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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

CONSERVAÇÃO PREVENTIVA E PATRIMÔNIO


ARQUEOLÓGICO E ETNOGRÁFICO: ÉTICA, CONCEITOS E
CRITÉRIOS

Yacy-Ara Froner*

FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimônio arqueológico e etnográfico: ética, conceitos


e critérios. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

RESUMO: Este estudo propõe uma discussão sobre o papel da Conservação


- enquanto disciplina sistematizada - nos processos de investigação, resgate e
gerenciamento de coleções arqueológicas e etnográficas. Assim, ao repensar o objeto
cultural do ponto de vista de sua materialidade, perceber que a falta de critérios
nos processos de intervenção tem acarretado perdas significativas quanto a seu
potencial de investigação, relacionado ao seu universo cultural.

UNITERMOS: Conservação Preventiva - Arqueologia - Etnologia - Patrimônio


- Cultura Material.

Introdução inúmeras correntes procuram explicar esta imensa


colcha de retalhos que é o processo de construção
“O patrim ônio histórico e artístico de um da cultura nacional.
povo interessa a todos os indivíduos forma­ “Da cultura brasileira já houve quem a ju l­
dores desse povo e, mais ainda, à coletividade gasse ou a quisesse unitária, coesa, cabalmente
humana dado o sentido universal da arte. O d efinida p o r esta ou aquela qualidade. E há
zelo pelas coisas do passado transporta os também quem pretenda extrair dessa hipotética
países para fora de suas próprias fronteiras e unidade a expressão de uma identidade nacional.
merece especial atenção de todos os governos O corre p o rém , que não e x iste um a c u ltu ra
este cuidado pelas coisas que são m arcos brasileira homogênea, matriz dos nossos com por­
tamentos e dos nossos discursos. A o contrário: a
evolutivos na formação dos povos.”
a d m issã o do seu c a rá te r p lu r a l é um p a sso
(Rodrigo M ello Franco de Andrade, 1939)
d e c isiv o p a ra c o m p re en d e -la com e fe ito de
A formação cultural brasileira tem sido m até­ sentido, resultado de um processo de m últiplas
ria de discussão em vários campos de estudo. Da interações e posições no tem po e no espaço. ”
história à filosofia, da etnologia à antropologia, da (Bosi, 1982: 7).
sociologia à arqueologia, da literatura à lingüística, No bojo dessas discussões, a busca da m anu­
tenção da m emória se dá através de variados es­
(*) Seção de Conservação e Restauro do Museu de Arqueo­ forços no sentido de preservar a cultura material,
logia e Etnologia da Universidade de São Paulo. plural, herdada de nosso passado. A criação do

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FRONER, Y.-A. Conservação preventiva e patrimonio arqueologico e etnográfico: ética, conceitos e critérios. Rev. do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301, 1995.

Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico N acio­ perdidas na burocracia, por sua vez, nem sempre
nal; a formulação de legislações voltadas aos bens são bem empregadas, agravando a situação dos
patrim oniais m óveis e imóveis; a fundação de edifícios e dos acervos, os quais vêm sendo des­
museus e casas históricas; a formação de profissi­ truídos, pela falta de cuidados elementares.
onais que se dedicam à pesquisa, à veiculação e à Contudo, o contexto atual não é decorrente da
conservação de bens patrimoniais móveis e im ó­ política atual, mas da evolução de uma série de
veis; todos esses caminhos confirmam esta hipó­ fatores convergentes, existentes desde muito antes
tese. das fundação de Serviço do Patrimônio Histórico
No entanto, o papel do Estado como agente e Artístico Nacional e que se agravaram no Estado
gerenciador do patrimônio cultural tem se mostrado Novo, nos governos militares, na breve era Collor...
bastante insatisfatório. Grande parte dos m onu­ Nas próprias palavras de Rodrigo M ello Fran­
m entos h istó ric o s to m b a d o s p e lo g o v e rn o , co de Andrade, a criação do Serviço nasceu à vista
literalmente caem no chão por falta de manutenção; de ocorrências penosas. “Assistíamos, impassíveis,
inúmeros sítios arqueológicos não são investigados utilizando m eios que logo se revelaram inope­
por falta de financiam ento; inúm eros artefatos rantes, a destruição e evasão dos monumentos e
indígenas coletados são destruídos em áreas de das peças mais caras à tradição e à arte do país. ”
depósito; museus de pequeno, médio e grande porte (Andrade, 1987: 7).
sobrevivem com o podem , diante dos escassos Não é nossa intenção criticar o SPHAN, mas
recursos repassados; as leis que incentivam a pre­ perceber que, gradativamente, o mau gerenciamen­
servação da memória, quando não desaparecem to de nosso patrimônio cultural tem significado a
entre um govemo e outro, raramente são cumpridas. perda massiva de nossos olhos, nossos espelhos,
O resultado desta política centralizadora, má nossos espíritos - que se traduzem no nosso pas­
administrada pelo estado, é a perda quantitativa e sado material - e que os meios pelos quais ainda
qualitativa de nossos bens patrimoniais, fruto da gerenciam os nossos acervos, perm acem inope­
ignorância, da falta de pessoal especializado, da rantes.
falta de verbas e da própria burocracia imposta, no “A perda quantitativa e qualitativa destas
que se refere à manutenção da cultura material. fontes têm gerado lacunas irreparáveis, dificul­
Ao contrário de outros países, o Brasil pouco tando a compreensão e composição deste passado
incentiva a participação da sociedade no processo recente. Os elem entos que com põem este jogo,
de gerenciamento e preservação do patrimônio; muitas vezes, parecem estilhaços de um conjunto
desse modo, a iniciativa privada raramente investe que não se arma. ” (Froner, 1994: 20).
em áreas culturais, fazendo com que o estado seja Se por um lado, a destruição de nossos acervos
o único mantenedor de nossa “cultura material”. evidencia a decadência da atividade pública no
Poucas fundações não governamentais - como gerenciam ento do patrim ônio público, também
a VITAE, a Fundação Roberto Marinho, a Hõechst, demonstra uma falta de preparo para ingressar no
o Instituto Cultural Itaú - têm apoiado e incenti­ mundo high tech, inaugurado pela era da inform a­
vado iniciativas referentes à preservação da cultura tização e pela especialização das áreas de conhe­
e da arte. Assim, o custo bruto da manutenção de cimento que envolvem a cultura material.
no ssos m useus, casas h istó ric a s, ce n tro s de Assim, para além de tantas questões políticas
pesquisa, arquivos, bibliotecas é determinado pelas e em meio a tantas questões teórico conceituais;
p re fe itu ra s , g o v e rn o s fe d e ra is e e s ta d u a is, linhas de pensam ento e de pesquisa; acirrados
universidades federais e estaduais. debates acadêmicos e epistemólógicos; diante da
As verbas destinadas, algumas vezes insufi­ cultura material e dos próprios artefatos resgatados
cientes, outras vezes atrasadas e outras tantas vezes - estudados ou não, expostos ou não, guardados
ou não - , surge um a outra questão de caráter
prático, ainda que permeada pela intenção ética:
(1) Não pretendemos criticar o papel do estado sob o ponto Como conservar os vestígios do passado ?
de vista de conceitos neoliberais, mas apontar os limites da Esta indagação percorre dois níveis: o conceito
administração pública no gerenciamento do patrimônio pú­
e a matéria.
blico. O estado, uma vez que é sustentado pelos impostos,
teria por obrigação cuidar, acima de tudo, da saúde e da edu­
Apesar de compreendermos a vida relativa de
cação de seu povo. qualquer m aterial - a perenidade - , a idéia de

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conservação tem como objetivo a busca do pro­ lidade dos objetos e quando incorretos, ao invés
longamento da vida útil de uma bem material, em de preservar, podem acarretar graves danos, geral­
relação a dois fatores: o caráter insubstituível dos mente irreversíveis.
objetos culturais e sua “vulnerabilidade cultural” M anter a integridade do objeto é questão
através dos tempos. Assim, a conservação de um básica nos procedimentos de intervenção, desse
edifício, de um artefato ou de uma obra de arte, modo é indiscutivelmente necessário dominar con­
perpassa por vários níveis de estudo, entrelaçados ceitos aplicados da química, da física e da biolo­
entre si, apesar de especializados em sua área de gia, na eleição dos procedimentos de conservação
estudo: e restauro.
Se por um lado, não podemos perder a per­
• as pesquisas realizadas por áreas de co­
cepção de que é impossível reconstituir o objeto
nhecimento específico, seja a história da arte,
em sua materialidade original, devemos buscar es­
h istó ria da arq u itetu ra, a arq u e o lo g ia, a
tabilizar os processos de alteração e degradação
etnologia, a antropologia, toda e qualquer dis­
de um objeto, procurando m odificar o mínim o
ciplina que resgate as informações contidas
possível as características de seus materiais cons­
nas obras, transformando-as em conceitos e
titutivos.
idéias;
Devemos perceber a imensa dificuldade de
• a documentação científica, que controla,
praticar um respeito rigoroso à integridade do
cataloga e mantém organizadas as informações
objeto - tanto na sua preservação material quanto
mínimas necessárias à identificação das obras;
em relação ao seu significado - , mas buscar esta
• o processo de m usealização, que ao
prática a todo custo, para que, através de critérios,
mesmo tempo possibilita a extroversão e o
ética, bom senso e conhecimento científico, pos­
gerenciamento dos bens patrimoniais;
samos atuar de uma forma mais consciente diante
• a área de conservação e restauro, res­
dos problemas materiais de nossa cultura m ateri­
ponsável pela preservação material dos acer­
al.
vos.
A elucidação dos mecanismos de alteração,
N este sentido, mais uma vez deparamos com tanto referente aos grandes fatores (ambiente ex­
um a legislação pouco voltada para o reconhe­ terno), quanto aos detalhes específicos e relevan­
cimento das profissões que lidam com a cultura tes de cada combinação e unidade material, possi­
m aterial. M useólogos, arquivistas e docum en­ bilita a exploração científica dos materiais. A cons­
talistas, há pouco tem po atrás não tinham sua ciência profunda dos mecanismos e dos materiais
profissão reconhecida. Ainda hoje, arqueólogos, condiciona nossa capacidade de com preender a
etnólogos e restauradores não são reconhecidos matéria e as razões pelas quais esse ou aquele tra­
formalmente. tamento é ou não confiável. As inform ações po­
A ssim, se por um lado, cada vez mais tom a­ dem nos ajudar a dirigir determinadas situações e,
se necessária uma especialização nessas áreas de desse modo, propor métodos de controle e inter­
conhecimento, a falta de regulamentação profis­ venção mais controlados.
sional gera, em um outro sentido, a permanência Toda ação é política. Também a ação de con­
de profissionais não qualificados no mercado de servação e restauro encontra-se circunscrita na es­
trabalho e o desestímulo daqueles que buscam uma fera política. Nesse sentido, é indispensável com ­
formação mais especializada. preender e difinir os limites e as extensões de nos­
No que tange a área de conservação e restauro, sos domínios, para que possamos atuar, cada vez
a ação de profissionais não qualificados implica, mais, de forma consciente na preservação da cul­
muitas vezes, em procedimentos inadequados que tura material. Nos escreve Torraca, em um artigo
produzem efeitos imediatos, os quais descarac­ sobre os métodos científicos aplicados em obras
terizam o sentido original das obras e artefatos, de arte:
quando não significa a introdução de elementos
quím icos e orgânicos que aceleram os processos “Os cientistas são facilm ente conduzidos
de degradação das obras. a considerar a conservação como um domínio
É necessário entender que os processos de subdesenvolvido, do ponto de vista científico.
restauração envolvem a ação direta na m ateria­ Em conseqüência têm a tendência de trans­

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f e r ir d ire ta m en te à co n serv a çã o idéias, as acadêmicas mantêm um certo “ranço” concei­


preconceitos, equipamentos e procedimentos tuai com relação aos trabalhos manuais, às ativi­
p ro v e n ie n te s de um cam po a n te r io r de dades de campo e de laboratório, desenvolvidos
especialização. É apenas depois de experi­ por estes tipos de pesquisa.
ências m alogradas que percebem que os A posição destas áreas - a arqueologia, etno­
problem as não são tão simples: a terra da logia e conservação - , frente às ciências sociais e
conservação é cheia de arm adilhas e os às ciências exatas, toma-se incômoda uma vez que
indígenas são geralmente hostis” (Torraca, lança mão de métodos de análise provenientes de
, 1986).2 ambas as disciplinas para a form ulação de seu
corpo conceituai.
Para compreender a hostilidade dos elementos
Nesse sentido, apesar de aplicarem efetiva­
e da matéria, há um caso, relatado pelo conservador
mente as possibilidades da interdisciplinaridade
Augusto Froehlich que descreve uma peça de metal
na construção de seu próprio campo de conhe­
re sg a tad a do mar. P or fa lta de m ecanism os
cimento, algumas vezes parecem estrangeiros em
elem entares de controle, ao ser im ediatam ente
terras estranhas, uma vez que falam uma língua
exposta à atm ofera, a m atéria desse objeto se
desconhecida, repleta de volabulários ignorados,
decompôs a olhos vistos e de uma significativa
como estratigrafía, sedimento, prospecção...
peça de estudo com forma e contorno se trans­
A visão da arqueologia como mera técnica,
form ou em um am ontoado de m etal corroído
prática servil de outras disciplinas maiores, ainda
(Froehlich, 1994).
sobrevive no meio acadêmico. Tais considerações
derivam, em certa medida, da própria maneira de
as ciências sociais considerarem qualquer trabalho
C ultura m aterial: o juízo
braçal como atividade menor, herança da visão
de valores das ciências sociais
acadêmica implantada no Brasil.
Em um compêndio escrito em 1806, Luís da
A posição dos bens patrim oniais arqueo­ Silva Pereira de Oliveira, cavalleiro professo na
lógicos e etnográficos brasileiros encontra-se ordem de Christo, corregedor da com arca de
ex trem am ente d esig u al em rela çã o a outros Mirando do Douro, natural de Portellas, e sócio
produtos da cultura material. da R ea l A ca d em ia das C ien cia s de L isb o a ,
Qual a porcentagem de museus especializados procurou reunir as informações básicas a respeito
em relação aos museus históricos, museus de arte da origem, caracterização, privilégios e crimes
moderna e contemporânea? destruidores da nobreza (Pereira de Oliveira, 1806).
Por outro lado, até mesmo a área de conser­ Nessa obra, podemos observar a resistência
vação encontra-se dissociada deste cam po de de uma das mais antigas formas de distinção dos
conhecimento: as poucas escolas de formação em grupos sociais: a restrição quanto aos ofícios
conservação e restauro que existem no país prio- m ecânicos, “incom patíveis com a Nobreza, e
rizam o estudo de pinturas de cavalete e esculturas destructivos de seus brilhantes p r i v i l é g i o s A
em madeira, em detrimento do estudo voltado aos crença irrestrita nesses conceitos manteve, durante
artefatos arqueológicos e etnográficos. séculos, a manutenção de um determinado com ­
R epensando o lugar que as profissões de portamento que sujeitava indivíduos a outros in­
arqueólogo, etnólogo e conservador ocupam no divíduos, em função de um cômodo equilíbrio so­
ranking científico, podemos averiguar que as áre­ cial.
Pedro Paulo Funari, aponta a deficiência desta
visão tradicional, segundo a qual a Arqueologia
(2) “Les scientifiques sont facilement conduits à considérer
em si é simplesmente uma técnica (essencialmente
la conservation comme un domaine sous-développé, du point
de vue scientifique. En conséquence, ils sont tentés de
transférer directement à la conservation idées préconçues,
équipement et procèdes venus de leur champ antérieur de (3) Tanto quanto a Arqueologia, a área de Conservação e
spécialisation. C ’est seulement après quelques expériences Restauro também é vista como uma disciplina auxiliar, uma
malheureuses qu’ils apprennent que le problème n’est pas si mera técnica ou uma ação imediata de consertar objetos que­
simple; la terre de la conservation est pleine de pièges, et les brados, negando-se completamente todo corpo teórico, ético
indigènes sont fréquemment hostiles” (N.T.) e conceituai necessário à sua atividade.

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a abertura de buracos no solo ou abaixar-se para Duarte, Roger Bastide, Rondon, se propuseram a
recolher objetos) que pode ser em pregada em construir centros de estudos voltados para o ge­
benefício da Antropologia, da H istória ou do renciamento efetivo de nossos acervos e que, ape­
divertim ento.(Spaulding apud Funari, 1988: 13). sar de todas deficiências, ainda procuram preser­
A academia brasileira, herdeira direta dos câ­ var, estudar e expor os fragmentos de nossa me­
nones europeus, parece querer m anter o status quo mória.
da arqueologia enquanto disciplina auxiliar. Esta Nesse momento, cabe questionar a validade
abordagem exclui, portanto, a Arqueologia das do resgate e coleta massiva de objetos, os quais,
ciências sociais e enquadra seu campo de atuação depois de coletados - estudados ou não - , acabam
como uma prática de cam po...(Funari, 1988: 7). consumidos em ambientes inadequados propícios
Por outro lado, conhecim ento é poder e o ao ataque biológico, saque e destruição.
conhecim ento gerado pela arqueologia brasileira A questão da conservação dos objetos ar­
sofreu e ainda sofre o controle geral do estado, seja queológicos depois do processo de escavação apre­
pela intervenção direta - com o a fundação do senta um duplo problema: a quantidade conside­
PRONAPA no regime militar - , seja pelo controle rável de documentos a conservar e a justificação
financeiro dos projetos de pesquisa. científica de sua manutenção. Nesse momento, é
Nesse mesmo sentido, a história conturbada indispensável criar um ambiente estável, protegi­
do M useu de Arqueologia e Etnologia da Univer­ do ao máximo contra os elementos que danificam
sidade de São Paulo, o qual reúne um dos maiores as obras.
acervos arqueológico e etnográfico, aponta para a Assim, devemos com preender que ao extrair
influência da política estatal no gerenciamento de um objeto do solo, este passa abruptamente de um
nossos centros de pesquisa. Os problemas gerados regim e de destruição lenta para um regim e de
pela fusão mal planejada de vários institutos da destruição rápida. A sensibilidade desse objeto ao
USP, até hoje vêm sendo sentidos pela “cultura novo ambiente dependerá tanto do tipo de local de
m aterial” abandonada nos depósitos, ainda não onde foi extraído como do tipo de local onde será
reunificada fisicamente (Funari, 1994). acondicionado.
P or sua vez, apesar da riq u ez a indígena Da m esm a forma, objetos etnográficos são
brasileira, estamos longe de criar um Museu do extremam ente sensíveis devido sua com posição
H omem Americano ou um M useu do índio, do orgânica.
porte de museus franceses, alemães e americanos, N ão ex iste nen h u m m a teria l, n atu ra l ou
como é o caso do M usée de l ’Homme em Paris, ou sintético, que não se degrade com o passar do
o M useu de Etnologia de Stuttgard, que “em menos Tempo.
de vin te anos chegou a se ssen ta m il peças, Contudo, o processo de envelhecim ento de­
convencido de que o impacto europeu sobre as pende do meio e da resistência do m aterial ao m es­
sociedades tradicionais modificaria sua essência mo. Toda degradação é irreversível, pois a obra não
de tal m odo que elas se tornariam irreconhe- voltará ao estado original. Porém, ela pode ser es­
cíveis,, (Schumann & Hartmann, 1992). tacionada e controlada.
Se por um lado, todo discurso acadêm ico Qualquer material, mesmo que possua todas
im posto nas obras de Silvio Romero, Fernando as propriedades físicas e quím icas para durar
A zevedo, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto séculos, sofre influências que prejudicam sua
Freire, Darcy Ribeiro, Raimundo Faoro, Caio Prado durabilidade. Essas influências são classificadas
Jr., N elson W erneck Sodré, C arlos G uilherm e como:
Motta, Antonio Cândido, Alfredo Bosi, M arilena
1. agentes internos, que provêm da ma­
Chauí, Ulpiano Bezerra de M enezes, entre outros,
téria-prim a e dos métodos de confecção;
procura valorizar a formação cultural do Brasil a
2. agentes externos, que ocorrem a partir
partir do resgate de nossos documentos e m onu­
do uso e dependem do meio ambiente, da guar­
mentos, por outro, a ação efetiva voltada para a
da, do manuseio, dos materiais constitutivos
preservação real destas fontes, tem sido pouco
e das intervenções.
valorizada.
P o u q u íssim o s h o m e n s, co m o M á rio de Sendo assim, qualquer form ulação de uma
Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Paulo política de gerenciamento do patrim ônio arqueo­

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lógico e etnográfico deve levar em consideração C onservação P reventiva: proposta


tanto os problemas éticos e políticos que envol­ p olítica para a preservação de acervos
vem a manipulação dessa fonte de conhecimento,
quanto os problemas materiais, que consistem em Uma das críticas elaborada na Carta Interna­
métodos de resgate, análise, acondicionam ento, cional da Arqueologia - ICOM OS - é que “uma
manuseio e intervenções, os quais podem destruir série de atividades im portantes como ações de
ou preservar estes objetos de estudos. consolidação e restauro estão em curso nos países
Ver a m atéria em sua m aterialidade não é su l-a m e ric a n o s, sem que p o r isso ten h a se
diminuir seu valor conceituai, mas perceber que ampliado as possibilidades de ação ou as áreas
esta sofre degradação e que esta destruição acarreta de atuação dos esp ecia lista s em arqueologia
em perda de informações; de possibilidades de histórica e pré-histórica
investigação; perda da memória e da história. Este comentário, elaborado pelo Prof. Dr. Amo
Nos vários com pêndios sobre a história da Alvarez Kem, apresenta uma das visões da arqueo­
arqueologia e etnologia do Brasil, nossos pesquisa­ logia brasileira com relação às ações conserva­
dores caem na mesma postura preconceituosa de cionistas: apesar de importante, não deve ocorrer
nossos cientistas sociais perante estas áreas: ten­ em detrimento da pesquisa arqueológica.
dem a ver a museologia, a curadoria, a conservação, Não cabe aqui avaliar se as ações conserva­
a documentação sistematizada e o gerenciamento cionistas - como consolidações e restaurações -
de acervos enquanto disciplinas auxiliares, ferra­ têm sido feitas de maneira criteriosa na América
mentas de trabalho, sem perceber que a riqueza da Latina, mas perceber que, de certa maneira, esta
interdisciplinaridade consiste no respeito mútuo tendência tem se acentuado na área de arqueologia.
entre as várias áreas. Cada campo de estudo, nem V ários p aíses têm assum ido esta p o stu ra
menor ou pior, pode contribuir, através de suas pes­ diante de seu patrimônio cultural. Em um texto
quisas especializadas para a preservação da me­ enviado à Revista Chungara, da Universidade de
mória. Tarapacá - C hile - , os p ro fesso res B ernardo
Entre tantas correntes de pesquisa, por que não Arriaza e Vicki Cassman questionam o papel da
pensar em um a corrente preservacionista, que arqueologia, sob o título ¿ Se está produciendo un
busque, através da ética e das técnicas, assegurar arqueocídio?. Este texto, ao abordar a problem á­
a sobrevivência de nossos acervos? tica da quantidade massiva de material arqueoló­
Nenhum dogma ou crença histórica contestado gico continuamente extraído, questiona a responsa­
pela arqueologia poderá se fundam entar se as bilidade do arqueólogo e do antropólogo físico no
evidências forem destruídas. manejo e gerenciamento destas fontes.
Assim, a ação conservacionista ocorre em duas Um a p o lítica con serv acio n ista perante os
frentes de trabalho: artefatos significa, a longo prazo, assegurar o
• a percepção da questão ética que envolve potencial de investigação desses objetos, uma vez
a manipulação de artefatos, a partir da for­ que se p reo cu p a em m an ter sua in te g rid ad e
mulação leis patrimoniais, códigos de ética e material.
centros de pesquisa; “Pareciera que la prim era ley de la arqueo­
• o papel da disciplina de Conservação, lo g ía es que toda ex ca v a ció n le sig u e una
enquanto área de conhecim ento específico entropía o caos, de tal m anera que es fu n d a ­
capaz de sistematizar conceitos relacionados mental que las sociedades de arqueología tengan
à p rese rv a çã o de ac erv o s, com o agente un papel supervisador mucho más activo en el
fundamental à elaboração de uma política de c o n tr o l y a d m in is tr a c ió n de lo s r e c u rso s
conservação. arqueológicos
Neste mesmo texto, o autor adverte para a
Nesse sentido, propomos na segunda parte necessidade de incluir nos currículos das disci­
deste artigo uma visão abrangente do significado plinas relacionadas com o estudo do passado, as
da Conservação Preventiva e os critérios especí­ cadeiras de manejo de coleções e principios básicos
ficos de controle ambiental, reconhecendo e ana­ de conservação preventiva. Desta forma, as novas
lisando os fatores essenciais de degradação dos gerações poderiam ser orientados a proteger o
materiais. patrim onio estudado - arqueológico ou não - ,

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percebendo-o globalmente, tanto em seus aspectos acurados, ao mesmo tempo que descarta métodos
materiais quanto conceituais. de intervenção mais drásticos e caros.
U ltim am en te, M éxico, C h ile, A rgentina, Por sua vez, os critérios da Conservação Pre­
Colôm bia, Peru, Venezuela, Equador, países de ventiva têm sofrido uma série de ajustes, em fun­
considerável produção arqueológica na América ção das especificidades do materiais existentes nos
Latina, têm se preocupado com os parâmetros da bens patrimoniais, móveis e imóveis, e das áreas
conservação preventiva, como mecanismo de pre­ nas quais estes objetos encontram-se lotados. A s­
servação de seu patrimônio cultural. Nestes paí­ sim, os critérios adotados em países de clim a tro­
ses, existe uma tendência acentuada de transfor­ pical não devem ser os mesmos daqueles adotados
mar a área de conservação em uma área am alga­ em clim a temperado: a realidade é distinta; os
mada à arqueologia. Solamente el esfuerzo de un parâmetros são distintos; os mecanismos são dis­
equipo profesional mutidisciplinario, real, y no tintos, portanto, a maneira de controlar cada con­
tan sólo en el papel, a sí como un planteamiento texto também é diferente.
de la filo so fía de excavación y m useos podrán No entanto, não cabe ao conservador perseguir
contribuir en form a fundam ental a incrementar os ideais da Conservação Preventiva como se fos­
nuestros conocimientos y a posibilitar la preser­ sem dogmas ou leis, mas procurar, a partir destes
vación y optimización de los recursos arqueoló­ parâmetros, desenvolver uma consciência da mate­
gicos. rialidade e da vulnerabilidade dos objetos entre os
Por sua vez, a área de conservação e restauro vários especialistas, de modo a encontrar aliados,
tem priorizado a conservação preventiva em relação e não opositores, nos projetos preservacionistas.
às técnicas de intervenção direta, como uma ma­ Adaptar-se à realidade das verbas, do espaço
neira de proteger a integridade material dos obje­ e dos materiais que temos por obrigação cuidar,
tos. não é tarefa das mais fáceis. No entanto, a partir
P reserv a çã o é a u tiliza ç ã o de todas as do momento que conhecemos conscientem ente e
técnicas científicas disponíveis para assegurar a tecnicamente nossos problemas é que poderemos
manutenção dos artefatos, coleções artísticas e encontrar soluções compatíveis com a nossa reali­
históricas, de acordo com os critérios que buscam dade. Caminhar um passo na direção do ideal, é
as melhores condições para um acondicionamento uma passo a mais que damos para nos aproxim ar­
adequado. (XV III Congresso A nual da ABPC, mos de situações mais adequadas.
1988).
C om o a m e d icin a p rev e n tiv a, a ação da Os critérios da C onservação Preventiva
Conservação Preventiva intenciona controlar os
agentes de degradação - internos ou externos - , Fundamentalmente, a conservação pode ser
com o intuito de prevenir, estacionar ou retardar a definida como uma operação que visa prolongar a
deterioração dos objetos. Assim, do mesmo modo vida de um objeto, prevenindo pelo maior tempo
que a partir de medidas de saneamento básico, possível sua deterioração natural ou circunstancial.
vacinação e controle a medicina previne o apa­ Porém, vários enunciados podem ser feitos com
recim ento de certas doenças; a Conservação Pre­ relação à Conservação Preventiva:
ventiva se propõe a atuar no ambiente externo, atra­ “Todas as técnicas que tendem a preservar e
vés do controle de fatores como luz, temperatura, controlar as possíveis causas ou agentes de dete­
umidade, ataques biológicos e manuseio - ele­ rioro, que provocam a ação do meio ambiente e o
mentos diretamente responsáveis pelos danos ime­ homem, com o fim de assegurar sua permanência
diatos dos materiais constitutivos de obras e arte­ no tempo, para o desfrute das futuras gerações”
fatos - , prevenindo o aparecimento ou atuaçãos dos “Todas aquelas medidas que tendem a deter
m ecanism os que contribuam à degradação dos ou evitar a deterioração, mediante o controle dos
objetos. elementos am bientais, sejam do tipo natural ou
Se em um p rim eiro m om ento, a ação da social. E uma tarefa m ultidisciplinar que abarca
Conservação Preventiva implica em certos custos, desde o momento de planificação de um edifício
a longo prazo, resulta em econom ia quantitativa e (museu ou centro de estudo), até seu posterior
qualitativa, uma vez que preserva a integridade ma­ funcionamento. Este trabalho se vê diretam ente
terial dos artefatos, possibilitando estudos mais relacionado com a capacitação de pessoal em

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diferentes níveis, desde os trabalhadores de lim­ queológicas e etnográficas: excesso de U.R. com ­
peza, guardas, custódios, documentalistas, museó- bina a ação hidratante e corrosiva; carência pro­
grafos, etnólogos, arqueólogos até aqueles níveis move a desidratação e diferença de contração; a
de direção e também a população em geral.” mudança dos coeficientes de U.R. promove um
‘Todas as ações que busquem evitar e diminuir câmbio dimensional dos materiais higroscópicos,
a degradação precoce de bens culturais, concebidas ocasionando um esforço físico muitas vezes m ai­
interdisciplinarmente e trabalhadas multidiscipli- or do que o suportável pelo objeto.
narmente, tendo em conta o edifício e a coleção, Coeficientes muito altos de umidade provo­
maximizando recursos humanos e econômicos.” cam a corrosão dos objetos metálicos, atacando
“A metodologia que estabelece sistemas e es­ também as superfícies dos vidros - tom ando-os
tratégias não interventivas, orientadas para a pro­ baços e esbranquiçados - devido ao seu alto teor
teção dos bens culturais” . alcalino. Os sais higroscópicos de alguns objetos
Todos estes conceitos, retirados de um exer­ tratados, em pedra e cerâmica, podem formar cris­
cício orientado elaborado durante o “I Curso de tais de maior volume (M gS 04 - M g S 0 4. 6H20 ).
Conservación Preventiva: Colleciones dei Museu Além do mais, a umidade é base para o cresci­
y Su M edio A m biente”, reproduzem a visão da mento de microrganismos e proliferação de insetos.
Conservação Preventiva de mais de vinte e cinco
especialistas, de arquitetos a diretores de museus, Temperaturas
de dez países latino-americanos. Realizado a partir
de esforços conjuntos entre The Getty Conser- Extremamente nocivas são as temperaturas
vation Institute - EUA - e o INAH - México - , muito altas, pois reduzem o coeficiente de umidade
este foi o primeiro curso dessa natureza direcionado do ar e secam ex c essiv am en te os m a te ria is
à A m érica Latina, dem onstrando que pouco a higroscópicos. Temperaturas muito baixas também
pouco esta disciplina tem tomado corpo em nossos são nocivas, como no caso da “peste do estanho”
países. - a pulverização dos objetos confeccionados em
Neste mesmo sentido, revistas como a APOYO, estanho - que ataca a uma temperatura de 13°C.
coordenada por Amparo R. de Torres e Ann Seibert Nas áreas com temperaturas muito baixas, a
e subsidiadas pelo Sm ithsonian Institute, têm neve e o gelo podem provocar danos em objetos
publicado textos voltados para a preservação do arqueológicos, devido ao desgaste e pela concentra­
patrimônio cultural latino-americano. ção de umidade nas superfícies.
Cabe perguntar, quais são os parâmetros da
Conservação Preventiva e com que ela se preocupa?
Poluição
M últiplas são as preocupações da Conserva­
ção Preventiva e os elementos degeneradores da
Desde o século XDC, os danos causados pela
matéria, com os quais temos que lidar, atuam de
poluição vêm se tomando evidentes: o C 0 2e o S 0 3,
forma associada, estando longe de ser completa­
liberados pelas indústrias e pelos carros, associa­
mente controlados. Cada vez mais a química, a
dos à umidade do ar, provocam compostos ácidos.
física, a engenharia, a meteorologia atuam como
Os poluentes atmosféricos atuam muito mais
d isc ip lin as aplicad as à conservação de bens
do que podem os realm ente “enxergar” : alguns
culturais, o que nos abre um leque de possibilidades
componentes do ar podem modificar as estruturas
diante da interdisciplinaridade.
internas, promovendo inclusive reações químicas.
Várias são as origens dos danos em obras de
Os poluentes mais ativos são os compostos
arte, como também os métodos de controle per­
de enxofre, o dióxido de enxofre ( S 0 2) e o anidrido
tinentes. A seguir, decreveremos suscintamente al­
sulfúrico ( S 0 3), gases sulfurosos produzidos pela
guns parâmetros, para dar uma idéia do universo
combustão do carbono - característico dos grandes
de atuação desta área de conhecimento.
centros urbanos e locais de trân sito intenso.
Através da umidade (H20 ) transforma-se em ácido
Umidade do ar sulfúrico (H2S 0 4) , acidificando e corroendo vários
elementos.
A umidade do ar é um dos fatores mais im­ As impurezas sólidas e gasosas têm efeitos
portantes no processo de degradação de obras ar­ prejudiciais sobre os objetos: o pó, a terra, a

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fuligem, o pólen e outros corpos podem aderir-se modificar seu estado sólido para um estado líquido
às superfícies dos materiais, provocando reações de acordo com sua temperatura de transição vítrea.
químicas e concentrando os gases e a umidade do
ambiente. Ataque biológico

Luz Os agentes biológicos geralmente são introdu­


zidos nas coleções, arquivos e museus através do
A luz se define com o o agente físico que ambiente extemo ou a partir do contato com outros
ilu m in a os o b je to s e é fo rm a d a p o r o n d as materiais infestados, trazidos de outros edifícios.
eletromagnéticas, constituindo um grave perigo à O agentes considerados mais prejudiciais aos
conservação, pois produz - principalm ente nos acervos confeccionados em material orgânico são
objetos orgânicos - danos irreparáveis. aq u e le s que ca u sa m d an o s a p a rtir de suas
As radiações luminosas, naturais e artificiais, atividades de alimentação.
causam, segundo a frequência e o comprimento das Contudo, excrementos, corpos em decom po­
ondas incidentes sobre o objeto, diferentes danos. sição (insetos m ortos), casulos e teias tam bém
Toda luz é nociva e seus efeitos são acumulati­ promovem a degradação dos materiais, podendo
vos: assim, uma exposição de dez horas a uma certa ser classificados basicamente em três níveis:
intensidade de luz poderá ser igual a uma hora de
exposição a uma intensidade de luz mais forte. • por fungos e líquens: quando a umidade
O processo de degradação, de acordo com a e a temperatura são elevadas;
fotossensibilidade dos objetos, prosseguirá através • por insetos: os materiais a base de celu­
de uma reação contínua, mesmo na ausência de lose são os mais atacados pelos xilófagos -
luz. Dessa forma, uma vez ativada a molécula, uma térmitas (cupins) e coleópteros (besouros) - ,
série de reações são desencadeadas e o centro de sofrendo também ataques de baratas, traças,
reações se multiplicará através de cada molécula. moscas.
As radiações visíveis são extremamente pre­ • por animais maiores: os pombos e os
judiciais aos artefatos, sendo que em um dia normal morcegos danificam os materiais através de
a in te n sid a d e de luz n atu ra l cheg a a ser de seus excrementos; os ratos são os mais nocivos
lO.OOOlux. Geralmente produz o fenômeno de des­ pois, além dos excrem entos, atacam d ire­
coloração de pigmentos orgânicos e inorgânicos. tamente o suporte orgânico.
A radiação ultravioleta, altera, particular­
mente, os objetos orgânicos, sobretudo as pinturas; Estes são apenas alguns fatores a serem con­
os têxteis e os papéis os aglutinantes e os vernizes, siderados, tanto de m aneira isolada quanto inte­
gerando degradações químicas e físicas - efeitos grados entre si. M anuseio inadequado, ambiente
fotoquím icos. Dois tipos de reações podem ser de resgate, planificação, são outros fatores a se­
observadas: rem levados em conta, em relação aos materias ar­
queológicos e etnográficos.
a) a oxidação prom ove a ruptura das Assim, a partir dessa amostragem, podem os
cadeias e um encolhim ento das moléculas, perceber a com plexidade que envolve o controle e
tom ando o material menos resistente m ecani­ a preservação de bens patrim oniais, sendo per­
camente; meada tanto pela postura ética daqueles que m a­
b) a luz UV promove o aparecimento de nipulam os acervos, quanto pelo conhecim ento
ligações cruzadas, conduzindo ao fenômeno técnico, daqueles que intervém diretam ente na
de insubilização, tom ando o produto cada vez matéria.
mais rígido. A incapacidade de acompanhar a
movim entação do objeto de contato promove
C onclusão
tensões, aparecendo fissuras e rachaduras.

A rad iação in fraverm elh a é preju d icial A Conservação Preventiva e a Conservação


devido à alteração térm ica, com o aquecimento Interventiva (restauração), direcionadas para áreas
tanto do ambiente quanto das obras. O aquecimento de estudo específicas - com o a arqueologia, a
incide sobre as resinas termoplásticas, que podem etnologia, a h istó ria da arte, a m u seo lo g ia, a

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arquitetura têm por obrigação orientar essas e reservas técnicas, subm etendo-a a um a frag­
disciplinas na execução acurada, voltada para a mentação possível diante de circunstâncias inós­
preservação da cultura material, de suas tarefas. pitas.
Não é intenção posicionar-se em níveis distin­ Não vale a pena retirar de uma tribo um bastão
tos perante essas matérias - acima ou abaixo - , ritual, para vê-lo consumido por cupins.
mas perceber que a fusão dos conhecimentos; o Não vale a pena restaurar uma ânfora de bronze
respeito mútuo pelos critérios de cada disciplina; de três mil anos, se destruímos seu núcleo metálico
a busca de caminhos mais seguros, só tendem a e com ele carregamos inscrições, desenhos e inci­
incrementar o desenvolvimento de nossas ações. sões.
Assim, quando deixarmos de ser imediatistas Torna-se extrem am ente com plicado exigir
e vaidosos, pensando apenas em nosso objeto de uma consciência preservacionista com o parte da
estudo, exposição ou restauração, e pararmos para cidadania, se os próprios agentes responsáveis
pensar que este pequeno objeto deve perm acer pelos acervos - secretários de cultura; coordena­
cognicível para as gerações futuras, então teremos dores do patrim ônio; diretores de museus; mu-
com preendido o real sentido da integridade da seólogos; pesquisadores; restauradores; educado­
cultura material - enquanto conceito e matéria. res - não assum em esta postura de form a ética e
Não vale a pena destruir um objeto de duzentos prática.
anos, para expô-lo de maneira inadequada por cinco A cultura material, sob o ponto de vista de seu
dias. caráter integral - material e imaterial - , só tem uma
Não vale a pena retirar do solo um a urna chance diante deste mundo em acelerada transfor­
intacta de mil anos, para esquecê-la em laboratórios mação: nosso sincero respeito.

FRONER, Y.-A. Preventive Conservation and Archaeological & Ethnographic Patrimony: ethics,
concepts and criterious. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 291-301,
1995.

ABSTRATC: This paper proposes a discussion about the role of Conservation -


as a sistematic discipline - related to investigation, rescue and management of
archaeological and ethnographic colections. Taking the cultural object from the point
of view of its m ateriality, we argue that the absence o f proper retrieval and
management procedures considerably reduce its potential as a source of investigation
about cultural processes.

UNITERMS: Preventive Conservation - Archaeology - Ethnology - Heritage -


Material Culture.

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