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Artigo

Revertendo imagens estereotipadas


Por Janaína Damasceno
09/04/2008

As imagens que constituem nosso imaginário sobre os países africanos são formadas
por estereótipos reproduzidos intensamente desde o período colonial. Filmes
como Tarzan, Os deuses devem estar loucos ou As minas do rei Salomão apresentam o
continente como selvagem, atrasado e sem história. A maior parte desses filmes foi
produzida por cineastas estrangeiros. Muitos tinham a intenção de documentar a vida e
os hábitos africanos através de documentários etnográficos produzidos, principalmente,
entre as décadas de 1930 e 1950 como uma espécie de inventário sobre o
comportamento dos povos africanos. Mas se para o ocidente ver filmes sobre África
servia como conhecimento de um continente “inóspito” e “distante”, os colonizadores
europeus faziam o uso de imagens como meio de “domesticar” e “civilizar” os povos
colonizados. Filmes em que se ensinava como era o comportamento dos ocidentais e
como africanos deveriam reproduzir esse comportamento para se civilizarem eram
distribuídos pelos escritórios britânicos e franceses mostrando como o cinema não era
apenas um meio de diversão, mas era também imbuído de uma tarefa civilizatória.

Dentro desse contexto, a produção cinematográfica africana conduzida por realizadores


africanos era inexistente. Foi apenas com o vislumbre das independências que africanos
passaram a ter direito de produzirem seus próprios filmes, falando de assuntos
pertinentes à sua realidade e à sua fantasia. É no limiar das independências também
que cineastas europeus começaram a produzir filmes anticolonialistas, como As estátuas
também morrem (1955) de Alain Resnais (diretor de Hiroshima, mon amour) e Chris
Marker em que criticavam a pilhagem da arte africana pelos museus europeus (a sua
exibição foi proibida na França durante 10 anos) ou, o mais recente, Der Leone hat sept
cabezas (O leão tem sete cabeças), de 1970, em que Glauber Rocha crítica a razão
colonial européia.

Os primeiros filmes produzidos e dirigidos por cineastas africanos narravam suas difíceis
experiências nas metrópoles coloniais onde vivenciavam o choque com a descoberta do
racismo, o desprezo e o mercado de trabalho. L'Afrique sur Seine de Paulin Soumanou
Vieyra (1955) é um exemplo desse caso. Apesar de ser um filme africano, foi gravado
em solo europeu e analisa os costumes em relação à presença negra africana na
Europa. Touki-Bouki (1973) de Djibril Diop Mambéty (Senegal), Le Soleil (1969) de Med
Hondo (Mauritania) e La noire de…(1966) de Ousmane Sembène (Senegal) tocam no
mesmo tema, ainda hoje caro ao cinema africano das mais distintas nacionalidades.

No Brasil, infelizmente, há pouco acesso à diversidade da filmografia africana. Talvez o


filme mais conhecido seja o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em
2006, Infância roubada (Tsotsi, 2005), do sul-africano Gavin Hood que fala sobre a
juventude marginal de Johannesburgo. Outro diretor de repercussão é Idrissa
Ouédraogo, burkinese que dirigiu um dos curtas do longa 11 de setembro
(11'09”01) realizado em 2002, em que crianças de Burkina-Faso acreditam ter visto
Osama Bin Laden e tentam capturá-lo para ganhar uma recompensa e comprar
remédios para a mãe doente de um deles. Dos filmes produzidos pelos Palop (Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa) há pouca divulgação e perde-se a oportunidade,
por exemplo, de ver a profícua cinematografia de Flora Gomes, cineasta de Guiné
Bissau. Flora mergulha no mundo guineense, revelando os principais problemas de sua
sociedade através de alegorias, da análise da diáspora africana na Europa ou da relação
entre a tradição e a modernidade como em Nhá Fala (2002), Mortu nega (1988) e Pó di
sangui (1996).
Algumas mostras de cinema africano são produzidas esporadicamente no Brasil como a
Mostra Novo Olhar do Cinema Africano, promovida pela Cinemateca Francesa ou a
Retrospectiva da Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e de Televisão de
Uagadugu/ Burkina Fasso), maior festival de cinema africano, na Mostra Internacional
de Cinema de São Paulo. Quase não há produção acadêmica sobre o tema e a esparsa
bibliografia sobre cinema africano restringe-se à literatura em língua francesa e inglesa
em bibliotecas universitárias – na Unicamp são em torno de 9 livros e alguns artigos ou
entrevistas com cineastas africanos. Lastimável, pois nossa leitura do cinema africano
sempre parece mediada por leituras e análises de segunda mão. Nosso conhecimento
também é pequeno sobre o sistema de produção africano e com isso, nos mantemos
alheios, por exemplo, à criatividade e intensidade da produção da Nolywood nigeriana.

A Nigéria é um dos maiores produtores mundiais de cinema. Segundo a Cahiers du


Cinéma, uma das mais respeitadas revistas de cinema do mundo, em 2004, os
nigerianos produziram em torno de 1200 filmes – o dobro da produção de Hollywood –
arrecadando em torno de US$ 250 milhões, a terceira maior arrecadação mundial, atrás
somente dos americanos e dos indianos. A indústria cinematográfica nigeriana é a
segunda maior indústria do país e perde apenas para a indústria petrolífera. Embora a
cinematografia nigeriana remonte aos anos 1950, foi somente na década de 1990 que
ela ganhou status de indústria: seu surgimento remonta ao cineasta Okechukwu
Ogunjiofor. Camelô, ele notou que se gravasse filmes dentro dos VHS que vendia por 1
dólar, poderia vendê-los pelo triplo do preço. Assim gravou seu primeiro filme, Living in
Bondage, em vídeo e conseguiu vender mais de 750 mil cópias do mesmo. Os atores
eram seus amigos. A distribuição dos filmes é feita por uma rede de camelôs e em
locadoras de vídeo. A indústria de distribuição de cinema na África, assim como na
América Latina é dominada por grandes indústrias internacionais, então o sistema
nigeriano é uma opção que opera contra essa indústria hegemônica. Pode ser irônico,
mas isso se deve sobretudo à globalização que barateou o acesso aos meios de
produção audiovisual.

Grande parte dos filmes de Nollywood trata de “amor, romances, religião, tradição e
crimes”, segundo a cineasta Amaka Igwe em entrevista ao jornal O Estado de S.
Paulo, em 11 de maio de 2006. Esse cinema, conhecido como cinema povo, é baseado
em produções de baixo custo, em torno de 20 mil dólares, financiados por produtores
locais, que vendem em média 100 mil vídeos a 3 dólares. Esse esquema de produção e
distribuição faz o diferencial do cinema nigeriano, que não recebe subsídio do governo e
que agora transcende os limites do seu próprio território: através do canal Africa
Magic pode ser vista 24 horas por dia em toda a África. A história de africanos, contada
por eles mesmos faz sucesso, subvertendo a idéia de que é necessário uma excelência
de qualidade e produções de altíssimo custo para atrair público. Esse tipo de produção
repele a pirataria. Aqui, o fenômeno é estudado por Ronaldo Lemos, advogado e
representante da licença Creative Commons no Brasil. Mas além dos circuitos do povo,
que vêm rapidamente se expandindo, temos um circuito mais tradicional ligado aos
festivais de cinema.

Antes da Nigéria, Burkina Faso era reconhecida como a Hollywood africana. Com mais
de 100 cineastas, cujo principal expoente é Idrissa Ouédraogo, o país montou um fundo
para o desenvolvimento cinematográfico após a independência, além de nacionalizar as
salas de cinemas e abrir uma escola técnica de cinematografia. Em Burkina Faso, como
em muitas partes de África as dificuldades na produção de cinema provêm da escassez
de recursos técnicos para a produção, mas também de dentro de um âmbito político,
pela definição do que seja de fato a missão do cinema africano: fortalecer ou criticar as
tradições. Optar por um ou outro é, para muitos cineastas, motivo para terem seus
filmes qualificados como mais ou menos africanos. Para Ouédraogo, em entrevista à
Lúcia Nagib1 trata-se de notar que “temos tantas coisas para contar sobre o amor, a
vida, sobre a violência, mas coisas também que fazem parte de nossa própria
sociedade, já que a nossa sociedade faz parte da humanidade. Se contarmos essas
coisas com palavras corretas, que nos tocam realmente, os outros nos compreenderão.
Mas se nos fecharmos na nossa especificidade porque é cômodo e os europeus
apreciam, porque é exótico, nunca iremos progredir”  1. Trata-se mais oportunamente de
definir quais são os limites da tradição e da universalidade do cinema africano. Durante
algum tempo essa dicotomia era mostrada através da oposição entre filmes rurais e
urbanos, sendo que a expressão cunhada para designar o primeiro grupo foi “filmes-
aldeia”. Os temas prediletos desses filmes eram os casamentos poligâmicos e questões
de gênero. Nesse quesito, tanto a produção de documentários como a de filmes de
ficção é bastante forte. Veja-se o filme Sambigaza (1972) de Sarah Maldoror sobre
mulheres durante o período da guerra em Angola.

Africanos também já rodaram filmes no Brasil, como A deusa negra dirigido pelo


nigeriano Ola Balogun, em 1979, onde é narrada a história de um intelectual nigeriano
que descobre as tradições afro-brasileiras.

Há uma diversidade de produção de cinema dos países africanos. Talvez seja exagerado
falar de um cinema africano, mas assim como há uma diversidade de países em África,
há lá também uma diversidade na produção de cinema. Países mais expressivos ou
menos expressivos em sua produção, todos tentam, de algum modo, hoje, exprimir-se
pelas imagens em movimento.

Conhecer a África pelos africanos poderia ampliar nosso entendimento, revertendo


imagens estereotipadas de representação e contribuindo para um imaginário mais
amplo sobre o continente. Poderia abrir-nos também para novas experiências e para a
troca de vivências que poderiam nos mostrar novos meios de produção e distribuição de
cinema que vão para além do modelo hollywoodiano.

Janaína Damasceno é filósofa, produtora de cinema e mestranda da Faculdade de


Educação da Unicamp

1
 Revista Imagens, v 8, 1998: p. 114-121

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