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Clássicos Africanos
A primeira geração de cineastas da África do Oeste
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste
Cineastas 74
Filmes 82
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A
s cinematografias dos países da África Subsaariana do Oeste surgiram e
se desenvolveram ao longo, principalmente, das décadas de 1960 e 1970.
Como uma das características fundamentais desses cinemas, visualizamos
intensas articulações e discussões proporcionadas pela disposição dos sujeitos
envolvidos no processo, pelo estabelecimento de políticas públicas em âmbito
nacional e transnacional e pela criação de espaços comuns de articulação e difu-
são, como a Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) e o Festival Pan-Africa-
no de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO). Neste artigo, atentarei-me
às questões de ordem interpessoal durante esse período, visto que um dos impul-
sores fundamentais de toda a história audiovisual africana surge exatamente do
envolvimento e da dedicação da primeira geração de profissionais e cinéfilos dos
cinemas africanos.
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mes, era preciso promover a circulação destas imagens, Logo reconhecida por associações como a Organização da Unidade Africana
fazer com que elas chegassem a um público mais amplo. (OAU) e a UNESCO, a FEPACI teve atuação primordial principalmente nos anos
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Jean Rouch foi responsável pela iniciação de uma longa lista de africanos e afri- Oumarou Ganda continuou dirigindo filmes até sua morte precoce, em 1982, aos
canas na área cinematográfica, entre os quais podemos citar Damouré Zika, Lam 46 anos de idade. Como homenagens póstumas, destacam-se: um importante
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Para tanto, Safi Faye parte, em 1972, para Paris, buscando os meios para estudar para seu primeiro papel como atriz, no média-metragem O regresso de um aven-
tureiro (Le retour d’un aventurier), de 1966. Ela se tornou posteriormente uma das
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ro, de uma ordem particular, falo de As estátuas também ciências sociais. A reação dos cineastas africanos se tradu-
morrem. ziu por uma vontade de superação do retrato etnográfi-
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André Gaudier trabalhou em filmes de Ousmane Sembène (Niaye, O carroceiro e A outra realidade. Na França, a relação com os patrões adquire contornos parecidos
negra de...), Ababacar Samb Makharam (E não havia mais neve...) e Paulin Souma- com a dinâmica colonial, com Diouana perdendo sua liberdade, sendo insultada e
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Em Touki Bouki, a bordo do Ancerville, um senhor diz em francês: “Nunca saímos CHAM, Mabye. Film and history in Africa: a critical survey of current trends and
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ca criativa do cinema africano? In: MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo:
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or que razão a maior parte dos pesquisadores dos cinemas africanos escolhe
África - indústria, política e mercado. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 27-32.
analisar a produção fílmica do continente a partir de uma perspectiva auto-
THACKWAY, Melissa. Africa Shoots Back: Alternative Perspectives in Sub-Saharan ral, pautada na trajetória do cineasta, ou de uma abordagem voltada para a
Francophone African Film. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 2003. discussão de representações, do pós-colonialismo e da dicotomia entre tradição e
modernidade no contexto da cultura africana? O que motiva essas escolhas, além
UKADIKE, Nwachukwu Frank. Black African Cinema. Berkeley e Los Angeles, Califor-
da própria narrativa fílmica? Como bem assinalou Mahomed Bamba, pesquisador
nia: University of California Press, 1994.
dos cinemas africanos no Brasil, “todo filme é portador de seus próprios opera-
dores de leitura/interpretação, enquanto outra parte do processo de interpreta-
ção depende de diversos fatores e determinações contextuais e institucionais”.
(BAMBA, 2013, p. 235). Assim é que ao avaliar os critérios utilizados na construção
Tiago Castro Gomes é Bacharel em Cinema & Audiovisual e Mestre em Comunicação de discursos analíticos sobre filmes africanos, bem como o processo de difusão e
pela Universidade Federal Fluminense, onde desenvolveu pesquisas sobre o cinema consagração dessa cinematografia, percebe-se uma estreita relação com determi-
africano colonial e pós-colonial. Sua área de atuação profissional é a da preservação nadas instâncias mediadoras, especialmente os festivais e a academia. A partir da
audiovisual, tendo trabalhado no Centro Técnico Audiovisual (CTAv), Museu da Ima- reflexão dos principais pesquisadores dos cinemas africanos no Brasil e no mundo
gem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) e Cinemateca do Museu de Arte Moderna do (BAMBA, 2008, 2009, 2010, 2013; BARLET, 2000; DIAWARA, 1992; TCHEUYAP, 2011;
Rio de Janeiro. Desde 2016 trabalha na Cinemateca Brasileira. UKADIKE, 1994), argumentamos que a adoção de diferentes abordagens críticas
parte de um processo de retroalimentação entre essas duas instâncias. Ao funcio-
narem como espaços de comunicação, elas orientam o conteúdo dos discursos
que circulam neles e restringem a percepção dessa cinematografia a determina-
dos paradigmas.
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tâncias mediadoras também faz parte de um percurso já traçado por Mahomed papel dos curadores e programadores dos festivais de filmes africanos no mun-
Bamba, no artigo Os espaços de recepção transnacional dos filmes: propostas para do muitas vezes é assumido por pesquisadores do campo, o que significa que as
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viés mais histórico sobre os cinemas africanos, priorizando em suas obras análises contribuindo para a política de libertação de seus países, em pouco tempo foram
da economia, produção e distribuição de filmes no continente. African Cinema. confrontados por novas fronteiras institucionais.
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A primeira vertente de abordagem pode ser considerada como um possível des- Fica evidente, portanto, que as três vertentes de abordagem analítica, que pode-
dobramento da militância atribuída a essa produção cinematográfica, fruto do mos chamar de culturalista, autoral e de produção, têm os seus devidos agentes,
contexto de pós-independência que marcou o surgimento dos primeiros filmes precedentes históricos e modos de legitimação. Através das discussões relaciona-
africanos, na época da fundação da FEPACI, como mencionado anteriormente. Tal das aos processos de mediação implicados nos discursos sobre os cinemas africa-
abordagem tende a avaliar as obras sob o prisma de discussões relacionadas à nos, é possível compreender como elas se organizam, a partir de que horizonte
identidade cultural, pós-colonialismo, imigração – temas que, embora sejam per- de expectativas, e como dialogam com os espaços de comunicação delimitados
tinentes à narrativa, podem conduzir a discussões que em geral ultrapassam o pelos festivais de cinema e pela produção acadêmica.
que é relativo à estrutura e à estética do filme, sua linguagem específica e sua Das abordagens analíticas dos cinemas africanos
compreensão enquanto produção artística.
Durante muitos anos, a produção de imagens das diferentes realidades da África
A não problematização dos critérios envolvidos nas escolhas metodológicas de foi refém de uma perspectiva eurocêntrica, para a qual restava um olhar compas-
análise de filmes africanos pode ter, pelo menos, duas consequências: a interpre- sivo sobre o “outro” colonizado, espoliado. À medida que os meios de produção
tação do filme como pretexto para a discussão de questões extrafílmicas de cunho cinematográficos se difundiram entre realizadores africanos, especificamente a
político-ideológico ou, pela hegemonia de determinados métodos e procedimen- partir dos anos 1960, quando do início das independências, tratar da cultura local
tos de análise, o impedimento de outras leituras para dar conta da pluralidade a partir de valores nacionalistas parecia uma causa relevante para (re)construir a
formal e estética desta cinematografia. Por se tratar de um cinema oriundo de pa- história negada pelo outro colonizador.9 No entanto, por efeito do processo de
íses de outro continente, resultante de uma configuração histórica e social muitas globalização, ocorrem transformações estruturais no campo do cinema mundial,
vezes distinta e distante de quem analisa, a interpretação de filmes africanos não tanto na produção com as novas lógicas de coprodução quanto na recepção com
raro está suscetível a uma leitura com direcionamento político-ideológico. Isso se a emergência de novos espaços de circulação das obras em lugar dos tradicionais
aplica, por exemplo, às análises feitas por críticos brasileiros que, pela afinidade circuitos: “Nesses espaços, operam outras formas de mediação e outros tipos de
histórica de pertencer a um país colonizado – à semelhança de vários países afri- determinações institucionais no processo de apropriação e de leitura dos filmes”.
canos –, tendem a construir um discurso interpretativo da obra fílmica pautado (BAMBA, 2013, p. 220).
em questões de busca de identidade, emancipação política etc. Mahomed Bamba,
ao tratar da relação entre cinemas africanos e modernidade, confessa o seu incô- Desde o início da produção cinematográfica africana pós-colonial, cineastas como
modo com a predominância de uma determinada perspectiva de julgamento dos Ousmane Sembène (Senegal) e Med Hondo (Mauritânia) encontravam-se à mercê
filmes: “Os horizontes de expectativas dos públicos brasileiros e da diáspora negra das instâncias de consagração do cinema, especialmente da França. Muitos dos
às vezes me confrontavam numa leitura demasiadamente temática e ‘culturalista’ seus filmes foram frutos de uma longa jornada para conseguir financiamento
dos conteúdos fílmicos”. (BAMBA, 2009, p. 183). Mais adiante, no mesmo texto, da antiga colônia,10 e sua exibição e premiação no Festival de Cannes, um dos
o pesquisador não só ratifica sua oposição a esse posicionamento crítico como maiores do mundo, estava condicionada à aceitação, por parte dos curadores, da
propõe uma alternativa para a análise dessas cinematografias: abordagem temática apresentada pelos filmes. A despeito da inegável qualidade
técnica e narrativa de filmes como La noire de… (1966, de Ousmane Sembène) e
Ora, fazer da obra de um autor o reflexo de uma reali- Soleil Ô (1967, de Med Hondo) – para citar apenas os primeiros longas-metragens
dade nacional incorre sempre no erro de desconsiderar
9 Para uma abordagem histórica sobre quando os africanos se apossaram dos instrumentos e da
a ‘intencionalidade’ e a subjetividade que são uma di- técnica para fazer filmes, em um contexto onde a produção de filmes era totalmente voltada para
interesses coloniais, ver Manthia Diawara (1992). Para uma revisão crítica mais aprofundada sobre a
mensão constitutiva de qualquer processo de criação. [...] história crítica/acadêmica dos cinemas africanos, ver Melissa Thackway (2003).
Ao questionar o culturalismo automático que vigora na 10 Cf. Diawara (1992).
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destes diretores –, os curadores levavam em consideração somente a história con- Desta forma, também passaram a funcionar como alternativas à ausência de uma
tada e a ideologia por trás de narrativas anticoloniais. Os filmes africanos eram política cinematográfica nos países do continente e contribuíram de forma signi-
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O que nos interessou provocar com este artigo dialoga com as inquietações de FEPACI. FEPACI - About us. Disponível em: <http://www.fepacisecretariat.org/abou-
Sanogo (2015) no texto supracitado. O que de fato significa estudar os cinemas t-us/>. Acesso em: 31/out./2019.
africanos e como as diversas abordagens analíticas impactam diretamente na vida
útil destes filmes? Para o autor, estudar a relação entre cinemas africanos e a mídia LIMA, Morgana Gama de. Que cinema africano? Uma reflexão conceitual, Revista
hoje “implica reconhecer a contingência radical do legado do campo geral dos Perspectiva Histórica, jan./jun. 2019, n. 13, p. 163-187, 2019. Disponível em: <http://
estudos de cinema e mídia, muitas vezes propensos a generalizações” (2015, p. perspectivahistorica.com.br/revistas/1563934234.pdf>. Acesso em: 31/out./2019.
119), e este é um desafio que se coloca para todos que desejam dialogar com o
universo desta cinematografia. PINES, Jim; WILLEMEN, Paul. Questions of third cinema. Londres: British Film Insti-
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TCHEUYAP, Alexie. Postnationalist African Cinemas. Los Angeles, Las Vegas, Lon-
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–, no exercício de dar continuidade/colonialidade a determinadas narrativas in continuum. Enfim, naquele episódio sobre memórias, cinemas de/coloniais
imagéticas capitalistas e/ou racistas, patrimonialistas, ocidentais, modernas (neo) e arquivos (pós-)coloniais, me vi forçada a repensar certas distâncias teórico-
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capitalista moderno. Por isso, aparentemente e em tese, um cinema decolonial não evento de cinema em África estaria especialmente vinculado ao tipo de público
flui “entre”, não escorrega ou se sujeita. Ou, pelo menos, teoricamente, não deveria. e de profissionais que estava se formando em Ouagadougou, naquela época. De
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Étalon de Yennenga – principal premiação do evento – por Sarraounia (1986). Safi trata-se de um ritual sobrevivente, que nada na eterna contracorrente da peleja
Faye, única mulher que aparece com mais ênfase entre os bambas desta turma da dos não brancos anti a colonialidade. É que desde a sua primeira pequena edição
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O fim do sem fim desta luta, desta história Ainda sobre essa querela FESPACO X decolonialidade e estratégias de
sobrevivência, apesar da sua inicial condição civil/popular, logo a partir da sua
Retomando à contenda inicial, já há muito instaurada em minha cabeça mas mais
primeira edição, o Estado burkinabè ofereceu patrocínio ao festival. O mesmo
alimentada pela mesa da Culturgest, e que me faz pensar tanto sobre o sem fim
Estado que, em 1970, promoveu a nacionalização total da distribuição/exibição
desta eterna luta “do dragão da maldade contra o santo guerreiro”; a verdade é
de filmes no país. E que, em 1972, assumiu a completa administração do FESPACO,
que o FESPACO começou sendo muito opaco e político, mas se afogou no sem
institucionalizando-o através de uma Secretaria Permanente. (FORSTER, 2013).
fim de um processo em continuum; e exatamente por isso, por ser extremamente
Mesmo Estado também que, entre as décadas de 1960 e 1980, teve seis presidentes
político, sua continuidade parece estar fadada a uma série de modulações
que depuseram o seu antecessor, sendo que um deles teria sido assassinado
interculturais (LIMA FILHO, 2015) que nunca acabam. Sendo, contudo, este mesmo
por seu sucessor: no caso, Thomas Sankara (1949-1987) por Blaise Compaoré. A
ponto, o do existir, a chave para que eu presuma um caráter decolonial no projeto;
algo especialmente enraizado juntamente com as suas primeiras bases. Afinal, 5 O trabalho foi defendido sob a orientação da Profa. Dra. Andréa Vettorassi, no Departamento de
Sociologia da Universidade Federal de Goiás, em abril de 2019. E está disponível para consulta através
do link <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10037>. Acesso em: 29/out./2019.
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verdade é que a licenciosidade é tanta que, por algum tempo, houve inclusive uma Apontamentos finais
representação de cada ministério do Estado burkinabè na comissão organizadora
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alar sobre as primeiras produções fílmicas da África Ocidental implica tratar
sobre as narrativas que atravessam esses filmes. Que histórias são contadas?
E o mais importante: como são contadas? É também nesse período inicial
que, gradativamente, surgem as primeiras preocupações em criar narrativas fíl-
micas que refletissem uma estética “africana”. Ao lançar um olhar retrospectivo,
percebe-se que é também a partir dessas produções que surgem na década de
1980 os primeiros textos críticos relacionando os filmes africanos às tradições
orais; particularmente, a partir da obra de Ousmane Sembène.3
O próprio Sembène provocou essa relação ao fazer afirmações como: “Um cine-
asta (africano), esteja ele fazendo filmes para o cinema ou para a televisão, possui
uma herança muito antiga, mas muito viva: a oralidade”. (1990, p. 5). Enquanto na
cultura ocidental, o registro escrito de acontecimentos e fatos históricos se so-
brepõe à oralidade, nas tradições africanas – especialmente as situadas na África
Subsaariana, ao sul do Saara – a “palavra falada”, para além do conteúdo que pode
transmitir, é valorizada. Tanto pelo seu aspecto moral quanto por ser considerada
“vetor de ‘forças etéreas’”, em que o material e o espiritual estão intimamente rela-
cionados (BÂ, 2010, p. 169).
1 Esse artigo faz parte da pesquisa de doutorado em desenvolvimento, financiada pela FAPESB, e é
resultante de comunicação apresentada em versão preliminar no II ENICECULT (Santo Amaro-BA),
realizado de 24 a 27 de setembro de 2019.
2 M. Amadou - Mahtar M’Bow, Diretor Geral da UNESCO (1974-1987) no prefácio do livro História
geral da África, II: África antiga (UNESCO, 2010, p. XXI).
3 Alguns textos precursores nesse sentido são: Ousmane Sembene and the Aesthetics of African Oral
Traditions (CHAM, 1982) eThe Cinema of Ousmane Sembene, a pioneer of African film (PFAFF, 1984).
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Tendo em vista esse valioso repertório cultural, tais textos críticos despertaram o Não se trata apenas de uma afinidade baseada na função, mas na forma como se
interesse em observar a influência da cultura oral sobre os filmes africanos, ora fa- constrói a narrativa nesse processo. Para além das informações ou conteúdo que
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Talvez a aproximação mais comum entre os cinemas africanos e as narrativas orais Da adaptação de contos orais
seja a comparação do cineasta com a figura do griot. Considerado uma espécie
Embora a aproximação entre narrativas já existisse desde os primeiros filmes – dos
de trovador ou contador de histórias, o griot ganhou notoriedade no contexto
quais os de Ousmane Sembène são exemplos –, a discussão ganhou maior impor-
das tradições orais africanas, especialmente durante o período dos impérios me-
tância a partir da década de 1980, com o sucesso alcançado por filmes como Wênd
dievais africanos – como o Império do Gana, Mali (1230-1600) e Songai. Na épo-
Kûuni (Le don de Dieu, Burkina Faso, 1982), do diretor burkinabé Gaston Kaboré, e
ca funcionava como peça-chave para a preservação da memória e da história no
Nelisita: narrativas nyaneka5 (Angola, 1983), primeiro filme de Ruy Duarte de Car-
continente. Mesmo sendo estigmatizado por pertencer a uma casta considerada
valho, ambos frutos de adaptação de contos da tradição oral.
inferior (FOFANA, 2011, p. 256), o griot era respeitado pelo seu conhecimento e
possuía relativa liberdade de expressão, incluindo o direito de “desdizer” sem que Os filmes inspirados em contos tradicionais ficaram conhecidos como de “retorno
causasse ressentimentos ou ainda sem ter que “arcar com a responsabilidade de à fonte” (DIAWARA, 1992) e, em certo aspecto, configuravam um afastamento para
um erro que não cometeu, a fim de remediar uma situação ou de salvar a reputa- o mítico, em virtude do sentimento de frustração gerado com os desdobramentos
ção dos nobres”. (BÂ, 2010, p. 195). políticos após o processo de independência em alguns países. Eram considerados
politicamente ingênuos quando comparados a outros filmes do mesmo período.
Apesar de não haver um consenso, nem uma definição única para o griot, a sua
No entanto, essa crítica era um indício de que o olhar projetado sobre os filmes
associação com a figura do cineasta está mais relacionada ao seu papel como me-
ainda era, em certa medida, refém de modelos narrativos anteriores. Embora com
diador da sociedade ou, nas palavras de Sembène, a uma espécie de “memória
ideologias e finalidades diferentes, tanto as produções coloniais quanto os pri-
viva e à consciência de seu povo”. (PFAFF, 1993, p. 14). A questão, contudo, é: se
meiros filmes realizados por cineastas africanos estavam inseridos em um mesmo
os cineastas africanos podem ser, metaforicamente, considerados como griots ou
regime representacional: usar da narrativa fílmica como um meio de retratar a “re-
contadores de histórias da contemporaneidade, quais seriam então os elos pos-
alidade” dos povos africanos.
síveis de serem estabelecidos entre a tradição griot e filmes realizados por esses
cineastas? Os primeiros filmes realizados por Sembène, por exemplo, buscaram ao seu modo
re-construir a imagem do “homem africano” mostrando hábitos, costumes, deta-
4 Embora o termo seja um vocábulo franco-africano (LOPES, 2004, p. 310), a sua origem não é precisa. lhes do cotidiano, os contrastes sociais nas grandes cidades africanas, em con-
Alguns consideram que é africana (do wolof gewel, do fulbe (peul) gawlo, do malinké gele), árabe
(qawal), ou ainda do português criado (aquele que foi alimentado e educado e vive na casa do mestre) traposição às imagens exóticas e racistas difundidas pelas antigas produções
ou do francês (grelot). (THIERS-THIAM, 2004, p. 15). Não se trata de uma denominação universal, coloniais. Acreditava-se que o cinema era um meio potente para conscientizar e
podendo receber diferentes nomes conforme a cultura em que se desenvolve: “dyéli ou diali, entre
os bambaras e mandingas; guésséré, entre os saracolês; wambabé, entre os peulés; aouloubé, entre mobilizar as massas. Nesse cenário, a adaptação de contos tradicionais e, conse-
os tucolores; e guéwel (do árabe qawal), entre os Uolofes”. (LOPES, 2004, p. 310). No Brasil, o termo
mais conhecido é griô – contadores de história no contexto da cultura brasileira de matriz africana e 5 Filme ficcional baseado em duas peças de literatura oral das populações Nyaneka do Sudoeste de
indígena (LIMA; COSTA, 2015) – mas daremos preferência ao uso de griot com o fim de preservar a Angola, registradas no livro Cinquenta contos bantu do Sudoeste de Angola (ESTERMANN,, 2009, p.
diferença cultural entre os termos. 218).
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quentemente, a saída de um regime representacional da narrativa parecia atender xo industrial; Guimba, un tyran, une époque (Cheick Oumar Sissoko, Mali, 1995),
mais aos anseios externos de um público estrangeiro ávido por encontrar a África que não só adota a estrutura do conto na narrativa como explora as habilidades
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exemplo é a própria lenda ou Épico de Sundiata,10 história mais famosa da tradição gogia do mistério, a construção alegórica, ao retardar a solução, incita a busca pela
oral que narra a saga de Sundiata Keita (também conhecido como Leão do Mali), resposta e incentiva o aprendizado. Em termos narrativos, de acordo com Ismail
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AFRIQUE sur Seine. Direção: Groupe Africain du Cinèma. Roteiro: Mamadou Sarr. TOUKI Bouki (The hyena’s journey). Direção: Djibril Diop Mambéty. Produção: Ci-
Filmagem: Robert Caristan. Montagem: Paulin Soumanou Vieyra. Som: G. Chou- negrit, Studio Kankourama. Senegal, 1973, Francês/Wolof/Árabe, 85 min., color.
chon, Seção musicológica do Musée de L’homme/Paris, 1955, Francês, 21 min.,
p/b. WÊND Kûuni (Le don de Dieu). Direção e produção: Gaston Kaboré. Produção: La
direction du cinema, Secrétariat d’État à l’information, La République de Haute-
DJELI, Contes d’aujourd’hui. Direção: Fadika Kramo Lanciné. Produção: Les Films -Volta (Burkina Faso), 1983, Mooré, 75 min., color.
du Sabre. Costa do Marfim, 1981, Dyula, 90 min., color.
GUIMBA, un tyran, une époque. Direção: Cheick Oumar Sissoko. Produção: Centre
Morgana Gama é doutoranda pelo Programa de Comunicação e Cultura Contem-
National de la Cinématographie du Mali (CNCM), Direction de la Cinematographie
porâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pesquisa sobre a relação
Nationale, Kora Films. Mali, 1995, Francês/Peul/Bambara, 95 min., color.
entre narrativas cinematográficas e a tradição oral em filmes de África e suas diás-
poras e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
HYÈNES. Direção: Djibril Diop Mambéty. Produção: ADR Productions, Channel Four
(co-production), DRS (co-production), Georges Reinhart Productions (co-produc-
tion), Maag Daan (co-production) e Thelma Film AG. Suíça/França/Senegal/Reino
Unido/Holanda/Itália, 1973, Wolof/Francês/Japonês, 110 min., color.
L’EXILÉ. Direção: Oumarou Ganda. Produção: Caba-Films. Níger, 1980. 1 DVD, Djer-
ma/Francês, 78 min., color.
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A primeira geração de cineastas que emerge na África Ocidental tem em seu cerne
a figura de Paulin Soumanou Vieyra.1 Ele nasceu em 31 de janeiro de 1925, no que
era então o Daomé, um território colonial francês que se tornaria politicamente
independente em 1960, para se tornar a República Popular do Benim em 1975.
Falecido em 4 de novembro de 1987, em Paris, Vieyra não viu sua terra natal assu-
mir a denominação atual, República do Benim, em 1990, mas sua relação com o
país já era de distanciamento em vida. Aos 10 anos, vai estudar em um internato
na França, iniciando um período de desterro na Europa, que se estende, de modo
geral, até a década de 1950.
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Com a independência do Senegal, em 1960, Vieyra se torna o responsável pela um ano de independência, ou Lamb (1963), sobre o esporte de luta livre homô-
produção dos programas semanais de atualidades cinematográficas, Sénégal en nimo e sua popularidade nacional. Birago Diop, conteur (1981), sobre o importan-
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e se renovam interminavelmente. Vieyra parece buscar, de modo geral, a resolução da tensão em favor das formas
nacionais de captura do comum. Lamb procura promover o discurso pedagógico
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com o real, enquanto se estende a percussão polifônica e polissêmica dos tambo- a imaginação do comum).
res. A montagem cria equivalências formais entre os diferentes locais singulares
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Em Môl, o desejo de resolver a tensão constitutiva da obra de Vieyra em favor da Em seus filmes-ensaios, como Birago Diop, conteur e Iba Ndiaye, portrait d’un pein-
captura nacional do comum define a teleologia da narrativa do curta como um tre, quando Vieyra se afasta da pedagogia nacional estrita das atualidades e das
ato simbólico de resolução do antagonismo social entre tradição e modernidade, alegorias documentais e ficcionais da década de 1960, torna-se mais explícita a
dificultando a abertura da ficção para o risco do real. A narração em off desdobra tensão entre abertura e captura, descolonização e reenquadramento do comum
o discurso interpretativo que consagra a ontologia nacional, enquanto as imagens que perpassa seu cinema. Em L’envers eu décor, ele reflete sobre o processo de cria-
que encenam o sentido simbólico dessa pedagogia nacional são subordinadas ção e de trabalho do “escritor-cineasta” Ousmane Sembène, particularmente no
pela narrativa, mas ainda resguardam alguns elementos que perturbam a captura decorrer das filmagens de Ceddo. Entre comentários analíticos em off e conversas
nacional (principalmente nas sequências de filmagem da pesca, que rarefazem a com o próprio Sembène, o cinegrafista Georges Caristan, a montadora Florence
pedagogia do discurso fílmico com sua força fugidia, que convida a desenquadrar Eymon e a esposa de Sembène na época das filmagens, a estadunidense Carrie
5 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “que chantent donc les cœurs des 8 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “la route d’Ousmane sera bonne, car
belles?”. tout a était fait selon la tradition.”
6 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “– […] tissues multicolor, joyeux, 9 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Ousmane poursuivra son Voyage
parures pour le plaisir des yeux. – Et des commerçants…”. sur Dakar, pour réunir l’argent que son oncle n’a pas pu le prêter pour acheter son moteur.”
7 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Et la relève est là, en ces jeunes, qui 10 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “joie de retrouver un fils et
demain porteront, eux, le flambeau des arènes.” d’accueillir le progrès.”
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Moore, o discurso do filme-ensaio se configura como uma interrogação polifônica bio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
sobre a criação artística e a invenção cultural. A arte emerge como um espaço
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Pode ser interessante recordar alguns versos apreciados por Vieyra (citados por RIBEIRO, Marcelo R. S. Desterro, desejo, delírio. Catálogo da Mostra Grandes Clás-
ele em diferentes filmes e ocasiões), que aparecem no interior do conto “Sarzan”, sicos do Cinema Africano. Organização Tiago de Castro Machado Gomes. Rio de
no livro Contes d’Amadou Koumba, de Birago Diop, depois recolhidos sob a forma Janeiro: Caixa Cultural, 2017, p. 89-97.
de um poema, intitulado “Souffle”, no livro Leurres et lueurs (1960): “Atente os seus
ouvidos / Mais às coisas que aos Seres” (em tradução de Leo Gonçalves);11 “Escuta
mais vezes / As coisas do que os Seres” (na tradução que arrisco propor).12 Talvez se Marcelo R. S. Ribeiro é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual,
possa dizer que o cinema de Vieyra se define pela tensão entre a “escuta dos Seres” atuando desde maio de 2017 na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal
e a “escuta das coisas”. Na primeira, está em jogo um trabalho ontológico explícito da Bahia. Coordena o grupo de pesquisa Arqueologia do Sensível e participa do La-
e consciente de organização pedagógica do discurso, cujo objetivo é tornar possí- boratório de Análise Fílmica, desenvolvendo e orientando pesquisas sobre imagem,
vel a sedimentação da história e a disposição de seus traços dentro de um projeto história e direitos humanos. É doutor em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes
fundamentalmente nacional de imaginação do comum. Na escuta das coisas, por Visuais da Universidade Federal de Goiás (2016), fundador, autor e editor do inciner-
sua vez, há um trabalho fantasmagórico menos explícito, mais fugidio e eventual- rante (https://www.incinerrante.com), cofundador (com Juliana Costa), autor e editor
mente inconsciente de abertura para o “Sopro dos ancestrais”, para “os que falece- do a quem interessar possa (https://www.aquem.in), crítico de cinema, programador
ram [mas] jamais se foram”13; em suma, para a memória do mundo que sobrevive à e curador de mostras e festivais.
desaparição. Em Vieyra, o retorno inventivo às origens se torna projeto, na medida
em que seus filmes e sua atuação se acoplam aos dispositivos estatais e nacionais
de captura do comum, mas sobrevive em suas obras uma margem de indefinido,
entre passado e porvir, entre a ancestralidade dos povos que não existem mais e o
apelo aos povos que ainda não existem. É preciso uma leitura a contrapelo da obra
de Vieyra, cujas linhas gerais tentei insinuar aqui, para explorar os efeitos dessa
sobrevivência inaudita e para fazer a experiência da escuta das coisas que resta
possível entre as imagens de seus filmes.
Referências bibliográficas
DIAWARA, Manthia. African cinema: politics & culture. Bloomington: Indiana Uni-
versity Press, 1992.
MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Trad. Fá-
11 A tradução de Leo Gonçalves para alguns poemas de Birago Diop foi publicada na revista
Modo de Usar & Co (disponível em: <https://revistamododeusar.blogspot.com/2011/06/birago-
diop-1906-1989.html>; acesso em 20/out./2019).
12 No poema original: “Écoute plus souvent / Les choses que les Êtres”.
13 No poema original: “le Souffle des ancêtres”; “Ceux qui sont morts ne sont jamais partis”.
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CI NE ASTAS Clássicos Africanos
CINEASTAS
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Moustapha Alassane Ousmane Sembène
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Souleymane Cissé
(Bamako/Mali, 1940)
FILMES
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Realizado por um grupo de africanos que estudava cinema no Baseado em um conto homônimo de Ousmane Sembène
Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC) em Paris, publicado em 1961, “La noire de...” conta a história de Diouana,
o projeto inicialmente se passaria em Dakar, mas teve sua uma humilde jovem senegalesa que se muda de Dakar, no
produção barrada pelo governo de Senegal. Considerado um Senegal, para Antibes, na França, a fim de trabalhar como babá
dos precursores do cinema africano, África sobre o Sena conta de um casal francês. No entanto, ao chegar à casa dos patrões,
anedotas de imigrantes africanos em Paris. Diouana é obrigada a assumir todos os serviços da casa.
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DIREÇÃO E ROTEIRO:
Souleymane Cissé
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Sekou é demitido da fábrica onde trabalha porque se atreveu Um jovem intelectual marfinense retorna da Europa a seu país
a pedir um aumento. Desempregado, ele sai com Tenin, uma natal, Costa do Marfim. Além do confronto entre modernismo
jovem muda e filha de seu ex-chefe, fato que ele desconhece. e tradição, ele está sujeito à inibição sexual. Uma fantasia o
Em um passeio, Sekou se torna agressivo e estupra Tenin, que paralisa: uma mulher brandindo uma faca. Não encontrando
engravida. Ela então se vê brutalmente confrontada com a ajuda dos médicos ou dos curandeiros, ele compreenderá,
moral de sua família e a covardia de Sekou, que se recusa a com a ajuda de um amigo, que ficou traumatizado pela
reconhecer a criança. imagem repressiva de sua mãe durante a infância.
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Com referências do cinema norte-americano e da Nouvelle Ngor e Coumba habitam uma pequena vila Sererê, no interior
Vague francesa, Djibril Diop Mambéty conta a história de do Senegal. Há algum tempo, eles querem se casar, mas neste
Badou, um jovem rebelde e delinquente que vive aprontando ano a colheita de amendoim está fraca devido às chuvas
e aplicando golpes em sua cidade, Dakar, para o desespero da irregulares. Buscando contornar a situação, Ngor parte para a
polícia, que nunca consegue capturá-lo. cidade em busca de trabalho.
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EMITAI FAD’JAL
Emitai, Senegal, 1971, 96’ Fad’jal, França/Senegal, 1979, 113’
Inspirado em fatos reais de resistência, conta a história de uma Crônica de um povoado Sererê da região do cultivo do
pequena vila do grupo étnico Diola, no interior do Senegal. amendoim no Senegal. Os aldeões testemunham, através
Em 1942, após o início da II Guerra Mundial, os jovens são da fala dos anciãos, a história do povoado transmitida pela
recrutados pelo exército francês, que também tem a ordem de tradição oral, além das dificuldades que eles têm para explorar
confiscar arroz para as tropas. As mulheres da tribo, no entanto, sua terra e se alimentar.
escondem toda a colheita e se recusam a colaborar. Os anciões
consultam seus deuses, tentando entrar em um acordo.
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Clássicos Africanos
Um retrato do artista maliano Mamadou Somé Coulibaly, que Documentário sobre o “lamb”, esporte genuinamente
se inspira na história do povo africano para pintar. senegalês. Bastante semelhante à luta greco-romana, é uma
das mais antigas e principais manifestações culturais do país,
com regras bastante rígidas e uma legião de aficionados.
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DIREÇÃO: Ousmane Sembène
PRODUTORA: Filmi Domirev,
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Um crente muçulmano, voltando de Meca, recebe o título Ibrahim, líder muçulmano de seu bairro, é casado com duas
de El Hadj. Ele não tem escrúpulos e cobiça a jovem Satou, esposas e tem vários filhos. Um dia, recebe uma ordem de
prometida a Garba. Só resta a Garba, furioso, deixar a aldeia e dinheiro de seu sobrinho que vive em Paris. A partir daí, passa
ir à cidade. No entanto, um drama mais grave surge: a segunda a lidar, de um lado, com a burocracia e a corrupção dos órgãos
esposa de Hadj, Gaika, não aceita a intrusa e, para impedir o senegaleses e, de outro, com a ganância de sua família e
casamento, decide matá-la na véspera do evento. amigos.
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DIREÇÃO E ROTEIRO: Jean-
Pierre Dikongué Pipa
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Um jovem pescador sonha em motorizar seu barco para tornar Ngando e Ndomé estão apaixonados e querem se casar, mas
o trabalho mais fácil. Graças a sua coragem e teimosa, tal a família de Ndomé só aceita a união mediante o pagamento
sonho se torna realidade, mas traz também um conflito entre de um dote, como manda a tradição. Sem dinheiro, o jovem
os valores tradicionais e as noções modernas de progresso. Ngando recorre ao tio para ajudá-lo, mas é traído pelo mesmo,
que está disposto a tomar Ndomé como sua quinta esposa na
esperança de ter um filho.
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Diário de filmagem do filme Ceddo, de Ousmane Sembène, Inspirado em uma antiga lenda da etnia Zarma, no Níger. No
mostrando os desafios em se filmar no continente africano, o reino do Rei Koda, selvagem e cruel déspota, vive um bravo
processo criativo de Sembène e sua relação de amizade com pescador chamado “Lei de Deus”. Para testar sua virtude, o rei
Paulin Soumanou Vieyra. Koda lhe dá seu anel, com a missão de que seja devolvido após
três anos. Se “Lei de Deus” não for capaz de restituir o anel, ele
terá a cabeça cortada.
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DIREÇÃO E ROTEIRO: Med Hondo
PRODUTORA: Films Soleil O, Shango
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O CARROCEIRO Ó, SOL
Borom Sarret, Senegal, 1963, 21’ Soleil Ô, França/Mauritânia, 1969, 98’
Um humilde carroceiro realiza diversos serviços ao longo de Realizado durante cinco anos, em parceria com a companhia
um dia. Seu último cliente, um senegalês abastado, pede para teatral de Med Hondo, e possuindo um pequeno orçamento,
ser levado a um bairro de classe alta, onde esse tipo de veículo Ó, Sol narra uma série de situações pelas quais os africanos
é proibido. Mesmo sabendo disso, o carroceiro decide arriscar passam em um mundo dominado pelo ocidente.
pensando numa possível boa remuneração.
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EDITORAÇÃO DO CATÁLOGO
Tiago Castro Gomes
TRADUÇÃO E LEGENDAGEM
Felipe Gonçalves
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CAIXA Cultural RJ
Av. Almirante Barroso, 25, Centro
(21) 3980-3815
www.caixacultural.gov.br
facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro
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Cuide da natureza. Recicle!
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Distribuição gratuita. Venda proibida.
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA
L - 16 Linguagem imprópria
Conteúdo sexual
Conteúdo varia de Livre a 16 anos.
www.mj.gov.br/classificacao
www.classicosafricanos.com.br
Realização Apoio Pat r ocí ni o
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