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Oficina de costura da Mocidade Independente de Padre Miguel, 1993

MARIA LAURA
VIVEIROS
DE CASTRO
CAVALCANTI
é professora
do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais
da UFRJ.
M A R I A L A U R A V I V E I R O S D E C A S T R O C A V A L C A N T I

A cidade
eo

samba
I
dentidades são mais referên- Os números impressionam e atestam um
cias do que definições. Aproxi- sucesso que tem desafiado solenemente as
mativas e incompletas, são pro- previsões negativas dos puristas. A Passa-
cessos em curso com inúmeras rela do Samba, o popular Sambódromo, que
mediações simbólicas entre os abriga nas noites de domingo e segunda-
sujeitos e seus contextos de existência. No feira o desfile do grupo especial, comporta
Rio de Janeiro, ao longo do século XX, o mais de sessenta mil lugares. Cada grande
desfile carnavalesco das escolas de samba escola desfila com três mil a cinco mil com-
estabeleceu-se como um mediador central ponentes. Isso significa um evento que reú-
na construção de identidade da cidade. Esse ne nessas duas noites cerca de trezentas mil
poderoso dispositivo ritual, a um só tempo pessoas no local, sem computar a gigantes-
agonístico e festivo, trouxe as escolas de ca infra-estrutura mobilizada: o pessoal de
samba da marginalidade ao centro da festa, serviços e segurança, a imprensa falada, es-
relacionando o comunitário ao espetacu- crita e televisiva com seu público, os cama-
lar, a tradição oral à cultura de massa. rotes especiais de merchandising e o pes-
Nesse rumo avassalador, que parece soal de apoio das próprias escolas.
aliás ter chegado nesse fim de século a um Essa forma atual, espetacular e monu-
termo, o desfile não só tornou-se hege- mental, resulta de uma longa evolução.
mônico no carnaval carioca, como espraiou- Categorias tipificadoras da cultura, tais
se pelo país e ganhou fama internacional. A como folclore, cultura popular, cultura eru-
tradição antropológica clássica compreen- dita, cultura de massas, são incapazes de
de os grandes rituais coletivos como portas compreender o desfile. Fato social total,
de entrada privilegiadas para a análise das volume e não superfície, o desfile é um
sociedades. Neles encontraríamos presen- processo sociocultural amplo. Suas múlti-
tes seus principais atores, seus conflitos e plas dimensões, suas conexões surpreen-
valores centrais. Atenho-me aqui a essa dentes, falam da heterogeneidade da soci-
estreita vinculação estabelecida entre o edade urbana contemporânea. Extensas
desfile e a cidade de modo a sugerir seu redes de relações, intensas trocas so-
sentido sociológico e cultural (1). cioculturais, permanências e inovações que
O desfile das escolas de samba é uma acompanharam a passagem do tempo his-
competição carnavalesca escalonada em tórico estão na base de sua vitalidade.
quatro grupos, dentro dos quais as escolas
disputam o título de campeã. A vitória em
um grupo garante a ascensão ao grupo su- BREVE HISTÓRIA DO DESFILE
perior no ano seguinte, o último lugar sig-
nifica o rebaixamento. No topo dessa hie- O surgimento das escolas de samba, na
rarquia está o Grupo Especial, com as segunda década do nosso século, corres-
dezesseis escolas que concentram as aten- ponde a um vasto processo de interação
ções gerais, cujo campeonato corresponde entre grupos e camadas sociais diferencia-
simbolicamente à luta pela vitória no car- dos. Na feliz expressão do folclorista Edison
1iiiiRemeto o leitor também a meu naval da cidade. Carneiro, uma escola “é o samba quando
livro Carnaval Carioca: dos Bas- ele desce o morro”. Suas bases enraízam-
No desfile as escolas narram, através do
tidores ao Desfile (Rio de Janei-
ro, Ed. UFRJ/Funarte, 1995). samba-enredo, alegorias e fantasias, um se nos morros e subúrbios cariocas, entre
2iiiiO jogo do bicho é um jogo de enredo renovado a cada ano. A beleza plás- as camadas mais pobres da população,
apostas clandestino que tica e a vitalidade musical do evento movi- notadamente os segmentos negros e mula-
correlaciona uma série numé-
rica e uma série animal. Muito mentam muitos milhões de reais e milhares tos, que brincavam o carnaval com seus
popular na cidade, o jogo sur-
giu em fins do século passado.
de pessoas entre grupos sociais diversos: blocos. Esses blocos transformaram-se gra-
A sua aparente inocência en- do meio popular extenso e díspar das esco- dualmente, adotando elementos das formas
cobre uma vasta rede de
criminalidade, violência e pos- las de samba aos meios de comunicação de carnavalescas que dominavam o carnaval
sível (embora até hoje não massa, do poder público ao poder paralelo de então: os ranchos e as grandes socieda-
comprovada judicialmente) li-
gação com o tráfico de drogas. do jogo do bicho (2). des. O enredo, que traz consigo a forma

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narrativa linear e processual, as alegorias, ouro” das escolas. Com a proibição dos
o mestre-sala e a porta-bandeira são com- jogos de azar pelo governo Dutra em 1946,
ponentes que vêm participar decisivamen- esse jogo expande-se enormemente na clan-
te da configuração estética e dramática das destinidade, acompanhando o crescimento
escolas de samba. Nesse contexto emerge das áreas periféricas da cidade. Os donos
gradualmente o samba-enredo, subgênero das bancas de bicho sempre “honraram a
do samba urbano que surge e se expande palavra dada”, pois o controle das apostas
na mesma época (3), e se define o ritmo requeria a confiança do apostador. Com o
original do cortejo marcado por poderosa enriquecimento do bicheiro, essa relação
percussão. transforma-se em patronagem: ajuda pes-
Na primeira metade do século, a cidade soal e benfeitorias públicas em troca da
do Rio de Janeiro foi palco de intenso pro- lealdade da população (5).
cesso de invenção, imitação e troca cultu- A expansão da rede do jogo do bicho na
ral entre segmentos populares e outras ca- cidade preencheu, dessa forma, os vazios
madas sociais (4). Na década de 1930, es- administrativos deixados pelo poder públi-
colas de samba como a Portela, comandada co. Enraizando-se em seus territórios de
pelo banqueiro de jogo do bicho Natal, já ação, neles encontrou os clubes de futebol
contava com artistas das grandes socieda- e as escolas de samba. Conforme se demar-
des para a confecção de seu carnaval (Bar- cavam, na cidade, as grandes áreas
bosa e Santos, 1989). O exemplo citado territoriais de atuação de cada banqueiro,
nos traz uma outra presença tão iniciava-se o relacionamento mais estreito
perturbadora quanto marcante nesse cená- entre o “banqueiro” de um determinado
rio sociológico: o jogo do bicho. território e as agremiações nele sediadas.
Vários processos paralelos se entrecru- A década de 1950 marca o término da
zam no carnaval da cidade. Entre eles es- fase de estruturação das escolas, e a década
tão, de um lado, a expansão desse meio seguinte configura com nitidez o cenário
popular heterogêneo expressa no crescente da segunda metade do século. A base soci-
sucesso e na organização associativa inter- al das escolas prossegue sua ampliação com
na das escolas de samba. De outro, o de- a entrada maciça das camadas médias, in-
senvolvimento da associação entre o jogo cluindo a presença cada vez mais notória
do bicho e o meio popular e por extensão de cenógrafos e artistas plásticos na produ-
carnavalesco. ção do desfile. A relação entre o jogo do
O caminho é célere. Segundo a tradição bicho e as escolas de samba modifica gra-
oral, o primeiro desfile data de 1931. Em dualmente seu caráter. Essa forma peculiar
3iiiiVer a esse respeito Hermano
1932, o evento é noticiado nos jornais lo- de mecenato artístico assume formas cada Vianna (1995).
cais; em 1933, passa a integrar a programa- vez mais ostensivas e generaliza-se entre 4iiiiEsse percurso já foi muito nar-
ção carnavalesca oficial; em 1934, as esco- as grandes escolas de samba na década de rado como uma história seja
da cooptação das camadas
las fundam a União Geral das Escolas de 1970, dominando o carnaval carioca nas populares, ou, na visão opos-
ta, da resistência das mesmas
Samba. Em 1935, passam a receber, como décadas seguintes (6). frente às elites e camadas
os grupos carnavalescos preexistentes, sub- Vale mencionar também a irreversível médias. Creio que resistência
e cooptação são partes inte-
venções governamentais para seu desfile. comercialização do desfile. Em 1962, com grantes de uma mesma histó-
Em 1947, fundam-se outras duas associa- a construção de arquibancadas na avenida ria que não é teleologica-
mente regida pela dominação.
ções: a Federações das Escolas de Samba Rio Branco, inicia-se a venda de ingressos
5iiiiVer a esse respeito Pereira
e a Confederação das Escolas de Samba. ao público e a procura, muitas vezes dra- de Queiroz (1992).
Em 1952, as três organizações fundem-se mática, por parte das escolas, de um lugar
6iiiiCabe notar que esse padrão
num único órgão, a Associação das Esco- adequado para o seu carnaval. Em 1975, atravessa incólume o episó-
dio da prisão dos principais
las de Samba. modifica-se a relação estabelecida entre “banqueiros” de bicho sob
Quanto ao jogo do bicho, desde os prefeitura e escolas através da recém-cria- acusação de formação de
quadrilha, em 1993, pela juíza
primórdios seus banqueiros estavam entre da Riotur (Empresa de Turismo do Muni- Denise Frossard. No carna-
os colaboradores, pequenos comerciantes cípio do Rio de Janeiro, de capital misto): val de 1997, todos eles já
soltos permanecem à frente
e empresários que assinavam o “livro de da habitual subvenção passa-se à assinatu- de “suas” escolas.

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Seu Tião, chefe ra de um contrato de prestação de serviços. do jogo do bicho no Rio de Janeiro (8). De
da ferragem Nessa mesma época, os sambas-enredo co- sua fundação até o momento presente, essa
da Mocidade meçam a ser gravados em disco comercial, associação tornou-se a representante ofici-
e um pouco mais tarde, em 1983, a Associ- al das escolas do Grupo Especial e o prin-
Independente de
ação das Escolas de Samba assina o pri- cipal interlocutor e parceiro da Prefeitura e
Padre miguel
meiro contrato com a televisão para a trans- da Riotur na organização do desfile carna-
missão do desfile. valesco desse grupo.
A construção da Passarela do Samba No coração da cidade, no centro de sua
em 1984 coroa essa evolução, e represen- principal festa, lado a lado com a enorme
7iiiO Sambódromo foi construído ta o reconhecimento e a extraordinária am- força cultural criativa e receptiva da popu-
em 1984 no governo de Leo-
nel Brizola tendo à frente da pliação do potencial econômico dos des- lação carioca, emerge uma ferida exposta à
Secretaria de Cultura o antro-
pólogo Darcy Ribeiro. O pro-
files (7). Significativamente, em meados luz do sol. O desfile das escolas de samba
jeto é do arquiteto Oscar de 1984, ou seja, imediatamente após a é, nesse sentido, uma espécie de síntese
Niemeyer. No restante do
ano lá funciona uma escola construção da Passarela, um grupo de dez simbólica – heterogênea e conflitiva – de
pública, e a praça, situada no dentre as grandes escolas de samba sepa- diferentes processos que atravessaram a
final da pista de desfile, serve
de palco para diversos shows ra-se da Associação, até então órgão re- vida urbana ao longo do século.
promovidos pela prefeitura.
presentativo de todas as escolas de samba É fundamental entretando ressaltar um
8iiiiAs escolas são: Mocidade In- da cidade, criando a Liga Independente outro aspecto, mais estrutural, dessa discus-
dependente de Padre Miguel,
Beija-Flor de Nilópolis, Uni- das Escolas de Samba (Liesa, ou simples- são. A relação do desfile com a cidade e seus
dos de Vila Isabel, Portela,
Império Serrano, Imperatriz
mente Liga). habitantes é mediatizada por processos sim-
Leopoldinense, Caprichosos A Liga organiza desde então, em parce- bólicos e artísticos que embasam sua pujan-
de Pilares, Salgueiro, União da
Ilha do Governador, Manguei- ria com a Riotur, o desfile do Grupo Espe- ça quase secular. Há um trabalho irredutível
ra. Se nem todas são escolas cial. Entre idealizadores e representantes e inerente ao rito que permite que tantas sig-
“de patrono”, os patronos li-
deram a articulação. de escolas filiadas, a Liga reuniu a cúpula nificações se agreguem à sua volta.

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O CICLO ANUAL DO DESFILE São uma forma extraordinária de arte po-
pular. Se quisermos, impuras e profunda-
A produção de um desfile se inicia mal mente humanas, na medida em que recep-
terminado o carnaval do ano anterior, e seu tivas às mais diversas influências e leitu-
ciclo corresponde à gradual transformação ras, e na medida em que o processo de sua
do enredo em samba-enredo, fantasias e criação é perpassado por poderosos confli-
alegorias. Um extraordinário processo cri- tos. Mas certamente arte.
ativo, do qual participam gêneros artísticos Sua relevância no desfile resulta, como
distintos, como a música, a dança e as artes vimos, do longo processo de inovações que
plásticas, abriga-se no seu bojo. De tal modo caracteriza a história das escolas de samba
que, ao longo do ano, conforme esses com- desde sua origem. A inovação nunca ocorre
ponentes expressivos vão tomando forma, de forma isolada, mas sempre se sobressai
uma vasta rede de relações sociais é incor- em algumas escolas de samba. Ela é tam-
porada por essa marcha festiva. bém apenas um dos lados da moeda: bem-
Os componentes expressivos do desfile sucedidas em seu desfile, essas escolas atra-
podem ser designados pelas categorias ge- em para si a atenção do público e das demais
néricas de Visual e Samba, noções que os escolas, tornando-se logo uma referência
englobam e relacionam. A categoria Samba para o rápido processo de imitação que dis-
refere-se a formas inclusivas e abertas de semina rapidamente a novidade.
expressão corporal como o canto, a música, Isso posto, a escola de samba Portela é
a dança. O ritmo de uma bateria contagia; consensualmente mencionada como res-
um samba-enredo deve idealmente ser can- ponsável pelas principais inovações ocor-
tado por todos, desfilantes e platéia; a evo- ridas no meio carnavalesco entre as déca-
lução dançante das alas, que responde ao das de 1930 e 1950. A atuação de Paulo da
ritmo e à música, é também idealmente Portela na estruturação das escolas de sam-
acompanhada pelo movimento dançante que ba é especialmente notável (Barbosa e San-
confere por vezes à platéia o aspecto de um tos, 1989). Destacam-se a adaptação ar-
baile de carnaval. tística dos elementos dos ranchos, a ino-
Ao mesmo tempo, a visualidade das vação rítmica e coreográfica do samba e o
grandiosas alegorias, das fantasias, da co- estabelecimento da disciplina como indis-
reografia da comissão de frente, do balé do pensável ao sucesso. Paulo da Portela
mestre-sala e da porta-bandeira é um con- queria que as escolas pudessem desfilar
vite a outra forma de participação: a admi- sem a perseguição da polícia, e que elas
ração e o extasiamento. A idéia de Visual ascendessem à grande atração do carna-
refere-se a esse outro aspecto estruturante val da cidade. Já na década de 1930, a
do desfile. Portela procurava atrair componentes de
O desfile é, por essa razão, a um só tem- fora de Oswaldo Cruz e de outros grupos
po festa e espetáculo. Essa tensão entre duas sociais. A confecção de suas alegorias e
formas de participação – sambar e ver/brin- fantasias, em especial, já se organizava de
car e admirar – está no cerne de sua forma forma centralizada, valorizando compe-
estética. As alegorias e os sambas-enredo tências específicas. Todas as grandes es-
são representativos dessa dualidade. colas da época tiveram personagens seme-
lhantes que foram, nos termos de Barbosa,
“traços de união entre duas culturas” e abri-
AS ALEGORIAS ram, entre outras coisas, o espaço para o
E O CARNAVALESCO desenvolvimento das alegorias no desfile.
A década de 1960 trouxe para o desfile
As alegorias são formas espaciais – um conjunto de inovações plásticas e
estruturadas, organizadas, ordenadas – cri- temáticas, à frente do qual estava um gru-
adas para serem vistas e, no caso do carna- po de artistas ligados à Escola de Belas
val, integralmente consumidas nesse ato. Artes, liderado por Fernando Pamplona e

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Arlindo Rodrigues na escola de samba do Teatro Municipal, foi jurado nesse ano.
Salgueiro. Na verdade, impulsionadas pela No ano seguinte, integrava a equipe para a
natureza competitiva do desfile, as esco- confecção do carnaval da escola com o casal
las já vinham caminhando na direção des- Nery, Nilton Sá e Arlindo Rodrigues. O
sas inovações. grupo inovou a temática dos enredos e o
Desde 1954, o Salgueiro contava com a uso de materiais carnavalescos. Ao longo
participação do artista Hildebrando Moura, da década de 1960, a ele se incorporariam
que trabalhara anteriormente com as gran- alguns dos principais carnavalescos das dé-
des sociedades. Em 1959, a escola chama- cadas subseqüentes, tais como Maria
ra o casal de artistas Marie Louise Nery Augusta Rodrigues, Rosa Magalhães,
(suíça que trabalhara com folclore no Mu- Joãosinho Trinta.
seu de Etnologia de Neuchâtel) e Dirceu Fernando Pamplona e Arlindo Rodri-
Nery (pernambucano, cenógrafo e bailari- gues eram cenógrafos no Teatro Municipal
no de frevo) para a confecção de seu carna- e Joãosinho era bailarino. Em 1974, com a
val. Ambos entusiasmaram-se com a idéia saída dos dois que foram “fazer a Mocida-
Detalhe de “misturar a escola de samba com Teatro de”, Joãosinho ficou como carnavalesco do
do mosquito Municipal [...] levar o espírito do espetácu- Salgueiro. Joãosinho esclarece: “Na ver-
para orientação lo para a escola de samba”. A confecção do dade, naquela época ainda não existia a fi-
desfile, que não usou carros alegóricos, re- gura do carnavalesco, nós éramos artistas
da escultura em
velava contudo uma visão cenográfica, co- que ajudavam, porque ainda nesta década a
isopor. Mocidade
reográfica e cromática, reproduzindo ao figura principal do carnaval era o Diretor
Independente vivo cenas de Debret. Fernando Pamplona, de Harmonia”. A seu ver, o carnaval de
de Padre Miguel, professor da Belas Artes, que já participa- 1974, quando a escola de samba Beija-Flor
1993 va da decoração dos bailes carnavalescos de Nilópolis leva para o desfile o seu enre-

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do sobre a invasão francesa no Maranhão –
“O Rei de França na Ilha da Assombração”
–, marca “uma mudança muito grande em
termos do visual”. Com base em “sua vida
na ópera”, Joãosinho explora “a profunda
relação que existe entre os componentes de
uma ópera e os componentes das escolas de
samba”. Teria se consolidado a partir de
então “uma nova noção de harmonia de
escola de samba, não a harmonia melódica,
mas a harmonia geral [...]” (9).
Essas histórias revelam o decisivo pa-
pel de mediação cultural exercido pelos
carnavalescos. O papel expressivo das
alegorias no desfile cresceu em decor-
rência da abertura das escolas de samba
para concepções estéticas e dramáticas
desenvolvidas em outros meios culturais.
O sucesso dessas atuações repousa no fato
de que as inovações propostas eram com-
patíveis com a estrutura dramática já
sugerida pelas escolas. Ao mesmo tem-
po, o talento desses carnavalescos incluía
também a capacidade de verbalizar, de
forma por vezes muito sistemática, o pro-
cesso social do qual participavam. Os
carnavalescos são intelectuais, muitas se relato como o artista-mor de um desfi- Detalhe
vezes com claras propostas de atuação na le, em função do papel central de media- do croqui do
“cultura popular”. ção cultural, é fundamental entender não carro alegórico
Esse sentido teatral de harmonia, fruto só todo o carnaval como um intenso pro-
"Mosquitada
de várias décadas de interação entre ní- cesso de trocas culturais, como também
Desvairada"
veis distintos de cultura, impulsionou a entender as alegorias como uma forma de
evolução das escolas nas últimas décadas arte coletiva. do carnavalesco
e está na base da primazia do visual e do Concebido pelo carnavalesco, o pro- Renato Lage
tipo-ideal do personagem do carnavales- cesso de criação realiza-se num galpão –
co, tal como hoje entendido: aquele que, “o barracão” – geralmente situado nas ime-
além de conceber, realiza um enredo, tor- diações do centro da cidade de modo a
nando-se uma espécie de “diretor geral” favorecer o transporte das alegorias para
de um espetáculo, ou de “maestro” de uma o sambódromo no dia da festa. No barra-
“orquestra” ao coordenar a preparação das cão reúne-se em torno de um objetivo
várias partes de uma escola para o desfile. comum uma equipe de especialistas e aju-
A cada uma dessas inovações corres- dantes comandada pelo carnavalesco.
pondeu a ascensão de “novas” escolas à Todo carro alegórico obedece à mesma
condição de campeãs, a quebra de um ordenação. Sua estrutura é feita em ferra-
padrão de vitórias e a ampliação do grupo gem, montada sobre eixos aproveitados de
das “grandes”. Significativamente, tam- caminhões, com tantas rodas quantas ne-
bém, por trás da atuação dos principais cessárias para um movimento equilibrado.
carnavalescos está o mecenato e a patro- Uma vez prontas, as ferragens são forradas
nagem dos principais banqueiros do jogo de madeira, elemento que participa tam-
do bicho na cidade. bém muitas vezes do cenário. Sobre essa
9iiiiEntrevista concedida a Gui-
Apesar de o carnavalesco emergir nes- base erguem-se então as grandes escultu- marães (1992).

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ras em isopor ou fibra de vidro. As escultu- val traz respostas controversas na biblio-
ras são o elemento expressivo central dos grafia. Alguns citam o ano de 1933, e a
carros, e apenas depois de seu posiciona- Unidos da Tijuca como responsável pelo
mento se inicia a decoração, com os mais primeiro samba-enredo. Outros reivindi-
diversos materiais: tecidos, plásticos, cam a glória para a Mangueira nesse mes-
acetatos, pintura, espelhos. Quando é o caso, mo ano. Outros ainda atribuem o feito à
instalam-se nessa última fase os mecanis- Portela, em 1938, com um samba de
mos previstos para movimento e ilumina- Antenor Gargalhada. Os portelenses, por
ção, e posiciona-se o volante para a direção sua vez, consideram o samba de Paulo da
das rodas. Portela, do desfile em 1939, como primei-
O trabalho num barracão alinha dessa ro samba-enredo.
forma as diferentes etapas de confecção Deixando de lado o mérito pessoal da
numa seqüência temporal – ferragem, mar- inovação, essas informações indicam cla-
cenaria, escultura e moldagem, decoração, ramente a década de 1930 como início da
vidraçaria e mecânica. Como são muitos os vinculação do samba ao tema do desfile.
carros, essas sucessivas etapas terminam No entanto, a denominação samba-enredo,
sempre por coexistir. O início do processo indicativa da generalização dessa
é moroso, e só por volta do mês de outubro, vinculação, data da década de 1950. O apa-
na medida em que aumenta o número de recimento do termo e a crescente impor-
carros em confecção, encontra-se a presen- tância do quesito na competição carnava-
ça simultânea das diferentes especialida- lesca decorrem certamente da evolução
des no barracão. formal do desfile, da progressiva
A proximidade do carnaval confere a estruturação das escolas no sentido de en-
um barracão o ritmo febril que o singulari- cenar dramaticamente os seus enredos por
za. Depois da passagem do ano, quando as meio de seus componentes expressivos.
festas do ciclo natalino se encerram, está Até a década de 1950, os sambas-enre-
dada a partida da ansiosa contagem regres- do tematizavam versões “oficiais” da his-
siva que rege a fase final e decisiva do tra- tória e do folclore do país. Como se suas
balho. Os carros, que vão ganhando sua letras duplicassem com palavras a eleição
dimensão expressiva, tornam o ambiente do samba como ritmo musical caracteristi-
especialmente bonito. No fluxo narrativo camente nacional, eles propõem também
linear do desfile, pontuarão alegoricamen- visões simbólicas da nacionalidade.
te tópicos do enredo. Imensos, extrapolam Na década de 1960, a tônica da aborda-
finalmente os limites do barracão rumo a gem foi significativamente alterada com a
seu destino: o uso e a fruição coletiva e introdução de visões alternativas, entre elas
ritual no carnaval. especialmente a temática negra de inspira-
ção “afro”. A grande inovação foi a atribui-
OS SAMBAS-ENREDO ção de poder simbólico a personagens ne-
E OS COMPOSITORES gros da história nacional – Chico-Rei, Chica
da Silva, Zumbi dos Palmares – vinculan-
Os enredos carnavalescos e os sambas- do esse poder à origem africana. O perso-
enredo deles decorrentes surgem, um como nagem do carnavalesco e inovações estéti-
tipo de texto e o outro como um subgênero cas associadas à ênfase no visual acompa-
musical do samba, ao longo da história das nharam como já vimos essa transformação.
escolas de samba no Rio de Janeiro. Do A partir de 1970, o universo temático se
aparecimento das sinopses de enredo pou- amplia ainda mais com a introdução de
co se fala, sobre o samba-enredo, há mais temas oníricos. Nos dias de hoje, os enre-
informações na bibliografia de cronistas e dos abordam os mais diferentes assuntos, e
pesquisadores da cultura popular. “a raiz e/ou influência da cultura brasilei-
A pergunta sobre quem lançou o pri- ra” anteriormente exigidas são cada vez
meiro samba-enredo da história do carna- mais amplamente entendidas.

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Os enredos e sambas-enredo do carna- qual idealmente um parceiro compõe a letra
val são, desse modo, um lugar de ampla e o outro a melodia, cerca de trinta sambas
circulação de idéias, onde ecoam e se se inscrevem anualmente nesse concurso.
reinterpretam os mais diversos tópicos do Os compositores são por definição con-
imaginário social nacional. Ao mesmo siderados “a parte consciente, os intelectu-
tempo, os sambas-enredo devem ser en- ais da escola, quem pode denunciar, resis-
tendidos enquanto integrantes do ciclo tir, dar voz a tudo que se fala. Compositor
anual do desfile. de samba-enredo é voz do povo, da comu-
O processo de sua confecção é dos mais nidade”. “Safos”, são portanto por defini-
interessantes. O carnavalesco elabora ge- ção vistos como dotados de “alguma con-
ralmente mais de uma possibilidade de dição intelectual”. O ingresso em sua ala é
enredo, e em negociação com a diretoria geralmente bem mais controlado do que
da escola termina por explorar uma delas nas demais e eles constituem também o
com base em pesquisa bibliográfica. A primeiro grupo da escola a ser diretamente
partir do enredo proposto, cada escola incluído no ciclo de um desfile.
realiza uma competição interna entre os Por volta do mês de junho, sua entrada
meses de julho e novembro para a escolha em cena é ritualizada na quadra das esco-
de seu “hino” no desfile. las com a transmissão do enredo a eles por
A ala de compositores de uma grande parte do carnavalesco. Esse primeiro mo-
escola tem geralmente cerca de sessenta vimento do enredo na seqüência anual do
componentes. Como a forma mais freqüen- desfile corresponde a uma mudança am- Seu Ilson, chefe
te de composição do samba é a parceria, na pla no nível da comunicação. O samba- da marcenaria

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enredo é um gênero musical de encomen- em alguma rodada; algumas vezes “sai
da e sua letra é elaborada a partir de um tiro na quadra”. Muitas vezes também
universo semântico e sintático prees- aflora a presença da rede local do tráfico
tabelecido na sinopse do enredo proposta de drogas, com o patrocínio mais ou
pelos carnavalescos. Nessa noite, o carna- menos explícito de algum dos sambas
valesco apresenta verbalmente o enredo concorrentes.
com seus diversos tópicos aos composito- Entretanto, com a definição do samba
res. A partir dessa base de significação, os campeão, todos os demais se calam e to-
compositores deverão compor seus sam- das as vozes devem cantá-lo, e apenas a
bas. Para ser vertido em letra e música, ele. A escola cerra suas forças, acabam-se
esse enredo proposto é, por sua vez, obje- idealmente as rivalidades internas (10). A
to de pesquisa e interpretação por parte arena ampliou-se: trata-se agora de com-
dos compositores. petir com as demais escolas no carnaval
O momento é especialmente tenso, e da cidade.
todos têm clara consciência de sua impor-
tância. Nessa passagem “pode-se perder
ou ganhar um carnaval”. Carnavalesco e CONCLUSÕES
compositores ocupam lugares fundamen-
talmente diferentes nesse grande proces- O breve exame da história e do papel
so de criação coletiva e confrontam-se no das alegorias e sambas-enredo no desfile
momento da transmissão do enredo. Não das escolas de samba revela de modo sin-
há obviamente homogeneidade cultural tético o caráter agonístico da intensa troca
entre os compositores; esses funcionários cultural característica do carnaval. Essa
dos serviços públicos da cidade, profissi- heterogeneidade posta em comunicação
onais liberais, militares, operários e tra- por meio de processos simbólicos amplos
balhadores no mercado informal são tam- permitiu que o defile acompanhasse o cres-
bém extremamente diferenciados entre si. cimento da cidade.
Mas enquanto sambistas, ainda que en- Ao longo dos anos, o desfile uniu, de
volvidos numa acirrada disputa, o grupo certo modo, o morro ao asfalto, os subúr-
percebe-se como homogêneo por oposi- bios às áreas centrais da cidade, as zonas
ção aos demais segmentos da escola e ao norte e oeste à zona sul. Entre a era do
carnavalesco. Na geografia simbólica das rádio (1930-40), a da televisão (1960-70)
escolas de samba, compositores estão e a dos esfeitos especiais (1980-90), sou-
“dentro” e carnavalescos “fora”. Essas be manter-se contemporâneo. Num pri-
categorias, relacionais e relativas, não meiro momento sua popularização cami-
indicam qualquer essência cultural, mas nhou junto com a de um gênero musical
são reveladoras da percepção nativa de então recentemente cunhado – o samba e
diferenças culturais. seu ritmo característico; algumas décadas
Assim é que a comunicação se estabe- depois os aspectos visuais, presentes des-
lece com esforço, muita tensão, incom- de a origem, ganham ênfase: ao samba-
preensões e tolerância mútuas. A partir enredo se acrescentam as esplendorosas
da data dessa transmissão, inicia-se um alegorias.
período cercado pelo segredo e pelo sigi- Ao longo dos anos, o desfile trouxe
lo, uma fase em que “todo mundo está também, para o centro da principal festa
escondendo o samba”, até o dia da sua da cidade, o poder da clandestinidade ex-
apresentação pública na quadra da esco- presso no papel hoje nitidamente
la. Inicia-se então o longo ciclo da com- hegemônico do jogo do bicho na sua orga-
petição interna. O período é de muito nização. Se é verdade então que o desfile
nervosismo. Sempre há algum composi- revela a cidade, essa extraordinária inver-
tor muito chateado e prometendo afas- são ritual torna-o também a fonte de um
10 Ver a esse respeito também
Goldwasser (1975). tar-se da escola em função de sua derrota orgulho paradoxal.

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