Betti - 2017 - Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de

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Base N acional Com um Cur r icular ( BN CC) de

Educação Física do Ensino Fundam ental. Ruim com


Ela, Pior Sem Ela
Por: Mauro Betti.
Blog do Cev - 2017
<http://cev.org.br/biblioteca/base-nacional-comum-curricular-bncc-de-educacao-fisica-do-ensino-fundamental-ruim-com-ela-pior-sem-ela>

Construir uma base curricular nacional em um país tão grande e diversificado como o nosso é certamente um desafio, mas é uma
tarefa necessária. Contudo, a dificuldade do documento recém apresentado pelo MEC (abril/2017) começa por aí, já que a Base
Nacional Comum Curricular não é, a rigor, um currículo (currículo não é listagem de conteúdos e objetivos), mas “curricular” está
em seu título. Mas ela será lida como se fosse um currículo. Não seria problema se indicasse parâmetros e princípios mais gerais,
todavia ela detalha minuciosamente as “habilidades” (ou “objetivos de aprendizagem” ou “competências”, afinal pouca gente sabe
mesmo qual a diferença entre essas denominações/concepções). Com isso, ficaram definidos pontos de chegada, mas nada se
fala sobre os caminhos que podem ser trilhados até eles (o “como”).

Mas não me proponho aqui a fazer uma análise crítica da BNCC com um todo, Quanto a isso, concordo com (quase) todas as
considerações apresentadas pelo Prof. Luiz Carlos de Freitas, em seu blog https://avaliacaoeducacional.com/2017/04/07/bncc-
uma-base-para-o-gerencialismo-populista/ . Não tenho dúvida que a principal finalidade política da BNCC, nos termos em que foi
configurada, é definir uma “métrica” para a avaliação (quantitativa) em larga escala que facilite a terceirização das escolas
públicas e alimente o mercado de assessoria pedagógica, cujos interessados já estão a postos, sem dúvida (será que na
Educação Física também?).

Focarei na BNCC da Educação Física do ensino fundamental (BNCC-EF), componente curricular cujas especificidades (corpo,
movimento etc.) dificultam, quase impedem tal avaliação quantificada (exceto se a restringirmos aos parâmetros da aptidão física).
Tal fato não é uma vantagem ou desvantagem, é uma característica própria deste componente curricular, que lida com emoções,
desejos, sentimentos, com a indissociação “sentir-pensar-agir”. Esta diferença fica bem clara quando comparamos as
“Habilidades” propostas pela BNCC-EF com os demais componentes, em especial Língua Portuguesa, Matemática e Ciências
(afinal, os componentes que interessam de fato ao atual projeto educacional-escolar do MEC.).

Falei antes dos “pontos de chegada” (as “Habilidades”). Mas há um ponto de partida, os “porquês”? Certamente, mas nesta 3ª
versão ficou pouco visível. Foram excluídas a maior parte das frases que na 1 e 2ª versão faziam uma abordagem histórico-
política da EF escolar, e que poderiam dar pistas de qual foi o ponto de partida mais geral (concepções de ser humano,
sociedade, educação, escola). De qualquer modo, percebe-se inequivocamente a abordagem “culturalista” da EF escolar,
inaugurada nos documentos oficiais do governo federal pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental em
1997 e 1998. O número de “Habilidades” propostas também foi diminuído, o que torna a BNCC-EF mais factível, mais “realista”.
Nossa impressão inicial é de que a BNCC-EF ficou mais linear, mais direta, mais “seca”, e por conta disso perdeu um certo
“charme” da formatação anterior.

Fala-se um pouco mais nesta 3ª versão sobre Linguagem, mas continuam ausentes boas e fundamentadas justificativas para
explicar por que EF é “Linguagem”. É compreensível, pois exigiria buscar fundamentos na semiótica, área de estudos pouco
explorada na EF. Contudo, há um entendimento de linguagem “embutido” quando a BNCC-EF deixa-se influenciar pela
praxiologia motriz de Pierre Parlebas, com sua clara inspiração no estruturalismo de Saussure, fundado em categorias
dicotômicas (significado x significante; sincrônico x diacrônico etc.) e na supremacia da língua, “sistema de signos ideal”. Não me
parece a melhor opção se se quer valorizar a linguagem corporal, a qual não se permite submeter à estrutura da língua.

Vamos tentar então deduzir os pontos de partida (ao menos parcialmente) a partir dos pontos de chegada. Para isso, fiz uma
contagem dos verbos utilizados nas “Habilidades” previstas para o 1º a 5º ano (alguém poderia fazer do 6º ao 9º ...). Os três mais
frequentes, com larga vantagem sobre os demais, são:

Experimentar (n=10), Identificar (n=10) e Fruir (n=9).

Pois bem, “experimentar” e “fruir” não são verbos compatíveis com a exigência de Habilidades mensuráveis, assim como é
também o caso da maioria das cerca de duas dúzias delas presentes na BNCC-EF (“assegurar”, “divulgar”, “discutir”, “prezar”,
“propor”, “recriar”, dentre outros).

“E isso não é bom?” – poderia se perguntar o leitor que teve a paciência de me acompanhar até aqui. De certo modo sim, pois
indica que a Educação Física não se rendeu totalmente à lógica gerencialista (ou “empresarial”) da BNCC, o que talvez nem fosse
possível, dado sua especificidade, como já comentamos.

Mas também neste caso os fundamentos são frágeis. Embora as oito “dimensões do conhecimento” (ver pág. 178 a 180)
marquem o principal avanço da BNCC-EF, pouco ajudam a elucidar as noções de “experiência” e “fruição” (e também “vivência”),
exatamente porque não há um marco teórico que as sustentem. Ora parecem sobrepostas, ora se tenta diferenciá-las. Está
confuso. Reconheço todavia o mérito de trazer à cena o tema da “experiência” (este é o conceito-chave), também pouco estudado
na EF, como o da linguagem.

Novamente a influência da praxiologia motriz de Pierre Parlebas, de matriz estruturalista - em que interessa mais o jogo que o
jogador, a “lógica interna” da atividade que a experiência do sujeito – nos ajuda a entender a fragilidade das noções de
experiência e fruição que permeiam a BNCC-EF. Especificar exatamente o que o sujeito aprende não é tão importante nesta
perspectiva, a qual pressupõe que “experimentar” ou “fruir” (o que *s professor*s de EF costumam chamar de “vivenciar”) é
bastante. Assim, por exemplo, vivenciar um jogo de cooperação já seria suficiente para aprender a cooperar, porque a
cooperação seria inerente à lógica interna da atividade. Ou seja, interessam as propriedades intrínsecas do jogo, luta, esporte
etc., não a experiência concreta dos sujeitos (alun*s) que jogam, lutam etc. E isso se reflete no modo como foram redigidos muitas
das “Habilidades” propostas na BNCC-EF do ensino fundamental.

Quer dizer, a estrutura dos “objetos de conhecimento” (termo utilizado pela BNCC-EF), suas lógicas internas, impuseram-se às
subjetividades, exatamente onde a EF mais poderia preservar-se da abordagem “gerencialista-empresarial” da BNCC em geral. A
emoção, o desejo, o sentimento, a tríade sentir-pensar-agir que permeiam os processos de aprendizagem nas aulas de EF não
estão ausentes na BNCC-EF, mas ficaram à sombra.

Felizmente, a BNCC-EF não é mesmo um currículo, pois se tentasse indicar os caminhos didático-metodológicos (o “como”) com
seus frágeis pontos de partida, mais atrapalharia que ajudaria as escolas e professor*s.

Contabilizei também os substantivos e “expressões substantivadas” presentes nas “Habilidades” 1º ao 5º ano. Eles tende a
indicar os “conteúdos” (é o “o que”). Mas falarei disso em outra oportunidade.

As duras e consistentes críticas formuladas por várias associações educacionais, bem como por eminentes pesquisadores da
área pedagógica, me fazem concluir em relação à BNCC em geral que “ruim sem ela, pior com ela”. Mas em relação à BNCC da
Educação Física, diria que “ruim com ela, pior sem ela”, apesar das fragilidades e omissões. Em primeiro lugar, evidentemente,
porque seria um enorme retrocesso se a BNCC não incluísse a Educação Física. Segundo, porque ela apontou algumas boas
direções, caminhos que ainda precisam ser trilhados. Em suma, a BNCC-EF ainda precisa ser construída. Só temos um esboço.

Espero que seus autores e autoras (especialistas convocados, dentre os quais encontram-se alguns que muito prezo e respeito)
sejam suficientemente humildes para reconhecer isso, muito embora esta 3ª versão tenha sido conduzida por outra equipe, agora
sob o governo Temer, o que por si só já deve nos deixar (mais ainda) alertas.

(Bauru, 01/05/2017)

Link da BNCC-EF: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/pdf/4.1.3_BNCC-Final_LGG-EF.pdf

***

Post-scritptum: se você vai imprimir a BNCC, prepare para “forçar a vista”, e esteja com os óculos em dia, se for o caso! A fonte
de cor cinza médio dificulta a leitura. A versão anterior era mais generosa com os olhos do leitor.

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