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01/12/2021 23:25 Cárcere na pandemia - Observatório do Terceiro Setor

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15/06/2020 ÚLTIMAS
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Cárcere na pandemia
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LUCIANA MARIN RIBAS


COLUNAS, LUCIANA MARIN RIBAS - CULTURA E DIREITOS
HUMANOS

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Desamparados: 140 mil
perdem Bolsa Família e
não ganham Auxílio
Brasil

Vídeo mostra PM
arrastando homem
negro algemado na
moto em SP

Trilha sonora para ler este texto: Livin´ On The Edge, Aerosmith
+

No último texto que escrevi, ainda estávamos na transição de


realidades. Eu ainda estava trabalhando da forma tradicional e a ideia Projeto social que
ensina Braille a
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de quarentena em razão da COVID-19 ainda não era tão presente. No distância completa
início do mês de março eu até imaginei que algo iria mudar, mas não dois anos
pensei que nossas rotinas seriam afetadas dessa maneira.
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A divisão dos dias e das horas se transformou em uma massa amorfa e
a noção de tempo ficou afetada. Pelo menos para mim. Eu percebi
nesta semana que já estamos nesta rotina há quase três meses.

Pensei que por estar trabalhando de casa, eu acabaria tendo mais


tempo para escrever, mas acho que, assim como a maioria das pessoas
que passou para esta dinâmica de trabalho, passamos a trabalhar
mais e ao final do dia não queremos mais ter que lidar com uma tela
de computador. Nas primeiras semanas, trabalhei de 10 a 14 horas por
dia e os finais de semana foram inexistentes. Mudei o dia pela noite e
não observava horário de café da manhã, almoço, jantar. A
alimentação era baseada em salsicha e o vestuário foi o mesmo
pijama por dias seguidos. E essa dinâmica ocorreu por duas ou três
semanas até perceber que se eu continuasse assim, eu morreria de
outra coisa que não coronavírus. Cada salsicha consumida reduziu uns
cinco anos na minha expectativa de vida. Eu havia, literalmente,
abraçado a derrota.

Organizei uma agenda no meu quadro branco do escritório com


divisão dos dias da semana. Retomei uma jornada de trabalho de, no
máximo, oito horas diárias e desabilitei as notificações do e-mail
corporativo do meu celular. Voltei a utilizar despertador para acordar
em um horário mais digno, retomei uma série de exercícios físicos no
período da manhã e voltei a ter as três refeições diárias. Ainda
reclamo muito por ter que cozinhar, mas consegui organizar uma
metodologia gastronômica que não me toma muito tempo e me
garante o mínimo de nutrientes não baseados em alimentos
processados. Claro que parte deste sucesso deve ser reputado à
compra de uma fritadeira elétrica que faz boa parte das minhas
refeições em poucos minutos.

E quem leu até aqui deve estar pensando: “Uau! Que vencedora! Olha
esse exemplo! Possivelmente ela vai dedicar esta coluna a descrever
um tutorial sobre como sobreviver a esta quarentena”. Então… Nada
disso! Na verdade, esta rotina está sendo feita de forma totalmente
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mecânica e só a adotei para não ficar tão perdida no tempo como

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antes. Apesar de estar com uma alimentação balanceada, ter secado


quatro quilos e conquistado um gominho na barriga por causa das
tantas abdominais diárias, a minha mente está bem abalada. Tão
lesada que comecei esta coluna diversas vezes e não consegui pensar
em nenhum tema.
Pequeno manual
Em geral, minha inspiração para escrever aqui sempre veio das idas ao antirracista
cinema, ao teatro, às exposições, viagens que tanto amo fazer, R$ 12,90

observar as pessoas, escutar conversas alheias no transporte público Compre agora


       
ou qualquer saída rotineira para a rua. Presa em casa, só me restam as
lives de músicos, algumas séries e filmes que quebram o galho. Eu só
vi uma live. Vi e fiquei deprimida. Fiquei pensando que se este é o
futuro dos shows, não sei se vou querer sobreviver a esta pandemia.
Eu sempre amei ir a show, incluindo o perrengue. Eu amo tudo em um
show: o aperto, o cansaço, a dificuldade para chegar, a muvuca, a água
que é vendida a preço de ouro, o desespero de ter que correr atrás da Amoras

lotação por não ter mais transporte público para voltar para casa. A R$ 20,56
sensação de estar sendo esmagada no meio de uma multidão é
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compensada com o som ao vivo de uma banda.

O mesmo amor também vale para cinema. Eu até suporto o barulho da


CONHEÇA O
pipoca (sim, eu sou a pessoa que defende a proibição de pipoca em
OBSERVATÓRIO
salas de cinema) para poder experienciar o escuro e me deliciar com
uma tela gigante diante dos meus olhos. Em especial, as últimas
sessões foram na companhia de uma grande amiga que me renderam
boas lembranças. Depois de cada filme a gente parava para um café
com torta de doce de leite. Ah, que saudades daquela torta!

E depois de tantos devaneios, como chegar ao ponto da minha


coluna? Bom, depois de muito refletir, e por estar afastada dos meus
programas culturais e privada da minha liberdade de ir a pé para
tantos lugares que amo, fiquei pensando neste sentimento de estar
confinada e sem contato com coisas que gosto tanto de fazer. Essa
sensação me fez lembrar das pessoas que são presas e que ficam na
cadeia por anos.

Eu já tive a experiência de visitar vários presídios, muitas das vezes


em razão da minha atuação em direitos humanos durante anos.
Curioso lembrar que todas as vezes que eu já estive em um presídio,
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dias depois eu sempre tive febre. Até hoje guardo na memória o cheiro

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dos presídios e o som das grades se fechando atrás de você quando


você entra naquele espaço. Todas as vezes que passei por esta
experiência, eu voltava para casa e ficava semanas pensativa e
questionando a humanidade da nossa sociedade por ainda aceitar
esse modo de punição. No entanto, em que pese todas estas
experiências terem me marcado profundamente, eu nunca passei mais
que algumas horas na cadeia. Estar de quarentena em casa, com
acesso restrito a coisas e a pessoas que tanto amo, mesmo tendo a
liberdade para sair quando eu quiser e puder, me fez pensar nas
pessoas que passam anos atrás das grades. Como é possível defender
um sistema que priva a liberdade do ser humano, limita o acesso a
atividades prazerosas, regula a visita de amigos e parentes e ainda
assim acreditar que alguém pode sair melhor desta experiência?

Na última semana tive uma mistura de sentimentos ruins. Ansiedade,


raiva, tristeza e desespero permearam várias das minhas noites. E eu
estou no conforto da minha casa, com os privilégios de acessar a
comida que quero, escutar a música que gosto e conversar – mesmo
que à distância – com amigos e familiares. Como é possível despertar
sentimentos positivos em uma pessoa presa?

Nosso sistema penitenciário sempre é objeto dos noticiários e muita


gente fala dele sem nunca ter pisado numa cadeia. Em geral, o senso
comum, fruto do desconhecimento sobre a realidade e impulsionado
por uma mídia irresponsável, acredita que as pessoas presas
desfrutam de regalias na prisão e que o Estado gasta volumosos
recursos públicos na manutenção de pessoas que violaram a lei. O que
poucos sabem, e pouco se dá visibilidade a respeito, é que a situação
nos presídios brasileiros é abaixo das condições para qualquer ser
humano viver. Recentemente, no programa do Observatório do
Terceiro Setor, Brasil Cidadão, Marianna Haug, advogada e
pesquisadora do Projeto Mulheres Migrantes do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania (ITTC), e Henrique Apolinario, comentaram sobre
os efeitos da pandemia no sistema penitenciário.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos elenca o direito à


liberdade logo após o direito à vida, por reconhecer sua importância
para a dignidade do ser humano. No artigo 5º veda qualquer punição
+

equiparável à tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou


degradante. E a liberdade é um direito tão valioso que os artigos 8º a

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11 são dedicados às garantias do processo penal, isto é, eles garantem


a qualquer pessoa o direito a um processo idôneo, público, fundado
em provas e que a punição não seja desarrazoada.

Tão degradante é a situação nos cárceres como é degradante nosso


sistema punitivo. Mais de 30% das pessoas encarcerada são presos
provisórios, ou seja, ainda não foram condenadas. E a taxa de
crescimento da população carcerária tem aumentado 2% nos últimos
anos. Em termos mais concretos, o Brasil conta com 773.151 pessoas
privadas de liberdade em todos os regimes. Todos estes dados podem
ser conferidos através do INFOPEN, que é o Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN). O que estes dados nos dizem?

Em primeiro lugar, é preocupante pensar que mais de meio milhão de


pessoas estão presas e um número significativo delas sequer cometeu
um delito. Há várias associações que trabalham para combater os
erros judiciários, dentre as quais destaco Innocence Project, que tem
atuação em mais de 57 países do mundo. No Brasil, ela existe desde
2016 e atua em rede com as demais organizações espalhadas pelo
mundo.

E erro judiciário é mais comum do que se imagina. O tema já foi objeto


de vários filmes, dos quais destaco o clássico Em Nome do Pai (In the
Name of the Father), de 1993, dirigido por Jim Sheridan e com Daniel
Day-Lewis como protagonista. O filme é baseado numa história real a
respeito da condenação de um jovem irlandês (Gerry Conlon,
interpretado por Daniel) e outros três amigos acusados de um
atentado do IRA em um pub na cidade inglesa de Guilford, próxima a
Londres. Os jovens são condenados a prisão perpétua até o momento
em que a advogada Gareth Peirce (Emma Thompson) assume o caso e
verifica uma série de irregularidades no processo investigativo.

E erros judiciários ocorrem porque o sistema é formado por pessoas


passíveis de falhas e que, por vezes, imersas em seus preconceitos,
são incapazes de reconhecer os próprios privilégios e enxergam a
humanidade no outro, condenam baseadas muito mais em convicções
do que em provas. É o que chamamos de seletividade do sistema
judiciário. Recentemente assisti a um interessante filme italiano sobre
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como o sistema protege pessoas privilegiadas chamado Investigação

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sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su um


citadino al di sopra di ogni sospetto), de 1970, dirigido por Elio Petri,
cineasta italiano famoso pelas críticas ao modelo autoritário italiano
de repressão a dissidentes políticos. O filme retrata a história de um
inspetor de polícia (Gian Maria Volonté) que assassina sua amante
(Florinda Bolkan), e que planta várias pistas óbvias na cena do
homicídio para incriminá-lo apenas para testar a seriedade da
investigação. Mesmo com suas digitais espalhadas por toda a casa
onde ocorreu o crime e coletadas pelos peritos, todos ignoram as
evidências em razão de seu cargo político. O filme retrata os abusos de
autoridade, as formas degradantes utilizadas nas delegacias para
obtenção de confissões e a distorção do sistema de justiça, utilizado
muito mais para reprimir do que para libertar a sociedade.

Em segundo lugar, vejo como absurdo surreal vivermos em uma


sociedade que ainda não pensou em outra forma de punição além do
encarceramento e a privação de liberdade. Aliás, nosso sistema prevê
outras penas, tais como a multa ou restritivas de outros direitos além
da liberdade, mas o sistema judiciário ainda replica com mais vigor as
penas restritivas de liberdade, em especial quando aplicadas a
minorias como pessoas negras e mais pobres. Se estamos diante de
um sistema que prende um número significativo de inocentes, por que
ainda insistimos neste erro? E mesmo no caso de pessoas que
cometeram algum tipo de delito, por que ainda insistimos na punição
da privação de liberdade? Existem tantas outras formas de punição.

Nos estudos de Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria), sua clássica


obra “Dos delitos e das penas”, que é leitura obrigatória em qualquer
curso de Direito, a crítica ao sistema punitivo já existia. Este livro,
inspirado nas teorias contratuais de Rousseau, inaugura o humanismo
iluminista do século 18 (sim, isso mesmo, já no século 18 algumas
pessoas tinham ideias mais avançadas do que de outras pessoas do
atual século 21) e desperta ideias revolucionárias para a época sobre a
justiça criminal. Nesta obra, já são apontados problemas que ainda
persistem no sistema atual: por um lado o uso da lei em benefício de
uma minoria da população para acúmulo de privilégios e renda; do
outro, a aplicação da lei como forma de repressão e controle social.
+

Séculos depois, outra obra que aborda de forma crítica os sistemas


penais ocidentais da era moderna é “Vigiar e Punir: Nascimento da

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Prisão”, de Michel Foucault, de 1975. Esta obra, além das prisões,


também examina outros mecanismos sobre vigilância e punição de
entidades estatais como os hospitais e as escolas. Foucault é
complexo, e o livro faz uma análise do sistema de vigilância e punição
do século 17 a 19, mas o mais importante reside na crítica sobre a
forma que o Estado pretende “disciplinar” seus cidadãos. Para tanto, o
Estado cria mecanismos para classificar as pessoas como sãs ou
loucas, normais ou anormais, sadias ou doentes, boas ou
delinquentes. Para Foucault, há o deslocamento do problema da
infração à norma para a anormalidade da conduta desviante do
indivíduo.

Para ilustrar essa visão crítica que tenho sobre o modelo estatal de
punição e reinserção do indivíduo na sociedade, acredito que não
exista exemplo melhor do que o clássico livro “Laranja Mecânica” (A
Clockwork Orange), de Anthony Burgess, de 1962. Tanto o livro como a
adaptação para o cinema por Stanley Kubrick em 1971. Apesar de ser
uma distopia, a obra demonstra quão falível é o sistema de
reabilitação prisional. Alex (Malcolm McDowell) é o protagonista que é
líder de uma pequena gangue de jovens que gostam de causar a
desordem social. De perfil sociopata, Alex lidera vários crimes e, em
um deles, acaba sendo preso e levado à prisão. Durante seu
cumprimento de pena, especialistas em reabilitação prisional
apresentam ao diretor do presídio uma nova técnica de
condicionamento psicológico denominada “Ludovico”, que é colocada
como eficaz para garantir que qualquer ex-detento, uma vez colocado
em liberdade, volte a delinquir. Como já mencionei, apesar de ser uma
distopia, a narrativa flerta com a realidade dos sistemas prisionais e
de correção social. O filme é uma crítica para além do sistema
prisional, abordando também teorias sobre o totalitarismo dos
governos e desrespeito ao livre arbítrio dos cidadãos.

Depois de tantas idas e vindas, citações teóricas, filmes e relatos sobre


minha monótona rotina, onde pretendo chegar com este texto? Bom,
tenho visto várias discussões, seja na televisão, seja na internet, sobre
as mudanças pelas quais a sociedade irá passar em razão da
pandemia. Muitos opinam que sairemos melhores, mais solidários,
mais colaborativos; outros acreditam que sairemos piores, mais
+

ansiosos, mais depressivos e mais egoístas. Outras discussões são no


sentido do reconhecimento de privilégios e como nossas

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desigualdades sociais ficaram mais afloradas e perceptíveis. Minha


opinião sobre tudo isso não importa porque penso que toda esta
experiência pela qual estamos passando não é possível de ser
analisada no atual momento. Todo ponto de vista enxerga apenas um
aspecto do todo e os exercícios de futurologia são palpites feitos em
webinars espalhados pela internet. Mas o que tenho mais refletido
nestas últimas semanas, e foi isso que me inspirou a escrever este
artigo, é a angústia gerada pelo cerceamento da liberdade.

Como já mencionei no início deste texto, se a Declaração Universal de


Direitos Humanos coloca a liberdade logo após o direito à vida,
entendo que este é um dos maiores bens que uma pessoa pode ter. E
experienciar a falta dela me fez perceber quão valiosa ela é. Se eu já
era uma feroz crítica ao sistema punitivo de cerceamento de liberdade,
esta pandemia me tornou uma crítica ainda mais radical.

Se as pessoas que estão em suas casa estão angustiadas, tristes,


depressivas, ansiosas, dentre outros sentimentos ruins, mesmo
estando no conforto de suas casas – por mais simples que sejam –
quais sentimentos esperamos despertar nas pessoas que tem suas
liberdades cerceadas em um local muito mais inóspito que o próprio
lar?

Se existe uma reflexão que penso ser urgente de ser despertada no


debate público é a reflexão sobre o nosso sistema prisional e punitivo.
Se a humanidade sobreviver a esta pandemia e não desenvolver um
outro sistema de punição, talvez não terá aprendido lição alguma e o
mundo permanecerá do mesmo jeito até a próxima pandemia.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do


Observatório do Terceiro Setor.

LUCIANA MARIN RIBAS


Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São
Paulo, Mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP,
+

onde também se graduou em Direito. Pesquisadora da


Clínica Luiz Gama de Direitos Humanos da USP, dedica-se

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