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A NOITE INFERNAL
Eugenio Goulart/AE
Um clarão num começo de noite fria em São Paulo foi o primeiro sinal de um desastre que levou 28 segundos
para acontecer, mas que continua a repetir-se infinitamente no cinema mental dos brasileiros. É impossível
esquecer o incêndio infernal e, à frente dele, a princípio inexplicável, o pedaço de cauda com as letras TAM.
Também ficarão para sempre impressas na memória as notícias que sucederam ao clarão. O Airbus que vinha
de Porto Alegre não conseguiu pousar na pista molhada de Congonhas. Atravessou a avenida paralela ao
aeroporto. Entrou num depósito de carga. Explodiu. Estava lotado. Morreram todos. Houve vítimas em terra.
Foram cerca de duas centenas de mortos – três dias depois, o número permanecia inexato. Sobrou apenas
aquele pedaço de cauda, agora transformado em alegoria macabra pelas lentes dos fotógrafos.
Entrar num avião exige uma suspensão da incredulidade. É preciso aceitar que um tubo de metal lotado de
gente voa, que a sua tecnologia tem respostas esplêndidas, que é o mais seguro dos meios de transporte –
tudo lógico do ponto de vista da física e da estatística, mas tão duvidoso diante de nossas resistências
psíquicas. Entrar num avião depois do acidente com o Airbus da TAM exige hoje não só suplantar a rejeição
inata aos humanos de pés plantados na terra, mas sufocar um grito de angústia: quem vai nos socorrer?
Quem vai tirar os cidadãos de bem da sensação de desamparo que nos assalta há dez meses, desde o
acidente do Boeing da Gol, quando teve início o caos nos céus do Brasil? Mesmo ainda sem saberem todos os
fatos que levaram ao desastre do vôo 3054, mas conhecendo perfeitamente as circunstâncias de falência
institucional que o cercaram, todos sentem que o inferno vai se perpetuar.
Depois do desastre, onde estava o ministro da Defesa, Waldir Pires, aquele que reclamou do salário de 8 000
reais? Mergulhado num silêncio quebrado com uma nota anódina em que propõe que se evitem "julgamentos
precipitados". Onde estava o presidente Lula? Em silêncio profundo que levou três dias para romper. A
ministra do Turismo, Marta Suplicy? Em Portugal, de onde voltou com uma declaração que foi a única boa
notícia no silêncio dos omissos que se seguiu à morte de duas centenas de cidadãos brasileiros em
circunstâncias traumatizantes: "Não tenho nada a dizer". O que ela disse da última vez em que se pronunciou
sobre o assunto foi superado, inacreditavelmente, pelo ministro Marco Aurélio Garcia, assessor especial de
Relações Internacionais, comemorando a notícia de que um problema mecânico pode ter influído no acidente,
aliviando a pressão sobre o governo. Como as imagens terríveis daquela noite infernal, seu gesto chulo
também ficará gravado na memória dos brasileiros.
Nas páginas a seguir, cenas e reportagens sobre o horror, a dor, as vítimas e o que se sabe até o momento
sobre as causas – diretas e indiretas – do maior desastre da aviação nacional.
Vivi Zanatta/AE
MUNDO DERRETIDO
Parecia, em dimensões reduzidas, um 11 de Setembro. Um avião encravado
num prédio, fogo incontrolável, pessoas saltando pelas janelas, paredes
derretidas. Acidentes de avião em geral reúnem um conjunto de condições
fatídicas que parecem desafiar as probabilidades. Mas um avião que fracassa
no pouso, atravessa uma avenida e bate num depósito da própria empresa é
de uma improbabilidade que parece derreter também a lógica do mundo tal
como a conhecemos. Que levasse 187 pessoas a bordo – a lotação máxima –,
que chovesse, que a pista fosse lisa como sabão, que haja indícios de
problemas mecânicos são exemplos terríveis do que acontece quando o
improvável, o previsível e a pior hipótese possível se unem.
Paulo Liebert/AE
RITO FÚNEBRE
Bombeiros e peritos trabalharam rápido e num silêncio incompatível com o
intenso movimento em volta. Cada corpo encontrado era colocado em um
saco e levado a uma tenda montada ao lado do local do acidente. Lá, era
fotografado, etiquetado com o número de chegada, reembalado e
transportado para o Instituto Médico Legal, em veículos com gavetas e
recipientes improvisados. Até sexta-feira, o ritual havia se repetido 184 vezes.
O desastre somou o impacto violento do avião no prédio do depósito da TAM
e várias horas de fogo intenso. Nas primeiras horas, eram indescritíveis o
calor, o cheiro e o estado dos corpos, protegidos do olhar público pelas
paredes que restaram do depósito.
JF Diorio/AE
ÚLTIMO CONSOLO
Depois de admitir o inadmissível, a morte brutal de uma pessoa querida,
pensa-se o impensável: será que pelo menos o fim foi rápido? Especialistas
em grandes desastres oferecem esse consolo. Certamente os ocupantes do
Airbus perceberam a iminência do acidente, mas quem está num avião a
cerca de 180 quilômetros horários que desacelera para zero sofre o efeito de
uma queda do 10º andar de um prédio. A desaceleração, por si só, rasga
veias e artérias. Os assentos se soltam, os passageiros das fileiras da frente
são esmagados. Nem os das fileiras dos fundos, cujos corpos estavam mais
preservados e onde o impacto com o prédio foi mais absorvido, devem ter
tido uma sobrevida suficiente para fazê-los sofrer. Todos já estavam mortos
ou inconscientes quando foram carbonizados pelas chamas do incêndio.
Andre Penner/AP
DESPEDAÇADO
Ao fazer a curva fatídica que o colocou no rumo da colisão com o prédio da
TAM Express, o Airbus A320 era um orgulhoso produto da tecnologia
aeronáutica, um avião ágil e resistente de 42 toneladas, 37,6 metros de
comprimento, 11,8 metros de altura e 34,1 metros de envergadura. Ao bater,
consumiu-se numa bola de fogo. A soma do impacto e das chamas foi de tal
forma devastadora que, em algumas áreas dos destroços, era difícil
distinguir o que havia sido avião dos restos de sua frágil carga humana.
Alguns pedaços extraídos dos escombros foram levados nas mãos dos
bombeiros; outros, como o da foto, pareciam fantasmas da forma e da função
que haviam tido.
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Especial
Faces da tragédia
que comoveu o Brasil
Profissionais no auge da carreira, jovens cheios de planos, crianças voltando das férias, senhoras
aposentadas, duas grávidas. Vidas ceifadas, sorrisos que não existem mais
Depois que o pior acontece, gestos que se dissolveriam na banalidade do cotidiano ganham uma dimensão
terrível. Por que o aspirante a piloto conseguiu entrar no vôo fatídico no VEJA TAMBÉM
último minuto? Por que o marido deixou a mulher e o filhinho Roberto Setton
embarcarem no último assento disponível? Como uma família inteira Nesta reportagem
pega um avião para voltar de férias e é varrida do mapa? Como um pai • Quadro: As vítimas
vai esperar o filho no aeroporto e vê o avião desaparecer em chamas?
São perguntas sem respostas, mas lembrar as histórias dos que se foram
e o sofrimento dos que ficaram é uma forma de dizer que todas as vidas
têm um valor intrínseco que nada apagará. Nestas páginas, algumas
dessas histórias de vítimas e de sobreviventes.
O que acontece quando sua vida depende de um grito de socorro e você não tem mais forças nem para isso?
O ascensorista Renato Soares dos Santos, 31 anos, estava no 2° andar do prédio da TAM Express quando o
avião atingiu o edifício. Sua primeira reação foi chamar o elevador para ter certeza de que ninguém havia
ficado preso. O elevador estava parado. Renato tentou então achar a saída pela escada. Não conseguiu. Foi
quando sua irmã, Regina, que sabia que ele estava no prédio, ligou para seu celular: "Tentei acalmá-lo. Disse
que os bombeiros já estavam com seu número de telefone e logo iriam resgatá-lo". Deitado de bruços no chão
para evitar aspirar a fumaça, o ascensorista ainda ouvia os gritos de outros funcionários. Aos poucos, foi
perdendo a consciência. Cerca de vinte minutos depois, quando os bombeiros chegaram, ouviu um deles
perguntar se havia alguém no local. Sem voz nem forças para pedir ajuda, Renato fez o gesto que salvou sua
vida: começou a bater com uma das mãos no chão. Conseguiu ser ouvido.
Álbum de família
Ao chegar ao aeroporto de Porto Alegre para embarcar para São Paulo, Diogo Casagrande Salcedo, 25 anos,
foi informado de que o check-in do vôo das 17 horas já estava encerrado. Como ele viajava por conta da
companhia aérea, a funcionária do balcão decidiu ajudá-lo. Deu nova olhada no computador e avisou que, se
Diogo corresse, conseguiria embarcar. Foi o que ele fez. Queria chegar logo a São Paulo, onde tinha marcado
um exame psicotécnico, última etapa do processo seletivo para se tornar piloto da TAM. Nas duas terças-feiras
anteriores, Diogo havia feito o mesmo percurso para realizar provas de seleção. "Nosso azar foi a funcionária
ter conseguido embarcá-lo", lamenta seu pai, Luiz Antonio Salcedo. Se passasse no exame, Diogo realizaria
um antigo sonho. Na infância, o tema favorito de seus desenhos eram os aviões. Na adolescência, praticou
aeromodelismo. Adulto, tornou-se piloto de táxi aéreo. Antes de viajar, Diogo esboçou a apresentação que
faria no dia seguinte: "Nas horas vagas gosto de praticar esportes, entre eles tênis e natação. Tenho uma
namorada há seis anos com quem pretendo me casar. Estou muito interessado em fazer parte da TAM e
ajudar...".
Roberto Setton
O paulista Lamir Buzzanelli, de 67 anos, aguardava o desembarque do filho, o engenheiro químico Claudemir
Buzzanelli Arriero, ao lado de seu táxi, estacionado em frente ao aeroporto. Foi surpreendido por um forte
estrondo seguido de labaredas a apenas 70 metros de distância. O taxista consultou o relógio. Eram 18h45,
minutos depois do horário previsto para a aterrissagem do avião no qual viajava Claudemir. Pensou logo no
pior: "Tive a certeza no meu coração de que aquele era o avião em que estava meu filho". Lamir ficou alguns
minutos sem ação, desnorteado, até começar a perguntar sobre o acidente a todo mundo que passava. Ainda
tentou seguidas vezes falar com Claudemir no celular, sem sucesso. Minutos antes de entrar no avião, o
engenheiro químico, que havia viajado a Porto Alegre a trabalho, avisou ao pai e à mulher, Rosely, que
conseguira antecipar seu vôo e chegaria mais cedo em casa. Estava ansioso para voltar a tempo de jantar
com a família naquela noite. Aos 41 anos, ele tinha dois filhos, um de 21 e outro de 13 anos. "Um acidente
como esse destrói famílias inteiras", desabafa Rosely.
Há quatro meses, o gaúcho Peter Max Finzsch, 28 anos, casou-se com Helena Braga, 26, namorada desde a
faculdade. Eles tinham acabado de comprar um apartamento em Porto Alegre. No domingo, dois dias antes de
ele embarcar no Airbus da TAM, o casal passeou pelo bairro onde fica o imóvel. Na ocasião, ele confidenciou à
mulher: "Nunca fui tão feliz". Analista de sistemas na siderúrgica Gerdau, Peter tinha planos de morar nos
Estados Unidos, para onde viajava freqüentemente a trabalho. "Ele estava no melhor momento profissional da
sua vida e muito contente com o casamento", lembra o pai, Horst Max Finzsch. Na terça-feira, minutos antes
de embarcar no fatídico vôo da TAM, Peter conversou pelo celular com o pai. Disse que acabara de entrar no
avião e, assim que chegasse a São Paulo, ligaria de volta.
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