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CALAFRIOS DA NOITE

Coletânea de Contos

Cesar Bravo
Direitos autorais do texto original © 2013
Cesar Bravo

Todos os direitos reservados

Edição: Cesar Bravo


Diagramação: Cesar Bravo
Montagem da capa: Cesar Bravo
Revisão: Cesar Bravo

Ficção: Literatura Brasileira


Suspense, Horror, Violência, Sexo.
Terror/Sobrenatural. Tensão psicológica.
(Conteúdo adulto. Recomendado para maiores.)

Cesar Bravo
cesarbravoescritor@gmail.com
@cesa_bravo_1977
http://www.facebook.com/pages/Cesar-Bravo/167745786701987
Esse livro é dedicado a todos aqueles que ousam e alcançam sem perder
tempo se lamentando.
Sobre o autor
Cesar Bravo é um autor brasileiro nascido em 1977 que insiste em se
manter fiel ao que gosta de fazer. Poucas vezes desfrutei de autores
nacionais com uma atitude tão honesta e perseverante quando a dele. É
autor e coautor de contos, romances, enredos, roteiros e blogs. Cesar
também brinca um pouco com o violão, mas já o aconselhei que continue
escrevendo...
O conheci há quatro anos, quando li um de seus textos publicado em
um jornal da cidade. Minha primeira impressão foi: “O escritor mais azedo
que eu já li”, mas isso só durou até conhecer melhor seu trabalho. É
inegável seu talento com as palavras e a quantidade de emoção que é capaz
de evocar em seus leitores. Também é impressionante como já disse, sua
perseverança em defender gêneros espinhosos como o suspense e o terror
aos quais se dedica mais fortemente.
Confesso que fiquei surpreso quanto fui convidado para falar um
pouco de seu trabalho (somos praticamente concorrentes), mas também me
senti honrado. Anotem esse nome, senhores. Cesar Bravo ainda vai dar
muito mais o que falar no cenário literário nacional viciado e insossa que
temos hoje. Já confirmou seu nome em mais de oito volumes de coletâneas
com outros autores, a maioria pela editora Multifoco Sul e Rio. Também
tem seus Romances e outras obras vendidas pela Amazon.com.
Leiam esse escritor antes de ignorá-lo ou trocá-lo (como ele mesmo
diz) por “qualquer gringo cheio da nota e sem escrúpulos na caneta”.
Sou amigo profissional e hoje pessoal do Cesar e espero que
continuemos assim.

L. Brisa
Preâmbulo
Olá, meu amigo (bem, ainda não nos conhecemos, mas visto que você
está lendo essa apresentação e consequentemente lerá parte de quem sou e
do que sai de minha cabeça, acho que posso te considerar um amigo); bem
vindo.
Escrevo esse início para contar um pouco da minha história e se isso
soar enfadonho (ou se você já leu esse preâmbulo em algum outro livro que
publiquei) sinta-se à vontade para adiantar sua leitura, mas caso esteja
interessado, gostaria de falar um pouco do que faço aqui, me
autodenominando escritor.
Desde que me descobri escritor, tenho tentado — e já faz alguns anos
— conseguir a publicação por editoras convencionais e posso dizer com
sinceridade que tentei tão duramente que cheguei a pensar que não tinha
talento algum depois das várias cartas de “Muito obrigado, seu livro é bom,
mas não se encaixa em nossa linha editorial” que recebi. Foi então que
resolvi tentar publicar alguns contos e capítulos na internet, inicialmente de
graça. Foi só depois disso, e dos vários anos praticando a arte de receber
nãos e até breves, que ouvi desses novos amigos da internet, que eu tinha
SIM algo a oferecer. Com um pouco mais de confiança e garimpo, descobri
a Amazon com seu maravilhoso Kindle (e eu digo isso sem ganhar um
centavo desses caras pela propaganda, digo isso porque o senhor Kindle
passa mais tempo comigo do que a minha esposa). E aqui estamos nós.
Feitas as apresentações, espero que leia o livro todo, que goste do livro
todo e que se for possível e não lhe incomodar muito, avalie esse livro para
que eu possa seguir minha carreira com o seu aval. Esse livro foi concebido
totalmente de forma independente. Meus Leitores-Beta foram amigos, meus
revisores foram colegas de profissão que me ajudaram sem cobrar quase
nada e minha propaganda e principal incentivo tem sido você, meu mais
novo amigo. Se em qualquer uma dessas etapas de produção eu deixar a
desejar, peço que reconsidere tendo em vista a dificuldade de publicar um
livro sob essas condições. E conte com meu empenho em oferecer obras
cada vez melhores e quem sabe novas edições por uma editora
convencional.
Bem, era isso o que eu queria dizer e agradecer mais uma vez por seu
interesse em meu livro.
Agora é com você.
Um abraço.
Cesar.
Índice

Prólogo
Torniquete
Pague sua conta
Cavalo bravo
Vinte andares
O homem que falava palavrão
Posso fumar aqui?
A mulher do sótão
O violão de Johnny
Kid Caranguejo
Danação
Não há vagas
Dor nas costas
Alguém a olhar por você
Colheita obrigatória
Lado oculto
Prólogo

BEM VINDO ao meu mundo, amigo leitor.


Deixe a luz acesa se for ao banheiro.
Pode ter alguém te esperando na volta...
Rangendo dentes e esparramando restos de carne pelo chão.
Ouse...
Deixe-se levar pela escuridão; abandone velhos preconceitos.
Embriague-se de suspense e horror.
Torniquete
(Baseado na história de Ian Hudson)

TUDO COMEÇOU COM uma coceira...


Meu nome é Milor Aleixo. Tenho trinta e dois anos e acho que Deus é
um sacana. Hoje sou paciente da ala de recuperação no hospital Santa Isabel
em Taubaté, internado por amputação voluntária de uma das pernas —
direita. À minha frente, sentado em uma cadeira que range sem parar,
Sanitiel Gorja, repórter de uma revista sem expressão lida em clínicas de
lipoaspiração e cabeleireiros — com alguma sorte...
Ele pretende me entrevistar. Falávamos sobre Deus agora a pouco,
porque ele disse que graças a Deus eu estava recuperado.
—... eu não pensei sempre assim — continuei —, não sou o tipo de
cara que foi molestado sexualmente enquanto se confessava e não é por isso
que não gosto de igrejas. Nem sei por que estou falando de religião, talvez
porque eu esteja sentado nessa cama dando uma entrevista para a sua
revista de malucos. Como é mesmo o nome?
— “Verdades e mistérios” — respondeu ele. O repórter...
Eu sempre imaginei repórteres como sujeitos espertos de olhar sagaz
que usam chapéus idiotas e óculos caros. Aí chega um cara mais novo que
eu, com um cabelo sujo de Kurt Cobain e fedendo desodorante Avanço. E
eu pensando que repórteres ganhavam bem...
— É só eu ficar falando aqui, ou vai me fazer perguntas?
— O que você prefere?
— Prefiro que faça as perguntas, Gorja.
Sujeitinho boçal... Bom, pelo menos, ele tem as duas pernas.
Sanitiel se ajeitou na cadeira, que devia estar quadriculando sua bunda
— a cadeira era de vime trançada com redinhas de nylon e não consigo
deixar de pensar na bunda branca do camarada como um tabuleiro de damas
quando ele se levantar —, pegou caneta e bloquinho e começou a escrever.
Às vezes, penso que ele não está escrevendo nada e sim desenhando
caveirinhas, como um universitário gay de rabo-de-cavalo que cursa moda
faz nas aulas de matemática. Ele tem cara de universitário gay, mas acho
que ele não conseguiria fazer um rabo de cavalo a menos que enfiasse uma
escova na bunda...
— Tá rindo de quê?
— Nada — respondi. — Tá pronto pra começar com as perguntas?
Acho que tenho alguma coisa nova para a sua revista.
Ele ligou um gravador e firmou o novo bloquinho de anotações nas
mãos, certeza que era só pra fazer tipo...
— Vejamos... Você me disse que começou com uma coceira toda
essa... isso... essa...
— Essa loucura, doideira, coisa de maluco? Pode dizer, eu não me
incomodo.
— Simplifiquemos, Aleixo: como decidiu amputar sua perna direita?
Eu me ajeitei na cama, respirei mais fundo e comecei a contar a coisa
mais corajosa e estúpida que alguém com duas bolas (e duas pernas) pode
fazer.

— Quando senti uma coceirinha pela primeira vez, estava saindo da


casa da minha ex-namorada. Ela me largou, sabe? Depois. Por causa da
perna. Mas naquele tempo eu ainda tinha as duas e ela dizia que me amava.
Era junho e as ruas estavam frias. Eu caminhava a pé, apesar de ter carro e
uma moto velha de fazer trilha. Naquela noite, depois de andar dois ou três
quarteirões, senti minha perna direita coçar um pouco. Eu cocei, sem parar
de andar. Apenas cocei.
Sanitiel se ajeitou na cadeira, um pouco incomodado. Sempre que
começo essa história, noto que o ouvinte se coça, mas ele resistiu.
— Ela coçou de novo e eu cocei de novo, e antes de chegar à minha
casa estava sentado em frente da rodoviária onde as prostitutas fazem
ponto, olhando para as unhas delas e me perguntando quanto cobrariam
para me coçar. Aquilo era infernal.
— Tentou algum medicamento?
— Amigo... Eu tentei tudo o que você possa imaginar, de mertiolate à
babosa espremida. Minha avó disse que babosa era bom... Para mim,
parecia algum tipo de esperma de planta alienígena, mas eu passaria até
bosta de gárgula se curasse a coceira. Eu também passei álcool, cheguei a
jogar gasolina uma vez.
— Adiantou? — perguntou o boçal com caderninho.
Como o cara me pergunta um troço desses vendo que falta uma perna
no meu corpo magricelo de fumador de crack? (eu não fumo crack, é só
força de expressão).
— Nada disso, a coceira foi tanta que eu comecei a ficar maluco de
raiva. Naquela primeira noite, depois de me coçar por quase uma hora,
consegui dormir, mas na semana seguinte eu, além de me coçar, tinha que
passar pomadas cicatrizantes nos rasgos.
— Rasgos?
— É companheiro, comecei a me coçar com todo tipo de coisa, de
toalha à lixa de parede. A coisa coçava por dentro, como se tivesse um
monte de vermes passeando pela minha perna. Deslizando entre a
musculatura e a pele. Chegava a sonhar com isso; que um dia eu acordaria e
os bichos estariam pelo chão, pelo teto, dentro da minha boca... No meu
pin... Você me entendeu.
— Nessa época você trabalhava, certo? Tinha um emprego?
— E alguém nesse país fica sem trabalhar? Eu trabalhava como um
doido se quer saber, limpava janelas de prédios. Não era um trabalho dos
mais agradáveis, mas pagava bem. Pouca gente tem coragem de fazer isso.
Talvez tenha me ajudado na decisão de arrancar a perna.
— Não entendo. O que houve de tão grave no emprego? O que houve
depois? — Sanitiel perguntou.
Vi que ele não parava de olhar para o meu coto. Olha, vou ser sincero,
se eu não tivesse motivo nenhum para arrancar um membro, faria por causa
da fama. Eu não vejo nada demais em fazer o que eu fiz e do jeito que eu
fiz, mas para caras como esse aí e um monte de outros carniceiros, eu virei
um super-homem, um tipo de escultura viva peniana da coragem. Eles me
veneram. Claro que alguns têm nojo e medo, mas são minoria.
— Depois, a coceira chegou a um estágio em que eu corria risco de
vida.
— Por causa da perna?
— Não, por causa do rapel do meu trabalho... Como disse a você,
limpava janelas nas alturas. Só que a coceira era tanta, que quando batia
forte eu precisava tirar minha roupa e me coçar. Imagina fazer isso longe do
chão? É claro que o técnico de segurança do trabalho não gostou quando me
viu rasgando a calça com um canivete e me coçando...
— Ele viu? — perguntou-me.
O que eu faço com esse cara...
— Não in persona... Mas o pessoal engravatado que participava de
uma reunião no prédio viu direitinho... — eu ri me lembrando de uma
gostosa de terninho que ficou olhando com o rosto colado na janela.
Coitada... Deve ter sido bem impressionante, porque depois de alguns
segundos ela saiu correndo e esbarrou em cada cadeira que encontrou pelo
caminho.
— No outro dia eu estava no olho da rua. E a coceira comigo, ainda
pior.
Tomei um gole de água e prossegui.
— Na semana seguinte comecei minha sina...
Ele colocou o radinho gravador mais perto, sobre a mesinha com água.
O aparelho era um pequeno Sony. Com tape ainda, bem legal, antigo e
barato.
— A empresa me deu uns meses de prazo no convênio quando
ameacei processá-los por me demitirem doente. Fisioterapeuta, Ortopedista,
Quiropata, Reumatologista, Traumatologista, Imunologista,
Orthomolecular, Homeopata, Farmacêutico, Macumbeiro e o tiozinho na
minha rua que benzia com folhas de mamona. Tentei de tudo!
— E nada resolveu? — perguntou Gorja.
Nesse momento, eu realmente achei que Sanitiel se afeiçoara a mim.
Um cara sem perna, sempre ganha um pouco de afeição grátis.
— Nadinha... E como eu dormia pouco, porque passava a noite me
coçando, comecei a ficar doidão e pensar que todo mundo tinha culpa da
minha situação. Acho que foi o mau-humor que me levou ao psiquiatra.
Como ninguém achava o problema com a minha perna, resolveram que
minha cabeça era a culpada. Fico nervoso só de lembrar... Cara!
— Se não quiser contar, podemos pular essa parte...
— Tá brincando? Essa é a melhor parte.
— Quando cheguei na clínica do doutor Me-Dê-Um-Comprimido-
Colorido, já estava sem namorada e com escaras por toda a perna... A Kelly,
com nojo de mim, tinha me deixado. Então, além do emprego, eu tinha
perdido o amor da minha vida por causa da maldita perna. Cara... Sem
viadagem, nada dói mais que perder o amor de sua vida, nem mesmo perder
a perna na porcaria da... Mas ainda não chegamos lá, né?
Ele fez que não...
O safado estava gostando do suspense. Ele tornou a se ajeitar na
cadeira, também esticou o braço e bebeu um gole de água mineral de uma
garrafinha que trouxe. Ele trouxe quatro delas, eu já tinha bebido uma
inteira. Isso é uma coisa que eu nunca tinha imaginado: perder um membro
dá sede. Engraçado, né? Devia ser o contrário, porque você está
economizando um monte de coisas; nutrientes, comandos cerebrais,
sangue... Porra, cara! Como sai sangue! É uma coisa indecente de sangue!
— Podemos continuar — disse Sanitiel. Ele era educado. Bem mais
que eu. Mas tinha cara de tonto. Bem mais que eu.
— O que o psiquiatra fez, foi me entupir com comprimidos. Ele testou
de tudo e eu fiquei mais doidão que o Ozzy Osbourne quando podia ficar
doidão sem entrar em coma. Diazepam, Lorazepam, Cymbalta, Lexotan,
Rivotril, Prozac, e mais... Eu tomei tudo o que o cara da farmácia podia me
vender por quatro meses. E cheirei cocaína junto.
— E não resolveu nada?
— Não foi bem assim... A coceira passou. O problema é que começou
a doer.
— Pode descrevê-la? A dor?
Sádico! O cara começou a se interessar pela minha dor. Sabia que isso
ia acontecer. O ser humano gosta de assistir outro ser humano sofrendo. É
coisa nossa, a gente se emociona com a dor do outro... Mas ele estava certo.
De que adiantaria contar o santo sem contar o milagre? Eu iria até o fim
nessa entrevista. Como vou até o fim em qualquer coisa.
— Era alucinante — respondi. — Como sentir seus ossos congelando
ou sendo esmagados. Já quebrou algum osso?
— Uma vez quebrei a mão — disse Sanitiel.
— Tá... — continuei. — Existe um procedimento chamado “redução”.
É quando você demora para ir no ortopedista e depois eles precisam quebrar
seus ossos de novo porque eles calcificaram do jeito errado; sei disso
porque eu tive que fazer uma vez, quando quebrei o braço.
— E dói?
— Dói pra caralho. Uma redução deve ser o mesmo que quebrar a mão
cinco ou seis vezes. Já a minha dor na perna...
Suspirei só de lembrar.
— Era como um trator passando por cima de sua mão. É como fazer
reduções seguidas na perna a cada dez minutos, o dia inteiro, era coisa do
demônio. Tanto que, às vezes, eu nem saía da cama. Ficava lá, tentando a
combinação de drogas mágicas que me faria dormir para sempre.
— Quer dizer...? — ele perguntou sem jeito.
— É, meu amigo, pensei em me matar um monte de vezes, mas tive
medo.
— De Deus? Do inferno? — Sanitiel até largou a caneta.
— Por favor... — respondi. Eu tinha medo que minha perna doesse
mesmo depois de morto.
Não sei por que, mas isso espantou mais Sanitiel Gorja que o fato em
si. Acho que ele deu uma nova dimensão à minha dor. E eu estava sendo
verdadeiro com ele. Minha perna doía como se estivesse enrolada com
arames farpados com corrente de mil volts passando por eles, doía como se
estivesse sendo mastigada por um crocodilo — dizem que isso dói muito,
mas tenho certeza que minha perna doía mais.
Sanitiel se recuperou depressa e continuou a entrevista:
— E você acredita que as medicações tiveram alguma relação com o
aparecimento da dor no lugar da coceira?
— Acredito que não. Eu sou azarado, sabe?
Ele me olhou esquisito, se perdendo de novo no assunto, não devia ser
muito inteligente apesar da cara de ser muito inteligente. Eu expliquei.
— Quero dizer que existe muito azar nesse mundo. Tem gente que
nasce com dor de cabeça crônica, gente que ouve vozes, caras que parecem
um homem-coto sem pernas e sem braços, gente que tem o pinto embutido
no saco, tem até pessoas nascidas com gêmeos fantasmas em alguma parte
do corpo. Esse tipo de coisa, eu chamo de azar. E pensando neles, o meu foi
bem pequeno. Bom, pelo menos o meu, consegui resolver.
Sanitiel começou a olhar para o relógio. De certo tinha uma esposa
gostosinha o esperando em casa (ou um esposo gostosinho). Não era da
minha conta. Não se deve invejar a sorte ou questionar o gosto das pessoas.
— Antes que você me apresse, vou contar como aconteceu.
Os olhos do sacaninha brilharam, ele até se endireitou na cadeira para
espantar o tédio (e ajeitar a bunda de tabuleiro de damas). O homem já
devia estar com câimbra no cóccix.
— Como sabe, eu resolvi acabar com aquilo arrancando a porcaria da
minha perna. Você precisa entender que ela não era mais útil, além disso,
aquele pedaço de carne, ossos e músculo, me tirou tudo o que eu gostava.
Primeiro, meu emprego — e eu adorava aquele emprego apesar de todo
mundo achar um lixo —, depois tirou minha namorada, e por fim, depois de
tanta medicação, estava tirando minha sanidade.
— Mesmo assim, não foi fácil decidir...
— Passei em todos os médicos da cidade, fiz petição na secretaria de
saúde do município, do estado e no ministério da saúde e bem estar social,
cara! Eu escrevi pro Conselho Federal de Medicina! Sabe o que eles
fizeram?
A criatura na cadeira balançou a cabeça, todo interessado. Falou em
Conselho Médico todo mundo se interessa...
— Eles queriam me entupir de morfina! Quem trabalha entupido de
morfina? Eu queria minha vida de volta e não morrer doidão pensando que
todo dia é natal com filme do Spielberg na Globo.
Meu entrevistador olhou para o relógio outra vez. Decidi chocá-lo.
— Então, depois de alguma pesquisa, resolvi amputar eu mesmo.
— Minha nossa senhora — ele resmungou.
Eu sorri.
— Pensei em facas, machados, alicate de bombeiro. Ah!, eu pensei em
um motosserra também.
— Jesus… — resmungou Gorja. Invocar a Deus devia ser algum
cacoete dele…
— Meu problema é que eu resolvi não morrer, entende? Só queria me
livrar daquela perna.
Tomei outro gole de água.
— Numa dessas noites em que eu gastava o tempo pensando, ouvi
minha resposta.
Ele ajeitou a caneta no bloquinho, e dessa vez estava anotando, mesmo
com o gravador ainda ligado. Imagino que fossem minhas expressões, o
cheiro de éter do quarto; eu não quero perder meu tempo com hipóteses,
ok?
— Aqui na cidade passa um trem. Passa todos os dias, carregando um
monte de sei-lá-o-quê. Mas não acho que a carga do trem interesse à sua
revista; seus leitores querem mesmo são os detalhes que todo mundo gosta
de saber — eu disse a ele, só para provocar.
— Por favor — pediu meu amigo, o repórter. Ansioso. O cheiro do
desodorante Avanço batia forte pelo quarto todo. Pedi para que ele abrisse a
janela, eu começava a ficar enojado.
— Eu também pensei em cada detalhes para garantir meu êxito. — eu
disse. Esperei que ele sentasse. — Deve imaginar que não seja tão fácil e
seguro arrancar um pedaço de seu corpo.
— Suponho que sim, que não, que... — Sanitiel estava tenso, coitado.
— As drogas para ficar anestesiado eu já tinha. Não drogas para a
mente, ou eu não chegaria ao hospital, mas precisava de alguma porcaria
para não sentir a perna enquanto... Enquanto a desprendia, a desligava de
mim. Meu amigo... Sei lá quantos tubos de xilocaína eu gastei. E arrumei
um pouco de anestesia de dentista com a minha prima, Lidocaína com
vasoconstritor; na verdade eu roubei do consultório. Mas foi por uma boa
causa.
— Também mandei um serralheiro fazer um negócio parecido com
uma camisinha de ferro com a largura da minha coxa. Dentro, eu botaria um
pouco de água e congelaria. A cadeira de rodas eu arranjei com o Rotary, eu
disse a eles que amputariam minha perna por causa da diabetes. Era
mentira, mas eu tinha tantas feridas que eles engoliram. Minha perna
parecia o pantanal visto de cima, só que a parte molhada era vermelha.
— Mas não tinha parado de coçar?
Espertalhão...
— Tinha, mas quando doía demais por dentro, eu machucava a pele
pra melhorar.
— E resolvia? — perguntou.
— Às vezes — eu disse. E continuei com o trem, eu estava empolgado
em contar tudo pela primeira vez.
— Fora isso; precisei de cordas para me amarrar e me agarrar sem que
o trem me arrastasse junto. Também usei um cinto de couro com furos
extras e um canivete suíço, para emergências.
— E antissépticos, Merthiolate e água oxigenada, antibióticos para não
morrer de infecção... E tomeis uns Bactrins. Eu tinha em casa, de quando
tratei de uma gonorreia. Mas não precisa colocar isso na sua entrevista, ok?
— Fica tranquilo — disse ele. — E como foi? — perguntou na
sequência. Sanitiel parecia uma virgem querendo experimentar o pecado na
festa de quinze anos.
— Seu sacana... Tá querendo detalhes, né?
— Eu não, mas nossos leitores...
Leitores... tá certo.
E aqueles olhinhos brilhando como uma criança no mundo do sorvete
grátis? Sanitiel estava gostando. Claro que sim. E eu não o culpava, também
gostaria de ouvir um caso desses, se não fosse EU o caso.
— Cheguei ao local uma hora antes do trem. Escolhi um lugar bem
perto do hospital, calculo uns duzentos metros. Deixei minha carteirinha do
convênio bem fácil, na parte da frente da carteira. Atrás dela, meu cartão de
crédito e um talão de cheques.
Dei uma pausa e ajeitei-me na cama de hospital — me dava dor nas
costas se ficasse muito tempo sem me mexer. Tente ficar com sua perna-
coto para cima o dia todo e me responda depois, hã?
— Primeiro posicionei a cadeira de rodas e o isopor que carregava
minha capa-de-coto-congelada bem perto de mim. Na mesma caixa estavam
os remédios. Antibióticos e um pouco de Dimorf que eu já tinha tomado
(Morfina era boa, mas só controladamente como naquele caso, nada de me
viciar nessa merda e ficar vendo passarinhos florescentes cantando
Aerosmith).
— Depois me besuntei com a xilocaína, esfreguei até esquecer que
tinha perna. Naquela noite, a safada doeu como nunca, parecia que sabia
que alguém ia levar um pé na bunda. Gostou do trocadilho? Eu achei
péssimo... Bom, mas esfreguei a pele até que a dor só ficasse “no osso”.
Depois meti as injeções de dentista. Não fizeram milagre, ainda doía um
pouco. Mas que se foda, pensei...
— Então ajeitei uma almofada, liguei um MP3 player com um som do
Tommy Iommy e deixei as cordas bem perto para eu me agarrar.
— A noite estava bonita, a lua iluminava os trilhos. Cara... Posso te
dizer que aqueles minutos antes do trem chegar foram mágicos. Ouvia os
grilos namorando, gatos no cio... Tudo amplificado. O trem costuma passar
perto das nove da noite. Pouco antes de começar a novela que devia ser das
oito.
— Estava quase na hora quando um cachorro veio e mijou em cima da
minha perna.
— Filho da mãe! — resmungou Gorja.
— Eu não o culpo. Animais sabem quando alguma coisa está errada.
Eles sempre sabem. Normalmente eles lambem nossos machucados, mas
aquele vira-latas devia saber que não tinha jeito.
— Assim que ele saiu, senti uma vibração nos trilhos. Pensei que fosse
imaginação.
— Depois outra e um pouco mais forte. Era como um daqueles
aparelhos de massagem de fisioterapia vibrando no mínimo. E foi
aumentando.
— Tombei a cabeça para o lado e...
— Pensou em desistir!? — perguntou Salitiel.
— Nada disso, só dei uma última checada nos equipamentos.
— A vibração aumentou mais e já era uma cama de motel quando eu
vi a lanterna do trem. Bem pequenina, como um vagalume do inferno. A
distância fazia oscilar um pouco, como se piscasse.
— Lancei minhas mãos nas cordas e encolhi o máximo que pude
minha perna boa.
— Sentiu medo? — perguntou o camarada.
Pergunta idiota. Se tivesse uma dor igual a minha, ele saberia que eu
não sentia nada a não ser esperança em me livrar dela.
— Meu medo era o trem acertar meu pau, mas se quiser omitir essa
parte da entrevista, eu agradeço.
— E acertou?
— Não! — respondi. — Meu pau vai otimamente bem!
Respirei mais fundo e continuei.
— Depois de enlaçar minhas mãos foi só esperar o trem chegar com
aquelas rodas que esmagariam um crânio como pão amanhecido. Tchum-
tchum... Tchum-tchum... O maquinista fez a buzina gritar um pouco com
aquele som de fããéééééãããã maldito. A coisa chegava perto e o porrinha do
vira-lata começou a latir perto de mim. Filho-da-puta! Mijar na minha perna
era pouco, ele ainda precisava fazer aquele escândalo.
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— E então senti a luz dele me atingindo, me obrigando a fechar os
olhos. Meu coração disparou e minhas mãos cravaram naquelas cordas
malditas. Rapaz, eu não me caguei porque não tinha jantado...
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— E era chegada hora e...
Os olhos do Sanitiel-Sacanão brilhavam. Ele estava com a caneta na
boca, mastigando o plástico e olhando para mim!
Continuei falando mais alto, quase gritando:
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— E eu comecei a gritar feito um maluco e o cachorro latia e aquela
buzina alucinada!
— Tchum-tchum... Tchum-tchum...
— E Flapt, rasg, regsss, cacete! Caralho! Porra! PUTAQUEOPARIU!
— Gritos, latidos e a puta-que-o-pariu de uma dor que fez a dor
anterior parecer um peido!
— O sangue espirrou pra todo lado fazendo de mim um Platoon
urbano, sangue para todo lado, mais sangue no ar do que oxigênio na
atmosfera!
— A perna amputada foi arrastada e eu puxei o que sobrou de volta,
com o trem ainda passando. O som da locomotiva estava me deixando
surdo quando me rastejei até o isopor onde estava o porta-coto. O que
sobrou da perna parecendo uma tromba cuspindo groselha concentrada.
— Cortei o que tinha de pele desfiada com o canivete, amarrei com a
cinta de couro — apertei e isso doeu pra caralho! — e enfiei no porta-coto.
Depois gritei mais um tanto.
— Caí umas cinco vezes até conseguir me enfiar na cadeira de rodas e
rodar até aqui, para esse hospital. Já tinha cuidado do resto, pedi a uns trutas
meus para apanharem o carro e o resto das minhas tranqueiras.
Mais um pouco de água na garganta seca.
— E aqui estou. A perna evolui bem e eu durmo em paz sem sentir
nada abaixo da coxa direita.
Olhei para o coitado do Sanitiel. Ele estava pálido, suas mãos tremiam
sem conseguir escrever direito. Decidi falar algo mais leve para retirá-lo do
transe.
— Pode desligar o gravador...
Ele fez isso e continuou me olhando. Taciturno. Me senti uma estátua
de nossa senhora chorando sangue.
— Terminamos? — perguntei.
— Sim. Claro que sim — ele disse, juntando suas tralhas. Colocou
tudo numa maletinha de couro que não era couro e saiu logo depois de me
pagar os duzentos paus pela entrevista. Pela cara dele e os quinze obrigados
que disse ao sair, me vendi barato...
Quando Sanitiel saiu pela porta, a enfermeira Lorena entrou. Ela era
bonita, tinha uns peitões e eu sempre abusava dela, pedindo que ela me
suspendesse na cama. Sempre acabava metendo a cara naqueles peitões. Ela
não ligava. Difícil era saber se era por pena ou admiração.
— Como vamos hoje? — ela perguntou e me deu uns comprimidos.
Eu respondi que sim, engoli os comprimidos e dei uma escorregada na
cama. Ela me suspendeu de novo, como sempre. Ah... Peitões...
Depois fiquei sozinho outra vez.
Peguei-me olhando para fora, contando nos dedos quando tempo
demoraria para recuperar minha vida. Quem sabe arrumar outra namorada,
um serviço mais calmo, reatar com Deus e com tudo o que deixei para trás.
Distraidamente cocei minha perna esquerda...
Pague sua conta

1
AQUELE CARA tinha tudo...
Isso era o que todos pensavam. E que Jason era um cara tão legal
quanto seu nome. Trinta anos, uma conta gorda no banco (isso permitia que
fosse mais legal ainda), dinheiro que não cansava de chegar pelos lances
dele com a internet, uma mulher que colocaria um castrado no cio e um
carro mais caro que o apartamento onde morava. Quem acharia isso pouco?
Ele...
Depois de juntar toda a grana que podia e certificar-se que nunca mais
teria vontade de nada que o dinheiro pudesse comprar, ele estava vazio. A
bebida perdera o sabor, as festas não tinham mais a velha graça e nem as
sessões para se drogar — usando a desculpa de consultas psicológicas para
a esposa — traziam bom humor. Jason estava cansado de conseguir tudo
com dinheiro, queria as respostas que as verdinhas não compravam, queria
descobrir quais coisas realmente importam.
Mas é preciso tomar cuidado com isso de perguntar demais. Para toda
pergunta existe uma resposta, mas existem coisas que ninguém gostaria de
saber, lugares que não merecem visitas. Assuntos íntimos demais para
serem divididos.

Era mais um dia de calor infernal em Taubaté, segundo Jason “A


cidade mais bairrista desse mundo” — e talvez fosse para mais gente.
Cidade de proletariados onde o bom da vida se resumia a uma casa em
Ubatuba e dinheiro para a cerveja que nem sempre descia gelada... Tudo
bem quando a conquista demora uma vida, mas Jason? Com um
apartamento no Caribe e outro em Miami, Ubatuba soava como um esgoto
salgado.
Um amigo foi quem mencionou essa velha estranha a qual ele decidiu
procurar. Dissera que ela tinha todas as respostas. Vida e morte.
Thomas era o maior fanfarrão da cidade, sessenta por cento do corpo
tatuado, vítima de sabidas cinco overdoses e agora comedor de brotos de
bambu e guru Ioda da paz do espírito. Jason que perseguia paz há alguns
anos, ficou doido.
Paz...
Quando o dinheiro sobra sempre falta tempo, mesmo que a grana
pingue fácil como a que vinha de seus negócios virtuais. Ele estava tão
cansado... Tão terrivelmente cansado que às vezes preferia deixar de existir.
Vinha pagando o preço pelo abuso em boletos de apatia — para alguém que
vivenciara o paraíso como ele, o mundo real é tão agradável quanto de uma
aula de matemática em mandarim. O que todos queriam tornara-se
dispensável para Jason; dinheiro, poder, mulheres inclusive. Pouca coisa o
excitava atualmente. A própria esposa era apenas outro bom pedaço de filé
mignon, um que ele comia há cinco anos. Linda era sofisticada, nascida
com o bumbum mais durinho que já saltitou pela terra. Para ele, era só a
garota de sempre que disparava ruídos no banheiro e deixava cargueiros
perdidos inadvertidamente pelo vaso.
Quem sabe a tal velha desse algumas respostas? Talvez fosse hora de
comer uns brotos de bambu, afinal.

2
Chegava dentro de sua BMW 2006 — o utilitário dele — ao endereço
dado por Thomas.
Casa velha... Por que alguém com o segredo da vida mora num
moquifo desses?
Estacionou o carrão branco e lindo (como todo BMW branco é lindo)
e desceu. Bateu palmas um pouco alto demais, irritado por estar se metendo
num buraco onde, aparentemente, a campainha ainda não havia sido
inventada.
Isso que dá acreditar no Thomas. Maldito Thomas.
Mas o amigo não tinha essa culpa.
Inclusive tentou desmotivá-lo da ideia de se meter no que ele chamava
de quarta visão. Ele mal conseguira explicar do que se tratava, mas quando
sua agitação — abrandada com drogas — foi substituída por horas de
contemplação transpirando paz de espírito, Jason quis participar. A resposta
de Thomas foi aquele endereço rabiscado num papel velho.
Tornava a bater palmas quando alguém abriu a porta carunchada da
frente.
Uma garotinha, cinco ou seis anos de idade, tímida. Usava uma
blusinha que deixava a barriga estufada para fora. Sempre que via uma
barriga daquelas, Jason ficava receoso. Pensava em vermes. Vermes ou
coisa pior, iguarias importadas das partes mais miseráveis do Brasil.
— Oi, tio.
— Oi, querida. Quero falar com a sua mamãe.
— Mamãe morreu. A vovó disse que ela morreu pra mim podê nascer
— disse ela. Jason reavaliou se queria mesmo encontrar a tal velha. Alguém
que diz isso a uma criança...
Já tô aqui mesmo...
— Chama a vovó pra mim.
A menina gritou virando o rostinho para dentro.
Segundos depois a porta diminuiu a abertura e tornou a se abrir.
Nossa!
Foi a primeira vez que Jason viu alguém tão velho. A coisa arqueada
que saiu pela porta parecia um graveto quebradiço, como se um vento
pudesse esmigalhar seus ossos velhos. Vestia um xale de crochê sobre os
ombros e um longo vestido escuro, quase preto. Abaixo do xale, apesar do
calor que atormentava a cidade, vestia uma blusinha de lã azul marinho.
— Vai pra dentro, enxerida — rixou com a pequena. A garotinha
mostrou a língua e obedeceu. Só então, com alguma dificuldade, a velha
avançou até o portão baixo.
— Boa tarde — disse Jason.
— Humph — resmungou a velha. Em seguida encarou o estranho;
analítica. A sobrancelha esquerda arqueou.
— A menina não tem verme e eu não quebro como uma lâmpada, se
quer saber. Também pode dispensar essa cara de como-a-senhora-faz-isso.
Às vezes, não temos controle sobre essas coisas.
Jason segurou a urina na bexiga e se acalmou. Como ela faz isso!?
Outro teria saído dali na mesma hora. Todo homem tem um segredo
pestilento guardado dentro da cabeça, coisas que não gostaria de ter
espionadas por outros, mas os anos defendendo o dinheiro que conquistara,
deram-lhe algumas habilidades. Uma delas era a de ignorar completamente
a opinião dos outros. Na maior parte dos casos, opiniões não fazem a menor
diferença.
— Tudo bem — disse Jason. — Quem me deu o endereço da senhora
foi o Thomas, mas já deve saber disso também...
A velha fingiu não ouvir a provocação e abriu o portão enferrujado
para que entrasse.
— Venha comigo, rapaz.
— Meu nome é Jason.
— Até entrar em minha casa não é meu amigo; e eu não chamo
estranhos pelo nome. É “rapaz” até passar pela porta.
— Tá bom, vovó! Calma!
— Também não sou sua avó, você não me aguentaria.
A porta rangeu mais um pouco quando a velha forçou a abertura além
da usual. Jason precisava de espaço, estava em ótima forma física além de
ter bastante altura — mais de um e oitenta.
— Toma cuidado com os gatos, eles chegaram aqui antes de você.
— Ok — respondeu bem devagar.
A sala pequena estava repleta deles, dos gatos. Pardos, claros, adultos,
filhotes, Jason parou de contar no vigésimo. A maioria se espalhava sobre
um sofá de lona vermelha. Dois caramelados estavam sobre a TV antiga,
outro rajado sobre um aparelho de som três-em-um da Gradiente, bem
antigo. O resto ronronava pelo chão tentando alcançar a perna cheia de
varizes da velha. Ela e Jason passaram rentes à abertura da porta da cozinha
onde a garotinha lavava louças, estava em cima de um banquinho de
madeira para alcançar a pia.
Sem muito assunto, Jason acabou falando dela.
— Ela não é muito nova para lavar louças?
— Ninguém é muito novo pra trabalhar. Venha comigo para a sala de
cartas.
Ele franziu as sobrancelhas. Sala de cartas?
— Já vai saber o que é, Jason. Tá vendo só? Agora te chamo pelo
nome. E você pode me chamar de dona Neiva — disse. Quase humana.
Atravessaram uma porta de contas que dava acesso a tal sala de cartas.
Mesmo com o calor sufocante que fazia lá fora, o interior da sala era
fresco. Tinha um leve cheiro de mofo, nada que incomodasse muito.
Lembrou a Jason o cheiro de um guarda-roupa velho da casa de seus pais.
Ele costumava se trancar lá dentro quando era garotinho. Fingia que era
uma nave espacial. Seus pais... Não os via há seis anos, seu estilo de vida
não combinava com o conservadorismo dos dois.
Havia alguns quadros velhos pelas paredes da casa e também na tal
sala de cartas. Fotos de pessoas, provavelmente mortas. Também um quadro
da santa ceia onde o rosto de Pedro estava rabiscado de preto. Ao lado, uma
foto de casamento desbotada que mostrava que aquela morcega anêmica já
havia sido humana. Não bonita, mas humana.
— Pode entrar e se sentar. Vou pegar água pra você.
Ele estava mesmo com a garganta seca, mas...
Num calor desses, eu também adivinharia que alguém quer água.
Aproveitou que estava sozinho para sondar o ambiente. Era uma sala
pequena que dava para um jardinzinho aos fundos da casa. Era aquela parte
verde que deixava tudo tão fresco. Jason puxou uma cadeira e sentou-se em
uma mesa quadrada, de madeira escura; pela beirada encontrou algumas
marcas de cigarro. A cadeira era simples, estofada e forrada com plástico,
mas bastante confortável.
Logo descobriu porque era chamada de sala das cartas. Na mesa
também havia um baralho de tarô, junto, um tipo de tabuleiro ainda
dobrado.
Droga, Thomas, pelo jeito me mandou pra uma merda de cigana...
— Tá aqui sua água. Agora conta o que te trouxe aqui.
— Não sei por onde começo...
— É sempre bom pelo começo. — Aquilo devia ter soado engraçado,
mas nada tinha graça ali. Neiva percebeu e pegou mais leve com ele,
mesmo achando que paciência para um velho é como maquiagem numa
moça bonita: desnecessária.
— Não sou psicóloga, meu filho, pede logo e se eu puder ajudar,
ajudo. E antes... Seu amigo deve ter falado que eu cobro uma taxinha.
Jason tirou do bolso o rolinho com quinhentas pratas e passou para ela.
A velha enfiou em algum lugar entre a blusinha de baixo e a de lã. Jason
não percebeu, mas a cobrança antecipada serviu justamente para que ele
soltasse a língua — ele não era o tipo de cara que ficava tímido depois de
gastar algum dinheiro.
— Minha vida perdeu o sentido — disse.
— Tão novo, é?
— É sim. Acho que eu exagerei, tanto que não sobrou muita coisa.
— Como deve ter percebido não tenho mais como agradar jovens
rapazes — brincou Neiva. Jason sorriu estressado.
— Estou buscando o sentido da vida, dona. Alguma coisa que me faça
dormir à noite. Ando deprimido, não faz diferença viver ou morrer.
— Humm — disse Neiva, introspectiva. — O que seu amigo te
contou?
— Não muito... Eu cresci junto com o Thomas. Acho que caminhamos
praticamente juntos até ele conhecer a senhora. Depois disso, ele foi e eu
fiquei. Preciso descobrir o que ele sabe.
— O que fiz por ele é difícil para um homem despreparado aguentar.
Ele tem conseguido porque estava pronto para enxergar.
— Se ele consegue, eu também consigo.
— Consegue sim, mas não sei se consegue agora. Já vi gente perder o
juízo com o tipo de... Habilidade que eu dei para o seu amigo. Como ele
está?
— Tá bem. Passa mais tempo sozinho na chácara dele do que com as
outras pessoas, mas fora isso...
— Fora isso?
— Ele passa uma paz para mim, Dona Neiva. Acho que passa para os
outros também. Um cara porra-loca feito o Thomas virar esse santo foi o
que me atraiu. Eu vim atrás disso. Quero ficar em paz.
— Isso eu não vendo — disse Neiva devolvendo o macinho de
dinheiro. Jason espalmou as mãos recusando. Ela insistiu: — Se eu
vendesse paz, seria uma mulher rica e não precisaria colocar minha netinha
para lavar a louça. Pode ir embora. — Colocou o dinheiro sobre a mesa.
— Dona Neiva... Estou pedindo por-favor. Tenho dinheiro para
comprar sua neta se quer saber. Eu posso ajudá-la, mas preciso saber o que
o Thomas sabe.

3
Neiva arregalou os olhos sondando sua alma. Olhos de um verde
doentio, cheios de veias vermelhas e cobertos por um pouco de catarata. Ela
cuspiu na própria mão e a estendeu.
— Antigamente fazíamos isso com sangue, mas cuspe serve. Cospe na
sua e aperta a minha mão.
Ele o fez e tomou a mão da velha na sua. Sentiu uma pequena
descarga estática como as que dava no portão de ferro de sua casa quando
estava muito estressado.
— O que foi isso?
— Um acordo — disse ela.
Jason abria a boca disparando outra pergunta quando foi interrompido
por Neiva.
— Você não está pronto. Posso fazer o que quer, mas existem riscos.
Já vi gente definhar com isso.
— E o que seria exatamente esse “isso”?
— Magia, meu filho. Não essa porcaria que passa no fantástico, magia
de verdade. O tipo de poder que mata e faz matar se não for bem
compreendido.
— Eu faço o que a senhora quiser, dona, mas preciso sair dessa
prostração.
— Prostração é uma palavra bonita pra quem vive na merda. Antes a
gente tratava com Prozac.
— Já tentei isso. Agora quero da droga que a senhora vendeu pro
Thomas.
— Tá bem — disse ela. Levantou-se e caminhou até um aparadouro,
pegou um vaso onde havia germinado feijão. Um vigoroso pé, cheio de
vagens e favas suculentas.
— Já ouviu falar de Cipriano? — perguntou Neiva e sentou-se.
— O bruxo?
— O santo, o homem, o bruxo... Que seja. Isso aqui é uma de suas
receitas. Uma muito forte e poderosa. Feita com fé, lua e sangue. — Jason
apertou os olhos depreciativos. Ela continuou.
— Tem um gato morto aqui dentro.
— Minha nossa! — se afastou Jason.
— Você não quer tanto assim o que dei para seu amigo Thomas.
Talvez não esteja mesmo pronto.
— Pode continuar, dona — disse Jason decidido. A velha sorriu.
— O gato aí dentro; cozinhei ele vivo. Como deve ter percebido tenho
um bom estoque deles aqui em casa — sorriu. Jason não riu. — Depois de
morto, plantei uma semente de feijão dentro do olho dele e adubei com
cinza de morto à meia-noite, todo dia até que nascesse a plantinha.
— O que é cinza de morto? De gato morto?
— De gente. Tem um pessoal do forno do cemitério que me deve
favor. Quando eu preciso, eles me arrumam as cinzas.
— Faço o que for preciso.
— Vai precisar me dar seu sangue — disse a velha. Oferecendo uma
gilete nova para ele, estava em uma bolsinha de couro. — Se for frouxo
demais eu mesma corto.
— O que o meu sangue tem a ver com isso? — perguntou Jason.
Involuntariamente se afastou da mesa, sem se levantar. Tinha pavor de
qualquer sangue, ainda mais do dele. Quase desmaiou quando viu a gilete
reluzindo.
— Gostei de você, rapaz, portanto essa aula é de graça.
Jason se aproximou de novo, atento para não perder nada ou ser
surpreendido.
— Quando a gente mistura algumas coisas e principalmente quando
diz as palavras certas, na hora certa, abre possibilidades que vão além do
que as pessoas conhecem. As palavras e o que sai e nasce das misturas
permite que caminhemos pelo outro lado, o lado escondido do mundo. É
como se ateássemos fogo na cortina que cobre o oculto. Precisamos dessas
coisas estranhas para conseguir isso, inclusive do seu sangue.
— E o Thomas fez isso?
— Fez sim e nem perguntou nada.
Thomas, seu maluco.
— Ele não é nenhum maluco — disse a velha. — Fraco talvez...
— Como consegue saber o que eu estou pensando? — perguntou
Jason.
Não houve resposta, a velha tornou a exibir a gilete. O brilho do metal
novo refletiu nos olhos de Jason.
Estendeu a mão e ganhou um pequeno corte. Bem na palma, acertando
o que os quiromantes chamam de linha da vida.
— Ai! Precisa de tudo isso? — perguntou meio tonto ao ver aquele
vermelho vivo.
— Não devemos economizar na oferenda se não quisermos que
economizem no favor.
Direcionou o sangue para que pingasse dentro do vaso.
— Só isso?
— É só isso. O que esperava? Queima de fogos, ver Jesus, conversar
com o diabo?
— Me sinto o mesmo...
— Eu sei, rapaz. Estava brincando pra ver sua cara de bunda ao ser
enganado.
— Viu agora? — perguntou irritado.
— Ainda não, mas vou ver. Vou sim — disse tirando uma vagem de
feijão do vaso. Com uma adaga que repousava sobre um pequeno aparador
atrás da mesa abriu o vegetal. Separou a fava mais branquinha e a segurou
na mão enrugada.
— O que vai fazer com isso?
— A planta vai comer do teu sangue, você deve comer dela se quiser
sua recompensa.
— Comer? Comer gato morto adubado com carne de defunto?
— São chaves, eu já disse. Existem muitas fechaduras para o que quer
descobrir. Toma — disse estendendo a fava.
Sua cabeça começou a enganá-lo. Trouxe a lembrança de um cachorro
morto que os garotos de sua rua encontraram, quando também era um deles.
As larvas que comiam o cachorro pareciam com aquela fava. Seu estômago
dava pulos dentro dele quando a apanhou e meteu na boca. Estava seca
demais pra que engolisse. Começou a sufocar tapando a boca para não
cuspi-la mesmo assim. Neiva olhava atenta sem mexer um músculo velho.
— Água — conseguiu dizer usando do pouco ar que restava.
Tentou alcançar Neiva, seria tudo um plano para matá-lo? Talvez de
Thomas querendo seu dinheiro?
A velha continuava sorrindo, não exatamente sorrindo, mas esperando.
O corpo de Jason começou a sofrer espasmos buscando oxigênio quando
Neiva deixou a sala de cartas. Jason se contorcia e a agonia acabava com
seus pensamentos racionais enquanto via apenas o sapato preto de Neiva
indo embora. Mas ele não desistiria, e não o faria enquanto houvesse um
sopro de vida em seu peito e...
Neiva estava de volta com água. Estou salvo, pensou. Mas o copo
continuou na mesa, lá em cima, e Neiva também. Olhando-o como se fosse
um porco com a garganta cortada. E o mundo se apagou. Jason mergulhou
em um silêncio aterrador, dois segundos que duraram uma eternidade. Deve
ser o que chamam tempo de Deus, ponderou enquanto seus pensamentos
voltavam a clarear.
Então tudo fazia sentido.
O funcionamento das coisas, cada desaforo que ele levara para casa
durante a vida e contribuiu para que aquele fatídico momento chegasse. De
repente um estímulo de tosse. A fava se deslocando. Estava respirando.
Com toda a sede de um Saara, ele apanhou o copo com água e bebeu
em dois goles. A tosse não o fez expelir a fava; ela estava dentro dele; como
ele dentro da planta. Enraizado.
A primeira coisa que Jason viu ao retornar foi o sorriso feio de Dona
Neiva.

4
— Meu Deus, a senhora está brilhando.
— Tenha calma, eu o ajudo a levantar. A confusão vai passar logo.
Jason não via somente as ondas e frequências que olhos humanos
podem ver. A quarta visão era algo bem maior que a visão pituitária-
hipofisária dos médiuns. O que usufruía, era algo mais próximo do que as
plantas sentem. Do que a terra sabe. Uma linguagem universal e poderosa.
Lançou seus olhos procurando por mais coisas e encontrou a netinha
barriguda de dona Neiva. Estava parada na porta da sala de cartas com o
nariz escorrendo. A menina também tinha luz, não brilhante como a de
dona Neiva, mas púrpura. Suave como um cristal de ametista.
Um dos gatos cruzou a porta tirando Jason da garotinha... O animal
parecia um demônio.
— O que houve com os gatos? Por que os vejo assim?
— Via errado antes, agora você está vendo como eles são de verdade.
Esses não são gatos comuns, são chamados de “Pupis”. São passageiros dos
mundos, vivem lá e cá, sugando a energia das pessoas. E eles não gostam
muito de gente, ficam por perto só por conta da casa. São uns dos poucos
animais com alguma maldade na alma, esses bichos são os que denigrem a
fama dos bichanos comuns.
— Animais têm mesmo alma, então?
— É isso que você está vendo agora. A alma das coisas.
Jason tomou o vaso com a planta de feijão em suas mãos e se
concentrou um pouco. A plantinha parecia feita de ouro, algo precioso.
Dela ressoava uma música quase medieval em seu ritmo, uma trova ou algo
assim. Ele ouvia e ela cantava, mas...
Havia mais sons dentro de sua cabeça. Bem mais.
— Minha cabeça está doendo. Ouço... São vozes? — perguntou
assentando-se na cadeira. Seus joelhos ainda estavam fracos, mas ele
conseguiu fazê-lo.
— Deve se acostumar com elas. Vão te dizer coisas com o tempo.
— Foi isso o que o Thomas viu? Foi isso que deu a ele? Esse é o
segredo que acalmou aquele ogro?
— Não sei o que é isso de ogro, mas foi o que ele recebeu sim. Mas
não acho que sinta as mesmas coisas. Cada um reage de uma maneira, ele
reagiu bem. Seu amigo já esperava o que encontrou com seu quarto olho. —
Jason pareceu incrédulo, brincando com as mãos iluminadas. Neiva
continuou:
— Temos os olhos da carne que é a primeira visão; junto com a pele, o
cheiro. O ouvido é a segunda; a terceira é nossa mente. O quarto é o que
chamam intuição, mas eu chamo de visão. Fica tudo muito claro para quem
abre essa porta.
— Quem é a senhora, afinal?
Sou alguém que tem a chave, só isso. Alguém que guardou os
conhecimentos dos velhos, ele ouviu. Mas Neiva não tinha aberto a boca.
— Posso ouvir seus pensamentos?
— Quando eu quero, pode. Vá para casa agora, deve descansar.
— Preciso saber como controlar isso? O que mais eu posso fazer?
— Falei pra ir embora, rapaz! — disse a velha. Sua cor de brilhante e
limpa passou a bege verdolenga, quase um musgo sobre a pele enrugada.
— Tá bom. — Espalmou as mãos, Jason; um pouco assustado.
Os gatos-pupis o olhavam com seus olhos demoníacos e intensos;
avermelhados. Seus ronronares soavam horríveis, parecidos com os
gemidos que fazem quanto estão sobre o telhado. Os pequenos diabinhos
não tinham muito pelo e sim uma pele castigada, como se tivessem saído de
um tonel de césio-137. Eram muitos e todos faziam aqueles ruídos
infernais.
Jason correu dali até seu carro e mais pelas ruas até a sua casa. Por
sorte o buraco de cidade onde morava era pequeno e logo estava seguro,
afastado de toda àquela gente sem perspectiva. Evitou — apesar da
curiosidade — olhar fundo demais para eles e para qualquer outra coisa.
Sua casa estava vazia. A esposa resolvera passar uns dias com a mãe.
Nada de humanos ou gatos-pupis-malucos, apenas a solidão atraente da
casa.
Pensou em olhar-se no espelho e descobrir que tipo de pessoa era, mas
achou conveniente algum álcool no estômago antes. Foi até a cozinha,
sacou a Absolut guardada no Freezer, misturou-a com um pouco de suco de
laranja gelado e foi até a sacada. O tempo estava claro com aquele calor que
faria o demônio pedir uma soda. Jason cerrou os olhos procurando algum
poder mágico dentro de si como um Harry Potter ainda mais idiota que o
original. Logo tornou a abri-los, imbecil e grato por estar sozinho. Mas viu
algo depois disso...
— Então é assim que você é? — perguntou à cidade.
Taubaté estava cinza; estática e mofada. Os bairros mais nobres que
circundavam seu apartamento eram os piores, tudo era tingido de um tom
esmaecido e feio; sujo. O prédio da câmara municipal tinha uma coloração
marrom — quase fecal em alguns pontos.
— Nojentos — balbuciou.
Curioso com todo o resto, procurou pela região mais distante onde a
faca corria solta e o tambor de balas rodando ponteava a justiça: São
Gonçalo. O céu tingia-se de vermelho naquele ponto. As ruas. Tudo tinha
cor de sangue. Ou melhor... Quase tudo.
Estranhamente, alguns pontos luminosos brilhavam estrelados no meio
daquele banho de sangue. Luz essa que ele não conseguiu encontrar nas
casas com piscina dos condomínios caros da cidade.
Outros pontos variavam muito pouco predominando o cinza e tons
sem vida.
— Cidade morta... — resmungou, deu mais uma golada na Vodca.
Sozinho, tomando seu drink preferido, sem mulher para atrapalhar,
acabou lembrando-se de uma. Não de sua esposa, mas da vizinha do andar
de baixo. Vinte aninhos e a cara mais travessa do prédio. Fechou os olhos
para pensar nela e esticou-se na poltrona que ficava na sacada. Gostava de
sentar-se ali e olhar para as terras que ainda tinha para conquistar; mulheres
para possuir. Fazia muito tempo, aliás, que ele não ficava tão animado. Pelo
jeito, as coisas já estavam diferentes; novas e empolgantes. O pobre Jason
rico não podia imaginar o rumo que sua vida tomaria.
Vou pensar em você, Patrícia; a garota mais gostosa do prédio...
Tudo ficou escuro de novo como na casa de Neiva.

5
Acordou ainda segurando seu copo de Vodca. Deu outro gole para se
certificar de não estar sonhando. Sentiu o gosto pungente do álcool diluído
em laranja.
Se isso é sonho, as coisas melhoraram muito desde o último.
Fechou novamente os olhos. Suspirou. Engoliu a vodca e tornou a
abri-los.
Minha nossa...
Estava em outra casa. Pelo que via de bom gosto. Mais simples que a
dele, mas bonita. Uma TV ligada num filme velho falava com alguém
deitado no sofá.
— Ei! — disse baixinho. Um teste.
Um teste sem resposta.
Sonhando ou não, não podia ser ouvido.
Aproximou-se de um aparador de mogno onde havia um móbile em
formato de átomo. Estava em movimento e Jason tentou tocar nele. Acabou
conseguindo com força suficiente para derrubar a coisa. Tudo no chão.
Praft!
A pessoa no sofá deu um salto, os olhos bem abertos e assustados.
Patrícia.
A garota parecia um diabo laranja exalando sexo pela aura. E estava
olhando direto para ele.
— Me desculpe, eu... — disse Jason (ou tentou).
Vinha furiosa em sua direção.
— Não é o que você está pensando, Patric...
E passou por dentro dele como se ele fosse uma maldita alma penada.
Jason sentiu a carne dela e o sangue e por um momento sentiu nojo.
Mas Patrícia apenas caminhou até o móbile e o reposicionou com certa
irritação. Jason voltou a sorrir vendo aquela bundinha perfeita, apertada
num short jeans, se afastando de volta para o sofá.
Antes de se jogar nas almofadas, ela puxou um pouco a calcinha que a
estava incomodando.
Aquela foi a coisa mais sexy que Jason havia visto desde a quarta série
quando espiou suas primas peladas. Não exatamente por ver uma garota
sexy, mas por saber que estava ali, espionando sua intimidade.
Respirou fundo e chegou mais perto.
Patrícia estava deitava com as pernas escancaradas. Enfiada numa
blusinha velha que mal cobria seus seios pontudos, deixando a barriga à
mostra.
— Você podia tirar essa blusa, né? Tá quente hoje — disse alto o
suficiente para ser ouvido. Sabia que não seria. Não com os ouvidos.
Patrícia começou a se abanar.
Em segundos, pequenas gotinhas de suor se brotaram pela barriga
entalhada por anos de academia; gotinhas se acumulando em seus pelinhos
loiros e quase imperceptíveis. Orvalho sobre uma pradaria virgem.
Patrícia caminhou até a porta, verificou se estava fechada e voltou para
o sofá sortudo. Parecia incomodada com o calor enquanto ideias maliciosas
dominavam Jason. Patrícia de algum modo obedeceu à sugestão anterior e
atirou a blusinha para longe.
Obrigado, senhor!
Seios lindos, pequenos e duros; descobertos e deliciosos. Os bicos
entumecidos. As auréolas rosadas e pequenas, duas pequenas uvas.
— É isso, garota. É disso que estou falando!
Jason se esbaldou algum tempo. Como eles podiam ser tão durinhos?
Tão empinados? Oh, man... Uma barriga daquelas devia ser proibida.
Patrícia era tão linda.
Jovem mas formada, mais fresca que uma brisa de verão. Patrícia,
inconscientemente, carregava no erotismo lambendo os lábios. Pensava em
alguma coisa... Quente. Jason não conseguia ver dentro dela o que era, mas
algo a excitava. Não era mais ele, Jason estava mudo com sua beleza.
Procurou pela sala e logo chegou à tevê.
Claro...
Na tela Richard Gere se dava bem para cima de Julia Roberts em
“Uma linda Mulher”. A cabeça com peruca bombeando sua virilha.
Toda mulher com mais de treze se excita com a princesa chupadora de
ricaços grisalhos... Vou te ajudar nisso, garota.
Chegou bem perto do ouvido de Patrícia e sussurrou todas as intenções
sexuais que conhecia; de cantadas leves até sacanagens grossas. Não tardou
para que ela tirasse o short mostrando o paninho minúsculo que ela
chamava de calcinha. A bundinha era tão trabalhada quanto a barriga, talvez
mais. As pernas tinham pelinhos finos, tão finos que quase não existiam
(Jason chegou mesmo bem perto para conseguir vê-los). A calcinha clarinha
com um pouco de renda transparecia o que teimava em esconder.
Jason queria mais e em cinco minutos pôs-se a convencê-la a ficar
como veio ao mundo. Patrícia o fez sem muita resistência. Richard Gear e
Jason ferraram com sua cabecinha excitada.
O vizinho gastou mais um tempo admirando a perfeição da garota. Os
pelinhos finos da pelve, a respiração ofegante, o suor, a umidade irrefreável
que tomava a abertura das pernas. Jason foi além e a convenceu com um
mínimo de esforço a masturbar-se. E ele junto.
Fez isso até saciar-se, fez isso por quase uma hora.
Emissões alaranjadas tomavam toda a sala, a aura de Patrícia ficou tão
evidente que Jason sentia seu cheiro. Um pouco orgânico; cheiro de fruta.
Morangos talvez. Notou que ela estava exausta e abandonou sua influência
antes que a desmaiasse.
Patrícia saiu correndo e se trancou no banheiro. Jason podia sentir sua
sensação de culpa, tão forte que a obrigou a esfregar-se com a bucha mais
abrasiva que encontrou; esfregou até avermelhar a pele; até sangrar em
alguns pontos. Talvez se sentisse violada de algum modo. Ele não. Estava
excitado demais para sentir culpa.
Jason recostou-se no sofá quente onde ela estava antes, respirou fundo
aquele cheiro adocicado tentando levá-lo com ele.
Concentrou-se de novo; hora de voltar.
— Rapaz, isso é mesmo; isso é muito, muito...
Pensou em tomar também um banho quando sentiu o gelo do copo de
Vodca. Estava satisfeito por ter saciado a vontade de experimentar Patrícia,
vinha suprimindo aquilo há dois anos ao lado da esposa. Podia não ser mais
aquele cara solteiro que esbanjava vida e dólares, mas estava de volta. Com
gasolina de avião e um motor amaciado.
Foi logo tirando a roupa pelo caminho e aproveitando a casa vazia
para ficar nu. Tinha essa mania tipicamente adolescente de andar pelado
dentro de casa; parecia com isso desafiar alguma lei. Acabava desafiando
mesmo... A lei das esposas ausentes; clausula três, logo abaixo de não trair
e se embebedar todo dia. Jason estava tão feliz consigo mesmo que quis dar
uma olhada no corpo sarado antes de entrar no chuveiro.
— Ah! Merda!
O medo venceu qualquer outra informação que não fosse um palavrão.
O que viu não era ele.
Não era sequer humano. A coisa dentro do espelho parecia um zumbi
apodrecido. E sem pau! Havia um monte pelos e um cotôco no lugar do
pênis. Jason receoso olhou mais para baixo e viu que ainda tinha as duas
bolas que Deus lhe deu. A coisa no espelho continuava a encará-lo. Risonha
pela falta de carne nas maçãs do rosto. Os olhos azuis como um céu de
inverno e uma cicatriz escondida pelo cabelo (que a criatura não tinha),
provavam tratar-se de seu reflexo. Ficou feito bobo, testando a figura por
um tempo, certificando-se que ela podia acompanhar seus movimentos.
Disparou até o telefone. A velha Neiva não daria respostas, mas seu amigo
sim. Thomas saberia o que fazer, afinal, ele estava ótimo. Duvido que
esbanjaria paz se visse um cadáver risonho-sem-pau no espelho.
Mas o telefone recusou-se a ser atendido do outro lado da linha. Jason
era impetuoso e com uma personalidade dessas não conseguiria dormir até
descobrir o que estava acontecendo. Não sem uma de suas pílulas mágicas.
Tomou banho como pôde, evitando a criatura do espelho e tratou de
medicar-se. Nenhuma noite de sono é impossível com Lexotan e vodca.
Duas doses em casa e estava dormindo o sono dos justos.
Até as sete, como sempre.

6
Jason acordou um pouco desorientado com uma guerra de memórias,
nada demais para quem têm nos analgésicos e tranquilizantes grandes
amigos. Ainda estava com um pé na realidade e outro fora, questionando
qual parte de seus pensamentos embaralhados e embaraçosos era real, uma
leve culpa a atormentá-lo.
Zumbis no espelho...
Idiota.
Imaginou que estava sendo vítima de algum tipo de droga. Como todo
jovem ganhando grana fácil com o mundo virtual, já tinha tomado LSD
suficiente para ter flashbacks movidos a Bad-trips por duzentos anos. Podia
mesmo ser obra do ácido.
Mas não era.
Meu Deus, meu Deus, meu Deus!
A criatura continuava a encará-lo do espelho do guarda-roupa. E
estava mais corroída que na noite passada. Estava praticamente sem
cabelos, um dos olhos já pulava pra fora da órbita e pedaços de sua coxa
direita estavam infestados de pequenos vermes. Lembrou-se daquela fava
maldita que quase o asfixiou. Só que a fava não se mexia como aquelas
larvas. Começou a senti-las sob sua pele, coçando, se alimentando dele.
Andando por seus cabelos, encaracolando-se como fios de macarrão alho e
óleo. Decidiu não olhar mais para espelhos. O que os olhos não veem...
O corpo lamenta.
Preciso do Thomas.
Voou pra lá com seu carro.
A chácara de Thomas ficava próxima ao batalhão do exército
albergado na cidade. Chegou lá bem depressa.
Buke, um pastor belga gigantesco, assim que o viu, se escondeu
rosnando de dentro de seu canil. Jason fez um escândalo no portão
chamando pelo amigo.
Nada. Nenhum movimento. A casa parecia deserta.
Sacou de novo seu telefone e esperou até que a linha caísse. Fez isso
por outras duas vezes até que as chamadas fossem direto para a caixa
postal. Imaginou que o celular de Thomas tivesse ficado sem bateria. Ele
andava meio desligado.
— Droga, Thomas...
O cão continuava rosnando, o portão era alto, mas Jason não iria
embora sem respostas. Com Buke ou sem Buke, decidiu pular o portão. Era
amigo de Thomas, afinal; e o cão gostava dele. Também poderia se explicar
facilmente caso alguém o visse.
Pulou sem muito esforço e tentou chamar pelo cão. Buke continuou na
defensiva se encolhendo mais um pouco para o canto da casinha de
alvenaria. Jason desistiu dele e subiu a pequena rampa que dava acesso a
casa, Buke não tentou um ataque.
Devo estar horrível mesmo...
A porta da frente estava aberta. Estranho. Thomas costumava se
precaver. Morria de medo de bandidos, principalmente depois que as
reportagens de corrupção da cidade passaram a dividir espaço com as de
homicídio.
Sentiu um cheiro forte no ar. Alcoólico, quase hospitalar.
— Thomas? — chamou timidamente. — Eu te liguei, cara; tô entrando
— disse ganhando à sala da frente. Thomas tinha uma grande (o sonho de
todo cara, não duvide) mesa de bilhar por lá. — Ando preocupado com
você, amigo — disse Jason. Falava como uma lavadeira para espantar o
medo.
E comigo, pensou.
Seu amigo estava deitado sobre a mesa de bilhar, usava um óculos
escuro setentista grande demais para o rosto, estava coberto com um lençol.
Pelo jeito, depois de uns excessos dormira por lá.
Já não é a primeira vez que te pego fazendo merda...
— Vamos levantando daí, príncipe do desconhecido. Preciso falar com
o senhor; quanto tempo faz que você não toma banho, hã? Que fudum,
rapaz!... — brincou Jason. Outro passo à frente. — Ah, cara... Éter? Pô!
Cheirando éter? Tinha mesmo achado familiar aquele cheiro de hospital (a
mãe de Jason era enfermeira, éter foi seu primeiro passatempo;
reconheceria de longe aquilo).
— Você tem grana pra coisa melhor, né cara...
Susto.
— Oh, merda!
Prendeu a mão na boca para não vomitar no piso claro.
Thomas estava morto. Pelo jeito há dias.
O vidro de éter evaporado disfarçava um pouco do cheiro de carniça
que batia forte em Jason. Saiu correndo de lá. Ser pego do lado do amigo
morto não seria facilmente explicável. Teve o cuidado de usar a camiseta
que vestia para apagar possíveis digitais. Também apanhou um pedaço de
carne da geladeira e o que encontrou de comida além do pouco de ração na
casa. Deixou para Buke, junto com uma panela cheia de água. Era um bom
cachorro. Jason chamaria a polícia depois de dois dias e não seria justo que
Buke pagasse o preço pelas loucuras do dono. Pulou o portão de volta para
a segurança da rua.
Estava assustado e desequilibrou-se, quase arrebentou os joelhos na
queda. Um milhão de dardos doloridos atingindo sua perna. Aconteceu
outra coisa depois da dor. Seu cérebro disparou junto com o estímulo.
Ouvia vozes, centenas delas, vindas de todos os cantos. Sons de
crianças brincando, outras brigando, um marido alcoólatra que se
desculpava por ter enchido a esposa de pancada, alguns bandidos que
estabeleciam seus territórios, um gerente de banco que aceitava suborno,
um adolescente brincando com a arma do pai tentando se vingar por ele ser
um idiota. Estavam todos dentro de sua cabeça, gritando, chorando e
pedindo explicações confusas para Deus — ou para o diabo. Ele, que não
era nenhum dos dois, ouvia. Não conseguia pensar direito, estava
atordoado. Tanto que se obrigou a deixar o carro depois de alguns metros.
Ainda estava bem longe de casa ou do centro da cidade e não conseguiria
dirigir sem causar um acidente. Não com toda aquela agitação dentro de sua
cabeça. Acabou amaldiçoando a si mesmo por ter a porcaria de um BMW.
Se tivesse qualquer outro carro, passaria despercebido, mas não com aquele
elefante branco (branco mesmo).
Deixou o mais distante da casa que pode — no primeiro posto de
gasolina que encontrou, molhou a mão dos frentistas com algum dinheiro
— e partiu para o ponto de ônibus. O máximo que poderia acontecer depois
disso seria cair de cara na rua, mas isso seria bem mais fácil de resolver que
uma acusação de homicídio. Precisava ver Neiva, ela saberia o que fazer.
No ponto de ônibus, outros conversavam suas próprias mentiras. Ele
podia ouvir com clareza o que pensavam e Deus! Como preferia não ter que
passar por aquilo. Vinham das cabeças enganos, desconfiança e todo tipo de
jogo adulto que proporcionasse alguma vantagem.
É só isso que somos? Conspiradores interesseiros?
As pessoas espionadas o fitavam de volta, desconfiadas; roubadas por
ele.
Elas sabem. Sentem o que faço. Em minutos, ele não via mais pessoas,
mas um esquadrão de demônios aterradores. Alguns com bocas no lugar
dos olhos, outros com braços nascendo pelos ouvidos, com aparência
bestializada, sangrando, apodrecendo. Tudo era horrível e cinza e ele
desconfiava que o mundo todo estava daquele jeito. Precisava parar de
sentir toda aquela dor e maldade. Precisava da velha Neiva.
— Até que enfim — resmungou quando viu o ônibus escrito “centro”
se aproximando. Dali até a casa da velha era uma curta distância. Duas
velhas com rostos deformados e caninos monstruosos o olharam feio por
seu desabafo, também tinha chifres. Se elas pelo menos soubessem como
são...
Dois degraus e um pouco de tontura o colocaram dentro do veículo.
Estava abafado, quente demais para se andar de ônibus — para quem tem
essa escolha...
— Oh, droga — disse. As pessoas de dentro também diriam isso se
tivessem espelhos.
Pessoas?
Aquele era o próprio camburão de Freddy Krueger levando todos para
a terra do pesadelo. Mulheres com cabeça de serpente, homens com cabeça
de bode, narizes cavados como caveiras, olhos dependurados da pele, gases
saindo das pessoas. Uma criança metida à valentona com a irmãzinha tinha
dentes vampirescos e uma psoríase extrema em toda pele.
E os pensamentos...
Jesus; eram piores que a aparência. Formavam nuvens carregadas de
insetos. Baratas, lacraias, moscas, escorpiões e todo tipo de peçonhas
saindo pelos ouvidos das pessoas e tomando conta do chão metálico. O
cobrador tinha olhos répteis a encará-lo. Três ou quatro passageiros, no
ônibus de trinta e oito, eram normais. Mais que isso; eram fachos de luz
espantando a escuridão. As larvas e insetos se transformavam em flores
perto deles. Jason procurou sentar-se ao lado de uma dessas pessoas, mas a
luz delas o deixava cego e amplificava as vozes de sua cabeça. Acabou
ficando perto de um velho com cara de pato. Ele sempre gostou do pato
Donald e entre as atrocidades que habitavam o “hell-bus”, o cabeça-de-pato
era sua melhor escolha. Jason transpirava em bicas. Fechou os olhos para
não precisar ver mais nada, quem sabe assim conseguisse controlar seu
estômago e não vomitar piorando tudo.
Em dez minutos chegava ao centro.
Aleluia.
Pagou o cara com olhos de crocodilo da roleta e correu até a porta de
saída. Quase não conseguiu tocar no dinheiro. A nota era gosmenta, suja e
fedia.
E suas ilusões quanto a alívio da descida terminaram logo. Estava no
centro da cidade.
Oh, cara...
A visão do inferno se prolongava em cada centímetro. Sua cabeça
explodia ecoando vozes e chamados em todos os hemisférios e níveis de
seu cérebro. Seus olhos doíam. A contagem de boas almas estava em baixa,
coisa de cem para um e dessas — das boas almas —, ele não conseguia se
aproximar. Claro que não afinal, ele próprio era uma das criaturas bestiais.
Das mais horrendas com seu corpo dissolvido e decomposto.
Caminhou com a sede e o desespero em seu encalço. Atravessou o
mercado municipal da cidade, cada vendedor ambulante mal-intencionado
tinha uma ou duas criaturas assombrosas germinando de seu corpo. As
coisas que emergiam dos homens andavam em bandos, às vezes paravam e
como pássaros, faziam uma raspagem bucal nos crocodilos, aves se
alimentando de carrapatos; criaturas incapazes de obter seu próprio
alimento e vivendo das chagas alheias. Aqueles que se aproveitavam sem,
contudo, exercer a maldade, eram tais criaturas negras. Vez ou outra, Jason
deixava de ver o mundo horrível e voltava a ter a visão normal onde todo
aquele mal se escondia, mas agora sabia da verdade.
E não a estava suportando.
Com extremo sacrifício, ignorando sua musculatura exausta e seus
olhos, chegou à casa de dona Neiva. Ela estava sentada em uma cadeira na
varanda minúscula da casa, tomando chá de cidreira. Não se abalou muito
ao vê-lo, como se o esperasse.
— Preciso de sua ajuda, Dona! Não sei o que está acontecendo
comigo. Estou perdendo o juízo.
— Entre e pare de gritar no meu portão — disse Neiva erguendo os
olhos em uma atitude impaciente. — Achei que fosse aguentar mais que
isso.
Jason entrou bem rápido na casa. Desorientado e esbarrando pelas
paredes, desviando de cada gato Pupis que cruzava seu caminho. Conhecia
o caminho da sala de cartas e tratou de ir para lá se amontoando em uma
das cadeiras. A plantinha continuava ali, mas nas favas estavam diferentes.
As vargens tinham germinado e dentro delas seis ou sete olhos estavam
olhando para ele.
— Ela está diferente — disse Jason.
— Você está diferente, rapaz. Está vendo e agora ela vê você. Ela vê o
que você faz; o que pensa e como age... Depois te devolve.
Jason lembrou-se de Patrícia — da garota mais quente do prédio — e
do que fizera com ela. Mas não foi dela que Jason falou.
— É o Thomas, dona Neiva; ele está...
— Morto.
— Como sabe disso?
Neiva deu um suspiro mais longo. Depois disse:
— Ele tentou falar comigo há alguns dias. Não estava suportando a
luz.
— Luz? A senhora tá doida?! Alzheimer? Retardo? Esclerose? Eu só
vejo dor, dona Neiva.
— Precisa se acostumar com a luz. Luz forte cega no começo.
Machuca os olhos. Além disso... Você teve uma escolha. Tentei te
desestimular, não lembra? Você não foi enganado, rapaz. Não por mim.
— Precisa desfazer isso!
— Uma borboleta não volta para o casulo. Não lhe devo nada.
— Tem que ter um jeito! Não quero mais saber da verdade, não
aguento essa verdade onde eu e o resto do mundo somos demônios!
A velha o encarou, Jason soube que estava vasculhando sua alma. E
permitiu.
— Você usou mal um dom de Deus e está pagando o preço. Usou mal
a fava como tem feito com tudo o que conseguiu em sua vida. As mulheres,
a bebida, jogos, vícios, dinheiro e agora o dom da visão. Não há fuga dessa
penitência. Terá que pagar até o fim. Você pediu a luz, Jason. E ela foi dada.
— Eu pago minhas dívidas, velha! Mas é do meu jeito! — disse
tomando a adaga que ficava no pequeno aparador. Neiva não fez menção de
impedi-lo.
Jason degolou-se com ela. O aço mergulhou gelado em seu pescoço, o
sangue brotou quente e repugnante. A carne rasgada de lado a lado. Jason
caiu. Tremeu por um tempo, tremeu até que seu corpo desistisse de
compensar com energia o líquido vermelho que esguichava dele. Neiva
observava; sempre silenciosa. Jason sorriu usando a própria morte para
fazer pirraça.
E tudo ficou escuro.

7
Um espasmo o trouxe de volta. Sentiu algo se deslocando garganta
abaixo. Algo ovalado como uma fava. Tentou regurgitá-la, não conseguiu.
Tentou respirar. Neiva tinha um copo de água em suas mãos.
Deja-vu?
Jason a encarou abismado, mas a sede o forçou a aceitar o líquido.
Tomou o copo todo com dois goles. A sede do Saara. Seus olhos
lacrimejaram com o esforço.
— E agora? — perguntou para a velha.
— Agora você paga. Como seu amigo Thomas pagou. Aceite seu
destino antes de procurar pela morte. Ou isso ou fica no inferno para
sempre.
Jason se levantou e saiu.
Tinha todas as respostas que precisava.
Cavalo bravo

EU REALMENTE NÃO acredito que minhas palavras recebam um


mínimo de credibilidade — também não me importo com isso. Entre os
muitos adjetivos indigestos que me acompanham, arrogante ou mesmo
débil-mental, estão entre os mais confortáveis. O que significa que não
tenho esperanças que alguém compreenda perfeitamente o que vou expor
abaixo; apenas leiam e tirem suas conclusões.
Sempre procurei ser um homem de fé seja lá o que isso signifique, até
o dia que o meu bom senhor começou a me dar as costas. Eu tinha meus
defeitos como assistir pornografia enquanto minha mulher dormia, dar
umas bicas no cachorro que me chateava, levá-lo para se aliviar na calçada
do velho Matias — que se achava dono da cidade por ter servido o exército
—, mas realmente não acho que isso fosse motivo para Deus-Nosso-Senhor
limpasse os pés em cima de mim, não mesmo.
Em agosto de setenta e sete, eu devo ter tido a pior das crises de
hemorroidas para alguém que nunca deu a bunda. É... Eu falo palavrão
também e ninguém vai me tirar esse direito. Pelo menos a boca ainda é
minha. Como eu dizia, parecia que estava com a porra de um molusco
enfiado em minha sagrada bunda tentando pular pra fora, coçando dentro do
meu rego. Imagine a minha raiva, meu amigo... Trabalhava em uma agência
bancária na época.
Em setenta e sete, a vida era outra e podíamos tratar todo o funcionário
feito o animal que era. Direito era só o contrário de esquerdo e pronto. Se
você fosse reclamasse por ter sido demitido com algum juiz, o melhor que
poderia acontecer era te chamarem de incompetente, mas quase sempre te
mandavam para a puta-que-pariu. Você tinha o direito de obedecer seu
chefe e agradecê-lo por encher de comida o seu prato, isso sim. E isso era
bom.
Nesse ano, com meu rabo em prantos, Deus me deu outra piada de
mau gosto: meu filho. Minha mulher adorou como adorava a qualquer
porcaria — a mim inclusive. Sassaricou animada, contanto para a família
inteira a novidade enquanto eu pensava em dar bom uso ao trinta e três que
guardava na bolsa. Naquele tempo um homem ainda podia se armar e
craque era coisa restrita ao futebol... Pensando bem, até que é engraçado
isso: no futebol, craque virou droga e na rua droga virou craque; que bosta
de pensamento, mas vamos à história... Você deve estar curioso sobre o que
o velho babaca aqui tem a dizer. Ah, é... Não te contei minha idade. Tenho
sessenta e seis. Às vezes, acho que faltam mais uns seis, sete anos, para eu
me tornar uma besta completa, quem sabe em junho no meu aniversário?
Isso me lembra do que eu estava te contando; do outro velho. Preciso dizer
que eu estava naquele ano de setenta e sete, à beira da depressão. Tentei
fazer de tudo um pouco na vida até entrar para o sistema bancário e acredite
em mim que eu não agradecia por estar ali. O dinheiro era curto, minha
mulher me tratava como um idiota (ou um banco de esperma), a família
dela me achava um imbecil e minhas posses eram um fusca velho rebocado
com massa e um talão de dívidas (que eu escondia do banco para não perder
o emprego).
Todo santo domingo eu ia à missa pedir alguma ajuda para o divino,
quem sabe? Se Deus ouvia até a bandidagem que vez ou outra se safava da
polícia, por que não me ouviria? Entende meu pensamento?
Foi na manhã que eu soube que meu esperma gerou algo além de
comida de barata no ralo que o tal velho veio falar comigo. Eu estava na
minha mesa no banco, no meu castelinho, gemendo baixinho com minha
bunda exigindo uma pomada anestésica. Além de tudo estava assado. Não
dava para limpar direito com uma cabeça de tartaruga pulando para fora.
— Bom dia — disse alguém com a cara-de-pau que só vendedores
têm. Achei mesmo que ele fosse alguma porcaria de vendedor.
Bom dia? Só se você trocar de cu comigo, parceiro.
— Bom dia — respondi com a boa vontade possível. Minha boca se
esticou tentando formar um sorriso. Éramos obrigados a mostrar os dentes
no banco; como um cavalo. Ninguém deixaria sua grana em um lugar onde
fosse mal tratado. A gente dava café, pãozinho, abraços, tapinhas nas
costas. Só não dava o anel mesmo... Pelo menos eu. Não o meu que parecia
um formigueiro de saúva. As garotas recém-contratadas faziam isso, mas a
coisa era muito velada, serviço interno. Por causa desse tipo de atitude,
nunca gostei de mulher no trabalho.
O tal homem se vestia bem, eu não posso negar. Terno chumbo,
gravata combinando, camisa branca engomada, calça com vinco, sapatos
polidos. Quando ele sentou à minha frente, pensei em algum diretor
regional disfarçado. Talvez tivesse sido melhor... Porque perder um
emprego não é nada parceiro, não é porcaria nenhuma, não importa o que
digam para você. Um emprego é só algo que faz você deixar de ser livre, e
um homem precisa ser livre para ser chamado de homem. Pelo menos é
assim que eu penso. Mas não naquela época com meu anel estropiado e
minha mulher grávida...
— Em que posso ajudar, senhor? — perguntei com toda educação,
seguindo os protocolos rígidos de abordagem bancários. Acomodei-me de
um jeito que a coisa querendo sair de minha bunda ficasse quieta e um
pouco menos nervoso dei alguma atenção ao homem. Além disso, ele
estava de terno e naquela cidadezinha quente como o inferno, qualquer um
que se propusesse a colocar a porcaria de um terno era demente ou
importante. Minha camisa mostrava debaixo do sovaco como eu dizia a
verdade sobre o calor: duas rodelas escuras e uma do tamanho de São Paulo
nas costas. O tal homem não transpirava uma gota, parecia acostumado com
um calor daqueles. Como se isso fosse possível.
Naquele ano, fez o calor mais intenso desde os meus tempos de
criança. Acho que desde sempre. A gente acordava, tomava banho, e saía
do chuveiro pior do que havia entrado — e eu tenho essa coisa com o suor,
transpiro como um sapo no sal. É uma coisa terrível, ainda mais com a dor
no “você sabe onde” que eu sentia. Vou tentar parar de falar de cu um pouco
(mas não garanto nada) — um velho como eu mal tem condições de
garantir uma trepada, o que dirá controlar velhas manias.
— Na realidade, Luciano, quem quer te ajudar sou eu — disse-me o
estranho de terno.
Achei uma cara-de-pau enorme o cara chegar ali, na minha agência
bancária (quase minha já que eu ainda era sub-gerente), de frente para a
minha cara e para o meu bigode que parecia uma vassoura e me oferecer
ajuda. E ele falou sério.
O velho tinha os olhos mais pretos que eu já vi. Pensei que ele não
tivesse nem essa coisa de pupila e íris, os olhos dele eram duas bolas pretas
e só.
Não sei o que me deu, talvez fosse dor, ou calor, ou ressaca visto que
naqueles tempos eu entornava uma garrafa de uísque a cada dois dias... Esse
é outro conselho útil para bancários que venham a ler isso: bebam muito pra
esquecer todas as filhadaputagens que vocês fazem durante o dia. Eu pelo
menos fazia (e bebia). Perdi a conta das pessoas que eu ferrei para ter
alguma ascensão na carreira. Não que tivesse adiantado, visto que eu
continuava a ser o mesmo pé no cu (puta-que-pariu, falei cu de novo) de
sempre. A gente apreendia casa de velhinhas, devolvia cheques de gente
com câncer, chantageava funcionários, pagava puta para o patrão e um
monte de outras coisas que, para ser sincero, não me orgulho hoje. Só que o
sistema era esse e eu estava com a lama do sistema até a garganta.
Só sei que alguma coisa me fez acreditar no velho. Achei estranho que
ele soubesse meu nome, mas na cidadezinha chamada Gerônimo Valente,
todo mundo sabia de tudo em setenta e sete...
— Bom companheiro, — falei sorrindo — se quer mesmo me ajudar,
preciso que faça um depósito de seis dígitos. Metas — continuei sorrindo
com meus dentes amarelados de Marlboro.
O velho me estendeu uma valise pesada por cima da mesa. Pensei que
fosse uma arma. Meu órgão sensibilizado mordeu forte. Essa coisa de
assalto a banco sempre foi moda, mas na época parecia uma praga. Todas as
cidades da região tinham sido assaltadas e eu, sendo o cara mais cagão do
mundo, consegui evitar convocando a polícia local em troca de alguns
talões. E que Deus salve os talões de cheque! Em um desses assaltos tinham
até estuprado a esposa de um gerente da cidade vizinha — nada que aquele
filho-da-mãe arrogante não merecesse, aliás. Fiquei com pena da mulher,
mas penso que nessa obscenidade de estupro quem leva a maior parte da
pica é sempre o marido. Qualquer homem nesse mundo trocaria de lugar
com a mulher. Ter uma mulher estuprada deve ser foda, entende? Eu fiz o
que pude a acabei me safando. Pelo menos até ali. Até a valise.
— É melhor o senhor guardar isso — eu disse para o velho. Ele
continuou com a mesma expressão, um mágico prestes a tirar um crocodilo
da cartola.
— Aqui está sua ajuda, Luciano — bateu na valise.
Eu fiquei curioso, rodei-a sobre a mesa. Olhei para a abertura que
nascia conforme suspendia a tampa.
Bemmmm devagar.
Jesus Cristo!
Nunca tinha visto tanto dinheiro fora do cofre em toda a minha na
vida. Devia ter coisa de um milhão pra mais em dinheiro atual. Se
conseguisse aquela grana, se conseguisse aplicar a grana daquele velho,
teria minha promoção para gerente rapidinho. Parei instantaneamente de me
importar de onde tinha saído o velho de terno. Eu só queria a grana. A grana
e a meta batida e provar para o resto dos gerentes diplomados que eu não
era um ignorante idiota por não ter feito uma faculdade. Talvez eu fosse
idiota em um monte de coisas — pode apostar sua bunda que eu era —, mas
não no banco. Ali eu seria importante e o velho como prometido me ajudou
a provar isso.
Ele sorria enquanto eu babava em cima das notas.
— Tá... Me convenceu, amizade. O que eu preciso fazer? Redução de
taxas, novos empréstimos? — Era o que eu podia oferecer. Estávamos em
uma porcaria de banco, entende?
Para minha surpresa, o velho fez outro tipo de proposta. Uma até certo
ponto obscena — não, ele não quis meu anel, se é nisso que você está
pensando, e se tivesse pedido, eu não teria dado; ferrado ou não, aquele
buraco sujo era meu como pouca coisa no mundo.
O fato é que eu concordei com a proposta e depois disso, tudo
começou a dar certo. O tal homem chamava-se Áries e nunca mais nos
vimos. Achei um nome esquisito, meio europeu. Mas o que eu sabia da
Europa? Nada, a não ser que minha mulher queria ir até lá; para passar frio
e tirar fotos embaixo de termômetros (coisa que eu detesto. Não os
termômetros e o frio; as fotos).
Dois meses depois do encontro, eu já era gerente da agência. Em um
ano, minha mulher conheceu a Europa — com a irmã dela já que eu
precisava me dedicar ao banco para socar de volta o mundo que me batia há
anos. Andava com o saco nas costas com o jeito como era tratado pela vida.
Minha família era daquelas que olhava a contribuição financeira do filho
antes de seu estado de saúde. Casei-me pra fugir disso e bem... Vamos dizer
que minha mulher não era muito diferente da minha mãe. Mas agora eu
tinha dinheiro para exportá-la para a Europa junto com a minha cunhada e o
meu moleque. Esse era outro detalhe... O moleque. Mas isso vem depois.
Minha carreira pós encontro-com-o-velho teve uma ascensão única.
Com aquele depósito, tudo andou para frente e a única coisa que regrediu
— pasmem — foi minha dor no anel de couro. Nunca mais tive dor na
bunda desde então. Passei anos pensando que aquele velho era Deus e que
ele tinha resolvido me ouvir — sem desconfiar que Deus não cura
hemorroidas (não que eu saiba). Talvez o filho dele que veio fazer um tour
na terra, fizesse isso, mas não ele, não o senhor dos altíssimos, não Deus.
Com o tempo me esqueci do tal velho e continuei vencendo em tudo o
que me propunha a competir. Demorou quase trinta anos para que eu me
tornasse diretor sênior do banco com um salário que faria o depósito do
velho em setenta e sete parecer piada. Tudo parece piada quando o dinheiro
vem em carroças. Comprei a casa que eu queria, carro que eu queria, comi
todas as putas que roubavam papéis nas novelas da Globo — minha mulher
aceitava bem os chifres que levava aqui e ali, ter um marido poderoso
envolvia uma cota alta de sacrifício e eu duvido que ela preferisse a vida de
merda de setenta e sete. Isso até o dia do massacre.
Sim, é aqui que tudo mudou de novo, no dia do massacre.
Estávamos em nossa casa de um quarteirão em São José dos Campos.
Cheguei a um ponto em minha vida que podia morar onde quisesse e São
José era bem mais fresco que aquele inferno onde moramos boa parte da
vida. Inferno...
Como eu dizia, estávamos em casa. Eu comia uns amendoins, sentado
em frente da tevê, quando deram a notícia dos disparos. Algum doido
varrido havia entrado em uma agência nossa e matado mais de trinta
pessoas. Agência matriz em São Paulo. Era questão de tempo para que meu
telefone celular começasse a berrar. Minha esposa olhava para mim com
cara de tonta, quase agradecendo por eu estar em casa e não na agência que
fora o alvo daquele maluco. Hoje penso que ela preferiria que eu estivesse
lá. Mas não posso perguntar.
As câmeras sempre indigestas da terceira tevê no ibope — aquela que
só mostra desgraça, “corta pra dezoito, Lente-lenta!” — havia captado uma
imagem do atirador. Foi enquanto as pessoas estavam se jogando pelas
janelas que ele mesmo abriu. Segundo a reportagem, o maníaco dava duas
opções: “aprende a voar ou morre de tiro”. Muita gente tentou aprender a
voar, aparentemente.
— Coisa de Maluco — comentei quando a reportagem notificou que o
agressor fugira dos policiais. Pele menos o cara é esperto, pensei. Minha
mulher com cara de indigestão não parecia concordar comigo (como em
tudo na vida, era uma espécie de prazer isso dela discordar da minha
pessoa).
A tevê então mostrou um cara de capuz com um moletom que eu
conhecia bem... Eu detestava. Era a porcaria de um moletom de banda de
Rock. Meu filho tinha um igual de uma banda chamada Matanza. Eu não
gostava do que estava escrito na roupa, mas ele parecia adorar:
“A VIDA É MINHA E A SUA QUE SE FODA”, diziam letras enormes
nas costas do agasalho.
A frente do tal moletom levava a cara de delinquente do vocalista
ruivo que não era nada delinquente. Qual o problema de eu saber disso?
Velho também assiste MTV, porra! Ainda mais quando seu filho acéfalo só
vê essa bosta de canal. Nada contra a banda, mas um cara como o meu
moleque querer mandar na própria vida enquanto mama nas minhas bolas?
Era demais.
A campainha tocou me tirando um pouco da tevê tragédia. Como era
costume, olhei com minha cara ranzinza para Edna que acabou indo atender
— depois de mamar nas minhas bolas por quarenta anos, era o mínimo que
ela podia fazer; abrir a porta.
“Ah, não! O que voc...”.
BAMM!
Edna tentou dizer alguma coisa quando meu tímpano explodiu um
disparo — eu reconheceria de longe o barulho de uma doze cuspindo (eu e
o atirador que fez aulas de disparo comigo).
Alguma coisa gelatinosa se espalhou pela cozinha. Nunca tinha visto
cérebro antes, mas pensei que se tratasse daquilo. Cinza e gelatinoso.
Apetitoso de certa maneira. Vulgar de outra.
“Antes ela do que eu”, foi o que pensei.
E no fundo, eu já sabia do que se tratava. Eu ainda devia para o velho.
O homem que transformou minha vida havia pedido uma única coisa
em troca de seu depósito. Na época, com o calor que fazia, com um
moleque recém-nascido, com as dívidas se acumulando e com o cu
parecendo a cabeça explodida da Edna, achei... Razoável. O que poderia
acontecer de tão ruim? Ele só pediu a atenção do meu filho em uma de suas
férias de verão. Tudo pago: viagem, roupas, presentes. Juro que pensei que
faria bem para o garoto conhecer coisas novas. E eu nunca vi no tal velho
alguém que o ameaçasse, já disse que achava que ele fosse Deus.
O garoto me encontrou logo. Eu continuava travado na maldita
poltrona e não fui homem de mover um músculo. Não que eu tenha
precisado. Ele se matou em seguida. Olhou para mim com um sorriso besta
e meio satisfeito e... BAHM!. O cérebro dele se misturou com o da mãe.
Pelos meses seguintes, respondi aos inquéritos, tomei alguns
controlados (principalmente oxicodona que faz qualquer dia cinza parecer
primavera japonesa), arranjei uma aposentadoria gorda e me mudei para o
México.
Hoje gasto os dias bebericando minhas margaritas e assistindo a
estonteantes pores-do-sol. Nunca mais soube do velho.
E penso que não devo mais nada pra ninguém.
Vinte andares

E AQUI estou eu. Escrevendo e lembrando.


Ainda pareço olhar para meus pés apoiados no alto dos vinte andares
do edifício onde fingia trabalhar há mais de um ano, ciente de como se
sente um peixe prestes a ter seu aquário explodido... Eu acho mesmo que a
vida é isso às vezes, uma jaula, aquário ou coisa parecida. Toda vez que eu
penso nisso, penso no cara que joga a ração e escolhe os peixes que vai
botar do nosso lado. Sabe de quem estou falando né? Você deve estar
pensando que como está lendo esse texto eu não pulei, certo? Cuidado com
o que esse farelo quente de neurônios entende... Não pense que seu cérebro
ou seus olhos (que na realidade são ligados a ele) enxergam a verdade.
Podem até conseguir ver, mas daí até entender tem um longo caminho.
O importante é que todas as burradas que fiz na vida me trouxeram até
o momento em que eu quis dar fim a ela. Eu não nasci tão branco como eu
queria, não sou rico, não sou inteligente a ponto de ser contratado pela
NASA e nem tenho uma vara de vinte centímetros. Situo-me, digamos...
Dentro do padrão. E isso nunca me satisfez. O vento estava soprando forte
naquele fim de tarde e o senhor sol preparava um espetáculo de despedida e
tanto para mim. Eu adorava o por do sol.
Não demorei muito para tomar a decisão de espatifar minha massa
encefálica pelo chão de piso “Copacabana” onde planejava mergulhar.
Pensei que podia no processo pegar algum coitado que nunca imaginaria
meus noventa e cinco quilos concentrados na barriga despencando sobre
ele, mas esse cara teria muito mais azar que eu, e só por isso, mereceria ser
esmagado. Assim eu pensava, como todo cara com mais de trinta que se
recusa a obedecer às regras. Nunca gostei muito disso também; das malditas
regras. Desde pequeno, tem alguém para colocar freio em você, já reparou?
E você obedece, assim como eu, até que um dia o copo enche, a bomba
explode e não cabe um milímetro cúbico de ar dentro do seu saco enrugado
(desculpe se ofendi alguém). Aí você se descobre na beira de um parapeito
banalizando a morte.
Lá embaixo as pessoas me olhavam e partiam, achando que era algum
funcionário da limpeza. Eu poderia até ser, mas duvido que um operador de
rodinhos andasse de jaleco pelos parapeitos dos prédios sem equipamento
de segurança. Tem isso também... Sou médico.
Sendo um doutor, te garanto uma coisa, meu amigo: nunca vi nenhuma
fumacinha branca chamada alma sair do corpo de ninguém. Se tivesse visto,
talvez não estivesse aqui. Nunca teria subido nesse maldito parapeito com
essa certeza. E eu tive uma vida boa, sim... Sei que é isso que você está
pensando — como se, para cometer suicídio, alguém precisasse ser
molestado por seu pai alcoólatra. Não, cara; nunca passei por isso. Também
nunca passei fome, nem muito frio — a menos que eu quisesse como na
maldita viagem para Campos do Jordão com minha esposa no festival de
inverno. Contei isso? Que sou casado? Pois é.
Conheci a Amanda na época da faculdade. É uma boa garota. Ainda é
uma garota apesar de seus mais de trinta anos. Ela não tem culpa nenhuma.
Acho que ninguém tem, nem mesmo o dono do aquário. Filhos, eu ainda
não tive. Nem quero. Colocar mais dois sapinhos nesse mundo onde chove
sal? Nem pensar, cara. Mas eu estava contanto do parapeito...
Aquele dia, eu trabalhei feito um boi no consultório. Atendi desde
toque de próstata até cancro mole. Sou urologista — uma droga, eu sei.
Ficar vendo o bilau dos outros o dia inteiro e blá, blá, blá. Foi só outra
besteira que eu fiz na vida, mas o que me trouxe para o parapeito foi outra
coisa, uma lembrança persistente de infância. Algo que me fez querer ser
médico. Ninguém escolhe essa profissão à toa — nunca acredite se algum
médico te disser isso. Ele, na certa, tem alguma coisa a esconder (feito eu).
Melhor te contar tudo logo...
A vida começou a me trazer para o parapeito no inverno de 1995.

Eu morava com meus pais em uma cidade no sul de Minas chamada


Poço Fundo. Meu pai era farmacêutico e acabou arrumando uma bocada
boa por lá. Grana forte que vinha do estado e caía nas mãos do prefeito que
precisava de alguns “sócios” para distribuir. Claro que era ilícito, dinheiro
de merenda escolar ou coisa assim. Eu nunca soube direito, mas tivemos
que sair da cidade no meio da noite só com a roupa do corpo. Mas isso foi
bem depois do que vou contar.
Em noventa e cinco eu tinha dois grandes amigos na cidade, o Daniel e
o Espinha. Eu o chamava de Espinha como todo mundo. Até a mãe dele o
chamava de Espinha. Acho que você pode imaginar o motivo. Era
engraçado para a gente, mas acho que não era tão divertido para ele com
todas aquelas bolas amarelas brotando pela cara, um horror. Mas feio ou
bonito; onde ele estava, podia procurar pelos outros dois. Reinávamos na
cidadezinha. O que mais fazíamos na época era ouvir bandas de Seattle e
estourar lâmpadas dos postes com qualquer arma que tivéssemos acesso.
Era engraçado, um pouco perigoso e para nós, qualquer coisa era boa desde
que estivéssemos juntos e desafiando regras. Comecei a fumar nessa época
também. Até hoje.
Mandávamos tranquilos na molecada até que chegou esse cara vindo
de São Paulo. Na escola avisaram uns dois dias antes que todos deviam
recebê-lo bem e ajudá-lo em sua readaptação. Pensamos que o moleque
devia ter feito coisa bem pior que arrebentar lâmpadas e claro: ficamos
sedentos para conhecê-lo. A escola estava uma loucura quando ele chegou.
Vimos o próprio Kurt Cobain. Exceto que o original era bonzinho e fracote.
Ricardo era um demônio.
Nós conhecíamos pouca gente de fora e éramos considerados os
senhores arruaceiros até a chegada dele. Ricardo era mais velho — devia ter
uns dezoito — e mais repetências na escola que qualquer outro garoto que
conhecíamos. E alguma coisa em Espinha irritou muito o Ricardo.
Desde o primeiro dia...
“Babaca, sai daí”, foi a primeira expressão que ouvimos sair de sua
boca. Quando roubou o lugar do Espinha na classe. Ele nem reagiu, mas
mesmo assim ouviu que seu rosto parecia um sabugo de pipoca estourado.
Pensamos em defendê-lo, mas como todo o resto da escola, tivemos medo
do garoto novo.
Depois desse primeiro dia, ninguém mais comeu nenhum salgado sem
que ele recusasse primeiro. Espinha era o que mais sofria; uma espécie de
Zumbi de vampiro dele. Acabamos nos afastando com isso. Sei que não
devíamos ter feito isso, mas o mundo dos garotos sabe ser bem cruel ás
vezes. É uma savana africana onde você bate como um leão ou corre como
um Gnu. Já o pobre do Espinha era uma zebra, nascida para ser alimento ou
montaria de circo.
O assédio chegou a tal ponto que Espinha começou a andar de capuz
pra lá e pra cá; pelos cantos. Nós sabíamos que tinha alguma coisa errada
com ele. Sabíamos e não fizemos nada.
Espinha gostava de uma garota na época, a Jéssica. A menina mais
gata da sala, bonita mesmo, e meio metida a rebelde. Era a única menina
garota que fumava na quadra junto com os caras, principalmente com o
Espinha. Sei lá se era por pena, mas ela conversava muito com ele. Mesmo
com Ricardo chegando e acabando com a vida do cara.
Mas a vida continuou e toda a semana nós tínhamos uma festa para ir,
coisa de cidade pequena. Quando um pai viajava, íamos para casa do
azarado zoar, dar uns beijinhos e voltar para casa mais homens do que
saímos. Foi numa dessas que o Ricardo ficou com ela. A Jéssica estava
esquisita durante a festa, parecia sonolenta; distante. Foi o zero-dois do
nosso trio — Daniel —, quem a viu subindo com Ricardo para o quarto. O
canalha fez com ela dormindo o que o Espinha sonhou a vida inteira fazer
acordado. Jéssica entrou numa depressão ferrada depois disso, perdeu uns
vinte quilos. E ela nunca contou nada para quase ninguém. Sofreu quieta
por um bom tempo, mas desabafou o acontecido para o Espinha. Foi
quando ela descobriu que estava grávida do Kurt-Repetente.
Ricardo continuou a abusar do Espinha, mas nosso amigo estava
diferente depois do segredo de Jéssica.
Pensativo...
Na escola, as coisas pareciam iguais, tirando a barriguinha da Jéssica
que crescia enquanto ela tentando disfarçar perdendo peso. Pensamos que
não ia dar em nada — além de uma pensão depois de um processo de
paternidade. Esse tipo de notícia se espalha feito lepra em cidades pequenas
e era questão de tempo para que os pais dela ficassem sabendo por que a
filha vomitava todo dia seu almoço. Até um peido voava longe depressa
demais em Poço Fundo.
Mas o lance ficou estacionado até o dia que o Espinha encontrou a
arma do pai dele dando sopa no guarda-roupa.
Foi a manhã mais triste da cidade.

A manhã também estava cinza e nunca acreditei nisso de prelúdio da


desgraça — no ambiente tentando avisar que algo muito ruim está para
acontecer —, mas foi o que pareceu.
Estávamos todos calados e introspectivos quando Espinha entrou na
sala de aula. Ele esperou — em pé no canto esquerdo da sala — até que
Ricardo entrasse e sentasse na cadeira que por anos fora dele. Um silêncio
estranho tomou conta do mundo; éramos aves pressentindo a tempestade
que derrubaria o primeiro colegial. Foi mesmo muito bizarro uma sala de
aula adolescente ficar tão quieta sem nenhum professor fingindo lecionar.
Jéssica sabia...
Ela tinha um brilho diferente no olhar. Hoje eu reconheço esse brilho
com a minha profissão, não exatamente hoje, mas quando estagiava.
Pareciam os olhos de um viciado prestes a tomar sua dose. Desejo, desejo
puro. Só Deus poderia imaginar a vontade que ela tinha de ver Ricardo...
É... Mas Deus não matou aquele desgraçado. Quem matou foi o
Espinha.
E ele não disse uma palavra, apenas se aproximou, sacou a arma da
parte de trás da calça, apontou para o saco do Ricardo e espalhou sangue
pelo chão. Depois de um tempo assistindo Ricardo se contorcendo no chão,
atirou no meio da testa dele. Espinha olhou para todos nós. A sala gritava
em pânico e ele sorria. Também olhou para a Jéssica e meteu uma bala
dentro da própria boca. O sangue do Espinha parecia aerossol quando a bala
saiu pela parte de trás da cabeça. Aquilo manchou o rosto branquinho de
outra garota chamada Shirley (dessa, era eu que gostava).
Então a Jéssica andou até ele, apanhou a arma calmamente como se
pegasse um sanduíche, e disparou duas vezes. Uma na barriga que guardava
o que restou de vida em Ricardo e outra na têmpora direita.
Na mesma semana, meu pai me trocou de escola, de amizades e só não
trocou meu sexo por ser machista demais. Eu me afastei de Daniel ou de
qualquer coisa que me lembrasse de Poço Fundo ou daquela manhã de
tragédias. Acreditem em mim quando digo que nem todo assassino nasce
filho-da-puta. Espinha era prova disso.
Nesse episódio me tornei frio e ateu, acho que tive razões para isso.
Também resolvi ser médico por conta daquele sangue todo. Médico gosta
de sangue e todos podem te confirmar isso. Anos depois ingressei e
terminei a faculdade, me casei e acabei enjoando da “vida como ela é”. Isso
me traz de volta à velha questão do parapeito. Não tenho nada mais para
explicar e se Deus existisse, aprovaria o que eu tencionava fazer. Eu tinha
cansado de tanta porcaria, acho que foi isso. Tinha cansado do que começou
com o Espinha e com a Jéssica. Foi quando o cara de jeans escuro apareceu
— e fazia anos que eu não via alguém com uma roupa tão fora de moda. O
sujeito devia ter coisa de uns cinquenta anos, barba rala (começando a ficar
branca) e até que estava em boa forma. Usava umas botas de couro também,
botas pretas.
— Tá fazendo o que aí, doutor? — perguntou-me com a voz mais
grossa que já ouvi na vida. Aquela voz ficaria bem melhor em um negro,
acho que isso eu posso dizer sem parecer racista (coisa que definitivamente
não sou). Sua voz era linda.
— Nada — respondi. Que tipo de pergunta era aquela? O que eu
estaria fazendo no parapeito de um prédio? De jaleco? Tentando ver se
Deus usa cueca? Por favor...
— Humm. Parece que está pensando em pular — disse o homem,
serenamente.
— Eu já decidi. — Não precisava de nenhum tipo de sermão naquela
altura (literalmente naquela altura). — Não tô pensando em nada e não tente
me impedir.
— Impedir? Eu?
— O que está fazendo aqui, então? — era a minha vez de fazer
perguntas idiotas. Se o homem não pretendia me impedir, claro que estava
ali pelo mesmo motivo que eu. Mas por que um cara boa pinta daqueles
queria se matar junto com um doido de branco desistente da vida feito eu?
Aquilo era mais que coincidência. Minha mente agnóstica dizia que não,
mas meu lado canceriano urrava por uma explicação mística.
— Nada. Gosto de lugares altos — continuou o homem se ajeitando.
Deu uns gemidinhos e sentou-se ao lado dos meus pés. Eu me encolhi um
pouco. Senti o vento mais forte. Estava ficando mais frio.
— Não vai tentar me impedir? — tornei a perguntar. Começava a
achar que ele era um policial ou, pelo menos, alguém a serviço da polícia.
Psicólogo ou coisa assim.
— Quer que eu faça isso? — perguntou. Abriu um sorriso do tipo
“peguei você, parceiro!”.
— Se afasta de mim, cara. Você é doido.
Doido era eu e agora estava nervoso com aquele homem estragando a
droga do meu suicídio. Como você ficaria com algo assim? Feliz? Acho que
não...
Ele nem se mexeu, só sorriu um gole de desdém. Eu disse:
— Se quiser aproveitar a vista tudo bem, mas eu vou indo.
— Me diga uma coisa antes, Smael. Por que essa vontade de imitar um
idiota?
Tremi dos pés a cabeça; quase caí involuntariamente.
— Como sabe o meu nome — perguntei. Com certeza aquele escarro
de Burt Reynolds era policial. Como diabos saberia o meu nome se não
fosse?
— Está bordado no seu jaleco, espertalhão.
Fiquei com a maior cara de besta de todos os tempos, tipo Noé quando
perguntou para que servia a arca...
— Aposto que foi a Amanda quem bordou — disse o velho. O mesmo
olhar de quem sabia os números da loteria.
— Cara, o nome dela não está no meu jaleco — eu disse. — É bom
ficar longe dela.
— E você acha que ela vai ficar sozinha depois que seu cérebro virar
ponche de melancia? Acha mesmo “Buldogue”?
— Como sabe esse apelido? — O desgraçado conhecia minha vida
inteira! Até o apelido detestável que ganhei graças às minhas bochechas.
Durou até a sexta-série quando eu estiquei (e as minhas bochechas junto).
Ele, o velho, me olhava interessado e um pouco triste. Uma tristeza tão
profunda que eu me sentia igual encarando aqueles olhos. Pensei ter visto
uma faísca passar pelos azuis deles. Sem veadagem, mas eu nunca tinha
visto nada tão azul em toda minha vida, eu não sabia o que era azul até ver
os olhos do velho (que nem era tão velho assim).
— Sei de muitas coisas, filho — disse o homem. Ele pareceu se
ajeitar; incomodado. Notando minha curiosidade, explicou:
— Dor nas costas. Tenho trabalhado demais.
— Precisa se alongar um pouco — eu disse. — Nessa idade a gente
começa a encolher.
— É disso que você tem medo? Por isso está aqui? — perguntou. Os
olhos serenos como o mar; um céu do meio-dia depois de uma tempestade
no inverno.
— Não é medo, acontece que cansei dessa vida injusta.
Ele baixou os olhos parecendo novamente entristecer.
— Bom; se você cansou, não tem remédio. Boa viagem — disse se
levantando. Os pés passaram da metade do parapeito a ainda não sei como
ele não chegou ao chão “Copacabana” antes de mim. Por um momento o
desgraçado tratou o ar como piso sólido!
— Aonde você vai? — perguntei. Alguma coisa me afeiçoou depressa
àquele filho da mãe. Não queria mais ficar sozinho no parapeito. Alguma
coisa nele me dava... Esperança.
— Vamos fazer um trato? — perguntou. Eu retornei com um sinal
querendo saber do trato, erguendo ao mesmo tempo meu queixo e as
sobrancelhas.
— Você desce comigo, pelas escadas, e em uma semana não vai mais
querer fazer isso.
— Nem fodendo, cara. Eu pulo daqui hoje — respondi arrogante
(como todo médico... brincar com a vida dos outros faz isso).
— Então vá com Deus, meu amigo, foi um prazer conhecê-lo.
— Sem essa de Deus, porra!
Emburrei-me como uma criança cruzando os braços. Meu estetoscópio
caiu com a manobra. Diminuindo e rodando até se espatifar no chão. O
velho procurando por alguma reação em meu rosto. Na certa reconhecendo
que o aparelho custava uma pequena fortuna. Nem liguei.
— O problema todo é esse? É Deus? — perguntou. — Só isso?
— Não “só isso” — exasperei-me um pouco. Expliquei: — O cara está
sempre de férias.
— Então você acredita que ele existe? Digo... Se ele está de férias,
pelo menos existe, não é?
— Não sei, não... O cara ignora muita coisa aqui embaixo para ser o
dono fodão do mundo.
— Talvez esteja muito ocupado...
— Ocupado demais pra acabar com as pessoas ruins? Por que ele
sempre deixa alguma merda grande acontecer com gente boa?
— Talvez porque acredite que as pessoas possam mudar, consigam
resolver seus próprios problemas — disse o velho. Me olhava da mesma
maneira que minha mãe me olhava quando fazia a ela minha coleção de
perguntas idiotas. Aliás, o tal Deus tirou ela bem cedo de mim...
— Quem é você? — perguntei encarando o azul inebriante daqueles
olhos.
— Sou o que não existe segundo você. Sou seu Deus injusto e cego,
Buldogue. — Mais faíscas fizeram daqueles olhos a mais perfeita bobina de
Tesla que eu já vira. Uma tempestade luminosa invadiu sua íris e todo
aquele azul me pareceu furioso... E triste.
— Tá bem, senhor divindade. Nos vemos no paraíso, então. Se você é
mesmo Deus, sabe que fui um bom homem.
— Bons homens não pulam de parapeitos, rapaz. Mas tenho um pacto
pra você.
— Pensei que só o Diabo fizesse pactos.
— E acha que ele aprendeu com quem? — perguntou o velho dando
uma piscadinha sacana. Nunca havia pensado que Deus pudesse ser um
piadista. Depois daquela piscada me ocorreu que sim. Para que alguém
colocaria ferrões nas abelhas? Ferrões que as tornam kamikazes da vida
selvagem? Ou daria a cara de bobo aos ursos panda? Ele é a porra de um
Urso, não é? E aquela coisa de ornitorrinco? Só pode ser piada... E o sexo?
Tem coisa mais ridícula que cara de gozo? Não, não tem.
— Tá bom, Deus. Explica o seu pacto. — Nesse ponto achava que
aquele velho era algum louco com lentes especiais. Ele teria que se esforçar
para me convencer que era Deus. Porque o cara que permitiu aquilo com
Espinha e todas as doenças dos meus pacientes não podia ser Deus. E se
fosse, eu quebraria sua cara antes de pular.
— Para começar, você pula — ele disse. — Cansei de tentar impedi-
lo. Mas se, SE, antes de chegar ao chão, você tiver uma fagulha, um átomo
de arrependimento, você ficará vivo como eu quero e servirá a minha obra
até que eu finalmente me dê por satisfeito. E um detalhe: sem nunca mais
duvidar de mim.
— E se eu não me arrepender? — perguntei.
— Você deixa de existir como tanto quer. Eu me encarrego disso,
acredite você ou não. — Novos raios inundaram aqueles azuis incríveis. —
Feito? — perguntou. Estendeu-me sua mão direita, extremamente bonita.
Mãos fortes e bem desenhadas. Mãos capazes de construir qualquer coisa.
— Feito.
Quando apertei aquela mão senti uma leve descarga de energia. Sorri,
procurando o mecanismo de choque em algum lugar nela. Não encontrei.
E pulei como combinado.
O vento bateu forte em meu rosto. Ligeiro e fresco, me abraçando
enquanto descia veloz. Senti-me tão vivo.
As primeiras janelas passaram rápidas e meu estômago praticamente
saiu do lugar parando em minha garganta. Nunca me senti tão impotente e
isso quase me fez perder a aposta; a sensação de que sozinhos não somos
nada... Estava na décima quinta janela quando o primeiro flash de memória
veio com minha mãe me segurando no colo. Aquele sorriso era algo
inexplicável, quase divino — eu disse quase. A sensação de divindade
parou assim que me lembrei de que minha mãe ignorou meus sonhos para
viver os dela através de mim.
Por volta da décima janela, vi meus melhores amigos, revisitei a
expressão fria nos olhos de Espinha e vi que eu estava certo. Não havia
Deus naqueles olhos, ou nos olhos sem vida de Ricardo e Jéssica. Chegava
ao sétimo andar e me lembrei do primeiro beijo em minha esposa. Foi bom,
mas de tanto me descuidar de nosso amor (assim como ela) o beijo se
tornara frio que não havia Deus ali. No terceiro, revi o olhar de um paciente
agradecido que eu diagnosticara e curara de câncer nos testículos. Sim;
aquele homem era grato a mim, mas eu me tornara seu Deus. Isso sempre
me pareceu estranho, eu não tinha a pretensão de ser Deus e se Deus pode
ser qualquer um para que existir um Deus? O segundo andar passou em
branco, como um flash de luz. Aquilo era minha fé: quente, brilhante e com
todas as promessas que a vida me fizera, mas aquilo não era Deus, era
vazio. E eu havia vencido aqueles dezenove andares quando feliz olhei para
cima.
Para o sol.
E ele me deu a maldita beleza perfeita que eu nunca fui capaz de
reconhecer na vida. O mais estonteante por do sol que eu já presenciara se
descortinou acima de mim. Fagulhas amarelas, laranjas e vermelhas
temperavam aquele céu ainda azul, se recusando a emergir na penumbra da
noite. Alguns pássaros dançavam no ar fingindo que a gravidade não tinha
relevância. Tudo acima dos meus olhos parecia precioso. E eu nunca mais
iria ver aquele espetáculo e uma saudade tão completa e absurda tomou
conta de mim que fui obrigado a acreditar em Deus. Porque o acaso jamais
poderia arquitetar um por do sol como aquele. A última fagulha
avermelhada me atingiu com sua misericórdia logo depois e tudo ficou
imerso na mais profunda escuridão.
Perdi anos em terapias e cirurgias, praticamente não tenho memória
recente — por isso escrevo tudo o que penso; talvez por isso você esteja
lendo. Minha mulher me deixou e encontrou um bom homem para ela —
penso que um bem melhor que eu. Hoje moro em uma cama de hospital,
pois segundo me disseram, não posso mais ficar longe de alguns aparelhos.
Contudo, estou bem.
Minha cama fica bem em frente a uma janela imensa que dá para o
ocidente. Todos os dias eu espero por um por de sol mais bonito que aquele,
ou pela visita daquele amigo de olhos faiscantes.
Sempre me disseram que “o diabo mora nos detalhes”.
Hoje eu penso que é Deus.
O homem que falava palavrão

DE REPENTE, ali estava ele, ou melhor, uma foto dele. Era ele
mesmo. O cara mais sacana do segundo colegial. O Boca. Parecia
impossível, mas aquele imbecil que fedia nicotina e cerveja às sete da
manhã, aparecia sorridente e com cara de limpo pedindo minha amizade no
Facebook. Lembrei-me dele na hora — e achei melhor ignorar o pedido de
amizade. Fiz por inveja mesmo, mas o que eu deveria ter feito? O cara era
um inútil, um boca-suja que vivia para provocar todo mundo que conhecia
(e muitos que sequer conhecia). Eu não gostava dele ou de ficar perto dele,
muito menos de cheirar o fedor que saía das suas roupas. O cara era um
nojo. Cabelo mal cortado e sujo, dentes amarelados de tanto fumar e um
senso de irresponsabilidade que parecia contagioso. Meus pais não
gostavam que eu andasse com ele, chegaram a me proibir na época. Fiquei
puto, isso há vinte anos quando meu bigode era tão fino que eu cortava com
a gilete cega do meu pai — se deixasse crescer, ficava com cara de indiano.
Naquela manhã gloriosa quando pardais cantavam enquanto meu
sangue fervia, eu precisava dividir aquele absurdo com alguém (nada soava
mais sem nexo que o Boca bem sucedido). Antes, saí da frente do
computador que esfaqueava minha coluna e fui tomar o café da manhã.
Minha mulher já estava com pão, manteiga e um monte de coisas que eu
não como, espalhadas pela mesa. E eu sem fome. Conheci minha esposa faz
pouco tempo, uns seis anos. Bem depois de eu perder o contato com o
animal do Boca.
Boca, boca, boca...
Não saía da minha cabeça. Entrei na cozinha e a primeira vontade que
tive foi chutar o fogão ou a geladeira, só para descarregar. Claro que não
passaria despercebido:
— Que foi, amor? Tá com uma cara feia...
— Deixa pra lá. Tô com dor nas costas. — Dito isso puxei uma das
cadeiras e me sentei.
— De novo? Tem que procurar um médico, né?
Não respondi a isso. Tava puto demais e nem sabia por quê. Saber eu
sabia, mas não era motivo para tudo aquilo, só que depois que eu vi a foto
do Boca no Fakeboob, todo feliz segurando a porra do livro que ele
lançou... Aquilo me deixou mal. Como alguém aceita publicar um livro de
um boca-de-latrina feito ele? Não parecia possível. Alguma coisa estava
muito errada no mundo e eu precisava descobrir o que era. Pô, na época eu
estudava mais, era mais responsável e enquanto eu trabalhava na loja do
meu pai o boca fumava “breu” escondido. Agora o tipo me aparece o todo
bem sucedido Senhor Escritor? Tinha coisa errada ali; precisava ter.
— Tá me ouvindo, amor? — insistiu minha esposa. Começava a me
dar nos nervos. Não que precisasse de muito para me tirar do sério naquela
manhã.
— Tô sim; não gosto de médico.
— Mas precisa, olha só... Você senta todo torto, deve tá com desvio de
coluna.
— Puta que pariu; Janaína; deixa eu tomar meu café em paz — eu
disse, explodindo minha frustração e batendo a mão esquerda espalmada
contra a toalha de florezinhas da mesa. As xícaras trepidaram com a
pancada seca. Na hora seus olhos se encheram de água. Porra, pensei. Mas
disse outra coisa: — Desculpa amor. É que eu estou com dor.
E estava mesmo, mas não era nas costas. Elas doíam também, mas
bem menos que o meu ego. Esse sim estava machucado desde que vi a
expressão feliz do Boca lançando seu livro de mistério. Pelo que eu li antes
de ter náuseas, estava bem conceituado, todo mundo falando bem. Diziam
que era “um talentoso rapaz descoberto muito tarde”. Talentoso? O Boca?
Meu Deus do céu, se talento era o que ele tinha, eu devia ter uma mina de
ouro no intestino! O Boca mal sabia escrever, tirava as piores notas da sala
e ainda por cima, mais matava aulas do que frequentava. Como é que um
cara daqueles sai em alguma publicação que não seja um obituário? Depois
dizem que essa coisa de publicar no Brasil é difícil. Se fosse, ele nunca
conseguiria colocar seus pensamentos idiotas no mercado.
Precisava tirar aquilo a limpo. E precisava sair rápido de casa antes de
uma nova explosão. Detesto mulher chorando e pelo jeito minhas desculpas
não serviram para parar a ladainha.
— Eu vou até a casa do Tico.
Jana nem respondeu. Pegou minha xícara e ejetou na pia da cozinha.
Eu até podia ter ficado em casa, mas era sábado, eu estava puto, e se
conhecia bem a Janaína (e aposte suas bolas que sim), aquele chororô ia
durar o resto do dia. Também precisava falar com o Tico, ele também
conhecia o Boca e ficaria mais puto que eu vendo aquele verme se dando
bem na vida.
Sai de casa já retardado com briga com a Janaína, mas principalmente
por comprovar que o mundo era injusto. Dei uma nova olhada na internet.
O cara tava bem... Tinha vendido mais de cem mil cópias! Isso com o
primeiro livro! Onde isso iria parar? Como é que um cara que fazia uma de
cada três palavras uma ser “porra” chega tão longe?
Meu carro velho não disse nada, nem o portão da frente que era todo
enferrujado. Duvido que ele tenha um portão daqueles ou um carro tão
podre — ou uma mulher chorando antes do almoço, em um sábado! Puta
sacanagem. Com certeza a vida dele dava de dez a zero na minha, isso me
dava vontade de explodir meu próprio rabo. Quer dizer que á assim? Eu
estudei pra caramba, fiz faculdade de engenharia, trabalhei para pagar meus
estudos e levei a vida a sério; tudo isso pra receber meus dois mil por mês
que não me deixam trocar de carro. Já o filho-da-mãe escreve umas
palavrinhas deprimidas e misteriosas (que devem ser uma bela bosta) e
enche o loló de dinheiro. Vida suja. Vida porca. Ah, mas eu logo entenderia
aquele processo. Estava chegando na casa do cara que poderia saber mais
que eu sobre o assunto. O Tico sempre sabia de tudo. Era um cara sério,
talvez merecesse estar no lugar do Boca também. Provavelmente sim,
mesmo sendo meio lerdo às vezes. Tico não era um completo retardado, era
antenado, mas era meio devagar de raciocínio. Se eu tivesse que escolher?
Claro que estaria mais feliz se o novo Stephen-Barker-Clive-King-Poe do
Brasil fosse o Tico. Não muito mais feliz, mas razoavelmente.
Como andava depressa demais e com a cabeça nas nuvens, esbarrei
com uma velha. Estava cheia de pães numa sacolinha que voou para o chão,
eu nem parei pra ajudar. Quando olhei para trás ela estava de joelhos
catando a porcaria dos pãezinhos. Não dava tempo de ter dó de ninguém.
Muito menos vontade. Foi por pensar demais nos outros que eu fiquei e o
Boca foi. Porque ele sempre foi um egoísta, era hora de eu também começar
a ser um.
Mas eu falava do Tico...
O nome de verdade dele, do Tico, é Márcio — nunca soube como ele
ganhou o apelido. Além de lerdo ele é meio... Meio feio. Tem uns dentes
para à frente que parece aquela parte do martelo que arranca os pregos,
pouco cabelo e uma caspa que parece neve. Mas é boa gente e esforçado.
Um cara que deveria ter mais sorte na vida. Não tanto quanto eu visto que
ele trabalha só a metade da semana, mas podia ganhar... sei lá... uns dois
paus por mês. Acho que ele ganha um e meio... Eu o conheço faz tempo,
estudamos juntos desde o pré. Coisa triste isso de relembrar o prézinho; faz
a gente se sentir velho. O Tico era um pouco mais amigo do Boca que eu.
Acho que esse foi o primeiro motivo que me levou a não gostar do cara.
Tico era tipo meu melhor amigo e doía ver um esquisitão baixo calão ter
mais importância do que eu. Sabe como são os garotos, não é? Eu não sou
delicado se é o que você está pensando, só tinha poucos amigos e não me
culpo por isso.
A amizade dele e do Tico não durou muito. Rapidinho o Boca
começou com as cretinices dele e afastou o coitado — ele não aguentava (e
não aguenta) muita coisa. Claro que o Tico correu lá para casa com o
rabinho entre as pernas. O Marcio (já te falei que ele chama Marcio? O
Tico? Pois é; nome besta) é casado também. Com a Eliza. Gente boa. É
muita areia para ele, mas ela deve gostar mesmo daquele bunda-mole ou
não teria se casado com ele. Isso foi outra coisa esquisita: o Tico casar-se
com a Eliza. Penso que Deus ficou com pena dele. Será que Deus teve pena
do Boca também? De novo... Tudo o que eu pensava esbarrava em
descobrir o motivo daquele idiota ter ido mais longe que eu.
Casa do Tico.
A casa dele era uma bosta, mas de bom tamanho para ele. Assim que
cheguei à frente, alguém espiou pela janela, na certa um dos bagrinhos dele.
Tico tem dois filhos: o Tadeu e o Bruno. Pergunto-me como alguém tem
coragem de batizar um filho com o nome de Tadeu. Sempre que eu vejo o
garoto eu lembro daquela música: “Seu delegado prende o Tadeu, ele pegou
a minha irmã e... Ó!”. Coisa horrorosa isso.
Eu nunca quis ter filhos. Filho é igual imposto: custa caro e não dá
retorno.
— Fala, dôtor! Como tá essa força? — disse Tico. Sempre com seu
bom humor irritante. Ele não continuaria bem humorado quando eu
contasse o que descobri. — Como vai a Jana? Tudo bem? —perguntou
(claro que por educação, ninguém nunca quer saber se a patroa do amigo tá
bem, a não ser que seja gostosa como a Juliana Paes de cinco anos atrás,
agora ela tá meio judiada, deve ser por causa de algum papel que ela anda
fazendo; mas antes ela era bem gostosa).
— Tudo bem, Tico. Com a Jana também.
— Ela ligou aqui pra falar com a Liz — (ele chama a Eliza de Liz,
brega...).
— É? A gente teve uma discussãozinha.
— De novo?
— Mulher é foda, Tico. Mas vamos falar de outra coisa... Tá com o
computador aberto?
— Tá aberto, mas a Liz tá usando.
Fiquei puto de novo. Se fosse lá em casa, tirava a Janaína da internet
na hora. De certo, a Liz estava vendo alguma porcaria, tipo resumo da
novela das oito, foto de cara sem camisa... Enquanto isso o bestão do Tico
perdia tempo cuidando dos dois capetas que ele colocou no mundo em vez
de enfiar numa Olla de morango. Isso que dá se empolgar na cama. Cama é
lugar de obrigação com a esposa. Se virar prazer, a cada nove meses ela te
dá uma surpresinha cheirando cocô de madrugada — e você não gostaria
disso tanto quanto eu. Seja sincero? Estamos sendo sinceros aqui, hã?
— Ela vai demorar? — perguntei.
— Sei lá... Acho que sim. Ela acabou de sentar.
— Vâmo dá uma chegada no Luizinho? (o boteco era o melhor para
esperar a Eliza largar o mouse, quase sempre para caras casados o boteco é
o melhor lugar do mundo).
— Vamos sim. Vou avisar a Liz.
Nessas horas que você percebe que o cara é um capado.
Avisar a esposa que ele vai ao bar? Que é isso, cara... Isso é como
pedir autorização para se masturbar. É coisa que homem de verdade não
faz, mas o pobre do Tico nunca foi nenhum Alain Delon... Teve foi sorte de
casar com a Liz, e ele sabe disso. O que ele não sabe é que a gente se
pegava na oitava série. Claro que eu nunca vou contar isso a ele. Às vezes
tenho vontade de pegar ela de novo, dar uns amassos, mas só quando o Tico
começa a elogiar muito o casamento. Casamento é uma droga e não gosto
de um cara que finge ser feliz amarrado no pé da cama. Eu assumo que não
gosto.
Feliz eu era quando o Boca era o cara mais sujo da sala. Agora ele é
escritor e eu vivo no esgoto...
Boca, boca, boca... Maldito Boca!
— Pronto, ela não gostou muito, mas tudo bem — disse Tico de volta.
Estava todo machão porque contrariou a esposa — que além de por dois
filhos no mundo, roubava o computador numa manhã de sábado. Parabéns
senhor Stallone Cobra. Muito machão o senhor.
— Tá de cara amarrada, que foi?
— Nada não — respondi. Se contasse tudo imediatamente, era bem
capaz dele relacionar minha cara-de-bunda com o sucesso do Boca e isso
estava fora de cogitação. “Nem a pau” como a gente dizia no colégio. Não
assumiria isso a um padre.
— Alguma coisa foi, cara. Cê tá mordendo a bochecha.
Verdade...
Sempre tive essa mania, o Tico conhecia bem meu jeito de “estragado
da vida”. Eu ficava mordendo os dentes — se é que dá para entender o que
é isso. Quando eu fazia isso o lado de fora do meu rosto ficava pulando. Eu
controlava muita coisa na vida, mas essas mordidas não. O ruim de ter um
amigo que te conhece a vida inteira — além de no meu caso, o Tico não me
ajudar em quase nada — é ele conhecer esses detalhes. Eu precisava de uma
boa desculpa e por sorte tinha uma pronta. Pelo menos para isso a Janaína
servia.
— Foi a treta com a Jana. Acabei ficando nervoso.
— Só isso mesmo? — insistiu. Médium eu sei que o Tico não era (ou
teria em uma casa bem melhor), então era só bater o pé que ele engolia. Fiz
isso.
— É sim. Ela chorou e eu fiquei puto.
Andamos uns cem metros quietos e depois disso, entramos no Oasis.
Velhos capengas no balcão, a tevê sintonizada no pior canal, um vidro
enorme com azeitonas de Marte e outro com ovos de codorna verdes e
semiderretidos.
— Seu Luiz; vê duas Brahmas pra gente — pedi. Fiquei olhando os
ovos verdes, me senti um deles. Inútil e indigesto.
— O povo tá falando que a Antártica tá melhor. Acho que é por causa
da água — disse Tico como se entendesse muita coisa de cerveja. Se eu
trocasse o rótulo, beberia até meu mijo. Certeza. O Luizinho — dono do
Bar — ficou me olhando com cara de tonto.
— Brahma, Luizinho. Geladaça, hein?
Luizinho pegou a prometida.
Deus! Como eu fiquei feliz em ver aquela garrafa esbranquiçada;
parecia ter acabado de sair de dentro da neve. Loira, maravilhosa. Talvez
até esquecesse o Boca tomando dela.
— Vê um solto pra mim, Luiz? — pedi.
— Você não tinha parado de fumar?
Esse tipo de pergunta merece no mínimo uma resposta como: “É, e
parei de comer sua mãe também”, mas eu tinha mais coisa para perguntar,
então acabei sendo educado: — Isso é problema meu, Tico. Vai um?
— Quero sim.
— Vê dois, Luizinho — resolvi pagar um estoura-peito para o Tico.
Ficaria mais fácil arrancar alguma verdade sobre o Boca. O Tico também
tinha mania de querer me agradar quando estava são; e sempre na hora
errada. Se eu perguntasse quanto tinha sido o jogo (no caso do meu time
perder uma partida; coisa rara), a resposta era sempre: “Quer comer alguma
coisa?” ou coisa parecida. Ele bêbado com uns cigarros na boca era
diferente? Tico cantava feito um canarinho querendo fêmea, nada de se
preocupar se me agradava ou não. Era disso que eu precisava.
— Dia bonito — ele falou.
— É...
Pensei em ir direto ao assunto antes que o alvará do cara vencesse. Se
eu conhecia bem a Liz e a Jana (e pode apostar nisso) elas dariam umas
duas horinhas de induto para gente, no muito. Eu, quando se tratava do bar,
deixava o celular em casa. Esculacho por esculacho, preferia ouvir tudo de
uma vez. O Tico não, ele andava sempre com o maldito GPS enfiado no
bolso.
— Lembra do Boca? — perguntei. Fiz questão de parecer casual. Foi
como se eu perguntasse: “Tá sentindo esse cheiro?”.
— Não — ele respondeu, mais casual ainda.
Droga...
— Claro que lembra. Você era amigo dele até que ele te deu um passa-
fora.
— Não lembro mesmo.
Não acreditei outra vez. Uma que eu achava difícil que ele esquecesse
qualquer pessoa com sua memória de Jedi. Outra, que sempre que ele
escondia alguma coisa, desviava os olhos. É... Eu também sabia jogar
segundo a cartilha dos melhores amigos. Conhecia aquele filho-da-mãe
desde que roubava palito de sorvete premiado no boteco do Raul. Aqui
nesse mesmo bar, mas bem antes que a cabeça do Raul ficasse branca e seu
coração ameaçasse estourar no peito o obrigando a passar o ponto. A sorte
dele foi que isso aconteceu em cima da esteira do médico. Muita sorte
mesmo.
— Aquele que falava besteira pra caramba, o pessoal chamava ele de
“Boca-Suja” — reforcei.
— Não lembro mesmo. Já falei. — Dessa vez eu quase acreditei nele.
E de qualquer modo, seria questão de tempo para ele abrir o bico se
estivesse mentindo. A cerveja e o Tico tinham essa combinação de caso
Roosevelt com History Channel. Mais duas ou três goladas e ele entregaria
tudo.
Dei algum tempo a ele e insisti:
— Ele saía com a Mariana, antes de mudar da cidade.
— Juro que não lembro.
Agora me dava nos nervos! Não queria chegar ao ponto crítico, mas
sabia de um detalhe que faria o Tico lembrar fácil do Boca. Uma manchinha
intestinal no passado dele. Mesmo que ele realmente não se lembrasse do
cara, quando eu tocasse no “assunto esquecido” a memória voltaria como
uma fotografia de alta definição. Olhei bem para aquela cara cheia de
buracos de espinhas extintas e pensei se deveria mesmo jogar mesmo minha
bomba em cima de seu formigueiro. Claro que sim... Até porque ele estava
se fazendo de besta.
— Não fica puto comigo? — perguntei. Ele fez um não meio inseguro
com a cabeça e eu disparei:
— Foi aquele cara que sua mãe pegou com você atrás da casa. Aquele
que... Cê sabe...
A expressão do cara mudou. Fiquei com pena. Mas quem mandou
fingir que não se lembrava do Boca? O que eu podia fazer? Nem era para
ele ficar tão puto assim. A coisa do troca-troca era normal na cidade quando
a gente era moleque. Não tinha muita coisa a ver com homossexualismo,
era mais como uma piada suja, ficar esfregando nossos pintinhos
minúsculos. Só que ele fez e foi pego... Foi por isso que ele desistiu do
Boca e voltou a ser meu melhor amigo. Alguém deve tê-lo entregado para
mãe superprotetora. Alguém com ciúme... Talvez um ex-melhor-amigo
abandonado.
O rosto do Tico estava vermelho, ele olhava para o outro lado, sem
coragem de me encarar. Algumas coisas a gente guarda em um buraco tão
fundo, tão fundo, que pensa que ninguém nunca vai puxar para cima. Então
chega um filho da mãe e faz. Eu não faria isso, mas toda essa coisa do
Boca... O Boca? Escritor? Tá bom, Deus; e qual vai ser a próxima? O
capeta na portaria do céu? Absurdo...
— Você jurou pra mim, cara — disse ele com a mão tapando a boca.
Fazia aquilo para não mandar eu me ferrar.
— Tá; eu juro de novo que não falo mais disso, mas pelo menos
lembrou?
— Vamos embora — disse. Depois uma golada na cerveja. Os olhos
encheram de lágrimas com o gás da Brahma. O cigarro continuava
moscando no cinzeiro; quase apagado em desprezo. O Tico nunca foi bom
nessa coisa de encher o peito de fumaça. Eu sim.
— Dá um tempo, vai... — pedi.
Se eu continuasse conversando, ele desistiria de ir embora. O perigo
com o Tico era quando ele ficava quieto e pensava demais. Se isso
acontecesse, precisaria procurar outra pessoa para saber do Boca — e não
havia outra.
— Lembrei sim. Nunca mais a gente tinha falado dele — disse ele. —
Achei que era outra pessoa. Você sabe que eu tenho motivos pra não falar
dele.
— É que eu vi um negócio no Facebobo que eu não acreditei —
contei. Certeza que o Tico ficaria mais doido da vida que eu, afinal ele era
bem mais ferrado na vida que eu. E tinha aqueles dois filhos pequenos que
iriam ferrar com o resto dos seus dias até saírem de casa, lá pelos vinte. Se
fossem iguais ao Tico, dariam despesa até os trinta.
— O lance dele escrever? — perguntou-me.
— Epa, epa! — falei contrariado. Meu cigarro quase caiu da boca.
Devo ter falado alto visto que uns cachaceiros do bar voltaram seus olhos
vermelhos para mim. — Cê não falou que não lembrava dele?
— Não. Eu falei que não me lembrava do Boca. Conheci uns quatro
Bocas na vida, cara... É um apelido comum. Se você tivesse dito que era do
Boca que escreve eu teria lembrado.
Ou do boca que te molestava atrás da casa, pensei sem dizer nada.
— Tá bom, vai... O que você sabe sobre isso de ele escrever?
— Para que isso, agora? Deixa o cara, meu. Ele tá feliz; casou. Nem é
mais aquele cara sujão da escola. Todo esse seu estresse é por causa disso?
Joguei a toalha e disse:
— É sim. Não me conformo como ele está bem de vida. O cara tá
famoso, Tico. E eu? E você? A gente continua enterrado aqui nessa cidade
fecal.
— Sei lá... Não me sinto tão enterrado assim. — Seu celular começou
a tocar em seguida. — Vou atender — disse tomando alguma distância. Deu
para ouvir tudo do mesmo jeito.
“Alô?... Oi, amor... Hum-rum... Daqui a pouco eu tô em casa. Coisa de
meia-hora. Tá bom... Tô com ele, sim. Tá... Eu falo. Calma, Liz... Fica
calma. Tchau... Te amo... Tchau”.
Eu detestava aquela melação de “te amo”. Só falei isso para a Jana
quando nos casamos e umas duas vezes em que ela brigou comigo até ouvir.
Era um saco ouvir o Tico falar com a mulher, todo aquele mel.
— Pô, Ticão. Não sei como você não ficou puto com ele se dando bem
— disse quando ele voltou.
— Vai ver o cara mereceu, sei lá...
— Como assim? Alguém como ele não merece nada que não seja dado
pelo governo. Até a porcaria do bolsa-família seria exagero. Ele não merece
se dar bem. Não mesmo. Eu é que merecia isso.
— Você escreve também? — perguntou. Não sei se foi uma espetada
ou mais uma prova do QI de lesma que ele tinha (era verdade, metade das
provas de matemática que ele tirou mais de seis foi porque colou de
alguém, apesar da memória de Jedi, seu raciocínio era pedante). Preferi
acreditar na burrice mesmo.
— Não, Tico. Mas posso começar. Se um cara igual ele conseguiu, eu
também posso.
— Ele tá na cidade, sabia?
— Como você sabe?
— Pelo Face.
Porra; devia ter adicionado o merdinha logo.
— E onde ele está ficando?
Que eu soubesse, ele não tinha parente nenhum na cidade.
— Isso eu não sei — respondeu o amigo da onça à minha frente. — É
melhor a gente ir embora. Tá tarde.
— Melhor mesmo — concordei.
Deixei-o pagando a conta toda e saí acelerado. Estava com muita raiva
para falar com ele pelo caminho de volta. Traíra... Sabia do sucesso do
Boca e não me contou nada. Ele me enganou; isso sim. Depois de tudo o
que eu tinha feito por ele. Se não fosse por mim, Tico morreria virgem. Até
o cabaço do Tico eu ajudei a arrancar pagando uma vadia. Mas isso acabou
naquela mesa de lata da Antártica que cheirava cinzeiro cheio e mentiras,
nunca mais...
Voltei pra casa e remoí a história o dia todo. Adicionei o Boca na
porcaria do Face (depois de apagar todas as minhas fotos para que ele não
visse minha derrota) e isso só me deixou mais frustrado. Ele estava muito
melhor do que eu pensava. Sua mulher dava de dez na minha, ele ricaço,
reconhecido pelo estrondo de venda do primeiro livro. Estavam pensando
inclusive em transformar o tal livro em filme. Como assim? De repente ele
tinha virado a bunda para a lua e se tornou o “senhor maravilha”.
Inacreditável! Ah, como eu queria escrever um memorando para Deus e
corrigir tanta sacanagem. Tem gente que devia ficar enterrado no passado e
eu amaldiçoei aquela tela azul maldita do fakeboot para sempre por trazê-lo
de volta. Preferia ser um analfabeto a ler todo aquele confete jogado no
Boca.
Acabei sem falar com a Jana o dia todo. Por sorte, ela tinha
cabeleireiro — como toda a semana. Se ela não fosse tão lenta, pensaria que
a Jana estava me pondo chifre. Era o que faltava mesmo; um chifre...
Grande e envernizado como um alce besuntado de óleo diesel. O sábado
passou lento e quando o relógio marcou oito da noite eu estava explodindo
em dor de cabeça. Revia fotos do imbecil que pensava ser o Edgar Allan
Poe. Ele continuava com a mania de vestir camisas de flanela. Na cabeça
dele, devia estar em Seattle e não na nossa terra de índio onde faz quarenta
graus na sombra. E um cara desses tem talento... É muita cretinice para um
universo só. Vai ver que existe mesmo essa coisa de universos paralelos e
esse aqui é um dedicado aos meus pesadelos.
Aproveitei que a dona encrenca não estava em casa e fui dar uma volta
com meu carro ferrado. Fiquei com raiva de novo ao ver a porcaria de carro
que eu tinha: Fiat-Uno, noventa e cinco. O escritor boca suja arrependido
tinha um Corvete. Vi no Face... Aquele sujo tinha muita sorte. Se eu apenas
pudesse tirar aquele sorrisinho do rosto dele... Estragar aquela cara de pau
que sorria entre os meus amigos de mentira do Face. E os cabelos dele?
Pensei que ele iria ficaria careca antes dos vinte e o cara tinha pelo menos
dez vezes mais cabelo que eu. E estava bonito. E eu feio e decadente. E ele
em ascensão. Acelerei mais um pouco tomando o rumo da Avenida James
Dean como o pessoal daqui chama. Uma avenida larga e mal iluminada, boa
para tirar rachas.
Já estava nela quando pensei que meus olhos estavam criando
fantasmas. Era a porra de um Corvete! E com um cara loiro de camisa de
flanela pedindo ajuda!
Era a minha chance de acertar os pontos com o destino, isso sim.
Quebrar um Corvete era muito azar para um cara de sorte, mais azar ainda,
eu estar por perto.
Parei uns cinquenta metros à frente — para dar tempo de abrir meu
porta-malas e pegar a chave de roda antes que ele chegasse até mim. Desci,
apanhei a tal chave e fiquei esperando com a cabeça dentro do porta-malas.
Esperei que o som dos passos aumentasse, até ter certeza dele estar no
alcance da pancada. Encontrei no porta-malas uma canga da Jana e amarrei
na cabeça, entrou um pouco de areia de praia nos meus olhos (tínhamos ido
para o Caraguatatuba há duas semanas, coisa de pobre), mas eu nem liguei.
O rádio estupidamente alto do Corvete tocava Misfits; Last Caress. Ele
sempre gostou dessa porcaria de banda que só falava besteira e palavrão.
Pelo jeito, ainda gostava. Escritorzinho bicha e sem gosto para nada.
Apertei forte minha mão contra a chave de roda. Tremia. O suor começou a
brotar nas bolsas dos meus olhos. Não estava tão quente, mas minha raiva
compensava a temperatura.
— Obrigado por parar, irmão... — disse aquela voz ao mesmo tempo
distante a familiar. Era ele sim. O cara que tinha tudo o que deveria ser
meu.
— Azar filho-de-uma-puta acontecer isso, não é? — eu disse.
Mantinha a cabeça baixa. Eu queria ouvir um palavrão da boca dele. Ouvir
uma besteira bem suja que atestasse que ele não merecia um centavo do
destino. Merecia uma surra, um supercílio aberto e um mês na cadeira de
rodas. Eu daria isso a ele. Eu mostraria a ele, em alguns minutos, o
sofrimento que ele me causou por ser o senhor bem sucedido famoso. Podia
ouvi-lo dizendo com todos os palavrões do mundo, que era azarado e que
aquele carro era maldito e todas as expressões de baixo-calão que sairiam
pela sua boca anal mal escovada. Ninguém muda tanto assim, em algum
lugar ele ainda era o mesmo arruaceiro de sempre. Eu só queria uma
prova... Eu ansiava junto com meu estômago torcido por um palavrão
sagrado.
— Foi uma tremenda falta de sorte — ele disse. — Dei azar, irmão...
Tremenda? Que tipo de palavrão era aquele? Onde estavam as palavras
imbecis e expressões mal conjugadas? Cadê o maldito Boca-Suja que não
seria capaz de fazer mais sucesso que eu? Ele estava ali em algum lugar,
quem sabe umas pancadas com minha amiga chave de rodas o trouxesse de
volta?
O primeiro golpe acertou sua cabeça que balançou como um saco de
areia. E nada de palavrão quando caiu de cara no chão sujo. Chutei a
barriga dele em seguida, até que cuspisse sangue. E nada saiu a não ser um
“por favor” empapado de cuspe. Eu não podia acreditar...
Continuei batendo no safado, sempre tomando cuidado para que ele
não visse a placa do meu carro. Golpeei o maldito por quase quinze minutos
e quando parei para tomar fôlego, ele estava acabado, sem forças e com as
pernas arreganhadas, semidesmaiado no chão, sem que nem um simples
“desgraçado” tivesse saído por sua boca. Seus palavrões estavam em algum
lugar esperando para sair. E eu chutei suas pequenas bolas como se chutasse
o saco do destino por não perceber que eu merecia um futuro melhor que o
daquele retardado. Ele apagou. Chutei de novo na cabeça; balançou como
um balão de hélio. Verifiquei se estava respirando — não queria matar
ninguém. Deus não perdoa essa coisa de matar. Só se você for um Rei Davi
ou outro canastrão da Bíblia.
Ele estava vivo, então entrei no meu carro e parti. Antes de casa,
passei em um posto de gasolina para me limpar e me certificar de não ter
sangue daquele covarde sortudo em mim — nem tão sortudo agora, com
metade da boca amolecida na pancada. Vingado e disposto a perdoar o
destino por ter se enganado, voltei para minha casa. No fim, o destino me
permitiu acertar as coisas. Chegando por lá, me acertei com a Jana e foi só
no dia seguinte que pensei direito em toda a porcaria que havia feito. Pensei
e sorri. É bom quando e gente vê a droga da justiça funcionar. Eu fui um
bom juiz...
Dei uma corrida na internet para ver as notícias, procurava uma em
especial: a de um escritor medíocre espancado. Estava me batendo aquela
insegurança de ser pego, saca? Eu tinha sido cuidadoso, mas quando a
polícia quer pegar alguém, eles pegam. E esse cara com a bunda-pra-lua
devia ter grana para comprar a cidade toda. Penso que ele nem precisaria
gastar com isso, a polícia daqui não gostaria de ter um filho ilustre
espancado na James Dean. Mesmo que fosse um Judas que fugiu da forca
chamado Boca.
ESCRITOR FAMOSO ESPANCADO NA AVENIDA JK, dizia o
jornaleco on-line da cidade. A reportagem dava mais crédito para a
violência do que pra ele. Assim pareceu. Ele disse aos repórteres que não
reconheceu o estranho, nem o carro ou os motivos do espancamento. A
polícia achava que era acerto de contas e eu fiquei assombrado por um três
meses, receoso que algum detetive batesse aqui em casa. O Tico me
espremeu algumas vezes, perguntando se tinha sido eu. Eu sorri e menti, e
ele sabia disso. Mas ele sorriu de volta. Acho que ficou feliz em ver aquilo
acontecer com o cara que molestou seu loló. Eu ficaria...
Minha vida continuou e a dele também depois que saiu do hospital.
Ontem fiquei fodido da vida (de novo) quando recebi um pacote dos
correios. Uma carta registrada de uma editora. Não qualquer uma, mas a
editora que eu soube ter sido montada pelo babaca que eu espanquei. Fui
até o quarto onde fica o computador para ter alguma privacidade (como se
fosse possível ter isso depois de casado... só dando uma cagada mesmo, isso
se a mulher for legal, senão ela entra e você corta a coisa no meio com o
susto, e isso dói pra caramba), e abri o envelope. Tinha uma reportagem do
babaca que eu deitei ao chão. Ganhando um prêmio internacional e
segurando um troféu bonito e um cheque que pesava mais que a minha
conta no banco. Também tinha uma cartinha escrita à mão na minha
encomenda. Vou contar o que estava escrito.

“Caro senhor, Randall (esse sou eu). Como o senhor deve ter lido no
anexo que lhe enviei, acabo de receber reconhecimento internacional pelo
meu novo livro. Tive tempo de escrevê-lo depois que fui brutalmente
espancado pelo senhor e por isso venho com essa nota, agradecê-lo.
Sempre soube que foi você quem fez aquilo comigo, mas imagino sua
infelicidade em reconhecer no passado alguém que vive tão melhor que
você (foi esse o motivo, não é? Inveja?... eu sei que foi por isso). Tão
grande a ponto de espancar-me quase até a morte. Como o senhor pode ler,
eu não morri. Também não me restou uma única cicatriz visível daquela
noite — felizmente posso pagar bons médicos.
Caso o senhor pense em chegar novamente perto de mim ou de minha
família em um dos muitos passeios que farei novamente à nossa cidade,
saiba que será recebido à bala (e que as pessoas que trabalham para mim
não costumam errar). Não sou mais o garoto-encrenca que o senhor
conheceu e espero que compreenda isso. A vida que eu tenho é melhor que
a sua, (muito melhor) e vai precisar arrumar um jeito de conviver com essa
verdade e com a inveja que penso que sinta. Sobre os palavrões que
esperava tanto ouvir (sim, você pediu para que eu os dissesse naquela
noite), eles nunca fizeram nada por mim e por isso os abandonei como
abandonei vocês todos. Sugiro que faça o mesmo. Novamente agradeço
pela oportunidade de ficar ainda mais rico e famoso.
Peço novamente, que deixe o câncer que você se tornou, bem longe de
mim — ou terei que machucá-lo bastante.
Seu amigo de sempre:
Boca (escritor, rico, famoso, com mais cabelos e mais bonito que
você).”
Posso fumar aqui?

EU ACHO DIFÍCIL contar alguma coisa quando não se tem muita


certeza de como aconteceu. As palavras de um ébrio têm essa mania de
vestir fantasias e por mais que você tente enxertá-las nas frases, elas
acabam se disfarçando e fazendo o que querem. Foi assim com a história
daquele cara, dos meus amigos e com a minha própria. O cara? O maldito
chinês gótico.
Era um domingo abafado de dezembro, nós já tínhamos tomado todas
e o Tião estava querendo fechar seu bar — passava das dez e o pessoal
começava a se achar cantor de banda de rock. Todo mundo que vai ao bar
da “Dilma versão homem”, acha que tem a voz melhor que a do Bruce
Dickinson (até eu). Já estávamos bem altos quando esse China chegou com
a testa sangrando. Pensamos que era assalto, o Tião desapareceu pela porta
dos fundos. Um dos caras que estava com a gente e é PM meteu a mão na
cintura procurando a arma que tinha ficado em casa. Ele é gente fina... Nem
parece polícia. Hoje penso se não teria sido melhor para todo mundo se ele
estivesse encontrado a arma naquela noite.
Quanto a mim, sou só um cara. É... Só mais um cara que detesta o
próprio sobrenome. Mas eu quero mesmo é contar sobre o China.
Depois que ele apareceu pingando sangue na porta com a testa aberta
feito uma laranja vermelha (e nós vimos que não se tratava de um assalto),
resolvemos falar com o cara; com o China muito-lôco. Estava todo de preto
com umas calças manchadas pela idade nas coxas e rasgadas nos joelhos.
Usava um cinto que chamava mais atenção que o ferimento, com uma fivela
de dragão também manchada de sangue vermelho. Certeza que era sangue.
O cabelo do cara era preto e escorrido como todo cabelo de China. O
diferente era a franja que chegava pela cintura enquanto o resto morria um
pouco acima do ombro. Nas mãos, seus dedos usavam braçadeiras —
daquelas que a gente usa na mangueira do gás pra apertar —. Unidas, eram
um soco-inglês. Quando viu que tudo estava seguro o Tião — dono do
boteco — voltou depressa dos fundos e foi pegando uma vassoura, tentando
expulsar o China. O Neguinho que era o cara mais justo do mundo — e
também o mais bêbado — resolver interceder pelo forasteiro.
— Tudo bem com você? Parece que acabou de sair de uma briga, esse
sangue aí é seu?
— Posso fumar aqui? — perguntou o China em vez de responder.
O estado de São Paulo tem essa porcaria de lei que proíbe fumar
cigarros dentro de lugares fechado. Naquele bar nós fumávamos; até o dono
do bar fumava. Quando chegava algum polícia, o Gambá (o amigo PM que
eu disse que estava por lá) dava um jeito de aliviar as coisas. Fumar deveria
ser considerado um direito natural do homem, como peidar quando a
música está alta e a noite fria. Você sabe que vai incomodar, mas mesmo
assim você faz. Se eu falar mais bobagens como essa, é que... Eu tô meio
tonto ainda, faz tempo. Acho que é efeito da coisa que o China deu pra
gente, mas ainda não chegamos nesse ponto da história. Tenho que contar
mais sobre o China para você entender isso...
O neguinho o colocou definitivamente para dentro do bar sem ligar
muito para o que o dono do boteco com cara de Dilma pensava; como
sempre. Ninguém respeitava muito o Tião, nem ele mesmo. Era um tipo
sovina e interesseiro — apesar de divertido —, que como todo dono de bar,
vivia da desgraça de caras que acabavam com o salário na garrafa, caras
como nós. Seu estabelecimento nem deveria ser classificado como bar; era
uma garagem cheia de malucos e outro maluco (pior) servindo.
— Senta aí, cara — eu disse.
O China deu uma suspendida na calça e acendeu um cigarro. Marlboro
branco. Eu também gostava daquele cigarro, macio e açucarado. Depois de
sentar-se, tirou as braçadeiras dos dedos e cumprimentou a todos nós. As
mãos estavam raladas. Deve ter feito um estrago e tanto nos oponentes.
— Séca essa testa, aí — Gambá disse a ele. Estendeu um lenço.
— Tá tudo bem. Acabei de sair na mão com uns caras, um bando de
Skin-Heads. Esses maditos depilados não gostam de cabeludos.
— Não mesmo — concordei. Também já tinha apanhado dos carecas.
No meu caso não foi por causa do cabelo. Eu estava com uma camisa do
Raimundos e levei na moleira por isso. Disseram que eu estava “dando
moral para nordestinos”. Por sorte sou muito magro, então consegui correr
antes de perder um dente (ou vários).
— Vou sair e dar uma dura nos caras. Onde os filhas-da-puta te
pegaram? — perguntou Gambá.
— Na rua da prefeitura. Uns seis ou sete carecas. Só escapei porque
acertei um deles no rosto com a fivela — (eu sabia que era sangue; conheço
sangue). — Pra ser gótico, tem que aprender a bater, regra número um —
disse o China-sem-noção dando uma risadinha. A gente riu junto.
Não seria muito esperto de nossa parte tentar impedir o Gambá.
Depois da quinta cerveja (e ele já estava na oitava), ele entrava no modo
automático onde espancar e abusar do poder do distintivo era trivial. Saiu
do bar cantando pneu e era bem provável que depois de uma volta no
quarteirão, voltasse contando que botou os caras pra correr sem, na
realidade, ter encontrado ninguém. E com certeza não iríamos contrariá-lo
depois de oito Antárticas.
Os carecas...
Desde que começou a se falar em copa do mundo no Brasil, a polícia
da capital estava descendo o bambu na bandidagem. Como não tinham onde
se esconder, (quando a polícia quer pegar alguém ela pega, parceiro; não
tenha dúvida disso) eles acabavam descendo pelo ralo até o esgoto do
interior. Eu moro bem no meio dessa lama, Vale do Paraíba. Entre o Rio e
São Paulo. Imagina só o paraíso do ilícito que estava virando isso aqui. Fora
que junto com a bandidagem veio o resto: mulher fácil, grana, droga e
pancadaria. Essa turma de carecas havia chegado há uns dois meses a até ali
fizeram o possível para mandar na banda podre da cidade. No bar erámos
todos de paz, o mais estressado era o França que estava preso desde que
bateu na mulher dele. Coisas da bebida, amigo... Não o julgue por isso.
— Aumenta o DVD, Tião — pediu Neguinho. Ele adorava duas coisas
na vida: álcool e Rock and Roll. Gente boa. Um Pelé meio desbotado e em
miniatura. E o cara mais sistemático que eu já conheci; professor de
português na escola do estado.
O Tião fez o que o neguinho pediu e a bebedeira continuou.
Foi depois de duas rodadas de cerveja que notei o China tomando uma
pílula verde. Verde e brilhante, como os olhos de uma espanhola.
— Que é isso aí, cara? — perguntei. Os outros cresceram os olhos
junto comigo.
— Remédio — ele disse. Engoliu antes que alguém tirasse da mão
dele.
— Que remédio?
— Pro estômago — respondeu rindo. O China não era bom em mentir
como seus amigos que infestavam o centro.
— Conversa... Me dá um — pedi.
— Cara, se eu fosse você não tomava essa isso. Não sem saber o que
ele faz. O bagúio é lôco.
— Não é pro estômago? — perguntou Tião.
Ele também não era muito esperto. Deve ser por isso que a “dona
Maria” meteu uma galhada naquela cabeça cinza. No fundo eu tinha pena
do Tião Dilma. O pessoal do bar dizia que ele tinha grana antes da esposa
levar metade da rua para cama de casal dos dois. Tião ficou desiludido e
acabou queimando tudo. Agora, comia do pouco que a gente gastava no bar
aos domingos.
— Acho que não, Tião — falei. Com muito jeito para que ele não se
sentisse um idiota.
— Conta aí, ô Pérola-do-oriente. O que o comprimidinho faz? —
perguntou outro colega nosso. Um paquiderme sem educação chamado
Gonçalo. Um homem que não precisava fazer muito para arranjar encrenca.
Penso que ele existir já era uma puta confusão do Céu. Gonçalo era um
espartano de grosso. Com a intimada sútil do nosso amigo, o China
resolveu falar:
— É tipo um... Um... Um upgrade na bebedeira.
A expressão de dúvida começou a tomar conta de nossos rostos
vermelhos. Gonçalo acendeu outro cigarro e sentou do lado do China.
— E de onde vem essa coisa?
— Da Tailândia. Meu primo veio de lá e trouxe um monte delas.
— Quanto é um monte?
— Uma caixa de sapatos cheia. Eu tenho um pouco aqui comigo e
acho que era isso que os caras sem cabelo queriam, meu primo andou
vendendo essa coisa pra eles. Deviam querer mais.
— E esse comprimido faz exatamente o quê? — perguntei. O China
fez uma cara esquisita tentando não contar muita coisa. Olhou para a porta
do bar e meio que se levantou. Gonçalo, usando sua delicadeza, apoiou a
mão nos ombros do China, pediu para que ele ficasse mais um pouco. China
tentou olhar para a porta, calculou suas chances e decidiu abrir o bico.
— Ele mantem a gente chapado.
— Como é? — perguntei. Juro que pensei ter ouvido errado.
— Te mantêm lôco, cara. Se você estiver cheirado, fica cheirado; se
estiver bêbado, fica bêbado.
— Por quanto tempo? — perguntou Tião.
— Sei lá...
— E como faz pra sair da chapação? — perguntou Gonçalo.
— Você precisa do comprimido branco — respondeu ele, tirando um
desses do bolso da calça. Estavam embrulhadinhos em um papel alumínio.
Coisa de amador mesmo. O primo do China deve ter trazido essas coisas
para cá dentro do intestino, como uma mula cheia de coca. China
continuou: — Acho que eram esses que os caras sem cabelo queriam, não
do verdinho.
— Você já tomou? — perguntei.
— Já sim. Tomo direto. Economizo uma grana com eles.
— E você fica... tipo... Bêbado direto? — perguntou Neguinho,
interessado. A gente gastava bem no bar, mas ele era o único cara que
conseguia dever quatrocentos paus no Tião. E tem que beber muito para
isso...
O novo amigo respondeu:
— Você dorme e acorda bêbado, até tomar o branquinho.
— Me vende um desses — pediu Gonçalo.
— Eu dou um, cara. Fica valendo pela ajuda de vocês.
No fim todo mundo mandou um comprimidinho verde para dentro.
Rapaz... O mundo ficou rosa na hora. Parecia que tudo ia acabar bem, que
toda mulher era bonita e que aqueles dois ou três bêbados no bar (incluindo
o China) eram os caras mais inteligentes e gente-fina do mundo. A coisa
além de segurar o álcool no sangue, deixava a gente no ápice do efeito.
Abraçamo-nos, nos elogiamos com todos os adjetivos que conhecíamos e
choramos. Bêbados como um bando de colegiais abraçadas no baile de
formatura. Deve ter sido a coisa mais ridícula do mundo (quase gay... eu
escrevi quase!).
Passadas as doze badaladas, era hora de eu ir embora para casa. Todo
mundo estava tão louco que esqueceu completamente da porcaria do
comprimido branco. Até o China foi embora tropeçando nas palavras.

Minha noite de sono passou voando apesar de eu ter dormido quase


seis horas. Quando acordei, minha mulher já tinha saído para o hospital —
ela trabalha lá, é enfermeira. Eu sabia logicamente que estava acordado e
tomando banho para ir ao trabalho, mas sentia que estava me preparando
para uma festa. Estava elétrico, feliz da vida e com a autoconfiança de uma
águia com fome. Eu ia arregaçar no trabalho! Nem me importei com o fato
do meu trabalho ser uma bosta, e eu, um vendedor de material de
construção. Sabe como é... A gente precisa ganhar o pão... Não que eu fosse
qualquer vendedor, estava bem à frente do resto dos outros vendedores que
não faziam nada para subir na carreira. Eu fazia, queria chegar longe e sabia
como conseguir. Na verdade, aquela segunda-feira animada me pareceu um
dia excelente para fazer qualquer coisa. Sentia um pouco de desorientação,
mas devia por causa da porcaria do comprimido que eu achava que tinha
tomado e não lembrava para que servia. Não naquela segunda-feira, minha
memória era praticamente um Deja-vu com eco.
Acabei preferindo caminhar até o trabalho com a esperança que a
tontura diminuísse.

Não pareceu resolver apesar dos dois quilômetros que me separavam


da loja onde o cliente é o rei. Rei-Tardado, pensei rindo sozinho pelo
caminho. Quando cheguei na loja, estava um pouco suado, mas ainda muito
feliz. Nunca tinha visto um dia tão bonito ou tanta mulher bonita na vida.
Até a velha fofoqueira que limpava a calçada da frente da loja a cada meia-
hora estava... Ela estava... Quente. Eu sei que ela não deveria parecer
gostosa, mas se me desse mole naquela manhã, eu pegava. Se eu não fosse
casado, claro.
Dentro da loja, os caras de colete estavam com a mesma cara de bunda
de sempre, com todo aquele velório da segunda-feira. Logo que entrei, a
Shirley (uma crentinha que trabalhava no RH) veio me receber. Parecia
tensa...
— O Senhor Oswaldo está uma fera com você. É melhor falar com
ele...
— Primeiro eu vô mijá — respondi como se fosse a coisa mais natural
do mundo. E era... Mijar é uma coisa bem natural. Mas Shirley arregalou os
olhos como se estivesse vendo o capeta de sunga. Eu arregalei os meus de
volta e reparei como ela andava bonitona, bem interessantona ela (apesar de
esconder tudo naquela saia de crente). Eu nunca tinha percebido como era
cavalona, acabei pensando alto:
— Se me der mole, eu pego! Capetona.
Rapaz...
Ela ficou vermelha, roxa, azul, verde e depois voltou a ficar branca de
novo. E alguma coisa estava errada com a minha cabeça, algo assoprava
que eu estava feliz demais para uma segunda-feira e que a Shirley não era a
Julia Paes que parecia.
Saí correndo de perto dela e estava quase chegando ao banheiro
quando vi o seu Oswaldo com sua barriga que cobria o pinto vindo em
minha direção. Estava com uma cara azeda e ia dizer alguma coisa quando
eu me adiantei:
— Senhor Oswaldo; bom dia. O senhor vai esperar um pouco para
defecar em mim porque agora tô indo urinar. Senão vou sujar o chão todo,
além da minha roupa. — As atrocidades que eu falava saíam um pouco
empapadas, principalmente os “esses” que eu trocava por “xis” e os “éfes”
por “zês”, e eu tentava desesperadamente não falar nenhum palavrão
mesmo morrendo de vontade.
Oswaldo fechou mais ainda a expressão, achei que seu olho
desapareceria para sempre dentro daquele rosto gordo e oleoso, mas ele
simplesmente saiu da minha frente. Talvez tenha ficado com medo de eu
acertar urina no pé dele ou no chão.
Tive alguma dificuldade em achar o meu pinto, confesso — estranho,
porque ele não era tão pequeno assim. Não era nenhuma vara de marmelo,
mas não me fazia passar vergonha. O que ele perdia no comprimento,
compensava na largura e dizem que a mulherada gosta quando o “zézão” é
assim. Depois que consegui encontrá-lo, me aliviei como um cavalo. Como
um camelo na verdade. Um camelo que tinha bebido toda a água do Egito.
Num flash, enquanto ouvia a água caindo, lembrei-me do China. Fiquei
com vontade de rir. Rapaz!, como eu estava me divertindo. Não lembrava
em ter tido um dia de trabalho tão feliz e eu só estava ali há dez minutos!
Mas tive um pensamento infeliz: planejei de sair dando a mão pra todo
mundo sem lavá-las. Claro que fiz aquilo; saí dando “bom-dias” e rindo por
dentro a cada cumprimento. Depois de toda essa finesse, cheguei à minha
sessão. Vestia meu coletinho amarelo. Esperei o primeiro cliente para
atender com um sorriso nos lábios.
Não precisei esperar muito e um cara todo social se aproximou. Não o
conhecia, mas o seu Oswaldo — que andava me olhando a distância (como
se estivesse querendo dar para mim) —, pareceu tremer quando o homem
de terno veio conversar comigo. O estranho tinha uma cara de besta, meio
almofadinha, mas como eu não era pago para avaliar o DNA das pessoas,
resolvi atendê-lo. E bem. E eu estava feliz, o que deixava tudo mais fácil.
— Pois não, doutor; posso ajudá-lo? — perguntei. Todo cheio de boa
vontade.
— É assim que atende os seus clientes... Senhor... — disse ele,
tentando ler o meu crachá sem conseguir.
Supus que ele não tinha gostado do adjetivo doutor, mas como eu
podia saber que o cara não era advogado? Alguém vestindo terno em um
calor bravo daqueles? Seu Oswaldo vinha em minha direção, ligeiro feito
diarreia, tirando funcionários e clientes do seu caminho como um Huno na
savana. Fiquei até com medo. Depois pensei que o medo não pagava
minhas contas, então era melhor deixá-lo de lado (como eu fazia com a
minha mulher quando me enchia o saco e ameaçava me deixar). Parecia
mais importante dar uma resposta para o cara de terno que ainda me olhava
com cara de bobo. Acho que ele fez de propósito. Para me testar, sabe? Para
ver se eu sabia devolver um esporro. Acabei resolvendo de outra maneira
(com algum esforço com minha dicção semi-embargada).
— Não são todos os clientes, mas quando chega alguém com essa cara
de Roberto Justos a gente acaba dando uma diferenciada. O senhor com
essa pinta toda ou é doutor, ou ator da Globo. Mas isso não importa, não é
mesmo? O que importa é que eu lhe seja útil. Do que precisa, general? —
perguntei com um sorriso meio cínico, meio vencedor e meio mais-besta-
que-ele. O homem de terno se afastou um pouco, me mediu de cima-
embaixo e falou com a voz mais séria que eu já tinha ouvido:
— Qual é o seu nome, rapaz?
— É Edinaldo, General; mas pode me chamar de Ed.
— Ôôô, chefe — chegou Oswaldo, finalmente. Transpirando e
ofegante como se estivesse impedindo o assassinato de John Lennon. — Me
desculpe por iss...
— Cala a boca, homem! Venha rapaz, venha dar uma volta conosco.
Quero saber o que acha da loja e da administração — olhou para seu
Oswaldo. — Vamos Edinaldo, Ed, venha com a gente, meu filho.
Acompanhei os dois meio tropeçando nas palavras — e nos pés — e
acabei arrancando uma promoção depois umas duas doses de uísque na sala
do chefe. Saí de lá mais tonto ainda e só conseguia pensar na cara da minha
mulher quando eu chegasse em casa. Se bem, que quando eu falasse do
aumento, ela esqueceria minha chapação, mas se tratando de mulher... Bem,
com a minha, a gente só entende a piada no final. Mulher não se prevê,
ainda mais quando o assunto é Álcool e sua mulher é filha de outro bebum.
Aí, fodeu. (perdoe a liberdade de expressão...).
Quando estava de saída, depois das seis da tarde, topei de novo com a
crentinha do RH, a Shirley; quase a agarrei e esqueci que era casado. Para
mim ela era a gata mais gata-pra-caramba dali, não entendia como ainda
estava solteira. Fora que dizem que crente tem o nhau quente. (achei melhor
substituir essa parte da piada por nhau e supor que você entenda). Nunca
achei falta de respeito falar que uma mulher é quente, mas se tratando de
religião e cor? É prudente fechar a boca. Ainda mais no meu atual e
constante estado de alegria. E letargia.
Talvez você perceba que tem muita coisa aqui, que acabei escrevendo
zonzo. Não achei justo poupar coisa alguma já que resolveu ler essa
porcaria...
Cheguei em casa cheio de veneno... Louco pra ver o que o diabo gosta
e mostrar para dona onça minha cartucheira. Mas ela não estava querendo
ver nada além da novela. Como eu já estava valente por causa da bebida, saí
para o paraíso, para o bar do Tião-Dilma. Por sorte, minha esposa não
resolveu cheirar minha boca (não adianta me enganar e dizer que a sua
mulher (ou você) nunca fez isso. Duvido... Isso é programação base da
mulherada; cheirar a boca do cara e gastar no cartão; se você for mulher
troque “boca-do-cara” por “rabo-de-saia” e “mulherada” por “homarada”
que também funciona). Acho que ela resmungou alguma coisa que eu não
ouvi direito enquanto saía. Minha cabeça rodava feito um “Enterprise” de
parque de diversões — essa foi horrível, mas como eu estou chapado, não
vou procurar expressão melhor. Desculpe-me por isso...
Ah, o Bar... Como sempre estava animado, mas assim que entrei
percebi que havia algo estranho — como também havia comigo.
O Tião-Dilma era só alegria. Alegria demais.
Ele continuava bêbado, e sempre que ficava assim, deixava a grosseria
de lado e tratava os clientes feito amigos. Tão amigos que não precisavam
pagar para beber. Isso de não pagar acontecia bem pouco — só mesmo se
ele liberasse uma saideira —, mas com ele se mantendo naquele estado, o
bar-garagem virou open-bar. Eu aproveitei e tomei uma coca de graça
tentando melhorar a rotação da minha cabeça, não adiantou muita coisa, o
negócio verde do China era tenso. Coisa forte. Coisa pra Rock Balboa no
primeiro filme. Soco de gigolô nas joias da família.
Também recebi uma má notícia enquanto tomava minha Coca-Cola:
Gonçalo tinha se dado mal. Pegaram ele no bafômetro. Mas o problema
maior com Gonçalo nem era ser capturado. O problema era que sempre que
ele ficava chapado, se achava o Mike Tyson. E agora ele estava chapado
direto, igual a mim e a todo mundo do bar de domingo, ou seja: ia ficar um
bom tempo guardado na jaula da delegacia brigando com as grades.
A coca esquentava e eu começava a me preocupar com aquela porcaria
de bebedeira sem prazo para acabar. Se continuássemos bebendo,
acabaríamos desmaiando ou em coma alcoólico ou coisa pior. Coisa pior
como a que estava desembarcando de um gol branco.
Neguinho.
Ele estava horrível.
Neguinho, na noite anterior, havia acelerado na descida e entornado
mais do que conseguia segurar na barriga. Começaram os vômitos. Segundo
o Tião me contou, eles não paravam. Qualquer copo d’água fazia com que o
Neguinho soltasse o Tietê no chão. Nada ficava em seu estômago.
— Cara, você precisa me ajudar — ele disse quando entrou, se
escorando em qualquer coisa mais alta que o chão. Acabei o segurando e
colocando em um banco. Não consegui entender como ele tinha conseguido
chegar até o bar dirigindo, mas se tratando de um profissional do copo feito
o Neguinho, tudo era possível. Deus deve mesmo ajudar os bêbados... Só
não ajudou muito o Gonçalo, mas aquele era um cara difícil até para Deus.
Gonçalo era o homem mais suave do mundo e de repente se tornava um
imbecil que fazia questão de ser a fimose do universo. Não dava para ajudar
um cara como o Gonçalo-Bêbado. Talvez fosse melhor que ficasse
guardado por um tempo. Vivo.
— Precisamos achar o China, né? — perguntei. Eu estava bêbado
também, mas ainda tinha um mínimo de controle sobre minhas funções.
Não estava triste, nem muito preocupado. Eu estava no auge da bebida, na
fase em que você é agradável a ainda não se tornou um pesadelo social
disparando vergonha alheia. Vi que precisava tomar as rédeas da confusão.
— Vou achar o Gambá... Ele pode ajudar a gente a encontrar o China
— continuei.
Neguinho começou a rir debochado, Tião junto. Chatos como todo
bêbado-mais-bêbado-do-que você sabe ser.
— Acho que ele não vai ajudar muito... — disse Neguinho. Escorou-se
em mim para não rachar a cabeça no chão. Ele não tinha condições de mais
nada... Nada mesmo. Estava acabado, fim de carreira, além da faixa de
gaza, última noite de carnaval... Uma fonte inesgotável de filosofia ruim,
vespas e vômito. Vestia a mesma roupa da noite passada e pelo jeito não
tinha ido ao trabalho. Pelo jeito e pelo cheiro azedo que saía dele.
— Conta logo o que aconteceu com o Gambá — pedi.
— Os carecas quebraram ele todinho. Tá internado.
— Então o China sobrou pra gente mesmo?
O Tião jogou um jornal no meu colo, meio desgostoso. Depois foi
pegar outra cerveja para alguém, rindo feito tonto. Fiquei pensando no azar
que nós demos em encontrar o China. O lance tinha passado da conta, era
hora de parar com aquilo. Precisávamos achar o China gótico from hell que
ferrou com a gente e acertar as coisas. Mas coitado... No fundo o China
tentou evitar toda aquela porcaria, fomos nós que o apertamos até a tampa.
Ele tinha acabado de quase morrer na mão de um bando de carecas, entra
num bar e então começa a ser pressionado por dois ou três bêbados. Ele fez
o que qualquer um faria: deu o que nós queríamos e vazou.
O neguinho finalmente se despregou de mim e rastejou para o
banheiro; depois se jogou no vaso sanitário, tentando vomitar algo que
revirava em seu estômago. Provavelmente água. Ou cerveja...
Resolvi dar uma olhada no jornal que o dono do Open-Bar jogou para
mim.
JOVEM ESPANCADO ATÉ A MORTE NA NOITE DE ONTEM,
SUSPEITOS AINDA ESTÃO SENDO PROCURADOS, dizia a
reportagem de capa.
Eu estava quase mudando para a página de quadrinhos que eu gosto de
ler bêbado quando reconheci a fivela no cinto do cara. Era o maldito China.
Parecia que quando os carecas enjoaram de socar o Gambá, procuraram por
ele. O rosto estava todo ferrado, botaram fogo no cabelo dele e meteram uns
cinco tiros nele, dois na cabeça segundo a conta do repórter que escrevia a
coluna.
Tomei uma decisão aquela noite: nunca mais iria beber.
Uma que eu não podia arriscar um coma e outra que eu não precisava.
Fiquei olhando a droga do jornal, ouvindo o Neguinho vomitando e o Tião
feito uma bisca para lá e para cá. O Gonçalo preso, Gambá espancado. Era
hora de ir embora. Despedi-me dos caras e voltei para casa, sempre me
segurando para não demonstrar o grau da minha embriaguez.

O tempo passou depressa (como passa para todo bêbado), os anos


passaram voando e minha mulher perguntou mais umas duas ou três vezes
se eu andava bebendo no serviço antes de se conscientizar que aquele andar
trôpego era “o meu jeito” (incrível o que um aumento de salário faz. Um
não... Vários).
Acabei de ser promovido à vice-presidente da rede de franquias de
materiais de construção onde trabalho. Deixei meu chefe — seu Oswaldo
— para trás há alguns anos. Tenho dois filhos que também são resultados da
cara cheia e todo mundo me adora no escritório. Todo mundo me adora em
todos os lugares. Eu sou o senhor alegria social vinte e quatro horas por dia
e acabei levando a fama de homem que é doido sem beber. Realmente não
bebo mais e tento me curar de um pileque há vinte anos (nossa!, parece que
foi ontem).
Vi meus filhos crescerem sem lembrar muita coisa do ano anterior,
ainda acho minha mulher gostosa apesar dos quinze quilos que foram parar
na bunda dela e acordo e durmo sorrindo. Às vezes choro, como todo
bêbado, mas só quando me lembro dos rapazes do bar e da história que não
posso contar. Mas sempre posso escrever com um pseudônimo qualquer,
apesar da visão duplicada.
O Tião que era dono do bar acabou vivendo da ajuda dos pais dele.
Viveu uma boa vida apesar de nunca mais ter tido um bar. Soube que ele
trabalhou em um banco daqui da cidade por um tempo, acabou sendo
demitido por facilitar demais os empréstimos. O gambá se recuperou bem,
mas não a tempo de socorrer Gonçalo; acabaram enchendo ele de facadas
na cadeia, pobre Gonçalo.
Neguinho ainda bebe.
Eu nunca mais ouvi falar da tal pílula verde que deixava você feliz
para sempre, nem da branca que cortava o efeito. Procurei por anos. Hoje,
com todas as promoções e dinheiro que meu estado de torpor permanente
me deu, só tenho mesmo um temor:
O que esperar da ressaca...
A mulher do sótão
“E se podia passar a eternidade no inferno, a maioria das pessoas passava, era fácil
acontecer isso”.
S. King

JÁ PASSAVA DAS dez da noite quando minha cabeça parou de


doer. Religiosamente aos sete dias do mês de agosto meu cérebro urrava
como se estivesse sendo aberto por um pé-de-cabra. Não consigo me
lembrar de como a dor começou ou quando fora a primeira vez, mas
recordo que tenho essas dores desde que mudamos para cá.
Hoje estava terrível e eu sabia que não tinha chegado ao final. Minha
dor programada começava por volta das seis da tarde, cessava as dez e num
golpe de misericórdia, onze recomeçava, me fazendo urrar até às duas da
manhã. Só depois disso eu podia dormir até o próximo sete de agosto.
Noite especial. Dia de celebrar o nascimento de minha filha. Ela sabia
das dores e acho que por isso decidiu se afastar de mim. Para não me ver
sofrer tanto. No começo era todo dia essa dor... Prefiro acreditar nisso à
segunda opção que era eu ter sido trocado por algum carinha de rabo de
cavalo na faculdade de filosofia. Isso sim seria dolorido, bem pior que dores
de cabeça... A mãe dela também se foi. Mariana... Jesus, como eu amei
aquela mulher. Ela acabou me deixando por motivos bem menos nobres que
nossa garotinha. Por causa de um Mustang. Prefiro achar que tenha sido o
carro ao débil mental que é dono das chaves. Ele é diretor da escola técnica
aqui da cidade. Uma delas, a maior e mais importante, eu devo assumir.
Resolvi tomar um uísque para acelerar as coisas, piora um pouco a
dor, mas me faz dormir. Desde que elas me deixaram sozinho as coisas
perderam o sabor, mesmo a bebida. Estou tomando o segundo copo e
olhando um quadro que insisto em manter na parede. Acho que o deixo ali
porque a Mariana — minha “ex” — detestava aquela coisa. Representa um
machado cruzado com uma marreta. Nada demais. Eu acho meio comunista
e revolucionário, mas ela... Achava terrível. Moro em uma casa grande na
área rural da cidade. Para um cara moderno feito eu, se acostumar a uma
chácara não foi nada fácil, mas o preço estava bem abaixo do mercado
quando compramos. Penso que por causa da lenda da mulher do andar de
cima.
O andar de cima é só um sótão cheio de poeira. O povo daqui é
supersticioso e prefere acreditar em vodus no lugar de roedores. Tudo nessa
cidade é cercado de mau olhado e lenda. Claro que depois de virmos para cá
com a cidade sabendo que Mariana ia embora, alguns ignorantes culparam a
casa. Culpam a pobre casa por tudo, mas mesmo assim eu adoro esse lugar,
gosto do ar parado e velho, do barulho que a madeira faz quando eu
caminho sobre ela, dos quadros desbotados de pessoas do passado que eu
mantenho na parede e do sótão empoeirado. Não sei se tem alguém lá em
cima, mas às vezes prefiro pensar que sim. É bom ter companhia de vez em
quando, ainda mais de uma mulher. Dizem que ela foi assassinada. Nisso
até acredito... Antigamente o feminismo era crime e a recusa em deitar-se
embaixo do marido era um motivo e tanto para uma mulher ser morta —
claro que não sei se foi isso mesmo o que ocorreu, minha mente fantasia
que sim. Dormi profundamente depois daquele segundo copo e acordei com
algum barulho acima de minha cabeça que doía de novo. Era uma da
madrugada. Hora de eu urrar até às duas da manhã. Mas a dor estava longe,
apenas uma memória desagradável. O que me permitiu concentrar-me nos
passos do sótão.
Nunca tive muita vontade de me envolver com a coisa lá de cima, mas
naquela noite, sem minha garotinha eu precisava de alguma coisa para
passar o tempo. Além de me movimentar um pouco — o que também
espanta a dor de cabeça. Peguei uma barrinha de ferro e baixei a escada que
dava acesso ao piso de cima. Os passos pararam na mesma hora. O andar
superior era enorme, tinha a extensão da casa toda com seus oito cômodos
vazios. O cheiro de mofo que eu adorava vinha de lá. Tinha muita tralha ali,
coisas de antigos moradores. Pensei que devia ligar para alguém e oferecer
as tranqueiras que estavam cultivando fungos, mas acabei desistindo da
ideia. Há algum tempo eu ando desanimado demais para fazer qualquer
coisa. Chamem de depressão se quiserem. Eu chamo de abandono. Fiquei
sozinho, velho, e sem planos para o almoço de amanhã. Minha profissão me
dá a chance de trabalhar pouco, coisa de dois meses por ano, então tenho
todo o resto do tempo livre para tomar meus destilados e relembrar das
minhas garotas más.
“Olá? Tem alguém aqui em cima?”, perguntei satisfazendo o velho
clichê dos filmes B; senti-me ridículo fazendo aquilo, mas que se dane.
Desde que eu me movimentasse e minha cabeça não doesse podia me dar a
esse vexame. Claro que ninguém respondeu, mas no canto oposto alguma
coisa vestida de branco se mostrou caminhando. Passos curtos e tão
inseguros quanto os meus. A única luz fraquinha a iluminar o sótão era
vinda de baixo. Recuso-me a acreditar que assombrações tenham medo dos
vivos ou da luz... Isso sim é ridículo.
“Tudo bem, podemos conversar... Sinto-me sozinho aqui”, eu disse.
Não sei bem se eu esperava uma resposta, mas de qualquer modo ela não
veio. O que me levou a chegar mais perto da origem daqueles sons. Alguma
coisa empurrou uma caixa de fotografias para mim. Aquilo soou estranho é
claro, mas mesmo assim eu sentei no chão empoeirado e comecei a ver as
fotos — talvez fosse o uísque dando uma coragem extra. Eu conhecia todas
elas. Eram nossas velhas recordações que eu coloquei no sótão quando as
garotas foram embora. Tive um déjà vu enquanto sentado. Como se a cena
fosse um replay em minha vida. Aquilo sim foi espantoso. Vi as fotos de
meu casamento com a Mariana, ela era bonita mesmo. Cabelos pretos,
corpo esguio e um olho que tirava a roupa da gente. “Olhos de raios-X” eu
costumava brincar. Eu não diria isso a ela, mas fazia falta naquela casa.
Minha filha também. A próxima foto que eu peguei, era dela.
Estávamos todos em uma praia. Eu detestava aquilo, mas mesmo
assim todo ano em janeiro íamos para qualquer lugar onde pudéssemos
salgar a bunda. E nos divertíamos. Eu menos um pouco, por detestar o sol.
Se você descendesse de suecos também detestaria o sol daqui. Um sol
agressivo que gera um tumor em meses em ratazanas brancas como eu. Não
que isso fosse um problema para Mariana, nem para nossa garotinha que
pegou metade dos genes dela. Nessa foto como nas outras eu estava
escondido embaixo do guarda-sol com uns óculos escuro enorme, todo
empapado de Sundown e uma cerveja na mão. Preferia os destilados, mas
praia não combinava com eles... Fazia-me transpirar como um porco sueco.
Continuei a ver as fotos deixando de lado quem jogou o bauzinho.
Compramos em uma parada na estrada quando nossa pequena tinha uns dez
aninhos. Foi ela quem quis comprar o tal bauzinho. Era feito de uma
madeira escura; parecida com mogno, mas pelo preço que o hippie cobrou
pela peça eu duvido que fosse.
Meu relógio marcava uma e meia e minha cabeça deu uma agulhada
que me levou para o inferno em dois segundos. Perguntei-me como alguma
coisa podia doer daquele jeito. A resposta foi novos passos do canto escuro
em minha frente. Definitivamente tinha alguém ali. Resolvi trocar umas
figurinhas com a mulher do sótão, afinal éramos mais que vizinhos há anos.
Ela devia ter acompanhado meu divórcio, e o crescimento de minha filha.
Era quase da família.
“Não precisa ter medo, só quero conversar”, eu disse tendo outro Déjà
vu. Eu já tinha visto aquilo, mas na sala de tevê enquanto ela mostrava um
episódio de Two and a half man. Minha filha pedia para a gente falar baixo
para que pudesse ouvir as bobagens de Sheen. Não entendi aquela confusão
de fragmentos de memória.
“Chegue mais perto” disse a voz. Podia ver um longo vestido branco e
um menor abaixo daquele. Parecia ter mais gente naquele sótão. Ainda
estavam longe demais pra ter certeza.
“Quem são vocês?” perguntei e recebi algo atirado na minha cabeça
como resposta. Um sapato vermelho de salto pontiagudo. Minha cabeça
respondeu de imediato com sua dor lacerante.
“Porque me atacam?”.
Silêncio. E pequenos passos na escuridão.
Aproximei-me mais.
“O que você quer saber?”, algo inquiriu.
“Quem são vocês?”.
“Possivelmente seu castigo”.
“Eu não preciso de novos castigos; já vivo só, abandonado por minha
esposa e filha”.
“Estamos aqui, papai”, respondeu uma voz infantil que eu conhecia
bem. Meu estômago congelou.
“Estão mentindo”, eu disse. Apesar de não acreditar muito nessa coisa
de espíritos sabia que eles podem enganar-nos quando querem. Seria o caso
ali? Espíritos enganadores, zombeteiros? Eu não iria cair nessa, nem que
minha cabeça explodisse de dor.
“Olhe suas mãos, Álvaro”, disse na voz de Mariana. Mas ela não
poderia estar ali. Estava com um safado que tinha o único Mustang da
cidade. Mesmo assim eu olhei minhas mãos.
Estavam repletas de sangue. Uma delas segurava um machado e a
outra uma marreta. As ferramentas possuíam alguma coisa parecida com
carne e cabelos. Eu comecei a tremer e minha cabeça não doía mais.
Comecei a relembrar e a chorar ajoelhado no sótão assombrado. Lembrei-
me de tudo.
Mariana pensava em me abandonar. Realmente seria trocado por
um Mustang, mas isso nunca aconteceu. Parti seu cérebro com uma
machadinha que usara durante a reforma antes disso. Mariana morreu na
hora. Quando percebi que nossa garotinha havia visto seu pai se tornar um
monstro a ataquei com a marreta que dormia na caixa de ferramentas. Ela
nunca foi para a faculdade que tanto sonhei, aliás...
“Já é o suficiente, Álvaro”, disse Mariana, vestida de branco.
“Precisa se perdoar papai...”.
“Ainda não, preciso de mais tempo”.
E assim todo ano minha cabeça dói como doeram as duas pancadas
que exterminaram minha família em um sete de agosto. Eu acabei com a
minha vida quando vi o que tinha feito, minutos depois, agarrado na minha
filhinha. Usei meu trinta-e-oito. Tiro na boca e uma poça de sangue, mas
esse castigo ainda foi pouco para meu espírito.
No fim escolhemos como expiar nossos pecados depois que mudamos
de plano, no meu caso, escolhi a repetição há dez anos. O inferno é mesmo
repetição.
O violão de Johnny

1
AH, CARA; VAI se ferrá que eu vou acreditar numa coisa dessas —
disse Cabeça acendendo um baseado.
Como em todas as quintas, ele e o amigo (e dono da casa)
aproveitavam a ida dos pais ao centro espírita; “Dia do basic”.
Cabeça levava o apelido mais pelo cabelo ruim do que por sua
circunferência craniana. Ele já nem ligava mais para a pegação no seu pé a
cada corte de cabelo. O que não gostava mesmo é que falassem da irmã.
Com isso ficava puto; de verdade. Ou que falassem da pedaçuda da mãe
dele. Na casa do Cabeça os DNAs estragados foram todos para ele e para o
pai cachaceiro.
— Tô falando sério, cara. Tá na casa da minha avó. Pelo menos duas
vezes por ano ele toca sozinho, e dentro de um armário trancado.
— A única coisa que toca sozinho em um lugar trancado é você; e
chama punheta isso e não violão.
— Vai se fodê. Passa o bagulho aqui... — pediu Novato.
Ele também não se chamava “Novato”, mas como foi o último da
turma a se livrar do tiro de guerra e marginalizar com eles, acabou virando
apelido. De todos da turma do bueiro, só sobraram eles dois na cidade — o
resto era inteligente demais para morrer ali. Todos estavam bem mais
velhos que na época do quartel quando qualquer velha sem dentes causava
uma ereção, mas os dois não evoluíram muito. Continuavam dois
maloqueiros de “prima” com vinte e cinco anos, sem ideias brilhantes e
com empregos honestos e idiotas. A única coisa que aumentou dentro da
cabeça deles durante todo esse tempo foi a fumaça de “delta-nove”. Novato
era um tipo magrelo de nascença e de boa família, mas acabava ferrando
tudo andando pela cidade com caras feito o Cabeça.
— Fala sério, agora... Esse lance do violão... — disse Cabeça. A
mente levemente distante.
— O pessoal aqui de casa conta que dois tios do meu pai, dois
pingaiadas pra falar a verdade, nos tempos de jovem deles, isso bem antes
do guaraná com rolha, tocavam música sertaneja pelos sítios da região.
— Cê lembra o nome da dupla? — perguntou Cabeça.
— Sei lá, cara... Devia ser... tipo... “Pinto loco e Cabacinho”; “Almoço
e Janta”; alguma porcaria dessas. Cabeça riu, cuspindo fumaça pra cima.
— Me amarro nessas porcarias.
— Em música sertaneja? — zoou Novato.
— Vai tomá no cu, cara! Tô falando das coisas do além. O tio do seu
pai mora aqui na cidade?
— Um deles. O irmão do dono do violão.
— E o outro? O dono?
— É por isso que a coisa faz barulho sozinha... Mataram o cara numa
festa de roça.
— Caraio véi — disse Cabeça (Nível mental = 99% chapado). — E
como foi?
— Cara..., essas festas de roça era uma lona preta jogada em um
monte de pau seco, dois violeiros e o povo que ia na missa. Tudo adubado
com pinga. Pelo que eu sei, o tio do meu pai morreu porque peidou na cara
de um caipira enquanto ele se engraçava com uma menina. O cara ficou
todo macho, pegou o violão e bateu nele até matar.
— E como o violão tá inteiro? — perguntou Cabeça. Doido, mas
desconfiado. Achou que pegaria o amigo com as calças na mão.
— Então... Ele gostava tanto daquela coisa que pediu, antes de parar
de cuspir sangue, para que meu outro tio, esse irmão dele, arrumasse o
troço. Depois disso, nunca mais o violão saiu do guarda-roupa. E nem
perdeu a afinação.
— Já tocou com ele?
Novato tragou fundo, tossiu e respondeu segurando o novo vapor:
— Uma vez só... Foi foda... Ele te deixa bom cara. Você toca coisa que
nem sabe. Chega a dá medo.
— Eu quero vê o bichão!
— Não dá.
— Por que não, véi? Tá com medo?
— Não é isso. É por causa da chave. Ela fica com o tio do meu pai e
ele só abre o armário no aniversário de morte do irmão dele. Foi numa
dessas vezes que eu toquei. Era pivetinho ainda.
— Quando você fazia troca-troca com o bengala?
— Vai se fudê, Cabeça!
Novato mandou também um soco no braço de Cabeça. Ele nem sentiu
e perguntou:
— Falando sério... Quando é a data?
— Que merda, cara... Esquece disso.
— Fala vai... Quando é, Novato?
— Semana que vem.
— Cara, eu quero ouvir esse negócio — disse Cabeça. E tragou tão
fundo que queimou o beiço. Falou com o peito cheio: — Convence teu tio,
vai...
— Sempre que você encana com uma coisa, acaba saindo porcaria.
Lembra quando quis ver o revólver antigo do meu vô?
— Aquilo foi acidente.
— Cara, você quase acertou minha avó! E ainda fez um buraco na
tevê.
— Pelo menos era velha... A porra da tevê. E sua avó também.
— É, mas meu vô não queria jogar nenhuma delas fora.
— Apesar de não prestarem pra nada, né? — disse Cabeça dando
risada e quase se afogando de tosse depois. Novato riu junto, pensando na
avó dentro do lixo cheia de camisinha usada na cabeça. Outra piada boa
promovida pelo cigarro forte...
— Tá bom, vai — disse Novato.
— Vai falar com ele?
— Vou sim... — respondeu introspectivo. Parecia prestar atenção em
algo novo. Então acordou: — Puta merda; apaga a bagaça que eles
chegaram.
— Apagar como? — perguntou Cabeça.
— Come a guimba! — disse Novato. — Cacete... — suspirou.
Ele comeu mesmo.
Na sequência, Novato esvaziou uma lata de Bom-Ar e dispensou
Cabeça para casa. Torcia para que ele esquecesse o lance do violão, mas
conhecia sua falta de noção. Se fosse algum emprego novo esqueceria antes
de chegar em casa e socar a última da noite pensando na mãe de alguém,
mas um violão usado como tacape mortal? Que tocava sozinho?
Nem fodendo...

2
“E aí? Falou com ele?”, foi a primeira pergunta do dia. Assim que
Cabeça encontrou com o Novato. Os dois trabalhavam em um
supermercado — que não tinha nada de super a não ser baratas enormes e
anabolizadas — da cidade... Qual cidade? Era mais meia-boca que o
supermercado.
— Ainda não, cara. Não encontrei com ele ainda.
— Cara, não esquece, hein!
— Acho que nem vai dar tempo.
— Não é só na semana que vem o aniversário do defunto?
— Não chama ele de defunto, Cabeça...
— É melhor que cadáver... Bom, mas é na semana que vem ou não?
— Eu tava locão ontem. É depois de amanhã a porra do aniversário.
— Ah, cara. Me dá o telefone do seu tio da roça que eu mesmo falo
com ele.
— E vai oferecer o quê em troca, Cabeça? Teu cu?
— Vai se fudê. Eu falo que sou de algum jornal... Paranormal... Da
tevê...
— Deixa quieto. Eu falo com ele.
— Posso confiar? — perguntou Cabeça. Deixou as roupas no armário
e vestia o maravilhoso uniforme verde limão do mercado.
— Pode; igual você confia no rabinho da Suzi... — Suzi era a
operadora do caixa número nove. Gostosa como um picolé de limão na
praia.
— Se eu tivesse um “botoquinho” daqueles pra me esconder à noite,
nem ia querer saber da porcaria do violão do defunto.
— Defunto não, cara... Ele é meu parente.
— Foi mal — disse Cabeça. Vou chamar ele de Johnny, então...
— É melhor que defunto, mas parece que tá falando de um pinto...
Johnny...
E os dois partiram do vestiário que fedia cueca mofada para mais um
dia empolgante no trabalho onde passavam mais da metade do dia roubando
comida e tentando comer alguém, de qualquer jeito tratavam de comer...
O dia passou voando com a visita de um gordo veado da matriz que
supervisionava as prateleiras. Um gordinho com fama de mau. Para variar,
Cabeça se complicou com o gordo que descobriu mais de vinte embalagens
de chocolate depenadas embolorando atrás da prateleira onde era repositor.
— O que é isso aqui, senhor Patrick? (era esse o nome do Cabeça...
coisa triste quando o apelido é melhor que o nome de alguém...).
— Se eu não estou muito enganado, são embalagens de chocolate
vazias.
— Isso, eu sei — respondeu o gordo. Sua língua presa piorada com o
nervosismo. Só mais uma criaturinha vermelha e afeminada querendo
mandar nos outros. Para azar dele, pegou Cabeça em um dia ruim...
— Então não me faças perguntas bestas, Sir — disse Cabeça.
— Sabe que eu posso mandar você embora, não sabe?
— Por que eu te chamei de besta ou por que comi o chocolate que
você queria?
— Pelos dois — respondeu o gordo, estava mais vermelho que uma
glande espremida.
— Então você assume que é uma besta gorda tarada por chocolate?
— Já chega. Tá demitido — disse o senhor Matriz. Os olhos grandes
rasos d’água.
— Vai se daná, seu bicha. Tô cansado de trabalhar nesse boteco.
O chefe de Cabeça e gerente do Supermercado — seu Almeida —
olhava horrorizado para a discussão. E o homem não se metia, certamente
com medo de sobrar para ele.
— Ah, e seu Almeida? — chamou Cabeça tornando a olhar para a
dupla de chefes. Almeida estava certo que veria uma retratação. Um pedido
de desculpas. Empinou o peito, paternal.
— Sim, meu filho?
— Vai tomá no cu.
Cabeça apanhou seus pertences no armário e saiu, sentou na grade
onde eram colocados os cartazes com promoções falsas. Esperava por
Novato. Agora poderia dar atenção integral ao caso do violão fantasma.
Começava a fazer frio e ele estava sem agasalho. Ficou um pouco
mais nervoso por isso. Perder o emprego era normal, mas passar frio? Era
demais para ele.
— Até que enfim, cara. Tava fazendo um boquetão pro gordo, é?
— Nada, meu... Livrei sua cara, ainda — respondeu Novato.
— Como?
— Falei pro gordo que sua mãe chifrou seu velho e ele pegou o
amante mandando bala nela.
— Cê não fez isso! — disse Cabeça, putaço.
— Fiz sim... Ainda falei que teu pai bateu em todo mundo, até em
você, e por isso você ficou doido e fodeu com tudo. Eles vão esperar você
amanhã às nove da manhã pra trabalhar. Vai ficar só na advertência. Coisa
leve.
— Ah, cara... Manda eles enfiarem essa advertência no cu...
— Amanhã você manda... Bora? Tá frio aqui...
— Ligou pro seu tio?
— Más notícias...
— O véio morreu?
— Não, mas ele abre o armário hoje. Errei a data de novo.
— Cara... Você tem fumar menos maconha. Tá ficando lesado... Mas e
aí? Pelo menos pediu pra ver?
— Pedi; ele falou pra gente passar na casa dele às sete.
— Valeu, cara! Quero ver esse violão doidão dos inferno!
— Fuma um antes comigo? — pediu Novato.
— Demorô, vamos lá pra casa, a gente acende no quintal. Minha mãe
só volta do trampo às oito.
Os dois foram se xingando até chegar lá. Coisa de moleque grande;
ver quem sabia mais palavrão. O último foi dito por Novato que chamou
Cabeça de cu-de-morcego. Ele não entendeu o xingamento, mas riu tanto
que não conseguiu revidar. Todo palavrão tem um motivo, mas aquele era
um enigma até para o seu inventor. Alguns minutos de tragos e colírio
depois e estavam no portão da casa do tio do pai de Novato. A casa era bem
velha, tinha lugares onde os tijolos venciam o reboco e na maior parte da
parede, a tinta visível estava tão desbotada que tudo parecia pintado com
bosta.
— Casa feia, hein véio? — disse Cabeça.
— É... Mas tem um violão fantasma.
— Como é o nome do seu tio?
— Dagoberto.
— Cara! Que nome desgraçado de feio — riu Cabeça. Tocou a
campainha.
De dentro da casa, saiu um cara mais feio que a casa e que o nome.
Dagoberto era alto, devia ter uns dois metros, e mais de setenta anos.
O nariz, além de enorme, era vermelho e cheio de feridas. Coisa porca de se
ver. E ele não era só vermelho como todo velho descendente de italianos,
ele era roxo e magro pra caramba. O gogó parecia uma maçã inteira e não
só o pomo. Cabeça, ainda louco de fumo, disparou a rir assim que o viu.
Dagoberto continuou sério.
— Oi, tio, esse aqui é o meu amigo que quer ver o violão.
— Entrem, deve tá quase começando a tocar — convidou Dagoberto,
abriu o portãozinho baixo que dava acesso a pequena varanda da casa e
esperou os dois passarem. Na varanda um exagero de plantas que não
deixava ninguém ver nada de fora para dentro.
— Lugar bom pra plantar, hã? — perguntou Cabeça apertando o
polegar e o indicador e balançando como um baseado.
— Cala a boca, Cabeça.
— Não reparem na bagunça... Vem pouca gente aqui — disse
Dagoberto.
A casa fedia mofo e coisa velha. Naftalina, talco e tudo quanto é
porcaria que velho usa para não feder. Os estofados deviam ter cinquenta
anos no mínimo e um cachorro de uns cento e vinte tomava conta de um
deles, rosnando.
— Ele morde? — perguntou Cabeça.
— Não, ele faz assim porque tá cego... Fica nervoso com barulho
novo. O que vocês querem ver tá no quarto que era do meu irmão.
— E nunca mais ninguém morou nesse quarto? — perguntou Novato.
— E o Didico ia dormir aonde? — disse Dagoberto arregalando os
olhos e arqueando as sobrancelhas horríveis e brancas.
Cabeça pensou que ele falava do cachorro, mas Didico era o tal irmão
morto. Novato sabia e riu.
Do corredor, já ouviam uma música tocando baixinho, vinda do tal
armário. Um ponteado sertanejo daqueles que fazem boiadeiros chorarem.
O armário era minúsculo, com algum esforço uma criança poderia caber ali,
mas seria impossível colocar um adulto tocando violão.
— Caramba — disse Cabeça. Estava parado em frente do armário. Os
braços para trás.
— Você quer vê-lo? — perguntou Dagoberto
— Melhor a gente ir, cara... Eu tenho medo desse troço — disse
Novato.
— Quero fazer um som — pediu Cabeça, todo retardado de emoção.
— Nem a pau, cara! Cê nem sabe tocar — disse Novato. O ponteado
continuava cada vez com mais notas. Dava para ouvir o arrastar dos dedos
ou do que quer que fosse sobre os trastes. Um deslizar suave de quem sabe
o que faz.
— Vou abrir pra você — disse Dagoberto tirando uma correntinha de
seu pescoço. Nela estava amarrada uma chave, cheia de zinabre. Os dois
jovens estranharam aquilo de andar com uma chave pendurada no pescoço,
mas depois de ver o estado da casa e do homem, acharam aceitável. Talvez
Dagoberto fizesse aquilo para manter segura a única lembrança do irmão.
Ou outra maluquice dessas.
O armário era de madeira escura e estava todo carcomido por cupins.
Abriu-se com algum esforço do velho. Deu um rangido oco, cuspiu um
estalo e soltou algum pó da madeira. Era de se duvidar que alguma madeira
sem cupins saísse dali. Foi então que os dois viram o violão.
Novato não lembrava bem dele depois de tantos anos, mas agora
reconhecia que era uma obra de arte. O instrumento também era bastante
escuro, mesclado em tonalidades de verde musgo e preto. Era quase uma
pintura, quase... Alienígena. As tarraxas eram peroladas, os trates brilhavam
como ouro e os sons que saíam das cordas... Deus... Pareciam harpas
angelicais apesar da música raiz. Dagoberto entregou o violão que
continuava a pontear sem que ninguém o tocasse para Cabeça. Ele o
segurou, foi como se tivesse levado um choque. Seus dedos de repente
sabiam exatamente para onde ir, em qualquer música que pensasse. Novato
olhava maravilhado quando aceitou, sem pensar muito (como sempre), uma
bebida oferecida por Dagoberto. Estavam tão atordoados pelo violão que
tomariam urina sorrindo, mas aquilo não era urina... Ou cuspe. Era algo
forte; que dava sono. Cabeça parou com o ponteado e acompanhou o amigo
numa golada.
E logo tudo escureceu.
3

Foi o mais curioso quem acordou primeiro, duas horas depois, com
uma visão que tirou seu estômago do lugar.
Cabeça viu a si mesmo.
De pé e sorrindo, mas aquele sorriso não era o dele. Era um riso velho
e moribundo. Notou que estava amordaçado e que tinha alguma coisa no
caminho de sua visão... Um nariz... Enorme e cheio de feridas. Suas mãos
amarradas na barriga estavam com manchas e calos que não eram dele; todo
seu corpo doía. O corpo, que reconhecia sendo o seu verdadeiro, recitava
alguma coisa em uma língua desconhecida. Palavras endereçadas para
Novato que revirava os olhos para trás das órbitas. Logo a coisa no corpo de
Cabeça parou de falar com Novato e virou-se para o antigo dono.
— Você deve estar confuso... Eu explico. Na verdade é bem simples
— disse Dagoberto dentro do corpo usurpado de Cabeça. Acendeu um
cigarro de palha que fedia bosta queimada.
— O violão bonito que você ouviu não era tocado pelo meu irmão
morto... Ele era meu irmão morto. Entenda... O Didico sempre foi metido
com essas estranhices de magia negra. Ele sabia dessas coisas, pra ele, foi
fácil encarnar no violão. Eu acabei ficando aqui, apodrecendo de velho, até
que dois imbecis entraram em casa e tomaram da minha pinga vodoo. Você
tá no meu corpo, rapaz, mas não se preocupe... Vou matar você assim que o
Didico voltar. Esse seu corpo novo tá todo zoado, como vocês moleques
dizem...
Cabeça — preso no corpo do velho — se contorcia, mas estava bem
amarrado. Não conseguia mover nada além dos olhos. Novato também
começou a se movimentar. E o violão a tocar. Mas o que saía dele era o som
mais feio desse mundo. Então o corpo de Novato levantou e se estalou todo.
Costas, mãos, pés; estalou até o pescoço e as falanges dos dedos.
— Saudades, mano — disse. Abraçou o corpo possuído por
Dagoberto, o corpo de Cabeça. O violão gritava desesperado e desafinado
por ajuda.
— E agora? — perguntou Dagoberto.
— Agora a gente mata o moleque, arrebenta o violão que tá encarnado
com o sobrinho e faz sucesso de novo. Estamos com cinquenta anos de
atraso... — respondeu Didico.
E tudo ficou escuro e quieto para sempre para os dois rapazes.
Kid Caranguejo

NÃO TEM NADA tão bom quanto o gosto de cerveja, é o que eu


digo há vinte anos...
Todo dia três de agosto, acabo tomando todas e lembrando dela. De
Karla e de nossos cigarros escondidos no colégio.
Karla era a única garota que fumava na escola e acabei descobrindo
rápido que era das poucas que transava também. Isso faz muito tempo. Foi
bem antes de um negro ser presidente dos Estados Unidos, mas não entenda
isso como racismo. É só um jeito de dizer que as coisas mudam. Todas as
coisas.
Era Inverno em 1989 quando eu fazia o que mais gostava com a Karla.

— Anda logo, Sara, se a gente não correr daqui o diretor pega a gente
— eu disse. Como sempre, assustado e inseguro. Lembro-me da cara de
Karla dizendo, sem falar nada, que eu era o moleque mais bunda-mole do
segundo colegial. Devia ser mesmo, mas pelo menos eu estava com ela. E a
Karla tinha coragem por nós dois.
— Relaxa Buba, o vermelho não sai pra ronda antes do café com os
professores. Ainda falta meia-hora. — “O Vermelho” era nosso diretor;
ruivo como uma cebola podre.
— Espertinha...
— E você, bobo. Meu bobo preferido. Vem cá, vem — falou me
pegando de jeito. Apesar do cheiro de urina do banheiro masculino a gente
sempre transava ali.
Karla era linda. Cabelos castanhos, seios pequenos e a boca mais suja
do segundo colegial (em vários sentidos). Eu a amava.
— O que a gente vai fazer hoje? — perguntei quando terminamos de
transar e vestir nossas roupas.
— Sei lá. Meu irmão e uns amigos estão querendo ir para o cemitério
falar com os mortos.
Fiquei bem sério:
— Para com isso, Karla, sabe que eu tenho medo dessas coisas.
— É só de brincadeira, Buba-Bobão... Eles vão lá pra beber, fumar...
— E o seu irmão? Ele disse que ia me quebrar; lembra?
— Fica tranquilo, eu disse a ele que a gente tava transando.
— Quê?! — Cuspi metade da fumaça do cigarro “pós-coito”, o resto
acabou indo pro buraco errado e me dando uma crise de tosse de dois
minutos. Karla riu pra variar. — Agora sim ele vai me arrebentar! — eu
disse.
— Não vai, não. Agora você é da família.
— Sei não. Seu irmão é meio maluco.
— Não fala assim... Ele é a única pessoa que eu tenho desde que
nossos pais morreram.
— É, eu sei. Mas... Deixa pra lá — calei. Não era muito inteligente um
tipo estragado como eu discutir com a garota mais sexy da escola.
— Vamos? Já devem tá procurando a gente.
Com isso concordei e voltamos para a sala de aula e para toda a
chatice do segundo colegial. Garotas se passando por mulheres, caras
ameaçando uns aos outros e professores que teriam se dado bem melhor na
Gestapo. E era assim que a banda tocava. Sempre que queríamos nos
encontrar, marcávamos um pouco antes do intervalo. Não muito perto
porque os maloqueiros costumavam emendar o banheiro com o recreio,
nem muito longe, senão alguém podia ficar apertado e atrapalhar. O horário
ideal era nove e dez da manhã. Precisamente. A hora do love.

*
Passei o resto daquele dia apreensivo. O irmão da Karla era um
troglodita irrigado com Durateston que costumava tentar resolver tudo na
pancada. Quase sempre conseguia... Deve ser por isso que acabaram o
aceitando entre os góticos. Apesar dos caras serem pacifistas, precisavam
de um segurança e o Bolacha era grande... Grande pra burro. Acho que só
por isso eu acabei conseguindo namorar a Karla (ela detestava essa coisa de
namorar, a gente falava pegar, ficar, transar, trepar, qualquer coisa, menos
namorar em 1989), os outros caras tinham tanto medo do Bolacha que não
se aproximavam. Eu sempre fui meio sem juízo, comecei a beber com treze
anos, fumar com doze, então penso que foi natural nos conhecermos...
Coisa do destino (ela também detestava isso; nem o destino podia mandar
em sua vida... acho que nem Deus podia.). O que tento dizer é que não
imaginávamos que a vida poderia mudar tanto em uma noite sem uma
forcinha extra do destino ou do que quer que fosse.
Eu morava com meus pais e como todos os pais dos anos oitenta-
quase-noventa, eles também esperavam que o filho fizesse uma faculdade
idiota e se formasse. Não importava muito o quê nós — os filhos —
queríamos. Nossa tarefa era usar drogas e gostar de Ozzy e Metallica. Se
sobrasse tempo, do Lanney do Alice In Chains ou alguma coisa grunge que
começava a aparecer. Muita gente boa morreu nesses tempos. Sombras da
última geração que pensou. Não foi a primeira, mas com certeza foi a
última.
Para os meus pais, passeios em cemitérios e namoradas com
maquiagem de Mortícia Adams não eram nem um pouco aceitáveis. Tentei
apresentar a Karla para minha mãe uma vez só. No natal. Ela gritou quando
a viu. Acho que de susto pela quantidade de brincos que usava, mas talvez o
pó de arroz em excesso no rosto tenha colaborado. Meu pai não... O velho
sabia avaliar um frango gordo antes de colocar na panela. E ela era um
frangasso. De qualquer jeito, quem mandava lá em casa era minha mãe,
então passamos o natal daquele ano (eu e a Karla) na rua e eu passei a
esconder o namoro... Se minha mãe soubesse o que a “mortuária” fazia
depois de tirar a túnica teria ficado feliz por mim. Era sexo profissional e
todo homem sonharia em pagar pelo que eu tinha de graça. Tinha até
demais.
Naquele três de agosto nervoso já era noite quando dei por mim...
— Anda logo, já falei que ele não vai te bater. — Eu continuava com
medo do Bolacha.
Estávamos na parte de fora do cemitério onde o muro era mais baixo
por causa da lama que escorria com as chuvas e parava ali. Ficou fácil (e
baixo), depois de cem anos de enxurrada, pular para o lado de dentro. A
única coisa que a gente não podia fazer era entrar pela frente — essa parte o
suborno (uma garrafa de pinga 51) não cobria; o coveiro não queria arriscar
ser apanhado em uma contravenção. O tal velho tinha apelido de “Morto” e
diziam que ganhara o nome por já ter enterrado menos gente do que ele
mesmo mandou para encontrar com Deus. Era um cara de olho amarelo de
hepatite. Daqueles tipos sergipanos que demoram muito para morrer e mais
ainda para fugir de uma briga. Não era bom contrariar o “Morto”.
— Karla, acha mesmo que é uma boa ideia?
— Buba, se continuar com esse medo todo, vai atrair coisas ruins pra
nós dois!
— Como é?
— Minha mãe dizia isso pra mim e pro Bolacha. Para a gente não ter
medo de nada e de ninguém. Dizia que quando a gente pensa muito em
alguma coisa, ela acontece. E que o medo sempre tem mais força que as
coisas boas.
Fiquei pensando naquilo pelo resto do caminho até o cruzeiro (o lugar
onde as pessoas queimavam velas para as almas, o pessoal tinha combinado
de se encontrar por lá). Também pensei que não conseguia controlar meus
pensamentos. Sempre que eu tentava bloquear alguma coisa ruim, ela ficava
ainda mais presente na minha cabeça. Mas também não dava para esperar
muito de um cara com a minha idade, aterrorizado pelos pais desde
neném... Bem isso é outra história. O fato é que diferente da cabeça boa de
Karla, a minha era uma fábrica de possibilidades nefastas. Qualquer sombra
para mim abrigava um estripador, qualquer encruzilhada um demônio e
qualquer cemitério, zumbis. É... Eu acreditava neles... Hoje, acredito ainda
mais.
— Ficou quieto... Que foi?
— Nada não.
— A gente tá quase chegando; lembra do que eu te falei. Meu irmão
não vai te socar, mas não fica se borrando de medo por qualquer besteira.
— Fica tranquila — respondi todo machão. Claro que me borrei assim
que vi os caras.
Eram todos mais velhos que eu e a Karla, a maioria tinha mais de vinte
e cinco. Estávamos, contando eu e ela, em sete pessoas. Só aquilo já me
deixaria com medo. Gosto do número sete, mas sei que é um número
perigoso. Não mau; não bom... Perigoso. A bíblia diz isso e se eu tivesse
compartilhado com os outros essa informação, talvez pudesse ter evitado
aquela noite horrível. Mas não o fiz a pedido de Karla. Precisava ser
corajoso perto do Bolacha. Pelo menos enquanto transasse com a irmã dele.
— Agora sim! Olha só quem chegou! A gata Morgana — disse um
dos caras. Pela intimidade do abraço, vi que eu não era o único a perceber o
que as roupas pretas da Karla escondiam.
— Tira a pata dela, Animal — disse Bolacha, apertando um cigarro
aceso na boca. Fiquei feliz, achando que ele estava xingando o cara por ter
abraçado forte demais a Karla (depois descobri que o apelido do cara era
Animal; além de Farinha... Mas pelo menos as patas do Animal-Farinha
saíram de cima dela).
Parecíamos um bando de corvos rodeando uma cruz de fogo, eu menos
que eles — estava mais para um filhote de urubu que não sabe voar direito.
Todos estavam de preto, as garotas com a maquiagem carregada no pó
de arroz e batons de vermelho a preto, os caras com adereços punks. Eu
bobinho-bobinho vestia uma calça e camiseta preta com um sapato mal
engraxado. Tudo iluminado pela luz amarelada e sibilante das velas do
cruzeiro. O pessoal já estava alto quando chegamos, o som nem tanto, mas
o suficiente para que o Sisters Of Mercy animasse a turma do caixão. Hoje
penso como eu destoava do resto do grupo — ridículo o que a juventude faz
a gente passar (ou uma garota bonita).
O cruzeiro era uma enorme estrutura horizontal oca em forma de cruz
onde se colocavam velas. O pessoal mais velho da cidade dizia que as velas
do cruzeiro nunca apagaram, nem mesmo na tempestade de 1978 que quase
acabou com a cidade. O cheiro daquela infinidade de velas era absurdo (e
bom). Um cheiro velho e carregado de preces, de pragas. Quando a fumaça
batia no nariz da gente, alguma coisa mudava em nosso pensamento,
éramos levados para outro tempo, um tempo de magia e misticismo onde a
noite ditava as regras e não os homens. Mas o rádio que gritava Marie Ann
com voz grossa não sabia disso e continuava com seu agouro sombrio.
Naquela noite me tornei fã do Sisters Of Mercy. Pelo menos isso, levei de
bom para casa.
Karla conhecia bem todos dali e depois de cumprimentá-los resolveu
lembrar-se do namoradinho assustado — eu.
— Esse aqui é o Buba, gente.
Eu fiz o mesmo e me apresentei. A cada aperto de mão tive mais
dúvidas se deveria estar ali ou não. O primeiro a apertar minha mão era um
cara com o apelido de “Arara”. Nada a ver com pássaros, mas sim com o
rótulo da pinga que ele adorava. Bebia uma garrafa sozinho sem cair. Eu
nunca cheguei a ver, mas a que ele levava naquela noite estava pela metade.
Depois veio a Jude — uma loira com peitões enormes e boca grossa,
também estava alta. Depois conheci oficialmente o Farinha que também
tinha apelido de Animal — contando esse primeiro apelido, não preciso
detalhar suas preferências químicas... Quando apertou minha mão, ele
estava com o nariz branco e tentando parar de rir. Drogado ou não, o cara
era uma figura, anoréxico de magro, o cabelo preto pela cintura e arfando
mais ar do que podia respirar. Parecia ter pulado para fora de algum gibi
futurista. Depois dele, sobraram duas mãos para apertar: a da garota que
permitira ao irmão de Karla a entrada para o bando (que ele já dominava) e
a mão de morsa do próprio. Fui primeiro na garota, aproveitando a distração
do Bolacha com a Karla. Devia estar dando alguma bronca nela por ter me
trazido. Pelo menos achei isso...
— Opa, sou o Buba, prazer — disse estendendo a mão.
A garota cuspiu na dela e apertou a minha.
— Night, garoto, pode me chamar de Night.
Fiquei com um pouco de nojo, mas a mulher do Bolacha era gostosa
demais para eu sentir algum repúdio que durasse mais de meio segundo.
Comecei a entender porque um homem começa a andar feito um doido de
preto pelos cemitérios. As mulheres... As góticas são malucas — e gostosas
pra caramba... A mulher do Bolacha tinha um metro e oitenta, ou mais, um
rosto quase escandinavo, olhos de um azul ignorante de bonito e uma
pele..., que pele. Deixaria um tatuador maluco. Ela era toda branquinha e
lisa como vidro. Estava com uma blusa decotada que mostrava o colo mais
bonito que eu vi na vida. Linda, quase tanto quanto Karla e se eu não
estivesse tão apaixonado, provavelmente a teria achado mais bonita que a
minha garota. Cunhadas gostosas sempre são um problema... Sempre.
— Vem cá, moleque — chamou a versão anabolizada de Gleen
Danzig. Fui até ele passando da bela à fera em três passos. Ele estava com o
antebraço apoiado no cruzeiro, iluminado apenas pela luz amarela. Aquele
encontro merecia uma foto, principalmente por ter sido o único.
— Oi — disse estendendo minha mão —, sou o Buba.
— Eu sei quem você é — respondeu ignorando minha mão. — Vou
dar algumas dicas pra não precisar chutar seu rabo. — Eu continuei
ouvindo. Já estava no lucro por não ter apanhado de primeira com aquele
“Oi, sou o Buba...”, que idiota... Ele continuou:
— Primeiro: você não tem direito de dar opinião. Se nós resolvermos
comer o fêmur de um defunto, você come ou vaza. Certo?
— Certinho — respondi.
— Segundo; eu sei que você tá comendo minha irmãzinha. Cara, se eu
ver você fazendo isso aqui dentro, vai precisar de um pinto novo. Nunca
tente fazer isso na minha frente, ouviu?
— Sim, claro q...
— Cala a boca. Eu não terminei. — Congelei de novo esperando um
soco. Graças a Deus que peguei o Bolacha num bom dia. — Posso
continuar?
— Hum-rum.
— Eu sei que a minha mina é gostosa. Controle seus olhos se não
quiser voltar cego pra casa... —Eu fiz que sim com a cabeça. — ... e nada,
nada mesmo do que a gente fizer aqui, sai desse cemitério. Hoje você está
com homens de verdade e se quiser continuar com a minha irmãzinha, é
bom aprender a ser um. E vê se aprende a dar uns socos. A Karla detesta
covardes. — Eu continuei com a cara de Machão. — Agora toca aqui — ele
disse dando uma cusparada na mão. Não uma cuspidinha sutil como a da
Night. Ele arrancou do fundo da garganta. Eu estendi minha mão. — Cospe
na sua também, Manézão — disse ele, dando algum crédito a mim. Eu
cuspi e nos cumprimentamos. Estava oficialmente entre os góticos sem
saber o preço a pagar quando pulasse o muro de volta.
— Pode arrumar os negócios, Farinha. Vamos começar.
— E o moleque, aí? Dá pra confiá?
— Agora dá. Ele tá comigo — respondeu Bolacha.
Eu já estava de volta ao lado da Karla quando eles tomaram a frente. O
Bolacha com a gostosa da mulher dele, o Arara com a loira peituda e o
Farinha com o que ele mais gostava em um tubinho de remédio pro nariz,
nas mãos dele, um saco grande e preto de... Sei lá o quê, mas parecia ter
ferro dentro. Ferro ou alumínio. Fazia barulho como o de panelas batendo
umas nas outras.
— O que eles vão fazer? O que tem no saco?
— Sei lá... Quando eles começarem a gente sai de perto. Quero fazer
outra coisa com você.
— Fazer o quê? — perguntei (eu era muito tonto na época).
Ela pegou a minha mão suada de nervoso e colocou por dentro (pela
cintura) do vestido comprido que usava. Me borrei de medo do Bolacha
perceber, mas mesmo assim deixei... E não achei nada. Estava sem calcinha,
peladinha... Não sei se fiquei feliz ou preocupado, mas com certeza fiquei
duro. Ela era bemmm gostosa, como disse.
— Safada — eu disse. Ela riu.
— Mas primeiro eu quero ver o túmulo do Caranguejo.
— De quem?
— Você não conhece nada mesmo daqui, hein? Credo. — Eu fiquei
com a cara de bobo que Deus me deu. Então ela explicou.
— O Caranguejo era um artista de circo nascido aqui na cidade. Os
velhos falam que ele era o melhor pistoleiro do país todo. Não errava nunca.
— E acabou enterrado aqui? Coitado...
— É uma longa história. Meu irmão me contou ela toda.
— Conta vai. Tô curioso agora — pedi.
Karla olhou para as velas do cruzeiro, o amarelo brilhou nela como
ouro, então ela me contou.
— O Caranguejo fugiu com a filha de um fazendeiro daqui da cidade,
o nome dela era Clara, eu acho. Clara, Branca, Cândida, alguma coisa
assim.
— E?
— E o pai dela gastou boa parte da fortuna caçando o Caranguejo e a
filha. O velho nunca aceitou que ela tivesse fugido com o pistoleiro. O
Caranguejo tinha se aposentado e trabalhava para ele na fazenda há uns dois
anos.
— Ele fazia o quê?
— Era jagunço. Tipo um segurança do tempo do Jeca...
— E o velho? Encontrou os dois?
— Achou sim. E mandou matar o Caranguejo.
— Sacanagem... E a moça?
— Ela se matou depois, mas a enterraram na fazenda do pai, bem
longe daqui do cemitério. Ele tá enterrado aqui e dizem que aparece em
todo aniversário de morte dela pra tentar encontrá-la. Você já deve ter
percebido onde quero chegar, né?
— É hoje? — perguntei, sem querer saber realmente a resposta e
prestes a sujar a cueca.
— É sim. Ele ganhou esse apelido quando morreu. Deram mais de dez
tiros nele e mesmo assim ele se arrastou, andando de lado, até morrer nos
pés da filha do fazendeiro, ela estava refém de outros jagunços.
— E como era o nome dele? O verdadeiro?
— O pessoal do circo chamava ele de Kid.
— Merda...
Todo mundo na cidade conhecia a história da capela do Kid. Mas não
como a história do Caranguejo. O túmulo do tal “Kid” era enfeitado por
duas garruchas moldadas em chumbo e cruzadas com a inscrição: “Para
sempre na Mira”. A lenda que corria pela cidade dizia que alguma coisa
atirara da sepultura, de dentro pra fora, acertando uma árvore velha que fica
na frente. Dizem que analisaram a bala e o túmulo de tudo quanto foi jeito
sem achar uma explicação lógica. A capelinha onde estava enterrando o Kid
ainda tinha o furo de bala no vidro sem que nenhuma trinca fosse feita com
o buraco. Apenas um furo, perfeitamente redondo, por onde a bala passou.
O povo antigo da cidade dizia que de vez em quando ele ainda saía e atirava
para todo lado.
— Que foi? — perguntou Karla quando eu diminuí o passo.
— Nada não. Parece que eles chegaram — falei. Tinha que tomar
cuidado para não mostrar que eu estava com medo. Coisa natural dentro de
um cemitério à noite, mas nada é natural para um garoto... Pelo menos para
um que se orgulhava desde cedo do que carregava dentro das calças. — O
que eles querem ali? E o que tem no saco com o Farinha?
— Coisa de góticos. Eles querem conversar com o espírito do
Caranguejo, saber como é o outro lado. Em troca, pretendem contar pra ele
onde a mulher está enterrada.
— E acha mesmo que ele vai aceitar tudo numa boa? Sem fazer mal a
ninguém?
— Ele morreu de amor. Espíritos assim não perseguem os vivos...
Eu fiquei quieto para não falar besteira.
Do que eu sabia de espíritos, o melhor a fazer era manter uma boa
distância. Nunca fui muito fã de terror e dessa palhaçada toda de meninas
virgens sendo sacrificadas, então eu me sentia, digamos... deslocado (no
mínimo). O resto do bando estava animadíssimo. Arara bêbado, Bolacha
louco para tirar a roupa da namorada, que provavelmente o convencera a
estar ali numa chupada, e o Farinha mais louco que um Jim Morrison na
Holanda. As mulheres não estavam muito melhores e acho que a mais
normalzinha era a minha Karla. Ainda penso que ela só estava ali para me
fazer de mim um homem. No final conseguiu o que queria.
Farinha e Arara estenderam um pano preto no chão e começaram a
colocar um monte de coisas em cima, coisas vindas do saco preto. Lembro-
me do desenho de estrela mais que do resto. Estrela de cinco pontas. Era
bonita, toda cravejada com linha prateada, símbolos mágicos.
Colocaram uma vela acesa em cada ponta, uma vasilha com sal, outra
com vinagre. Um pote de mel e um livro grosso. Um livro de Alester
Crowley. Coisa da loira peituda. Ela era a que mais sabia de magia e desses
lances do além. Não sei se gótico gosta dessas coisas, mas aquele grupo
gostava. Até o Bolacha, que de gótico não tinha nada, parecia levar a sério a
preparação da tal cerimônia. Tinha um crânio também. E de verdade. Com
poucos dentes e podres. Devia ser de algum mendigo.
— Chega aí, ô moleque — chamou meu “cunhado”. — Me ajuda a
acender as velas.
— Claro — respondi. Orgulhoso. Ele podia ter chamado qualquer um,
mas preferiu a mim.
— Mas primeiro coloca esses sapatos na frente da capela.
— Pra quê?
— Faz o que eu tô mandando. — E eu fiz. Depois fui para as velas.
Peguei o fósforo, risquei, e uma a uma, fui acendendo. Na terceira
vela, a luz já aumentada mostrava bem a capela mortuária à frente. E o
buraco de bala, perfeito e redondo, sem nenhuma saliência. Lá dentro
estava cheio de flores vermelhas de plástico. Pensei no México, sei lá por
quê...
— Anda logo, moleque — disse Bolacha, me tirando da
contemplação. Eu passei para as outras duas velas.
Pode ter sido impressão minha — afinal estava me borrando de medo
— mas as chamas pareciam dançar na direção da capelinha do Kid. Não
estava ventando nada, sei disso pelo calor que fazia dentro das minhas
roupas pretas. As labaredas pareciam encantadas com o Kid. Enquanto eu
as acendia, o Animal do Farinha aditivava a Karla. Não que eu achasse ruim
o fato dela encher o nariz de pó, meu medo era o cara abusar dela. Difícil
também, com o irmão por ali, mas eu não aceitava o menor risco de ficar
sem aquela garota. Acendi rapidinho as velas que faltavam e fui até ela.
Cheirei um pouco também — ninguém é de ferro, ainda mais antes dos
vinte... Aquela foi à primeira vez e última. Pareceu que enfiaram um cubo
de gelo bem no meio do meu cérebro. Foi dolorido, gritei de dor. Mas
depois... Oh, man... Depois eu virei o super-homem...
— Parece que a gente arrumou outro sócio, Bolacha! — disse Farinha.
— Vai devagar com essa porra. Não quero ninguém no hospital de
novo — ele respondeu. Pelo jeito o pozinho de pirlimpimpim corria solto
no cemitério. Ficava mais fácil entender os caras de preto. Ninguém era
bobo ali. Nã-nã-não... Talvez eu fosse. E só.

**
A Jude entrou rápido em uma espécie de transe. Estava em pé, rezando
baixinho e balançando para frente e para trás. Um vento solitário começou a
agitar seus cabelos loiros. Só os dela. Parecia que alguma coisa a
circundava movendo o ar. Assistindo a isso, meu medo piorou muito. O
Bolacha e a Night continuavam arrumando o pano-de-satanás (que depois
me mandaram chamar de altar) com meticulosidade. A dedicação do
Bolacha era tanta que eu perguntei para Karla:
— Seu irmão tá levando a sério essa coisa toda, né?
— Tá sim. Ele acha que vai conseguir falar com nosso pai.
— Saudades? — perguntei.
— Antes fosse... Quando papai se foi, eles estavam brigados. Meu pai
nunca aceitou o jeito maluco do Bolacha. Desde pequeno meu irmão
apanhava feito gente grande... Uma noite antes do papai morrer do coração,
eles brigaram feio, por causa de uma moto que o Bolacha arranjou. Meu pai
achou que era roubada e falou um monte de porcarias pra ele. Só que
daquela vez o Bolacha reagiu e socou o papai. Bem na cara. Quando viu o
que tinha feito, sumiu de casa. Só voltou depois de uma semana. Papai já
tinha sido enterrado e tudo. Acho que ele nunca se perdoou por isso, mesmo
cuidando de mim e da casa.
— E você acha que seu pai morreu por causa dele? Da briga?
— Que nada... Meu pai era outro que bebia e fumava demais. Minha
mãe nos abandonou por isso. Cansou de dividi-lo com a garrafa.
— Achei que ela tivesse morrido... Sua mãe.
— Pra gente, morreu mesmo. Principalmente para o velho — disse a
minha Karla. Linda como poucas vezes a tinha visto. No fim, nada é mais
bonito que a sinceridade.
— Ô-ô, casal vinte. Dá uma ajuda aqui. — Bolacha... Chegamos mais
perto pra ver o que ele queria.
— O que a gente faz? — perguntei. Foi a vez da Jude responder.
Difícil não congelar os olhos nos peitos dela. Eram enormes e... Nossa, me
deixavam hipnotizado. Qualquer um dos caras pularia dentro do cruzeiro se
ela tirasse a blusa e pedisse. Mas ela não pediu isso.
— Nós vamos dar nossas mãos e fazer uma invocação — foi o que ela
disse. O Maluco do Arara mal parava em pé e o Farinha estava vendo
espíritos bem antes do procedimento. Eu e a Karla, o Bolacha e a Night,
estávamos mais sérios. No meu caso era medo, o mais puro medo de melar
a cueca.
— Cala a boca, “dois”, agora é pra valer. A Jude falou que se alguém
brincar com o lance de hoje, neguinho vai sair despelado daqui. — Não
sabia por que naquele momento, mas acreditei mesmo no que o Bolacha
falou, sobre arrancar nossa pele. Acabei descobrindo depois.
Enfim, todos ficaram quietos. Não exatamente quietos, mas se
esforçando para não rir. Se aquele grupo representasse os góticos, a
sociedade dos caras de preto estaria perdida. As únicas realmente góticas ali
eram Jude e Night. Talvez um pouco da Karla. Nós, os caras? Nós não...
Éramos só um bando de pintos loucos atrás de drogas e garotas. Nada além
disso... Eu, para não contrariar ninguém, peguei na mão das garotas. A Jude
ficou de fora da roda, em cima de outra tumba, evocando o Kid. Ou melhor,
o Caranguejo.
— Espíritos dormentes, sádicos, egoístas e receosos. Sou eu quem vos
chama.
Deu uma pausa, respirou mais fundo e continuou:
— Pelas palavras daquele que já andou pelos dois lados, pelo
assombrado assombroso príncipe da mentira e da sorte, eu vos invoco. Peço
que me deem um pouco do tanto que sabem.
Coincidência ou não, vários cães da vizinhança começaram a latir
junto com as palavras da nossa “guia”. Ela falava, eles latiam, quando ela
parava, eles aquietavam. As velas também pareciam responder às variações
de sua voz, alternando sua atração entre túmulo e sacerdotisa. Eu
continuava com medo. Minhas mãos não paravam de transpirar e tudo o que
eu imaginava era a mão podre de algum defunto saindo da terra fofa e
agarrando minha canela. O tempo prova como frequentemente temos
razão...
Alguns morcegos também pareceram ouvir os chamados de Jude. Era
muito esquisito, mas notei larvas, moscas e mariposas que não estavam por
lá quando chegamos. Sempre achei que moscas não voavam durante a noite.
Até ali... Porque elas estavam por toda parte.
— Servidores da luz e da escuridão, eu sei que dia é hoje. Sei que
alguém procura pela resposta que eu tenho em mãos. Peço que libertem seu
encarcerado e o deixe estar junto de nós. Deixe que aquele que chamam de
Caranguejo caminhe até nossa companhia. Permita que a dor que atormenta
seu peito seja desfeita pelas nossas orações.
Farinha não aguentou e riu, soltando pó pelo nariz. E foi a última vez
que ele fez isso com algum prazer.
Então aconteceu.
No começo achei que estava vendo coisas, até que senti as mãos das
meninas apertando as minhas. Um dos sapatos tinha se mexido e eu não era
o único a ter visto. O pé esquerdo. Congelamos. Eu fechei os olhos como se
isso pudesse tirar toda a tensão que eu sentia espalhada por meu corpo e
devolver meu estômago ao seu lugar. Podia ouvir as pessoas respirando
forte pelo resto do círculo. Arara rezava baixinho para tudo quanto era santo
que conhecia. Karla estava tremendo. Podia ser medo ou frio. Parece que o
Ártico havia chegado ao cemitério em menos de cinco minutos. Sentíamos
o ar gelado e seco forçando caminho até nossas narinas. Rasgando nossos
pulmões como uma faca afiada. Tornei a abrir os olhos, mantive-os quase
fechados, semicerrados; deixando somente um pouco da luz amarela das
velas passar por eles. Foquei nos sapatos. E de novo um deles se mexeu em
direção ao pentagrama — e a Jude. O tremor da Karla aumentou e eu
apertei forte a sua mão para tentar dar-lhe a calma que eu mesmo não tinha.
Funcionou por um tempo. Jude continuou:
— Vejo que temos companhia. Se quem caminha para a escuridão da
estrela é aquele conhecido como Caranguejo, que seu pé direito entre no
círculo.
O sapato direito parou. Aquilo não parecia ser quem estávamos
procurando. Mas o pé esquerdo deu um pequeno passo.
— Ai, meu Deus do céu! vâmo pará com essa merda! — suplicou
Arara, bêbado demais para ter coragem ou conseguir correr.
— Você fica, e fica quieto! — disse Bolacha.
— Tá — respondeu Arara, nem um pouco mais calmo. Foi a última
coisa que ele disse... “Tá”. A morte não faz sentido algum às vezes.
Jude continuou com suas evocações — que para mim pareciam mais
provocações.
— Afaste-se se você não é o Caranguejo. Eu te esconjuro! — gritou. O
frio ficou mais intenso. Eu tremia muito, batia os dentes na tentativa de me
esquentar. Penso que toda aquela roda de gente de preto fazia o mesmo.
— Cara, tô passando mal — disse Farinha. Não era nada de novo isso
dele passar mal com todo aquele açúcar, mas alguma coisa começou a sair
do corpo dele.
Pó.
Primeiro pelo nariz. Saiu em um jato branco.
E depois pela boca. Como se ele tossisse talco, um monte de talco.
Seus olhos queimavam.
Alguma coisa estava tirando a Coca dele. Não só a consumida naquela
noite, mas a Cocaína de uma vida inteira. Ele começou a tremer igual ao
meu tio que tinha epilepsia, chamávamos isso de “acesso”, hoje sei que tem
outro nome. Eu não me interesso muito por doenças, mas o ponto é que ele
tremia pra cacete. Muito mesmo. Arara estava ao lado dele e tentou conter
seu chilique, mas alguma coisa dava a Farinha uma força descomunal.
Arara acabou preso por suas mãos sem conseguir soltar-se. Dava para ver as
veias do pescoço do Farinha infladas, a ponto de explodirem e sujarem todo
o chão com sangue. Mas não foi isso o que aconteceu. Ele apenas cuspiu
mais do pó branco anestésico. Quase meio quilo da coisa. Começou a
vomitá-la junto com cuspe e alguma coisa amarelada e pastosa. Foi o
suficiente para que ele parasse de respirar. Foi ficando branco, depois
azulado, até que enfraqueceu as mãos que segurava Arara. Seus olhos
viraram duas bolas castanhas opacas e sem vida.
— Caralho! Ele tá morto, cara! — gritou Night. Ela segurava uma das
mãos do Farinha.
Arara que estava segurando o outro lado parecia mal também. Ambos
— Night e Arara — estavam com a mão dolorida e arroxeada pela pressão
frenética do nosso aspirador de pó. Seus rostos e roupas pretas estavam
repletas daquela brancura que também adubava o solo cheio de morte do
cemitério. Do pó que saiu de dentro do Farinha.
Arara foi o próximo.
Começou a ir para frente e para trás, seu estômago pulsava e ele
abraçava a si mesmo. Também segurava algo dentro da boca. Os
movimentos peristálticos pioraram depressa e ele começou a andar em
círculos. A mão direita foi até a boca, impedindo que algo saísse dela. Algo
que ele gostava muito... Ele parou na minha frente ainda com aqueles
movimentos abdominais, para frente e para trás, como se todo seu estômago
fosse pular para fora como um animal vivo. Mais e mais forte. Seus olhos
me pediram ajuda, desesperados e arregalados, furiosos de certa maneira.
Arara afastou-se um pouco e tomou a direção do corpo morto de Farinha.
Ninguém conseguia mexer um só músculo. Podia ser o medo ou os
espíritos, mas estávamos todos presos ali. Todos com os braços estendidos e
sentindo calafrios por todo o tapete da pele. Nem nossa voz saía da
garganta. Arara parou sobre o corpo empoeirado que descansava de costas
para o chão e não se conteve mais. Despejou litros de cachaça por sua boca.
Cachaça e sangue inundando o corpo inerte de nosso Animal movido a pó.
Só quando o vermelho sangue superou a transparência do álcool, ele parou.
Seu corpo amolecido pelo esforço do vômito despencou de bruços
formando uma cruz combinado ao corpo de Farinha.
— Ah! Que merda! — gritei. Fui o primeiro a conseguir falar. Os
sapatos deram dois passos curtos à frente. Outros gritaram comigo e o
desespero foi grande demais para identificar as vozes. Karla ainda estava de
mãos dadas comigo. Night e Bolacha dispararam deixando a mim, Karla e
Jude para trás. Foi aí que eu vi.
Acho que vi.
Um vulto esbranquiçado entrou no corpo do Bolacha e fez com que ele
parasse de correr. Estávamos uns quatro metros atrás, mas a escuridão do
cemitério fazia com que parecesse bem mais. Night, ao lado dele, gritava
enlouquecida. Apavorada com o que estava dentro do corpo do namorado.
Bolacha a prendia pelo braço. Então ele tomou seu pescoço e o quebrou,
quebrou com as próprias mãos e sem muito esforço. O corpo magnífico de
Night foi ao chão. Pude ver mesmo a distância sua boca se enchendo com
terra e folhas mortas. Seus dentes bateram em uma pedra do calçamento,
um ou mais deles foram espatifados. Deu para ouvir o estalo de algo
quebrando. Tak. Um filete de sangue escorreu pelos lábios tingidos de
marrom. A coisa no corpo de Bolacha olhou para nós. Achamos que era o
fim, mas não... Não o nosso.
Bolacha olhou para o túmulo há dois passos à sua direita. Era uma
sepultura vagabunda com um crucifixo de concreto vertical bem no meio
dela. A cruz velha estava erodida pela ação do tempo e das chuvas, o que
criou uma ponta na parte de cima. A coisa no corpo do Bolacha não viu
uma cruz ali, viu uma estaca. Seu corpo forte voou como um nadador, de
peito aberto sobre a cruz. Ele voou e voou e quando aterrissou a velha cruz,
a estaca, o empalou. Bolacha voltou ao seu corpo quando algum sangue
espargiu de sua boca feito spray de pichador. “Desculpa”, ele disse, olhando
para Karla; então morreu.
Os olhos de Jude ficaram brancos depois disso. Ela os arregalou como
uma boneca infernal e olhou fixamente para mim. Karla estava no chão,
abraçada aos seus joelhos parecendo uma doente mental. Remando para
frente e para trás, os olhos vidrados no limbo.
— Corre, Karla! Anda! — gritei. Mas ela não respondeu. Decidi ficar
com ela e ser o próximo da lista. Uma coisa que eu sabia sobre a morte é
que não dá pra enganá-la. Se for sua hora, aceite... É o melhor que você
pode fazer.
Jude preferiu se esquecer de mim e andou até a capela do Kid — que
todos chamavam de Caranguejo —, tocou na porta de vidro. Ela se abriu
desprezando o cimento que estava ali por anos. Jude entrou. Lá dentro,
abriu um armarinho que guardava uma imagem de São João e do fundo,
escondido pela imagem, pegou uma arma. Pelo jeito dormira ali por anos,
algum desgaste tomava quase todo o cano metálico. Ela levou a garrucha
até a boca e disparou. Seu sangue fresco manchou de vermelho o vidro
reforçado da capela. Mais dois furos foram feitos: um na cabeça da Jude
(por onde a bala saiu) e outro no vidro bem perto do furo antigo; também
perfeitamente redondo e sem arestas. O corpo de Jude caiu e se acomodou,
contorcido ao chão.
Eu não conseguia mais gritar, correr ou fazer qualquer coisa. O horror
me dominou tirando minha vontade de reagir, me hipnotizando como uma
serpente faz com seu alimento. As velas pareceram brilhar mais
intensamente e tão rápido quanto chegou, aquele frio tenebroso foi embora.
Passos estalaram folhas secas atrás de mim. Não tive coragem ou força para
olhar a quem pertenciam. Mas olhei para os sapatos à nossa frente, estavam
com as solas para cima.
Um vento leve trouxe cheiro de cigarros até minhas narinas. Um
cheiro azedo de cigarro de palha. Karla continuava como estava e
cantarolava uma música de crianças sem articular palavras. Apenas com
“Hummrum-Hummrums”. Ainda se balançava vidrada no infinito.
O barulho dos passos aumentava assim como o cheiro forte do cigarro.
Aquilo me deu vontade de espirrar, mas nem isso pude fazer. Estava à
mercê do dono daqueles passos. Percebi que um dos passos era arrastado e
sem vontade enquanto o outro era vigoroso.
Caranguejo, pensei.
E estava certo.
— Tava me procurando, garoto? — uma voz cigarrada perguntou. Não
fui capaz de responder, então ele continuou:
— Acha engraçado brincar com a desgraça dos outros? Vestidos como
putinhas de preto? Falando em puta... Parece que temos uma vivinha por
aqui — disse entrando no meu raio de visão e se aproximando de Karla. Ele
era horrível.
As roupas carcomidas pela terra eram farrapos encardidos. Olhei bem
para suas botas, eram feitas de couro e ainda em um estado razoável apesar
de cobertas por fungos esbranquiçados, como o chapéu dele também estava.
Vi sua pele ressecada sobre o esqueleto forte. Grudada em algumas partes e
despregada em outras, como um papel de parede velho. Seus olhos eram
verdes, minúsculos e secos, pequenos círculos perdidos dentro da órbita. A
cada tragada no cigarro forte, vazavam tufões de fumaça branca e densa
pelos furos de bala que ceifaram sua vida. Ele usava um cinturão com balas
e um coldre armado. Coisa de circo, notei. Deve ter sido enterrado com as
roupas do Show...
— É meu amigo... Parece que estragaram sua putinha aqui — disse.
Soltou um riso tísico, doente e engasgado. Acariciou os cabelos de Karla
deixando um pouco de pele podre sobre eles. Ela continuava distante.
Logo o Kid a deixou em paz e chegou bem perto de mim. Senti seu
cheiro... Deus do céu! Seu cheiro era a própria morte diluída em fumo.
Horrível e pungente; tóxico. Eu me urinei e só não fiz coisa pior porque
estava de barriga vazia. Não sinto vergonha por isso.
— Pode me fazer uma pergunta, companheiro... Conquistou esse
direito. Uma só e eu te respondo. Seu coração é puro até onde eu vejo. O
seu e o da putinha doida ali... Coitada. Infelizmente ferraram com a cabeça
dela. Desculpe por isso. — Ele continuou a me circular, avaliando alguma
coisa que os vivos não conseguiriam enxergar.
— Não tenho perguntas — eu disse, desempacando minha voz. Acho
que saiu uma voz gasta e sem vontade. Sem coragem na realidade... — Mas
posso te ajudar — continuei.
— Ah é? — riu a coisa, soltou fumaça cinza no meu nariz. Estava bem
perto e pude ver o quanto a morte consegue ser feia.
Havia alguns vermes se banqueteando dele. Ele percebeu que eu vi
suas larvas de estimação e arrancou uma delas atirando no chão e
amassando com as botas. E disse:
— Isso realmente incomoda, chapa... Por isso não gosto de visitas.
Mas o que pensa que pode fazer por mim?
— Quero uma coisa em troca e te conto — eu disse.
Ele assentiu e eu pedi o que queria. E ele me pediu algo também.
Concordamos.
— Tudo bem... Posso fazer isso. E o que vai fazer por mim? —
perguntou.
— Eu sei onde sua esposa está enterrada — eu disse.
A coisa riu. Gargalhou, fazendo eu me sentir um imbecil.
— Garotos... Sempre uns tontos... — disse Caranguejo. — Eu sempre
soube onde ela estava. Nosso filho cuidou de trazê-la para cá... Vi que o
coveiro subornado se aproximava da gente, o Morto. Olhei espantado
tentando avisá-lo do perigo.
— Isso ninguém te contou, não é? Ela teve um filho meu. Quem o
criou foi a avó. O velho safado do avô dele eu matei um tempinho depois. O
buraco de bala na minha capela é da bala que o atravessou... Da bala que
matou aquele filho-da-puta dentro do meu mausoléu.
— Pai? Que bagunça é essa? — perguntou o coveiro quando viu os
primeiros corpos formando uma cruz.
— Desrespeitaram a memória da sua mãe, filho. E me chamaram
daquilo.
O coveiro que alegava ser seu filho arregalou os olhos.
— De caranguejo? — eu perguntei.
Quando percebi estava com o cano sujo do revólver do Kid enfiado na
minha testa. Nunca vi ninguém se mover tão rápido, vivo ou morto. Foi
incrível. Em um segundo minha testa estava doendo e o dedo do Kid tremia
com vontade de me explodir. Seu filho coveiro de setenta anos apelidado de
“Morto” se afastou achando que ia ter mais uma carcaça para enterrar.
— Nunca, garoto, nunca mais me chame disso. Essa palavra traz mau
agouro por aqui. Me chame de Kid e nosso trato continuará de pé.
— E ela? — apontei para Karla.
— Ela não... Não posso fazer nada. Tem gente que não aguenta
encarar a morte de frente e o que o medo faz ninguém desfaz... Mas você
pode ir embora agora, eu sempre cumpro o que prometo. Volte amanhã e
cumpra sua parte. Senão eu vou te buscar.

***
Saí de lá e deixei a Karla na porta do hospital municipal. Eu não
queria me envolver mais ainda, não podia. O que eu diria? Quem acreditaria
em mim? Ser preso como assassino ia fazer algum bem para o mundo?
Não... Por isso continuei minha vida. Karla foi internada em uma clínica de
doidos onde eu sempre a visito. Todo ano e se possível mais de uma vez por
ano. Ela está legal, mas nunca mais falou ou sorriu ou nada depois daquela
noite com o Kid. Os médicos dizem que ela tem um problema mental, mas
eu sei que ver a morte de perto foi o que acabou com ela. Como eu prometi,
voltei na noite seguinte e nas próximas até limpar toda a bagunça e enterrar
os caras de preto. Ainda uso preto. Até hoje. Tem certas manias que a gente
faz bem em guardar; outras não. Também fiz uma placa de prata escrita:
“Kid-Certeiro” como havia combinado e coloquei dentro da capelinha por
duas vezes furada de bala. Acho que ninguém mais irá chamá-lo daquilo.
Eu nunca mais disse ou pronunciei a palavra. Nem mesmo nas inúmeras
vezes que fui à praia e vi crustáceos. Sempre dizia siri...
A parte do Kid? O que eu pedi?
Pedi para que ele me ensinasse a atirar. Ele cumpriu a promessa e me
ensinou direitinho. Tive por anos um programa na TV onde fiz um bom
dinheiro. Você já deve ter visto... Eu era bom nisso, quase tão bom quanto o
Kid. Acabei ficando amigo do resto decomposto dele e todo dia três de
agosto, eu o visito no cemitério — e a Karla na clínica. O filho dele
continua lá, cuidando do pai e da mãe. Acho que não vai morrer nunca.
Eu me casei, mas nunca esqueci a Karla. Sem ela, eu não seria nada.
É bom relembrar esses tempos. Hoje, olho para a minha cara no
espelho e me pergunto como é fiquei velho desse jeito. Acho que foi depois
que perdi o ânimo de viver. Chega um momento que a gente troca os
portões do cemitério por uma tarde na praia obrigado pela esposa. Não nego
que tenha muita gente que goste de encher os olhos de areia e fritá-los no
sol, mas eu não... Passei muitas tardes dessas enchendo a cara com cerveja e
olhando todas as bundas que eu podia no sol quente. Bundinhas
adolescentes e saradas, embriagadas com batidas de vodca Absolut. E elas
não me quiseram, nem mesmo enquanto fui jovem.
E como todo tiozão casado, tive que me contentar com a cara da patroa
me obrigando a me divertir num dia de sol. Um dia todas elas vencem e a
gente se torna mais inútil que uma micose entre os dedos. Nesses dias
tristes que para a maioria são alegres, eu também me lembro da Karla, do
Kid e de quando eu cismei que poderia ser gótico.
Danação

I
QUINTA NOITE seguida sem dormir... E eu pensando que escrever
pudesse trazer algum alívio — ou pelo menos sono.
Existem histórias que parecem contos e contos que não dizem coisa
nenhuma, então não suponho que alguém dará crédito a mim e aos meus
escritos — seria julgar deficitária a inteligência científica e racional dos
outros e isso, não posso fazer. Mas posso pedir que leiam. Quem sabe te
ajude a dormir? E a mim.
Sou um homem adulto, já passei da idade onde os ídolos do rock
morrem e também dos trinta e três anos do filho do “cara”. O cordeiro
crucificado... O cabeludo de Nazaré. Ele mesmo. O que digo, é que já sou
bem mais que um garotão recendendo cervejas e esperava que minhas
visões baixassem de agressividade junto com meus hormônios — pelo que
percebo, errei feio. A única coisa que eu vejo descer é minha coragem
quando penso nas infinitas noites em claro que me atingiram. Vou falar
mais sobre esse assunto, explicar melhor porque minhas pálpebras preferem
não se encontrar.
Já faz muito tempo que levo uma imagem tatuada na mente sempre
que vou para a cama. Não sei por que a coisa ainda me acompanha e
também não tenho certeza se ele (ou ela) é o que penso que seja. O que eu
sei fala sobre meus medos. Envolve suores e pavores; isso me basta. Não só
basta como me faz a escrever — parece que fazendo isso, de alguma
maneira, todo o mal se afasta.
As tais coisas são aparições quase trimestrais (sei que parece ridículo,
mas é assim que acontece, periodicamente), mas as piores vêm uma vez por
ano. A noite passada me homenageou com uma dessas. Pensando nela,
penso em como poderia ter evitado.
Para alguém se sentir em segurança em uma noite assustada, basta um
quarto trancado e uma cama com cobertas até o topo da cabeça. Isso
funciona até que resolvemos trocar masturbação por uma garota de verdade.
Penso que a escolha do nosso porto-seguro começa na adolescência quando
precisamos de um lugar isolado para chorar. Pelo menos na minha
adolescência — quando a coisa que eu via resolvia aparecer dia-sim, dia-
não —, era só isso que tomava meu tempo: choro e masturbação. E depois,
visões horríveis. Mas meu quarto nunca fora o porto seguro que citei
anteriormente, parecia mais um albergue de almas, principalmente à noite,
quando a escuridão tomava o mundo e deixava tudo mais quieto. É aí que o
medo na casa do cara que não trabalha e não sai (esse sou eu...).
Nas primeiras vezes, ele, a coisa, meu algoz, se fantasiava de
palhaço...
Eu o chamava de Yo-yo, mas poderia tê-lo dado qualquer outro nome.
O desgraçado usava uma perna-de-pau. Ele vinha até meu quarto — toc-
toc-toc —, rodeava minha cama, então me levantava dez metros teto acima
e me atirava no chão, de cara no chão. Eu não sei como atravessávamos a
droga do teto (já me perguntaram isso antes), mas sei que eu gritava até
perder o ar — e a voz. Depois dos gritos, aparecia minha mãe, irrompendo a
porta com a santa paciência que toda mãe de maluco tem. Ela me apanhava
do chão, me abraçava e me botava de volta na cama. Dizia que eram
pesadelos, mas ela nunca me explicou a serragem de arroz (serragem de
chão de circo) que aparecia no quarto. Nem as marcas de mãos no meu
pulso. Mãos adultas.
Fase complicada...
Anos mais tarde, “a coisa” começou a aparecer como um cara elegante
que dizia todas as noites que minha mãe iria morrer.
Todo garoto tem medo de perder a mãe. Isso é lei, sendo você machão
ou não. Não era diferente para mim. Lembro-me desse cara que chegava
quietinho, sentava no pé da minha cama com uma expressão deprimida e
dizia:
“Tenho uma notícia triste pra te dar garoto, você precisa ser forte.”
Eu apertava os olhos para que ele fosse embora sem me contar a tal
desgraça. Ele me ignorava e dizia: “Sua mãe está morta”.
“Nada de abraços ou beijos de boa noite, nada de lanchinhos com
recheio de carinho no colégio, nada de te defendê-lo do seu pai. Ela morreu,
carinha. Está morta e com a boca cheia de vermes”.
Eu chorava, dizia que era mentira, esperneava. Uma vez, cheguei a
jogar um travesseiro no homem elegante. Ele apenas sorriu como se a morte
da minha mãe trouxesse gozo.
Numa dessas visitas, deixou um cartão de apresentação entre as
cobertas. Não consegui ler o nome porque no outro dia a letra estava toda
suja, borrada. Mas eu ainda tenho o cartão. Isso não significa que eu queira
saber o nome desse homem, prefiro que ele nem exista. Talvez ele tenha
sido o pior disfarce da “assombração” ou, quem sabe, trabalhe para ela. O
que sei é que aos quinze ou dezesseis anos, ele parou de me visitar com
aquela aparência — minha mãe não morreu, se isso interessa. Eu sim...
Morri um pedacinho por noite e acabei me afastando de minha mãe com
medo de que ele a levasse. Era preferível tê-la viva e distante a estar morta,
pelo menos na minha cabeça infantil.
As visitas não pararam por aí como deve supor... Pioraram apenas.
Dos dezesseis aos vinte, no lugar do palhaço perna-de-pau Yo-yo e do
homem bem vestido, minha companhia noturna viria na forma de uma
mulher — mulheres. E ela me seduzia até que eu transasse com ela. Eu
fazia isso, como todo moleque explodindo em hormônios, e no meio do
sexo, no auge do calor, ela se transformava em coisas que eu tenho medo e
vergonha de contar aqui. Então me mutilava. Arrancava minha pele, ou
minhas... bolas, chegou a fatiar meu pênis no meio. Eu gritava como um
maricas. E claro que continuava ouvindo que eram “apenas sonhos ruins”
— só que até onde eu sei, sonhos não deixam cicatrizes. Tive nessas visitas,
todas as mulheres que um cara pode sonhar; de negras a albinas passando
por todo o catálogo de cores e curvas. A última dessas garotas de sonho e
pesadelo foi a mais bonita e a que me levou para um médico. Depois de me
guardar dentro dela por horas, ela se aproximou, mordeu forte meu pescoço
e me deixou dormindo. Pensei que fosse uma vampira ou coisa assim, um
demônio feminino. Rezei por isso, mas descobri algo pior: eu estava com
câncer. É isso... Um nódulo nascido bem no lugar da mordida. Por sorte (e
algumas sessões incômodas de radioterapia) me livrei do beijo maldito (e
também da pele clara do meu pescoço, ficou tudo meio marrom e opaco) e
pensei de novo que as visitas da coisa tinham parado por aí. Meu Deus,
como eu estava errado.
Com mais ou menos vinte anos, minha companhia mudou de novo —
prefiro dizer que ele deixou a roupa bonita em casa. A primeira vez que o vi
foi no banheiro, eu estava com a cabeça toda cheia de xampu e a coisa
apareceu pela fresta aberta da porta — depois disso, passei a trancar o
banheiro mesmo morando sozinho, não é bom deixar aberturas para insetos,
quando se mora na floresta. Esse é meu caso. Sou como um holofote e essa
coisa é uma mariposa.
Não sei o que ele é — ou era —, se são eles e, se o são, ou o que eles
querem de mim. Não sou um cara de religião, não sou ateu, muito menos
cientista. Sou um cara normal, sem grandes planos ou aspirações. Um cara
como você poderia ser se alguém tivesse roubado sua coragem e inocência
ao longo dos anos. Cheguei a pensar que eu devo ter um futuro tão maldito
que Deus deixou que essa coisa acabasse comigo antes que eu acabasse
com o mundo.
A coisa na fresta da porta era o demônio. Vermelho, astuto e febril. Ele
me ameaçava apenas sorrindo. Meu temor era tão grande que eu nem
tentava reagir. E ele apenas sorria. Eu me encolhia e rezava para o Deus.
Deus sempre me ignorava e deixava o monstro de enxofre se aproximar.
Pelas frestas, assisti o que é a maldade ocupando um corpo. Não dá
para simplesmente descrever. Sentia angústia, perseguição, uma promessa
ruim, uma morte com o corpo apodrecendo de lepra e sífilis, tumores
purulentos cuspindo sangue e líquor pela minha pele. Ele era tudo ao
mesmo tempo, o mal enfiado numa roupa de carne vermelha com patas de
dois dedos. E essa não foi a sua última vestimenta.
Pegue um chá ou um café forte. Tenho mais coisas para te contar...
Quando eu completei vinte e nove anos, ele começou a aparecer no
meu quarto como um tipo... Decomposto. Quase um zumbi. Ficava no canto
da porta me encarando, desafiando-me a caminhar até ele e provar que era
apenas um sonho ou uma psicose. Psicose?! Emanações da mente não
deixam punhados de terra pelos cantos do quarto. Jesus! Eu queria mesmo
estar enganado, mas aquela terra era suja e estava repleta de pedaços que se
despregavam do corpo da coisa. Guardei alguns pedaços das minhas visões.
Estão do meu lado agora, enquanto escrevo. Tem um cheiro forte, mas não
exatamente ruim, é um cheiro... Floral, diferente do cheiro que vem de
coisas podres. Nessas aparições da Coisa-Zumbi, senti saudades do
demônio e dos outros. Ele era horrível demais para meus olhos humanos.
Certa vez, ele — o tipo Zumbi — veio até mim e cochichou algo no meu
ouvido. O desgraçado me contou com sua voz fraca e sua língua
decomposta e despregada da boca, o dia em que eu iria deixar o mundo.
Morrer. Disse que ele mesmo voltaria com outra roupa para me carregar
para casa. Não sabia onde ele morava, mas não queria mesmo ir com ele.
Não queria reencontrar o que ele dizia estar me esperando. Preferia viver
com medo, com a coberta enrolada até o pescoço e com a luz do quarto
acesa. Mas é como dizem: Nenhum homem bom tem o direito de escolher
duas coisas: nascer ou morrer.

II
Meu perseguidor me deixou em relativa paz desde então, mas eu
nunca esqueci sua última frase. A tal data, minha morte anunciada pela
coisa...
E finalmente chegou, depois de longos anos.
É o que eu chamo de hoje.
Como provavelmente morrerei, resolvi colocar minha melhor roupa.
Infelizmente não tenho roupas caras e boas, então coloquei uma que me faz
sentir bem. Jeans, camiseta branca, blusa de flanela.
Espero por ele há algumas horas.
São quase três da madrugada e tudo o que eu ouço de assustador é o
barulho de um gato esfolando uma fêmea no telhado. Parece um bebê
demônio tentando dizer “olá”. Os malditos gemem alto... Transando e sendo
estuprados. O som é horrível e a imagem aterradora que floreia meus
pensamentos não é em nada melhor. Meus olhos piscam pesadamente e se
torna uma luta mantê-los abertos. Sei, do fundo de minha alma aterrorizada,
que chegou a hora.
Preciso descobrir o que essa coisa quer antes de morrer, penso. A
maldição que vêm sugando minha coragem por todos esses anos.
Ouço passos na sala da frente. Estou trancado no quarto de sempre,
como sempre. O teto da casa é feito de gesso e às vezes estala, tentando se
acomodar com a diferença de temperatura. Faz frio. Os gatos pararam de
transar em cima de minha cabeça deixando tudo da noite no mais absoluto
silêncio. Ouço outros passos; vêm de todos os cômodos da casa. Eu respiro
mais fundo e tento me acalmar. Talvez, dessa vez, consiga falar em vez de
ficar como uma estátua de sal. Quem sabe negociar, fechar um acordo. Ela,
eles, devem pensar que eu tenho algum valor, afinal, me perseguem pela
vida inteira. Mais barulho vem da cozinha. Parece que algo voou do
escorredor de louças para o chão. Tenho dificuldade em escrever. Meus
dedos estão tremendo e a cada duas palavras, preciso voltar e corrigir uma.
Agradeço a informática por não precisa fazer isso do jeito antigo —
acabaria com as folhas. A coisa está mais perto da porta do quarto, sei disso
pelos passos. Tec, tec, tec. Por baixo da porta trancada, vejo a sombra de
pés bloqueando a luz. Acabo me lembrando: Ele nunca precisou abrir
portas para vir até o pé da minha cama ou para o canto escuro do quarto.
Estou desesperado. Meu coração bate em minha boca. Meus dedos tremem
e o suor escorre para as teclas do notebook. Vou escrever o resto pela
manhã.
Se sobreviver.

III
São nove da manhã e finalmente descobri, ou melhor, compreendi.
Ontem, a coisa que me assustava há anos falou comigo. Não era o
demônio ou um zumbi. Não era um cara elegante, uma rameira de minissaia
ou um palhaço perna-de-pau. A coisa que estava andando pela minha casa
escura, cumprindo a promessa de levar minha alma, era apenas uma
criança. Um garotinho de olhos tristes e cabelos loiros cortados como se
fosse um Beatle. Pela primeira vez, bateram à porta em vez de invadir. E
pela primeira vez, eu abri.
— Eu não quero machucar você, moço. Só conversar... — ele disse.
No início fiquei com medo, mas aquela voz era tão conhecida, tão suave.
Resolvi conferir.
— Quem é você? — perguntei abrindo a porta. Só um pouco no
começo. Uma fresta.
— Isso não é importante. Mandaram vir te buscar.
— Quem mandou?
— Eles, nós... Eu. Você... Isso não é importante. Mas é importante que
venha comigo.
— Achei que você fosse o demônio...
— Não disse que não era — respondeu a criança.
— O que vocês querem comigo, garoto? Por que ficam me
atormentando por toda minha maldita vida?
— Você ainda não entendeu...
— E o que eu tenho que entender? O que eu preciso entender, porra?!
Ele baixou o queixo. Chutou a ponta de um dos pés com o outro meio,
sem jeito. Depois ergueu os olhos, me olhou ternamente e disse:
— O seu tempo acabou.
— Carinha, diz pro teu chefe me deixar em paz e...
— Não dá — o garoto falou. — Não falo mais com ele. Faz tempo que
o chefe não me ouve.
— Quem é você...?
Um sorriso, um sorriso triste e forçado.
— Eu sou o que você esqueceu... Precisa lembrar o que esqueceu...
Vem comigo, moço.
Eu olhei para ele, olhei bem fundo naqueles olhinhos. Senti tristeza e
saudade. Em Deja-vu sacudiu meu corpo. E percebi o que ele, eles, as
coisas, estavam tentando me dizer.
— Acho que... Meu... Deus! Não é possiv...
— É sim, moço... Você sabe que é... Eu sou o que você deixou pra
trás.

IV
Foi em um instante que tudo ficou claro.
O garoto era outra versão de mim... A única feliz, com cinco ou seis
anos de idade. Era eu mesmo. O cabelo comprido, os olhos caídos. Meu
macacão preferido.
E tudo ficou escuro de novo quando minha mente mergulhou em
paradoxos.
Completamente escuro e pareceu ficar assim por muito tempo. Apenas
o barulho da minha respiração quebrando a estagnação do nada completo.
Abri os olhos — depois do que pareceram séculos — e estava deitado
em uma maca. Mamãe chorando. Meu pai também. Não conseguia me
mover. Estava fraco até para falar. Mas eu compreendia tudo.
Um dia, resolvi deixar de viver. Parei de acreditar em palhaços felizes
e no amor de minha mãe. Desisti de amar uma mulher, também. Afastei-me
de Deus. Tive câncer e me recusei a morrer, mas também a viver. Me
reclusei. Matei aquele garotinho que queria tantas coisas da vida e aceitei o
fardo pesado do fracasso. Aceitei a impossibilidade de ser feliz. Tornei-me
um vegetal que só conseguia escrever. E eu não era mais... Eu. Tornei-me
apenas dúvida e indecisão, uma memória alojada em um cérebro doente
jogado em um quarto branco de outra pessoa qualquer. Assim continuei:
sem ter certeza de quem sou, onde estou, ou receber mais visitas. Estou
perdido dentro de minha própria loucura.
Eu nunca acompanhei aquele garoto e às vezes sinto saudade do medo.
Rezo para que minhas assombrações voltem. Rezo para que seus restos me
provem que eu ainda estou vivo. Quem sabe eu ainda seja uma criança
tendo seu pior pesadelo?
Às vezes consigo dormir, mas sempre acordo me sentindo culpado.
Por isso escrevo. E nunca sorrio.
Não há vagas

JACK ERA UM CARA que morava dentro de outro cara que não
prestava para coordenar coisa alguma. Contudo, era bom morar dentro do
Herman.
Como o próprio nome, Herman também era meio idiota. Mas era forte,
e como caras fortes dificilmente se dão mal na vida, Jack ficava confortável
aspirando a fumaça do cigarro que ele fumava, tomando o álcool que
sobrava, essas coisas que toda a segunda personalidade de alguém costuma
fazer. Também dormia mais do que ficava acordado, vez ou outra assumia a
transa e estapeava a bunda da mulher do Herman, tocava a vida. Jack não
gostou muito quando Herman se casou, mas acabou aceitando. Sempre é
bom ter uma mulher dentro de casa e afinal... traição existe para quê?
Herman também tinha outros prós; como um emprego que permitia muito
tempo de ócio para ele — e para Jack sacanear com suas memórias. O
grandalhão trabalhava construindo pedais de guitarra. Como todo bom
vagabundo acomodado ele se empenhava pouco, mesmo assim, garantia seu
sustento. Quando a grana apertava, deixava os pedais e ajudava algum
amigo a dar uma pintura em casa, a podar o jardim...
A esposa era o oposto. Elaine era dona de uma clínica de estética e
embora não fizesse calos nas mãos trabalhando, comparada a ele, era
praticamente um Henry Ford da cosmetologia. Eram felizes juntos, mas
ultimamente Jack andava colocando as asinhas de fora na vida de Herman,
e ela (que precisaria de uma trena para tirar a medida da língua) explodia
seu saco se superando a cada discussão. Jack aconselhava Herman a enfiar a
mão na cara da mulher e depois dar uma boa trepada no estilo “a vida como
ela é”, mas a vida de Herman tinha muito mais do Bozo do que de Nelson
Rodrigues ou Bukowski. Ele era um banana e tudo bem para Jack, desde
que não atrapalhasse a sua estadia — exatamente o que começava a
acontecer...

Manhã de quinta:
— Herman, por favor, né? Olha o chão da cozinha! Tá todo marcado
com a sola do seu sapato nojento — disse Elaine.
De novo, pensou Jack.
— Quer que eu faça o quê? — perguntou Herman. Jack sentiu vontade
de esbofetear a parte da cabeça que era de Herman, mas não quis arriscar
um derrame. Cérebros pequenos sempre são um problema quando se trata
de guardar duas ou mais pessoas...
— Tire o sapato, né? Já não mandei?
Mandei?! Manda se ferrar, cara! Não deixe ela te tratar assim! Que
droga!
— Não vou fazer isso — disse Herman. Ser um nipônico andando de
meias pela casa parecia demais até para Hermann. Jack dentro dele, se
sentiu todo vitorioso. Estava quase acessando um filminho de memórias
mais quentes, perder umas horas vadiando. E quando menos esperava,
Herman tirou o maldito sapato (como sempre).
— Melhor assim — cacarejou Elaine. Jack sentiu cólicas.
Pobre Jack...
Estava irritado há tanto tempo que nem sabia mais se queria
permanecer nervoso dentro de Herman ou se anular para ter uma velhice
tranquila. Garantido ou não dentro da cabeça oca do Herman, ele se
estressava com a falta de testosterona do colega. Nem de troco errado (para
menos) o grandão reclamava. Era uma moça no corpo de um troglodita. Já a
moça da relação — Elaine — começava a ser um saco de gelo, inclusive na
cama. Herman não se importava, mas Jack? Ele ficava maluco. Tentou por
semanas fazer com que seu colega de cérebro fosse até um prostíbulo ou
pegasse a irmã do melhor amigo — Sara dava um mole danado para ele. E
Herman parecia um capado. Jack calculava se ele tinha algum outro
problema sério além da falta de atitude e dupla personalidade. Perdera horas
vasculhando aquela cabeça mole atrás de um defeito e tudo o que encontrou
foram esquilinhos, coelhinhos e outras coisinhas fofuchas. Herman nem
parecia um homem.
Outra tentativa frustrada de traição que Jack jamais esqueceria foi
quando tentou convencê-lo a transar com sua cunhada. Um furacão de
mulher. Jack achava que ela queria transar com Herman só para competir
com a irmã e adorava a coisa toda. Atiçou-o como podia projetando suas
piores insanidades dentro da mente de Herman. O que ele fez? Confessou-
se na igreja.
Quinta-sem-sapatos era só mais um dia na vida de Jack e Herman onde
Elaine estava de folga — o que significava que eles (Jack e Herman)
ralariam como uma escrava gostosa nas mãos da sinhaninha (sem direito a
sexo e mordomias com o barão; claro).
— Amor? Lava essa louça para mim?
Pelo menos pediu com jeito, pensou Jack dessa vez.
— Claro — Herman pegando a buchinha, agradando a megera que
nem sexo decente dava a ele. Estaria Elaine tendo um caso? Jack ficou
excitado com isso e resolveu assumir a “parada” ali mesmo. Deixou a louça
como estava, botou Hermann para escanteio e partiu para cima. Elaine
estava passando paninho pela casa, levantando mais sujeira do que tirava.
Rabão, pensou Jack. Herman dormia em algum canto.
Com a psique mais fraca, ele não tinha consciência que dividia o
cérebro com outro. Isso o levou para alguns psicólogos, tentativas e mais
tentativas inúteis de diagnosticar seus apagões. E claro... não encontraram
Jack lá dentro. A cabeça oca de Herman deixava quilômetros onde se
esconder.
Jack chegou todo armadão roçando o jeans da esposa de Herman.
— Sai, Herman. Tô ocupada, não tá vendo?
Jack ficou puto. Pegou a mão de Elaine e meteu dentro da calça
fazendo-a encontrar uma das poucas coisas que Herman tinha de bom. Ela
arrancou a mão com tudo arranhando o meninão do parceiro.
— Sua vaca — disse Jack. Mal pode quando ela armou o golpe,
mesmo assim saiu de cena antes do disparo.
PLAFT!
Herman tonteou com a explosão. Inclusive a expressão ficou tonta
(mais tonta). Elaine o encarando furiosa enquanto ele voltava a si.
— Que foi, môr?
— Cafajeste!
— Que foi que eu fiz, Laine?
Seus olhos fritaram os dele. Muito cômoda essa desculpinha de
apagão. Ele já havia feito isso antes...
Como quando encheu a cara a caiu no meio da cozinha e rasgou o
queixo. Ou quando acertou o “buraco” premiado na hora do sexo sem que
ela tivesse permitido. Ela até gostou, mas achou um completo absurdo ele
nem pedir. Chegar arrombando a seco como um furador de poço... Um
abuso! — se pedisse com jeitinho ela teria deixado do mesmo jeito, mas
não diria isso a ele.
Esse era outro detalhe que Jack detestava no co-casamento com ela.
Tudo tinha que ser extradelicado. Exigia que Herman fosse uma bicha
vestida de algodão e não um homem de quase dois metros com bíceps de
lenhador. Até para responder que já tinha levado o lixo para fora, precisava
agir como uma freirinha virgem. Jack não gostava de ver uma mulher
tratando um homem assim, mas principalmente tratando uma “meia-moça”
feito Herman. O grandalhão não sabia se defender de uma mulher e Elaine
era praticamente uma gerente da gestapo. Não era à toa que quando Jack
assumia o sexo, dava umas pancadas nela. A safada adorava, mas ele
exagerava. Elaine não entendia quando de repente a violência acabava e o
babacão romântico do Herman voltava à cena, com a cara de tonto de
sempre, dizendo: “Apaguei” todo lambuzado de esperma nos pelos.
— Deixa pra lá, Herman. — respondeu enquanto o marido
massageava cinco dedos em auto-relevo no rosto.
Saiu confuso e sentou-se no sofá-igreja-intocável da sala para ler um
livro. Livro de horror. Uma das únicas coisas que Jack e Herman tinham em
comum. Filmes, livros, qualquer porcaria que esguichasse sangue eles
gostavam. Liam agora: Livros do Mal — coletânea, uma edição especial
com vários autores. Seis livros com capa de aço (é... aço mesmo!). Herman
sabendo da implicância da esposa com o maldito sofá sentou-se
meticulosamente cuidadoso, evitando a todo custo encostar os pés no tecido
sagrado. Jack também relaxou e ocupou meio hemisfério partilhando da
leitura. Estavam juntos, afinal; o que era bem raro. E nesses momentos Jack
adorava aquele monstro idiota. Adorar era pouco. Ele o idolatrava apesar
de toda sua aparente covardia conjugal. Hermann era um bom homem, um
homem que sempre seria melhor que Jack.
Sua parte na relação “dual” era assumir quando alguém abusava de
Herman. Como quando tentaram fazer na sua primeira briga de colégio (e
primeiro apagão). Eram três contra um. Jack assumiu e arranjou logo um
pedaço de madeira cheio de pregos esquecido pela rua. Deixou os três rivais
jogados no chão e Herman com a fama de garoto mau da escola.
Mas Jack sentia algo diferente em Herman de uns tempos para cá.
Uma temperatura diferente da de sapo na água dele. Naquela quinta-sem-
sapatos estava mais forte e ele parecia um sapo no sal. Seus pensamentos
estavam embaraçados. Nada da calma de professor de mestrado que
costumava coordenar tudo dentro dele. Estava tudo nebuloso e selvagem
ali. Jack ignorou e imergiu na leitura.
Não demorou nada e Elaine deu de novo ar da graça.
Aspirador de pó dos infernos.
Para Jack, Elaine poderia fazer aquilo qualquer dia da semana, mas
escolhia fazê-lo na folga do Herman e sempre onde ele estava — por mais
que Hermann tentasse se esconder em algum canto como um cão assustado.
Elaine sentia tesão naquilo, em perturbá-lo e mostrar como tinha trabalho
para manter a casa em ordem.
— Ergue o pé, Herman.
— Quer que eu saia daqui para não atrapalhar? — perguntou
paspalhão.
— Não, senão eu tinha mandado.
Herman continuou com Jack, focados e tentando ignorar o barulho.
Vuuuúúúúú.
Vuuu, fuoooopphhhh, vuuuuuuúúúú.
— De novo com esse livro? — perguntou Elaine. Falava mais alto por
causa do aspirador.
A coisa estranha dentro de Herman pareceu aumentar.
O que é isso, pensou Jack. O que está acontecendo com você, amigão?
Tá tenso...
— Eu gosto de ler — respondeu Herman.
Jack já sabia o que viria agora. O jeito seco de responder abriria um
precedente para ela chamá-lo de grosseiro, dizer que ele não era mais o
mesmo e despejar nele toda a porcaria de seus hormônios alterados que
religiosamente dia vinte e dois destruíam a vida na terra — não que os
outros dias fossem um oásis, mas sempre, tudo piorava com a TPM. Uma
desgraça total.
Mas a tensão que fermentava dentro de Herman fazia da TPM de
Elaine um peido na festa junina. Jack tentava, mas não conseguia
reequilibrar Herman. Pela primeira vez na vida, Herman estava inacessível
ao toque de Jack.
— Acho que precisamos conversar — disse Elaine, atirando o
aspirador no chão e o desligando com um chute.
— Se quebrar esse, fica sem — disse Herman.
Ahahah! Garoto! Eu não teria dito melhor!
— Não admito que você fale assim comigo, Herman Soares!
Jack se encolheu. Nome completo era prelúdio de agressão física.
— Acho bom parar de encher a porra do meu saco. — Olhos nos
livros. Voz dura.
Meu Deus, Herman! Tá maluco, cara? Onde é que você escondia
tanta valentia, hã? Bem vindo ao mundo dos canalhas, irmão!
Elaine retrocedeu um pouco. Dois centímetros, no máximo.
Onde estava o cara que catava a bosta do cachorro?
Jack também estava surpreso, mas tudo aquilo era tão novo que não
soube como agir. Elaine tornou a ligar o aspirador, se afastou bem mais e o
barulho do aparelho ficou mais baixo até sumir.
Finalmente vamos ler em paz. Você merece um abraço, Grandão.
Herman reabriu o volume que mais parecia uma Bíblia.
Alguma coisa nova tumultuou a paz do ambiente. Herman ignorava,
mas Jack estava atento. Conhecia as loucuras nervosas de Elaine melhor
que o próprio Herman.
Passos pesados começaram a aumentar. Fosse o que fosse, estava perto
de descobrir.
— Não quero mais você nessa casa! — Elaine gritou. Tinha uma mala
nas mãos, vomitando roupas pelas laterais.
— Tudo bem... — respondeu Herman. Mas não estava nada bem...
Jack sentiu de novo aquela sensação. Algo estava muito errado no reino da
Dinamarca.
Podia quase saber o que era.
Quase tocar...
Quase...
— Tudo bem?! — gritou outra vez. — Tudo bem, seu porco? Agora
você vai me ouvir!
Herman baixou o livro pesado e o manteve em seu colo. Ela
continuou.
— Você é mesmo um idiota! Um acomodado covarde e frouxo demais
pra mudar de vida. Acha que essas porcarias que você vende são um
emprego? Pedais de guitarra? Meu Deus! Você parece um adolescente.
Quando você vai ser o marido que eu quero, Herman?
Calma, companheiro. Você conhece essa mulher; daqui a pouco isso
passa, tentou influenciar Jack.
Nada.
Sentia a febre aumentando dentro de Herman, alimentando cada
sensação de raiva como naftalina em um tanque de gasolina.
— É melhor falar baixo, Elaine.
— Vai fazer o que, senhor machão? Vai me bater, é? — Ela estava
mais perto agora, bem no alcance das mãos enormes de Herman que
segundo as expectativas de Jack, não moveriam um músculo em reação as
ofensas. Mas claro que até Jack cometia erros...
— Fala comigo, seu broxa! Seu corno!
Herman suspirou. Elaine subiu mais quinze centímetros no salto:
— Reage, Herman! Ou será que você é mesmo essa derrota
encaixotada num projeto falido de homem? Eu NUNCA imaginei que você
se tornaria um homem tão frouxo. Um bosta!
Meu Deus, mulher, você tá indo longe demais, pensou Jack. E nada de
acessar Herman por mais que tentasse. Ele estava logo ali, em algum lugar
naquela cabeça, mas ele estava isolado, como se uma barreira mental de
titânio o protegesse das incursões de Jack.
E Jack poderia imaginar qualquer estopim para a explosão que viria,
mas nunca, nem em seus sonhos mais fantasiosos movidos a doses
intangíveis de álcool, imaginaria algo tão...
Simples.
Herman mudou de posição e seu sapato esbarrou no sofá-igreja-branco
da sala, nascia uma mancha de um centímetro e meio.
Elaine largou a mala entulhada com as roupas de Herman e se
aproximou.
PLAFT!
— Seu animal!
E aqueles quase dois metros de homem se levantaram do sofá. Elaine
afastou-se, ainda sem supor a atrocidade que viria a seguir.
Herman pegou o volume em seu colo, ergueu-o o mais alto que pode e
sem gastar uma palavra o disparou de volta na cabeça de Elaine. Jack
emudeceu de pavor. Sangue escorria por toda a face de Elaine, respingando
no chão, nas paredes e principalmente no sofá meticulosamente branco. E
Hermann não parou de bater até que a cabeça de Elaine soasse como
biscoitos pisoteados por um coturno inglês. Depois de terminar com sua
vida, ele arrancou com um puxão a camiseta escrita “I love disney” que
Elaine vestia e a usou para limpar a capa de seu livro de horror. Jack ainda
tentava trazê-lo de volta.
— O que você fez, Herman! Que loucura foi essa, homem!
— Não fui eu — respondeu a voz idiota e grossa de Herman.
— Não foi ele, Jack. Fui eu.
Jack ficou mudo, Hermann estava mudo. A voz se explicou:
Meu apelido é Cicatriz; o nome não interessa. Eu tô aqui dentro com
os dois paspalhos há muito tempo vendo a merda acontecer. Quem manda
nessa porra agora sou eu. Podem limpar tudo e depois a gente vai
estabelecer umas regrinhas novas por aqui.
Bem, e foi mesmo como dizem: um é pouco, dois é bom, e três...
Bem...
Três sempre dá merda...
Dor nas costas

¥
A PERGUNTA QUE Nelson se fazia há dois anos era se teria que se
submeter a um transplante de vértebras para conseguir dormir uma noite
inteira... Desde que abandonara seu emprego no supermercado, suas costas
se recusavam a entrar no eixo e assumirem os vinte quilos a mais que foram
distribuídos por seu corpo. Jovem ou não, os trinta e cinco anos mostravam
a ele que estava tão fodido quanto uma bunda arrebitada na festa do
sadomasoquismo africano. Ele já conhecia pelos avessos o histórico de
câncer de sua família e em sua cabeça hipocondríaca, visitar um médico iria
somente antecipar sua agonia e iniciar a contagem regressiva para sua
morte. Nelson se achava jovem demais para ter câncer (como todo mundo).
Não que não merecesse tê-lo depois do que fez com sua ex-esposa.
Arrancou dela dois dentes com uma pancada seca, mas o que ele poderia ter
feito depois de flagrá-la com o vigia noturno da rua (vigiando seu espartilho
vermelho) às três da tarde? O que um homem faria, hã? Nelson bateu nela
com força e saiu de casa. Da casa dela...
Dois anos depois, quase na mesma época do “adeus-emprego” no
supermercado, casou-se com Lucile. E ela era bonita; Deus!, como era
bonita. Cabelos louros compridos e grossos que chegavam à cintura, uma
boca carnuda que chamaria a atenção de qualquer puritano e um bumbum
digno do Oscar. Nelson não sabia o que ela vira nele, mas não dava a menor
importância, só queria continuar com ela e curar aquela maldita dor nas
costas.
Ele era um cara normal, de cabelos lisos e pretos, óculos fundos e um
sorriso que o fazia parecer bobo. Não só bobo, mas idiota; daqueles tipos
que enrolam as palavras quando falam com o chefe e nunca receberão uma
promoção simplesmente por parecerem retardados demais para algo mais
importante que pegar cafezinhos. Sua nova esposa trabalhava bastante e ele
não se interessava muito pelo emprego dela — melhor não saber demais.
Todo cara que levou um chifre do tamanho do dele passa a ignorar certos
detalhes na esperança de nunca mais descobrir que alguém fez sua esposa
sorrir mais alto que as novelas da tarde. Assombração só aparece para quem
tem medo, né... Do tal emprego, sabia apenas que ela era secretária. Clínica
médica e o doutor era mais feminino que ela — que Deus salve o doutor
Willian por isso, e todos os seus outros amigos gays...
Em outra manhã quente, lá estava Nelson, novamente debruçado em
frente da tela do computador, procurando orações, mantras, drogas e
massagens que aliviassem suas dores. Achava incrível a variedade de curas
que se encontrava na internet... Drogas de todos os tipos, teorias alarmistas,
suposições e todo, mas absolutamente todo tipo de teoria holística. O que
prendia sua atenção no momento eram implantes alienígenas que causavam
dores insuportáveis. Como todo bom hipocondríaco, tateava por suas costas
à procura de um caroço-implante enquanto lia o site. Quem sabe sua dor
insuportável não fosse, em vez do temido câncer, um implante?
— Amoôr? Estou em casa — Lucile... — Cadê você?
— Aqui — respondeu Nelson, confundindo voz com GPS. — Mas
Lucile não precisava de um localizador para saber onde estava a razão de
seu viver... Como sempre, na frente do computador. Todo mal ajeitado em
uma cadeira que não servia para ele. Nelson fechou bem rápido a página de
conspiração alienígena, antes a adicionou aos favoritos. Atirou-se na cama
deixando a cadeira.
— Como foi no trabalho?
— Bem — respondeu Lucile dando um beijinho em seu rosto. — E
suas costas? Está melhor?
Nelson não sabia o que responder. Detestava ser surpreendido naquele
cômodo que levava a culpa pelas dores do mundo. Se doesse a cabeça,
culpa de ficar todo o tempo com a cara enfiada na tela, se fossem os olhos,
estava muito perto da mesma tela, se doessem as pernas? Culpa de ficar
encurvado sobre o teclado, e aquela dor nas costas? Claro que seria obra da
maldita cadeira. Pensava é claro, em uma cadeira decente, mas
desempregado como estava, naquela cidade onde a única vaga permanente
era a de flanelinha, — e Deus sabia que ele já tinha pensado nisso —
precisava poupar dinheiro. Para poupança e para garantir a viajem no final
do ano à casa de seus pais — ou isso ou veria sua mãe morta de desgosto.
Filhos únicos...
— Tá doendo um pouquinho, Lu. Acho que preciso de uma
massagem.
— Depois eu faço, mas vai me pagar com juros — disse mordendo o
lábio inferior. Aquilo explicava porque arriscar um segundo casamento
quando o primeiro resultou em cornitude. Nelson percebeu alguma
animação embaixo de sua calça, não foi a diante. Estava curioso demais
pelo assunto em seus favoritos. O banho de Lucile seria a chance perfeita
para uma nova espiada.
— Depois, vai tomar seu banho agora, deve tá cansada — disse
Nelson.
— Quer me ajudar?
Bem que ele gostaria, mas tentar dar umazinha dentro do box apertado
e úmido, acima do peso, e com as costas estouradas seria comicamente
arriscado.
— Depois, amor; depois.
Assim que Lucile desapareceu pelo corredor, voltou para a cadeira
satânica. O lado direito das costas — logo acima do quadril — parecia ter,
não um implante alienígena, mas toda uma nano-tropa-estelar guerreando
contra seus ossos. A dor lacerante queimava pele adentro. Aço quente
repuxando toda a musculatura a partir de sua coxa. E não havia nada a fazer
a não ser esperar pelas mãos milagrosas de Lucile e sua massagem.
A aparência interestelar do site não deixava dúvidas sobre o conteúdo
da página, mas a parte mais interessante ainda estava escondida em um link.
Tão escondida quanto o mundo de pornografias que a qualquer descuido
pulava na frente da tela. Nelsão aproveitou bem desse lamaçal virtual
enquanto se recuperava do divórcio. Acabou deletando tudo quando
começou a transar com Lucile. Seria uma ofensa alguém com Lucile
desperdiçar espermas no ralo.
— Aqui está você — disse baixinho enquanto clicava em outro link:
INSTRUMENTAÇÃO/IMPLANTES.
Leu um pouco.
Conteúdo interessante, apesar de carregado de ficção. As poucas fotos
com extraterrestres propriamente ditos eram da famosa autópsia russa que
mostrava Et’s sem pinto. Pensou em Lucile que não gostava nada desses
assuntos, Nelson achava que era medo, coisa de mulher. Se ela sentisse sua
dor nas costas teria a mesma coragem dele em bisbilhotar uma cura — ou
um diagnóstico que não fosse câncer.
Outras fotos do link mostravam objetos retirados das estranhas de
seres humanos. A maioria servia para rastrear, GPS’s de ET, mas existiam
outros que forneciam controle mental, físico, tinha até um explosivo
biológico encontrado dentro da perna de um mexicano.
Juan Lopes — a vítima — disse na entrevista que pensou que aquilo
era coisa do governo, Big-Brother. Mas depois de submetida à análise, a
gosma gelatinosa e de aparência metálica que saiu de dentro da musculatura
de sua coxa esquerda, foi classificada como “material não identificado e
nitroglicerina”. O mais ceticamente provável é que o corpo tivesse gerado o
material desconhecido, apesar de não ter carbono, sangue ou nada
conhecido a não ser a velha e boa nitroglicerina alojada na bolsinha de
gosma.
Outra parte descrita era sobre como eles inseriam as biomáquinas nos
seres humanos. Estava escrito em vermelho com um pequeno bisturi-
animado que rasgava o novo link convidando ao acesso. Eram muitos
depoimentos; muitos mesmo. Mais de cem, e algumas vítimas colocavam
até seus telefones e endereços.
— Amoôr, vamos dar um jeito nessa coluna? — chamou Lucile. Os
cheiros de xampu e perfume de mulher invadiram a casa levando todo
aquele cheiro de macho embora. Casar de novo foi um bom negócio sim.
Nada no mundo é pior que uma casa que cheira a homem.
— Tô indo — respondeu Nelson, hipnotizado pelo site.
Amnésia, leu. Eu tive isso...
O episódio aconteceu duas ou três semanas antes de conhecer Lucile.
Doutor Willian era um bom psicólogo, apesar de não ter resolvido muito no
caso dele. Um dia inteiro da vida de Nelson simplesmente desaparecera.
Mesmo com a ineficiência médica, assim que cravou seus olhos míopes nos
olhos da secretária loira, pagou e se apaixonou. O casamento aconteceu
rápido e seu dia apagado acabou mais apagado ainda. Acabou achando o
apagão alguma “obra do destino” que resolveu ligá-lo a Lucile.
Começou a se apalpar de novo à procura de caroços cancerosos, dessa
vez procurando por algo diferente. Um objeto longilíneo como um grão de
arroz. Segundo o site, a sonda Rice disparava sinais transmissores usando
os minerais de seus ossos como fonte de energia e antena (e isso doía).
Seguiu nas páginas e agora lia sobre um velho, o americano Mr. Sanders,
que teve uma lente alienígena implantada em seus olhos. Tinha dores de
cabeça terríveis, a ponto de fazê-lo desmaiar. Em uma consulta de rotina no
oculista, Mr. Sanders teve o objeto mapeado — acabaram inclusive
marcando uma cirurgia de remoção. Infelizmente para Mr. Sanders, a visão
se foi junto com o aparato nanotecnológico. Tinha uma foto da lente,
parecia uma água viva. Minúscula, mas precisa. Letal em sua
sobrevivência.
— O que você está fazendo aí? — perguntou Lucile. Dava gosto ouvi-
la falar. Recusava-se a abreviar um só tempo verbal, dicção também
perfeita.
Nelson estava com as mãos sob a camisa, procurando...
— Pare com isso, neném. Vai piorar sua dor. Deixa eu te ajeitar? —
Lucile se aproximou. Vestia uma camisola curtinha (só aquilo curaria
qualquer coisa).
Obediente, Nelson a acompanhou até o quarto.
— Deite-se aí, vou dar um jeito nisso.
Logo que suas mãos (ainda um pouco lubrificadas pelo creme
hidratante pós-banho) tocaram nas costas, o alívio começou. A cada toque
mais forte a dor diminuía até tornar-se apenas uma lembrança, menos
incômoda que uma coceira.
— Não sente nada de estranho? — perguntou Nelson.
— Como o quê? Caroços cancerígenos? — sorriu. Lucile era esperta e
tinha visto parte da página.
— Não é isso...
— Nelson... Vou dizer uma coisa a você: não é porque sua mãe teve
esse problema e mais duas tias distantes que...
— Três — interrompeu ele. — Três tias.
— Que seja; não é porque três tias distantes e sua mãe tiveram esse
problema que você também terá. E tem mais: sua mãe está bem e quem não
sabe, não diz que ela teve câncer. Se quer saber, ela está bem melhor agora
do que antes.
— Você tem razão; como sempre.
— Tudo bom. Só não durma, está bem? — pediu. Continuou com sua
massagem pretendendo bem mais que aliviar o marido. Alguns apertões
depois e ela encontrou algo encaroçado; dentro do short ridiculamente curto
do marido.
Quando Lucile terminou a massagem — e o bônus — Nelson
esqueceu que tinha uma coluna dentro das costas. E não se lembraria dela
até a manhã seguinte.

¥¥
Nelson acordou por volta das nove com a campainha se esgoelando na
cozinha. Por um breve momento, pensou que a dor o havia abandonado,
mas quando botou os pés chatos no chão foi como se tivessem torcido suas
costas. A dor estava fortíssima naquela manhã. Estava ainda pior.
Caminhou com dificuldade até a porta da frente. A campainha não
dava trégua.
— Já vai, pô! São nove horas ainda! — disse bem alto.
Olhou pelo olho mágico embaçado e deu de cara com o olho enorme
de alguém que fazia a mesma coisa.
Abriu a porta.
— Acordando tarde pra variar né, doutor? — disse Leandro. Cheirava
à maconha logo cedo.
— Entra, Leandrão...
Um cara alto e jambo, com pequenos olhos tristonhos, passou pela
porta. Com ele, sua bunda enorme. Leandro era fisicamente engraçado e o
cabelo ralo e preto era a única coisa que lhe dava alguma seriedade. Um
pilantra nato e, como Nelson, achava que tinha todas as doenças do mundo.
Terminariam empatados no prêmio Hipocondríaco do Século.
Conheceram-se no supermercado e Leandro, não fosse pela
hipocondria, seria em tudo diferente dele. Nelson era todo sério e
preocupado e Leandrão quando tentava pensar, acendia um baseado — para
a vontade ir embora. Era solteiro convicto e sua renda principal uma
mesada gorda do pai, apesar de ninguém no mundo saber disso a não ser
Nelson. Leandro foi direto para o computador, dono da casa.
— Tá sozinho, prego? Cadê a onça?
— Trabalhando — respondeu Nelson dando uma bocejada. Coçou a
bunda por cima do short. Depois perguntou:
— Cara, lembra aquelas dores de cabeça que você tinha?
— Tem como esquecer? — resmungou Leandro. Procurava na tela o
assunto que menos interessava no mundo para Nelson, futebol. — Ainda
dói, às vezes — explicou melhor. — Fui no médico semana passada; disse
que não é nada, mas eu ainda acho que é aneurisma.
— É... Mas pode ser outra coisa — disse Nelson. Leandro mordeu a
isca e esticou os olhos para ele. Só para judiar um pouquinho, Nelson
deixou-o plantado olhando para a porta e foi até a cozinha apanhar uma
cadeira.
— Fala logo, prego! O que você sabe sobre minhas dores de cabeça?
Nelson voltou pro quarto meio arqueado carregando a tal cadeira. Um
das mãos nas costas.
— Clica aí nos favoritos. E chega pra lá pra eu sentar.
— Bermudinha gay, hein mano? — zoou Leandro.
— Vai te catar, Leandrão; pelo menos eu casei. Duas vezes.
— Conheço um monte de veado casado... — provocou. O passatempo
preferido de Leandro era encarnar no Nelson.
— Clica logo aí.
Leandrão clicou e rapidamente seus olhos devoraram a tela da mesma
maneira que fizeram os de Nelson na noite anterior. Não demorou nada para
encontrar o mesmo caminho que ele.
— Cacete, prego! Olha aqui, tem uma sessão só de implantes —
continuou. Cutucava as têmporas a procura de alguma irregularidade.
— Não vai achar nada assim. O site diz que os implantes de cabeça
são mais difíceis de encontrar.
— E como a gente descobre? Médico?
— Clica aqui embaixo, onde tem o bisturi — Nelson apontou.
— Olha só... Os caras pensaram em tudo. Tem uma área só pra
reconhecer os aparelhos.
Leandro ficou quieto por alguns segundos, tempo suficiente para que
Nelson pudesse ir até o banheiro e acordar direito. Jogar uma água no rosto
e escovar os dentes. Leandro era um daqueles casos clássicos de crianças
que foram criadas pela televisão. Para mantê-lo quieto, bastava ligar alguma
coisa com uma tela. Nelson não demorou.
— E aí? O que tá achando?
— Sinistro..., eles falam de amnésia. Sabia que eu já tive isso?
— Claro que sim e que você já teve gonorreia, chato, apendicite, gripe
mortal, foi infectado por Antraz, Ebola. Não sei como não morreu ainda.
— É sério, prego, tive uma amnésia ferrada uma vez, devia ter uns oito
ou nove anos. Acordei em outra cidade; na casa do meu primo. — Leandro
não estava brincando com aquilo. Seus olhos miúdos estavam tensos; roía a
unha do dedinho. Ele só fazia aquilo se estivesse puto com alguma coisa, ou
muito preocupado.
— E como eles colocam essas coisas na gente? Tipo... Como entra
sem a gente acordar? — perguntou.
— Você acorda quando um pernilongo te pica? — perguntou Nelson.
— Acho que não.
— É tipo isso; eles têm algum anestésico forte e você nem percebe. O
máximo que vai sentir é uma coceirinha depois — explicou. Já tinha
devorado essa parte na noite anterior.
— E como eles entram em casa? E sem que ninguém veja?
Leandro falava mais alto e mais rápido, completamente convencido
que tinha um troço daqueles bem no meio da cabeça. Mais convencido que
Nelson com suas costas.
— Eles têm máquinas... Robozinhos camuflados. E tem mais: se
alguém acordar eles apagam a memória como fazem com os caras
abduzidos.
— Tipo o cara do Fire in The Sky?
— Isso, tipo ele.
Ficaram algum tempo encarando a tela escura do site com seus
pontinhos estelares, uma nova bíblia. Quando começaram a conversar de
novo, Nelson já estava mais interessado em um de seus brinquedos e fora
do computador — a bunda enorme de Leandro que não deixava que
ninguém além dele na frente da tela acabou expulsando Nelson.
— Leu o que eles dizem sobre zoneamento? — perguntou Leandro.
Cara ainda enterrada no monitor LG.
— Acho que não. — Nelson continuava disperso, brincando com um
gerador de raios tesla em forma de caveira. Adorava aquela caveira de
vidro. Presente de Lucile.
— Diz aqui que eles pegam gente do mesmo bairro e ficam
monitorando as atividades, para facilitar a captura de novas cobaias.
— E daí?
— E daí que a gente mora perto, tá ligado?
— Leandrão... Eu ficaria feliz se essa dor nas costas fosse um
implante, mas acho que é um tumor.
— Deixa eu ver isso aí — pediu Leandro.
— Tá doido, cara? Eu não vou virar a bunda pra você de jeito nenhum
— respondeu Nelson. Confiava mais numa doninha que em Leandrão.
— Cara... na moral? Eu tô tentando ajudar antes que algum médico
decida rasgar suas costas à toa — disse. Nelson repensou. Se soubesse que
era um implante podia encontrar o médico certo, o site dava uma lista de
médicos americanos que arrancavam as coisas de graça. Mesmo assim
precisaria convencer Lucile a pagar a passagem até os Estados Unidos —
ou pelo menos até o México onde os caras deviam usar tequila e mijo para
esterilizar os bisturis, mas... Se soubesse que era mesmo uma porra
alienígena conseguiria.
— Sem viadagem? — Nelson confirmou.
— Claro, prego... Deita aí, vai. Deixa eu ver essas costas.
— Mas não aperta! — pediu Nelson antes de tirar a camisa. — Dói pra
burro.
— Não vou apertar, só quero ver se encontro alguma coisa.
Nelson deitou-se sobre a cama do quarto do computador. Uma virgem
em uma verificação de hímen.
— Se contar isso pra alguém, eu juro por Deus que nunca mais falo
com você — disse Nelson.
— Se eu contar pra alguém que coloquei as mãos nas suas costas,
nunca mais arranjo mulher... Agora fica quieto. E se doer, me fala.
— Ai! — gritou Nelson.
— Que foi? — disse Leandro espalmando suas mãos. — Nem relei em
você!
— Sua mão tá gelada.
Suspiro.
— Nelson... Às vezes você é uma bicha — lamentou. Esfregou uma
mão na outra na tentativa de aquecê-las. — Lá vai.
— Anda logo, cara. Não quero que ninguém veja isso.
Leandro começou sua análise.
Alguns minutos apalpando e...
— Humm, estranho.
— O que tem aí? — Sentia Leandro cutucar com seus dedos uma área
dolorida do quadril. Esticou-se todo tentando enxergar a área mesmo
deitado de costas.
— Muito estranho — disse Leandro. — Dói muito?
— O que tem aí atrás, Leandrão? Achou alguma coisa?
— Não sei, mas tem um negócio meio alongado... Parece uma... gota
— disse pressionando mais fundo. Nelson perdeu o ar.
— Jesus! Como isso dói! Tinha desses no site? — disse falando para
dentro.
— O mais perto era um negócio que parece um caramujo, mas o seu é
bem maior. Deve doer para caramba.
— Dói, dói mesmo.
— Vou tentar movê-lo; se doer muito, cê manda parar, beleza?
— Tá... Mas não me deixe paralítico.
— Prego... Se essa coisa não te aleijou, não sou eu que vou conseguir.
Seguiu pressionando com alguma força a base do objeto.
— Será que não é mesmo um tumor?
— Pode ser, mas tumores não ficam soltos na pele. Já contei que meu
tio de Caçapava teve um tumor no ombro?
Nelson meneou a cabeça raspando o nariz no lençol. Leandro
continuou.
— Parecia uma bola de Ping-Pong, mas enraizada embaixo da pele.
Ele me mostrou a pelota quando extraíram.
Nelson imaginava algo parecido enfiado perto de seu quadril, exceto
que o tumor dele deveria ser do tamanho de uma laranja... e com pontas, e
mortal. Devia ser um ouriço-canibal pela dor que causava.
— Ai, ai, ai! Cara! Para um pouco; agora doeu pra caralho. — Nelson
levou a mão ao local. — Mexeu pelo menos um pouco?
— Foi pra esquerda... — disse Leandro. — Bem pouco. E a dor?
Nelson tentou movimentar suas costas. Uma baleia encalhada tentando
jogar o corpo de volta para a água teria mais desenvoltura. Duas ou três
meia-roladas, e respondeu:
— Tá melhor, dói bem pouquinho. Pode continuar, aperta pra valer
esse desgraçado!
— Certeza?
A cabeça de Nelson foi para o fundo travesseiro.
— Vou ficar de pé para colocar mais força.
Leandro estalou os dedos, um por um.
— Me dá aquela meia — pediu Nelson desenterrando o rosto.
Leandro pegou uma encardida que estava no chão. A sola mais escura
que a madeira do piso.
— Não essa, gênio... Aquela outra limpa — disse Nelson. Apontou um
par enroladinho no pé da cama. Leandro entregou a ele. Nelson enfiou na
boca. Leandro riu.
— Tá rindo do que, sem-noção? — perguntou com a voz obstruída.
— Você ia se ferrar se a Lú chegasse agora... Bunda pra cima, sem
camisa, shortinho sem-vergonha. Isso e uma meia na boca. Cara; nem sua
mãe acreditaria que...
— Vai se foder, Leandrão.
— Tô brincando, prego... Relaxa aí que eu vou apertar o rádio do ET.
Nelson sentiu de novo as mãos finas de Leandro tocando suas costas.
Mordeu a meia e devolveu a cabeça para o travesseiro. Preparado para ser
empalado vivo.
— Vai — disse com pouca coragem. Nenhuma...
Senhor Bunda-Grande cerrou os dentes e colocou toda força que pode
em seus dedos indicadores e polegares, queria pinçar a coisa. Quando
chegou perto, sentiu que a coisa tentava escapar por baixo da pele branca de
Nelson, procurando um buraco, um esconderijo. Parecia um peixe!
Demorou um pouco, mas com algumas tentativas, imobilizou o caroço
suspeito.
Tomou impulso.
E apertou.
— Puta Merda! — gritou Nelson, cuspindo a meia para longe. Em
seguida sentiu a pressão nas costas diminuindo, ouviu alguém tombando de
cara no chão, um velho carvalho podre despencando sobre a relva.
— Minha Nossa Senhora! — gritou Leandro. Estava consciente, mas
rolava no chão com as mãos nas têmporas. — Isso dói demais!
Nelson queria ajudá-lo, mas suas costas queimavam e dessa vez não
era um arame farpado estático repuxando sua coluna. A coisa parecia viva.
Serpenteava por baixo da pele do quadril. Estaria se alimentando? Ficando
maior com a sua dor? E ela aumentou, a tal ponto que o levou a um
desmaio. Não sozinho; Leandro também apagou.

¥¥¥
— Ei!
Depois duas horas de sono forçado, Nelson tentava acordar Leandro...
— Tá vivo? — perguntou enquanto apanhava seus óculos em uma mesinha
de cabeceira.
Leandro estava deitado de bruços, o rosto deformado pela pressão da
cabeça.
— Meu Jesus — disse quando finalmente entendeu que havia perdido
a consciência. Apertou as têmporas.
— O que aconteceu com você? — perguntou Nelson.
— Sei lá... — disse. Pensou melhor. — Acho que vi uma faísca
embaixo da sua pele.
— Faísca? — Nelson arregalou os olhos castanhos. Sua pupila um
pontinho minúsculo. Sobrancelhas fechadas numa expressão um pouco
irritada. Mas não era irritação... Era medo.
— É, Nelsão... Acho que a coisa em suas costas deu curto-circuito
com a coisa na minha cabeça. Logo depois da faísca, alguma coisa explodiu
aqui dentro — disse dando pancadinhas na própria testa. — Doeu pra
caralho, achei que ia morrer.
— E o que a gente faz agora?
— Eu não vou deixar ninguém abrir minha cabeça, prego; nem ficar
aleijado. Prefiro ficar com a dor. Que se dane.
— Que horas são — Nelson perguntou. Conseguiu finalmente sair da
cama e vestia uma camiseta para esconder sua barriga mole.
— Meio dia e quinze. A gente dormiu mais de duas horas, prego... A
Lú vem almoçar aqui?
— Vem nada; pior que não tem nada pra comer aqui em casa. Tá a fim
de almoçar no Portuga?
— Demorô!
Se existia uma coisa que Leandro gostava mais que fumar maconha e
dormir, era um prato de comida. Antes de saírem, ele só fez uma exigência:
— Pelo amor de Deus, tira esse short...

Almoço no Portuga...
O dono de lá nem era português, mas a comida era boa de verdade.
Por boa parte do caminho andaram quietos, pensado em seus
implantes. Nelson mais quieto ainda. Queria um nome para o seu caroço.
Leu em algum lugar que batizar caroços cancerígenos aumentava as
chances de cura.
— O que você acha que eles querem? — rompeu o silêncio, Leandro.
— Quem?
— Os ETs, caramba!
— Não sei... Vai ver, querem ajudar.
— Sei não... Alguém que quer ajudar não chega de mansinho no meio
da noite e mete uma bola de Cuspe-Alien em você.
— E o que você acha? O que eles querem com essas coisas? —
Leandro não respondeu, estava distraído olhando uma garota. Leandro
conseguia ser mais disperso que um espirro às vezes.
— Gostosa, né? — disse.
— Gostosa mesmo — concordou Nelson. E teve sua resposta.
— Eu acho que eles, os ETs, estão estudando a gente. Tipo... Se
preparando pra guerra.
Guerra era o único assunto sobre o qual Leandro realmente gostava de
estudar. Ele continuou sua teoria.
— Estão observando a gente, sacou? Pegam um cara aqui, outro em
Nova York, Japão, um Índio da Austrália.
— Aborígine — ajudou Nelson.
— Que seja. Um aborígine — concordou Leandro —, um africano e
pronto: tá feita a análise de raças e comportamentos. E eles podem ainda...
sei lá... injetar doenças por aí... Mutações. No meu caso, podem até estar
ouvindo essa conversa pela minha cabeça e planejando acabar com a gente
depois do almoço.
— Tenso... Agora vamos esquecer isso e almoçar — disse Nelson
quando cruzaram as portas do restaurante.
Mas enquanto servia seu prato, reparou nas pessoas do restaurante.
Havia alguns desconhecidos. Um pessoal estranho. Loiro demais. Também
percebeu muita gente olhando para ele e Leandro. Analíticos e curiosos.
Enquanto mastigava dois pastéis com mais vento que carne, Nelson
estimava até onde poderia chegar o controle alienígena. Talvez já
comandassem boa parte do Brasil, quem sabe do mundo. E se Matrix
estivesse certo de uma maneira errada? E se estivéssemos sendo cultivados
não por máquinas, mas por alienígenas? Leandro estava mais interessado no
meio-boi que exterminava em seu prato.
— E a cabeça?
— Ainda dói — respondeu Leandro enfiando um pedaço enorme de
bife na boca.
— Minhas costas também... Agora começou a doer do outro lado.
— Daqui a pouco o implante encontra um buraco que tem aí atrás e
desaparece — Leandro riu de boca cheia mostrando arroz mastigado e
carne. Nelson riu de volta. — Com sorte cê caga ele.
Leandro continuou comendo até que o último farelo desaparece do
prato. Não era um cavalheiro, nem alguém que você pudesse contar para
muita coisa, mas era um bom sujeito. Sempre por perto para umas cervejas
e jogar conversa fora.
— Mano, parece que eu comi um cavalo vivo — disse Leandro. Pagou
sua conta. — E agora? Tá a fim de um Play 3?
— Quer dizer, perder no play 3, né?
— Você é quem diz — respondeu Leandro. Se ele dedicasse um terço
do tempo dos games à política, seria presidente da nova ordem mundial que
ainda nem existe. (Ainda...)
— Melhor ir pra casa, esperar a Lú chegar — disse Nelson, esperou
que Leandro também saísse do restaurante.
Estava quente do lado de fora. Caminharam pela calçada.
— Vai contar pra ela?
— Não, acho que não. Ela não entenderia. Além disso, eu tô com
sono, vou tentar dormir um pouco.
— Eu continuo dormindo mal
— Pesadelos?
— Sempre... — lamentou Leandro. — Vai ver, é por causa do implante
de ET — disse dando uns trancos com o punho na própria cabeça.
— Tava pensando se esse troço é elétrico... Para ter saído faísca como
você disse, tem que ser elétrico.
— E...?
— Podemos dar uma descarga elétrica — disse Nelson. — No site,
tinha gente que se livrou das coisas assim.
— Assim como? Enfiando o pinto na tomada? — disse Leandro.
Nelson continuou sério. — Tá zoando que você faria isso? Eletrocutar a si
mesmo? — insistiu Leandro.
— Pensa nisso, cara. Vamos pensar no assunto — disse. A dor o
castigava de novo.
— Opa! Segura peão! — disse Leandro. Segurou-o depressa quando
Nelson ameaçou beijar o calçamento. Quase caiu de cara no chão.
— Tudo bem, aí? Que foi isso?
— Valeu. Tropecei no vento — disse. Perdera a sensibilidade das
pernas por alguns segundos. Guardou segredo para não assustar mais ainda
Leandro (ele tinha um troço daqueles grudado no meio do cérebro, imagina
só se estivesse dirigindo e boom; apagão).
Caminharam mais uns cinco minutos até chegaram ao ponto “cada um
para um lado”.
— A gente se fala depois — despediu-se Nelson.
— Fica tranquilo, cara... Não encana com essa coisa, não. Nem tudo o
que a gente lê na internet é verdade. Se fosse, o mundo teria acabado umas
cinco vezes.
— Tá certo.
Leandro despediu-se logo depois dobrando a esquina do mercadinho
de frutas.
Sozinho, Nelson observava o caminho de volta como nunca havia
jeito.
Um muro perto da linha do trem chamou sua atenção com uma
pichação estranha. Não parecia nova com todo o desgaste da tinta, mas ele
nunca havia reparado nela. Dizia:
ELES ESTÃO CHEGANDO, TRANQUEM SUAS PORTAS.
O que chamou mais a atenção de Nelson, porém, foi um desenho
pequenino logo abaixo do texto. Tinha forma de caracol. Como se um
molusco escorresse de dentro de sua própria concha e a abandonasse. Ele
conhecia aquilo. Era um dos implantes descritos no site. O mesmo que,
supostamente, Leandro identificara sob sua pele. A coisa repuxou dentro
dele causando uma câimbra. Nelson se apoiou em outro muro bolorento
para não cair.
Melhor ir pra casa, Nelsão.

¥¥¥¥

Arrastou como pode seus quase cem quilos até que conseguiu avistar
sua cama. E Deus sabe que não poderia andar muito mais. Não com aquela
maldita câimbra. Por sorte, estava quase hora de Lucile chegar com suas
mãos mágicas.
Vou contar a ela... Ela tem que saber que eu tenho uma porra de
implante andando dentro das minhas costas. Meu Deus... E se eu passar
essa porcaria pra ela? E se essa coisinha se reproduzir dentro de mim? Se
o implante se misturar com o DNA dela gerando um híbrido alienígena
dentro de seu útero! Merda... Será que é isso que eles querem! Se misturar
ao nosso DNA para nos dominar de vez.
Que ela o achasse louco, mas pelo menos continuasse viva.
Mas ela não vai acreditar em mim... Se eu conseguisse tirar essa
coisa... mas como?
Olhou para a caveira emitindo seus raios coloridos.
Eletricidade.
Não se levantou naquele momento... A dor era muito forte ainda e ele
acabou adormecendo de novo.
Saiu da cama três horas depois, e com a coisa dentro dele parecendo
saber o que pretendia. A dor era insana e parecia tentar bloquear qualquer
ideia e plano de remoção. Todo pensamento trazia um pulso novo e violento
de dor.
Preciso de uma descarga elétrica... Uma das grandes.
Estava a caminho do banheiro onde havia analgésicos. Foi quando
olhou para a banheira da suíte. O único luxo que tinha na vida. Mas não foi
luxo que viu, foi uma solução.
Com uma mão nas costas e a outra se apoiando em todas as paredes
próximas continuou se arrastando. Lembrou-se de sua caveira de raios, mas
preferiu como fonte de energia a chapinha de cera de Lucile — gostava
demais da caveira. Lucile o mataria em usar sua chapinha, mas como
poderia morrer de qualquer jeito com o choque, foi adiante.
— Porcaria de fio curto — gemeu. Para não perder tempo, abriu a
torneira enchendo o local preferido de roqueiros mortos e removedores de
implante.
A coisa em suas costas mordia sem parar, ficava claro que além de ser
um implante, era um implante inteligente.
Se estivesse na minha barriga, tiraria você com uma faca, pensou. A
coisa descontou no quadril.
— Ai! Eu vou aniquilar você sua porcariazinha! — disse rangendo os
dentes. Dor e fúria.
Com mais esforço conseguiu chegar à cozinha onde um aparelho com
fiação bem maior o esperava. O liquidificador era perfeito. Pegou o
aparelho que, com sua dor, pesava uma tonelada e continuou se arrastando
de volta para o quarto-suíte. Outra dentada no quadril e a perna direita
travada. A musculatura retraída repentinamente. O corpo no chão.
De cara.
POW!
Sangue quente escorreu para dentro do olho direito que passou a
enxergar tudo vermelho. Por sorte, não ficou cego — a lente direita dos
óculos perfurou apenas sua sobrancelha.
— Você não vai me impedir, seu ET imundo! Não vai me impedir, tá
ouvindo? Filho-da-puta!
Apoiou-se nas palmas das mãos para levantar, cortou-as com outro
caco de lente e ficou de pé.
Hora do banho.
A remoção se tornara um desafio pessoal, uma teimosia. Estava
decidido a neutralizar aquele implante mesmo que perdesse a vida com isso.
Não iria ser derrotado por um ET... Não mesmo.
O liquidificador ficava mais pesado a cada passo. Os cortes na pele
das mãos e no rosto queimavam com o suor. Ele não desistiria, não deixaria
os ETs malditos tomarem a vida que ele reconstruiu. Não depois do chifre,
desemprego, divórcio; não depois de tudo.
Com muito suor chegou ao banheiro. Olhou com a lente restante para
o liquidificador e para a água. Ficou, como tantas vezes em sua vida, com
ódio da própria estupidez. O liquidificador estava sem o copo. Tudo bem
para uma mulher, mas ele tinha um pinto e não queria mesmo que ele fosse
cortado acidentalmente. Morreria com um implante alienígena, mas não
sem seu pinto.
Arrastou-se de volta se esforçando ainda mais, observando as marcas
deixadas por ele e o sangue coagulado pelo caminho. Suas costas estralaram
dezenas de vezes, o monstrinho estava lutando. Estava tentando aleijá-lo.
— Finalmente — disse quando alcançou o copo. Agora era só voltar.
Mais passos, estalos e sangue pelas paredes.
Passou pelo quarto, pela porta do banheiro. Apoiou-se na banheira
onde seu martírio acabaria. Pura e inocente com todo aquele acrílico
branco. Transformada em sua guilhotina. A fatídica Jacuzzi.
— Agora somos só nós três — disse. Estava entorpecido de tanta dor,
mal percebia o que escapava por sua boca. — Somos eu, o implante e você
— disse para a Jacuzzi eximindo a eletricidade de toda a culpa. O
liquidificador revestido com o copo “à prova de pintos” repousava na
beirada.
— Minha nossa! — gritou quando colocou umas das mãos na água.
Gelada.
Acabou aceitando isso como sorte. Talvez o choque térmico inativasse
o implante e ele não precisasse se bronzear com duzentos e vinte volts
úmidos.
Pularia com tudo (calculou que, para o choque-térmico funcionar,
deveria pular de uma vez), vestindo somente seu short ridículo de curto para
não estragar nenhuma outra roupa — e não arriscaria morrer pelado, isso
também não.
Certificou-se que o liquidificador estava seguro mas conectado.
Tomou alguma distância da água, respirou fundo, rezou para o Deus dos
implantados.
E pulou de costas.
Jump!
A água subiu quase um metro rejeitando a massa de gordura que se
atirava dentro da Jacuzzi; água para cima; água para todos os lados. Depois
uma chuva de respingos.
Todos os ossos do corpo de Nelson travaram; todos, até os do rosto
impedindo que soltasse qualquer som (inclusive sua risada de vingança para
o ET que estaria monitorando seus sinais). Achou que morreria afogado,
mas não teve tanta sorte.
Porque o suposto implante ainda estava ativo. E Nelson agora provaria
do que é feita a dor.
A coisa em suas costas começou a irradiar sinais por todo o corpo. Ele,
ainda travado, sentia todas as contrações musculares possíveis, tudo doía
desde o furo da bunda até o topo da cabeça. Não uma dor qualquer, mas
uma que faria uma gestante em trabalho de parto soltar um sorriso
gratificante. Tudo repuxado, uma Emily Rose possuída dentro da banheira.
O choque térmico falhara, era óbvio. Hora de alcançar o maldito
liquidificador. Hora de aumentar as apostas.
— Puta merda — resmungou com um fala empapada. Com sua pouca
força restante, conseguiu mover o braço.
Prendeu a respiração para que o corpo flácido flutuasse sobre a água e
com o único braço móvel arrastou seus quase cem quilos para a borda da
Jacuzzi. Um Titanic enfiado em uma pia. Nelson jurou perder peso se saísse
vivo dali.
— Droga!
O liquidificador havia caído com seu Salto-Elegante. Estava lá
embaixo, do lado de fora em algum lugar.
A coisinha em suas costas — que agora parecia um tomate transgênico
— continuava com seu trabalho de repuxar músculos. Um estiramento
muscular conjunto do qual apenas o braço direito escapara.
— Tá aqui — disse ao alcançar o fio do aparelho, falava com
dificuldade, parecia ter tido um derrame.
De novo, se fazendo de boia, contrabalanceou o peso como pode e
apoiou o liquidificador na beira. O braço tentava a todo custo parar de
responder. — Consegui!
Nelson apertou um botão.
Click.
VRUHHUUHUMMMHH!!!
O barulho de motosserra do liquidificador encantou Nelson que sorria
de algum lugar escondido de sua mente. É agora ou nunca, pensou. O
segurou no alto, urinando com o esforço. E largou.
A serra diminuiu e Nelson — até os olhos, paralisado — soube que o
aparelho estava na água; instantaneamente começaram os tremores
elétricos.
— N.ã.ã.ã.ã.o.o.o.o.o.o.o. — gritou Nelson quando a primeira
descarga elétrica liberou seus músculos. Mas em microssegundos veio outra
contração, a voltagem absurda da água agindo depressa. Nelson sorriu
doentio, sorriu com um rosto contraído e desgraçado. Teria sorrido da
mesma forma se tivesse matado o canalha do vigilante que fez de sua ex-
esposa uma puta de rodoviária.
— T.t.t..o.o.o.o.m.mm.a.a.a.a i.s.s.s.s.o.o.o. — gritou. Tremia como
um epilético, toda sua vingança contra o maldito implante. E sorriu de
novo, mais ainda e mais doentio que da primeira vez. Pelo cheiro, algo mais
saiu dele além do implante, algo de seus intestinos.
Aquilo doeu bastante e pareceu que não acabaria nunca, mas acabou.
E a dor o deixou junto com um pouco de urina e fezes.
Vitória! Vencera o maldito implante.
Aos poucos, as luzes da casa foram se apagando, os tremores
vagueando. Os olhos pesados.
Ouviu a porta da frente se abrindo.
Lucile... Bem na hora. Consegui, amor. Te salvei dos malditos alién...
Podia morrer em paz.
¥¥¥¥¥
Quando abriu os olhos de novo, só havia escuridão. Pensou que estava
morto, mas algum som, um som quase animal, quase reptiliano como o
sibilar de um crocodilo, ecoava em seus ouvidos. Mas era um som oco;
como se estivesse embaixo d’água.
Oh, é claro... A banheira. Mas... Não..., pensou. Devo estar em um
hospital. Oh, Lucile. Obrigado.
Mas hospitais não têm tecidos pendurados para todo lado. As retinas
de Nelson se esforçavam para acostumar com a baixíssima luz.
Tecidos?
Não eram só tecidos; eram roupas... Roupas penduradas como em
um...
Lucile abriu a porta do armário do quarto e encarou aquela duas
cabeças humanas e idiotas. Ainda estavam ativas, alimentadas por alguma
fonte irreconhecível de energia. Estavam mergulhadas em um líquido verde
e oleoso, dentro de uma cúpula de vidro, hermeticamente fechada. Lucile
encarou os olhos conhecidos de uma das cabeças. Desesperado, Nelson
olhou para o lado. Reconheceu ao mesmo tempo sua situação e a de seu
melhor amigo. Supor que a boca de Leandro o chamou de “prego” seria
precipitado, mas ele achou que sim.
— Sim, sim... Você conseguiu — disse Lucile. — Finalmente removeu
o implante. Agora vou precisar encontrar outro marido.
Alguma coisa membranosa passou pelos olhos dela como uma cortina,
abrindo e fechando bem depressa. As pupilas eram verdes e oblíquas, olhos
de serpente.
— Não é a toa que traíram você, Nelson... Nada nunca está bom para
você.
Lucile fechou a porta do guarda-roupa e o deixou de novo. Com ele,
algumas roupas, escuridão e a cabeça muda de Leandro.
Nelson pensou:
Antes fosse um câncer.
Alguém a olhar por você

VOU COMEÇAR me apresentando. Sou um cara comum com um


nome incomum. Meu nome é Honey (lê-se Ronei, ideia da minha mãe
maluca). Já eu não me acho um doido, sou tranquilo desde que não me
provoquem. Meço um e oitenta e você pode contar comigo se souber seu
espaço — e respeitar o meu.
Assim como todo mundo, tem muita coisa que me incomoda nessa
galhofada sem sentido que somos treinados a chamar de vida. Muita coisa
mesmo, mas poucas fazem tão pouco sentido quanto encarar uma fila
grande. Um monte de gente parada, trocando ideias sobre coisas que não
me interessam, mau humor infestando o ar e uma única pobre alma tentando
atender a todo estressado que perde algumas horas do seu precioso dia ali.
Ainda mais no domingo. Dia de lixo na TV e missa.
Mesmo com toda essa impertinência por esse tipo de coisa, às vezes
preciso — como todo mundo — deixar que uma fila me pegue... Nem que
seja para comprar peixe. É onde estou agora. É domingo, faz sol e eu
pressinto algo ruim se aproximando. Algo que sempre pode acontecer na
fila da peixaria...

Chega perto da minha vez de ser atendido quando aparece, apressada,


uma velha com cara de carranca, um morcego com raiva, algo encolhido e
enrugado se movimentando como o C3PO do Star Wars. No rosto traz a
cara de pau que só alguém velho e safado tem. Aproveitando-se da idade
faraônica, ela corta a fila, acotovela quem está na sua frente com o mesmo
senso de direito de um estuprador — o mesmo que tem um juiz de futebol
defendendo a própria mãe depois de errar a marcação de um pênalti. Eu
observo. Inerte.
Ninguém reclama, afinal, o estado dá aos velhos o mesmo direito de se
comportarem como canalhas que aos canalhas de se comportarem como
velhos... Dá tudo na mesma na terra do sem dedo.
— Quanto é esse aqui? — ela pergunta. Já está na frente e pega com
suas mãos enrugadas um peixe qualquer da prateleira de cadáveres
submarinos.
Dá uns apertões mais fortes e o peixe solta algumas ovas nojentas por
algum buraco infectado. A gosma cai sobre outros peixes expostos, é como
se defecasse as tripas neles. A criatura de cento e todos os anos continua e
diz:
— Shiiii, meu filho, esse aqui está podre — reclama com um sotaque
que desconheço. Deve ser capixaba ou paraense. Correto demais por aqui...
Não dá IBOPE, então ela descarta o primeiro peixe, pega outro e faz a
mesma coisa, só que em vez de ovas e tripas, desse outro cadáver sai
sangue. Esguicha pelos olhos enquanto encaram sem vida as pessoas da fila.
— Esse está pior ainda — ela diz. — Estás vendo, meu filho? Os
olhos dele com sangue? Esse peixe morreu com raiva. Não presta comer
bicho que morreu com raiva. Eu não como esse veneno, você come? —
pergunta para alguém que passa por perto e se junta à comitiva. O homem
recém-chegado fica enojado com os olhos sangrentos do cadáver
submarino. Deve ter pensado em estátuas de igreja que choram sangue. Eu
pensei...
A velha começa a ficar nervosa e a transpirar, exala um cheiro misto
de talco e naftalina. A pequena multidão assiste interessada sua análise,
coesa como grude. A quantidade de pessoas aumenta com o barraco
meticulosamente armado pela velha. Todos querendo saber aonde a
discussão vai parar.
— Vejas, meu filho; vou pegar mais um. — E ela pega. Pega e aperta
de novo, a mesma coisa acontece. Um som de peido sai do peixe.
— Senhora... A senhora mesma é quem tá apertando e machucando os
peixes — diz, com a paciência que eu não tenho, o rapaz da peixaria.
— Eu? Estais louco, meu filho? Quer dizer então, que tu colocas um
peixe podre aqui, um não, um monte de peixes podres aqui, arrisca nossa
saúde, e eu sou culpada por mostrar o erro pra ti? No meu tempo, alguém
igual a você era chamada de mentiroso! Ou de vagabundo.
A pequena aglomeração de pessoas solta um “ohhh” longo e
provocante. A velha prossegue alimentada pela turba. Juntos são fogo e
pólvora. E as palavras, gasolina.
— No meu tempo de moça, tinha uma caixinha do cinema que tentava
ficar com as moedas de troco... Eu sempre descobria minhas moedinhas
indo para o bolso errado e...
— Peraí, minha senhora! Tá querendo dizer o quê com isso? Que sou
um ladrão? Que eu tô roubando? — Com o breve descontrole, o peixeiro
ergue um decibel de sua voz tentando se defender. Nada que pudesse ser
detectado sem aparelhos precisos.
— O senhor ainda grita comigo? Grita com uma velha? — diz e
começa a turvar os olhos. A sequência perfeita da safadeza senil onde tem
pós-graduação.
Alguém na — agora maior ainda — porção de expectadores sugere
chamar a gerência... Outro diz:
— Isso mesmo. Chamem a gerência, ele está maltratando aquela
senhorinha.
É uma mula vestida com um macacão cheio de graxa. Só mais uma
mula enfileirada às outras mulas que não diferenciam merda de adubo.
— Um marmanjo desses gritando com uma velhinha, vem gritar
comigo, ô rapá — berra um cara tatuado que acabara de chegar. O atendente
da peixaria fica mudo e assustado. Sente o cheiro da violência.
Prevendo o aumento do tumulto, alguém da segurança que coçava
deliberadamente o saco e assistia à cena, chama o gerente geral da loja.
— QAP, QAP FIXO, FAVOR PEDIR AO ALFA-UM PARA SE
DIRIGIR A PEIXARIA. TKS FIXO.
Em segundos, chega o palerma do gerente. Um tipo saído da lama há
alguns anos que pensa que é “o dono do mundo” por usar uma gravatinha
verde musgo com respingos de café.
— O que houve aqui? Posso ajudar, senhora? — se oferece prestativo,
sedutor. Tem olhos de cobra, gel no cabelo e um sorriso profissional. A voz
grossa e clara.
— Ai, moço; nunca fui tão maltratada. Aquele monstro atrás do balcão
— aponta para o peixeiro — me destratou, só porque eu avisei-o que
tinham alguns peixes podres no meio dos outros. Que mundo perdido é esse
onde não podemos fazer um favor a alguém? Mas tudo bem, eu vou
embora.
(Como se isso fosse acontecer, eu penso...).
— Calma, senhora... Vamos conversar... — diz o gerente-serpente
usando de toda sua habilidade conquistada com um curso de administração
de empresas on-line.
E o safado se vende como fez a vida toda para conseguir passar de
repositor de prateleiras a gerente-geral. Para alguém como ele chegar a esse
tipo de cargo é fácil, quem não tem personalidade se ajoelha rápido e isso é
tudo o que uma multinacional megera espera de um gerente-geral. Da
“hierarquia” como dizem...
Percebo candidatos a novos gerentes assistindo à cena, saindo de seus
setores e aprendendo rapidamente a velha e máxima mentira de que o
“Cliente tem sempre razão”. Eu digo que “Razão tem o bom senso”.
Nessas situações, invariavelmente o jovem da peixaria seria advertido
e demitido, a multidão se envaideceria descontando toda a raiva do sistema
no peixeiro e a velha, cuja vergonha partiu junto com os cabelos pretos,
sairia com uma sacola de peixes por cortesia com sua ajuda (em apontar os
supostos peixes ruins). O gerente também acabaria com a razão, arrogante e
satisfeito, pensando ter feito um negócio muito lucrativo ao dar de bandeja
uma sacola de peixes para a velha safa enquanto perdia um excelente
peixeiro. Se fosse inteligente, o gerentinho saberia que existem muito mais
velhos safados do que peixeiros bons na praça e que cabelo branco não é
sinal de honestidade, e sim, de velhice.
Mas nesse domingo-de-sol, eu estou na fila. Tenso, armado e pensando
nos Ramones tocando Now I Wanna Sniff Some Glue ao vivo na CBGB.
Sem muito alarde, caminho até a bacia fedida de peixes, saco minha
arma e me dirijo até a velha safada e o gerente, ando depressa antes que o
gerentinho demita o rapaz. Os seguranças se agitam vendo minha
movimentação, mas sabem que o salário de fome que recebem não cobriria
o buraco feito pela bala do meu trinta-e-dois em suas cabeças. O rapaz da
peixaria me olha assustado.
— Pega um peixe pra mim — eu digo. Aponto para alguns palermas
para que não usem o rádio. O gerente faz cara de nojo e tenta argumentar:
— Garoto, não faça nenhuma besteira, larga essa arma.
— Come o peixe — digo oferecendo a ele o cadáver submarino que o
rapaz da peixaria me cede. Percebo um sorriso no rosto enrugado da velha.
Maldita parasita.
— A senhora come outro — eu digo.
— Mas o quê?! Como assim, meu filho? — ela pergunta assustada.
— Come o peixe, vagabunda — pego eu mesmo o cadáver espremido
de olhos vermelhos.
O rapaz detrás da banca de peixes, sorri. Um sorriso verdadeiro como
eu não vejo desde que dei cem-paus para um moleque sem dentes no
semáforo. Chego bem perto do cara da peixaria e sem que ninguém ouça,
pergunto: — Se você quiser, eu paro... Ou...
— Ou? — ele pergunta.
— Posso fazê-los comer.
Com algum tremor nervoso na voz, ele responde mais baixo que um
sussurro: — Continue.
A primeira dentada só vem depois de uma coronhada no supercílio
direito do cara de gravata musgo respingada. Ele quase cai no chão quando
o filete de sangue quente e mais fresco que os peixes atinge seu olho. A fila
está tão concentrada na ação que ninguém move um músculo para pedir
ajuda ou me impedir. Sei bem como são essas coisas, é o show da vida.
Urubus esperando a hora da carniça. Mesmo assim, eu reforço:
— Ninguém se mexe ou leva chumbo quente no rabo!
A fila está enorme e parte dela é composta por funcionários do
supermercado. Percebo novos sorrisos naquelas bocas mal alimentadas e
carregadas de horas-extras. É quase um delírio para alguns deles,
principalmente para a garota dos CDs que ostenta uma bundinha dura que
minha mulher com horas de academia não consegue ter. Adoro isso. E ela
me adora com aquele revólver na mão. Toda fêmea gosta de um macho
arrancando a dentadas o couro do outro (lei da selva, brow... Reclama pra
Deus que inventou isso).
O safado do gerente tenta morder o peixe pela calda, mas eu o corrijo
a tempo.
— Ô, filho-da-puta; é pra morder a cabeça. E se vomitar antes de
engolir, te sento o dedo.
Dito isso, noto a garota dos Cds apertando as pernas de excitação.
Sugeri vômito porque eu sei que ele vai encher o chão com o almoço
depois de engolir o troço. Mas quero que ele engula. Quero sentir as
lágrimas de repúdio escorrendo pelo rosto rigorosamente barbeado dele —
do mesmo modo que ele sente quando humilha seus funcionários. Detesto
gerentes desde que fui um. Faz algum tempo. Bem antes de eu me tornar o
cara mais antissocial do planeta terra.
— Isso vale pra vaca de cabelo branco também — continuo. Sei bem o
quão safado um velho pode ser. Safado como meu avô alcoólatra que enchia
a cara com Biotônico quando estava internado no hospital (o Biotônico já
teve álcool, caso você não saiba).
Os dois — gerente e velha — me obedecem. Quase ao mesmo tempo.
Penso que deve ser algum pacto entre safados. Uma pré-programação que
supera as explicações lógicas da probabilidade.
A velha morde com gosto. Penso que ela deve ter engolido muito
esperma nessa vida para não ligar para a explosão dos olhos do peixe. Todo
aquele muco e sangue, uma bala-chiclete recheada com gosma apodrecida
explodindo sabores dentro da boca. Consigo ver a água salgada escorrendo
por seus olhos mochos. O gerente saliva se esforçando para manter a cabeça
do peixe dentro da boca. Percebo, junto com a fila, o peristaltismo
desesperado de seu estômago cheio de balas tic-tac tentando botar tudo para
fora. Aponto a arma, garantindo que ele faça o seu melhor como exige dos
funcionários do supermercado. Mesmo os seguranças estão do meu lado,
misturando nojo e gozo em suas expressões otárias.
— Quer que eu mande parar? — pergunto novamente ao peixeiro.
— Ainda não.
Quando o gerente bam-bam-bam e a velha sáfa não aguentam mais,
começa o vomitódromo. Primeiro é ela quem vomita, em cima dele. O
gerentinho começa a vomitar em seguida, acertando alguém da fila. Esse
alguém azarado vomita em outro, espalhando um cheiro intenso de
calabresa barata que se mistura ao fedor de peixe. A garota gostosa de
bundinha empinada dos Cds é a próxima. O Vômito se espalha feito
Napalm. Todos estão vomitando; até os seguranças. O rapaz dos peixes
não...
Ele olha tudo como se gravasse cada movimento, arquivando um dos
poucos momentos de glória que teve na vida. Tudo graças a um maluco
estranho na fila da peixaria onde ele detesta trabalhar. E ele mal acredita.
Posso ver. Posso sentir isso. Toca Creedance no rádio tosco que costuma
tocar pagode e outras porcarias. É minha vez de sorrir em meio aos jatos de
Vômito. Adoro Creedance. Eles tocam Suzie Q...
Baby i love you... Baby i love you.
Quando o amarelo apodrecido do vômito colorido supera o branco
cáustico e agressivo do chão de granito, eu me retiro. Ninguém mais me
nota. Estão preocupados reparando em quem vomita mais ou identificando
o que sai do estômago dos outros. Urubus. Despeço-me com o olhar
fraterno e cúmplice do peixeiro e caminho misturado a outros curiosos.
Ninguém me detém até eu chegar ao meu carro — um Logus ferrado que
ainda estou pagando. Ele está me esperando embaixo da plaquinha B2 do
estacionamento, algo cinza largado no sol,
Antes de partir, revejo meus olhos no espelho e me sinto um pouco
Deus, oferecendo justiça e usando da própria podridão do mundo. Quase
sem ser notado.
Vou embora mais rápido que cheguei. Estou atrasado. O prato do
jantar de hoje em minha casa vai ser pirão de peixe (que eu detesto).
E eu ainda tenho que enfrentar outra fila.
Colheita obrigatória
“O Ódio é o tonel das pálidas Denaides frias;
Por mais que da Vingança o braço rubro e forte
Derrame-lhe às entranhas ermas e sombrias
Baldes cheios de sangue e lágrimas da morte,...”
Charles Baudelaire.

NADA MELHOR QUE uma boa briga de igreja com andorinhas


perdendo as asas. Mas as andorinhas e os abutres, dessa vez, voaram para
bem longe da casa do pai. Migraram para as minhas terras que pretendo
adubar com sangue.
Um padre, um pastor, o cara mais ateu dessa cidade, um delegado e
uma rameira. Todos esperando para dançar comigo, todos cientes dos
momentos mágicos que passei nas mãos dessa cidade maldita.
Estamos depois de uma longa plantação de cana, em uma clareira onde
eu preferi plantar algumas estacas. Estão aqui há alguns anos, esperando o
dia certo. Eu fantasiava com isso... Mais com vingança do que com justiça.
Minhas terras ficam bem longe da cidade, gosto daqui. Traz-me paz —
coisa que eu nunca tive.
Meu nome é Carlos Justo e esse nome é a única coisa certa em minha
vida. Pelo menos pensava isso até essa manhã iluminada quando tirei as
vendas da justiça e a fiz me enxergar.

1
—..., aleluia, irmãos! — ouvi o pastor gritar.
O chefe dos crentes é um tipo morenão, não chega ao negro, é mulato.
E forte. E cada grito dele faz trovejar a turba de crentes fanáticos aos seus
serviços. O pastor poderia ter escolhido qualquer lugar desse mundo para
pregar a porcaria da palavra dele, mas tinha que ser bem na frente da casa
do Deus do padre Mauro... (que eu prefiro chamar de “homem-de-saia”).
Estavam frente a frente; o padre tentando conter suas beatas que
faziam fila para transar com ele, e o outro cusparando pensamentos
bíblicos.
— O senhor é um blasfemador, pastor! Seu Deus não vai ouvi-lo! —
disse o padre... A careca e a pança de um safado combinando perfeitamente
com sua índole.
— Vejam irmãos! — disse o pastor. — Aquele que não tem cabresto
com suas ovelhas está querendo nos dar lição de moral... Você não tem
moral padre Mau-ro. Mauuuuu-ro.
— E quem é você, serpente? Sei de seu passado, Pastor Tesquini! Sei
que usou de sua fé encardida pra sair da cadeia!
A discussão continuava e eu bebericava cachaça no boteco da praça.
Eu e o Ateu que era tipo um inimigo de infância meu. O tipo do inimigo
que a gente mantém por perto fingindo ser conivente com suas agressões, o
Plínio. Esse filho-de-uma-égua, além de me espancar da infância até a
adolescência, roubou minha namorada e ferrou com ela (estuprando
mesmo). A filha-da-mãe casou-se com ele preferindo a selvageria sexual do
Plínio-Ateu ao meu amor.
É uma vida porca, essa.
O delegado estava de longe, na mesma praça, assistindo a discussão
com a mão no coldre. Também não gosto do homem da lei. Sei o que ele faz
com os caras que não aprova. O delegado é um corrupto de quinta e quando
não tem provas, acaba plantando as que precisa.
Hoje de manhã, na praça, eu particularmente não tinha essa ideia de
justiça na cabeça, me anestesiar no álcool e enganar meu ódio parecia bom
e suficiente. Sempre tive esse lance de detestar pessoas, mas ainda não...
Ainda não tinha sangue nas mãos. A tal ideia de julgar os malditos me
surgiu aleatoriamente, como uma epifania. De repente, quando passei do
meio da garrafa, descobri que estava sendo talhado para aquele momento
único. Era meu desarrolhar. Meu destino... Meu motivo para continuar
respirando. O show da fé continuava.
— Pastor Tesquini, deixe minha praça e cuide de suas ovelhas no seu
pasto...
— O senhor disse, meus irmãos, que homens maus como esse aí —
apontou para o padre — viriam para torcer a mente dos justos. Esse homem
é um facínora! Um hipócrita desalmado.
— E aí? — perguntei para o ateu, saindo para a porta do boteco. — Tá
de qual lado?
— Do meu... Acredito mesmo é naquele camburão.
— No animal do delegado? — confirmei.
— Ele é a justiça, Deus é invenção do povo.
Aquilo doeu em mim. Não por Deus (que pouco fazia por mim), mas
ouvir alguém chamando aquele porco fardado de justo? Só que era a cara do
Plínio dizer isso. Era um tipo corpulento, branco demais e com o cabelo
preto e eriçado de Exterminador do Futuro que todo ignorante tem.
— Tá passando bem, Carlão? — perguntou-me.
— Mais ou menos. —
Mas eu não estava nada bem.
Ouvia tambores dentro do meu crânio. Gritos vindos dos confins da
África. Meu corpo tremia. Uma luz forte tomou conta dos meus olhos e
quando eu os fechei, ainda via a luz. Foi então, numa última danação, que
meu estômago incendiou. Corrosivo. Mais dolorido que meu pai me
obrigando a comer meio metro de fumo-de-corda quando me flagrou
fumando. Eu estava sendo derretido de dentro para fora. Ardia tanto que
sufocava. Perdi completamente o ar por alguns segundos, a luz me deixou,
tudo ficou escuro. Então ouvi a voz.
— “Faça”.
Claro que interpretei como quis, mas a voz foi real. Foi a coisa mais
verdadeira de toda minha vida de falsetes.
Quando voltei a mim, estava tomado por duas coisas que encheram
todo vazio que trazia dentro da alma: coragem e ira. De repente, me sentia
perdoado pelos fantasmas que trazia acorrentado aos meus calcanhares. Era
tudo parte do plano. Tudo ordenado para que eu fizesse uma limpeza
definitiva naquele lugarzinho de bosta onde o diabo fez morada.
— Tudo bem, Carlão? — O calhorda do Plínio perguntou de novo.
— Tudo sim. — Esfreguei meus olhos. Esfreguei de novo e de novo.
Porque eu não via mais o ateu do Plínio naquela altura. Via um
demônio com um pênis enorme para fora, ejaculando sangue em vez de
esperma. Dei outra golada na cachaça e saí de perto da garrafa e do Plínio.
Resolvi prestar atenção no padre, ainda de longe, notei que ele tinha
um rabo. Uma calda espinhosa e cheia de corpos de crianças agarrados a
ela. Todas presas pelo ânus aos espinhos da cauda. Gritando e me pedindo
ajuda.
Mais de perto, olhei para o pastor, talvez ele pudesse me direcionar ou
me livrar do que via.
Mas por sua língua saíam vespas que se alojavam dentro dos ouvidos
de quem o escutava. Vespas metálicas que comiam cérebros. Elas
zumbizavam; como ele não percebia?! Desviei meus olhos e tapei meus
ouvidos.
Restava-me a lei.
Jesus...
O delegado era um dos piores. Todo cinzento, a pele rachada como o
leito de um seco, carregada de intenções ruins vestidas como vermes que
lhe entravam e saíam pelos abcessos. Eu não conseguia ver seu rosto e
pouco via do contorno do corpo. Sua imagem me confirmava que ele era
puramente maldade e falcatrua enfiadas numa insígnia. Era preciso
exterminá-lo ou ele corromperia todas as nossas crianças como meu pai
tentou fazer comigo. O homem-sem-lei-da-lei era parte daquele circo, mais
um demônio fantasiado de gente.

2
— Ei, santidade — eu disse ao padre. Claro que ele não me deu
atenção. Insisti: — Tô falando com você, homem de saia.
Dessa vez, ele me encarou e diminuiu o tom. Perguntei:
— Não sente vergonha do que está fazendo?
— Estou salvando almas, meu irmão — disse o pastor, defendendo-se
de intrometido. Eu ainda não estava falando com ele e tampouco entendi
por que intercedia pelo padre.
— Não sou seu irmão — eu disse.
O delegado vendo minha intervenção (e alguma agitação nas beatas)
desgrudou a bunda do camburão. Saiu caminhando em minha direção.
— O que um pé de cana como você acha que tem para falar comigo?
Eu sou um enviado de Deus! — disse o padreco.
— Eu não acredito em Deus.
— E ele vai te castigar! — disse o padre, dedo em riste. O pastor
safado sacudindo a cabeça e concordando com ele, me amaldiçoando.
Então o inesperado. Plínio-Ateu entrou em cena, supostamente para
me defender. Cara de pau... Plínio estava mais interessado em se desfazer
de Deus, mas eu não ligo. Eu sou só a espada. Os pescoços são eles.
— Se Deus existisse mandaria os dois para o inferno — disse Plínio.
Lábios bêbados e umedecidos com cuspe.
— Nos veremos lá, então — respondeu o padre. Os olhos apertados
quase cobertos pelas sobrancelhas de taturana.
— Eu acredito na lei. E só na lei — retrucou Plínio.
O delegado sorriu confortável. Estava bem perto de nós todos.
— Lei? Nessa cidade? De jeito nenhum... — eu disse, jogando lenha
nova na fogueira.
— Olha essa língua, rapaz — A mão firme do delegado plantada no
coldre.
Não seria a primeira vez que um “debate” em nossa cidadezinha
terminaria em cicatrizes. As pessoas daquela vila maldita simplesmente não
se continham quando contrariadas. No fundo, todo mundo era bem pouco
vítima e muito carrasco.
O delegado chamou algum reforço pelo rádio, queria evitar outra
pancadaria na porta da igreja como no último dia de Nossa Senhora quando
o pastor dançou Catira em cima da imagem da santa. O problema maior foi
que algum engraçadinho católico havia metido suco de tomate dentro do
gesso para forjar um milagre. Ou seja, o pastor arrancou sangue de nossa
senhora. Resultado: dez internados no hospital onde só cabiam cinco e uns
tantos algemados. Nosso homem da lei não aceitaria a repetição daqueles
números.
Uma das velhas católicas começou a ter palpitações, outra do lado do
pastor. O ateu provocava nova briga com um rapaz católico chamando seu
Deus de “canastrão violado”. Era o momento que eu precisava. Vi isso
quando o delegado sacou a arma do coldre.
— Chega dessa putaria! — gritei. Espalmei minhas mãos. O povo
parou para me olhar enfrentando o cano-quente do delegado. Olhos
vitrificados esperando um tiro.
Que não veio.
— Vamos resolver isso como pessoas civilizadas — continuei.
A estranheza foi tamanha que todos se desarmaram. De verbo, punhos
e arma de fogo. Todos menos eu...
— Como é? — perguntou o delegado ao meu ouvido. Ainda soava
ameaçador, mas percebi que ele via em mim sua chance de evitar uma
tragédia.
Expliquei tudo num sussurro:
— A gente vai pro meu sítio, senta todo mundo para comer bolo de
cenoura e resolve os limites de cada um na cidade. Tenho vinho também, e
umas garrafas de pinga de engenho.
— E se eles não concordarem?
— Você cumpre a lei — eu disse dando uma piscadela para ele e
olhando para a arma. O delegado percebeu depressa o que eu quis dizer. No
meu sítio, quem manda é o dono da maior arma (que era a dele). Era a
chance perfeita de colocar um fim nas brigas no meio da praça. Terreno
neutro, umas biritas... Bolo.
— Tenho uma ideia — disse o canalha fardado. — Vamos todos para o
sítio do Carlão aqui e conversamos em paz. Sem pressão. — As mãos nos
meus ombros, confiantes.
— Não vá adiante com isso, Carlos!
Não acredito nisso, pensei.
— Mãe... Acho melhor a senhora não se meter nisso — eu disse, ainda
de costas. Nenhum homem decente confunde a voz da própria mãe.
Minha mãe...
Uma velha como outra qualquer com mais dentes na boca que bom
senso na cabeça. E ela tinha poucos dentes... E me conhecia pelo avesso.
— Vou me meter, sim! E olha para mim! — gritou. Obedeci e me
virei.
Santa Mãe de Deus!
Vi a pior das prostitutas do inferno. Não sobrara muita coisa da minha
velha mãe em minha visão pós-epifania. Ela tinha peitos enormes, poucas
rugas, todos os dentes (apesar de pontiagudos e cerrados como dentes de
tubarão e uma língua de cobra bifurcada), uma bunda que eu penetrei no
olhar e uma coisa no meio das pernas que piscava chamando algum macho-
alfa bem dotado. Ela cheirava a esperma fresco. Cloro.
Minha mãe era um demônio. E devo admitir que já desconfiava...
Achei melhor reuni-la com os outros.
— Você pode vir com a gente, mãe.
— E como planeja levar todos até lá? Com nossos carros? Vou
precisar passar na igreja — disse o padre. Padres adoram tumultuar.
— Não é preciso. Eu levo — disse o delegado.
— Eu não vou entrar no camburão — disse o pastor. O delegado riu,
calculando que o homem de terno e bíblia na mão conhecia bem às
veraneios dos anos oitenta...
— Vamos com meu carro particular e com o do Carlão. Pode ser?
— Pode sim — respondi. O padre também assentiu. E o pastor.
Logo que o delegado deixou seu segundo no comando, saímos, uma
família de malucos felizes abençoados por Charles Manson.

3
Conversa, poeira, alguma tensão e chegamos.
Desci para abrir a porteira e ouvi o pastor dando a primeira borrada de
medo:
— Lugar esquisito... Não gosto de cabeças de gado.
— Era coisa do pai dele — disse minha mãe. Ela tentava tirar o peso
dos dois crânios vermelhos de vaca pendurados na porteira. Usei umas
cordas como cabelo; coloquei bolas de borracha nos olhos; pareciam duas
vacas da boiada premiada de Satanás.
— Deus usa caminhos tortuosos — resmungou o padre.
O delegado continuava falando alguma besteira com o Ateu no carro
de trás. Eu não ouvia nada, mas via suas bocas mexendo. Deviam estar
falando do clima ou de mulher que são os únicos assuntos que dois homens
compartilham sem sair no braço.
Voltei para o carro e coloquei todos para dentro da porteira,
diretamente para meu caldeirão de tragédias.
Depois de passar por uns dez metros de grama bem aparada,
estacionei. Desci rápido e apanhei algo especial no porta-malas, com
cuidado de não ser visto. Coloquei dentro da calça e segui em direção ao
carro do delegado. A coisa arranhou um pouco minha perna, mas não se faz
justiça sem sofrimento.
— Lugar legal — disse ele, mostrando os dentes num sorriso falso.
— Viu o lago? — perguntei me referindo ao lago que nunca existiu.
Quando ele se distraiu procurando, tirei o pé de cabra que me
incomodava e espatifei aquele sorriso besta. Bati uma, duas, três, desviei e
dei uma na cara do Ateu que se metia na briga, quatro e cinco. E mais. Só
parei porque tinha planos para todo mundo. Tomei a arma do delegado,
ajudei o Ateu a se levantar e coloquei todos os safados em fila. A minha
velha por último com sua bunda satânica e rebolante.
— Para onde está nos levando? — perguntou o padre. Ele e o pastor
carregavam o delegado. Gosto de sinergia entre as religiões que odeio.
— Pro tribunal — respondi.
Andamos mais até o meio do canavial onde minhas estacas os
esperavam. Eu pensava naquilo, em dar o troco... Naquele início de tarde eu
estava jubilante. Não seria só morte, só dor e vingança... Seria justiça.
Afinal, fui eu o escolhido para moralizar aquela porra de cidade. Logo eu...
O cancro mais purulento gerado ali.
Não precisei me esforçar muito para que amarrassem uns aos outros,
foi só apontar a arma. A mim só restou amarrar minha velha e enquanto fiz
isso devo admitir que me rocei a ela. Não a ela exatamente, mas àquele
demônio androgênico que clamava por estupros.
E ali estávamos nós. Eu; eles, e o juízo final.

4
— Vai fazê o que com a gente? — perguntou o Plínio-Ateu.
— O mesmo que fizeram comigo.
— Ei, ei, ei! Eu nunca fiz nada contra você — resmungou o pastor
com sua voz grave e convincente. Abelhas de aço voando.
— Não gosto de mentirosos — eu disse.
— Não entendo — insistiu.
— O senhor se diz filho do cara que manda nessa joça toda, não é?
— Sou um filho de Deus e seu ministro.
— Ok... Então aqui está a minha arma, Senhor Ministro — estendi a
arma do delegado e a coloquei aos pés do pastor. — Quero que você saia
daí e pegue a arma antes que chegue a sua vez de morrer. Quero um
milagre!
Eu sentia as vespas de metal do demônio saindo de sua língua e
tentando entrar em minha mente. Pelos meus ouvidos. Pela minha boca.
Mas a mim, elas não atemorizavam. Ao tocar minha pele elas se
incendiavam. Deixei o pastor em paz.
— Vossa eminência... — Tomei a direção do padre.
— Não faça isso, filho.
— Melhor trancar o que guarda embaixo da saia, santidade...
Continuei no círculo e passei pelo Ateu amarrado à outra estaca. Ele
também achou que me dobraria:
— Carlão... Não faz isso, cara. A gente é chegado!
Claro que o esbofeteei. Umas cinco vezes ou mais. Seu rosto ficou
vermelho e resolvi aproveitar todo aquele nervosismo.
— Mija na roupa — exigi.
— Quê?!
PLAFT, gritou outro tapa.
— Mija na roupa, desgraçado. Pensando bem, quero dois números.
Urina e bosta. Ou posso matar você e a vagabunda que roubou de mim.
PLAFT!, esbofeteei-o de novo.
— Tá bom, Carlão. Mas... — choro e soluços — tenta se acalmar.
— E me chame de Juiz a partir de agora. Serve para todo mundo.
Seus olhos ateus se encheram com mais água, vermelhos e irrigados
como um rio de sangue. Eu continuei com minha instituição particular de
expiação e provas.
— Olha só os “olhos da lei”. Deplorável como sempre estão fechados
— disse tirando sarro da carcaça desmaiada do delegado.
— Você perdeu o juízo, Carlinhos!
— Nunca o tive tão claro, Mamacita.
— E eu? O que eu fiz? O quê?!
— Tirando deixar meu pai ter comigo o que a senhora negava?
— Eu não podia impedi-lo, meu filho. Eu sentia toda a sua dor.
— Não, Mamacita — eu disse para o demônio. — Mas vai sentir
agora.
Não queria começar por ela, mas apanhei o pé de cabra que estava no
chão. Ainda tinha sangue do representante da lei nele. Um pouco de terra.
— Lambe.
— Carlos Justo! Não continue com isso!
— Lambe ou vai a seco — ameacei estendendo o metal sujo para
aquele demônio sexy que profanara minha mãe. E ela obedeceu.
Lambeu como deve ter lambido a glande cheia de podridão do maldito
que me pôs no mundo. A língua bifurcada e reptiliana alisava o ferro com
carinho, molhando o pé de cabra com seu cuspe corrosivo.
— Humpgh!
Atravessei-a de baixo para cima com o pé de cabra.
Tive que forçar bastante, mas acho que depois de passar pelo útero e
pelos pulmões, atingi seu coração. Ela gritou e esperneou. O círculo
também, horrorizado enquanto o demônio voluptuoso era exterminado.
Muito sangue e coisas desconhecidas escorrendo pelo chão. O pescoço
pendido. Quando terminei, precisei tirar o ferro de dentro dela. Fiz algum
esforço, estava agarrando um pouco. Precisaria do metal para usá-lo em
outra pessoa de saia daquela mesma roda. Num relance, notei minha
mãezinha sem dentes de novo, o demônio havia partido. Beijei seu rosto e
fechei seus olhos com ternura, só então prossegui.
— E aí, pastor? Nada de milagre?
Ele não respondeu. Seu rosto era todo expressão de pânico. O mulato
tremia gelatinoso. Nem de longe era o destemido Ex-presidiário-pastor-
milagroso. Era apenas um homem morrendo de medo.
— Cagou, Plínio? — perguntei para o Ateu.
— Só mijei — respondeu-me, o desgraçado estava chorando de novo.
— Quero ver bosta saindo de você — eu disse.
Ele estava se esforçando. O rosto arroxeado e seus gemidos
comprovavam. Ele iria defecar alguma coisa sim.
“Acorda, safado!”, foi o que eu disse depois de um chute nas bolas do
delegado. Pela primeira vez, vi alguém acordar gemendo de dor. Foi hilário.
— O quê?!... Meu sac...
Até seus olhos tremiam! Tremeram mais quando encontraram o que
sobrou da minha mãe.
— O que você fez?
— Isso que está vendo. Matei minha velha e agora quero ter uma
conversa com você.
— O que quer de mim? De nós?
— Sua parte é dizer em voz alta e sem dizer meu nome o que aprontou
com meu amigo — estendi a ele meu celular, serviria como gravador. O tal
cara era um amigo de infância que apodrecia na cadeia, um velho desafeto
do delegado. O sacana de distintivo colocou-o lá dentro com provas falsas.
— Quem? — perguntou o canalha com aquela boca inchada e
empapada de sangue, motivo mais que justo para outro chute nas bolas.
Senti as bolas se deformando no couro de minha bota. A roda gemeu junto.
O ateu gemia concentrado em outra coisa.
Ele vai cagar o próprio cu, pensei feliz.
— Miltinho — respondi para o delegado. O nome dele é Miltinho.
E ele disse. O doutor da lei disse suas sacanagens com Miltinho e
muito mais. Confessou até que violentou a mulher de um vagabundo da
cidade. E que o padre foi seu primeiro parceiro sexual. Dentro da sacristia.
O safado do padre. Ele seria o próximo.
Mas o delegado era tão salafrário que no final da gravação disse meu
nome. Isso me fez apanhar o revólver que aguardava pelo milagre do pastor
e explodir sua cabeça.
— Traíra de merda — disse depois de cuspir no corpo morto dele.
Andei mais uns passos e vi algo escorrendo pelas pernas do Ateu.
— Que porra é essa, Plínio?
— É bosta!
— Bosta não é vermelha, Plínio... Isso é sangue.
— Desculpa, cara.
— Pô, Plinião. Eu peço bosta e você me dá sangue? Assim vou ter que
matar a sua mulher, ou melhor... Nossa.
— Mas eu tô tentando — implorou.
— Ele está mesmo, filho — disse o padre.
— Coitado, seu Juiz, deixa ele — pediu o pastor.
Minha arma emprestada do delegado subiu e cuspiu outra vez. Rápido
e justo.
Matei Plínio de uma vez por causa do esforço dele em me obedecer e
fazer os dois números. Entendo que não seja fácil obrar sangue; nem
mesmo para um ateu.
Os dois religiosos começaram a chorar na mesma hora, duas putinhas
ignoradas pelo cafetão poderoso que mora no céu.
— Tá vendo só? — continuei. — Tanta briga, tanta discussão e vocês
acabaram juntos... E rezando para o mesmo cara que nunca me ouviu. E não
ouvirá vocês.
— Me perdoe, filho, me perdoe! — chorou o padre. Lágrima, ranho e
vergonha.
— Quantas crianças você molestou, padre? Quantos de nós engoliram
sua sujeira santa? — perguntei.
Um silêncio aterrador tomou conta do mundo. Não havia pássaros ou
gafanhotos, não havia vento brincando por ali.
— Responde! — berrei.
— Acho que uns dez.
— Mais, padre. Bem mais... Façamos o seguinte: eu enfio esse
amansador de valente aqui no seu rabo santo por trinta vezes, porque eu
conheço pelo menos trinta moleques que o senhor abusou. Depois, vivo ou
morto, deixo sua santidade partir. Enquanto isso o pastor reza pelo seu
milagre.
— Não faça isso — pediu o padre.
O pastor estava de olhos fechados e mexendo os lábios, ainda se
enganando que seu Deus de bosta desceria das nuvens para salvá-lo.
— Ele tem mais fé pelo menos — eu disse enquanto subia a saia de
nossa eminência.
De novo, usei o pé de cabra. Todas às prometidas trinta vezes. Ele
gritou, mas em certos momentos, me peguei pensando se alguns urros não
eram de prazer.
Eu transpirava um pouco quando terminei. Tinha gotas de sangue aqui
e ali.
— Quantas estocadas ele aguentou, pastor?
— Quinze.
— Humm... Acha que foi milagre? Ele ter morrido no meio do
castigo?
— Acho que não. Ele era um homem velho.
— Bem, pastor. Pela sua sinceridade, vou ser misericordioso e matá-lo
com um tiro seco. Pode ser?
— Não vai mesmo me libertar?
— E o meu milagre?
Tesquini me olhou tristonho. Nada de milagre. Nem para salvar o
Plínio-Ateu, também não para o padre. Agora nada de milagre para ele
próprio. Tesquini olhou para o céu seco acima de nossas cabeças.
— Um tiro está bom. Chega de enganar os outros.
BAMM!

5
Julgamento terminado. Todos condenados e purificados. Fogueira
acesa para me livrar dos corpos e uma sensação de dever cumprido
acalentando a alma. Do carro do delegado e das provas menores, eu
cuidaria mais tarde.
Entrei no meu carango e fui dar um jeito no cabelo antes de partir. Sou
vaidoso; sempre fui. Ajeitei o espelhinho retrovisor. E quase gritei.
Mas que merd...
Eu havia me tornado um deles. Desgraçados.
Trazia um demônio em meu rosto. Satírico e com ar de vencedor. Um
maldito corrupto que me usou para fazer seu trabalho sujo. Olhos
vermelhos, dentes pontiagudos, pele escamosa carcomida por algum tipo de
herpes zoster do além.
Apanhei a arma sem um tremor que me desabonasse e encomendei
minha alma a quem pudesse interessar. Em uma das mãos, o crucifixo de
ouro que roubei do padre. Na outra, anotações. Hora das últimas palavras.
— Meu nome é Carlos Justo e comigo todo demônio volta pra casa.
Amém.
BAMM!
Lado oculto
(Dedicado ao meu grande amigo L. Brisa)

ERA A CENA mais desolada do mundo. Um farrapo de homem


sentado à beira da estrada com sua pasta marrom cheia de papéis, um pobre
diabo avaliando onde estava o erro na peça falida que ele chamava de vida.
Peça sim, visto que ele fingia tanto, que não sabia mais diferenciar
interpretação de realidade. Não que fosse falso — era até ingênuo —, mas
Brisa percebeu logo que as pessoas requerem diferentes atuações das outras
para aceitá-las. E isso era essencialmente o que buscava. Que o aceitassem,
ou pelo menos, aos seus livros.
O sol da estrada impunha um calor que faria das profundezas de
Yellowstone uma trivialidade. O horizonte mostrava ondulações térmicas
que jogavam toda a paisagem em um aquário de azeite. Era dezembro,
todos estavam felizes comprando quinquilharias para suas árvores de natal,
para Brisa, era um mês qualquer. Outros trinta e um dias onde não
conseguiria impressionar sua esposa. A estrada era uma vicinal que ligava
uma cidadezinha chamada Gerônimo Valente a outra ainda menos
importante e cidade natal de um fracassado chamado L. Brisa.
— Droga de vida.
Ele estava de volta, pela enésima vez. Direto da capital cinza dos
sonhos coloridos para o lugar-nenhum-dos-tolos.
Décima nona reunião com editores que alegaram interesse em produzir
seu livro e nada conclusivo. L. Brisa não sabia o que era pior. Passara muito
tempo se achando uma ameba agitada sem talento algum, mas agora? Do
que adiantava o blá-blá-blá se não o produziam? E para piorar ele era um
duro... De coração, bolso e alma. Um duro que decidia entre os carrapichos
do acostamento, qual desculpa inventaria para justificar mais um não (e
outros duzentos paus e menos na conta) daqueles ladrões de almas. Sua
esposa — Débora — era compreensiva, mas sua paciência e o dinheiro das
compras não durariam para sempre.
— Fracassado é o que você é... Um porcaria de um fracassado.
Brisa só tirou os olhos dos sapados empoeirados quando ouviu um
som novo na estrada. Vinha de longe, parecia uma Pick-up, um utilitário.
Desacelerando. Brisa pensou feliz em um assassino em série, alguém que
ceifasse sua vida antes da guilhotina linguística de Débora. Mas quando
pensava em desgraças assim, a vida sempre mostrava que criatividade era
privilégio dela.
Não eram assassinos, mas os primeiros caras a transformarem sua
autoestima em penitenciária de segurança máxima. Mais de perto,
conseguiu ver claramente a maldita Ranger preta de Fausto.
O veículo chegou mais perto. O vidro desceu.
— Tá fazendo o que aí, branquelo? — perguntou o motorista. Junto
com ele, Leandro e outros dois micos de circo que viviam para rir das
piadas do chefe. Cidades pequenas são uma porcaria e criam desses caras a
rodo. Fausto — o dono que segurava o volante — ainda tinha alguma grana,
era dono de uma loja de motos, mas Leandro, Branco e Paulinho (os
micos)? Nem vergonha na cara... Nem isso eles tinham.
— Nada, não. Tô esperando — respondeu Brisa. Fausto esticou o
pescoço para fora e cuspiu no chão. Disse:
— Esperando quem, maluco? Num sol desses?
— Derrota, hein? — zoou Branco (ele era branco mesmo, albino).
Dizer que esperava pela mãe de um deles não ajudaria. Já saíra no
braço com aqueles idiotas por dezenas de vezes e estava na cara que eles
queriam provocar outra briga (que ganhariam no três-contra-um covarde de
sempre). Caras solteiros gostam de confusão, principalmente depois de
terem sua garota roubada por um caretinha metido a escritor chamado L.
Brisa. Fazia tempo. Incríveis vinte anos em uma época em que L. Brisa nem
imaginava escrever. A tal garota roubada acabou deixada para Fausto, Brisa
depois de pouco tempo se casou com Débora. Só que o perdedor nunca
esqueceu — e também nunca aceitou de volta a tal garota, preferiu
atormentar L. Brisa.
— Nada, cara. É um trabalho novo — respondeu.
— No meio da estrada?
— É... Vou pegar carona com o chefe — disse Brisa.
— Serviço de quê?
Merda.
Lá ia ele de novo com sua maldição de contar lorotas.
— Administrador de uma loja de ferragens — respondeu a queima-
roupa. Escritores... Sua rotina é inventar coisas.
— Humm. — resmungou Fausto pouco convencido. Os micos
pararam de rir. — Vai levar ferro, então? — completou.
Muito criativo, pensou Brisa. Mas disse:
— Provavelmente. — Seco, sem risos.
— Não quer mesmo carona para casa? Na boa?
E você não quer pegar no meu, na boa?
L. Brisa conhecia dessas caronas. Pegou duas delas.
Na primeira foi deixado no puteiro da cidade às duas da tarde quando
as primas não gostavam de receber visitas, saiu fugido. Na outra, o
deixaram a pé, a quilômetros da cidade, em frente ao curtume mais
fedorento da região. Ficou por lá até que a sirene do ponto tocasse —
precisas quatro horas —, acabou voltando de carona na boleia de um
caminhão cheio de bosta mais fedido ainda, vomitou pelo caminho todo e
nunca mais vestiu couro.
— Não, cara. Ele deve estar chegando. Minha carona.
— O que tem na pastinha? — perguntou Fausto. Conseguia deixar
ridícula até uma pasta de couro.
— Documentos — L. Brisa respondeu abraçando-a como uma colegial
que protege os peitinhos virgens. — Para o emprego novo.
— Não são daquelas merdas que você escreve?
— Parei com aquilo — mentiu.
— Melhor mesmo. Eram ruins pra caralho. Vê se arruma um emprego
de homem, Pato.
Brisa não respondeu e a Ranger saiu rasgando, alguns risos do lado de
dentro, uma nuvem de pó se erguendo para grudar em seu suor.
— Puta merda. Puta que pariu! — limpou a testa, com raiva de ter
nascido.
Devia ter arriscado a porcaria da carona. Vou acabar desidratado aqui.
Sacou seu maço de Marlboro e decidiu se acalmar e terminar a
desculpa para Débora. Abriu o maço.
— Não é possível! Inferno! — Dedo médio apontado para o
firmamento (ateu ou não, tinha essa mania).
Meio-maço e nenhum isqueiro, ou fósforos.
Um trovão retumbou raivoso mandando que baixasse aquela mão
boba. Brisa devia ter lembrado que trovão em dia de sol escaldante é mau
sinal — ainda que houvesse nuvens aqui e ali, incompetentes e teimando
em existir — como ele.
Cigarro sem fogo, bala sem pólvora, vontade sem sorte.
Homem sem sucesso.
Agachou-se como um sertanejo decepcionado com sua plantação
ressecada e contemplou o horizonte à procura de explicações que não
viriam. Distância foi tudo o que avistou dessa vez. Mato seco, uma latinha
de Coca-Cola tentando derreter no sol, poeira, asfalto e uma encruzilhada.
Por que, não?, pensou mais desgraçado e árido que qualquer coisa
daquela paisagem.
Conhecia as histórias antigas da vicinal. Além disso, estava mesmo,
literalmente, do jeito que o diabo gosta.
Cinco anos, cinco malditos anos escrevendo para ninguém ler,
resmungou com o cérebro, chutando algumas pedrinhas.
Não demorou para chegar à intersecção, puxou uma velha caixa de
uvas deixada ali por algum vendedor melhor sucedido que ele, e sentou
sobre ela — depois de uma espanada no pó. As bolhas em seus pés estavam
incomodando. Queria uma explicação para tanta má sorte.
Explicações?
Como se o fracasso pudesse ser algo mais que uma sucessão de
eventos ruins e decisões mal tomadas. Algo assim não se explica; se engole
a seco e pronto.
Meia-hora e nada. Nem Deus, nem diabo, nem ônibus, nem uma
carona decente.
A única novidade foi um urubu que pousou bem próximo e ficou o
encarando.
A ave ficou paradinha por alguns minutos, provavelmente esperando a
carcaça de L. Brisa para se alimentar. Depois começou a ir e vir em saltitos
curtos, como um homem de terno, apressado.
— É companheiro... Também tô com fome.
O Urubu deu uma batida nas asas apenas para acomodá-las e
continuou sua vigilância.
O calor persistia empapando os cabelos loiros e mal cortados de L.
Brisa contra o rosto. Estava tão quente que até os pequenos lagartos que
moravam ao redor da estrada pareciam incomodados, corriam de um lado
para o outro procurando um arbusto onde se proteger.
Se existe um fundo do poço, estou abaixo dele. Brisa, Brisa... Seu
fodido de merda.
Outro trovão rasgou o céu trazendo com ele nuvens densas que não
existiam há um segundo.
— É... E poço tem água. Porcaria. É o que me falta...
Brisa estava preocupado com o que trazia na pasta. Trazia cinco anos
na maldita pastinha.
— Não conte com isso — disse alguém.
Pelo menos o sangue de Brisa estava fresco agora. Congelado.
— Quem disse isso?! — respondeu, quase caindo da caixa-cadeira.
Olhou ao redor.
Nada.
— Cadê você? — perguntou. Ficou de pé. Mãos sobre os olhos.
— Aqui.
— Meu Deus do céu — disse o quase-ateu (como Lemmy Kilmister,
vocalista da banda inglesa Motörhead, diz: “todo mundo é ateu até cair o
avião...”).
— Deus? — perguntou a voz, pareceu divertida. Depois de alguns
segundos: — Aquele Deus que você despreza?
— Apareça, covarde! Pare de me provocar! — gritou L. Brisa. Alguma
outra armação, coisa de Fausto e seus comparsas ou outro babaca traído
qualquer. Mas e aquele céu que de repente escurecera? O suor frio em seu
corpo? Arrepios que não cessavam...
— Tô aqui, Brisa — disse a voz. — Para alguém que vive de terror,
sua imaginação anda em baixa, hã?
Nada. Nada em lugar nenhum a não ser...
— Urubu? — perguntou Brisa. Chegou mais perto um pouco.
— Oh! Quão perspicaz!
— Poxa... Um urubu? O diabo é um urubu?
— Como é que alguém daria credibilidade a uma aparição nacional
fantasiada de corvo? No interior do Brasil? Não tem corvos aqui, L. Brisa...
Você sabe disso. E não gosto de morcegos... Nem de bodes, pombas
brancas. Acho muito clichê. Mas o que você faz aqui?
— Tô esperando carona.
— Na encruzilhada? Sabe o que as pessoas buscam aqui? — um pouco
de silêncio da estrada. — E carona? De quem? Do Fausto? O cara que te
batia na escola? Ou quem sabe, carona da sua mulher que te acha um
fracassado, um ninguém com uma pastinha de couro nos braços?
— Ok... Saca só... Devo estar com insolação e você deve ser um urubu
comendo meus braços e participando dessa loucura gerada a base de
endorfinas pelo meu cérebro chapado de dor. Me deixe em paz, Urubu.
— Humm... Já vi isso antes — respondeu o urubu —, essas
explicações. Mas o rapaz estava crucificado. É isso que você quer? Ser um
mártir? Digo que isso é fácil de arranjar, mas não crio mais desses. Prefiro
gente bem-sucedida.
— Deixa pra lá, seu Urubu. Vou nessa — disse L. Brisa, pegando a
pastinha que descansava no chão. — Tenho que me explicar com minha
mulher e, além disso... Sou Ateu.
— Que bom. Facilita os negócios. Eu e o Cara-Que-Não-Existe-Mais-
Para-Você também não temos uma relação. Uma do tipo, digamos... Cara a
cara; seria impossível.
— Tô indo. Chega dessa conversinha.
— 09:33:15.2015.09 — disse a voz. Alta e rude. Um trovão explodiu
no céu.
— Quê!? O que significa isso Mãe-Diná-Das-Pena-Preta? —
perguntou Brisa, atordoado com a combinação numérica.
A ave sorriu. Gostava dos espirituosos. Todo vencedor deve ter certo...
Charme. Ou isso ou é melhor assumir logo o fracasso. Sem charme, sem
glória. Outro trovão arrebentou com o céu fazendo Brisa parar onde estava.
— Chega de palhaçada, Leite-Moça. Olhe para mim — disse o urubu.
— Não sei como conhece esse apelido, mas vou arrancar suas penas.
Seu anu de merda.
Oh, rapaz. Brisa odiava aquele apelido. Fora usado em chacotas para
cima dele pela infância toda e um pouco mais. Também na pior surra que
levou no portão da escola primária, os ecos dos garotos gritando Leite-
Moça e sorrindo — desgraçadinhos da danação eterna — ainda
reverberavam em sua mente. Virou-se decidido a depenar a ave.
Pobre L. Brisa.
A coisa que viu a sua frente media mais de dois metros de altura.
Quase negra. Inteiramente tingida de cinza a não ser pelos olhos. Uma
figura anabolizada, com cascos no lugar dos pés e imensas asas escuras nas
costas. Olhos nervosos o encaravam faiscando eletricidade azul. Dentes de
tubarão preenchiam a boca larga da criatura.
— Quer mesmo tentar isso, rapaz?
L. Brisa cambaleou para trás. Caiu de costas e a pastinha foi para o
meio da pista onde acabou atropelada por algo veloz demais para ser
identificado. Folhas de um romance voavam pela estrada quase estéril. Seu
futuro voava pela estrada seca.
— Meu livro!
— Aquilo não era um livro. Era uma ideia. Boa, mas só uma ideia.
Um esboço.
— E o que foi aquilo que atropelou minha pasta? E o que é você?
Cadê o sol?! E...
— Ainda pretende me depenar ou não, valentão?
L. Brisa emudeceu. Sentado e com a bunda lotada de carrapichos.
A figura resolveu dar uma chance a ele. Não estava sendo fácil
conseguir almas desesperadas por uma publicação desde o barateamento na
edição de livros, Amazon e afins. A figura sabia que astros do rock e
escritores preferem vender a alma para a concorrência. Os juros são
menores e o tempo de pagamento nem chega perto da eternidade que ele
condenava e cobrava.
— Aquilo foi um carro — respondeu. — A velocidade é relativa onde
estamos.
Brisa fez uma cara de besta.
— No limbo, Brisa! Aqui e ali onde o tempo quase para. O que vem
de lá, da estrada do mundo real, vem muito mais rápido. Mas vamos deixar
a física de lado e resumir, sim? Sou a última esperança para que você não
seja uma vergonha para o resto da vida.
— Mas?... Brisa olhou para cima.
— O sol? Posso providenciar, mas creio que o calor estava te matando,
não?
— Tá bom — disse L. Brisa, ficou de novo de pé. Sacudiu a poeira da
bunda. — Quem é você?
— Legião; ao seu dispor — respondeu a coisa.
Afinal, não cheirava enxofre. Cheirava a Mirra, segundo o nariz de
Brisa.
— E não vou mais meter medo em você, rapaz.
A figura se explodiu silenciosamente em fuligem e logo se recompôs.
Agora tinha a aparência de um homem elegante, uns sessenta anos e alto —
ainda tinha aqueles quase dois metros. Também era forte e tinha cabelos
fartos e prateados. Vestia um terno escuro que devia custar uma fortuna.
Cobrindo os olhos, óculos de sol, desnecessários na penumbra da
tempestade eterna do limbo.
— Minha nossa! É você mesmo?
— Sou quem você procurava sem saber. Acabou me chamando. Quero
ajudar você, Brisa.
— Mas você destruiu meu livro! Que espécie de ajuda é essa?
— Tenho aqui o seu livro — disse estendendo um pen-drive. —
Diagramado, fotolitos prontos, capa. O pessoal da edição é rápido.
— Humm. Moderno... — respondeu L. Brisa coçando o queixo.
Informática no inferno?
— Negócios, Brisa... Para alguém como eu, tecnologia é fundamental.
— E vai querer minha alma agora?
— Não é bem assim, podemos negociar outras coisas. Inovar.
— Que tipo de coisas? Tá falando de quê?
— Legião... Esse nome oculta muita coisa, sabia? Gosto dele —
resmungou o (agora) homem. — E respondendo sua pergunta, preciso de
alguém de confiança para me ajudar nessa área. Está difícil conseguir
alguém decente para escrever minhas ideias. Preciso atualizar o mundo e...
— Nem a pau! Não vou me vender! Eu escrevo o que eu quero! Com
alma ou sem alma na jogada eu escrevo o que eu quero.
— Primeiro vai escrever o meu livro, ou nada feito — disse o velho,
exalando mais cheiro de mirra. Agora chegava a sufocar L. Brisa.
— Calma aí, sua magnitude; acho que podemos conversar sem esse
cheiro todo.
— Desculpe por isso. É a única coisa que tira o cheiro do além. Foi
um perfumista dos nossos que me arranjou.
— Tudo bem — disse L. Brisa. Mas desconfiava que alguma coisa
cheirava mal em todo aquele perfume. — O que quer com esse “Meu Seu
Livro”?
— Preciso que saibam um pouco mais sobre mim... Andam me
difamando por aí, usando pouco e mal do meu nome. Colocam-me em
camisetas, sociedades secretas..., mas pagar os meus direitos? Nada. E
como deve supor eu não saio muito do além-limbo. Não como um
“humano”. Com a minha aparência natural, como também deve supor, não
é conveniente aparecer no seu mundo. Seu povo tem medo de mim. Os
humanos. Menos na hora de pedir favores. Aí a macacada tem coragem de
sobra. Para se livrar de doença e ganhar na loteria... Sabe quantas orações
recebo por minuto?
— Imagino... O outro não atende ninguém. Por isso, duvido dele. Fica
por aí fazendo vistas grossas e esnobando o sofrimento do mundo.
— Sempre foi assim. Regras da casa. Por isso dizem que o diabo saiu
debaixo de suas asas, mas isso é outra história. Bem dramática, aliás. Vai
me ajudar a te ajudar no que preciso ou não?
— E o meu livro?
— Depois do meu.
— Milhões? De cópias?
— Sim, Brisa. Milhões — disse o velho. — E se quiser mais,
negociamos.
— Sem te dar minha alma?
— Alma, alma, alma. A alma de um ateu, para alguém como eu, vale
menos que um saco de açúcar. Gosto mesmo é de crente, pessoal de igreja.
Ateus e macumbeiros são figurinhas fáceis.
L. Brisa pensava em Débora e na vida que dava a ela, pensava nos
riscos. Ele já havia escrito sobre o diabo algumas vezes e ele sempre se
dava bem para cima da humanidade. Mas por outro lado... O que ele tinha a
perder? Respeito? Não. Dinheiro? Não. Alma? O outro nem queria. Amor
próprio? Nada demais.
Foda-se. Hora de quebrar a banca.
— Tá certo. Mas tenho uma condição.
— Pô, Brisa. Para de ser chorão desse jeito. Tô tirando você da lama,
filho!
— É tudo ou nada. Conheço sua fama.
— Pede logo, vai. Tenho mais cinco avaliações hoje — respondeu o
sujeito elegante.
— Não pode fazer mal a minha esposa.
— E por que eu faria mal à Débora — disse. Brisa deu de ombros. Ele
confirmou: — Temos um acordo, então?
— Temos sim — respondeu L. Brisa. Mas tinha a impressão de ter
esquecido alguma coisa, algum detalhe, naquela conversa toda. Algo
importante. Deixou para lá e estendeu sua mão trêmula e suada.
Quando tocou a do outro, sentiu uma leve queimação na palma da
mão. Uma ardência que doía e ao mesmo tempo, acalentava. Olhou para o
local e percebeu uma inscrição, em alguma língua oriental. Coisa velha
como hebraico, aramaico; sumério...
— Pode ir agora. Seu telefone vai tocar logo — disse o velho
oferecendo de novo o pen-drive, dourado como ouro. — Alguém dos
nossos vai entrar em contato com você e ditar minha obra. Escreva tudo o
que ele disser.
— Quem é ele?
— É um doido que fez uma igreja para mim. Irão chamá-lo de profeta,
mas é só outro coitado que eu tirei do abismo.
— Sempre achei que você jogasse as pessoas no abismo.
— As coisas não são o que parecem, Brisa. Nunca são. Agora vá.
L. Brisa baixou os olhos para acomodar o Pen-drive no bolso da calça
e o dia clareou, retornando ao seu calor estonteante. Fora do limbo, seus
papéis ainda voavam sobre a pista. Brisa ignorou o que antes era a coisa
mais importante de sua vida e procurou pelo velho. Não havia nada, a não
ser a caixa de madeira que lhe servira de assento. Ouviu um som novo e
sorriu. Sua sorte estava mudando depressa.
O carro velho que despontava no horizonte se aproximou e ofereceu
uma carona sem que ele pedisse. Brisa entrou depressa; a placa do carro
pertencia a sua cidadezinha quase fora do mapa.
— Vai para onde, moço? — perguntou o velho. Tinha poucos dentes
na boca e fumava o pior cigarro desse mundo.
— Para casa. — respondeu L. Brisa. Confiante e aliviado. Ignorou que
em uma cidade pequena como a sua, era bem estranho não conhecer o velho
e dono do carro.
Do outro lado do mundo, no limbo, o velho elegante e enigmático
aguardava outro alguém. A tempestade ainda mantinha o escuro do lugar
onde o tempo passava devagar demais para ser notado. O homem de terno
tirou seus óculos e deixou seus olhos irritantemente azuis impressionarem a
paisagem.
Uma explosão o tirou de seus pensamentos.
Seu visitante chegara.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou a figura apressada.
Também vestia um terno, um bem clarinho.
— Sempre atrasado, hã?
— O que fez? Cadê ele?
— Calma, serpente... É melhor procurar outra alma.
— Você o enganou? Você enganou o coitado, Deus?
— Não Rasatan — respondeu Deus fantasiado de um diabo qualquer.
Continuou: — Legião é um nome de muitos, até de Deus. As pessoas veem
o que querem ver, eu só dei a ele um pouco de esperança. Como sabe, ele
não acreditava em mim. E como sabe, você se atrasou de novo. Eu, em
contrapartida, nunca perco a hora. E só folgo aos domingos...
A figura assumiu sua forma reptiliana e magricela e gritou, espantando
cada entidade viva (ou morta) num raio de quilômetros de paisagem árida.
O céu tempestuoso se abriu em chamas, também o chão num vórtice
incandescente. Ainda gritava quando foi sugado para baixo:
— Você o enganou! Enganou ele!
— Enganei? — disse Deus que se passara por Legião. — Se fiz isso,
foi para o bem dele. Brisa saberá disso em 2015; nove e trinta e três da
manhã e quinze segundos, em setembro; quando perder seus filhos gêmeos
num acidente de carro estúpido. Então ele será abandonado pela esposa e
devotará sua alma, que nunca foi vendida, de volta para mim... Seu Deus
misericordioso. E claro que terá o sucesso que queria. Trato é trato.
Deus olhou para o firmamento e chorou:
— Mas será a duras penas. Como deve ser.
Confira outros títulos desse autor:

*Ultra Carnem (DarkSide Books)


*Caverna de ossos: Romance.
*Ouça o que eu digo: Romance.
*Além da carne, arquivos perdidos: Contos de
terror.

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