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Sinestesia
Revista literária
Sinestesia
A essência do nosso criar colhemos todos os dias. Naquele olhar enviesado. Na percepção
daquele clima. No fragmento de conversa. Na vida que nos dói. Na vida-vertigem.
Esta revista foi pensada como a melhor forma de dar vazão ao ímpeto criativo que tem sido
desenvolvido na Oficina de Escrita Criativa do Colégio Sinodal. Ficamos na esperança de que os
contos, ensaios, poemas e capítulos de livros encontrados aqui sejam uma leitura bem-vinda para
você, nosso leitor.
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Sumário
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Capítulo de livro
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Até a Última Gota
Cap. 1
Caminhar pela infinidade do Deserto Espiral era uma tarefa exaustiva por si só. As dunas de
areia cinzenta seguravam as botas de Bóris como pedintes implorando por misericórdia. Os picos de
construções de concreto que se sobressaíram entre aquele oceano sem água o preocupavam, não por
serem assustadores por si, mas pelas coisas que ocultavam. E com coisas, ele pensava em pessoas,
olhos famintos que espreitavam nas sombras das construções em ruínas;
A realidade que assombra esse mundo é esta. Pessoas. Os humanos são criaturas
imprevisíveis, fazem de tudo para sair por cima, e, agora, conceitos antigos como moral foram há
tempo esquecidos. A liberdade do homem selvagem no meio escasso em água e o senso de
sobrevivência combinaram-se em uma das misturas mais cruéis já presenciadas: vampirismo. Isso
martelava o cerne de Bóris de maneira torturante. Só de pensar em degenerados desnutridos indo
atrás de Esperanza com aqueles tubos de vidro encardidos e bombas com agulhas enferrujadas, o
seu estômago embrulhava.
Ele segurou o machado com mais força, virou a cabeça e notou as pequenas mãos de sua
filha estendendo-se em direção ao horizonte. Suspirou, relaxou os músculos e manteve o passo.
Mesmo para um homem grande como Bóris, atravessar o deserto carregando uma mochila, uma
criança de 1 ano e um machado nas mãos estava longe de ser tarefa fácil. Apoiava a lâmina do
machado no chão e impulsionava-se para frente, de modo a acreditar que estava economizando
energia, pois precisava chegar logo a algum lugar.
Não sabia exatamente o que procurava. Se fosse abastecer suas garrafas, trocar suprimentos
ou tentar alugar um pequeno quarto para que sua filha dormisse confortavelmente, ao invés de
suspensa por duas cordas nas costas do pai, precisaria encontrar alguma comunidade. Também não
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aguentava mais comer ovos de abutres e pômulos. Por mais que a última opção fosse mais nutritiva,
o gosto amargo do fruto cinzento e rugoso proporcionava uma sensação de sede dificilmente
suportável. Quanto aos ovos, eram complicados de conseguir e estava guardando-os para trocas.
A vida de nômade era insuportável, mas era o único jeito de manter a filha longe das
frequentes ondas de violência nos assentamentos. Foi tolo ao pensar que a violência se encontraria
apenas nas cidades e não nos desertos. Quando percebeu o homem que investia em sua direção, era
tarde demais. Antes que pudesse erguer o machado, o inimigo o acertou com tudo na mandíbula ao
mesmo tempo que segurava o machado de Bóris. Sua filha chorava com a turbulência, e o homem
oculto conseguiu, com um chute na boca do estômago do nômade, arrancar o machado de suas
mãos. Bóris sentia o coração apertar, pois carregava consigo não só o peso da própria vida, mas o
peso de duas. Esperanza reclamava a cada movimento brusco, o que chamou atenção do nômade.
“Cê tá com uma criança nas costas, patrão?” - O homem falou, e Bóris quase conseguia
sentir o sorriso perverso que formava entre os panos. “Assim o senhor me deixa contente, um e meio
pelo preço de um, não vou precisar me preocupar com bebida por mais 6 dias!”.
Entre as gargalhadas do homem, Bóris investiu contra ele, desviou-se de um ataque súbito
na vertical e derrubou o homem, posicionando-se em cima dele e assistindo ao machado deslizar
por uns três metros abaixo da duna.
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Bóris encarava a areia cinzenta manchada em carmesim. Relaxou os olhos, mas cerrou os
punhos - um aviso para quem fosse interagir com aquele homem deitado e a criança. Então,
perdeu-se na escuridão.
(continua)
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Capítulo de livro
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A Verdade dos Sonhos
Prefácio
Os sonhos e pesadelos são bem conhecidos pelos humanos: a beleza e o caos são os
responsáveis por uma noite bem dormida ou os constantes sobressaltos e olhos pregados. Acontece
que nem tudo é tão simples, principalmente quando se trata da natureza humana, e o nosso
inconsciente não pode ser explicado em poucas palavras ou até mesmo em um livro de trezentas
páginas. O que todos conseguimos concluir depois de todos esses anos é que o equilíbrio é a chave
de tudo.
Por isso que, quando o mundo foi dividido em dois, tudo começou a dar errado.
∗∗∗
Os seres humanos criaram teorias ao longo de toda a sua história sobre a possibilidade de
seres inteligentes como eles existirem em algum outro ponto da galáxia. Talvez no futuro e bem,
bem longe de sua pequenina bola azul, eles encontrariam essa resposta, seja com a descoberta da
viagem no tempo ou com a criação de uma máquina que atingisse a velocidade da luz - quem sabe?
Claro, daqui a muitos e muitos séculos. É como se eles sequer cogitassem a possibilidade de estarem
sendo vigiados antes mesmo do seu primeiro alfabeto ser criado, por uma civilização que estava bem
debaixo de seu nariz.
Não há uma época exata para se datar a criação de Konah. Na verdade, se formos bem
precisos, a Konah dos dias atuais não teve sempre esse nome. Inicialmente, seus habitantes não
estavam muito preocupados com essa questão de país, território, nomes e propriedades. Não é
como se esses termos existissem em seu vocabulário. Diferente de seus vizinhos, que naquele
momento eram um aglomerado de células no mar, eles tinham que lidar com um mundo que não
supria suas necessidades: alimentos estavam cada vez mais escassos, animais eram raramente vistos e
a água existia somente em alguns pontos, onde se concentravam os grupos espalhados pelo vasto
continente. O pequeno planeta acinzentado estava fadado a morrer, e eles não sabiam como mudar
isso.
Foi nesse momento, essa simples interação que não tinha sido levada em consideração, que
surgiram as consequências que mudariam completamente o curso dos acontecimentos. Não se sabe
exatamente quando aconteceu ou quem foi o responsável, apenas que um dos adultos começou a
contar histórias como forma de acalmar o medo dos mais novos. E não qualquer tipo de história,
mas fantasias de um mundo diferente daquele: belo, imenso e cheio de vida, com aventuras os
chamando para explorar o desconhecido. O tempo passou, e as narrativas pareciam possuir vida, as
palavras entalhadas na mente de cada um deles ganhavam forma com sua imaginação. Foi por causa
desses momentos, à luz da fogueira, com crianças se aproximando para ouvir cada detalhe e adultos
parando suas tarefas atentos às narrativas, que o planeta cinzento se transformou.
O globo escutava a súplica, criando florestas, lagos, flores, plantas e animais nunca antes
vistos andando por uma terra agora rica e que cobria toda a superfície. Os habitantes enfim saíram
de suas cavernas maravilhados com um planeta completamente diferente, cheio de vida. Não só isso,
mas as histórias também mudaram. Mesmo com um novo lar, o hábito da criação não foi perdido,
mas melhorado, assim como o planeta. As sombras criadas pelos fogos não eram mais necessárias,
pois a própria terra tomava forma diante dos olhos de seu criador. Eram desenhos representados
pela areia fina que mudava para cores vibrantes conforme a narrativa avançava, movimentando-se e
acompanhando o soar das palavras, proporcionando uma experiência sem igual em toda a galáxia.
Um presente como forma de agradecimento do planeta pela esperança para dias menos sombrios,
um grito de encorajamento que ecoou até o centro do mundo, reverberando na forma de vida.
Não foi uma surpresa quando as futuras gerações daqueles sobreviventes continuaram
utilizando essa nova habilidade todos os dias, transformando-a na base de suas tradições. A
Essência, como ficou chamada, era um pó tão leve que dançava pelo ar, aquilo que restava depois
dos autores completarem suas narrativas. Ele poderia ser encapsulado e utilizado quantas vezes
necessário para rever as histórias como se fosse a primeira vez, criando, literalmente, um fruto da
mais pura criatividade.
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Depois de unidos e com sua força restabelecida, os povos prosperaram com o dom de
representar sua imaginação para que todos pudessem ver e apreciar. Uma pequena parte de cada um
deles. Havia diferenças, mas elas eram o que os tornavam únicos. A terra foi salva, alimentada com
as emoções expressas por uma civilização que ainda existia por acaso.
É o tipo de coisa que não tem uma explicação científica para mostrar o porquê dos eventos
terem tomado esse rumo. Ele simplesmente foi e assim é, sem comprovações metafísicas existentes
ou qualquer baboseira que algum velho de barba acredita ter encontrado. Afinal de contas, o nosso
interior mais profundo está em todas as pequenas coisas que fazemos. Reflexos efêmeros de nosso
inconsciente impossíveis de serem mostrados inteiramente. Apenas parte daquilo que somos,
gostemos ou não.
Além disso, nenhuma dádiva é de “graça”, como os futuros konianos perceberão, pois um
poder sem igual em uma galáxia inteira tem a característica de atrair coisas boas na mesma
proporção das ruins. Nesse caso, bem ruins. Lembra aquela parte de realidades sobrepostas e
vizinhos pouco evoluídos? É, não foi por acaso que os humanos entraram em um momento no
enredo e tiveram um papel crucial para o plot. Ao menos alguns deles.
(continua)
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Miniconto
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Se o carente vier
Três batidas na porta no meio da noite. Rápido, acordo e levanto da cama em busca de
descobrir quem perturba meu descanso. Ao abrir a porta me deparo com o corredor vazio e um
bilhete no chão. O bilhete diz: “se o carente vier, o ignore”. Imagino que tenha sido uma
brincadeira de mau gosto feita por meu irmão mais novo, então amasso o bilhete e volto pra cama.
Três batidas na porta. De novo. Desta vez são um pouco mais fortes, o que eu estranho
devido ao meu irmão ser apenas uma criança. Antes de abrir a porta, decido olhar pelo olho mágico
e vejo um vulto correndo e outro bilhete caindo. Imaginando que seja meu irmão, nem abro a porta
e volto a dormir.
Pela terceira vez, acordo com toc toc toc, três batidas na porta. Quando viro meu olhar em
direção à porta, vejo uma mão muito magra passando pelo vão inferior com um outro bilhete. Esse
bilhete está completamente amassado e diz: “se não me atender, eu vou entrar” - em uma tinta
vermelho-sangue.
Quando “algo” bate na porta pela quarta vez, eu não estou dormindo, não consegui pegar
no sono com aquele bilhete na minha cabeça. Boto o travesseiro nas orelhas e finjo não ouvir.
Péssimo erro.
Alguns minutos depois, acordo com a minha porta completamente aberta e um barulho de
um grito infantil na distância. Corro da cama e, virando o corredor, vejo algo que um dia foi meu
irmãozinho carente.
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Conto
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Maria
Maria Ana
Vai, Maria, ser esquerda na vida. Corrida para a Vila dos Tocos. Quer saber? Vou, sim.
Motorista de Uber é morta em assalto na Vila dos Tocos. Já posso ver a manchete que não lerei nem
ouvirei. Meus 15 minutos de fama póstuma. Eu sei usar palavras como indelével, póstuma, irascível,
idiossincrasia, o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida, mas não sei
criar um filho nem ganhar a vida. Afinal, eu sou “uma corna desgraçada” como ele me jogou na cara
hoje. Ele está certo. Só atrapalho a vida dele. Vila dos Tocos, chegada estimada em 22 minutos.
Eu poderia ter pegado aquela corrida do aeroporto. Inteiraria a consulta dele nesta semana.
Mas eu sou uma ‘corna desgraçada’. Não só não vou fazer falta, mas vou fazer um favor de deixar de
atrapalhar. Daí ele fica livre para parar de estudar, se encharcar de bebida e morrer do pulmão em
três meses de uso contínuo de vape.
Vila dos Tocos, 16 minutos, Maria da agonia. 16 anos. Só fiz coisa errada. Burra, burra,
burra. Ele tem razão. Uma corna desgraçada tem mais é que morrer com uma bala bem no meio da
cara para estragar o velório. Tropa de Elite que era o filme? Ele era bem bebezinho quando eu vi,
com ele no colo, em mais uma das madrugadas em claro, ninando, cuidando das cólicas. Cuidando
para não chorar, porque o pai tinha que acordar às 5 da manhã. Trabalho complicado, precisava
estar com a mente descansada. Eu não, claro. Estava de licença.
Outra corrida, bem aqui do lado. Desisto desta e vou naquela barbada? Não, a essa hora da
noite só pode ser gurizada mimada bêbada. Prefiro uma bala no meio da cara, porque é o que
merece uma corna desgraçada. Graça. Engravidar aos 38 e a criança nascer normal é graça, diziam.
38 deve ser um tiro certo, que nem dá tempo para sofrer. Tomara que seja gente profissional, com
mão firme.
Uber à noite dá mais grana. Quem precisa de 8 horas de sono por noite? Duas horinhas de
cochilo, um café, um energético e já acordo em sala de aula. De que adianta mostrar lindas palavras
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se só têm palavrões naquelas ricas boquinhas cheias de aparelhos... Borrachinhas vermelhas, verdes,
azuis... Sorrisos debochados e sinceros. Quem entende? Eu tento, mas não o entendo. É porque sou
uma corna desgraçada.
Vila dos Tocos, tu me tens agora. Tem gente ali. Deve ser ali. Um homem, deve ser o tal do
William. Uma mulher e um bebê? Acho que não vai ser só tiro não, putz, não queria sofrer. Nada
de micro-ondas. Assim não quero. Só morrer, morrer, morrer.
- Que bom, dona, que a senhora veio. Uber é difícil vir aqui até de dia, que dirá a noite.
Bota o cinto, Djennifer. Segura bem a Kétlen se ela se debater de novo. Pro Centenário, dona. Eu
acho que nossa filhinha vai se passar. Eu não vou aguentar.
Que maluquice de golpe é esse? Ou não é golpe? Gente, deem um jeito aí, não sei continuar
esta vida não...
- A Senhora pode ir rápido? A Senhora deve ser mãe também, né? Imagina a minha aflição?
Não, eu não imagino. Eu sinto. A cada dia, a cada segundo, há 16 anos, nove meses e três
dias. Cólica, gripe, febre, cirurgia da fimose, das amídalas, da placa de titânio no braço esfacelado.
TDAH, depressão, convulsão. Eu sei, eu sei.
Será que eles podem parar de falar? Não entendo nada. Maldita hora para os óculos
embaçarem. Tontura. Quando vai ser?
- Diz no aplicativo que seu nome é Maria das Graças, dona. Pode deixar a gente aqui
mesmo. O que a senhora fez pela gente hoje só pode ser da inspiração do Espírito Santo e da Virgem
Maria. A dona é cheia de graça mesmo. Que Deus lhe dê em dobro e estenda a mão santa sobre sua
família.
Eu sou uma figura patética. Nem agradecer agradeci. Pois bem, Dona Maria das Desgraças,
como vai ser agora, com esta vida ainda aí, para respirar e se ferrar todinha, todo o santo dia? Deu
por hoje. Vou para casa? Como entro lá?
No rádio, uma canção dizia: “Mas é preciso ter graça, é preciso ter força sempre”.
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Poema
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Minha Corda da Verdade
Azadi
Um sorriso reluzente
Arrancado de repente
Resilientes e corajosas,
Faziam preces amorosas
Se mantiveram firmes, tranquilidade
Segurando-se a corda da verdade
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Histórias perdidas: Kamran Khalili Nasrabadi
Emily Nasrabadi, aluna do 1° ano de Ensino Médio do Colégio Sinodal, compartilhou com
o Jornal a interessante história de seu pai.
Kamran Khalili Nasrabadi, aos 16 anos, teve que fugir de seu país de origem, o Irã, por
conta de complicações que o país sofreu após a Revolução Islâmica de 1979 e que perduram no
regime iraniano até os dias atuais. Ele viveu no Irã por toda sua infância junto com seus pais e seus
dois irmãos. Porém, ele e seus irmãos tiveram de vir como refugiados ao Brasil em 1987, pelos
problemas sociais e religiosos que o Irã vinha sofrendo desde a revolução. Dessa forma, para
entender a necessária vinda ao Brasil da família Nasrabadi, deve-se esclarecer o que foi uma onda de
perseguição contra as minorias, como os Bahá’ís, após a revolução de 1979.
Entre 1941 e 1979, o Irã foi governado pelo Xá Reza Pahlavi. Durante seu governo, ele
sofreu diversas críticas pelo seu plano econômico que dependia de países ocidentais e que causava
desigualdade social no país. O regime monárquico do Xá obteve apoio britânico e americano
porque, com essa parceria, ele permitia a exploração livre do petróleo iraniano por companhias
privadas destes dois países.
Então, um levante de protestos começou em 1978, liderado por um líder religioso xiita, o
aiatolá Ruhollah Khomeini, contra o Xá e resultando em sua deposição. Em 1° de abril de 1979, o
aiatolá retornou ao Irã (pois estava em exílio em Paris) proclamando-se líder religioso e político do
país. Ele, então, propôs recuperar os valores religiosos e tradicionais do islamismo no país. A partir
disso, declara o Irã como uma república islâmica, formando assim um Estado teocrático
parlamentarista. Novas leis foram criadas baseadas na doutrina islâmica (conjunto de leis
conhecidos como Xaria): as mulheres são obrigadas a usar o véu e proibidas de exercer certas
atividades, são liberadas a pena de morte para homossexuais, prostitutas e para defensores do regime
monárquico dos Pahlavi. Além disso, é claro, foi prometido ao povo renda extra da já nacionalizada
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exploração do petróleo, o que nunca se cumpriu na prática. Cria-se, então, um governo autoritário
radical, baseado em preceitos religiosos. Toda essa história pode ser vista mais de perto na história
em quadrinhos “Persépolis”, escrita por Marjane Satrapi. É uma autobiografia que relata o dia a dia
da autora e das pessoas à sua volta, durante o governo autoritário no Irã. Excelente exemplo da
realidade iraniana.
Um dos motivos pela vinda dos Nasrabadi ao Brasil foi a opressão de sua família, pela
perseguição religiosa que vinham sofrendo. A Fé Bahá’í é uma minoria religiosa no Irã e foi
perseguida especialmente após a revolução muçulmana no país. Essa crença prega a igualdade entre
gêneros e raças, um conceito absurdo para o governo iraniano. Os Bahá’ís também baseiam sua
vivência espiritual na ação voluntária e no conhecimento; acreditam que religião e ciência devem
andar juntas.
A crença, que busca a liberdade e a igualdade entre as pessoas, foi duramente reprimida no
Irã. Atualmente, por exemplo, o regime do Irã também oprime mulheres, obrigando-as a usar o
hijab (veste muçulmana que cobre partes do corpo). Os que contestam os valores da fé islâmica, ou
as ações do Estado Iraniano, acabam presos ou mortos, assim como aconteceu no caso de Mahsa
Amini, recentemente assassinada pela polícia iraniana após ser abordada por não estar usando o
hijab "de forma adequada". Sua morte gerou diversos protestos no Irã esse ano.
Tal conjectura cria uma imagem errônea por parte dos estrangeiros sobre o povo iraniano.
Acreditar em estereótipos implica, por exemplo, em ver que quem viesse do Irã só poderia ser
muçulmano ou terrorista. Nas palavras da aluna Emily, da turma 111: "Sempre que comento que
meu pai é do Irã, alguém fala 'ah, porque o Irã tem bomba, e o Irã é terrorista'. Isso Incomoda"
Foi a família de Kamran que decidiu que os filhos sairiam de lá, pois perceberam que essa
era a melhor opção. Assim, teriam possibilidade de estudo, trabalho e, acima de tudo, liberdade.
Então, clandestinamente, foram para o Paquistão, pois os Bahá’ís e outras minorias não tinham
direito a ter um passaporte iraniano.
Com a ajuda de atravessadores, eles deixaram o Irã. Foram até um escritório da ONU, onde
se apresentaram e explicaram a sua situação. Depois disso fizeram um documento internacional de
reconhecimento de refugiados da ONU. A princípio iriam para o Canadá, porém durante o
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processo de preparação da documentação surge o Brasil como uma oportunidade. Algumas famílias
e indivíduos foram aceitos para morarem no país e Kami (como é chamado o pai de Emily) aponta
este momento como uma grande virada de página em sua vida e na de seu irmão. Brasileiros, que
trouxeram a notícia, explicaram-lhes tudo que deviam saber e então eles decidiram vir ao Brasil.
A transição de um mundo para outro completamente distinto foi facilitada por um grupo
de Bahá’ís que os ajudaram e aconselharam a vir para o Rio Grande do Sul, mais especificamente
São Leopoldo. Chegando aqui, o irmão de Kami teve de recomeçar seus estudos em Medicina na
UFRGS, o que não foi um grande problema porque, segundo Kami, seu irmão era:”(...) muito
estudioso, brilhante e rapidamente pegou o jeito (...)”.
Eles vieram a São Leopoldo também no intuito de apoiar nas ações comunitárias de uma
nova comunidade da Fé Bahá’í, porém sua vinda não durou muito tempo. Após alguns anos, Kami
se voluntariou para fazer alguns projetos audiovisuais no interior de São Paulo, pelos quais tem
muita paixão e apreço, e dedicou a isso um ano de seu serviço. Fez cartazes, folders, folhetos, cartões,
documentários, programas infantis, entre outros. Nesse meio tempo, Kami conhece a sua esposa,
Adriana, com a qual se casa. Depois, retornou ao Sul para ficar próximo do irmão, e no Sul
permanece até hoje.
Caso a filosofia dos Bahá'í tenha interessado algum dos leitores, é possível descobrir mais
sobre a crença no site bahai.org. Além disso, todos que se sentirem tocados podem participar de
trabalhos voluntários e ações propostas pelas comunidades Bahá’í encontradas em São Leopoldo,
Novo Hamburgo e região.
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Referências:
Gasparetto Junior, Antonio. Revolução Islâmica. Info Escola. Disponível em:
https://www.infoescola.com/historia/revolucao-islamica/. Acesso em: 21 abr. 2023.
Revolução Islâmica. G1, 28 out. 2021. Disponível em:
https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/revolucao-islamica/noticia/revolucao-isla
mica.ghtml. Acesso em: 21 abr. 2023.
Wikipédia, “Mohammad Reza Pahlavi” (verbete), 17 fev. 2023. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mohammad_Reza_Pahlavi. Acesso em: 21 abr. 2023.
BBC News Brasil, “Protestos no Irã: 5 coisas que mudaram no país após 50 dias de manifestações”,
4 nov. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63512438. Acesso
em: 01 mai. 2023.
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Conto
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Aqui Flui Mais Que Sangue
Will B. Queen
O Sacerdote derrama sangue em uma grande taça de prata adornada com rubis em forma de
gotas, de presas e de pequenos morcegos.
“Damos a ti, Primeiro Criador, o nosso próprio sangue, pois foi dele que você usou para
imbuir vossa magia. À tu, Segundo Criador, damos o sangue de bestas, pois usaste dos predadores
da natureza para prover nosso instinto de caça e sobrevivência. E finalmente, à você, Terceiro
Criador, damos sangue humano, pois coletou do egoísmo humano a malícia destinada ao equilíbrio
das forças astrais deste mundo.” O Sacerdote proclamava enquanto terminava de derramar o sangue
misturado para dentro da taça
As portas se abriram, revelando uma figura alta, vestindo uma capa ritualística encapuzada
que encobria a face da figura em sombras. O Rei se encaminhou ao altar que continha a taça,
segurando-a e virando as costas ao público. Bebeu o sangue da taça e virou-se de volta após
terminar.
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- Saibam que os Criadores não nos abandonaram. Até no Grande Descanso, eles continuam
abençoando nosso reino. Eu, como o quinto rei de nosso abençoado reinado de Regnum Sanguinis,
venho anunciar que meu sucessor, a quem nomeei Alkanthar, advindo da língua dos Criadores,
nasceu. Ele, como o sexto rei, guiará nosso reino para a luz dos Criadores ainda mais, e vos prometo
que, em um futuro próximo, nós iremos ouvir Deles novamente!”
Os crentes gritaram em emoção, esperançosos pelo que o futuro aguardava, enquanto o rei
deu uma elegante reverência a todos na catedral, e com isso, saiu.
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Conto
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“FRIO”
B. A. Cricket
“Está frio…”
Aquilo estava ali. Eu conseguia sentir, e meu corpo entendia também. Ele não
estremeceu de frio, mas de medo, gritando para eu fugir, mas não ouvi. Meus instintos
estavam corretos: melhor para a minha sobrevivência seria fugir, mas aquela coisa estava
aterrorizando as florestas por tempo demais.
A primeira ocorrência não foi há meses ou anos, mas décadas. O que era considerado
um assassinato ou um sequestro logo virou um ataque de um animal. Foi o caso de uma
família que estava voltando de um período de descanso em uma cabana na floresta: os pais
junto com seus filhos, uma criança de nove anos de idade e a outra de quatro.
A gasolina acabou na metade do caminho. O casal fez uma ligação pedindo ajuda e
deixou os filhos no carro. Enquanto um dormia, o mais velho olhava para seus pais. Como se
fosse o vento, os dois foram levados aos gritos. A criança de quatro disse que viu um cervo, a
mais velha disse que viu uma pessoa. A polícia local assumiu que foi um sequestro em
conjunto, mas muitos não entendiam o porquê o suposto sequestrador não levou as crianças.
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O que o homem viu era uma mistura do que aquelas crianças disseram anos antes.
Uma criatura alta e esguia com um corpo humanoide, com braços estranhamente longos e um
cabelo longo e liso. Possuía pernas e chifres longos e dobrados de cervos. Os cascos batiam
no chão com prazer enquanto o ser consumia a mulher. Em um momento de medo e pânico, o
caminhoneiro desligou os faróis do caminhão. A criatura olhou diretamente para onde o
pobre homem estava. Seus olhos logo brilharam. O homem pisou fundo no acelerador com a
intenção de fugir ou atropelar a criatura. Ele acabou se chocando com um carro, matando
uma mulher e sua filha. O caminhoneiro foi preso, mas liberto dez anos depois.
O último caso foi há duas semanas. Antes, casos aconteciam pelo menos uma vez ao
ano, mas agora se tornaram tão frequentes quanto ataques de animais, como lobos e coiotes.
A prefeitura está pensando em bloquear o caminho, construir um novo, mas tem medo de
enviar a mão de obra para a floresta.
Agora, por que eu estou aqui? Eu sou um mero caminhoneiro na estrada mais
perigosa do país. Eu não sou um caçador ou um fanático por criaturas desconhecidas, nem
mesmo um louco procurando um dinheirinho extra. Eu vim até aqui para acabar com esse
animal. Não se mandam caçadores mais, e eles nem pensam em vir. Eu sou um voluntário
aqui.
Há uma espingarda ao meu lado, junto com uma caixa de munição. Eu nunca imaginei
ter que fazer algo assim. Eu caçava cervos quando jovem, mas nunca um predador assim.
Com a minha arma e a lanterna, eu saí do meu único abrigo durante a noite. Por anos eu
sentia medo dessa criatura. Não mais.
— Saí daí, sua criatura desgraçada! — Gritei, recarregando minha arma para estar
pronto para qualquer surpresa. Não se podia ouvir nada, nenhuma coruja, nenhum inseto. A
floresta ao meu redor estava quieta demais. Honestamente, isso me deu calafrios. Uma
floresta tão quieta assim só pode significar uma coisa.
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— Essa coisa já caçou tudo — murmurei. “Por isso começou a caçar a gente.” O
pensamento veio como o vento, dando-me um frio na barriga. Olhei à minha volta. A
quietude me causava ansiedade. Sem pensar, dei um tiro para o céu.
— Eu disse para sair daí! — Berrei, tossindo logo em seguida. Não gosto de
demonstrar fraqueza, mas, para um homem velho como eu, não dá. Como se a vida tivesse
retornado à floresta, pude ouvir arbustos se mexendo. “Deve ter sido a minha tosse. Atraiu o
oportunista.” Meus pensamentos vinham e iam. Eu não conseguia focar.
— Tá aí, né? — Mirei a minha arma para os arbustos. — Vem aqui brincar.
Eu baixei a minha guarda por um momento. A voz que usei agora é tão parecida com
a que eu usava com a minha filha. Ela amava esconde-esconde na floresta. Sempre dizia para
ela não ir muito para dentro.
Eles estavam certos. A criatura se arremeteu contra mim. Ela não rugiu, rosnou, gritou
ou riu. Ela era quieta, calculista, pegando-me desprevenido. O que ela não sabia é que eu
estava pronto para essa surpresa.
Eu dei um tiro assim quando ela estava a centímetros do meu rosto. Como folhas, ela
foi jogada para trás ganindo. Contraiu-se, estremecendo por um tempo. Seu corpo logo
relaxou, apenas com alguns espasmos de minuto a minuto. Eu cheguei perto, olhando a
criatura com curiosidade. Era diferente do esperado.
Seu rosto foi desfigurado pela espingarda, mas não se podia ver nada dentro. Era
escuridão plena dentro daquele animal. Possuía cabelos longos, chifres de osso, um corpo
humanoide, mas com pernas de um cervo ou veado. Se fosse uma fantasia, eu teria notado,
mas não era. Os braços alongavam-se, finos e espinhosos. A pele era tão fina que
possibilitava ver cada osso existente em seu corpo. Parecia alimentar-se uma vez por ano.
Mas ele não se alimenta apenas uma vez, lembrei-me antes de sentir pena do
demônio.
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Eu queria ligar para a prefeitura. Sem sinal. Claro que não tinha, eu estava em uma
floresta. Virei-me para o meu caminhão. Eu não tinha mais nada para fazer ali. O trabalho
estava feito. Estava em paz agora.
A luz da lua estava sobre a estrada, guiando o meu caminho de volta. Era hora de
voltar para casa.
Uma sombra me cobriu. Virei-me. Estava de pé? Seu rosto se mantinha escuro. Eu
peguei minha lanterna. Deveria ter pego minha espingarda. Apontei para ela.
Minhas mãos ficaram fracas. Eu soltei a lanterna. Continuava tão claro. Os olhos dela,
brilhando como dois faróis. Mas faróis são um aviso. Aviso que há perigo, que não se deve
chegar perto da luz. Um aviso que eu esqueci.
Ela me agarrou. Manteve o rosto da minha filha. Encarou-me com olhos frios e
brancos. Eu nunca vim aqui me vingar. Eu vim aqui para ser um mártir. Uma outra refeição
que mal satisfará essa criatura do inferno. Com uma de suas garras, arranhou meu rosto.
Estava me provocando. Uma lágrima lenta e dolorosa rolou até meu queixo pela última vez.
Minha voz saiu trêmula.
— Inge–
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Capítulo de livro
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Blight Family
Gowtth
Capítulo 1:
Acordei em um quarto amarelo, estava meio escuro, se não fosse por uma janela que entrava
o sol bem no meu olho. Nas paredes, pôsteres de A Casa Falcão e Nora Universo estavam por toda a
parte. Aqueles eram os meus desenhos favoritos, não que eu tivesse muito a que assistir na sala
branca…
Eu tentei levantar da cama, mas estava com tanto sono! Eu acabei caindo, fazendo um
barulho bem alto. Derrubei um livro, Alquimia voltada para a siconogia. Que nome estranho,
tinha um desenho na capa, um triangulinho com uma bolota dentro. Eu tentei abrir a porta, mas
estava trancada, então tentei ver pela janela, mas tinha umas barras de ferro, não dava pra pular. Eu
ouvi uns passos, então me enrolei no lençol e caí de novo.
***
-AAH! Recém chegamos em casa e não tem nem água? - grita Cole - Só queria tomar um
banho quente, pra variar.
-Calma Cole, deve ser só o registro - diz Hunter. Temos que ver como está a pivete, ela não
saiu de lá desde que chegamos aqui, há umas doze horas. Um barulho de algo caindo tomou o
cômodo. De repente, a água quente deixou de ser a preocupação de Cole.
Eu vou até a porta do quarto, você vai ver as entradas - sussurrou Hunter. Cole assentiu .
As janelas estavam trancadas, não havia motivos para invadirem em plena luz do dia, mas
não poderiam descartar a possibilidade de ser um assaltante ou algum agente de Westown.
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Ao se aproximar da porta, uma placa escrito “Quarto da luz!” tinha o foco de Hunter, sem
saber como lidaria com a criança quando acordasse, torcendo que fosse um ladrão que raptaria a
menina para não precisar encarar o resto da missão. Hunter tinha o hábito de divagar em
pensamento com muita frequência, a ponto de perder o foco do que fazer a seguir. Nem tinha
percebido que colocara sua mão na fechadura quando ouviu um baque. Algo caiu no chão, pensou.
Um frio subiu em sua espinha. Percebeu que uma sombra estava atrás da porta, então se preparou.
Uma faca na mão esquerda e a chave do quarto na direita, ele rodou a chave na fechadura. Com
uma grande angústia, mas preparado para o que poderia vir, Hunter chutou a porta com toda a
força.
- GAAAH! - Gritou Hunter, assustado. Cole ouviu do lado de fora da casa e saiu correndo
para averiguar a situação. Hunter havia chutado a porta com força, mas não sabia que do outro lado
estava Luz enrolada no lençol, que acabou sendo chutada para o outro lado do quarto.
-Aparentemente, Brotos têm uma resistência grande mesmo, né?- Indagou Cole, tentando
não rir da situação, mas falhando logo depois.
-Ei, não foi engraçado! Quero ver você acabar sendo chutado por aí, humph!
-Bom… eu desculpo, mas só depois da boia, tô com muita fome!- Disse Luz
Então, após toda a comoção, lembraram-se de que não havia absolutamente nada para
comer em casa. Iriam às compras - afinal, o que de tão ruim poderia acontecer?
***
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gororoba estranha de algo que parecia ser banana com aveia. Hunter tentou ir até a seção dos
congelados, mas rapidamente para e segue para o lugar onde se encontram as bóias de piscina,
pegando uma em formato de melancia e outra de rosquinha. Enquanto isso, Cole e Luz pegavam as
coisas para o jantar.
-Risoto.
Luz não sabia o que era, nem lhe interessava, qualquer coisa naquele momento era melhor
do que ela comera dentro daquele laboratório. Saindo de fininho, chegou a uma prateleira cheia de
potes de nozes. Quando Cole percebeu que a pirralha sumiu…
-Tem que pagar primeiro! Argh… OK, larga no carrinho e termina de comer quando chegar
em casa. -
-Tá bom!
O jantar seria risoto de carne com nozes, suco de maçã e estrogonofe de nozes para a
sobremesa, todos feitos por Cole, aproveitando a quantidade desnecessária de nozes que haviam
comprado.
- Vi que tem uma escola bem próxima ao bairro, temos que aproveitar que teremos contato
com os pais das crianças para obter informações sobre os arredores.
- É um lugar que você vai para aprender coisas novas e fazer amigos!
(continua)
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Capítulo de livro
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Os Filósofos
A fila da pizzaria anda lentamente. Quando foi que tanta gente decidiu pedir pizza numa
terça-feira à noite? Eu ando um passo pra frente, só mais uns dez e é minha vez. É terrível admitir,
mas o Júlio tava certo, eu podia simplesmente ter pedido online. Como preferi ser petulante, fico
encarando a lâmpada acima de mim falhar por incontáveis vezes. Sério, incontáveis, tipo, perdi a
conta umas cinco falhas atrás. Será que é tão difícil trocar uma lâmpada? Qual o preço de uma
lâmpada nova? Se eu me oferecer pra pagar por uma nova, eles me deixam furar essa fila? Ah, outro
passo, faltam só mais nove. Nesse ritmo, vou me atrasar só uma meia hora, que é a mesma coisa que
chegar cedo pros Filósofos. Filósofos, apesar do tempo que se passou, o nome é a ironia mais genial
que já inventamos. Outro passo.
Como foi que tudo começou mesmo? Foi uma noite bem estranha, e muitos detalhes se
perderam, parte por conta do tempo, parte por conta de toda bebida envolvida. Sei que foi uma
noite quente em pleno janeiro do ano passado, um calor infernal como hoje. O Cristian convidou o
ensino médio inteiro para uma festa na casa dele - e mais algumas meninas do nono ano (nojento).
Ele tem a maior casa da região, e os pais dele viajaram. Absolutamente todo mundo foi, mesmo
quem não era do ensino médio, mesmo quem não era da escola. Eu lembro de chegar, lembro de
procurar pela Astrid, lembro de achá-la com o Dominic, lembro de beber e lembro de muita
fumaça. Não sei bem como, mas acabamos nós três sentados em algum sofá em uma conversa com
o Júlio e o Tristão. Ficamos por horas isolados do resto da festa, só nós cinco, falando sobre tudo. E
pra falar a verdade, a festa estava horrível. Então fomos embora, nós cinco. Lembro de caminhar
muito com fardos de cerveja nas mãos. Lembro de ver o Tristão sorrir pela primeira vez. Lembro da
casa do Júlio e do matagal atrás do quintal dele. E finalmente, lembro da casa na árvore, o lar dos
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Filósofos. Não lembro exatamente como começou, mas sei onde começou. A casa na árvore, nossa
Hélade.
Outro passo. O menino no colo do pai que está na minha frente na fila fica me encarando.
Já ouvi dizer que, quando uma criança te encara por muito tempo, é porque você é bonita. Não sei
se eu acredito, parece mais que ele consegue ler minha alma. Eu mostro a língua pra ele. Ele sorri. É,
talvez ele me ache bonita.
Outro passo. Eu sou a segunda da fila. A lâmpada falha. A casa na árvore tem uma lâmpada,
nem ela falha tanto assim. Tudo bem, trocamos a lâmpada original, aquela lá falhava mais que meu
cérebro em prova de matemática. Mas, nossa, a Hélade já sofreu tantas reformas. Júlio a encontrou
em um estado deplorável, as tábuas de madeira corroídas pelo tempo, os galhos da árvore crescendo
pra dentro da casa. É incrível pensar que ela sobreviveu tanto tempo sem que ninguém a
descobrisse. Vivemos teorizando sobre quem construiu ou quando construiu, Dominic sempre
inventa as melhores hipóteses. Gosto de pensar que foi um ato de amor, seja de um pai para com as
filhas, ou de amantes secretos, ou um presente de casamento. Casas na árvore me trazem um ar tão
romântico. E pode até parecer que cinco adolescentes idiotas profanaram toda essa atmosfera
quando naquela noite de janeiro reabitaram a casa abandonada, mas eu enxergo como um
renascimento. A casa na árvore ressurge em romance, não romântico, mas sim na perspectiva de
uma narrativa à parte, na qual tudo é possível. Liberdade. Por isso, ela é nossa Hélade. Por isso,
somos Os Filósofos. Eu falei que era puro romance.
Eu finalmente dou o último passo. Peço seis pizzas grandes, cinco salgadas e uma doce. Leio
os sabores que anotei na minha mão. Calabresa, quatro queijos, lombo canadense, coração, bacon e
milho, brócolis, chocolate preto e choc... não sei, a tinta da caneta apagou. Olho o relógio da
parede. Demoro pra ler os ponteiros, mas são sete e vinte e oito. Vou ter que esperar mais meia hora
pra todas as pizzas ficarem prontas. Ótimo, o menino no colo do pai vai ter mais tempo pra ficar me
encarando.
Minha mãe me liga. Ela me pergunta quanto tempo vou ficar fora. Não é como se ela não
soubesse dos filósofos e que eu sempre passo a madrugada inteira com eles, mas ela gosta de ter tudo
avisado. Eu explico usando o texto que ensaiei mentalmente para todas as vezes que ela me pergunta
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quanto tempo vou passar com meus amigos. Ela me deseja uma noite muito boa e juízo. Minha
mãe é muito tranquila e entende que é normal um jovem ter suas aventuras, mas quando ela me
manda ter juízo, quer dizer que se eu fizer uma merda muito grande, e ela descobrir, ela me mata.
Vamos torcer pra que ela nunca descubra.
Faltando dez minutos pra pegar meu pedido, recebo uma mensagem do Júlio:
“só tá eu e a astrid”
“tá, em 20 eu chego”
“ata, e eu voukkkk”
Quando a moça empilha seis caixas de pizza, ela não precisa gritar meu nome pra que eu
saiba que o pedido é o meu. Cara, foram quase trezentos pilas nessas pizzas, se não me fizerem um
pix hoje mesmo, eu corto um pedaço do nariz daqueles indigentes. E tem o uber, porque eu me
recuso a carregar todas essas pizzas a pé por dois quilômetros. Um tal de Valdomar aceita minha
corrida. Ele tem uma foto de perfil engraçada, parecida com as que meu tio avô Osvaldo tira dele
mesmo. Acho que fico rindo da foto do Valdomar durante os três minutos que espero ele chegar.
Mandei um print pro Dominic, ele me respondeu na hora com “JAJAJAJAJAJAJAJA”.
Sentada no carro do uber, eu mando mensagem pro Júlio. Ele comenta que Tristão
apareceu, por incrível que pareça. As vezes o Tris some, é um cara peculiar, e que não é muito
estável, diga-se de passagem. Ele tem sua cota de traumas pela vida.
Mensagem do Júlio:
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“cara, o tris me salvou na real, tava bem esquisito eu e a astrid”
“eu juro”
“e o domi?”
Astrid e Júlio. Eles têm seus desentendimentos de longo prazo. Acontece que Os Filósofos
estabeleceram apenas duas regras para a Hélade.
Número 1: aqui é permitido falar sobre qualquer coisa, é um espaço livre de pensamentos e
expressão.
Na metade do ano passado, a Giovana, a namorada do Júlio, terminou com ele. Mais pro
fim do ano, ele descobriu o motivo: Astrid. Aquilo virou uma guerra civil dentro dos Filósofos.
Durante uns dois meses, a Hélade virou o verdadeiro campo da guerra. Domi apoiou Astrid,
Tristão tava com o Júlio, e eu era imparcial. A coisa toda só acabou quando Astrid descobriu que
levou galha também, mas o clima entre os dois ainda é estranho. Acho que Astrid nem liga mais
para a briga deles, o Júlio que é todo sentido com ela, especialmente porque o chamaram de cura
hétero uma vez na escola. Mas ao menos ele não sofre pela Giovana em si, diferente da Astrid. Ela
não fala sobre isso, mas é visível que ela ainda não virou essa página.
O carro para na frente da casa do Júlio. Como o Valdomar foi um ótimo motorista, eu dou
uma fatia de pizza pra ele. Certeza que dessa vez eu ganho cinco estrelas na avaliação do Uber. Por
fim, eu pago a corrida, dou boa noite e carrego as seis caixas de pizza até o matagal do lado da casa da
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família Becker. Sigo a trilha, um pouco embarrada pela chuva de ontem, até avistar a imagem quase
que paradisíaca: a Hélade em seu maior esplendor. A pintura parece retocada, e o balanço de pneu
voltou a ficar pendurado no galho perto da janela da casa. Acredito que Júlio fez umas reformas
outra vez.
Qual seria a melhor coisa pra se gritar agora? Queria dizer algo tipo “entrega no nome de
‘retardados idiotas’”, mas para que ser tão agressiva, né? Fico no básico:
Duas cabeças surgem na janela, dois sorrisos que conheço bem. Tristão e Astrid gritam
algumas coisas, uma espécie de agradecimento com lição de moral sobre como eu me atrasei. Júlio
desce as escadas correndo; ele parece realmente feliz em me ver.
Ele pega as três caixas do topo com os dois braços, depois me olha enquanto caminhamos
em direção às escadas. Ele parece tão estranho hoje, tipo... feliz? Júlio é um cara complicado quando
quer, osso duro de roer.
- Tá, esse seu sorriso é por causa da minha presença ilustre, que vai salvar sua pele de um
clima péssimo lá em cima, ou por causa das pizzas?
Subimos as escadas, Júlio atrás de mim, comentando sobre ter reformado o corrimão e que
agora eu não preciso ter mais medo de farpas. Logo na porta, Astrid já me espera com um sorriso
gigantesco. Eu largo as pizzas na mesinha de centro e recebo o abraço mais apertado do mundo.
Astrid passou um mês inteiro no Maranhão, visitando o pai dela. Ele se mudou pra lá faz
um tempo, depois do divórcio com a Monique, a mãe dela. Pessoalmente, essas viagens são as
melhores coisas que acontecem na vida da Astrid. Ela vai pra outro ambiente mais saudável, longe
da mãe tóxica e surtada, e volta sorrindo, contando sobre o pai e todos os passeios que eles fizeram
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juntos. Claro, eu sinto saudades dela, mas vale a espera se é pra receber uma versão menos rabugenta
da Astrid. E tem outra, acredito que ela precisava ficar longe daqui por um tempo, esquecer os
problemas com a Giovana. Desde toda a confusão entre a Astrid e o Júlio, e depois, a traição que ela
também sofreu, Astrid preferiu nunca mais tocar no assunto “Giovana”. Nunca mais mesmo. Mas,
como já mencionei, eu a conheço o suficiente para saber que ela ainda sofre por isso. Aquela
história de página não virada e afins.
Tristão abre uma das caixas de pizza, justamente a que tinha a metade de brócolis. Ele não
gosta nem um pouco de brócolis:
Ele dá três tapinhas nas minhas costas, o que quer dizer que ele está borbulhando de
felicidade.
Nos sentamos no chão, ao redor das pizzas. Júlio menciona a reforma que fez pelo menos
umas oito vezes e percebo os desenhos novos nas paredes, alguns meus, alguns do Tris. A umas duas
semanas atrás, Júlio chamou nós dois para que pintássemos as paredes de madeira e fizéssemos a
Hélade ficar mais “nossa cara”. Lembro de como o Tris sorriu quando eu pintei a bochecha dele. Eu
realmente não sabia que ele podia pintar tão bem.
Observando os detalhes feitos por mim nas tábuas do ambiente, Astrid conta alguns detalhes da
viagem para o Nordeste, a maioria deles, eu já ouvi em áudios extensos no whatsapp. Apenas uma
informação é nova:
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Eu paro de comer na hora. Tio Dudi vai casar, dessa vez espero que com alguém que preste.
Não que a mãe da Astrid não preste... mas a Monique é um saco de pessoa. De todas as mães dos
meus amigos, ela é a única que eu chamo pelo nome. Não consigo apelidar, é repulsivo.
- Muito bem, incrivelmente. Roberta é ótima pro pai, e ela tem um filho incrível. Eu sempre
quis um irmão. Acho que, na verdade, eu sempre quis uma família tipo eles. – Astrid responde, e eu
noto um sorriso tímido, escondido nas linhas dos lábios dela.
- Só não pensa em se mudar, maluca. – Eu digo brincando, mas com uma parte de mim
sentido um medo real dessa possibilidade.
Duas caixas de pizza depois, Dominic chega. Ele larga quatro sacolas de plástico no
sofazinho, que emitem o som de garrafas de vidro em contato. Obviamente, a primeira pessoa que
ele cumprimenta é Astrid, os dois são quase irmãos. Depois, ele me dá um beijo de bochecha,
seguido de um aperto de mão que ele repete com Júlio e Tris.
Eu pego uma garrafa da sacola. Ice gelada. Acho que perdoei todos os atrasos do Domi pelo
período de uma vida inteira.
Comemos e bebemos como amigos de longa data. Falamos sobre nossas férias e coisas
banais, como resultados de partidas e marcas de sapato. Hoje o clima é mais de reencontro, não tem
nada para ser discutido, não tem nada para ser refletido. Algum tópico acaba surgindo sempre, mas
não é específico. Somos fruto da pequena filosofia adolescente moderna, cinco idiotas bebendo e
opinando sobre a vida.
- Eu anotei todos os sabores na mão, - eu mostro a palma esquerda para ele - mas o último
tinha apagado. Como eu ia lembrar?
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Júlio parece meio puto, acho que é o efeito da bebida. Ele sabe que eu vivo me esquecendo
de tudo, e mesmo que irrite, ele nunca fica realmente puto. Agora ele parece meio realmente puto.
- Tá reclamando por quê? Não come chocolate preto, racistinha? - Domi fala ao puxar a
caixa de pizza e pegar uma fatia.
- Se eu fosse “racistinha”, - Júlio gesticula aspas com as mãos – eu nem te olharia na cara,
Dominic.
As palavras dele saem atropeladas. Se Tristão não bebeu tanto, Júlio bebeu pelos dois.
Júlio fica alguns segundos em silêncio, analisando o rosto do Domi, tentando lembrar de
algo que se perdeu na mente dele. Ele contrai o rosto todo, se esforçando para dar a resposta certa.
Júlio volta a se sentar com uma expressão de derrota. Ele passa tempo demais em silêncio.
Ninguém faz ideia do que se passa na mente dele. Quem sabe ele esteja pensando que realmente
tenha sido racista por querer chocolate branco. Ou por supostamente afirmar que todos os países
da América Central são a mesma coisa. Bem feito, que nunca mais reclame de mim pra começo de
conversa.
Depois que toda pizza acaba e só algumas garrafas ainda permanecem intocadas, Tristão
começa a desenhar nas paredes. Domi e Astrid se deitaram no chão, abraçados. Júlio desceu as
escadas a uns minutos, disse que queria ir no balanço. Eu observo o ambiente, faço isso com muita
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frequência. Às vezes me perco nos meus próprios pensamentos, o que é uma droga na escola, mas
aqui é ótimo. Aqui eu posso me perder e me achar várias vezes, sem a porra da professora Carol
chamar a minha atenção. A culpa não é minha se até a rachadura do teto é mais interessante que a
aula dela. Mulher insuportável, deve me odiar por motivo nenhum, o que é ótimo porque eu
também posso odiá-la sem peso na consciência. Odeio ela, odeio seno, cosseno e tangente, odeio
números, odeio a escola.
Tristão desenha a cauda de algum animal, e eu lembro que esqueci de dar comida para Lira.
Eu amo a Lira. Ela já tem uma idade tão avançada, não sei como essa gata vive tanto. Nem lembro
do dia em que achamos ela na rua, pois eu era muito pequena, mas meu pai adora contar essa
história, então eu sei bem que estávamos voltando da escola a pé quando ele ouviu uma gatinha
chorando nos arbustos. Ela cabia na palma da minha mão, como uma florzinha, então eu queria
chamar ela de Lírio (que era a única flor que eu lembrava na época), mas sem querer eu disse Lira.
Ficou mil vezes melhor, e agora eu sinto que poderia ser uma homenagem à poesia também, como
as liras de Gonzaga. Minha gata consegue ser mais linda que qualquer Marília de Dirceu por aí.
A Lira, na verdade, não parece nada com um lírio. Ela tem o pelo bem escuro e os olhos
bem pretos, quase como o universo, mas sem as estrelas. O universo...
Dominic é um esperto dos mais espertos. Quase um gênio. Mesmo entupido de qualquer
merda, ele consegue falar coisas inteligentes. Me irrita ter que pedir tradução de tudo que ele diz.
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- Como assim? – Pergunta Astrid.
- Imagina que, no universo, existe tudo que a gente é capaz de conhecer, certo? Tipo o
sistema solar, as galáxias e otras cosas. Então, em teoria, é tudo, porque não tem fim. Mas como
nunca acaba, é como se nunca fosse ficar completo, e aí perde o sentido, porque tem muito mais
espaço que não tem nada do que os espaços que tem alguma coisa. É igual nunca morrer, quem
quer isso?
- Dominic, você que não faz sentido. – Astrid se levanta e pega outra garrafa. – O universo é
possibilidade. Imagina, mesmo onde você alega que não existe nada, pode surgir um micro astro,
uma nova estrela. E se, agora mesmo, milhares de estrelas estiverem se formando?
- O universo dá medo. – Tris para de desenhar e se senta numa cadeira perto da janela. Ele
continua falando quando percebe que estamos esperando o desenvolvimento da ideia dele. – É
muita coisa e muito nada, muita possibilidade e muita falha. Eu gosto de pequenas proporções.
- Por isso você sempre pede uma porção de batata frita pequena.
Eu solto uma risadinha e corro até a janela. No balanço, Júlio parece completamente
maluco. Perdi as contas de quantas garrafas vazias foram para conta dele.
- Júlio, – eu grito para que ele escute – o que tu acha que é o universo?!
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Nós quatro quase rolamos de tanto rir, e quando o ataque de riso passou, descemos as
escadas para tentar tirar Júlio do balanço de pneu. Ele não queria sair de jeito nenhum, mas parou
de girar. Então ele vomitou e alguns pingos voaram no meu tênis.
(continua)
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Capítulo de livro
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Happiest Year
Azul Cavill
Prólogo
Você disse que, quando chegasse este dia, estaríamos prontos. Agora, olho para trás e não
posso deixar de pensar no quão errados estávamos.
Como tudo pode ter dado tão errado? Simples, eu me apaixonei por você.
1 Pandora
22 de setembro de 2021
Faltam apenas dez minutos para o fim do meu turno, para que eu possa fechar a livraria e
finalmente ir para casa. Não que eu não goste do meu trabalho, eu amo, mas estou pegando todos
os turnos que posso para pagar a universidade de Administração. Quero ter a minha própria livraria
um dia, mas como as coisas andam.... Isso vai demorar.
Quando estou prestes a começar a arrumar as coisas, alguém entra. Só o que me faltava,
além de dormir apenas três horas noite passada, ainda tenho que aguentar alguém que não entende
que, quando faltam apenas dois minutos para a loja fechar, VOCÊ NÃO ENTRA!
Eu estava tão perto de ter um belo encontro com a minha cama e o meu travesseiro... É
bom que seja alguém que tenha levado um tiro e entrou no primeiro lugar que viu para poder pedir
ajuda, ou o Harry Styles.
Não, não é o Harry Styles ou alguém baleado. É um cara alto e de cabelo ruivo em plena
saúde. Bom, sonhar não custa nada, não é mesmo? Ele está com os cabelos bagunçados e com uma
expressão um pouco cansada. Parece que acabou de acordar mas ainda está com sono.
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- Boa noite, como eu poderia ajudar o senhor? – pergunto quando ele se aproxima da
bancada do caixa.
- Primeiramente, não me chamando de senhor. Isso faz me sentir como se eu estivesse com
um pé na cova. Além do mais, eu devo ter a sua idade.
- Pandora.
Ele parece um pouco envergonhado, começa a coçar a nuca e olhar para baixo com um
sorriso. Quando ele levanta a cabeça ainda dá tempo para ver o sorriso, que tem uma covinha do
lado direito.
- Eu confio em você – diz de uma forma encorajadora. – Além disso, surpresas são boas na
vida, mesmo que seja sobre o que se trata um livro.
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2 Lohan
Ela é linda, a menina mais bonita que já vi. Poderia até dizer que vi um anjo.
Enquanto ela conta o dinheiro, os vários cachos de seu cabelo caem sobre seu rosto, eles
são de um tom claro de loiro, que fica lindo em contraste com a sua pele parda. Seus olhos são do
mais lindo tom de castanho e muito claros.
- Não sei, são muitos – disse ela, sem tirar os olhos do dinheiro.
- Mas se você tivesse que escolher um, nesse momento, qual seria?
- Sério? É bom?
Ela começa a olhar para o dinheiro novamente, contando o que falta. Fico preocupado que
tenha parecido que eu estava sendo rude, porque essa realmente não era a minha intenção.Então,
ela começa a rir e até faz um barulho estranho que lembra muito um porquinho.
- Aqui está o seu livro, Lohan – ela diz, me entregando uma sacola.
- Obrigado.
Nós dois ficamos parados por um tempo, encarando um ao outro, até começarmos ambos
a rir. Ela é legal, posso até dizer que esse foi o ponto alto do meu dia. E foi mesmo, depois do dia de
merda que eu tive hoje. Até dói um pouco ter que me despedir da única pessoa que me fez sentir
minimamente bem nesta semana. Mesmo assim, eu dou tchau e vou embora.
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3 Pandora
15 de fevereiro de 2022
Depois de deixar minhas irmãs em casa, vou até o trabalho. É assim todos os dias: aula na
faculdade, buscar as irmãs na escola, correr para o trabalho: tudo muito corrido.
Meu pai morreu há sete anos, quando as gêmeas tinham quatro anos e eu quatorze.
Desde então, minha mãe começou a pegar mais turnos no hospital onde ela trabalha como
enfermeira, assim eu fico encarregada de buscar as meninas e preparar o jantar. Tive sorte que
consegui uma bolsa de cinquenta por cento na faculdade, mas com a escola das gêmeas fica difícil
para minha mãe pagar. Por conta disso, logo que fui aceita, comecei a trabalhar para pagar a outra
parte da mensalidade.
Ao chegar à livraria, já vou direto para o balcão, vejo Sam se aproximar com uma caixa de
presente na mão, que logo deixa no balcão a minha frente.
- É para você.
Pego a caixa turquesa que aparenta ser para mim, mas não faço a mínima ideia do que
pode ser. Ao abrir a caixa, vejo um cartão, mas deixo de lado para ver primeiro o conteúdo da caixa.
Quase caio no chão quando vejo o que há dentro, é um livro. O Labirinto do Fauno. Quero ler esse
livro há cinco meses, mas estava sem dinheiro suficiente para me dar o luxo de comprar um livro.
Mas não faço a mínima ideia de quem pode ter mandado isso, nem é meu aniversário . Então decido
ler o cartão.
Não sei se você se lembra de mim, sou aquele cara que foi tarde da noite na livraria há alguns
meses. Lohan.
Estava fazendo uma limpa na minha estante e achei este livro, me lembrei de que você tinha falado que
queria ler ele, então pensei: por que não mandar para alguém que iria cuidar bem dele? Como não sabia o seu
endereço, decidi mandar para a livraria onde você trabalha.
De Lohan,
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A pessoa sem um pé na cova.
Não acredito que ele lembrou, nem eu lembraria. Queria poder agradecer a ele, mas não
sei onde ele mora e nem o seu número, sei apenas o nome dele. E isso não vai ajudar muito agora.
Ao menos se eu soubesse o sobrenome dele, eu poderia achá-lo em alguma rede social, mas nem isso
eu sei. Acredito que ele terá que se contentar apenas com o meu agradecimento mental.
Meu turno acaba. Morrendo de fome, decido ir ao McDonald's, já que ele fica do lado da
livraria. Vou levar alguma coisa para as gêmeas jantarem também, hambúrguer de jantar uma vez na
vida não mata ninguém.
Ao chegar à lanchonete, vou até uma mesa no canto, ao lado de um “M” enorme. Não
percebi o quanto estava com fome até que vejo uma criancinha comendo e me deu vontade de
arrancar da mão dela e comer primeiro. Sim, eu sei, pareço um monstro, mas a fome faz isso com as
pessoas. Não posso evitar.
Quando meu pedido fica pronto, vou até o balcão para poder retirar. Quando me viro,
quase derrubo minha comida no chão ao ver um rapaz de cabelos ruivos me encarando, com um
sorriso e uma covinha. Lohan.
Chamo Lohan para se sentar comigo. Pelo visto, ele não está me perseguindo, apenas está
com vontade de comer uma porção de batatas fritas. De acordo com ele, ele está tendo que comer
muita comida ruim e saudável ultimamente.
- Mas, e aí? Gostou? – disse ele sorrindo, o que aparentemente é uma coisa que ele faz
muito.
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- Claro, muito, muito obrigada.
- É muito bom, mas como você consegue ler isso? É tão triste! Eu até chorei, e olha que eu
não choro com livros.
- Porque são ótimos – digo, dando um meio sorriso que logo desaparece – Eu tenho que ir.
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4 Lohan
Fevereiro
Ainda não acredito que meus pais me deram essa cobertura de presente de aniversário , eu
disse que não precisava. Mas eles não me escutam mais. Mesmo que eu já tenha vinte e um anos,
eles preferem fazer o que acham melhor para mim e não o que eu sei que é melhor para mim. Eu
aprecio o fato de eles se preocuparem, mas já está demais. Eles estão controlando toda a minha vida,
praticamente não me deixam tomar as minhas próprias decisões.
Ouço o telefone tocar, mas já sei quem é mesmo sem ver o nome do chamador. Minha
mãe.
- Alô, querido?
- Oi, mãe.
- Mãe, eu estou bem. Não estou cansado – digo, mesmo que eu esteja, mas não quero que
ela se preocupe.
Ouço um suspiro do outro lado da linha, e logo depois alguns sons de papéis.
Um momento de silêncio. Nunca sei o que falar nesses momentos, queria poder
confortá-la de alguma forma, mas não há muito o que dizer.
- Está tarde, mãe, e estou começando a ficar cansado, acho melhor eu tomar um banho e ir
me deitar.
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Há coisa melhor do que se deitar na sua cama depois de um banho? Acho que não.
Depois de uma tarde inteira tirando fotos de um lugar para o outro, você acaba se cansando e
ficando necessitado de um banho.
Eu trabalho na revista do meu pai desde o início da faculdade de fotografia, tirando fotos
de modelos, paisagens e mais algumas coisas. Quando eu estou fotografando, eu me sinto bem,
como se tudo de errado que está acontecendo na minha vida não estivesse realmente acontecendo. É
o meu jeito de escapar da realidade triste e cruel a que estamos acostumados.
Estou quase pegando no sono quando meu celular vibra. É uma mensagem de um
número desconhecido. Meu primeiro impulso é ignorar, mas a pessoa manda mais uma mensagem.
“É a Pandora.”
“Oi.”
“Claro. Como é?
“Conte duas coisas sobre você que ninguém saiba, eu não vou julgar. Depois, vice-versa.”
“OK.”
“Eu começo. Às vezes fico com medo de não conseguir realizar nenhum dos meus sonhos.
E viver uma vida sem sentido, ou sem nenhum objetivo.” - confessa ela.
“Tenho medo de não viver minha vida ao máximo, enquanto eu puder. E não aproveitar
tudo que ela tem a oferecer por medo.” – digito.
“Eu tenho medo de coelhos. Tipo, pavor. - Ela digita, mudando repentinamente toda a
atmosfera profunda das confissões.
“Coelhos? Sério?”
✾ 57 ✾
“Ei! Sem julgar.”
“OK, desculpe”
“Como assim??? E depois eu que sou a estranha por ter medo de coelhos.”
“Eles são tão vermelhos, isso não pode ser normal. Também tem aqueles morangos
albinos, aquilo é medonho.”
E assim se seguiram mais dez minutos de conversa. Comecei a ficar mais cansado ainda e
disse que precisava dormir.
Acabo dando um bolo na minha mãe e não vou ao nosso compromisso. Eu deveria estar
dando apoio a ela nesse momento, porém eu não consigo. Eu sou fraco. Odeio falar sobre esse
assunto e odeio ainda mais a ideia de dizer isso a ela e acabar a magoando. Eu sei, isso mostra um
pouco de uma total falta de maturidade da minha parte. Sendo sincero, essa data acabou comigo.
Angústia toma conta do meu peito só de pensar sobre isso. Por esse motivo decidi pegar as chaves
do meu carro e sair.
Sento-me no banco de couro do meu carro, pego meu celular e ligo para Klaus, meu
melhor amigo e única pessoa para quem eu conto tudo. Ele atende no segundo toque.
- Como você tá, cara? – É a primeira coisa que K diz. Sei que ele estava preocupado, mas ele
me conhece bem o suficiente para saber que nesse dia eu só preciso de espaço, e se eu quisesse eu o
procuraria.
✾ 58 ✾
- Pensando em fazer algo? Soube que sua família está toda na casa dos seus pais, sua mãe até
me mandou mensagem perguntando de você. Ela está preocupada.
Eu não respondo. Klaus espera mais um pouco na esperança de eu falar algo. Isso não
acontece.
- Eu estava indo para – ele faz uma pausa – você sabe. Mas, claro. Vamos encher a cara.
Nos encontramos no Lionel Bar. Eu vou no meu carro; meu amigo chega de Uber.
Esse bar fica do outro lado da cidade. É conhecido por não ser apenas um bar. Lutas
ilegais e drogas podem ser encontradas aqui também. Costumava vir muito aqui quando... quando
meu irmão estava internado. Entretanto, meu único foco era a luta, eu aparecia uma vez ou outra
para participar aqui.Não pelo dinheiro, óbvio, mas sim pela adrenalina, aquele escape momentâneo
que me salvava nas vezes em que nem a fotografia podia me ajudar. Um hobby, talvez. Meus pais
nem sonham que eu frequento um lugar desses. Um dos benefícios de ser um adulto é não dever
explicações de onde vou ou quando. Eu não vinha para cá há uns 6 meses. Vamos em direção às
portas do estabelecimento.
Klaus segue ao meu lado sem dizer nada. Nunca o trouxe aqui antes, ele conhece apenas o
que eu falei para ele, nada mais.
- Santorini - digo a senha para a bartender que nos leva até a cortina azul que tem atrás do
balcão. Ao passar por ela, vamos em direção ao corredor pouco iluminado, seguindo para as escadas
✾ 59 ✾
que levam a uma porta de ferro. Uma batida. Pausa. Mais uma. Pausa. Três seguidas. A porta se abre
e somos recebidos por uma música alta e gritos, muitos deles são apenas palavrões soltos por pessoas
que perderam dinheiro por terem apostado na pessoa errada.
- Mais alguém que queira tentar a sorte hoje? Última chance antes do show da 00:00! – grita
um homem baixinho, todo tatuado e musculoso que está em cima de uma plataforma com um
microfone na mão. Parece uma versão de 1, 56 do The Rock.
Levanto a mão e começo a me aproximar. Quando eu estou chegando perto, sinto alguém
me segurar pelo pulso. Me viro e vejo Klaus me encarando com olhos preocupados.
- Você tem certeza? – Seu rosto transparece como ele está apreensivo.
- Tenho, eu já fiz isso antes, lembra? – Tento tranquilizar, não que eu ache que tenha
surtido algum efeito real.
As lutas clandestinas aqui funcionam assim: vale tudo, menos armas e facas, de resto é
tudo liberado. Gosto daqui pois é um dos poucos lugares de luta ilegal que não envolve jogo sujo.
Todos que lutam estão lá sabendo como funciona e não tentam burlar as únicas duas regras
existentes. Qualquer um pode apostar nos competidores. Nas sextas à noite, são lutadores
profissionais que competem, , muitas vezes afastados dos ringues por má conduta. Eles são
patrocinados, e é quando realmente muito dinheiro é apostado.
Entro no ringue. Já vou vestido com minha bermuda de moletom preta da Nike, então
não preciso trocar de roupa no vestiário que disponibilizam. Meu adversário é um homem barbudo
e de estatura média, sou uns bons 10 centímetros mais alto que ele. Vejo uma tatuagem de um lobo
em seu peito e uma expressão de raiva nos olhos. Dia difícil, amigo? É, eu te entendo. O Mini The
Rock conta até três e a luta se inicia.
Ele é quem ataca primeiro. Um soco de esquerda. Ele é canhoto. Desvio com facilidade,
ainda sem atacar, apenas estudo seus movimentos, tentando entender um pouco sobre seu modo de
luta. Ele tenta uma rasteira, mas eu dou um salto antes de que ele consiga me derrubar, logo
quando volto ao chão dou um chute em seu estômago e um no seu nariz assim que ele levanta um
pouco a cabeça, Vejo um filete de sangue escorrendo por seu nariz. Em algum momento ,ele me dá
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um soco que atinge em cheio minha mandíbula, com tanta força que tenho medo de ter quebrado,
mas acredito que não, já levei socos piores e nunca chegou a esse ponto. Mais alguns golpes são
trocados, quando percebo que sua defesa é ruim do lado direito, tento atacar por lá, com isso
consigo dar um soco na lateral de seu rosto, assim o fazendo se desequilibrar e cair no chão. Subo
nele e dou um único soco que atinge seu olho esquerdo. Me declaram vencedor.
Minhas costas estão suando e meu maxilar doendo. Não usamos luvas aqui, claro, e por
isso os nós dos meus dedos pingam sangue no chão pelo caminho inteiro até o vestiário. Apenas
lavo minhas mãos e seco as costas com papel toalha para poder colocar minha camisa de volta. Vou
deixar para tomar banho em casa e aproveitar para dar um jeito nos hematomas e cortes.
Saio do banheiro e dou de cara com o Klaus bêbado e muito falante. Parece que ele
cumpriu sua tarefa de encher a cara. Será uma longa viagem daqui até minha casa, principalmente
porque, quando K bebe, ele não fica só adepto a muita conversa, também fica sensível e
sentimental.
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5 Pandora
Fevereiro
Hoje, com toda a certeza, é o dia mais quente do ano. Tive que vestir uma regata e um
short de tão quente.Prefiro usar calças mom jeans, ou vestidos midi com tênis.
Eu não aguento esse calor, parece que estou derretendo. Para piorar, meu carro – que já é
bem velho – estragou, agora tenho que ir para os lugares de bicicleta. Felizmente hoje é sábado, pelo
menos algo de bom. Sem trabalho, sem levar as meninas para a escola e sem universidade. Perfeito.
Vou encontrar meu grupo de amigos do ensino médio, o que é um milagre, já que é
muito difícil de conseguirmos reunir todos.
- Pam! – Ouço enquanto estou encostando minha bicicleta em uma árvore. Sara corre em
minha direção e me abraça apertado. A única coisa que consigo ver antes disso acontecer é um
borrão de cabelo cacheado e ruivo.
- Solta ela. Parece que quer quebrar todos os ossos da coitada – Um homem negro e alto se
aproxima de nós com umsorriso gigantesco no rosto. Sam.
- Venham para cá! – grita Adeline sentada em um dos cobertores que estão sobre a grama,
perto do lago. – Eu e Matt também queremos participar – ela faz um biquinho.
Me sento em um cobertor azul com a estampa xadrez e já pego um dos cookies que estão
em um prato rosa. Senti tanta falta desses cookies, poderia até se dizer que estava com mais saudade
deles do que de meus amigos.
- Oi para você também, Pandora – diz um Matthew com bigode de suco de uva.
- Realmente. Só assim para ele ter um bigode decente, e não aqueles fiapos que ele chamava
de bigode no primeiro ano – complementa Sam, caçoando do melhor amigo.
Addie vasculha sua bolsa, então tira seu celular de dentro dela e entrega para o irmão.
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- Mas que merda! Por que nenhum de vocês me avisou que eu estava assim? – indaga ele,
limpando a pele clara que está manchada de roxo, sem tirar os olhos da tela do celular.
- E você ainda pergunta? Às vezes me surpreendo com a sua burrice. – Matt dá um soco no
ombro de Sam, e este começa a resmungar alguns palavrões em resposta.
- Coitado do meu ursinho – diz Sara, massageando a área do ombro do namorado onde
Matthew socou.
- Relaxa, não é como se já não tivéssemos ouvido ela te chamando assim – Addie morde um
pedaço de seu brownie. Isso sempre acontece. Sara chama o namorado de um apelido, ele reclama e
fala para não o chamar assim na nossa frente, mas sempre se repete.
- Que bom que você está gostando do curso de gastronomia, Addie – digo. Fico tão feliz de
vê-la falar sorrindo sobre como tem sido ótimo para ela, em como ela tem certeza de que é isso que
ela quer. Seus olhos brilham só de falar que um dia vai ter seu próprio restaurante cinco estrelas.
- Seremos os primeiros a comer no seu restaurante – diz Matthew, com orgulho da irmã.
Amo tanto os meus amigos, eles são um dos meus maiores tesouros. Passamos por tantas
coisas juntos, por todos os momentos bons e ruins da vida de cada um. Estamos juntos a tanto
tempo, sabemos praticamente tudo da vida uns dos outros. Ter um grupo de pessoas em quem você
pode confiar e se abrir, um grupo de pessoas que vão sempre desejar o melhor para você, ao invés de
invejar é muito bom. Eles são meu porto seguro.
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6 Lohan
Fevereiro
- Não, obrigado.
- E a senhora?
Minha mãe fica com os olhos fixos nos meus. Me analisando. Eu já sei o que Dona Elizabeth
Scotther vai dizer mesmo antes dela abrir a boca.
-Você não foi semana passada. Você prometeu que iria – ela diz, com sua calma habitual.
Não se engane, isso quer dizer que ela está brava, chateada, magoada. O que você preferir.
- Eu não sei de que a senhora está falando, mãe – minto na maior cara de pau.
- Você sabe muito bem. – A expressão severa em seu rosto começa criar leves rugas em sua
testa.
- Você anda muito cansado ultimamente, tem se alimentado bem? Mal tocou na sua torta –
minha mãe me lançou um olhar acusatório. – Ou você está mentindo para a sua mãe?
- Eu estou bem, ok? Pare de se preocupar tanto, isso vai acabar te desgastando
completamente.
Minha mãe suspira de um jeito que é possível ver todo o seu cansaço.
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- Eu não sou o Eric – respondo de forma seca ao desviar meu olhar para minha torta
novamente.
O garçom chega com o cappuccino de minha mãe. O clima tenso no ar é palpável. Eu odeio
falar sobre o Eric e toda a dor que vem com esse assunto.
Meu celular vibra em cima da mesa três vezes seguidas. Vejo duas mensagens de Klaus,
que vou responder depois. Estou preparado para colocar o aparelho sobre a mesa novamente,
quando vejo a última mensagem que está na tela de bloqueio do meu celular. Pandora.
- Não é nada. – Minha mão coça pela vontade de responder imediatamente a mensagem,
mas minha mãe perceberia, assim questionando o motivo de tamanha pressa, gerando perguntas
que não estou a fim de responder agora.
- Já falei com ele. O coitadinho está preso no trânsito, mas logo estará aqui.
- Aonde você vai? – minha mãe pergunta após beber um gole de sua bebida.
- Banheiro.
Pego meu celular do bolso e me deparo com meu papel de parede. Eu, Klaus e Eric. Digito
minha senha e desbloqueio a tela.
“Oi” – digito.
“Oiee”
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“Como assim?”
“Quem ri assim?”
Acabo ficando com vontade de ir ao banheiro de verdade, então entro em uma das cabines
para eu poder mijar.
Não tinha reparado em como esse banheiro era bonito. Chão de madeira clara. Um
grande espelho com luzes em volta, e um vaso de planta perto da porta. Tudo em tons de branco e
com detalhes em madeira. Bem clean. Vou direto para a pia lavar minhas mãos.
“Depende. Hrs?”
“19:00?”
“Tô livre”
“Cinema?”
“Claro”
“Um encontro?”
Posso sentir minhas bochechas queimarem. Não era um encontro? Eu achei que fosse.
Bom, eu queria que fosse.
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Vejo meu pai sentado ao lado de minha mãe, suas mãos entrelaçadas sobre a mesa. Como
eu queria um dia ter a chance de ter o que eles têm. Eles eram vizinhos quando eram crianças, se
conhecem desde os 5 anos e estão juntos desde os 15. Eles são almas gêmeas, eu tenho certeza. Sim,
eu acredito nessas bobagens. Como não acreditar tendo crescido ouvindo sua linda história de
amor.
- Finalmente decidiu dar o ar da graça, rapaz? Eu e sua mãe já estávamos cogitando de você
ter caído no vaso – Vitor acaricia a barba grisalha e dá risada.
- Nenhuma.
- Ah, vamos lá, garoto. Nada para alegrar o seu velho pai aqui? Talvez uma namorada para
sua mãe poder pegar no seu pé fazendo 3 mil perguntas?
Quando Vitor virou vidente que não me avisaram? Não que eu tenha uma namorada.
Mas ele vem com essa logo quando eu vou ter um encontro?
- Você está vermelho – minha mãe diz com um sorriso largo no rosto.
- Betty, você está apertando a minha mão – me diz, simulando sentir dor. Minha mãe dá um
tapa na mão dele e fala para ele parar de ser bobo.
- Quem foi que disse que eu estou apaixonado? A gente nem sequer saiu ainda! – digo me
apressando em tirar aquela ideia da cabeça dela.
- Aha! – ela exclama como se tivesse feito uma grande descoberta. – Então tem uma garota!
- Não diga mais nada – minha mãe diz, como se eu tivesse falado grande coisa, eu só
gaguejei.
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Pelo resto do café ,eu tenho que ficar ouvindo minha mãe fazendo diversos planos que ela
pretende fazer com a nora dela. E quando eu tento desconversar e explicar a situação, ela
simplesmente me ignora e finge que não ouve. Igual a uma criança e não a uma mulher de 48 anos.
✾ 68 ✾
7 Pandora
São 17h15min, e eu já estou procurando uma roupa para usar. Gosto de me arrumar e
confio no meu senso de moda, mas hoje estou um pouco nervosa. Quando contei para Addie sobre
o encontro, ela veio correndo para a minha casa. Literalmente correndo. A maluca correu três
quadras até a minha casa.
- Não acredito que esse momento está finalmente acontecendo! – minha amiga solta um
gritinho de animação. - A última vez foi no primeiro ano, não foi?
- Faz tempo que não ouço esse nome. Pergunto o que aconteceu com ele. Era um menino
tão doce.
- Foco! Vocês estão me ajudando a escolher uma roupa, ou tentando me fazer desistir de ir,
ao me lembrar há quanto tempo não tenho um encontro?
Estou usando um body de renda preto, calça mom jeans, um boné e meu tênis preto da
Nike. Por mais que esteja de noite, o boné dá um charme especial à roupa.
- Você. Está. Muito. Gata! – Sara diz fazendo pausas a cada palavra que sai de sua boca.
Agora não sei se é proposital ou se a conexão só está uma bosta.
- Que linda! Nossa pequena saindo de novo. Eles crescem tão rápido – Addie finge chorar
descaradamente. Palhaça.
- Tecnicamente, vocês não sabiam da existência dele até poucas horas atrás – respondo para
Addie.
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- Porque não é nada demais.
Ele estava atrasado uns 15 minutos quando finalmente chegou. Ele estava lindo. Vestindo
uma calça jeans, camisa preta um pouco justa e uma jaqueta grande streetwear da Nike, juntamente
com um Air Jordan. Ele carregava nas mãos um buquê de rosas brancas, uma escolha peculiar já
que a maioria das pessoas compra as vermelhas – por serem clássicas, acredito. Meu coração dá uma
leve acelerada, rosas brancas são as minhas favoritas, mas óbvio que ele não teria como saber isso.
Estamos em seu carro. Um Audi preto. Sway, do Michael Bublé, toca no alto-falante.
- Eu sei que já falei isso antes, mas você está linda – diz ao se virar para mim. O sinal está
vermelho. Ele pega minha mão e leva até os lábios.
- Eu estava pensando – o sinal abre e ele solta a minha mão para poder dirigir. – Poderíamos
ir jantar depois do cinema.
- Claro.
Confesso que não me importaria de ficar mais na sua companhia. As gêmeas estão na casa
da minha avó paterna, então não tenho que me preocupar em chegar cedo, ou em levar comida para
elas.
As luzes da cidade iluminam meu rosto enquanto eu olho para a janela, a noite está linda.
Fico contente em sair um pouco, cuidar das gêmeas pode ser bem cansativo, por mais que elas já
sejam grandinhas.
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8 Lohan
O drive-in está cheio de carros, achar uma vaga será difícil. Corrigindo: impossível, pois
realmente não há mais vagas. Isso é tão frustrante!
- Está tudo bem, podemos tentar vir outro dia – Pandora diz com gentileza. Meu coração
perde o compasso com a menção a um futuro encontro.
- Vo... você poderia vir ao meu apartamento, se quiser. – Que coisa mais idiota de se dizer, é
óbvio que é se ela quiser, não é como se eu fosse sequestrar a garota.
Suas bochechas coram, mas ela não nega. Me viro para ela em busca de uma resposta verbal.
- Claro, pode ser – ela diz, mas percebo que está um pouco nervosa. Ela fica mexendo em
um dos rasgos de sua calça, sem parar, um dos únicos indícios de nervosismo.
- Achei que já tínhamos esclarecido que não sou um psicopata quando você me acusou de
te perseguir – digo com um sorriso de canto.
Ela ri, e é a melodia mais bonita que já ouvi. A sensação é como a de estar pegando um
pouco de sol em um dia frio de inverno. Conforto, eu acho.
Acabamos não indo para um restaurante, então pedimos uma pizza, já que eu sou uma
negação na cozinha, chego até a mencionar isso para Pandora.
- Uma vez botei fogo no micro-ondas fazendo uma pipoca. – Ela ri e começa a negar com a
cabeça, sem acreditar na veracidade do que estou contando. – É sério, eu sou um completo desastre.
- Como?! – Ela está deitada no grande tapete azul marinho próximo às grandes janelas da
cobertura, seus pés estão em cima do sofá branco da sala.
- Não tinha estourado quase nada, então coloquei mais 3 minutos. O grande problema foi
que eu já havia botado 3 minutos antes. – Ela ri mais ainda, sua risada reverberando por todo o
cômodo.
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Acabamos com a pizza de doze fatias há um bom tempo, estamos apenas conversando desde
então.
- Me diga, qual o seu maior sonho? Já sei seu maior medo, meio infundado, mas ok.
- Não vamos entrar nessa de novo – ela ri, percebo que faz muito isso.
- Está bem, deixe-me ver – finjo estar pensando no assunto, mas na realidade já sei, porém
não pretendo contar a ela, então contarei o segundo maior sonho. – Gostaria de tirar a foto perfeita
– ela ergue as sobrancelhas, intrigada.
- Uma em que registrasse o momento perfeito. Fotos são muito mais do que imagens
bonitas, são sobre memórias sendo eternizadas, são sobre emoções e sensações. Elas são feitas para
imortalizar lembranças que com o tempo acabam sendo esquecidas por nossas mentes.
(continua)
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Poema
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assim como as minhas aflições
o seu toque
tão delicado
e nuvens chuvosas
mas
tudo acalmou
a sua voz
tão suave
o seu cheiro
tão doce
acalmou as águas
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Conto
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Conheça Camilo
O Batedor de Chimango
Estranho é uma palavra muito simples para descrever o que a criança viu ao abrir os olhos
em uma manhã de segunda. Algo com certeza estava errado, pode ser a luz do quarto, a
temperatura... ou pode ser também a presença de uma criatura de dois metros, com dentes e olhos
caoticamente espalhados em seu corpo em eterna mudança que encarava o garoto do canto do
quarto. -Caaamiilu- diz o monstro com uma voz rouca e quase incompreensível, fazendo um gesto
com seu corpo lembrando um cumprimento. O menino, curioso, começa a andar em direção a
Camilo, correspondendo o gesto de cumprimento. A criança mal encosta em Camilo, e ele já a
agarrou, mergulhando-a em uma escuridão completa. Lentamente o breu assume a forma de uma
sala de aula e Tik... Tik... Tik... Esse era o som do relógio da sala de aula que o garoto era forçado a
frequentar cinco dias por semana. Junto com o relógio foram surgindo outros sons irritantes da sala
- som do quadro branco em que a professora sempre anota com pressa, o som das cadeiras sempre
se movendo porque nenhuma criança do sexto ano consegue se manter quieta em um período de
dois minutos, e o pior de todos: a conversa. A maldita conversa. O que pode ser que eles estão
conversando e como eles conseguem manter o diálogo por SEIS HORAS? O raciocínio da criança é
interrompido ao ver o quadro rapidamente se enchendo de anotações, ele apressadamente agarra
um lápis e começa a copiar em um caderno, porém, quanto mais ele copia, mais o barulho aumenta,
maior a dor de cabeça do menino fica e menos sentido ele consegue ver nas palavras. Frases agora
não parecem ser nada mais do que um monte de rabiscos em um quadro. Mesmo assim ele tenta
desesperadamente copiar para o caderno o amontoado de hieróglifos. A situação está insuportável,
mas nada que seja ruim não pode piorar, e a professora o chamou. Ela parece irritada. Deve ter
perguntado alguma coisa para ele e está esperando a resposta. O silêncio do garoto é rapidamente
interrompido por risadas de seus colegas enquanto apontam seus dedos para o rosto do menino que
agora está encolhido com ambos os braços pressionando furiosamente os ouvidos. O som não para
de aumentar. Camilo surge do teto e o engole, retornando o menino para a escuridão e em seguida
para o seu quarto. -O que é ser fraco?- Essas foram as últimas palavras que a criança escutou antes
de acordar em seu quarto que, agora, não possui um monstro o encarando, mas no lugar um relógio
tocando "6:40". MEU DEUS, VOU ME ATRASAR.
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Poema
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Eu te odeio, entra logo.
Alice Krüger
Eu te odeio. Eu te odeio.
Você saiu e deixou a porta aberta
Você saiu
Você saiu e levou a chave
Você saiu e deixou a porta escancarada.
Por que fez isso?
Não quer entrar?
Eu já te perguntei
Mas você não me responde
Você sequer me ouve…
Ou finge não escutar?
Está frio…
Entra, por favor…
Quer saber? Tanto faz
Prefiro Você aí onde eu possa ver
Do que distante e apenas como uma lembrança.
Mas eu queria que você entrasse…
Porque eu arrumei um lugar na mesa pra você…
Achei que você fosse voltar cedo
E agora o café está frio e o pão murcho…
Mas eu te amo por tudo que você já fez.
Eu deveria ir tomar meu banho
Mas vou te esperar, até o dia que você falar que não vai mais voltar.
Mas volta
Por favor.
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Miniconto
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Um Dia Para Lembrar
J. E. K. E.
Levantei cedo, como de costume, e fui para a cozinha para preparar a primeira refeição do
dia. A mais importante do dia. Um dia ensolarado, lindo. Lembro-me como se fosse hoje;
bocejando sob o umbral da porta, com seus olhos pesados e andar descompassado. Seus cabelos
curtos desgrenhados por acordar de um sono turbulento. Ainda que estivesse há 52 anos com ela,
toda vez que a via, meus batimentos se enrolavam. Apenas a visão de sua verdadeira forma, sem ter
completa noção do que acontecia ao seu redor, tropeçando em seus próprios pés ou mesmo no ar.
Com uma cumbuca repleta de frutas picadas e uma fatia de pão com mel era como iniciava
nosso dia. A doçura, no entanto, requer um suco de limão para quebrar o doce. Apenas com anos
de prática na culinária pude apreender isso. O limão. Ah, quanta saudade… fazia um tempo desde
que tomara um suco com limão fresco do pomar. Droga, mas é claro! O pomar! Esqueci de descer e
pegar o limão. Desci as escadas em busca do limão perfeito.
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Poema
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O tilintar das taças avermelhadas
quebrando as taças
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Ensaio
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Sobre a distância
Kyle B. (2013)
I believe if there's any kind of God it wouldn't be in any of us, not you
or me but just this little space in between. If there's any kind of magic in
this world it must be in the attempt of understanding someone sharing
something. I know, it's almost impossible to succeed but who cares
really? The answer must be in the attempt.
Ele beijou uma mulher como se fosse a última... E de fato foi, ao menos até este momento.
A questão que aqui se coloca não é por ele ter beijado certa mulher pela última vez, mas que ele
havia decidido parar de se enganar. Aquela havia sido a última tentativa. Sentia pena... Pena de si
mesmo pelo que iria enfrentar, pena dela por ter sido enganada por ele.
Não via nela nenhuma mácula. Talvez a única fosse as ilusões que ela criava para um dois
que não existia. Já ele ostentava uma tal desvinculação com a carne que mais lembrava um santo.
Mas seu desapego não era a todo tipo de carne, seu desapego era dela, delas, e finalmente ele
havia encarado este fato de frente. Para que, por quem se enganar? O motivo era somente um: era
mais fácil se trair do que se enfrentar. Mas também era com facilidade que ele encarava a solidão
imposta a si naquele momento, apesar de acompanhado.
Ele só não entendia por que as coisas tinham de ser daquele jeito, não parecia uma escolha,
não era algo pensado. Era algo de alma, algo etéreo e etílico. O fato de inebriar-se com certos
perfumes, em geral, os que exsudam de óleos e tons amadeirados.
Ela sempre cheirava a cravos, e este não era um cheiro que lhe apetecia. Nunca o completou,
nunca o completaria.
✾ 84 ✾
Ah! Mas doía, pois sabia que iria sofrer. Sua carne seria despida - e, nu, seria vexado por esta
desgraçada sociedade. O que mais doía era o fato de que perderia amigos, nem todos
compreenderiam. E ele tinha medo...
***
Ele encarou aqueles olhos verde-musgo de que tanto gostava. “Brubs, eu tenho algo pra te
dizer... a gente compartilha de um interesse de vida em comum”.
Sim, ela entendeu. E ele recebeu em resposta um ar solene, um daqueles ‘olhares de ressaca’
que já conhecia tão bem, que o haviam acompanhado por mais de dez anos.
“Porra! É só isso que você tem para me dizer?”, disse ele, injuriado.
A reação não fora nada do que esperava, e isso o deixava ainda mais nervoso.
“O que tu quer que eu diga? Só quero que tu seja feliz, não importa como.”
E foi neste momento que ele percebeu a idiotice que havia cometido. Mais de dez anos de
convivência, um ombro incondicional para qualquer momento e mesmo assim essa informação
crucial foi mantida a sete chaves, pois ele estupidamente supôs que ela não teria uma visão tão
simples e tão ligeira desses fatos.
***
***
Em uma sociedade que preza o “garbo” como fachada pública, ele encontrou afago.
Sistematicamente, ele comunicou aos seus amigos esse detalhe sobre si e, sem falhas, essa
informação foi recebida com gratidão e uma boa indiferença entre os seus. E nada poderia provar
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melhor do que essa aceitação, do que esse acolhimento, que eles pertenciam a um “seus” que
realmente existia.
Talvez a grande questão aqui seja que o problema real não é o aceitar-se, pois sabia seus
limites instintivamente. O grande problema é ser aceito por outros. O amor próprio está embasado
em aceitar-se enquanto objeto digno de amor dos outros.
É nessa relação entre ele e os outros que se estabelece de fato algum afeto existente. Talvez
seja esse afeto, no intermédio de duas pessoas, que o salva do inferno dos outros. “Todo mundo
aceitou de boa ou a gente vai ter que bater em meia dúzia?”, disse um certo Nicolas.
Não importam as diferenças entre dois; importam, sim, os pontos de conversão, as nuances
que os conectam, que fazem valer a pena compartilhar histórias e afetos.
“Se nada nos salva da morte, que o amor nos salve da vida”, dizia Neruda. É preciso um ato
de coragem para buscar aceitar – não é necessário entender! – o outro. Essa deve ser a pedra
fundamental do seu estar no mundo: partir de uma posição aberta, reflexiva e pensada. Todos são
iguais por nossas diferenças.
Mas, ao mesmo tempo, estamos nos tornando frios, pois temos mais coragem para
conversar certos assuntos – aqueles que realmente importam – pela internet. É fácil não nos
importarmos quando vemos as coisas numa tela de um computador. Essas coisas plásticas, frias e
brancas não desvelam o que realmente importa.
Todo este papo sem sentido serve apenas para ilustrar a dificuldade de estabelecer vínculos
com os outros.
“Todo mundo é uma ilha, a milhas e milhas de qualquer lugar”, mas ele foi agraciado com a
dádiva de conectar-se – por outra coisa que não seja uma rede wireless – de um a outros. Deve-se
apenas tentar.
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Ele não consegue se definir sozinho. Ele se limita, se delineia, na interface com os outros. Ele
não tem um deus dentro de si, ele vê deus ao se conectar com outros, seja falando, seja ouvindo, seja
respeitando, seja amando.
***
Mas, talvez, ele não estivesse se enganando... Talvez ele não tivesse se tornado ainda. Talvez
ainda não tivesse devenido. Talvez esses processos estejam muito além do que cabe a esses rótulos:
gay, lésbica, hétero, queer, trans, bi. Esses são apenas nomes que foram inventados para tentar dar
conta de realidades sociais na forma de ver do hoje.
Seu debate interno em todo este tempo - tanto, tanto tempo - sempre foi com uma
moralidade imposta a si, com a qual ele decidiu romper. Era imposta a si, mas não inventada por
ele. O ato de liberdade, que precisou de um salto de fé, foi nada mais, nada menos do que pensar
um pouco e ver, ou pensar que via, com seus próprios olhos.
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