D.R.
RÉGIO VIVEU UMA “VOCAÇÃO SEM DOM”, UMA FÉ SEM FÉ, MAS COM NOSTALGIA DA FÉ

a semana em que recebemos “caprichosamente livre” e contraditório, belicoso e compassivo, recatado


uma multidão de fiéis na Jornada e impulsivo, comunicativo e perplexo. Jesus, ainda que não fosse filho de
Mundial da Juventude, ocorre- Deus, conduzia-nos a Deus, ou era uma hipótese de Deus.
me uma pergunta a destempo: Régio não conseguia desfazer-se da ideia de Deus, ainda que recusasse
seremos ainda um país católico? o abstracto e cerebral “Deus dos filósofos”. Um Deus incognoscível
Se vivemos em sociedades gerava, por reacção, uma vontade de conhecimento. E essa vontade fazia
hedonistas e individualistas, do escritor, as palavras são suas, um “místico”. Um místico na medida
se consideramos desfasados ou em que ansiava por uma relação directa não com os dogmas da fé, a
inaceitáveis os fundamentos da comunidade dos crentes, ou a religião organizada, mas com Deus. E,
antropologia cristã, se qualquer entretanto, debatia-se com o livre-arbítrio ou a teodiceia, as grandes
conceito teológico só suscita questões, já nessa altura tidas por “inactuais”.
sarcasmo, se os resquícios O conceito mais proveitoso do livro é o de “graus de Deus”: “Cada um de
do catolicismo maioritário se nós tem o Deus que pode ter: aquele que lhe permite a sua sensibilidade,
reduzem quase à auto-identificação estatística, que católicos somos? a sua imaginação, a sua inteligência, a sua experiência, a sua cultura.
Há umas décadas, as revistas faziam números temáticos com inquéritos Mais: cada um de nós, conforme os diversos momentos, tem diversas
sobre “o problema religioso” ou “a questão de Deus”, assuntos que visões ou apreensões de Deus — vários graus de Deus”. Claro que esses
suspeito só alguns cinéfilos bergmanianos sejam ainda capazes de levar a graus são, em rigor, graus nossos: “Nós é que vamos ascendendo em
sério. Mas mesmo no Portugal dos meus avós, esmagadoramente católico, graus até Deus; ou temos vários planos ou níveis dos quais vemos Deus, à
quem é que interrogou o catolicismo, a fé, Deus, com alguma inquietação nossa maneira e consoante as nossas possibilidades”. E a confissão mais
e densidade? Deixando de lado a poesia, lembro-me sempre dos mesmos forte está nesta frase, de tal forma verdadeira que é capaz de desagradar a
exemplos: “O Retrato do Semeador” (1958), de Vitorino Nemésio; toda a gente: “Tão espantoso me parecia que Deus existisse como que não
“Confissão dum Homem Religioso” (póstumo, 1971), de José Régio; e existisse.” b
“Peregrinação Interior” (1º volume, 1971), de António Alçada Baptista. pedromexia@gmail.com
A “Confissão”, projecto antigo que Régio retomou nos últimos anos
de vida e deixou inacabado, tem uma descrição “sociológica” da Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
religiosidade em contexto doméstico e familiar que é igual à de muitos
outros retratos de época, ainda que Régio admita, como me parece
justo, que no catolicismo ancestral e atávico coexistiam a severidade
e a jovialidade, a devoção e a superstição. Conheci esses hábitos e
fantasmagorias, tive ainda em parte o mesmo “Deus da infância”, e
guardo memórias e impressões como o culto das imagens ou o fetichismo
dos objectos (Régio fez-se coleccionador, e compreendi-o um pouco
melhor quando vi aqueles crucifixos todos na tétrica casa de Portalegre).
Não sou regiano, mas interessa-me este testemunho. Régio perdeu a fé na
adolescência, passou por um agnosticismo entediado e por um ateísmo
de bravata, sem nunca deixar de estar fascinado com os Evangelhos.
Depois viveu uma “vocação sem dom”, uma fé sem fé, mas com nostalgia
/ PEDRO
da fé. Precisava da “presença”, da “permanência” e do “absoluto” do MEXIA
cristianismo, mas achava Deus uma entidade completamente exterior,
temível e muda, talvez inventada. Jesus, em contrapartida, parecia-
lhe um homem apenas homem, mas um homem extraordinário,

E 64
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Horticultura
de trazer
por casa
Para um problema de raiz, uma solução
de raízes. Seja no telhado, na varanda ou
na banca da cozinha, pôr as mãos na terra
é bom e necessário — pelo planeta, pela
saúde e pela terapia
TEXTOS INÊS LOUREIRO PINTO
GREGZ

E 65
A
partir da semana em que esta edição chega
aos leitores, a população mundial terá esgo-
tado o seu orçamento ecológico. 2 de agosto
é o Dia de Sobrecarga da Terra deste ano, isto é, o
dia no qual se esgotam os recursos naturais que o
planeta consegue renovar numa volta ao Sol. Para
chegar ao final do ano, havemos de gastar os recur-
sos equivalentes a 1,7 Terras. Todos os anos desde
que a estatística é calculada pela organização Glo-
bal Footprint Network, a data vai-se antecipando
a um ritmo lento — em 1971, o Dia de Sobrecarga
foi a 25 de dezembro.
Enquanto estes dados podem gerar desamparo,
é de sublinhar que nunca tivemos tanta informação
e capacidade para travar as emissões poluentes e
conservar o património natural. E se é verdade que
grande parte do esforço terá que vir dos governos
e grandes indústrias mundiais, grão a grão todos
podemos semear pequenas soluções cumulativas,
na forma de hortícolas, frutas, aromáticas e flores
biológicas. Até 2050, espera-se que metade da po-
pulação mundial viva em cidades e que 80% de to-
dos os alimentos sejam nelas consumidos. Reduzir
as emissões na produção e transporte alimentar,
que geram atualmente um terço das emissões glo-
bais, é uma das grandes soluções para conseguir-
mos amortizar algum crédito à Terra.
Em Cascais, há “cerca de 1700 pedidos em lis-
ta de espera para subscrever um talhão nas hortas
comunitárias” sob a coordenação de Miguel Maria
Brito. A Cascais Ambiente gere ainda um progra-
ma de capacitação para agricultura biológica em 48
instituições, a maioria escolas. Miguel vê na horta
uma “ferramenta para ensinar: um aluno nunca
mais se esquece quando aprendeu fotossíntese na
horta, a olhar para as plantas”. E se é de pequenino
que se semeia o pepino, a aprendizagem começa em
casa. Coautor dos livros “Uma Horta em Casa” e “A
Minha Horta É Biológica”, acredita que todos po-
dem cultivar, independentemente de onde vivam.
O autor teve “uma horta num rés do chão em
Sete Rios” onde cultivava pepino, tomate, alface e
espinafre. “Ao fazer a minha própria horta tenho
duas garantias: uma, é que vai ser biológica, e por-
tanto não tenho questões de saúde que me preo-
cupem; e, segundo, o alimento será mais nutritivo
e saboroso. Por ser uma produção de crescimento Há múltiplas soluções, mais ou menos tecnológicas,
lento, o vegetal vai ter mais nutrientes e matéria para facilitar o trabalho de manutenção de uma horta.
fibrosa, o que faz toda a diferença, até no tempo Mas a principal preocupação de quem começa deve
que duram no frigorífico”, diz Miguel Maria Brito. ser com a luz: quanto mais exposição solar melhor
Antes de se começar uma horta em casa, “a
principal preocupação é a luz”. Regra geral, quan-
to mais exposição solar melhor. Seja num terraço, para uma porção de húmus de minhoca, que ser- Conjugar plantas com
varanda, marquise ou janela, convém que o local ve de fertilizante” é a receita de André Maciel, que
de cultivo esteja orientado a sul. O próximo pas- acrescenta o conselho de o cobrir com “alguma raízes e calendários
so é perceber onde fazer crescer a pequena horta.
“Sustentabilidade é sinónimo de criatividade” para
matéria seca como palha ou cartão, para manter
mais humidade no solo”. Para fechar o ciclo da
diferentes ajuda a
André Maciel. Já criou “oásis comestíveis” a partir sustentabilidade, nada melhor que os excedentes melhorar a estrutura
de gavetas de madeira, sanitas e bidés inutilizados, da cozinha para alimentar os futuros produtos. “A
paletes, caixas de fruta ou de plástico “forradas compostagem é o coração da horta”, define o agri- do solo e a combater
com uma camada geotêxtil para suportar a terra”. cultor urbano. pragas e doenças
Inspirado pela permacultura, que ensina a dialogar Dentro de um apartamento, a opção mais fácil
com a natureza, começou a partilhar conselhos na e rápida será a vermicompostagem: “Vais alimen-
sua página do Instagram “HortasLx by Purisimpl” tando as tuas minhocas e elas vão-se alimentan-
e tem agora um serviço de consultoria para escolas, do da matéria crua da tua cozinha”, como fruta
parques e casas particulares. e vegetais em geral, pão, cascas de ovo ou borra
O mercado oferece diversas variedades de subs- de café. Alguns alimentos cozinhados, bem como
trato especializado. “Quase duas porções de terra carne, peixe ou citrinos não são bem vindos pelas

E 66
projeto de ter uma horta é a rega”, aponta José Rui-
vo, CEO da Noocity, uma empresa que quer “reco-
VOLTAR À TERRA
nectar as pessoas da cidade com a natureza”. Uma
planta precisa de água para sobreviver, mas se as
raízes ficam encharcadas, apodrecem e morrem. É UMA HORTA
preciso então assegurar drenagem. EM CASA
As camas de cultivo low tech da Noocity resol- Isabel de Maria Mourão
vem estas duas preocupações através de um “sis- e Miguel Maria Brito
tema integrado de subirrigação” em que a água que Arte Plural Edições
vai sendo disponibilizada à planta de forma gra-
dual, através de uma camada de argila expandida
entre o seu depósito e o substrato. “Só é necessário O “guia para totós” para quem está a
abastecê-lo de duas em duas ou três semanas, e se começar a pôr as mãos na terra. Escrito
houver demasiada água no sistema, ela escoa para por Miguel Maria Brito e Isabel de Maria
fora. Por isso as pessoas podem estar descansadas”, Mourão, sua mãe e professora do mestrado
assegura José Ruivo. em Agricultura Biológica na Escola Agrária
Há múltiplas soluções, mais ou menos tecno- de Ponte de Lima, oferece instruções
lógicas, para facilitar o trabalho de manutenção passo a passo para o cultivo de mais de
de uma horta. Esta opção ecológica torna-se mais 50 plantas, entre hortícolas, aromáticas,
atrativa para o ritmo urbano se for menos moro- medicinais e flores comestíveis.
sa nas especificidades, mas o contacto com a terra
quer-se demorado. Miguel Maria Brito lembra que NOOCITY
há uma interação muito positiva entre o microbio- Com três tamanhos possíveis, as camas de
ma humano e do solo e que “pôr as mãos na terra cultivo da Noocity adaptam-se ao espaço
vai contribuir para fortalecer o nosso sistema imu- disponível em casa, seja marquise, terraço
nitário, principalmente o das crianças”. “Além dis- ou jardim. O kit mais pequeno ocupa
GREGZ

so, produzir alimentos ensina-os a esperar, a per- 0,36 metros quadrados e permite uma
ceber que tudo tem um tempo na natureza”, vital produção anual de cerca de dez quilos de
para o ritmo acelerado da cidade. alimento, enquanto o maior, de 1,44 metros
Ao leme desta lição, a Noocity e a sua rede de quadrados, pode produzir até 40 quilos.
growers focam-se na criação e manutenção de hor- Todas as camas de cultivo são entregues
tas em empresas, instalando as suas camas de culti- com a quantidade necessária de substrato,
vo em espaços inutilizados ao ar livre. “A horta é o em fibra de coco, bem como fertilizante
novo café, onde as pessoas se juntam para desligar granulado e um conjunto de sementes —
um pouco das máquinas e passar tempo em con- uma horta ‘chave na mão’.
junto”, reflete José Ruivo, que partilha ainda boas
premonições de um projeto-piloto num condomí- TORRES AEROPÓNICAS
nio habitacional no Porto: “Hoje já trocam semen- A Upfarming está à procura de soluções
tes e receitas, criou-se uma pequena comunidade locais de horticultura aeropónica, mas de
entre vizinhos que antes não havia.” A horta como momento as suas torres são fornecidas
garante de boa nutrição, saúde e comunidade é pela empresa americana Agrotonomy, que
uma horta reabilitadora. tem opções domésticas disponíveis para
O projeto “Horticultura Vertical, Solidarieda- entrega em Portugal. Uma torre ocupa
de Horizontal”, da Upfarming, está a dar frutos menos de um metro quadrado (incluindo o
aos cerca de 40 reclusos em fim de pena do Esta- espaço de trabalho) e tem capacidade para
belecimento Prisional de Torres Novas, garantindo 32 plantas. A torre precisa de eletricidade
formação certificada em agricultura biológica, um para bombear a solução nutritiva pelo
reforço da dieta em verduras e a distribuição de ca- sistema, e, segundo a empresa, o gasto
bazes a 100 famílias carenciadas da cidade. Estão a estimado é de apenas um euro por mês.
produzir 350 quilos de hortícolas por mês sem usar Podem ser instaladas no interior ou em
um único metro de terra. espaços com pouca exposição solar graças
Num pequeno espaço em redor do estabeleci- a um sistema de luzes LED que permite a
minhocas. Dependendo do espaço disponível em mento, foram instaladas 40 torres de aeroponia, realização da fotossíntese.
casa, a profundidade do solo tem muito a dizer so- que alimentam as plantas através de uma solução
bre o tipo de espécies a cultivar. Hortícolas de raiz mineral de água e nutrientes. É uma técnica seme- INATURALIST
pouco profunda, como alface, beterraba e rúcula lhante à hidroponia, mas neste caso a água abaste- Seja para iniciantes ou experientes,
podem cultivar-se em recipientes de 20 centíme- ce as várias plantas suspensas no ar por intervalos. esta aplicação é uma ferramenta útil
tros. Com o dobro, já conseguimos crescer cou- “Esta responsabilidade de dar de volta à comuni- que permite a consulta e o registo de
ves, pimento e algumas frutas. Tomate, pepino e dade e o contacto com a natureza, que também é fotografias de espécies e das suas
curgete, por exemplo, crescem em 60 centíme- um momento de camaradagem com os colegas e os características. Para a agricultura urbana,
tros de solo. guardas, são contribuições decisivas neste momen- tem a vantagem de servir como uma base
Conjugar plantas com raízes e calendários di- to importante de transição em que eles se encon- de dados para a identificação geolocalizada
ferentes ajuda a melhorar a estrutura do solo e a tram”, reflete Margarida Villas-Boas, cofundadora de insetos e outros pequenos animais
combater pragas e doenças. Exemplos de “plan- da Upfarming. Através deste e de outros projetos de que ganham novo espaço de abrigo e
tas amigas” são o tomate e manjericão, nos me- agricultura vertical em comunidades, a organiza- alimentação graças à sua horta. Ao mesmo
ses mais quentes, e o aipo e os brócolos, nos meses ção sem fins lucrativos está a “contribuir para uma tempo, contribui para a ciência cidadã e
mais frios. Por falta ou excesso de zelo, “a principal cidade capaz de começar a tratar da produção do aprende sobre a Natureza. É grátis e está
causa de insucesso de alguém que se aventura no seu alimento”. b disponível para Android e iOS. / I.L.P.

E 67
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Fruta Feia
Numa sociedade em que cada vez
há mais fome e pobreza, cerca de
30% da fruta produzida em Por-
tugal é desperdiçada, pois, apesar
de ser saborosa e de qualidade,
não tem o aspeto perfeito em
termos de cor, formato e calibre
que a grande distribuição procura
e que os consumidores escolhem.
A cooperativa de consumo Fruta
Feia tem como objetivo principal
canalizar essa parte da produção
fruto-hortícola desperdiçada até
aos consumidores que não julgam a
qualidade pela aparência, comba-
tendo uma ineficiência de mercado,
criando um movimento que consiga
alterar padrões de consumo e gerar
um mercado para a chamada “fruta
feia”. Um mercado que gere valor
e combata tanto o desperdício
alimentar como o gasto desneces-
sário dos recursos utilizados na sua
produção (água, energia e terrenos
agrícolas). A Fruta Feia arrancou
no dia 18 de novembro de 2013.
Hoje em dia conta com 16 pontos
de entrega (oito em Lisboa, um na
Amadora, dois em Cascais, um em
Almada, dois no Porto, um em Gaia
e um em Matosinhos), cerca de 310
agricultores e 8000 consumidores,
e evita semanalmente que cerca de
TIAGO MIRANDA

23 toneladas de fruto-hortícolas
vão parar ao lixo!
Através do site pode fazer a sua
inscrição na cooperativa e depois
é aguardar. A lista de espera para
conseguir receber um cabaz é

Vinagre de morango grande, sinal do enorme alcance


deste projeto.

Tempo de preparação 30 m | Tempo de confeção 30 m PROJECTO MATÉRIA


É um projeto sem fins lucrativos,
desenvolvido pelo chefe
INGREDIENTES o açúcar e a água. Aquecer até que Quando abrir o frasco João Rodrigues, que pretende
Morangos q.b. / 100 g vinagre / o açúcar se dissolva por completo. para utilizar, filtre o vinagre promover os produtores nacionais
100 g água / 100 g açúcar Colocar esta mistura ainda quente por um pano fino e volte com boas práticas agrícolas e
produção animal
sobre os morangos que estão dentro a reservar desta vez sem a fruta.
em respeito pela natureza
Lave bem os morangos e retire o pé. do frasco. Reserve no frigorífico. e meio ambiente, enquanto
Colocar num frasco esterilizado os Tapar o frasco e reservar. Pode usar este vinagre para temperar elementos fundamentais
morangos inteiros. Quando arrefecer, colocar no frio saladas, finalizar sobremesas com da cultura portuguesa.
Num tacho, colocar o vinagre, durante um mês. morangos, vinagrete, etc. b Ler mais em projectomateria.pt

E 68
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Mesa em rodagem cheias à Monchique” (€24) com três


exemplares de calibre médio, rechea-
dos com arroz, os seus tentáculos e ni-
ACEPIPE
A planar na serra de Monchique desde 1978, cos de chouriço, num molho bem apu-
rado que fazia boa ligação com batata
Molho
A Charrete é um baú de sabores regionais cozida e uma batata-doce, um pouco primitivo
seca por estar fora de época. Há que
fazer uma reflexão é no preço do prato
de 1692
para uma porção discreta de três lulas, Vieram as cerejas e os mo-
de execução correta. Atenção que €24 rangos, os pêssegos estão
por aí, mas não convém
compara com inúmeros outros pra-
passar ao lado de um dos
tos e matérias-primas de muitas cida- frutos rei do verão: o toma-
des europeias. Impecável o “Cachaço te! Não falo dos “cereja”,
de porco preto no forno” (€18) com a que não têm estação, mas
carne delicada e muito saborosa, pe- de variedades sazonais,
daços de cenoura estufada no molho como o Cilento, CalRoma,
elegante, e a companhia de batata sal- Buda, Coração de Boi ou
teada. Veio uma boa “Salada de toma- Benfica. Apanham sol no
campo, ficam doces, rubros
RICARDO NASCIMENTO/STILLS

te” (€3), à parte, para ir refrescando


e maduros. É procurar nos
o palato. Tempero certeiro e carne se- mercados, pois continuam
dosa no “Borrego estufado à Charrete” a ser vendidos a preço de
(€18) com as lascas a saírem do osso, o ouro nos supermercados,
molho equilibrado e a deixar expres- que deviam ter o cognome
sar a qualidade do borreguinho, nada de ‘supercaros’ no capítulo
enjoativo. Um pouco de brócolos e a dos frescos. Num mercado
batata salteada. Sobressai uma grande de confiança há tomates
sumarentos para se fazerem
elegância nos temperos, sem deixar o
molhos ou compotas pre-

J
á atravessou mais de meio século voláteis, daí que à mesa d’A Charrete se produto sucumbir em marinadas es- ciosas, retendo o sol até ao
desde que era uma antiga mer- proponham pratos e petiscos saídos de púrias, denotando critério na escolha inverno.
cearia. Há 45 anos passou a ser- outros tempos. Na mesa surgiram umas da matéria-prima. No séc. XVI, o então ‘tómatl’
vir refeições, sendo hoje uma das casas singelas “Azeitonas” (€2,50), e como é O serviço é experiente e eficaz, mas veio das Américas para a
mais conhecidas da região. A Charre- difícil ser simples quando o fruto oli- parece ser mais ativo com a casa com- Europa, através de missio-
te tem a longevidade que a sua grande var aparece carnudo, com azeitonas de posta, deixando os clientes de ocasião nários espanhóis. Houve
desconfiança. Parecia noci-
cristaleira repleta de porcelanas nos bela estirpe, envolvidas num pouco de um pouco perdidos. Carta de vinhos
vo à saúde, foi ficando como
mostra assim que entramos, transpor- cebola quebrada e rodelas de cenoura com preços abordáveis e oferta diver- planta de jardim até... um
tando-nos para um ambiente familiar. temperadas, conjugando assim de for- sificada q.b. Nos doces, o “Pudim de passo alimentar ter vindo
Mesas redondas e luz natural vinda das ma feliz outro petisco típico. amêndoa e gila” (€4), com uma fatia de Nápoles. Em 1988, o in-
ruas estreitas que desenham o cen- Antropologia gustativa no “Lombo bem cremosa (gemas e amêndoa) en- vestigador Rudolph Grewe
tro histórico monchiquense. Ao redor de porco na banha” (€9). Fatias finas tremeada de fios de gila, e amêndoa aponta o livro “Lo scalco alla
da vila secular as estradas verdes en- e macias, pousadas sobre uma pedri- ralada no topo, saiu-se bem! O mesmo moderna”, de 1692, como
leiam-se serra acima até à Fóia, com a nha mármore, no topo, um pedaço não se pode dizer do “Bolo de tacho” pioneiro nas receitas, e onde
figura o primeiro molho de
nascente de água mineral a atrair tam- da banha corada de pimentão onde (€3,50) que ao levar farinha de mi-
tomate da história: “Salsa di
bém forasteiros para as termas locais. a carne é conservada, como se vesti- lho, cacau, mel, erva-doce, medronho, Pommodoro alla Spagnola”.
Passa por aqui um outro Algarve. da de seda e ungida de sabor. Entra- etc. devia surgir denso, algo húmido e A influência hispânica é
Aquele que faz o contraditório com as da frugal e momento de prazer pleno complexo, e chegou seco, gelado e a es- curiosa, e a receita é plena
praias da linha costeira, e que ainda é o pela simbiose entre recursos serranos talar. Um desastre. Fechou bem a “Tar- de técnica e lógica. Assa-
pulmão de bons produtos tradicionais e técnicas de conservação, com a me- te de Alfarroba com limão” (€4,20), vam-se nas brasas meia
de charcutaria e do turismo da nature- mória de sabores geracionais. O bom uma massa fofa e fina, recheada com dúzia de tomates maduros.
za. São 250 anos de história de Monchi- pão agradeceu a divina manteiga por- um creme de limão, estilo tarte fecha- Retirava-se a pele queima-
da com cuidado. Picava-se
que, concelho nascido em 1773, e que cina. Depois uma passagem pela char- da. Elegante e muito agradável.
a polpa assada, e juntava-se
continua a tentar preservar a identida- cutaria local com o belíssimo “Molho” A Charrete está pronta a fazer nova cebola e malagueta muito
de nas várias localidades dispersas pe- (€8,80), o bucho recheado com san- rodagem para os próximos anos. Há picadinhas, um pouco de
las suas três freguesias. Entre vestígios gue, carne, arroz e especiarias, che- que não perder a adesão à realida- tomilho picado, sal, azeite e
arqueológicos e vegetação ancestral, gou em rodelas grandes, fritas e sequi- de, cativando os clientes com preços vinagre. Um molho versátil
as memórias gustativas são talvez mais nhas, bem saborosas. Na “Farinheira” e porções ajustadas. A cozinha é de com mais de 320 anos,
(€4,40), a morcela de farinha de mi- produto, tem qualidade e guarda os atual, hoje! É aproveitar o
lho, também conhecida como “mor- melhores sabores da memória. É para tempo deles...
cela de pano”, o exemplar servido não continuar a fazer história! b
A CHARRETE era dos mais expressivos em sabor.
Rua Dr. Samora Gil, 30/34 — Monchique Temperos pouco evidentes, sem vis- Desde 1976, a crítica gastronómica
Telefone: 282 912 142 lumbre da canela e cominhos suaves. do Expresso é feita a partir de visitas
Não encerra Entrando nas especialidades da anónimas, sendo pagas pelo jornal
casa, não se podiam falhar as “Lulas todas as refeições e deslocações

E 69
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

RUI DUARTE SILVA


Há solução para o Douro?
Sem vontade política, não vai haver, não…

F
oi publicada recentemente na impren- para os custos de produção a que obrigam, as demasiado antiquadas, na prática está bar-
sa uma carta/manifesto assinada pelas uvas para DOC Douro são muitas vezes pagas rada a entrada de jovens no negócio do vinho
empresas e produtores que constituem a preços que nem para pagar a vindima dão. do Porto e facilmente se cai em situações cari-
a Associação de Empresas do Vinho do Porto E, como se não bastasse, com a canalização catas, no que toca, por exemplo, à Câmara de
(AEVP) chamando a atenção para os proble- das melhores uvas para DOC Douro e as piores Provadores, onde têm de ser aprovados todos
mas que afligem a região. Os problemas têm para cumprir o benefício do vinho do Porto, in- os vinhos da região. Um produtor comentou
décadas (se não mesmo séculos) e os gover- verteram-se práticas que tinham décadas. Os há dias que enviou para aprovação um vinho
nantes, de todas as matizes e de todos os gover- grandes grupos, que dominam mais de 90% do tinto que foi chumbado porque não se podia
nos, têm sempre o mesmo discurso, tipo “es- mercado do vinho do Porto, resolveram o pro- chamar Vinhas Velhas (apesar das vinhas em
tamos a analisar o problema”, e desse aturado blema porque se abastecem de boas uvas nas causa serem muito velhas), porque o vinho
período de reflexão nunca se vê sair algo de quintas próprias — património que não pára de não atingia o nível 2 (o básico é 1 e o superior
positivo que melhore a situação da região, cu- crescer —, usando as uvas do benefício dos pe- é 3). E porque não podia ter nível 2? Porque
jos sinais de desequilíbrio são muito evidentes quenos lavradores para outros vinhos. Grupos tinha pouca cor! Ora, o ridículo da situação é
para todos. Quem se queixa tem toda a razão como Symington ou Fladgate terão, creio, du- que nas vinhas velhas pontificam castas anti-
para querer que o Instituto do Vinho do Douro plicado a área de vinha própria nos últimos 20 gas que exatamente tinham pouca cor. Ora, se
e Porto deixe de ser um quintal onde o poder anos, e a continuar como estamos, num futuro queremos preservar as vinhas velhas porque
coloca os seus peões e onde as verbas que são nada longínquo, dominarão 100% da produção são património mas os vinhos não têm qual-
pagas pelos produtores engrossam os cofres do e estaremos então a falar da morte da região, quer valor acrescentado por serem feitos com
Estado em vez se serem usadas na promoção. sem gente, sem famílias, sem escolas e apenas castas antigas, estamos a empurrar os produ-
Enquanto em todas as outras regiões se cria- com nepaleses que vêm fazer a vindima. tores para o arranque das vinhas velhas, a le-
ram Comissões Vitivinícolas escolhidas pelos No entanto, não se acredite que a saída do vá-los para as castas tintureiras que geram vi-
produtores, no IVDP é o Estado que nomeia, Estado do controlo do IVDP resolve tudo. O nhos encorpados, abandonando o incrível pa-
que manda e que acaba por não mudar nada. próprio Instituto, a quem cabe a certificação trimónio que temos. É esse o objetivo? Todos
O vinho do Porto tem estado em declínio, e controlo de stocks, tem de se repensar e re- dirão que não, mas, se não se mudarem proce-
as uvas continuam a ser demasiado mal pagas formular, as regras que regem a região estão dimentos é isso que vai acontecer. b
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Quinta de Chocapalha São Luiz Winemaker’s Quinta do Isaac


branco 2022 Collection rosé 2022 tinto 2017
Região: Reg. Lisboa Região: Douro Região: Douro
Produtor: Casa Agr. das Mimosas Produtor: Sogevinus Produtor: Quinta do Isaac
Casta: Chardonnay Casta: Tinto Cão Castas: Misturadas em vinhas velhas
Enologia: Sandra Tavares da Silva Enologia: Ricardo Macedo Enologia: Pedro Sequeira
PVP: €10 PVP: €22 PVP: €45
A quinta situa-se na zona da Merceana, Após leve prensagem dos cachos inteiros, o Após 20 meses em barrica nova
onde o relevo ondulado gera orientações mosto fermentou em inox e 20% em madeira e usada, o vinho estagiou durante
solares diversas, o que permite um “jogo” usada. É a segunda edição desta casta na coleção. quatro anos na garrafa.
de casta/localização muito interessante. A quinta situa-se entre a Régua e o Pinhão. Dica: Maduro na fruta e no perfil, um tinto
Dica: A casta permite várias Dica: Há no aroma uma atrativa austeridade cheio e escuro, sempre próximo dos
declinações e aqui é o seu carácter com fruta vermelha e na boca revela pratos de maior substância. O serviço a
estival e fresco que se acentua. toda a sua aptidão gastronómica, cerca de 16° ajudará à melhor apreciação
Muito polivalente à mesa. que é muita. A beber este verão. deste tinto. Não justifica guarda.

E 70
PODCASTS EXPRESSO
Liberdade para ouvir

2ª A 6ª FEIRA 2ª A SÁBADO 2ª FEIRA 2ª FEIRA 2ª FEIRA

diário diário semanal semanal quinzenal

3ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 4ª FEIRA

semanal semanal semanal semanal

5ª FEIRA 5ª FEIRA 5ª FEIRA 5ª FEIRA 5ª FEIRA

semanal semanal quinzenal semanal semanal

6ª FEIRA 6ª FEIRA ESPECIAL

semanal semanal Série completa Série completa Série completa


as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Coimbra Alojamentos
Marquês de Marialva Conímbriga
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e o “Cabrito assado à padeiro”. A
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Natural Houses
Aldeia de Cima, Soure.
Octant Hotels Lousã Tel. 910 731 194
Deslumbre-se com as entradas Rua Viscondessa do Espinhal, Lousã. Tel. 239 990 800 Numa aldeia onde poucos são os
de enchidos, com a “Manteiga de A novidade deste ano é a abertura de um sofisticado spa com três salas de tratamento, sauna, tanque de habitantes foram recuperadas 16
alheira” ou com a “Broa doce do crioterapia e piscina interior aquecida, com hidromassagem, em funcionamento durante 24 horas. Este é casas, que se tornaram o refúgio
Casmilo”, e deixe-se levar pelos também um bike hotel, com zona de estacionamento própria e uma oficina para pequenas manutenções perfeito para quem quer estar em
sabores do “Arroz de salpicão com e limpeza das mesmas. No À Terra Bar & Canteen não deixe de provar a “Chanfana de veado”, antes de convívio com a Natureza. A partir
javali” ou do “Arroz de chanfana”. descansar no conforto de cada um dos 46 quartos da unidade. A partir de €100. de €155.
Preço médio: €25.

O Regional do Cabrito O Burgo Museu da Chanfana Casa Arménio Boa Vida


Praça da República, 25, Nossa Senhora da Piedade, Lousã. Quinta da Paiva, Miranda Rua do Mourão (EN 111), 1,
Condeixa-a-Nova. Tel. 239 991 162 do Corvo. Tel. 915 361 527 Tentúgal. Tel. 239 951 175
Tel. 939 178 381 Prove o “Cozido do Talasnal na Prestam homenagem à receita O motivo de romaria é o “Pato Expofacic
O “Cabrito assado no forno” é broa”, a “Galinha com tortulhos e que dá nome ao restaurante, mas a assado em forno de lenha”, Cantanhede
acompanhado por batatas assadas castanhas”, o “Veado com tortu- “Sopa do casamento”, feita com as especialidade, a par do “Arroz Até 6 de agosto, no centro da
e grelos cozidos. Há ainda o “Galo lhos” e o “Javali com castanhas”. sobras e com o molho da chanfana, de miúdos de pato”. Mas outras cidade, decorre a edição 31
do monte no tacho” ou o “Naco à Para uma experiência verdadei- além de rara nas ementas da razões há para uma vista, como da Feira Agrícola, Comercial e
Regional”. Termine com umas “Es- ramente imersiva deixe-se levar região, é uma verdadeira especiali- o igualmente famoso “Arroz de Industrial de Cantanhede. Com
carapiadas”. Preço médio: €25. pela Rapsódia. Preço médio: €30. dade. Preço médio: €25. galinha”. Preço médio: €30. cerca 600 espaços de exposição,
PUB oito palcos, 500 expositores e 72
locais de restauração, ocupa uma
área total de cerca de 100 mil me-
Dona Bia da Comporta, e, para um gran- tros quadrados de zona fechada.
EN 261, Torre. Tel. 265 497 557 de final, saboreie umas belas Quatro e Meia, Vitor Kley e Lon3R
Comece pela mescla gulosa de “Farófias” ou “Pudim de figo” na Johny e Tony Carreira, bem como
“Amêijoas e lingueirão à Bulhão esplanada, com vista para os Rui Veloso, Anastacia e Xutos
Pato”. Admire a montra de lindos arrozais, que ficam mes- & Pontapés, são os convidados
peixe fresco, geralmente bem mo em frente ao restaurante.
musicais.
apetrechada, e decida o que lhe Durante o verão aproveite a
apetece para depois ser prepa- esplanada para um aperitivo
rado na grelha. Entre os muitos e não se esqueça de reservar Fatacis
sucessos da casa, os “Filetes de com antecedência, uma vez Soure
peixe-galo” e os “Linguadinhos que os almoços costumam O mês de setembro, em Soure, é
com açorda de ovas” fazem parte ser demorados e as mesas são sinónimo das tradicionais Festas
dos mais requisitados. Há ainda poucas para tanta procura. de São Mateus, juntamente com a
“Arroz de lingueirão com gambas”, Preço médio: €30. FATACIS — Feira de Artesanato,
“Pregado na brasa com arroz de Turismo, Agricultura, Comércio e
tomate”, “Arroz de lagosta com Bem nosso é sugerir os melhores Indústria de Soure, dinamizada pela
salicórnia”, “Massinha de garoupa sabores do litoral do Alentejo. Associação Empresarial de Soure.
com camarão”, e “Esparguete Gipsy Kings e Mimicat, represen-
com carabineiros”. Acompanhe tante de Portugal no Festival da
com um vinho fresco da Herdade
Canção, são as atrações do cartaz
deste certame.

E 72
LICENCIATURAS
• CIÊNCIAS BIOMÉDICAS LABORATORIAIS
• CIÊNCIAS BIOMÉDICAS* NOVO
• CIÊNCIAS FORENSES E CRIMINAIS
• CIÊNCIAS DA NUTRIÇÃO
• ENFERMAGEM
• ENFERMAGEM VETERINÁRIA
• FISIOTERAPIA
• PRÓTESE DENTÁRIA
• PSICOLOGIA

MESTRADOS
• ANÁLISES CLÍNICAS
• AQUACULTURA SUSTENTÁVEL
• ENFERMAGEM MÉDICO-CIRÚRGICA
ÁREA DE ENFERMAGEM À PESSOA
EM SITUAÇÃO CRÍTICA
• ENFERMAGEM DE REABILITAÇÃO
• ENFERMAGEM MÉDICO-CIRÚRGICA
ÁREA DE ENFERMAGEM À PESSOA
EM SITUAÇÃO PERIOPERATÓRIA* NOVO
• ENFERMAGEM COMUNITÁRIA
ÁREA DE ENFERMAGEM
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D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

Saison
Para acompanhar estes fluxos e ritmos desenhámos
casas diferentes das casas onde vivemos todos os
dias, objectos distintos dos que usamos no trabalho

T
alvez um dia desapareça e passemos as férias dos miúdos nas escolas e algumas
a um tempo atmosférico sem altera- estruturações, sociais e económicas, pré-
ções previsíveis, antecipadas e ca- -definidas. Para acompanhar estes fluxos
lendarizadas. Será uma pena mas a ideia e ritmos desenhámos casas diferentes das
de estação, associada como está às qua- casas onde vivemos todos os dias, objectos
tro estações climáticas, Primavera, Verão, distintos dos que usamos no trabalho, no
Outono e Inverno, pode vir a tornar-se dia-a-dia citadino, casas e objectos sazo-
desconhecida para as gerações vindou- nais, para períodos de uso curto. E criámos
ras. Poderemos ter períodos infindáveis sítios, que depois ficaram aldeias, depois
Em Portugal o Verão era e é, ainda, de calor excessivo, tempos sem fim de frio vilas e que agora não sabem o que são, pois
sol. Quer no campo quer na praia, mas profundo, meses seguidos de chuva, anos dividem-se entre dois tempos, definidos Uma arquitectura de proximidade ao
acima de tudo na praia, num país de de ventos ciclónicos sem parar. Não sabe- pela quantidade de pessoas que têm de su- mar e ao campo, fora das cidades,
tanto mar como o nosso. Os vários menos própria para um uso
mos. Sabemos sim que o desequilíbrio é portar — aos milhares no Verão, às dezenas
equipamentos que acompanham permanente e menos preparada para
real, e sabemos também que, a única boa no Inverno. E falamos em não os tornar sa-
estas incursões de veraneio têm as alterações climáticas marca o
notícia, o planeta se regenera melhor que zonais, para serem mais sustentáveis eco- nosso e muitos outros países pelo
sofrido alguma alteração
relativamente aos materiais mas nós, humanos. nomicamente, esquecendo-nos que se fi- mundo fora, como na Grécia e
poucos em relação à forma ou Esta é a última sexta de Julho, para a zermos o mesmo que fizemos com outros Espanha, por exemplo. Como
função. Desenhados para o sol, semana é Agosto. Nos países mediterrâ- sítios, os destruímos. Quantidade sem qua- actualizá-la? O mesmo se passa
poderão ter mais funções no futuro? nicos, o nosso é Atlântico mas segue esta lidade é sempre um problema; quantidade relativamente às infra-estruturas
Podem ser adicionadas outras regra, tudo pára em Agosto, são as férias, pela quantidade ainda mais. básicas, como estradas, acessos,
funcionalidades a uma geleira? fechamos. A estação do bom tempo tra- É interessante do ponto de vista do mobilidade e espaços públicos,
zia a estação do lazer. Na política, até há design observarmos os equipamentos concebidos para fluxos de pequena
bem pouco tempo, começava também a que têm esta característica de terem sido quantidade, feitas há muito tempo.
silly season, algo que agora já não acontece desenhados para uma estação, seja ela
só no Verão, infelizmente. Habituámo-nos quente ou fria, tal como observar a arqui-
a uma espécie de nomadismo regulado, tectura criada com o mesmo fim. É ainda
os que podemos, pegamos em coisas le- mais interessante pensar como vamos re-
ves e vamos para junto do mar, uns, outros desenhá-los sem criar desperdício escu-
para os rios, planícies ou montanhas, uns sado e como vamos actualizar todo um
cá dentro, outros para fora do país. Rece- sistema à luz de novas necessidades sem
bemos milhares de turistas à procura do comprometer o planeta.
mesmo que nós, mas que também visitam As estações já não são o que eram. Mas
as nossas cidades, que no Verão eram sabi- nós também não.
das ficarem vazias, desertas e calmas, tão Um bom Verão. b
bonitas de novo. No mundo ocidental a sa-
zonalidade destas movimentações era um Guta Moura Guedes escreve de acordo
dado, acompanhava as estações climáticas, com a antiga ortografia

E 74
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras


Simplesmente deusa
Uma tendência que faz do verão
o nosso tão merecido Olimpo

A
Antiguidade Clássica sempre direito, o seu movimento acompanha
serviu de inspiração à arte e à as formas femininas e o decote tanto
moda e as deusas gregas nun- pode ser generoso como conserva-
ca perderam o seu encanto. Muito dor. Os tecidos são lisos, sem grandes
pelo contrário, mantêm o seu estatu- estampados, mas a tendência é mais
to de musas, elegantes e sensuais, cu- permissiva quando se fala de cor — os
jas vestes continuam a moldar muitas tons podem ser neutros, vibrantes ou
das peças que usamos hoje. Os ves- metalizados, vai depender do seu es-
tidos são disso exemplo: são puros e tado de espírito.
descontraídos, sem nunca perderem A versatilidade destas peças é a
de vista a elegância. Aqui a máxima sua grande mais-valia, pois podem
‘menos é mais’ assenta na perfeição ser usadas nas mais diversas situa-
— é como se pousássemos um peda- ções, para um casamento ou para um
ço de tecido sobre o corpo feminino e simples sunset. Tanto combinam com
ele o envolvesse de forma romântica sandálias altas como rasas e os aces-
e natural. Estes vestidos, dignos de sórios que escolher — ou não, porque

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


uma deusa grega, são fluidos, leves e pode optar por um look totalmente
esvoaçantes, sem grandes cortes, ali- despojado — vão fazer a diferença.
nhavos ou bainhas. Em jersey líquido, Aposte em peças douradas e robustas,
veludo cristal, organza pura, seda, como pulseiras e colares, numa ma-
cetim ou chiffon, muitas vezes presos quilhagem simples e iluminada e num
com laço ou cordão, revelam e escon- penteado a condizer, como tranças
dem o corpo em igual medida. Com ou ondas de efeito molhado. Sinta-se
a cintura bem marcada ou de corte uma verdadeira deusa do Olimpo. b

Shopping VESTIDO DE
VESTIDO
CAMISEIRO
ACETINADO
UM SÓ OMBRO
Elisabetta Franchi VESTIDO
EM LUREX
VESTIDO EM TULE €1014 ACETINADO
Relish
COM ALÇAS COM GOLA
€208
E BUSTIER DRAPEADA
Elisabetta Franchi Mango
€801 €59,99

VESTIDO VESTIDO
COMPRIDO ASSIMÉTRICO
COM COM CORRENTE
VESTIDO DRAPEADO VESTIDO NO OMBRO
COM BUSTIER E CRUZADO ACETINADO Stella McCartney
E NÓ CENTRAL FRONTAL COM DRAPEADO €2300
Saint Laurent Zara Zara
€5500 €89,95 €39,95

E 76
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Nada na mão
O Phone (2), da Nothing, acaba de
se estrear, confirmando Portugal no
pelotão da frente dos mercados que
recebem o novo terminal que pretende
refrear o uso abusivo do pequeno ecrã. É
na face traseira do novo telemóvel que
se encontra o principal traço distintivo:
com a combinação de vários segmentos
LED, a marca britânica criou uma
interface que permite reproduzir cores
e formas para diferentes chamadas e
notificações, bem como o progresso de
entregas de encomendas ou da chegada
de um serviço
de táxi. O
Phone (2) está
equipado com

A nova inteligência
processador
Snapdragon
8+ Gen 1, uma
unidade gráfica

de Meta e Apple Adreno 730L,


e permite
escolher
entre três
O grupo do Facebook firmou uma parceria com a Microsoft capacidades de
armazenamento
para a Inteligência Artificial Generativa (128, 256 e 512
gigabytes ou
GB). Na memória RAM é possível optar

A
corrida da Inteligência Artificial Generativa está produtora do Windows está apostada em fazer esta cor-
por 8 ou 12 GB e no ecrã regista-se
ao rubro com a Meta a subir a parada ao lançar o rida em dois “carrinhos”. Em contrapartida, na sede da
um incremento, que permite chegar
modelo de linguagem Llama 2, e as notícias de Apple prossegue a contratação de engenheiros e, segundo aos 17 centímetros (6,7 polegadas).
que a Apple também já está a trabalhar no segmento. No a Bloomberg, já há mesmo um modelo de linguagem usa- Este mesmo ecrã opera com taxas
caso do Llama 2, a Meta pretende fazer a diferença através do internamente pelos profissionais da marca para exe- de atualização de 120 Hertz, usa
da lógica de código aberto, que permite que programa- cutarem diferentes missões e tarefas do dia a dia. Ainda tecnologia LTPO OLED e dispõe de
dores e empresas possam aceder às linhas de programa- não há dados sobre como a Apple haverá de disponibilizar 1600 nits de brilho. Além disso, inclui
ção para produzir diferentes ferramentas. A este acesso esta ferramenta ao público. Em paralelo com as inicia- leitor de impressões digitais. As câmaras
facilitado junta-se ainda a gratuitidade, segundo refe- tivas das marcas, a presidência dos EUA conseguiu ga- traseiras têm um sensor principal de
50 megapíxeis (MP) e capacidade
rem os meios de comunicação especializados. Curiosa- rantir que Amazon, Anthropic, Google, Inflection, Meta,
de captar filmes com resolução 4K. A
mente, o novo modelo de linguagem sai para o mercado Microsoft e OpenAI assinassem um compromisso com câmara frontal tem sensor de 32 MP. A
tendo como cenário uma aliança com a Microsoft, que é vista à aplicação de medidas de segurança. E confirmou bateria tem 4700 miliamperes hora e é
acionista e tem vindo a promover tecnologias da OpenAI que pretende estabelecer um quadro de normas comuns compatível com carregamento rápido.
(que está na origem do ChatGPT). O que leva a crer que a com os países aliados. b Preço: a partir de €679.

A MONTRA AUMENTADA CAFÉ COM ECRÃ FUTEBOL TOTAL SEM RUÍDO E POLUIÇÃO
Na NOS, é uma combinação de 5G e A LG quer avançar com uma máquina de O pontapé na bola virtual acaba de abrir as A Dyson confirmou que vai disponibilizar
realidade aumentada que está a dar que café em cápsulas, mas optou por recorrer a hostilidades com a confirmação de em Portugal os arrojados auscultadores
falar: a operadora da Sonae acaba de uma campanha de angariação de fundos de lançamento do “EA Sports FC 24” para 29 de com purificador de ar integrado
anunciar que a Montra Digital utiliza candidatos a compradores através da setembro. Depois de uma longa parceria a partir da semana de 28 de agosto.
Realidade Aumentada (AR), que plataforma Kickstarter. A máquina, que com a FIFA, a produtora de videojogos Os novos auscultadores com filtro
sobrepõe imagens digitais a imagens conta com um ecrã e deverá operar em avança agora por conta própria, tendo como de ar dispõem de 11 microfones
reais e permite visualizar equipamentos concertação com uma aplicação de cabeça de cartaz o ponta de lança Erling e cancelamento de ruído. Com filtragem
topo de gama, que geralmente não se telemóvel, foi batizada de Duobo. Além de Haaland. Em contrapartida, não se sabe bem máxima, a bateria garante 1,5 horas
encontram nas montras. A ferramenta usar cápsulas que respeitam os standards, quando o título FIFA voltará a ser retomado. de funcionamento. No que toca ao áudio,
vai estar disponível nas lojas do Cascais reivindica o pioneirismo dos dispositivos que “EA Sports FC 24” vai estar disponível em a bateria garante mais de 40 horas de
Shopping, Campo Grande e Mar permitem juntar dois tipos de café. Preço de Playstation, Xbox, Switch e PC. Preços de funcionamento com cancelamento de ruído.
Shopping Matosinhos. reserva: 399 dólares (€359). reserva: a partir de €50,99. Compra em Dyson.pt. Preço: €899.

E 78
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

CHUVA Tenho oito anos


REFRESCANTE
Inspirada no poder transformador
Os adultos são muito piores que as crianças

T
da chuva, Rain Essence é a mais
enho oito anos, não se assustem, não sei ainda escrever bem, mas a
recente adição à coleção Bvlgari Man
minha avó vai ver os erros. Quando soube, há pouco tempo, que alguns
do perfumista Alberto Morillas. Com
adultos escreviam nos jornais sobre coisas, achei que não é bom as
uma assinatura fresca, amadeirada
crianças não poderem fazer o mesmo. Então pedi ao senhor que aqui costuma
a almiscarada esta eau de parfum
contar umas histórias, se me deixava também contar uma minha. Não é bem
é proposta em 100 ml, num frasco
uma história inventada, é um bocadinho da minha vida.
de vidro que evoca a sensação
Sou um rapaz, vivo com os meus pais e com os meus irmãos. Uma menina
transparente e fresca da fragrância.
mais velha que eu, uma grande chata que tem a mania que manda em nós
bulgari.com/en-pt
e um mais novo, muito querido, que se chama João, com quem eu brinco e
até lhe dou de comer. Ando na escola, no terceiro ano, tenho muitos amigos
e uma professora que também é um bocadinho chata porque nos obriga a
BICICLETAS fazer TPCs. Os meus pais são muito bonitos, a minha mãe é linda, até os meus
PARA TODOS colegas dizem que ela tem uns olhos azuis que parecem lâmpadas. O meu
pai é muito forte, ensina-me muitas coisas, já aprendi a andar de bicicleta e
A KTM Bikes está a promover a nadar. Ah, e vai muito comigo e com a chata da minha irmã ao cinema e ao
uma campanha de retomas. teatro, a minha mãe não tem paciência.
Na aquisição de uma Myroon Mas eu pedi para escrever no jornal porque acho que os adultos são
Pro ou de uma Myroon muito piores que as crianças, são muitas vezes maus, tratam mal os miúdos
Elite numa loja KTM Bike e os animais e andam à guerra uns com os outros. Eu também faço guerras
Portugal, a antiga bicicleta na escola, mas é a brincar e depois ficamos todos amigos. Gostava que me
é valorizada no valor de 250 explicassem porque é que na minha família estão sempre zangados uns com
euros, sendo consideradas os outros. Os meus pais são muito amigos, mas estão sempre a dizer coisas dos
todas as bicicletas, com meus avós e dos meus tios. Só a minha querida avozinha é que nunca diz mal
todos os componentes, e de ninguém.
que estejam em condição de Espero que não vão contar aos meus pais, mas a minha avó quando está
uso operacional. As bicicletas comigo faz o que ela quer. Por exemplo, não me deixam comer gomas, ela
retomadas vão passar por compra, fica com as que não como, para não levar para casa e depois volta a
uma intervenção mecânica dar-me. A minha doutora meteu na cabeça dos meus pais que eu não posso
completa para serem depois comer gelados iguais aos dos outros meninos, porque me fazem mal. A minha
entregues a IPSS com estatuto avó disse-me: é um segredo, meu querido, no meu tempo podíamos comer
de Utilidade Pública. tudo e não acontecia mal nenhum. Eu acho que os doutores inventam coisas,
ktm-bike.pt têm a mania que sabem tudo.
Outra coisa, os meus pais só me deixam ver os bonecos animados na
televisão durante meia hora, dizem que faz mal e que tenho de ir brincar. A
RELAXAR EM CINFÃES DO DOURO minha avó não é ainda muito velhinha, disse-me que tem cabelos brancos
como o avô, mas que os pinta. Disse-me que quando era criança e chegava
A Aldeia da Margarida é um alojamento intimista que convida a relaxar
a casa da escola sentava-se a lanchar e a ver televisão e é muito inteligente
e contactar com a natureza. Com piscina panorâmica, quintinha de animais
e sabe tudo. Temos mais um segredo, quando estou com ela deixa-me ver
e horta biológica, é a base ideial para umas férias inesquecíveis. Este novo no telefone dela os bonecos que gosto mais. Se o meu pai sabe vai-se zangar
turismo rural fica situado em Cinfães do Douro, entre a serra de Montemuro muito com ela, mas ela é mãe dele, não percebo porque é que não manda
e o rios Douro, Paiva e Bestança, a 20 minutos dos Passadiços do Paiva nele. Os avós deviam mandar nos filhos até morrerem e assim os netos faziam
e da Ponte 516 Arouca. coisas muito mais giras. Mas eu gosto muito dos meus pais, só que acho que
aldeiadamargarida.pt têm umas manias que não deviam ter. Ah, só mais um segredo, dei dois
beijinhos a uma amiga da escola, não posso escrever o nome, e fiquei aflito,
mas a minha avozinha disse-me que não se fazem bebés só com beijinhos.
Se eles souberem tudo isto que vos estou a contar vão-se zangar muito
comigo e com a minha avó, que é a melhor avó do mundo. Acho que não vai
acontecer isto, porque não sabem quem eu sou e a maior parte dos pais agora
estão sempre a dizer, não comas isto, não estejas sempre a olhar para o ecrã.
Fiquem a saber que ainda tenho mais um segredo com a minha avó: ela disse-
me que para o ano, quando eu fizer anos, me dá um telefone para eu poder ver
a “Patrulha Pata”. Perguntei-lhe: e se os pais se zangam com a avó? Não me
respondeu, mas ela trata deles. A minha avozinha é tão querida, eu gosto tanto
dela. Nunca se esqueçam das vossas avozinhas. Só mais uma coisa, acho muito
bem que tenham feito o dia dos avós, foi há dois dias. E obrigado ao senhor
que me deixou escrever aqui. b
josemanuelgameiro@sapo.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2477

9 4
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
8 3 6
8 7 1 1
8 5 1 4
2
7 5 6 1 4 3 8 2
9 4 8 7 3
9 2 5
4
3 6 5
1 9 5

Sudoku Muito difícil 6


1 7
7
6 4
2 8 9 8
3 1 2
9
9 8 6 3
5 2 4 10
8 4 5
1 3 11
6 4
Horizontais Verticais Soluções nº 2476
1. Afastado do centro 2. A Amazon 1. O golpe que ocorre intramuros HORIZONTAIS
Soluções chinesa. Não traz nada de novo 2. Branco dá trabalho e não dá fruto. 1. diplomacia 2. eleitora
Fácil Muito difícil 3. O homem imortalizado em Como um pero 3. Verseje. Contém 3. cinto; ontem 4. latem;
morse 5. ideia; anais
8 3 2 9 1 7 5 6 4 3 8 1 2 7 4 6 9 5
“O Mostrengo”. Contente consigo provisões 4. Formada por dois países.
6. na; rn; Titãs 7. caótica
9 4 5 8 6 3 1 7 2 9 7 2 3 6 5 1 4 8
própria 4. Cotejar com o padrão. Ataca barcos 5. Nota. Pais asiático. Há
8. rias; coral 9. dr; Ala;
1 6 7 5 2 4 3 9 8 5 4 6 9 8 1 2 3 7
5 7 6 3 8 2 4 1 9 4 1 9 7 2 3 8 5 6 Poeticamente negro 5. Fica perto. mais de 2023 anos 6. Branco como
Ali 10. Verona; ámen
2 8 3 4 9 1 6 5 7 7 5 3 6 4 8 9 2 1 Circula no Japão. O que faz melhor marfim. Ene grego 7. Patrulhou os céus
11. amostras; má
4 9 1 7 5 6 2 8 3 6 2 8 5 1 9 4 7 3 quem faz por último 6. Desprezível. ingleses na 2ª Guerra Mundial. Toma
6 1 4 2 7 8 9 3 5 1 6 5 4 9 7 3 8 2
A Angelina para os íntimos 7. Liga. tempo 8. Vogal repetida. A Rosinha VERTICAIS
Transforma o ar em energia 8. Vilão imortalizada por Marco Rodrigues 1. declinar 2. Ilíada; idem
7 2 9 6 3 5 8 4 1 2 3 4 8 5 6 7 1 9

3. pente; carro 4. liteiras;


3 5 8 1 4 9 7 2 6
em série cómica americana. É boa 9. Antecedidas de ex são fora da caixa
8 9 7 1 3 2 5 6 4

corredora 9. Tenro no meio. Pai que 10. Instrumento musical. Pede socorro os 5. otomano; ant
não se ensina ao vigário 10. A linha que 11. Reza ou discursa. Pertenço 6. mó; lar 7. aromática
interceta outra. Permite alternativa 8. canónico; ás
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2475 9. trataram 10. Alésia;
11. Enganam habilmente
“O Mito do Normal”, de Dr. Gabor Maté, para Maria além 11. Messalina
de Lurdes Aparício, de Seia; “No Coração da Xitaca
Interior”, de António Sá, para Fernando Silva, de
V.N. de Gaia; “Os Três Nomes de Ludka”, de Gisela
Pou, para Francisco Adrião, de Sacavém. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 81
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
SE COMENTAR NÃO BEBA

O
DEZENAS DE COMENTADORES TÊM OLHADO PARA OS RESULTADOS ELEITORAIS ESPANHÓIS
COMO O PROFESSOR KARAMBA OLHA PARA AS ENTRANHAS DE UMA GALINHA

Barcelona ganhou a liga espanhola coisa. E o partido que diz ser a voz do povo ficou reduzido a quase metade,
de futebol e o Valladolid, o Espanyol o que significa que o povo resolveu falar mais baixo, ou preferiu falar
e o Elche foram despromovidos de outra maneira. Ou seja, a grande lição das eleições espanholas é que
à segunda divisão. Que lições as previsões dos comentadores políticos espanhóis falharam: tinham
retiramos daqui para o campeonato previsto a vitória retumbante da oposição e a derrota esmagadora do
português? Em princípio, nenhumas. governo, pelo que nenhum percebeu o que viria a acontecer nas urnas.
O concurso “Pasapalabra” foi o Esse é o único grande paralelo que é possível fazer com a realidade
programa de entretenimento mais portuguesa: cá, os comentadores também são sistematicamente
visto da televisão espanhola no surpreendidos pela vontade popular. É das características mais
passado domingo. Que efeito poderá encantadoras que o povo tem: anda a enganar analistas políticos há
ter isto no panorama audiovisual décadas. b
português? Parece que nenhum. O
PP ganhou as eleições em Espanha, mas o PSOE também subiu, o Vox Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
desceu bastante e por isso há um impasse político em que ninguém tem
condições de formar governo. Que paralelos se podem estabelecer com
a política portuguesa? Tantos quantos conseguirem encher a duração
média de um programa de comentário político. É um pouco perturbador
que comentadores desportivos sejam mais sensatos do que comentadores
políticos. Para os comentadores desportivos, a vitória do Barcelona não
permite tirar conclusões sobre quem será o próximo campeão português,
mas os comentadores políticos conseguem reflectir longamente acerca do
modo como as eleições espanholas ajudam a prever o que poderá passar-
se em Portugal. Dezenas de comentadores têm olhado para os resultados
eleitorais espanhóis como o Professor Karamba olha para as entranhas
de uma galinha. Ao que parece, além de votarem no governo do seu país,
os espanhóis deitaram os búzios para saber qual será o próximo governo
do nosso. Seria bastante irónico que os resultados eleitorais espanhóis
permitissem perceber qual será o próximo governo português, visto que / RICARDO
nem sequer permitem perceber qual será o próximo governo espanhol. O
partido vencedor das eleições espanholas não ganhou nada de especial
ARAÚJO
e o partido que ficou em segundo não terá propriamente perdido grande PEREIRA

E 82
hyundai.pt Hyundai Portugal

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