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O CANGAÇO NAS TELAS DO CINEMA: UMA BREVE INTRODUÇÃO


HISTORIOGRÁFICA

Naiara Santos Rocha Lacerda


Graduanda em História (UNEB/Campus VI)
naiararocha.cte@gmail.com

Orientação: Prof. Dr. Jairo Carvalho do Nascimento (UNEB/Campus VI)

Este texto tem por objetivo fazer uma revisão bibliográfica dos autores que estudam o
cangaço no cinema. É um resultado parcial do projeto de pesquisa de conclusão de curso
intitulado Representações do cangaceiro no cinema: estudo dos cartazes dos filmes de cangaço,
em que pretendo estudar alguns filmes do cangaço, particularmente seus cartazes, na
perspectiva de analisar a construção de imagens e representações que tais peças publicitárias
construíram acerca do cangaceiro e do cangaço. Ao finalizar essa pesquisa, após a apreciação
de várias fontes, almeja-se conseguir respostas para a formação do estereótipo do cangaceiro
do tipo: O que essas imagens transmitem sobre os cangaceiros? Como elas influenciaram na
formação do conceito sobre os cangaceiros? Se as imagens representadas nos cartazes dialogam
com os livros de História? E até onde o cinema pode influenciar na formação de preconceitos
e estereótipos? Por isso a leitura dessas obras que serão apresentadas neste artigo é
indispensável para dar início aos estudos da temática supracitada.
O conjunto de autores que escreveram sobre o cangaço no cinema é muito vasto. Por
isso, farei aqui uma síntese historiográfica, elegendo apenas alguns autores, dentre eles,
citamos: Wills Leal, com O Nordeste no cinema; Maria do Rosário Caetano e sua obra
Cangaço: o Nordestern no cinema Brasileiro; Caroline Lima Santos e sua dissertação de
mestrado, O Cangaceiro, o cineasta e o imaginário: a produção de representações do cangaço
no cinema brasileiro (1950 – 1964); e por fim, Marcelo Dídimo, com o livro O cangaço no
cinema brasileiro1.
Wills Leal é jornalista e escritor paraibano. Pertence a Academia Paraibana de Letras
(APL). É um pesquisador da história do cinema da Paraíba2. Em O Nordeste no cinema, ele
analisa a cultura nordestina no cinema com ensaios escritos no final da década de 19603, para
tanto, ele divide o livro em dois grupos: no primeiro, ele avalia as primeiras produções; o
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segundo grupo é destinado aos filmes de cangaço. Apesar de ter um momento específico para
se tratar de cangaço, no decorrer do livro Leal aborda a temática em outros capítulos de forma
sucinta, de como os cangaceiros apareciam nesses filmes, além de um capítulo especifico sobre
o cinema de Glauber Rocha. No capítulo destinado a analisar o filme Vidas secas, por exemplo,
ele ressalta a importância da presença do cangaço no filme, afirmando que: “a sua presença é
perfeita, em sintonia com a época e o local”4.
No capítulo A lição dialética de Glauber Rocha, o autor faz um estudo dos filmes do
desse diretor baiano, com um destaque ao filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), em que
realiza uma análise coerente dessa obra, tendo como um dos protagonistas principais o vaqueiro
Manoel (Geraldo Del Rey), que busca saídas para a sua miserabilidade social, inicialmente na
religiosidade, e depois no cangaço. Ele identifica alguns elementos marcantes no filme, na
caracterização do Nordeste de Glauber: uma região torturada pela seca e a explosão de
violência, de grupos armados, de jagunços e cangaceiros. Com esses elementos, Deus e o diabo
na terra do sol seria um filme atual, polêmico, uma obra marcante, uma obra de arte que fugiu
completamente da tradição comercial do mercado brasileiro, segundo Wills Leal à época. Para
finalizar Leal afirma:

Erudição e bom senso, busca de criação, genialidade por vezes, uma


pesquisa e uma amargura por falta de meios para melhor se expressar,
tudo isso enrolado com o que está dentro do Nordeste (agrário, do
misticismo e do cangaço), Glauber Rocha colocou em seu filme,
concretizando o primeiro filme-cangaço como obra de arte e não uma
mera mercadoria5.

No grupo que se destina exclusivamente ao cangaço, Wills Leal inicia sua escrita a
respeito do ciclo do cangaço, como esse fenômeno permitiu ao cinema brasileiro a produção de
vários filmes com diversos gêneros, e com uma abertura para uma visão sócio-política.
Entretanto, este autor faz uma crítica muito polêmica, afirmando que apesar de terem
conseguido se afirmar como uma linha própria, os filmes representam uma negação a cultura
nordestina: “Desde o CANGACEIRO até as obras mais recentes, o gênero filme-de-cangaço
representa uma só e única coisa: a negação dos autênticos valores culturais nordestinos, valores
políticos, sociais, humanos, folclóricos e geográficos”6. No decorrer do livro, ele vem justificar
a sua afirmação, uma delas seria que a maior parte dos filmes foi rodado no Sul do país, o que
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já descaracteriza um cenário geográfico de um filme que quer representar um movimento que


foi ocorrido no Nordeste. Mas apesar desses aspectos, o saldo de cinema com filmes de cangaço
seria positivo, principalmente por Deus e o diabo na terra do sol e Memória do cangaço que,
segundo o autor, não são apenas filmes meramente comerciais. Para finalizar, o que se pode
perceber é que o livro O Nordeste no cinema é uma obra muito rica para se trabalhar com a
temática cinema e Nordeste; seu texto é objetivo e traz muitas informações sobre os primeiros
filmes do ciclo do cangaço no cinema, além de examinar outros filmes sobre o Nordeste.
Maria do Rosário Caetano é jornalista, formada pela UnB. Escreve, atualmente, para a
Folha de S. Paulo, no Caderno 2, e para a Revista de Cinema. Pesquisadora de cinema, já
escreveu diversos livros e artigos, abordando o cinema brasileiro e latino-americano como
temas principais7. O seu livro, Cangaço: o Nordestern no cinema brasileiro, é uma coletânea
de artigos escritos por pesquisadores e diretores de cinema.
Em um dos capítulos, “O homem que matou Corisco”, o autor Ruy Guerra divulga um
rápido diálogo seu com o coronel Rufino, de 1962, na cidade baiana de Jeremoabo, em que o
famoso “matador” relata a sua participação na perseguição aos cangaceiros, a rotina do seu
oficio na época do cangaço e consequentemente da morte de Corisco.
Em outro capítulo, “Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião”, José Umberto
traz um ensaio sobre Benjamin Abrahão e a sua experiência e motivação que o levaram a filmar
o grupo de Lampião. Neste capítulo, José Umberto relata essa experiência de Benjamin
Abrahão, que conviveu durante um tempo com o grupo de Lampião, registrando seu cotidiano.
Ele queria entender de perto esse fenômeno do cangaço, tinha um certo apresso pessoal pelo
bando, e queria entender a visão que o povo nutria pelo cangaceiro:

O sentimento do povo, com relação aos cangaceiros, era uma amálgama


de medo e satisfação, com feição lendária. ‘É uma beleza esse bando de
lampião’ se admirava Abrahão, ‘sua independência de ação tem
nobreza dos grandes guerreiros. Não são assalariados do crime. Matar,
para eles, é uma questão de honra, nesta terra de injustiças8.

Abrahão teve a oportunidade de conhecer Lampião e percebeu que se tratava de um


homem educado, com disciplina e que tinha orgulho da sua condição de cangaceiro. Por conta
disso, ao assistir o documentário Lampião, a fera do Nordeste9, ficou indignado com a forma
em que ele, Lampião, era representado, o teor sensacionalista, no qual Lampião era visto como
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um monstro que matava até criancinhas, lançando-as para o alto e aparando-as no ar com o seu
punhal. Esse filme impulsionou Abrahão a filmar o seu documentário, por conhecer
pessoalmente Lampião e ver essa disparidade nas representações em filmes.

Tudo que ouvira falar na boca do povo e nas estrepitosas manchetes dos
jornais não correspondiam absolutamente à imagem que virá naquele
dia. Por trás do facínora cruel e demoníaco se escondia a postura de um
príncipe tropical, com gestos nobres e calculados, roupas refinadas e
idealizadas, obedecendo a um maravilhoso ritual de disciplina e
organização. (...) estas ideias martelavam a cabeça de Abrahão. De
impressão passou a obsessão, aquele desejo de revelar uma verdade. A
noção estava diante de um enigma, um pesadelo, um mito ... era
necessário alguém romper esse obstáculo, transpor a lenda, rasgar a
mentira, ferir as aparências e alcançar a sua essência10.

Através da análise deste depoimento, percebe-se que as representações dos cangaceiros


estavam um tanto quanto exageradas, e que isso foi o que mais incentivou Benjamin Abrahão
a levar a diante o seu projeto audacioso de seguir o bando de Lampião com uma câmera para
filmá-los em ação e no dia-a-dia, suas festas rotinas, convivência na intenção de expor o mais
próximo possível da realidade e diminuir o imaginário das pessoas em relação a imagem que
se fazia de Lampião.
Enfim, além desses autores citados acima, Maria do Rosário Caetano, em seu artigo,
escreve sobre Maurice Capovilla e analisa o filme produzido por este diretor, O último dia de
Lampião, de 1975. Ela traça uma breve biografia desse diretor, e publica parte de uma entrevista
em que Capovilla fala sobre os documentários realizados sobre o cangaço11.
Uma outra vertente interessante para se estudar o Nordeste no cinema é o estudo de
Caroline Lima Santos, O cangaceiro, o cineasta e o imaginário: a produção de representações
do cangaço no cinema brasileiro (1950 – 1964), dissertação de Mestrado em História,
defendida no Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB/Campus V), em 2010. Atualmente, é doutoranda em Ciências Sociais
pela Universidade Federal da Bahia12.
Neste estudo, ela problematiza os discursos formados sobre o Nordeste e o cangaceiro,
através da análise de algumas obras literárias e no filme O cangaceiro, de Lima Barreto. Para
tanto, ela dispôs de diversas fontes, como filmes, jornais, e uma bibliografia variada sobre o
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contexto cultural brasileiro do período analisado. O que podemos constatar em sua dissertação
é o enfoque dado ao filme como fonte histórica, já que nele pode-se identificar discursos e
representações de fatos históricos.

Tendo em vista que o século XX foi marcado por imagens e por grandes
atividades culturais, a fotografia, o cinema e a televisão seduziam, e se
houve sujeitos que disputaram e usaram muito bem o poder da sedução
da imagem, de acordo com Élise Jasmim, foram os cangaceiros,
principalmente o bando de Lampião. (...) os cangaceiros, heróis ou
bandidos – a depender da perspectiva e do discurso – tornaram-se os
principais personagens do sertão nordestino13.

Este trabalho problematiza como se caracteriza a identidade do povo nordestino rural


em relação ao urbano, assim compreender as representações atribuídas aos cangaceiros, e como
a relação história-cinema pode facilitar a metodologia para o entendimento dos fatos de uma
forma mais palpável e clara. Ela enfoca também como o cinema acaba por se tornar uma
ferramenta de extensão e, consequentemente, de manipulação do real.
Para melhor entendimento de sua pesquisa, o texto traz um capítulo sobre as políticas
de desenvolvimento do período histórico estudado, que analisa a conjuntura econômica, cultural
e política do país na década abordada, além de capítulos que versam sobre a importância da
criação de institutos intelectuais e de políticas desenvolvimentista; apenas no capítulo 4, a
autora aborda os estudos mais aprofundados da sua temática e faz a relação das fontes literárias
com as fílmicas e bibliográficas, além das contribuições do Cinema Novo para a produção
cinematográfica do período pesquisado.
Finalmente, apesar do enfoque nas obras literárias e no filme de Lima Barreto, está
dissertação nos oferece um terreno fértil para os estudos de cangaço, cinema e cartazes, já que
faz relação com fontes diversas, além de mostrar a formação do estereótipo do cangaceiro e sua
formação através de obras literárias e fílmicas do período de tempo muito próximo do que será
trabalhado em nossa pesquisa.
E, por fim, temos a contribuição de Marcelo Dídimo, que faz um grande estudo dos
filmes de cangaço no Brasil. Este autor é professor do curso de Cinema e Audiovisual da
Universidade Federal do Ceará (UFC). O livro O cangaço no cinema brasileiro é sua tese de
doutorado, defendida na Universidade Estadual de Campinas, em 200714.
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Seu livro é dividido em 6 capítulos, e cada um trata de um gênero diferente, começando


por um exame sobre o cangaço no cinema brasileiro e dando continuidade com Primórdios que
são os primeiros filmes produzidos; O Nordestern, que são os filmes desse gênero; Comédias;
Documentários; O cangaço de Glauber Rocha e Releituras. Ele faz uma descrição tão
minuciosa dos filmes que é possível que mesmo que o leitor não conheça o filme reproduzi-lo
lentamente, além de um breve comentário sobre a obra. Por isso uma leitura essencial para a
temática. No capítulo I, (Os Primórdios) ele analisa os filmes produzidos no período de 1925
ao documentário de Benjamin Abrahão em 1936. Nesse capítulo as análises são mais breves,
na sua maioria pela falta de contato com a fonte fílmica. Entretanto, isso não diminui a
qualidade do trabalho, muito pelo contrário, apesar de breve conseguiu atingir o seu objetivo
nas análises15.
O capítulo II é o mais denso do livro, que aborda o maior número de filmes, com
produções da década de 1950 a 1980. Este capítulo tem como título O Nordestern: “O termo
Nordesten foi um neologismo criado pelo pesquisador Salvyano Cavalcanti da Paiva na década
de 1960 e foi atribuído aos diversos filmes realizados sobre o cangaço nesse período”16. Ele faz
uma ampla análise de todos os filmes desse ciclo, e o termo Nordestern serve para identificar a
produção cinematográfica desse período, associando ao western clássico norte-americano que
tais filmes de cangaço se inspiravam.
A partir da década de 1960 os filmes com a temática do cangaço tiveram uma grande
produção. Isso se deve, em grande parte, ao filme O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que
abriu as portas para esse gênero com características que marcaram o cangaceiro para as
próximas produções do cinema comercial; até então o gênero de cangaço, apesar de ter algumas
produções, não tinha conquistado o seu devido espaço no cinema nacional.
O livro de Marcelo Dídimo é uma fonte rica de informações sobre a filmografia
histórica do cangaço. É uma leitura obrigatória para novos pesquisadores.

Considerações finais
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Após a análise desses autores, percebe-se que a cinematografia do cangaço,


independente do gênero, foi expressiva no cinema brasileiro, principalmente durante as décadas
de 1960 e 1970, recorte histórico que pretendo estudar os cartazes dos filmes no trabalho de
conclusão de curso (TCC).
Também podemos perceber que dentre os inúmeros filmes analisadas, alguns se
destacam em praticamente todas essas obras, como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber
O cangaceiro, de Lima Barreto, cada um demarcando um contexto cultural, uma estética
cinematográfica. Posteriormente pretendo aprofundar a pesquisa no intuito de responder alguns
questionamentos pertinentes em relação a alguns desses filmes que se destacam na filmografia
do cangaço, dentre eles entender alguns dos motivos dessas obras ainda, depois de tantos anos,
continuarem sendo estudadas e usadas como referência até hoje no que se refere ao
entendimento do cangaço no cinema.
Enfim, o que se pode concluir após o estudo dessas obras é que são essenciais para quem
pretende trabalhar a trajetória do cangaço no cinema. Tais autores, com uma escrita clara e
objetiva, mesmo com suas características individuais em seus textos, fazem reflexões
extremamente pertinentes sobre o fenômeno do cangaço no cinema.

1
LEAL, Wills. O Nordeste no cinema. João Pessoa: FUNAPE/Editora Universitária, 1982; CAETANO, Maria do
Rosário. Cangaço: o Nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avathar Soluções Gráficas, 2005; SANTOS,
Caroline Lima. O cangaceiro, o cineasta e o imaginário: a produção de representações do cangaço no cinema
brasileiro (1950 – 1964). Santo Antônio de Jesus, BA, 2010, 160 f. Dissertação (Mestrado em História Regional e
Local), Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus V); DÍDIMO, Marcelo. O cangaço no cinema
brasileiro. São Paulo: Annablume, 2010.
2
Fonte: www.osebocultural.com/galerias.html. Acesso: 19/09/2016.
3
Porém, em função de diversos problemas de ordem técnica e política, o livro só viria a ser publicado em 1982.
4
LEAL, Wills. O Nordeste no cinema, op. cit., p. 23.
5
Idem, p. 46.
6
Idem, p. 89.
7
Fonte: www.cenacine.com.br/?p=1606. Acesso: 19/09/2016.
8
UMBERTO, José. Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião. In: CAETANO, Maria do Rosário.
Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avathar Soluções Gráficas, 2005. p. 17-31 (p. 18).
9
LAMPIÃO, A FERA DO NORDESTE. Direção: Guilherme Gáudio. Gênero: Drama/Longa-metragem/Silencioso.
Ano: 1930. Local: Salvador/BA. Produção: José Nelli. Formato: 35 mm. Segundo Marcelo Dídimo, não existe
cópia deste filme (material desaparecido). Cf. DÍDIMO, Marcelo, O cangaceiro no cinema brasileiro, op. cit., p.
41.
10
UMBERTO, José. Benjamin Abrahão, o mascate que filmou Lampião, op. cit., p. 19.
11
CAETANO, Maria do Rosário. O cangaço nos documentários da Blimp Filmes. In: CAETANO, Maria do
Rosário. Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avathar Soluções Gráficas, 2005. p. 55-60.
8

12
Fonte: http://lattes.cnpq.br/3431208335951135. Informações do currículo Lattes. Acesso: 19/09/2016.
13
SANTOS, Caroline Lima. O cangaceiro, o cineasta e o imaginário, op. cit., p. 11.
14
Fonte: www.cinemaeaudiovisual.ufc.br/?page_id=341. Acesso em: 19/09/2016.
15
DÍDIMO, Marcelo. O cangaço no cinema brasileiro, op. cit.
16
Idem, p. 61.

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