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Clássicos Africanos
A primeira geração de cineastas da África do Oeste
Clássicos Africanos
A primeira geração de cineastas da África do Oeste

Organização dos textos: Tiago Castro Gomes


Ano de publicação: 2019
LDC
ISBN: 978-85-69488-08-8
1a Edição
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Rio de Janeiro

Articulações entre os pioneiros do cinema na África subsaariana 5


do oeste
por Tiago de Castro Machado Gomes

Abordagens possíveis para os cinemas africanos – questões de 21


visibilidade
por Ana Camila Esteves e Morgana Gama

O começo sem fim ou apontamentos sobre um cinema 35


decolonial inaugural
por Maíra Zenun

Entre narrativas: cinemas africanos e cultural oral 49


por Morgana Gama

Retorno, captura, abertura: o cinema de Paulin Soumanou 65


Vieyra como campo de forças
por Marcelo R. S. Ribeiro

Cineastas 74

Filmes 82

Ficha técnica da equipe e agradecimentos 106

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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


ARTICULAÇÕES ENTRE OS
PIONEIROS DO CINEMA NA
ÁFRICA SUBSAARIANA DO OESTE
Tiago Castro Gomes

A
s cinematografias dos países da África Subsaariana do Oeste surgiram e
se desenvolveram ao longo, principalmente, das décadas de 1960 e 1970.
Como uma das características fundamentais desses cinemas, visualizamos
intensas articulações e discussões proporcionadas pela disposição dos sujeitos
envolvidos no processo, pelo estabelecimento de políticas públicas em âmbito
nacional e transnacional e pela criação de espaços comuns de articulação e difu-
são, como a Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) e o Festival Pan-Africa-
no de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO). Neste artigo, atentarei-me
às questões de ordem interpessoal durante esse período, visto que um dos impul-
sores fundamentais de toda a história audiovisual africana surge exatamente do
envolvimento e da dedicação da primeira geração de profissionais e cinéfilos dos
cinemas africanos.

As Jornadas Cinematográficas de Cartago, por exemplo, primeiro festival exclusi-


vamente dedicado ao cinema do continente africano, foram fundadas em 1966
pelo crítico de cinema tunisiano Tahar Cheeria. Em 1969, outra iniciativa impor-
tante tomou forma; dessa vez em Burkina Faso: o Festival de Cinema Africano de
Ouagadougou, que a partir de 1970 passou a se intitular Festival Pan-Africano de
Cinema e Televisão de Ouagadougou (ou, como é mais popularmente conhecido,
FESPACO). De acordo com Janaína Oliveira, pesquisadora brasileira que participou
ativamente de algumas edições do FESPACO, tal evento foi promovido por grupos
e associações culturais burquinenses:

Imbuídos da vontade de colaborar para o fim da invisibili-


dade das produções africanas, os cinéfilos do Centro Cul-
tural Franco-Voltaico (CCFV) se reuniram em novembro
de 1968 e propuseram a criação de um festival de cine-
ma africano em Ouagadougou para as atividades do ano
seguinte. A mesma inquietação de Tahar Cheriaa quando
da criação das JCC se percebe presente aqui: além dos fil-

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mes, era preciso promover a circulação destas imagens, Logo reconhecida por associações como a Organização da Unidade Africana
fazer com que elas chegassem a um público mais amplo. (OAU) e a UNESCO, a FEPACI teve atuação primordial principalmente nos anos
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E assim, por duas semanas, entre 1 a 15 de fevereiro de 1970, quando emergiram as cinematografias das ex-colônias francesas. Um pou-
1969, aconteceu a primeira edição do Festival de Cine- co enfraquecida nas décadas seguintes, a federação permanece ativa e tem em
ma Africano de Ouagadougou, a partir de uma iniciativa curso o African Film Heritage Project (AFHP), uma parceria com a UNESCO e a Film
privada e desconectada das dinâmicas oficiais do Estado Foundation, organização sem fins lucrativos e dedicada à preservação audiovisual,
voltaico. (2016b). criada por Martin Scorsese e outros cineastas. Tal projeto prevê a identificação,
preservação e restauração de filmes africanos escolhidos por suas respectivas re-
Ainda segundo Oliveira, dois dos maiores atributos do FESPACO são justamente “a
levâncias históricas, culturais e artísticas.2 Essa ação parece fundamental em meio
relação entre os realizadores e o público africano e, em segundo lugar, a relação
às velozes mudanças tecnológicas na indústria audiovisual, visto que ainda não se
entre os próprios realizadores”. (2016a, p. 71). Atualmente, ao aceitar obras pro-
atingiu na área uma total “descolonização dos recursos econômicos e de tecnolo-
venientes da diáspora negra, o festival tem ampliado seu lugar como espaço de
gia”, como argumentado por Ngugi wa Thiong’o, em prol da “descolonização da
agregação e discussão.
mente”. (2007, p. 27).
Já a Federação Pan-Africana de Cineastas, como veremos também adiante, foi
Pioneiros dos cinemas africanos
uma iniciativa encabeçada inicialmente pelo Le Groupe Africain de Cinema e, pos-
teriormente, abraçada por toda uma geração de cineastas, produtores, técnicxs e Quando nos voltamos mais detalhadamente aos sujeitos que participaram de
atores/atrizes africanxs. A FEPACI lutou pela instituição de políticas audiovisuais toda essa história, uma das primeiras figuras que surge é justamente um estran-
em diversos países do continente, não somente no âmbito da produção, mas tam- geiro que dedicou boa parte de sua vida e obra à África Ocidental: o etnólogo e
bém no da exibição e distribuição. Tal atitude, muitas vezes, bateu de frente com cineasta francês Jean Rouch.3
os interesses estrangeiros na exploração do mercado audiovisual africano, criando
Rouch teve seu primeiro contato com o continente africano em 1941, quando es-
grandes embates.1 Conforme Diawara explica:
teve em Niamey, capital do Níger, trabalhando como engenheiro de estradas no
No encontro inaugural em Cartago, a FEPACI definiu Departamento de Obras Públicas da colônia. Nesse período, teve contato com os
como propósito estar comprometida com a liberação po- Songhai, descendentes do antigo império de mesmo nome, que se desenvolveu
lítica, cultural e econômica da África; lutar contra o mo- sobretudo em áreas hoje pertencentes ao Níger, Mali e Nigéria durante os séculos
nopólio franco-americano dos setores distribuidor e exi- XV e XVI.4 Em 1945, de volta a Paris, Rouch decide se inscrever no programa de
bidor; e encorajar a criação de cinematografias nacionais. doutorado da Sorbonne, sob supervisão de Marcel Griaule, estudando alguns dos
O comprometimento com a liberação da África significou aspectos socioculturais dos Songhai, como a religião. Nasce daí, principalmente,
aos cineastas a criação de uma estética da desalienação seu interesse em unir cinema e antropologia, campos para ele inseparáveis.
e descolonização. Foi dito ao cineastas para que usassem
2 Entre alguns dos filmes já restaurados, estão: O carroceiro (Borom Sarret) e A negra de… (La noire
formas semidocumentais para denunciar o colonialismo de…), de Ousmane Sembène; Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty; A mulher com uma faca (La
onde ele ainda existia e formas ficcionais didáticas para femme au couteau), de Bassori Timité, Muna Moto, de Jean-Pierre Dikongué Pipa e Ó, Sol (Soleil Ô),
de Med Hondo.
denunciar a alienação de países que eram politicamente 3 Assim como Rouch, outros franceses foram fundamentais no processo de transição em direção às
independentes, mas culturalmente e economicamente cinematografias africanas. É possível citar René Vautier e seu emblemático filme clandestino, África 50
(Afrique 50); e Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet, responsáveis por As estátuas também
dependentes do Ocidente. (1992, p. 40). morrem (Les statues meurent aussi).
4 Segundo Pedro de Alencar Nascimento, “embora normalmente se use o nome [Songhai] para agru-
par os falantes das línguas nativas dessa região, o povo do Mali (ex-Sudão Francês) se denomina
1 Um dos principais exemplos é o caso de duas empresas distribuidoras francesas que atuavam em Songhai, enquanto demais povos descendentes dos habitantes do império têm suas próprias denom-
países da África Francófona Ocidental, a Companhia Africana Cinematográfica Industrial e Comercial inações, como os Zerma, aos quais pertenciam Damouré Zika, Lam Ibrahim Dia e muitos dos demais
(COMAICO) e a Sociedade de Exploração Cinematográfica Africana (SECMA), que juntas chegaram a informantes e colaboradores de Rouch. Ele usava o nome Songhai para se referir a todos os povos
controlar 80% do mercado distribuidor da região. Nações como Guiné, Mali e Burkina Faso fizeram descendentes dos habitantes do Império Songhai, fossem eles habitantes do Sudão Francês ou do
tentativas de nacionalização do setor cinematográfico, o que causou uma grande reação da COMAICO Níger, embora ocasionalmente usasse denominações específicas de grupos étnicos, como os Zerma e
e da SECMA, inclusive cortando o suprimento de filmes por vários meses nesses países. Diferentes os Sorko. Os Songhai são, há séculos, praticantes do Islã, tendo entrado em contato com a religião pela
acordos foram feitos: em Burkina Faso, por exemplo, as empresas francesas continuam seu monopólio primeira vez no século XI. [...] Muitas das informações sobre esse povo e sua religião foram levadas à
na distribuição, enquanto o Estado passou a gerir o setor exibidor. (DIAWARA, 1992). Europa, primeiramente, por Rouch”. (2016, p. 10).

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Jean Rouch foi responsável pela iniciação de uma longa lista de africanos e afri- Oumarou Ganda continuou dirigindo filmes até sua morte precoce, em 1982, aos
canas na área cinematográfica, entre os quais podemos citar Damouré Zika, Lam 46 anos de idade. Como homenagens póstumas, destacam-se: um importante
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Ibrahima Dia, Tallou Mouzourane, Oumarou Ganda, Safi Faye e Moustapha Alassa- centro cultural em Niamey chamado Centre Culturel Oumarou Ganda e o Prêmio
ne. Os três primeiros colaboraram como atores e em funções técnicas em diversos Oumarou Ganda do FESPACO, destinado a obras de diretores estreantes.
filmes de Rouch, como Jaguar (1954-67), Eu, um negro (Moi, un noir, 1957-58), Pou-
Outra figura apresentada ao cinema por Jean Rouch foi a senegalesa Safi Faye.
co a pouco (Pétit à pétit, 1968-70) e Cocorico! Monsieur Poulet (1974), levando René
Ambos se conheceram durante o 1º Festival Mundial de Artes Negras, ocorrido
Predal a denominar essas produções de “ciclo Lam-Damouré”. (PRÉDAL, 1982, p.
em Dakar, em 1966. Tal festival foi elaborado por alguns dos principais pensadores
12). Já Oumarou Ganda, Safi Faye e Moustapha Alassane foram introduzidos ao
anticolonialistas da época – como Alioune Diop e Léopold Sédar Senghor5 –, bus-
cinema por Rouch, mas seguiram, posteriormente, carreiras independentes. Fala-
cando a exaltação de ideias como a negritude e o pan-africanismo. O evento tinha
rei melhor dos três últimos, relevantes nomes dentro do que entendemos como a
como missão promover a arte negra de maneira ampla, apresentando espetáculos
primeira geração de cineastas africanos.
e mostras de dança, música, teatro, cinema, fotografia, escultura, moda, arquitetu-
Comecemos com Oumarou Ganda. Nascido no Níger, Ganda participou ainda ra etc. Segundo Mahomed Bamba (2007, p. 88-89): “nesse primeiro encontro cul-
adolescente da Força Expedicionária Francesa na Guerra da Indochina. Em 1955, tural em solo africano, o objetivo era reunir artistas negros ou de origem africana
ao retornar à África, se vê desempregado e decide migrar para Abidjan, na época com aqueles que vivem no restante do mundo, a fim de permitir uma confronta-
capital da Costa do Marfim e promissora terra de oportunidades. Lá, Oumarou ção e um retorno às fontes e afirmar a unidade da arte negra na sua diversidade”.
conhece Jean Rouch, que pesquisava exatamente o fenômeno das migrações de
Faye, então com 22 anos de idade e professora da educação básica, compareceu
jovens nigerinos para países como Costa do Ouro (atual Gana) e Costa do Marfim.
ao Festival Mundial de Artes Negras conhecendo Rouch, então já um influente
Assim, Ganda é contratado para interpretar o personagem Edward G. Robinson na
cineasta. Faye é então convidada a participar de Pouco a pouco e, juntamente com
etnoficção Eu, um negro.
Damoure Zika, Lam Ibrahima Dia e Moustapha Alassane – do qual falaremos a
A formação cinematográfica técnica de Oumarou Ganda se deu em Niamey, prin- seguir –, torna-se uma das protagonistas do filme, estreado em 1970.
cipalmente no Centre Culturel Franco-Nigérien, onde fez amigos que igualmente
Em Pouco a pouco, Rouch brinca com os conceitos de etnoficção e antropologia
viriam a se tornar importantes figuras para as cinematografias africanas, como o
reversa, filmando os personagens Damouré e Lam visitando Paris para pesquisar
diretor Inoussa Ousséini e o técnico de som Moussa Hamidou. Hamidou, que viria
sobre os arranha-céus que eles querem construir no Níger com o dinheiro de sua
a trabalhar nos primeiros filmes de Ganda e Moustapha Alassane, foi igualmente
companhia Petit à petit. Tal argumento foi inspirado nas Cartas Persas de Monste-
introduzido ao cinema por Jean Rouch quando tinha dezenove anos, sendo téc-
quieu e no real diário de viagem de Damouré em Paris, em razão de um programa
nico de som em filmes como Yenendi de Ganghel, a aldeia fulminada (Yenendi de
da Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNES-
Ganghel, le village foudroyé). (HENLEY, 2009, p. 329).
CO). Safi Faye (atriz) interpreta Safi (personagem), uma imigrante senegalesa em
Apesar da importância em sua vida de Eu, um negro, Oumarou afirmou posterior- Paris, dona de uma boutique e modelo. Interessante notar que a personagem Safi
mente que Rouch havia lucrado com sua experiência de vida e limitado seu en- é uma mulher africana que caminha velozmente em direção à modernidade: é
volvimento na obra, principalmente na montagem. Por esse motivo, seu primeiro independente, possui seu próprio negócio, carro e casa. Ao voltar à África, a per-
filme, Cabascabo, é uma espécie de resposta a Eu, um negro, sendo também a his- sonagem Safi não consegue se adaptar: suas clientes não gostam de seu trabalho
tória de um jovem que luta na guerra da Indochina ao lado do exército colonial como estilista e ela se sente entediada e explorada. A personagem pode represen-
francês e, ao fim do conflito, retorna ao Níger. Perguntado sobre tal obra, Ganda tar, portanto, Safi Faye em sua quebra com a tradição: uma mulher negra africana
disse: “Eu tentei em meu primeiro filme consertar as coisas, dizer as mesmas coisas que decide se tornar cineasta, em uma área e época totalmente dominada por
como eu as vi, detalhadamente, e por isso fiz Cabascabo para expressar o que eu homens.
estava sentindo... porque não tive meios de fazê-lo antes”. (HAFFNER, 1982, p. 71).
Cabascabo percorreu importantes festivais de cinema, como o 22º Festival de Can- 5 Alioune Diop foi um escritor senegalês, fundador e editor da revista Présence africaine. Léopold
Sédar Senghor foi um escritor e político senegalês, presidente de Senegal entre 1960 a 1980, o primei-
nes e o 6º Festival Internacional de Cinema de Moscou. Seu segundo filme, Le Wa- ro após a independência. Juntamente com o poeta antilhano Aimé Césaire, Senghor foi ideólogo do
zzou polygame, foi eleito melhor filme na primeira edição do FESPACO, em 1972. conceito de negritude.

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Para tanto, Safi Faye parte, em 1972, para Paris, buscando os meios para estudar para seu primeiro papel como atriz, no média-metragem O regresso de um aven-
tureiro (Le retour d’un aventurier), de 1966. Ela se tornou posteriormente uma das
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seu povo e sua cultura, fazendo igualmente um uso etnográfico do cinema. Entra
para a Escola Prática de Altos Estudos (École Pratique des Hautes Études), curso con- maiores estrelas do Níger atuando no teatro, na televisão e em filmes como FVVA:
cluído em 1976 com a tese intitulada “Contribution à l’étude de la vie religieuse d’un Femme, villa, voiture, argent, também de Moustapha Alassane e as obras Cabasca-
village sérère (Fadial)”, sobre aspectos da religiosidade de sua etnia, os Sererê. No bo e Le Wazzou polygame, de Oumarou Ganda.
mesmo período, passa pelo curso de cinema da Escola Nacional Superior Louis Lu- Por último, ao falar de Rouch e cineastas africanos, não poderíamos deixar de citar
mière, onde realiza seu primeiro curta-metragem, A transeunte (La passante, 1972), o “histórico confronto” com Ousmane Sembène, ocorrido em 1965 e documenta-
inspirado no poema de Charles Baudelaire, À une passante. do pelo jornalista e crítico francês Albert Cervoni. Nele, ambos discutem questões
Em 1975, Safi lança seu segundo filme, Carta Camponesa (Kaddu Beykat), consi- concernentes à etnologia, ao cinema e à África. Reza a lenda que, após a conver-
derado o primeiro longa-metragem feito por uma mulher da África Subsaariana sa, Sembène nunca mais comentou sobre a obra de Rouch. Reproduzimos abaixo
e comercialmente distribuído internacionalmente. Sua pesquisa sobre os Sererê dois trechos reveladores desse embate:
resulta ainda em outros dois filmes, os documentários Fad’jal e Goob na nu, ambos Ousmane Sembène: Cineastas europeus, como você, con-
de 1979. Também naquele ano, Faye conclui o doutorado em etnologia na univer- tinuarão a fazer filmes sobre a África uma vez que haja
sidade Paris VII - Denis Diderot. vários cineastas africanos?
A participação no método etnográfico de Rouch conferiu a Safi uma importante Jean Rouch: Isso dependerá de várias coisas, mas meu
referência para suas próprias obras; muitas delas documentários com a presen- ponto de vista, no momento, é de que eu tenho uma van-
ça de narração e focados na observação. No entanto, diferentemente do cineasta tagem e uma desvantagem ao mesmo tempo. Eu trago
francês, Faye se afasta da noção da alteridade e do outro, típicos da etnologia, para o olhar do estranho. A própria noção de etnologia está
se aproximar de um método no qual filma seus semelhantes, seu mundo íntimo. baseada na seguinte ideia: alguém confrontado com uma
Em Carta camponesa, por exemplo, vemos no início diversas cenas de uma aldeia cultura que é estranha a ele vê certas coisas que as pes-
Sererê enquanto Safi narra: “Esta é a minha aldeia. Meus pais são agricultores e soas de dentro dessa mesma cultura não veem.
criadores. Minha grande família”. A relação íntima e afetuosa estabelecida aí apro-
[...]
xima o espectador, que ainda assim observa.
OS: Há um filme seu que eu adoro, que eu defendi e conti-
Além de Oumarou Ganda e Safi Faye, Jean Rouch também colaborou com a carrei-
nuarei a defender. É Eu, um negro (Moi, un noir). Em princí-
ra do cineasta nigerino Moustapha Alassane. Tal história se inicia quando Rouch
pio, um africano poderia tê-lo feito, mas nenhum de nós,
se torna, em 1960, diretor do Institut Français d’Afrique Noire (IFAN), situado em
na época, tinha as condições necessárias para produzi-lo.
Niamey. É no IFAN que Moustapha Alassane se envolve com o cinema, paixão que
Acredito que é necessária uma continuação para Eu, um
cultivava desde criança, quando projetava desenhos que fazia com uma caixa e
negro – penso nisso o tempo todo – a história desse jo-
um lampião. No início dos anos 1960, primeiros anos da independência, ele se
vem que, após a Indochina, não tem emprego e acaba na
torna o primeiro nigerino a filmar em seu próprio país.
cadeia. Depois da independência, o que acontece com
Após a formação no IFAN, por intermédio do diretor canadense Claude Jutra e de ele? Alguma coisa mudou? Acredito que não. Um deta-
Rouch, Alassane parte para o Canadá a fim de estudar animação no Office national lhe: esse jovem tinha seu diploma, agora acontece que
du film du Canada, sendo aluno de Norman McLaren, um dos maiores nomes da a maioria dos jovens delinquentes tem diplomas escola-
animação mundial. Retornando ao Níger, Alassane concebe, ao longo de quatro res. Sua educação não os ajuda, não os permite viver uma
décadas como realizador, uma filmografia ímpar, que abarca documentários, ani- vida normal. E, finalmente, sinto que até agora dois filmes
mações e filmes de ficção. Além disso, foi diretor do curso de Cinema da Universi- de valor foram feitos sobre a África: o seu, Eu, um negro e
dade de Niamey durante 15 anos, sendo responsável por introduzir outras figuras Come back, Africa, do qual você não gosta. E há um tercei-
ao cinema, como a atriz nigerina Zalika Souley. Zalika foi convidada por Alassane

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ro, de uma ordem particular, falo de As estátuas também ciências sociais. A reação dos cineastas africanos se tradu-
morrem. ziu por uma vontade de superação do retrato etnográfi-
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JR: Gostaria que me dissesse por que não gosta dos meus co, principalmente quando a representação documental
filmes puramente etnográficos, aqueles nos quais nós estava impregnada de africanismo. (BAMBA, 2009, p. 96).
mostramos, por exemplo, a vida tradicional? Além de Jean Rouch, outra figura central nas primeiras décadas do surgimento
OS: Porque vocês mostram, vocês fixam uma realidade das cinematografias africanas é o diretor, produtor, crítico, historiador e teórico
sem ver a evolução. O que eu tenho contra você e os afri- Paulin Soumanou Vieyra. Nascido em 1925 no Benin, Paulin Vieyra é enviado aos
canistas é que vocês nos olham como se fôssemos inse- 10 anos a um internato na França, sendo educado à maneira europeia. Em 1952,
tos. (CERVONI, 1996, p. 104-5). torna-se o primeiro africano a ser aceito no antigo Instituto de Altos Estudos Ci-
nematográficos (Institut des Hautes Études Cinématographiques - IDHEC), em Paris.
Neste debate, Sembène se posiciona politicamente, reivindicando que os cinemas Neste mesmo ano, se junta a outros três amigos – Jacques Mélo Kane, Mamadou
africanos fossem, de fato, realizados por e para africanos, fato não permitido du- Sarr e Robert Caristan –, que fundam o Le Groupe Africain de Cinema.
rante a era colonial. As polêmicas envolvendo a etnoficção empregada por Rouch
são muitas, mas ele foi, sem dúvida, uma figura determinante no período colonial Em 1955, o grupo realiza África sobre o Sena (Afrique sur Seine), a respeito da vida
e nos primeiros anos do pós-independência. Esse cineasta-etnólogo trazia sua ex- dos imigrantes africanos em Paris, tornando-se o primeiro filme dirigido por um
periência e boa relação com os franceses, maiores incentivadores das cinemato- africano negro proveniente da África Subsaariana. De volta a Dakar, torna-se su-
grafias africanas, mesmo que buscassem com isso a manutenção de sua influência pervisor (até 1975) das produções do Actualités sénégalaises, serviço de notícias
política e econômica sobre as ex-colônias. do Senegal, registrando as primeiras décadas da independência e, principalmen-
te, os passos do primeiro presidente do país, Léopold Sédar Senghor.
Como bem explica Mahomed Bamba ao comentar algumas das declarações nega-
tivas de Sembène e Med Hondo sobre a obra de Jean Rouch: Em 1966, o Le Groupe Africain de Cinema terá uma atuação fundamental no já ci-
tado 1º Festival Mundial de Artes Negras. Ao final do evento, por instigação de
À primeira vista, essas reações negativas podem pare- Vieyra e seus companheiros, recomendou-se a criação de uma organização inte-
cer dirigidas contra a pessoa de Rouch. Mas, na verdade, rafricana de cinema que teria sede em Dakar, a fim de reunir profissionais dos ci-
elas são a manifestação sintomática do desconforto que nemas africanos e adotar medidas para o desenvolvimento de todos os setores da
sente qualquer africano diante das imagens etnográficas, indústria cinematográfica.
que as encara como a “representação do colonizado”. A
insuperável “exterioridade” do olhar no filme etnográfico Desses esforços, em outubro de 1970, durante as Jornadas Cinematográficas de
predispõe, assim, o Outro às mais diversas críticas ao seu Cartago, a Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) se torna realidade.6 Os
reflexo. Nas críticas dos cineastas africanos, revela-se uma pioneiros desta organização, além de Paulin Vieyra, incluem também Ababacar
parte do fundo do inconsciente do colonizado: a suspei- Samb Makharam (eleito como primeiro secretário geral), Ousmane Sembène,
ção e a aversão ao filme etnográfico em geral. A maioria Momar Thiam, Oumarou Ganda, Moustapha Alassane, Tahar Cheriaa, Med Hondo,
dos filmes etnográficos é acusada de ser africanista. Ora, o Souleymane Cissé, Moussa Diakité, Bassori Timité, Lionel Ngakane, Zalika Souley
africanismo da antropologia e da etnologia sempre inco- e outros pioneiros.
modou os intelectuais africanos. Depois da colonização, Além de África sobre o Sena, Vieyra também se envolveu em outro filme seminal:
a visão segundo a qual um filme etnográfico reflete a o curta-metragem Borom Sarret (ou traduzindo do Wolof: “O carroceiro”), de Ous-
realidade africana vai na contramão da modernidade que mane Sembène, lançado em 1963. Como falamos, Vieyra trabalhava naquele mo-
as jovens nações independentes querem ostentar para mento no serviço de notícias senegalês Actualités sénégalaises. Com seus conta-
o mundo. Com a retomada de seu destino em mãos, a tos, obteve parte dos equipamentos e da equipe para a realização de Borom Sarret,
“africanização” da história pelos próprios africanos ocorre
6 Segundo Manthia Diawara (1992, p. 39), a origem da FEPACI se dá em julho de 1969, durante o
conjuntamente com o questionamento da ideologia das Festival Cultural Pan-africano em Argel, quando diversos cineastas se reuniram em torno de uma or-
ganização interafricana. No ano seguinte, a federação surge de fato como entidade jurídica.
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considerado o primeiro filme dirigido por um africano negro em seu próprio país. ma et l’Afrique, pesquisas seminais em um momento em que os cinemas africanos
Vieyra também foi o responsável por apresentar o produtor e diretor de cinema eram completamente ignorados pela área acadêmica.
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francês, André Zwoboda, a Ousmane Sembène. Pouco depois, Zwoboda se tornou Debruçando-me sobre a primeira geração de profissionais dos cinemas africanos,
produtor do primeiro longa-metragem de Sembène, A negra de…, filme que lan- logo compreendi que esse seria um tema vasto e complexo, não se limitando a
çou o cineasta senegalês ao estrelato internacional, participando de importantes uma região ou até mesmo à África. É o caso, por exemplo, da Companhia de Arte
festivais, como as Jornadas Cinematográficas de Cartago e o Festival de Cannes, Dramática dos Griôs (em francês Compagnie d’Art Dramatique des Griots), criada no
onde ganhou o prêmio Jean Vigo. final dos anos 1950 por quatro amigos que viviam em Paris: o marfinense Bassori
Mais do que parceiros profissionais, Sembène e Vieyra se tornaram também ami- Timité, o senegalense Ababacar Samb Makharam, a haitiana Toto Bissainthe e a
gos íntimos. Vieyra dedicou ao companheiro o livro Ousmane Sembène cinéaste: guadalupense Sarah Maldoror. Percebe-se aí uma confluência entre a diáspora e
première période, 1962-1971 e foi produtor de diversos de seus filmes; entre eles, os africanos, unidos em prol de ideias como a luta pela libertação da África e a ne-
os longas-metragens Mandabi (1968), Emitai (1971), Xala (1975) e Ceddo (1977). gritude. No caso específico da companhia, segundo Maldoror (2016), os “objetivos
Na edição n.170 da revista Présence Africaine – dedicada a Paulin Vieyra e com eram introduzir autores negros e criar uma escola dramática para africanos”. Nos
escritos de diversos amigos, como Sarah Maldoror e Bassori Timité –, há um texto anos 1960, o grupo se encerra, com Toto Bissainthe se tornando atriz e cantora,
de Ousmane Sembène no qual relembra a importância de Vieyra em sua vida: enquanto os outros três se dedicam ao cinema. Sarah Maldoror, considerada uma
das matriarcas do cinema africano por produções como Monangambee (1969) e
Restituída a independência, retornei ao Senegal (da Fran- Sambizanga (1972) – filmadas respectivamente na Argélia e em Angola –, obteve
ça), onde encontrei Paulin S. Vieyra no cargo de chefe do sua formação cinematográfica técnica no estúdio Gorki, em Moscou, juntamente
departamento de cinema. Toda semana, com sua equipe com Ousmane Sembène.
de cinegrafistas, ele preparava as atualidades nacionais
“Senegal en marche”. Ele também dava cursos de cine- Outro caso similar é o de Med Hondo, nascido na Mauritânia e radicado na França
matografia a seus colaboradores, incluindo Georges Ca- a partir do final dos anos 1950. Lá, Hondo obteve formação primeiramente como
ristan, que veio a ser diretor de fotografia de vários de ator, fundando companhias teatrais e, posteriormente, sua própria produtora ci-
meus filmes. Ocorreu-me então a ideia de explorar nosso nematográfica. Em 1970, lançou seu primeiro filme, Ó, Sol (Soleil Ô), feito ao longo
continente, do qual nada sabia fora da minha província. de cinco anos, com sua companhia teatral e a partir de um pequeno orçamen-
[...] De retorno a Dakar, anuncio a Paulin S. Vieyra minha to. Considerado precursor da vanguarda cinematográfica africana Ó, Sol teve sua
intenção em aprender a fazer filmes. Sua resposta foi di- estreia na Semana da Crítica Internacional, em Cannes, e participou também de
reta: “Está bem, estou aqui”. Terminada minha formação, festivais como o de Locarno, Cartago, Berlim e FESPACO. Apesar de radicado na
retorno ao Senegal munido de uma ferramenta essencial: França, Hondo esteve profundamente envolvido, desde o início, com a Federação
uma câmera 35mm. Paulin S. Vieyra me ajudou a filmar Pan-Africana de Cineastas e o FESPACO, onde encontrava frequentemente seus
Borrom Sarret, meu primeiro curta-metragem. [...] Na oca- companheiros da causa pela sétima arte na África.
sião deste quinquagésimo aniversário de Afrique sur Seine Outro ponto que podemos abordar reside no fato de que a primeira geração de
me faço e sempre me farei esta pergunta: Não tivessem cineastas africanos se caracterizou por trabalhar, muitas vezes, com os mesmos
sido densos e profundos meus laços com Paulin S. Vieyra, profissionais. É o caso, por exemplo, dos montadores Andrée Davanture e André
teria eu realizado meus filmes? (SEMBÈNE, 2004, p. 21-2). Gaudier, e do já citado Moussa Hamidou, técnico de som.
Além de Sembène, Vieyra foi mentor também de outros cineastas, como Djibril A montadora francesa Andrée Davanture trabalhou em mais de uma dezena de
Diop Mambéty e Ababacar Samb Makharam, ambos do Senegal e Flora Gomes, filmes africanos, como os de Safi Faye (Carta camponesa, Fad’jal, Selbé, et tant d’au-
da Guiné-Bissau. Em 1982, concluiu seu doutorado na Universidade Paris X, sendo tres e Mossane), Jean-Pierre Dikongué Pipa (Muna Moto), Souleymane Cissé (Baara,
orientado por Jean Rouch. Como historiador e pensador, publicou diversos artigos Finyé, Yeelen, Waati, A garota e outros), Gaston Kaboré (Wend Kuuni e Zan Boko),
e livros, como Le cinéma au Sénégal, Le Cinéma africain des origines à 1973 e Le Ciné- Oumarou Ganda (L’exilé) e Paulin Soumanou Vieyra (L’envers du décor). O montador

14 15
André Gaudier trabalhou em filmes de Ousmane Sembène (Niaye, O carroceiro e A outra realidade. Na França, a relação com os patrões adquire contornos parecidos
negra de...), Ababacar Samb Makharam (E não havia mais neve...) e Paulin Souma- com a dinâmica colonial, com Diouana perdendo sua liberdade, sendo insultada e
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


nou Vieyra (Lamb). Moussa Hamidou trabalhou como técnico de som em diversos explorada num regime de semisservidão. Ao adquirir consciência de sua situação,
filmes de Jean Rouch e também em Cabascabo e Le Wazzou polygame, de Ouma- Diouana constata o lugar reservado ao imigrante africano, ex-colono, na socie-
rou Ganda, e em O regresso de um aventureiro, de Moustapha Alassane. dade europeia. Visto que a emancipação e a ascensão não serão nunca possíveis,
decide pôr fim a sua própria vida.
Diálogos entre filmes
Em Touki Bouki, temos a
Gostaria de encerrar esse artigo traçando algumas relações entre os cineastas afri-
história de Anta e Mory,
canos no que diz respeito às suas obras. Atentarei-se aos mais celebrados cineas-
dois jovens desiludidos
tas senegaleses: Ousmane Sembène e Djibril Diop Mambéty. Frequentemente
no Senegal pós-inde-
colocados em dois opostos, o primeiro com um estilo mais ligado ao conteúdo so-
pendência e desejosos
ciopolítico, vindo de uma
de uma mudança para
tradição realista socialista
Paris. Assim, todos os
e o segundo com um es-
seus planos envolvem
tilo mais ligado à forma e
conseguir dinheiro
a correntes vanguardistas
para pagar suas passa-
calcadas no experimenta-
gens. Como Diouana,
lismo, ambos também po-
os jovens Anta e Mory
dem ser estudados pelo
planejam ascender
viés das aproximações e
econômica e social-
similaridades. É o caso,
mente, principalmente
por exemplo, dos filmes A
pensando em um pos-
negra de…, de Sembène
sível retorno ao Sene-
e Touki Bouki, de Mambé-
gal. No último instante,
ty, onde trabalham com
Mory permanece em
a questão da imigração e
Dakar, enquanto Anta
do refúgio para criticar a
parte sozinha em dire-
modernidade pós-colo-
ção a Paris.
nial.
Não sabemos qual será
Em A negra de…, Diou-
o destino de Anta na
ana é uma empregada
França. Terá seguido
doméstica convidada a
os mesmos passos de
ir de Dakar para Antibes,
Diouana e se frustrado
acompanhando seus pa- O Ancerville partindo de Dakar com Anta
com a promessa do so-
trões franceses para aju- em “Touki Bouki”
nho europeu? Ou ficará
dar a cuidar de seus filhos
rica e voltará a Dakar – ostentando dinheiro e carros, como na cena anteriormente
pequenos. Seus sonhos
imaginada pelo casal? Anta parte para a França no navio Ancerville, exatamente
de ascensão econômica
o mesmo navio em que Diouana havia feito a travessia anos antes. Seria esse um
O Ancerville chegando à França, com e social são, no entanto,
Diouana em “A negra de...”. prenúncio?
logo confrontados com

16 17
Em Touki Bouki, a bordo do Ancerville, um senhor diz em francês: “Nunca saímos CHAM, Mabye. Film and history in Africa: a critical survey of current trends and
de Dakar. O que há no Senegal? Esterilidade. Intelectual também”. Ao passo que tendencies. In: PFAFF, Françoise (org.). Focus on African Films. Bloomington: India-
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uma mulher francesa afirma: “Ensinamos em Dakar por sete anos. Nossos salários na University Press, 2004.
são três vezes o de seus professores. Mas eles não comem como nós. Eles não são
OLIVEIRA, Janaína. Descolonizando telas: o FESPACO e os primeiros tempos do
refinados”. O senhor continua: “E o que nós vamos comprar aqui? Máscaras? Arte
cinema africano. In: Odeere: revista do programa de pós-graduação em Relações
africana é uma piada feita por jornalistas que precisavam vender. Eles são apenas
Étnicas e Contemporaneidade – UESB, ano 1, n. 1, v. 1, jan/jun 2016a.
crianças grandes”.
______. Descolonizando telas: o FESPACO e os primeiros tempos do cinema africa-
Essa cena é bastante parecida com a de A negra de… onde os patrões de Diouana
no - parte 2. FICINE - Fórum Itinerante de Cinema Negro, 2016b. Disponível em:
convidam alguns amigos franceses para uma refeição. Enquanto Diouana prepara
<http://ficine.org/descolonizando-telas-o-fespaco-e-os-primeiros-tempos-do-ci-
a comida, há os seguintes comentários dos franceses: “a África não é segura agora,
nema-africano-parte-2/>. Acesso em: 7/out./2019.
com todas essas guerras civis”, “na África comem somente arroz” e “depois da inde-
pendência, eles perderam sua naturalidade”. DIAWARA, Manthia. African Cinema: Politics & Culture. Bloomington, Indiana: India-
na University Press, 1992.
Em A negra de… e Touki Bouki, Sembène e Mambéty expõem e criticam questões
como o racismo impregnado na sociedade europeia e a exploração econômica da GADJIGO, Samba. Ousmane Sembène: The Making of a Militant Artist. Bloomington,
mão de obra africana. Tais obras são, portanto, poderosos discursos políticos que Indiana: Indiana University Press, 2010.
denunciam a continuidade de um passado colonial na modernidade pós-colonial.
GROOF, Mathias de. Ethnographic Film’s Relation to African Cinema: Safi Faye and
Tal como afirma Mbye Cham, os filmes africanos:
Jean Rouch. In: Visual Anthropology, 31(4-5), 2018, p. 426-444.
constituem uma forma de discurso e prática que não é
HAFFNER, Pierre. Jean Rouch jugé par six cinéaster d’Afrique Noire. In: PRÉDAL,
só artística e cultural, mas também intelectual e política.
René (ed.) Dossier Jean Rouch ou le ciné-plaisir. CinémAction, n. 81, 1996.
É uma forma de definir, de descrever e interpretar as ex-
periências africanas cujas forças modelaram seu passado HENLEY, Paul. The Adventure of the Real: Jean Rouch and the Craft of Ethnographic
e seguem modelando e influenciando o presente. São Cinema. Chicago: The University of Chicago Press, 2009.
um produto das experiências históricas dos africanos e
MALDOROR, Sarah. The importance of a black perspective. Berlinale Shots. Dispo-
têm influência e relevância direta para os desafios que as
nível em: <https://shortsblog.berlinale.de/2017/01/25/the-importance-of-a-bla-
sociedades africanas e seus descendentes enfrentam no
ck-perspective/>. Acesso em: 11/ago./2019.
mundo no presente e no futuro. (2004, p. 48).
NASCIMENTO, Pedro de Alencar Sant’ana do. Uma abordagem do cinema etnográ-
fico de Rouch: métodos, filmes e críticas. Monografia (Graduação em Cinema e Au-
Bibliografia diovisual) - Departamento de Cinema e Vídeo, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2016.
BAMBA, Mahomed. Jean Rouch: cineasta africanista? In: Devires - Cinema e Huma-
nidade. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências PFAFF, Françoise. Twenty-five Black African Filmmakers. Westport: Greenwood
Humanas (Fafich), v. 6, n. 1, p. 92-107, jan/jun 2009. Press, 1988.

______. O papel dos festivais na recepção e divulgação dos cinemas africanos. In: PRÉDAL, René. Rouch d’hier à demain. In: CinémAction, n. 17, ed. René Prédal, p.
MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo: África - indústria, política e mercado. 6-14. Paris: L’Harmattan, 1982.
São Paulo: Escrituras, 2007, p. 79-104.
SACRAMENTO, Evelyn dos Santos. Safi Faye: entre o olhar e o pertencimento. Disser-
CERVONI, Albert. Une confrontation historique en 1965 entre Jean Rouch et Sem- tação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) - Universidade Federal da Bahia,
bène Ousmane: ‘Tu nous regardes comme des insectes’. In: PRÉDAL, René (ed.) Salvador, 2019.
Dossier Jean Rouch ou le ciné-plaisir. CinémAction, n. 81, 1996, p. 104-6.
18 19
SEMBÈNE, Ousmane. Moment d’une vie: Paulin Soumanou Vieyra. In Cinquante
ans de cinéma africain. Hommage à Paulin Soumanou Vieyra. Revue Présence Afri-
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


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TAPSOBA, Clément. Cinéastes d’Afrique noire: parcours d’un combat révolution- ABORDAGENS POSSÍVEIS PARA
naire. In: RUELLE, Catherine (org.) In Afriques 50: Singularités d’un cinéma pluriel.
Paris: L’Harmattan, Collection Images plurielles, 2005, p. 147-151. OS CINEMAS AFRICANOS –
______. Moustapha Alassane, le pionnier du cinéma d’animation d’Afrique noire, a QUESTÕES DE VISIBILIDADE1
tiré sa révèrence. Africine. Disponível em: <http://www.africine.org/?menu=art&- Ana Camila Esteves
no=12867>. Acesso em: 4/ago./2019. Morgana Gama
THIONG’O, Ngugi Wa. A descolonização da mente é um pré-requisito para a práti-
ca criativa do cinema africano? In: MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo:

P
or que razão a maior parte dos pesquisadores dos cinemas africanos escolhe
África - indústria, política e mercado. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 27-32.
analisar a produção fílmica do continente a partir de uma perspectiva auto-
THACKWAY, Melissa. Africa Shoots Back: Alternative Perspectives in Sub-Saharan ral, pautada na trajetória do cineasta, ou de uma abordagem voltada para a
Francophone African Film. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 2003. discussão de representações, do pós-colonialismo e da dicotomia entre tradição e
modernidade no contexto da cultura africana? O que motiva essas escolhas, além
UKADIKE, Nwachukwu Frank. Black African Cinema. Berkeley e Los Angeles, Califor-
da própria narrativa fílmica? Como bem assinalou Mahomed Bamba, pesquisador
nia: University of California Press, 1994.
dos cinemas africanos no Brasil, “todo filme é portador de seus próprios opera-
dores de leitura/interpretação, enquanto outra parte do processo de interpreta-
ção depende de diversos fatores e determinações contextuais e institucionais”.
(BAMBA, 2013, p. 235). Assim é que ao avaliar os critérios utilizados na construção
Tiago Castro Gomes é Bacharel em Cinema & Audiovisual e Mestre em Comunicação de discursos analíticos sobre filmes africanos, bem como o processo de difusão e
pela Universidade Federal Fluminense, onde desenvolveu pesquisas sobre o cinema consagração dessa cinematografia, percebe-se uma estreita relação com determi-
africano colonial e pós-colonial. Sua área de atuação profissional é a da preservação nadas instâncias mediadoras, especialmente os festivais e a academia. A partir da
audiovisual, tendo trabalhado no Centro Técnico Audiovisual (CTAv), Museu da Ima- reflexão dos principais pesquisadores dos cinemas africanos no Brasil e no mundo
gem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) e Cinemateca do Museu de Arte Moderna do (BAMBA, 2008, 2009, 2010, 2013; BARLET, 2000; DIAWARA, 1992; TCHEUYAP, 2011;
Rio de Janeiro. Desde 2016 trabalha na Cinemateca Brasileira. UKADIKE, 1994), argumentamos que a adoção de diferentes abordagens críticas
parte de um processo de retroalimentação entre essas duas instâncias. Ao funcio-
narem como espaços de comunicação, elas orientam o conteúdo dos discursos
que circulam neles e restringem a percepção dessa cinematografia a determina-
dos paradigmas.

Este artigo, portanto, ao buscar compreender as lógicas que orientam a produção


dos discursos sobre filmes africanos, parte da necessidade de pensar, para além
do seu conteúdo, nos mecanismos institucionais que os precedem, mediam e
condicionam, resultando em escolhas por abordagens específicas que interferem
no processo de interpretação dos filmes e, por sua vez, orientam os processos de
visibilidade e consagração desta cinematografia. Essa preocupação com as ins-
1 O presente artigo é uma versão editada do trabalho publicado nos anais do XVIII Encontro dos
Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação (2018).

20 21
tâncias mediadoras também faz parte de um percurso já traçado por Mahomed papel dos curadores e programadores dos festivais de filmes africanos no mun-
Bamba, no artigo Os espaços de recepção transnacional dos filmes: propostas para do muitas vezes é assumido por pesquisadores do campo, o que significa que as
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uma abordagem semiopragmática (2013), cujo ponto de partida é uma reflexão mesmas pessoas que determinam quais filmes devem ser exibidos são também as
acerca da recepção transnacional de filmes africanos. No texto, Bamba entende que decidem sobre quais deles são relevantes para a pesquisa acadêmica. Riesco
o contexto de estudos do World Cinema como um campo constituído por micro- acrescenta que o público desta cinematografia acaba por se tornar restrito a esses
espaços de comunicação, recepção e leitura fílmica. Dentro destes microespaços espaços de comunicação, de modo que entre eles existe uma espécie de depen-
se configuram o que o autor chama de “modos de leitura acadêmica do cinema dência e retroalimentação:
africano” (2013, p. 225), que se “materializam” ou são operacionalizados através
de espaços de eventos onde ocorre a recepção transcultural (festivais de cinema) Devido à precária difusão comercial destes filmes, suas
e através de modos de leitura analítica e teórica dos filmes no campo acadêmico projeções se circunscrevem em grande medida a aulas
(revistas científicas e catálogos)2. universitárias e a festivais de cinema. Sua audiência é,
portanto, educada e instruída, caracterizada por se apro-
Enquanto o pesquisador buscava investigar a construção desses espaços de comu- ximar da obra seja através da leitura crítica, seja através de
nicação3 a partir de uma perspectiva semiopragmática4 para compreender a inte- um mediador informado: um professor universitário ou
ração entre filme e espectador no processo de recepção transnacional, nos é pri- especialista em festival, dois papéis que, em muitos casos,
mordial aqui pensar esses espaços de comunicação (festivais e academia) enquan- se atravessam. Neste contexto de distribuição, exibição e
to instâncias institucionalizadas, com uma lógica discursiva própria no campo do recepção mediada, as opiniões da crítica se convertem
cinema. Tais espaços funcionam como importantes mediadores no processo de em camisas de força, limitando o alcance do acesso aos
produção de discursos e, por sua vez, orientam a interpretação de filmes africanos filmes. (RIESCO, 2014, p. 165- 166, tradução nossa).
no contexto de estudos teóricos em cinema. Acreditamos que compreender suas
lógicas internas pode ser profícuo, no intuito de investigar aquilo que orienta a
A escolha por abordar o filme a partir de uma perspectiva específica (histórica,
produção de sentido sobre a cinematografia africana e suas possíveis implicações.
política, nacionalista, culturalista etc.) dialoga com determinadas tradições e fi-
Argumentamos, portanto, que os filmes produzidos por cineastas africanos, à se- liações teóricas com implicações diretas sobre a circulação do filme nos espaços
melhança de outras produções cinematográficas emergentes no cinema mundial, de comunicação (seja sua exibição em festivais e mostras como sua análise em
devem a sua legitimação em boa medida a esses filtros institucionais.5 Em artigo produções acadêmicas) – e também na própria lógica de produção. Uma recep-
no qual analisa como a obra do cineasta mauritano Med Hondo aparece na pro- ção favorável por essas instituições pode, por exemplo, resultar na obtenção de
dução acadêmica no campo dos estudos sobre os cinemas africanos, a pesquisa- premiações, incentivos financeiros, além do aumento da possibilidade de dis-
dora espanhola Beatriz Leal Riesco (2014) argumenta que a instância acadêmica tribuição internacional. Entendemos, portanto, que para uma apreciação crítica
exerce ainda muita influência sobre a valoração da cinematografia africana. O de filmes africanos não basta a escolha por uma vertente teórica ou outra, mas a
2 Os catálogos produzidos em mostras e festivais, de modo geral, funcionam como um guia da forma como o pesquisador vai utilizá-la e, consequentemente, produzir discursos
programação. No entanto, no Brasil e em outros países tem se tornado comum aproveitar esse tipo
de publicação para apresentação de textos crítico-analíticos sobre os filmes exibidos, escritos por e significados sobre os filmes. Logo, o nosso desafio aqui é pensar quais fatores
pesquisadores e críticos de cinema. Como pretendemos demonstrar ao longo deste artigo, não só os ou agentes interferem na construção de discursos sobre os cinemas africanos, e
textos dos catálogos de mostras de cinemas africanos, como a própria curadoria destes eventos, são
assinados por pesquisadores, justificando nossa escolha em categorizar o catálogo como publicação para entender a escolha por uma determinada abordagem é preciso atentar para
que acolhe textos de natureza acadêmica.
3 Esse conceito utilizado por Mahomed Bamba (2013) é apresentado por Roger Odin, no seu livro alguns precedentes históricos no contexto de estudos da cinematografia africana,
Les espaces de communication (2011), em referência à mediação operacionalizada pelas instituições com o fim de compreender as possíveis motivações ou fatores que orientam a
sociais, inclusive as informais, como a família.
4 O autor justifica a escolha por essa abordagem nos seguintes termos: “Optamos por uma abordagem escolha de uma abordagem ou outra.
semiopragmática na medida em que nosso interesse está, primeiramente, na construção teórica dos
‘espaços de comunicação’ em que se configuram os modos de leitura acadêmica dos filmes africanos”. Filmes africanos: abordagens
(BAMBA, 2013, p. 225).
5 Importante mencionar que a crítica jornalística e a recepção via plataformas de streaming, como
Netflix e YouTube, hoje se configuram como espaços de comunicação com muita força sobre os O nigeriano Nwachukwu Frank Ukadike e o malinês Manthia Diawara, residentes
hábitos espectatoriais, tanto na África quanto fora dela. Para uma discussão mais ampla sobre como a nos Estados Unidos, são precursores dos estudos publicados neste país com um
Netflix tem contribuído para a difusão de filmes africanos, ver artigo: Narrativas em disputa no cinema
nigeriano: um olhar sobre Nollywood a partir de Green White Green. (ESTEVES, 2019).

22 23
viés mais histórico sobre os cinemas africanos, priorizando em suas obras análises contribuindo para a política de libertação de seus países, em pouco tempo foram
da economia, produção e distribuição de filmes no continente. African Cinema. confrontados por novas fronteiras institucionais.
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Politics and Culture (DIAWARA, 1992) e Black African Cinema (UKADIKE, 1994) são
Em livro no qual discute as motivações nacionalistas dos cinemas africanos e dos
os primeiros livros publicados sobre os cinemas africanos nos Estados Unidos, e
estudos sobre esta cinematografia, o autor camaronês Alexie Tcheuyap (2011) re-
ainda hoje se constituem como as maiores referências no campo. Estas publica-
laciona a prática de estudos acadêmicos sobre os cinemas africanos com o discur-
ções surgem em um contexto no qual os estudos de cinema baseados nas gran-
so ideológico da FEPACI (Fédération Panafricaine des Cinéastes), instituição funda-
des teorias (historiografia, realismo e formalismo) começavam a ser questionados
da em 1969 com base na ideologia de que o cinema deve servir à luta anticolonial
em favor de novas metodologias e teorias. Foi neste momento que os Estudos
e de forma alguma se render ao puro entretenimento – para eles, o cinema é um
Culturais avançaram e ganharam mais força, ao lado de estudos pós-coloniais
instrumento de luta através da educação.6 Diante disso, a produção acadêmica se
e de gênero, de modo que a Psicanálise, o Estruturalismo e o Pós-modernismo
viu tão obrigada a seguir os preceitos da FEPACI como os próprios cineastas, resul-
seriam abordagens convocadas para se pensar o cinema. Tais vertentes teóricas
tando em uma corrente específica de estudos, com seus preceitos e objetivos, no
e abordagens metodológicas encontraram terreno fértil no universo dos temas
discurso que Tcheuyap questiona ao longo desta obra. Ele é categórico, inclusive,
trazidos pelos filmes africanos, estimulando a produção acadêmica de pesquisa-
ao dizer que os pesquisadores abdicaram de suas responsabilidades intelectuais
dores formados nas mais diversas áreas e que viam nesta jovem cinematografia
ao se limitar a apenas reproduzir o discurso da FEPACI nas suas análises, sem mi-
material para pensar as questões que lhes interessavam. Beatriz Leal Riesco (2014)
nimamente questioná-lo.7
comenta que esta tendência, resultante da formação literária dos pesquisadores,
acabou por orientar a apreciação dos filmes africanos a partir de uma abordagem Justamente por se tratar de obras artísticas produzidas no contexto de outro con-
que, com frequência, ignorava não só a dimensão estética cinematográfica das tinente, com cultura e formas distintas de compreender e representar o mundo,
obras, mas o contexto cinematográfico internacional do fenômeno que estavam acreditamos que a análise de filmes africanos se caracteriza, pela maior parte dos
estudando. Segundo Riesco, nesta época, críticos ocidentais, basicamente pelo desenho de três vertentes. Uma delas é mais
voltada para a análise da representação contida nas narrativas e mais atenta ao
Urgia reconstruir a História, e os estudiosos se dedicaram discurso ideológico-político que se apresenta por meio dela. Outra se detém mais
a isso em suas obras iniciais, com um viés político pro- sobre a forma fílmica, os recursos técnicos e estilísticos utilizados pelo realizador,
gressista e de oposição usando narrativas históricas que resultando muitas vezes em uma análise mais voltada para a autoria. Uma última,
agrupavam de maneira simplista cinematografias, filmes inspirada no fenômeno de Nollywood,8 busca compreender esta cinematografia
e autores por temas e orientação ideológica progressista. específica e seus desdobramentos a partir de questões referentes às dinâmicas
Das análises formais e das que situavam os cinemas afri- de produção, distribuição e espectatorialidade. Especialmente em função de seu
canos em escala global, se passaria rapidamente a leitu- enorme alcance popular junto às plateias africanas, preterindo discussões sobre
ras concretas psicanalíticas, pós-coloniais, de gênero e da a estética e linguagem destes filmes. A escolha por uma vertente ou outra certa-
pós-modernidade baseadas no mesmo corpus de filmes. mente é consequência de um processo de legitimação que acontece na retroali-
[...] Poderia-se estar escrevendo sobre um romance, um mentação existente entre os festivais consagradores em nível mundial (como os
quadro, uma obra de teatro ou um filme, que o leitor não de Cannes, Veneza, Berlim e Toronto, para mencionar alguns), bem como aqueles
perceberia a diferença diante das críticas dos filmes indi- 6 No site oficial, a FEPACI se apresenta como uma organização que trabalha “incansavelmente ao
vidualmente. (RIESCO, 2014, p. 172-173). longo dos anos colaborando e persuadindo os governos africanos e as organizações continentais,
incluindo a União Africana, a reconhecer a importância das indústrias do cinema e do audiovisual na
educação social, econômica e política das nossas populações, e a adotar políticas cinematográficas
Mais que isso, a produção intelectual sobre o cinema do continente, em sua maior que estimulem o desenvolvimento do cinema em seus respectivos países, tanto continental como
regionalmente”. (FEPACI, 2018).
parte de autoria de pesquisadores europeus, durante muito tempo priorizou as 7 Para uma revisão de literatura com foco em como os principais autores do campo de estudos
sobre os cinemas africanos orientaram suas pesquisas a partir do discurso ideológico da FEPACI, ver
abordagens apontadas por Riesco, que se sobrepuseram a uma análise estética capítulo introdutório do Postnationalist African Cinemas (TCHEUYAP, 2011) e o artigo Que cinema
que pudesse pensar o cinema como linguagem. Assim, se por um lado os cine- africano?Uma reflexão conceitual. (LIMA, 2019).
8 Convencionou-se chamar de Nollywood a indústria de filmes na Nigéria, a segunda maior indústria
astas africanos tinham diante de si a oportunidade de representar a si mesmos, em número de filmes produzidos por ano e a terceira em faturamento. A produção de filmes em
Nollywood teve início nos anos 1990 e arrecada 250 milhões de dólares por ano, com obras
distribuídas em formato de vídeo/DVD e uma estética amadora, porém muito popular no país.
24 25
especificamente voltados à curadoria de filmes africanos, e às instâncias da pes- análise dos filmes africanos, minha intenção é postular
quisa acadêmica e da crítica em si. A interpretação atribuída aos filmes é, portanto, uma diversidade de grades de leitura que permitissem
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mediada por diferentes instâncias ou agentes que compõem o espaço de circu- a emergência de outros percursos de sentidos. (BAMBA,
lação das obras, e é através delas que se constituem também outras formas de 2009, p. 185).
mediação dos filmes africanos com o público.

A primeira vertente de abordagem pode ser considerada como um possível des- Fica evidente, portanto, que as três vertentes de abordagem analítica, que pode-
dobramento da militância atribuída a essa produção cinematográfica, fruto do mos chamar de culturalista, autoral e de produção, têm os seus devidos agentes,
contexto de pós-independência que marcou o surgimento dos primeiros filmes precedentes históricos e modos de legitimação. Através das discussões relaciona-
africanos, na época da fundação da FEPACI, como mencionado anteriormente. Tal das aos processos de mediação implicados nos discursos sobre os cinemas africa-
abordagem tende a avaliar as obras sob o prisma de discussões relacionadas à nos, é possível compreender como elas se organizam, a partir de que horizonte
identidade cultural, pós-colonialismo, imigração – temas que, embora sejam per- de expectativas, e como dialogam com os espaços de comunicação delimitados
tinentes à narrativa, podem conduzir a discussões que em geral ultrapassam o pelos festivais de cinema e pela produção acadêmica.
que é relativo à estrutura e à estética do filme, sua linguagem específica e sua Das abordagens analíticas dos cinemas africanos
compreensão enquanto produção artística.
Durante muitos anos, a produção de imagens das diferentes realidades da África
A não problematização dos critérios envolvidos nas escolhas metodológicas de foi refém de uma perspectiva eurocêntrica, para a qual restava um olhar compas-
análise de filmes africanos pode ter, pelo menos, duas consequências: a interpre- sivo sobre o “outro” colonizado, espoliado. À medida que os meios de produção
tação do filme como pretexto para a discussão de questões extrafílmicas de cunho cinematográficos se difundiram entre realizadores africanos, especificamente a
político-ideológico ou, pela hegemonia de determinados métodos e procedimen- partir dos anos 1960, quando do início das independências, tratar da cultura local
tos de análise, o impedimento de outras leituras para dar conta da pluralidade a partir de valores nacionalistas parecia uma causa relevante para (re)construir a
formal e estética desta cinematografia. Por se tratar de um cinema oriundo de pa- história negada pelo outro colonizador.9 No entanto, por efeito do processo de
íses de outro continente, resultante de uma configuração histórica e social muitas globalização, ocorrem transformações estruturais no campo do cinema mundial,
vezes distinta e distante de quem analisa, a interpretação de filmes africanos não tanto na produção com as novas lógicas de coprodução quanto na recepção com
raro está suscetível a uma leitura com direcionamento político-ideológico. Isso se a emergência de novos espaços de circulação das obras em lugar dos tradicionais
aplica, por exemplo, às análises feitas por críticos brasileiros que, pela afinidade circuitos: “Nesses espaços, operam outras formas de mediação e outros tipos de
histórica de pertencer a um país colonizado – à semelhança de vários países afri- determinações institucionais no processo de apropriação e de leitura dos filmes”.
canos –, tendem a construir um discurso interpretativo da obra fílmica pautado (BAMBA, 2013, p. 220).
em questões de busca de identidade, emancipação política etc. Mahomed Bamba,
ao tratar da relação entre cinemas africanos e modernidade, confessa o seu incô- Desde o início da produção cinematográfica africana pós-colonial, cineastas como
modo com a predominância de uma determinada perspectiva de julgamento dos Ousmane Sembène (Senegal) e Med Hondo (Mauritânia) encontravam-se à mercê
filmes: “Os horizontes de expectativas dos públicos brasileiros e da diáspora negra das instâncias de consagração do cinema, especialmente da França. Muitos dos
às vezes me confrontavam numa leitura demasiadamente temática e ‘culturalista’ seus filmes foram frutos de uma longa jornada para conseguir financiamento
dos conteúdos fílmicos”. (BAMBA, 2009, p. 183). Mais adiante, no mesmo texto, da antiga colônia,10 e sua exibição e premiação no Festival de Cannes, um dos
o pesquisador não só ratifica sua oposição a esse posicionamento crítico como maiores do mundo, estava condicionada à aceitação, por parte dos curadores, da
propõe uma alternativa para a análise dessas cinematografias: abordagem temática apresentada pelos filmes. A despeito da inegável qualidade
técnica e narrativa de filmes como La noire de… (1966, de Ousmane Sembène) e
Ora, fazer da obra de um autor o reflexo de uma reali- Soleil Ô (1967, de Med Hondo) – para citar apenas os primeiros longas-metragens
dade nacional incorre sempre no erro de desconsiderar
9 Para uma abordagem histórica sobre quando os africanos se apossaram dos instrumentos e da
a ‘intencionalidade’ e a subjetividade que são uma di- técnica para fazer filmes, em um contexto onde a produção de filmes era totalmente voltada para
interesses coloniais, ver Manthia Diawara (1992). Para uma revisão crítica mais aprofundada sobre a
mensão constitutiva de qualquer processo de criação. [...] história crítica/acadêmica dos cinemas africanos, ver Melissa Thackway (2003).
Ao questionar o culturalismo automático que vigora na 10 Cf. Diawara (1992).

26 27
destes diretores –, os curadores levavam em consideração somente a história con- Desta forma, também passaram a funcionar como alternativas à ausência de uma
tada e a ideologia por trás de narrativas anticoloniais. Os filmes africanos eram política cinematográfica nos países do continente e contribuíram de forma signi-
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


bem-vindos no Ocidente, desde que não afetassem a imagem do antigo coloniza- ficativa para a deficiência de distribuição e circulação de filmes africanos entre as
dor.11 Aos filmes “combativos” de Sembène e Hondo se sobrepuseram aqueles de populações ocidentais.
realizadores como o malinês Souleymane Cissé e o burquinense Idrissa Ouedra-
Da retroalimentação entre festivais e academia
ogo, que apresentavam, respectivamente, narrativas com uma abordagem mais
focada na África tradicional, mítica e atemporal. Em artigo sobre a Mostra Malembe Malembe,13 Mahomed Bamba traz o tema da
recepção de filmes africanos em pequenas mostras e festivais no Brasil. Segundo
De uma forma ou de outra, celebradas ou evitadas pelas instâncias europeias de
ele, mostras como essas revelavam “práticas de apropriação simbólica em que os
consagração, as obras destes cineastas, com o passar dos anos, foram objeto de
filmes eram apreciados mais por seu valor cultural do que puramente estético”.
profundas investigações acadêmicas sobre seus conteúdos políticos e sua impor-
(BAMBA, 2010, p. 1). Segundo ele, “diversos fatores sociopolíticos circunstanciais
tância na história dos cinemas africanos e do próprio continente. Mesmo com a
acabam incidindo na recepção dos cinemas africanos, a ponto de criarem, às
existência de um cinema popular e de gênero na África, que viria a ganhar força
vezes, uma descontinuidade e fratura entre os horizontes de expectativas e as
a partir dos anos 1990, especialmente na Nigéria, são as cinematografias autorais
‘intenções’ inerentes à produção das obras fílmicas” (p. 1). A preocupação (ou o
que ganham legitimidade no espaço acadêmico, pois essas obras correspondem,
“incômodo”) do autor vai ao encontro da nossa discussão aqui proposta, quan-
de certa forma, às categorias teóricas já elaboradas no campo e confirmam as ex-
do questiona quais os parâmetros de curadoria, exibição e recepção dos filmes
pectativas de alguns críticos e estudiosos franceses e norte-americanos.
africanos em espaços de comunicação específicos como mostras. Bamba volta
De forma semelhante às publicações de textos críticos, como revistas científicas, seu olhar especificamente sobre os catálogos, produção analítica resultante desta
sites de crítica ou catálogos de mostras, os festivais de cinema europeus acabam curadoria.
funcionando como um parâmetro de avaliação internacional dos cinemas afri-
canos, de modo que aparecer na lista de filmes selecionados para o Festival de Os catálogos e encartes das mostras de cinemas são ilus-
Cannes, por exemplo, significa que a produção não só foi bem-sucedida no ano trativos das intenções e lógicas que motivam a seleção
da sua indicação como tem aumentadas as suas chances de exibição em outros criteriosa do acervo de filmes em exibição. A seleção dos
festivais, e de distribuição internacional. Segundo a pesquisadora britânica Lin- filmes em uma mostra ou festival de cinemas estrangeiros
diwe Dovey (2015), em seu livro sobre os festivais de cinemas africanos, estes co- se funda, em muitos casos, numa lógica estético-ideoló-
meçaram a surgir fora da África a partir de 1979,12 inspirados principalmente no gica. As obras oferecidas à apreciação dos públicos valem
FESPACO – Festival Panafricano de Cinema e Televisão (Burkina Faso), o primeiro e pelo que representam de tradicional ou inovador em
mais importante festival de cinema africano do mundo, mantendo seu destaque termos artísticos. Mas podem estar na programação pelo
até hoje. Dovey aponta que a proliferação destes festivais, especialmente na Euro- seu valor cultural. Foi em virtude desta lógica de interpre-
pa ocidental, pode ser compreendida de duas formas: tação que os cinemas africanos, desde sua emergência
até hoje, continuam encontrando seu maior número de
[...] primeiro, em relação à política representacional em público fora de seu contexto cultural de produção, isto é,
torno do conceito de “África” (particularmente como fa- nos próprios países africanos. (BAMBA, 2010, p. 5-6).
zendo parte dos principais festivais de cinema e da im-
prensa mainstream); e, segundo, em relação à crescente A inserção dos filmes africanos nesses espaços é fruto de uma construção discur-
presença de diversas diásporas africanas na era pós-Se- siva que ocorre no campo acadêmico. Essas duas instâncias (ou espaços de co-
gunda Guerra Mundial. Em outro sentido, esses festivais municação) se autorreferendam e legitimam, logo a escolha de uma abordagem
também podem ser lidos alternadamente como reações específica de interpretação da obra fílmica a partir de um viés mais autoral, por
a minorias imigrantes africanas, bem como suas expres- 13 Mostra que orientava a exibição dos filmes africanos dentro de um conjunto de ações estratégicas
sões. (2015, p. 111). que visavam à implementação da lei de obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira
e africana no Ensino Fundamental e Médio (Lei 10.639/03). A mostra teve três edições, duas das
11 Para uma abordagem histórica detalhada deste processo, ver Diawara (1992) e Barlet (2000). quais realizadas nos estados de Santa Catarina (2009) e Amazonas (2007).
12 A autora oferece uma lista bastante completa destes festivais no apêndice de sua publicação.
28 29
exemplo, acaba tendo sua origem no imbricamento destes discursos e, ao fim, Considerações Finais
funciona também como uma estratégia de mediação e negociação com esses
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Em uma edição especial da revista Cinema Journal – The Journal of the Society for
espaços. Tanto é que, não raro, a curadoria de mostras e festivais e a atuação aca-
Cinema & Media Studies (University of Texas Press), em 2015, houve uma proposta
dêmica coincidem numa mesma pessoa, que assume o lugar de sujeito dessas
de reunir artigos que pensassem a relação entre cinemas africanos e dispositivos
mediações.
midiáticos, uma das preocupações que vêm instigando a produção acadêmica
Como exemplos, o pesquisador Guido Convents, autor do livro L´Afrique? Quel deste campo, especialmente nos Estados Unidos. Intitulado IN FOCUS: Studying
cinéma! Un siècle de propagande coloniale et de films africains (2003), é um dos African Cinema and media today, o dossiê apresenta um texto introdutório, de
organizadores do Afrika Filmfestival (AFF), de Louvain (Bélgica); Joel Zito Araújo, autoria de Aboubakar Sanogo (também editor da publicação), que compila de
cineasta e pesquisador, foi responsável pela curadoria do Encontro de Cinema Ne- forma bastante pertinente as tendências discursivas empregadas para a análise
gro Zózimo Bullbul, no Rio de Janeiro (Brasil), entre outros. O festival Africa in Mo- dos filmes africanos. Segundo ele, o campo de estudos dos cinemas africanos ain-
tion (AIM), realizado em Edimburgo (Escócia), tem curadoria de Lizelle Bisschoff, da dá voltas ao redor da dúvida que paira sobre os pesquisadores a respeito de
professora da School of Culture & Creative Arts da University of Glasgow (Escócia), qual seria o modo apropriado de abordar o tema, tendo em vista a dialética entre
especialista em diversas questões relacionadas aos cinemas africanos, e o Film sua generalização e contingência. Isso significa que a teoria (ou a teorização) des-
Africa (Londres) foi cofundado por Lindiwe Dovey, pesquisadora dos cinemas afri- ta cinematografia precisa antes dar conta de resolver se o cinema africano é um
canos e professora da SOAS, University of London. Dovey também é cofundadora cinema como qualquer outro e se, portanto, deve ser tratado como tal. A partir
do Cambridge African Film Festival, que teve sua 16ª edição em 2017. deste dilema, o autor levanta questões que considera pertinentes no sentido de
entender como esse universo fílmico tem sido estudado pela academia:
Estes são só alguns dos inúmeros exemplos de como os festivais e a academia
são duas instituições que se retroalimentam e constroem, portanto, determinados Qual é ou pode ser a relação do cinema africano como
discursos que servem como mediadores com o público dos cinemas africanos. No objeto e conjunto de práticas com a chamada teoria
Brasil, podemos observar este padrão, que se repete nas três edições de mostras “ocidental”? É, ou deveria ser, considerado em termos do
realizadas com o patrocínio da Caixa Cultural nos estados de São Paulo e Rio de vampirismo da teoria aplicada, da violência epistêmica,
Janeiro, de 2015 a 2017, com foco nos cinemas africanos: África, cinema: um olhar da “matéria-prima” a ser processada pelo logos da teoria
contemporâneo (2015), organizada pelo crítico e cineasta Leonardo Luiz Ferreira14 “ocidental”, ou deveria, ao contrário, ser visto como um
e realizada sob a curadoria de João Juarez Guimarães; África(s): cinema e revolução diálogo mutuamente benéfico? A teoria “ocidental” po-
(2016), realizada em São Paulo sob a curadoria de Lúcia Ramos Monteiro, doutora deria oferecer uma visão útil para o estudo do cinema
em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela Universidade de africano? Por outro lado, estudos em cinema africano e
São Paulo, que em 2016 assinou o editorial de um dossiê dedicado aos cinemas mídia poderiam ajudar a descartar pressupostos e aporias
africanos na Revista Rebeca15 e na Revista África(s);16 e Grandes clássicos do cinema na chamada teoria “ocidental”, ela mesma indevidamente
africano (2017), organizada sob a curadoria de Tiago Castro Gomes,17 focada em substanciada e apresentada como autotélica? (SANOGO,
produções realizadas na África Ocidental Francófona Subsaariana, nas décadas de 2015, p. 115).
1950 a 1970.
14 Leonardo Ferreira é diretor de cinema e já realizou filmes como Orestes (2015) e Chantal Akerman,
de cá (2011), além de ter participado como membro do júri do 33º Festival Internacional do Novo Como vimos, a escolha da abordagem teórica e analítica dentro do universo da
Cinema Latino Americano (Havana, 2011) e do 7º Festival Internacional do Rio de Janeiro (2005).
15 Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, Sociedade Brasileira de academia em muitos casos resulta do reconhecimento das obras pelos festivais,
Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine, jul./dez. 2016. O dossiê – Africanidades foi organizado por uma vez que seus discursos podem não somente ser condicionados pelas mos-
Lúcia Monteiro e Amaranta César.
16 Revista África(s), v. 4, n. 7, jan./jun. 2017, Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos tras, mas servem também como referência para seus processos de curadoria. A
Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. academia e os festivais e mostras de cinema trabalham, portanto, em um intenso
17 Tiago Castro Gomes tem seus trabalhos de graduação e mestrado na área de cinema, com foco
nos cinemas africanos. Um breve olhar sobre os resumos da sua monografia e dissertação revela processo de retroalimentação – o que influi diretamente sobre como os filmes
a preocupação em pensar os cinemas da África a partir de uma discussão voltada para questões
mais históricas com relação à produção e economia dos filmes africanos: Ousmane Sembène e o(s) africanos serão vistos pelas audiências tanto dos festivais quanto da academia,
cinema(s) da África (Monografia, 2013), “Para africano ver”: Cinema na África Colonial Britânica – de considerando que são estes ainda os seus principais públicos. Como exemplo, as
sua consolidação ao projeto das unidades de produção cinematográfica: Bantu Educational Kinema
Experiment (1935-1937) e Colonial Film Unit (1939-1955) (Dissertação, 2016).
30 31
análises são focadas nos aspectos autorais das narrativas fílmicas, tendência que, BAMBA, Mahomed. Os espaços de recepção transnacional dos filmes: propostas
enquanto discurso, visa ajustar a avaliação da obra aos parâmetros adotados em para uma abordagem semiopragmática. Revista Crítica Cultural, v. 8, n. 2, p. 219-
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festivais internacionais europeus como o de Cannes, Veneza e Berlim, por exem- 237, 2013.
plo, espaços onde o cinema de autor ainda é bastante cultuado.
BARLET, Olivier. African cinemas: Decolonizing the gaze. Londres: Zed Books, 2000.
Ao mesmo tempo em que a cinematografia produzida procurava se adequar às
expectativas dos festivais, os processos de leitura mais temática predominante
DIAWARA, Manthia. African cinema: politics & culture. Bloomington: Indiana Uni-
nas curadorias, ao enfatizar a “função desmistificadora” dos filmes selecionados,
versity Press, 1992.
continuaram a adotar como chave de interpretação fílmica o aspecto anticolonia-
lista e pós-colonial das narrativas. Apesar dessas diferentes abordagens, ora en-
DOVEY, Lindiwe. Curating Africa in the Age of Film Festivals. New York: Palgrave Mac-
fatizando o autor, ora a temática representada, as interpretações predominantes
millan US, 2015.
no Brasil continuam sendo aquelas geradas a partir dos discursos produzidos e
mantidos pelas instituições que sustentam a cinematografia africana: os festivais
ESTEVES, Ana Camila. Narrativas em disputa no cinema nigeriano: um olhar sobre
e a academia. Importante também observar o fato de o tema “cinema africano”
Nollywood a partir de Green White Green, Revista Perspectiva Histórica, jan./jun.
notadamente ser do interesse de iniciativas de financiamento de instituições pú-
2019, n. 13, p. 37-53, 2019. Disponível em: <http://perspectivahistorica.com.br/
blicas e privadas, como no caso da patrocinadora de todas as mostras brasileiras
revistas/1563933859.pdf>. Acesso em: 31/out./2019.
mencionadas aqui (no caso brasileiro).

O que nos interessou provocar com este artigo dialoga com as inquietações de FEPACI. FEPACI - About us. Disponível em: <http://www.fepacisecretariat.org/abou-
Sanogo (2015) no texto supracitado. O que de fato significa estudar os cinemas t-us/>. Acesso em: 31/out./2019.
africanos e como as diversas abordagens analíticas impactam diretamente na vida
útil destes filmes? Para o autor, estudar a relação entre cinemas africanos e a mídia LIMA, Morgana Gama de. Que cinema africano? Uma reflexão conceitual, Revista
hoje “implica reconhecer a contingência radical do legado do campo geral dos Perspectiva Histórica, jan./jun. 2019, n. 13, p. 163-187, 2019. Disponível em: <http://
estudos de cinema e mídia, muitas vezes propensos a generalizações” (2015, p. perspectivahistorica.com.br/revistas/1563934234.pdf>. Acesso em: 31/out./2019.
119), e este é um desafio que se coloca para todos que desejam dialogar com o
universo desta cinematografia. PINES, Jim; WILLEMEN, Paul. Questions of third cinema. Londres: British Film Insti-
tut, 1989.
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32 33
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O COMEÇO SEM FIM OU
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UM CINEMA DECOLONIAL
UKADIKE, Nwachukwu Frank. Black African Cinema. Berkeley: University of Califor-
nia Press, 1994. INAUGURAL
Maíra Zenun

Ana Camila Esteves é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunica-


A introdução
ção e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, onde desenvolve
pesquisa sobre as narrativas do urbano nos cinemas africanos. Curadora colabora- Recentemente, tive a oportunidade de estar presente e acompanhar/participar
dora do Africa in Motion Film Festival (Escócia), idealizadora e curadora da Mostra de da discussão ocorrida durante a mesa redonda Arquivo de Filmes De/Colonial, que
Cinemas Africanos (Brasil). aconteceu na Culturgest de Lisboa, Portugal, em setembro 2019. Esta atividade fez
parte de um amplo ciclo de conferências, teatro, cinema, performance e debates,
Morgana Gama é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação intitulado Memórias Coloniais, cofinanciado pelo Programa Europa Criativa da
e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia e pesquisa a relação União Europeia – sob o Projeto Create to Connect/Create to Impact. No âmbito deste
entre narrativas cinematográficas e tradição oral em filmes de África e suas diásporas. grande encontro, decorreu também o programa Tudo Passa, Exceto o Passado,
organizado a partir do Goethe-Institut, e que culminou na respectiva mesa + filmes
acompanhados de debates especializados.1 O intuito era o de trazer ao público
em geral (para além de artistas, arquivistas e investigadores já debruçades no
tema) uma discussão sobre “em que medida o presente continua a ser moldado
pelas estruturas coloniais de poder”. (STRATHAUS, 2019). No caso desta mesa
em si, a respeito de um cinema de/colonial, segundo publicação distribuída pelo
próprio evento, ela teria sido composta a fim de suscitar falas sobre a relação
entre arquivamento e poder. Especificamente, em relação às práticas e políticas
voltadas para a preservação, patrimonialização e (re)construção de (velhas)
(novas) memórias imagéticas, que estariam sendo produzidas/herdadas pelos
(possíveis) filhos do colonialismo. E que se encontram recolhidas em arquivos
cinematográficos (pós-)coloniais.

Compareci à ocasião, portanto, interessada na oportunidade que eu teria de


ouvir pessoas ligadas a tais arquivos, a tais pesquisas, a tal poder, a tais interesses
acadêmicos sobre a fantasia do fim do colonialismo. Também o fiz no intuito
objetivo de seguir refletindo acerca das (atuais?) estratégias de dominação política
– e/ou cultural, cognitiva, epistêmica e simbólica – utilizadas pela branquitude
1Sobre a programação específica da mesa em destaque, possível consultar informações no endereço:
<https://www.culturgest.pt/pt/programacao/mesa-redonda-tudo-passa-exceto-o-passado/>. Acesso
em: 21/out./2019. Para obter informações a respeito da programação completa desse do evento,
consultar o endereço: <https://www.culturgest.pt/pt/programacao/mesa-redonda-tudo-passa-exce-
to-o-passado/>. Acesso em: 23/out./2019.

34 35
–, no exercício de dar continuidade/colonialidade a determinadas narrativas in continuum. Enfim, naquele episódio sobre memórias, cinemas de/coloniais
imagéticas capitalistas e/ou racistas, patrimonialistas, ocidentais, modernas (neo) e arquivos (pós-)coloniais, me vi forçada a repensar certas distâncias teórico-
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coloniais,2 sobre as culturas e sociedades. Em certa medida, é curioso pensar como metodológicas, estancadas entre discurso-e-prática, ali expostas geminadas
aquele momento específico da mesa da Culturgest acabou sendo crucial para e em uma mesma linha reta; tudo junto e misturado. Afinal o que é o “de” no
germinar em mim a presente reflexão, aqui rapidamente disposta, a propósito decolonial, em oposição ao “pós”, nos estudos culturais? E como isso – em forma
da participação de cineastas africanes da primeira geração no FESPACO – Festival de atuar e perceber o mundo – se reflete nos pensamentos cinematográficos?
Pan-Africano de Cinema e Televisão, que acontece e tem sede na cidade de Nas experiências de arquivamento e preservação? E nas de recepção? Ou nos
Ouagadougou, capital de Burkina Faso. Isto porque a tal mesa tratou de alimentar financiamentos? Na distribuição e propaganda das peças? E, antes ainda, nas
uma antiga inquietação sociológica que trago/travo comigo sobre o que faz um diversas maneiras de fazê-lo – no que tange à questão técnica? Ou mesmo nas
cinema ser negro (enquanto estética) e/ou decolonial (enquanto prática). formas de assistir cinema, com o olhar em riste para representações repetitivas e/
ou epidermizadas, como sugere bell hooks (2017)?
Nesse sentido, o que seria então aquilo que a moderadora da mesa chamou de
“discurso decolonial” no texto de apresentação da mesa? Algo ali me instigou a Lembro-me bem que houve quem argumentasse, desde um lugar privilegiado
refletir mais. Será que falar sobre a prática pressupõe praticá-la? Como romper de fala diante do auditório naquele dia da mesa redonda, que fazer cinema
com o modelo branco de organização e conservação de nossas (coletivos des/ decolonial nos tempos atuais exige certa habilidade para coabitar e se ocupar
racializados) memórias? Devo confessar, desde já, três coisas: 1) primeiro que, de deslocamentos inevitáveis, que ocorrem entre os espaços do poder – como
o meu entendimento sobre o que é um cinema de ruptura não está pronto ou a própria Culturgest –, em oposição a sessões alocadas em tendas improvisadas
resolvido, definido. Pelo contrário, ele se faz dia a dia e, por isso, está na (minha) nas ruas das periferias de algumas das capitais africanas (indefinidas ali naquela
escrevivência3 e na (minha) prática, construídas ao longo de muitos anos de oratória). O problema de interpretação, suponho, está, para além da confusão
estudos, atividades e pertenças; 2) segundo que, esta minha percepção, mesmo teórica, no fato de os entendimentos possíveis sobre o público de filmes que
que inconclusa e volante, distingue-se em muito (ou quase tudo) do que foi só circulam pelas tendas, que não chegam aos palácios, estar fadado ao olhar
apresentado como sendo uma produção de cinema “de/colonial”, por parte da proveniente do locus de enunciação anunciado por aqueles que se entendem
composição da mesa em questão; 3) terceiro e último: o que vale diante disso tudo como sendo (teoricamente) brancos e civilizados.4 Ou sobre a prática decolonial
é o fato de que, se há debate, é porque estamos vives e pensamos sobre. Afinal, pressupor sair do pedestal e não voltar a subi-lo, nunca mais. Ouvindo tudo aquilo,
cinema é mesmo um processo importante, que cria – memória, representação, pensei sobre como era possível terem posto o foco em ser decolonial, a despeito
representatividade e guerrilha. da própria teoria decolonial, no papel da autoria – diagnosticada ali na figura de
curadores, cineastas e arquivistas –, e não mais no da extensa gama de atividades
Mas, sinto que não cabe entrar nessa peleja sem deixar de lembrar, ou melhor
que se desdobra em uma prática coletiva.
dizendo, esquecendo – em alusão à própria memória – que quem pode (no sentido
de ter poder) discutir esse (tipo de) patrimônio é o mesmo sujeito/instituição E que acaba por representar a coisa-cinema total em si, a gama. Que tanto é
social que o (re)conhece, que o inventa e o guarda. Um verdadeiro redemoinho técnica, intelectual, de fruição, metodologia e feitura. Quanto de ocupação
2 O termo neocolonial é redundante, muites já o disseram. Aqui eu o uso em referência à colonialida- político espacial, ligada também ao consumo e/ou à militância social e política das
de, que é o patrimônio cultural do colonialismo em estado de repetição e aprimoramento na moder- pessoas. Algo tão complexo, que precisa que se cumpra um espiral de etapas para
nidade. Por isso, escrevo em outra forma de marcação da palavra, porque o de hoje é a somatória do
que vem de antes, e aqui desemboca. conseguir se realizar por completo – desde a elaboração, até a produção, execução,
3 Sobre esta ideia, trata-se de um somatório preci(o)so, onde tudo o que vivencio e trago comigo distribuição e/ou comercialização, exibição, recepção e, por que não, análise dos
é transformado em “escrevivência” (EVARISTO, 2006); por ser também este “tudo” o resultado e o processos e das obras. Neste sentido, a partir de um referencial formulado desde
produto das práticas e das lembranças de situações experienciadas por mim e/ou por (meus) outres;
no (meu) cor-corpo, e nas (minhas) palavras. Disso, e em acordo com uma discussão séria sobre inter- o Sul das estruturas sociais de organização política do atual/velho sistema-mundo
seccionalidade e mulher negra, há algo muito distintivo nessa noção de escrevivência evarística, e que
(me) serve como ponto de partida para qualquer tipo de escrita. Ter essa noção, este entendimento capitalista moderno – e isso é que é a decolonialidade –, o cinema-total é/pode
sobre os efeitos – dos processos – que afetam (afetam o que? afetam vida, afetam trajetos, distorcem
histórias, distinguem escritas) é fundamental para realizar uma fala como essa. A escrita da vivência, 4 Apesar da pretensa confusão eloquente, aqui escolhida e propositada, faço sempre referência ao
ou escrevivência, portanto, nasce e é oriunda não só de tudo o que foi vivenciado e/ou apagado atual/antigo (o mesmo) sistema-mundo no modo masculino da conjugação – ao contrário das demais
durante os anos históricos, mas também durante os momentos cotidianos; ela é feita das lembranças construções frasais sugeridas –, por adequação à forma culta, patriarcal capitalista, que distingue tal
que (me) definem (enquanto) um só corpo, das experiências que tive/tivemos ao longo da vida e das modelo vigente de organização social. A escrita, a imagem, o silêncio e as marcas: tudo é em sinal de
heranças cravadas (em mim), com origem na história do (meu) povo negro. profunda intencionalidade. Nada é por acaso, nenhuma repetição é por acaso. Ainda assim, interes-
sante é pensar no que surgirá, provocado.
36 37
ser interpretado como sendo uma forma de conhecimento prático a ser utilizado novos acervos e memórias. Atingindo, assim, um sem fim, de necessidades, de
para estrangular o modo de dominação (neo)colonial, no que diz respeito à intencionalidades; um sem fim quase infinito, que não se completa nunca.
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produção massiva de imagens, de representações e memórias. Isto porque, como
Naquela situação de arranque – e muito por conta das pessoas envolvidas que
(toda) forma de saber, ele-coisa é algo que pressupõe um tipo ardiloso de poder. O
são o tema desta mostra acolhida pelo Centro Cultural da Caixa –, a câmera/o
poder de representar e de denunciar a interpretação das elites – mas também das
roteiro/a exibição/o cinema-total foi eleito como arma de luta coletiva, antirracista
minorias políticas – sobre as culturas e sociedades. O cinema, no caso, serve para
e anticolonial. Sob um ideal que dizia respeito, sobretudo, ao poder ser, poder saber
escancarar o diagnóstico, o ponto de vista, a verdade, a orientação e organização
fazer. Ainda que a história do guardar/arquivar permaneça sendo uma grande
tomadas como certas, o saber poder ser – humano, evoluído, civilizado e moderno.
quimera, vide toda a discussão que concerne à criação de arquivos eficazes e
Passado. Que também nunca chega ao fim, nunca acaba.
condizentes com a riqueza deste conteúdo. Enfim, o que me importa dizer, ainda,
Exatamente por terem reconhecido esta capacidade na sétima arte, de na intenção de terminar a longa introdução apresentada, como sugestão para
interpretação e (ao mesmo tempo) divulgação/repetição (e convencimento) futuros diálogos sobre e entre “o que se fez” e “o que ainda será necessário fazer”
dos modelos ocidentais de pensamento, não era isso o que Ousmane Sembène, pela descolonização (total) do cinema (meios e modo de produção) – dos seus
Djbril Diop Mambéty, Med Hondo, Safi Faye, Souleymane Cissé e outres diziam espaços e traços e públicos e fornecedores e pensadores e arquivistas –, é o fato
a propósito do seu poder de alcance na luta anticolonial. Já não seria mais para de que a branquitude, esta sim, tem um apego enorme à sua própria invenção
amansar as feras, como era feito antes, de maneira explícita, pelo sistema colonial e memória, como se tudo o que diz respeito ao colonialismo fosse sobre um
(OLIVEIRA, 2016), mas sim para atiçá-las – as feras. Para a feitura de uma memória processo já há muito finalizado, pós-passado. A fim de parecer que o evento
(mais) autonomizada. E ainda sobre o saber poder ser, tão pouco é isso o que a da patrimonialização, da proprietarização de tudo, nunca cesse, nem acabe.
autora portuguesa Grada Kilomba (2016) afirma ser preciso para descolonizar o Impedindo, assim, a ruptura total, final, do que diz respeito ao capital colonial.
conhecimento (neo)colonial. Vou tomar um único exemplo de filme-denúncia que
O começo sem fim
comprova exatamente essa vontade: Soleil Ô (1967), de Med Hondo. Eu me refiro
àquela capacidade zumbiesca de agitar todos os nossos membros, de acordar Apesar de ser uma teoria (super) utilizada no campo dos estudos sociais e aderentes,
todas as nossas células, para uma ação qualquer, por uma atitude enérgica de em pesquisas e experimentos sobre tudo e mais um pouco, a perspectiva decolonial
recomeço qualquer. Que há neste filme e que afeta. tem sido (super) apropriada de forma ruidosa, titular, excessiva e, às vezes, como
se vê aos milhares, mecanicamente mal dirigida e/ou acionada. Eu mesma já fui
Por isso, por tudo isso me levar a pensar sobre privilégios, o assunto tratado
acusada de, por puro modismo, tentar relacionar o evento-ritual FESPACO à teoria
naquela mesa da Culturgest me remeteu – e não pense que eu acho saudável
decolonial. Isso aconteceu há quatro anos atrás, uma vez em um congresso em
este tipo (meu) de apego ao (sem fim) inaugural imaculado – de imediato
Londres. Quando propus que um cinema decolonial somente poderia ser feito por
ao começo do processo de constituição simbólica dos cinemas em África, no
quem está, desde o Sul, brigando ainda por sua decolonialidade. A verdade é que
período pós (aí, sim) lutas de libertação nacional. Anos 1960. Século XX. Sobre
o seu uso enquanto termo-apenas – da palavra decolonial –, acaba sendo, apenas
o despertar daquela conjuntura – que ocorreu em várias instâncias – foi, sem
(mais), e ainda (mais) apenas, um termo-etiqueta (a mais); um termo (quase)
sombra de dúvida, algo incentivado pelo momento, pelas guerras. O contexto
incendiário, no que diz respeito ao mercado global das invasões, classificações e
foi fundamental para que esta primeira geração do cinema africano fosse de
hierarquizações raciais. Algo já profano, de tão falado, mas pouco exercitado; ideal
resistência. A começar pela exigência de o filme ter sido elaborado – mas nem
para (apenas) definir (apenas): processos, obras artísticas, discursos e práticas que,
sempre, ou quase nunca, financiado – por pessoas africanas. A sua missão era estar
a princípio, reclamam ou somente apontam para as responsabilidades da Europa
voltado para a reformulação das identidades negras, uma vez que ele passava a
(inventada) sobre populações e territórios colonizados.
existir em oposição ao racismo institucionalizado pelo Estado e ensinado nas salas
de cinema. Foi a partir daí que mais e mais pessoas decidiram lutar no cinema, E já quase não se fala (mais) sobre como este tipo de pensamento e proposição,
pelo cinema, e também pela descolonização das mentes e dos olhares, a partir da decolonial, que surge por uma atividade revolucionária total, deve ser aplicado
produção (e preservação?) de novos roteiros, de outros enredos e personagens; por, para e pelo entendimento, para a vivência de processos que atuem minando
de (novas) histórias reais, com outras imagens, outros sons; por novas referências, (e/ou ao menos, que seguem tentando falir) o atual sistema-mundo (neo)colonial

38 39
capitalista moderno. Por isso, aparentemente e em tese, um cinema decolonial não evento de cinema em África estaria especialmente vinculado ao tipo de público
flui “entre”, não escorrega ou se sujeita. Ou, pelo menos, teoricamente, não deveria. e de profissionais que estava se formando em Ouagadougou, naquela época. De
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Ele, ao contrário, se define e procura ser outro diferente daquele, do esquema pessoas envolvidas na luta e no debate sobre a invisibilidade de representações,
global baseado no lucro e na representação cinematográfica estereotipada. Não na luta contra a falta de representatividade que correspondesse à realidade das
está para o enriquecimento (ilícito), nem para a propagação enganosa (criminosa) culturas africanas. De todo modo, a primeira programação foi marcada por filmes
de ideias. Assim entendo o que sugerem as cabeças que elaboraram a referente altamente anticoloniais (DUPRÉ, 2012) para a época, tanto os africanos, quanto
teoria. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; THIONG’O, 2007). Mas será que europeus. Três filmes de Jean Rouch foram exibidos nesta edição: Bataille sur le
isso é possível? Será que ele existe? Este cinema? Alguém já o viu pessoalmente? grand fleuve (1952), Moro Naba (1958) (feito em Burkina) e Jaguar (1967).
Há como haver, de existir, uma produção de-colonial total? Em tempos assim,
Logo, desde a década de 1960, além do surgimento de espaços de exibição/
de tanta dominação sensorial pelo capital? E, se sim, quem os faz? Com quem
divulgação anticoloniais (e não há nada mais decolonial que isso), alguns filmes
estão essas peças? Onde estão os arquivos? Eles estão sendo cuidados? Estão nas
com produção africana e diaspórica se firmam no campo, enquanto instrumentos
mãos do povo? Quem é que possui o dinheiro necessário para a sua produção e
contundentes de luta e resistência contra o (neo)colonialismo europeu. (SOUZA
manutenção e consumo? Enfim.
& ZENUN, 2017). Tanto que (quase) todos os primeiros filmes com maior projeção
Vejamos o caso do FESPACO, por exemplo, que embora tenha surgido como algo realizados por africanes negres são sobre temáticas políticas, e estão em diálogo
pequeno, dadas as circunstâncias socioeconômicas e políticas do país-Burkina, com o (neo)colonialismo e suas formas de dominação e continuidade. A exemplo
acabou se tornando referência para algo super-revolucionário. (ZENUN, 2019). Foi de Ousmane Sembène, tido por muita gente como o pai deste cinema de
em 1969 que o projeto nasceu, como uma simples semana cineclubista de exibição resistência. Para Manthia Diawara, “antes de Sembène, a maioria dos realizadores,
de filmes, em grande parte (2/3) produzidos no/pelo continente africano. (DUPRÉ, mesmo os que eram solidários com o fardo dos africanos sob o jugo colonial, tende
2012). Entretanto, o que foi que aconteceu nos últimos cinquenta anos desse tipo a mostrar a humanidade destes africanos e africanas segundo o paradigma de uma
de cinema de ruptura que nascia (também) ali, em Ouagadougou, a ponto de hoje linguagem cinematográfica hegemônica”. (DIAWARA, 2009, p. 23-24). Portanto, a
pipocar cada vez mais, e mais, discursos e filmes e debates e atividades sobre esta partir de então, deste trabalho político encabeçado especialmente pela primeira
luta que estão – em locus e prática – apartados do tipo de projeto inicial decolonial geração, surgem mais e mais cineastas em África, que passam a realizar mais e
radical? Indo parar nas salas da cultura oficial? Em ex-bancos. Como agora. Seria o mais filmes políticos, mais e mais filmes de denúncia, de reconstituição histórica e
caso de apropriação? Supremacia? Ou não? Ou pelo contrário, será que se espalhar com narrativas estéticas que se pretendem próprias.
é ocupar? Como se cada negociação fosse um jeito de passar a perna no sistema, e
Culpada? Sim. Esta geração primeira é responsável por protagonizar todo um
para continuar (r)existindo, por seguir (r)existindo, haveria a possibilidade de este
processo que culminou na (ou do que possa vir a ser a) constituição de um
tipo se manter puro ao esquema industrial de sustento financiado pelo poderio
cinema decolonial em (quase) tudo: forma, conteúdo, financiamento e ocupação
comercial global? Será que é possível sobreviver aos esquemas que promovem
dos espaços. Contudo, não necessariamente nesta mesma ordem, e/ou não
o atual modelo global de uso, preservação e consumo das coisas? Sem negociar,
necessariamente todos os fatores ocorrendo (todos) juntos e (todos) ao mesmo
flertar ou fluir “entre” a zona do ser e a zona do não ser (FANON, 2008)?, como foi
tempo. Acontece que eu não me canso de pensar se isso de querer existir e exercer
sugerido na tal mesa da Culturgest.
poder diante de sua própria história estaria em oposição ao que acontece quando
A propósito do motivo pelo qual este festival chamado FESPACO teria começado filmes políticos circulam nos lugares financiados por grandes empresas (privadas
lá atrás e em Burkina Faso, talvez ele esteja no fato de que havia ali uma e estatais), para pequenos grupos de privilegiades. De todo modo, na ponta de
concordância coletiva, pan-africana, de que era preciso fazer algo para se ter lança desta produção que nunca cala – as tragédias, as mazelas e as mágoas –, a
acesso e/ou incentivar a produção intracontinental, para um outro novo tipo participação das obras desta primeira geração de cineastas africanes é bastante
de cinema. A verdade é que sequer filmes africanos de outros países chegavam intensiva ao longo da trajetória de constituição do FESPACO. Ousmane Sembène
com facilidade em Burkina, ou nos outros países, naquele período pré-FESPACO. mesmo teve os seus dois primeiros filmes exibidos já na estreia do projeto, em
(FORSTER, 2013). Neste sentido, o real motivo para lá ter começado todo um 1969: Borom Sarret (1963) e La noire de… (1966). Med Hondo é outro, que ganhou
movimento pela consolidação daquilo que hoje funciona como sendo o maior o Grand Prix com West Indies (1979)  em 1981, e em 1987 foi laureado com um

40 41
Étalon de Yennenga – principal premiação do evento – por Sarraounia (1986). Safi trata-se de um ritual sobrevivente, que nada na eterna contracorrente da peleja
Faye, única mulher que aparece com mais ênfase entre os bambas desta turma da dos não brancos anti a colonialidade. É que desde a sua primeira pequena edição
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


primeira, foi premiada com (apenas) uma menção especial em 1976, pelo filme algo ali se instaurou e tem funcionado como um totem sacralizado para/pelos
Kaddu Beykat (Letter from my village) (1975). Já Souleymane Cissé, premiado em filmes feitos em África e diásporas. Entretanto, apesar de ser internacional, voltado
1979 e 1983, foi o primeiro realizador a ganhar dois Étalon, com Baara (1978) e para esta produção extracontinental, o FESPACO foi/é construído e constituído a
Finyè  (1982). Cabe lembrar que, antes de qualquer outra coisa, se trata de uma partir da cidade-capital que é a grande Ouagadougou. (ZENUN, 2019). O que,
safra de artistas do cinema oficialmente comprometida em estabelecer um novo de cara, torna difícil haver qualquer separação entre os altos e baixos do festival,
imaginário sobre a África e suas populações, a partir de olhares efetivamente em sua intensa relação com o Estado burkinabè (DUPRÉ, 2012); nação, aliás, que
africanos. (DIAWARA, 2009). historicamente (leia-se desde o período colonial) tem flertado, em muito, com a
sua (eterna) metrópole, diga-se de passagem.
Tal movimentação, aliás, foi o que possibilitou a própria criação do FESPACO como
um espaço para exibição, discussão e fortalecimento de um cinema que, de início, Cabe lembrar que, apesar de tudo, e ainda assim, mesmo em momentos
se pretendeu bastante engajado e comprometido com a retomada da soberania de extrema instabilidade política interna, em Burkina faz-se a escolha pela
política e econômica do continente. (BAMBA, 2007). Por isso, é justamente esta a continuidade e manutenção do festival pan-africano. (ZENUN, 2019). Este
característica que me parece ser a mais marcante deste evento-ritual: ter nascido entendimento, sobre a necessidade de conjugar ao projeto FESPACO uma série
como incentivo-incentivado; entre as forças que afetavam, proporcionalmente, o de modulações internas, foi para mim bastante importante, e apropriado, na
país e o continente. Segundo Colin Dupré, de um cineclube que funcionou no tentativa de perceber a cena sem o purismo da expectativa de encontrar um
Centro Cultural Franco-Voltense (tempo em que Burkina ainda era Haute-Volta), processo imaculado de intervenções externas e/ou (neo)colonialistas, capitalistas.
em 1968, surge a demanda por assistir a filmes feitos fora do circuito colonial, Este, aliás, foi o exercício de compreensão por mim praticado, durante a feitura da
especialmente obras africanas, produzidas por pessoas africanas. (DUPRÉ, 2012; minha tese de doutorado intitulada A Cidade e o Cinema [Negro]: o caso FESPACO.5
FORSTER, 2013). Da falta de políticas de incentivo e espaços especializados, Neste sentido, e convencida da importância de tentar perceber tudo enquanto
articulada aos anseios anticolonialistas da época, floresce a ideia seguinte de e a partir de uma prática decolonial, cabe comentar também que as modulações
organizar um pequeno festival de filmes não comerciais, para a população local e têm sido para mim muito úteis como ferramenta teórico-metodológica. Inclusive
convidades. Um ato revolucionário, portanto, de ativismo cultural e popular, como neste processo de escrita específico, lido agora por você, onde me permito certa
eu já havia mencionado. Especialmente por ser em Burkina Faso, onde antes não negociação/modulação com formas outras de expressão. Algo, aliás, que parece
havia quase nada a respeito. Não havia nem profissionais, nem tecnologia, nem que faz da escrevivência um tipo de fala com grande carga estratégica, dita na
estruturas autônomas; quase nada, que não fosse a pouca e velha maquinaria maioria das vezes em primeira pessoa do singular, e em alguns momentos no plural
deixada de herança pelos colonos, após a independência burocrática conquistada (lembrando que somos seres sociais). Ocorre que isso é também muito estratégico,
da França. E também um certo ranço, um resto de qualquer coisa, que nunca dar voz e visibilidade a um cor-corpo negro no feminino intelectual plural, em
(ainda) deixou de existir. eterno movimento e modulação, por questão estratégica de sobrevivência.

O fim do sem fim desta luta, desta história Ainda sobre essa querela FESPACO X decolonialidade e estratégias de
sobrevivência, apesar da sua inicial condição civil/popular, logo a partir da sua
Retomando à contenda inicial, já há muito instaurada em minha cabeça mas mais
primeira edição, o Estado burkinabè ofereceu patrocínio ao festival. O mesmo
alimentada pela mesa da Culturgest, e que me faz pensar tanto sobre o sem fim
Estado que, em 1970, promoveu a nacionalização total da distribuição/exibição
desta eterna luta “do dragão da maldade contra o santo guerreiro”; a verdade é
de filmes no país. E que, em 1972, assumiu a completa administração do FESPACO,
que o FESPACO começou sendo muito opaco e político, mas se afogou no sem
institucionalizando-o através de uma Secretaria Permanente. (FORSTER, 2013).
fim de um processo em continuum; e exatamente por isso, por ser extremamente
Mesmo Estado também que, entre as décadas de 1960 e 1980, teve seis presidentes
político, sua continuidade parece estar fadada a uma série de modulações
que depuseram o seu antecessor, sendo que um deles teria sido assassinado
interculturais (LIMA FILHO, 2015) que nunca acabam. Sendo, contudo, este mesmo
por seu sucessor: no caso, Thomas Sankara (1949-1987) por Blaise Compaoré. A
ponto, o do existir, a chave para que eu presuma um caráter decolonial no projeto;
algo especialmente enraizado juntamente com as suas primeiras bases. Afinal, 5 O trabalho foi defendido sob a orientação da Profa. Dra. Andréa Vettorassi, no Departamento de
Sociologia da Universidade Federal de Goiás, em abril de 2019. E está disponível para consulta através
do link <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10037>. Acesso em: 29/out./2019.
42 43
verdade é que a licenciosidade é tanta que, por algum tempo, houve inclusive uma Apontamentos finais
representação de cada ministério do Estado burkinabè na comissão organizadora
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Vejam só, nada é por acaso. Não é por acaso ter havido um evento-ciclo em
do festival. (Idem, 2013). E embora haja outros eventos de arte e cultura no país, o
Lisboa sobre memórias coloniais feito pelos filhos dos colonos; não é por acaso
FESPACO se tornou o principal em termos de visibilidade e de entrada de capital
um festival-ritual como o FESPACO ter sobrevivido à colonialidade da indústria
externo na economia nacional. (ZENUN, 2019). Trata-se, portanto, de uma saga
cinematográfica; nem será por acaso o caso de ter havido uma geração que
complexa, essa entre o festival e Burkina; e que, em muito, diz respeito, inclusive,
inaugurou um tipo decolonial de prática cinematográfica (que ainda não se
ao desenvolvimento político nacional, onde o FESPACO ocupa lugar de destaque
completou, é fato), em África, a ponto de ter impulsionado e transformado a cena
no âmbito da diplomacia cultural do país. (DUPRÉ, 2012).
mundial do cinema negro e(m) suas diferentes circunstâncias. Pelo contrário: é este
E é por tudo isso que, pensando ainda sobre o que faz um cinema (sua história e o cenário existente, cabo-de-guerra, onde volta e meia parece ser preciso flertar
percalços) se tornar decolonial, não podemos cegar para certas evidências. Como com o establishment, a fim de conseguir seguir atuando, (r)existindo. Entretanto,
o fato de que, apesar do projeto inicial (aparentemente) radical total, há toda uma me parece importantíssimo perceber, dentro das hierarquias raciais de poder, qual
relação de poder mantida/estabelecida, e cada vez mais estreita e escancarada, o lugar de fala dos agentes sociais que estão a requerer uma identidade/prática/
entre o FESPACO-Estado e os financiamentos provenientes da Europa. Em especial, discurso decolonial.
da França. Um affair entre a (ex)colônia e a (ex)metrópole, que existe a despeito
De fato, sobre o caso do apelo a um cinema que exista para e pela decolonialidade
e em relação àquela busca inicial, pela construção de uma autonomia material e
do mundo ocidental moderno, entendo que ele teria de ser, em teoria, eleito por
representativa dinte dos meandros da colonialidade. Atualmente, e bem antes, já
outros motivos, por outro poder, por outras formas de ocupação dos espaços, não
no período da presidência de Blaise, tanto Burkina Faso quanto França se mostram
coloniais, por outras perspectivas e origens de conhecimento. Que não aquelas
interessados em restabelecer suas imagens institucionais, por conta do atual/
que exaltam a autoria da luta, que é “o momento crucial da individualização na
antigo sistema-mundo colonial. Sobre essa relação, Dupré comenta em entrevista
história das ideias”. (FOUCAULT, 2001, p. 268).
que,
Por conta disso tudo, a primeira geração de profissionais do cinema africano,
os dois países têm em comum a vontade de estabelecer
organizada em atividades como o FESPACO, por exemplo, confere ao cinema
uma imagem externa ligada à cultura e a esse respeito se
um espaço poderoso de intervenção e luta antirracista diante dessa capacidade
entendem muito bem. O cinema, portanto, desempenha
de (re)construção imagética das memórias coletivas. E sobre o que seria, afinal,
um papel que os cineastas não necessariamente
um cinema decolonial, ouso finalizar argumentando que este não ocorre onde
suspeitaram sobre a sua vantagem criativa. Isso fica
não houver resistência, mas precisa ser sempre a partir de uma perspectiva do
flagrante nos anos de governança de Sankara, que
Sul global. Isso, evidente, se houver qualquer intenção, por quem proclama tal
fortalece o papel do Fespaco como instrumento de
vertente, de respeitar as vozes teóricas que dão origem a esta corrente, que
política interna e externa, e mais: ao transformar
emergem todas desde o Sul e desde sempre que isso tudo acontece. Logo,
Ouagadougou em capital do cinema africano, o Fespaco
decolonial poderá ser, sempre, e enquanto o fim nunca chega, um tipo único de
permite que esse pequeno país se situe, sem igual, a nível
cinema-processo capaz de resgatar (e produzir) memórias e práticas de resistência
internacional (Tradução Livre). (FORSTER, 2013).
historicamente silenciadas pela colonialidade global. A partir de cor-corpos e
Portanto, entre: 1) o FESPACO que tanto é financiado pelo high society vozes do Sul.
da colonialidade, quanto é palco para um corpo cinematograficamente
E de tudo isso, fora o que aqui não foi dito, é interessante pensar sobre como
subalternizado; 2) o surgimento da primeira geração de cineastas africanes; 3)
esse investimento em África e/ou nas diásporas, por um cinema de ruptura,
e a forma como foi tratada a questão decolonial na mesa da Culturgest – algo
indecente, surge e funciona em consonância com ideais de uma libertação em
que demonstra o quanto a colonialidade está em tudo enraizada; há esta relação
processo, (in)existente, mundial, brasileira. Ainda por se realizar, é fato; contra o
bizonha, de nascença e continuidade, onde todes estão violentamente ligados
“pós”. Contra-todos. Uma vez que ainda estamos preses, atades mesmo, a essa
a uma série de diferentes processos políticos coloniais totais, que provocaram/
dinâmica que acaba promovendo o tal do sem fim mencionado, de necessidades
provocam tantos outros movimentos e processos, também políticos, também de/
coloniais, de fração, refração e modulação intercultural.
44 45
e de intencionalidades – nos cor-corpos e nas estruturas; como se romper 1992. Coletânea Black Looks: Race and Representation. Boston: South End Press,
fosse impossível. Enfim, como procurei demonstrar, são inúmeros os aspectos 2017.
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


sociológicos que ligam os processos. Uma vez que está tudo conectado, em um
KILOMBA, Grada. Descolonizando o conhecimento: uma palestra-performance.
sistema-mundo que se articula pela manutenção e acentuação dos privilégios de Trad. de Jessica Oliveira de Jesus. Cadernos de Literatura em Tradução, Brasil, n.
uns poucos, em função das violências promovidas contra outres muites. 16, maio 2016 São Paulo. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/clt/article/
E em tempos de governanças bélicas, tanto nas Américas quanto na Europa, Ásia e view/115286/112968>. Acesso em: 15/mai./2017.
África, baseadas na crença em armas de matar; acaba sendo muito interessante e KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism.
importante continuar apostando na luta pela continuidade de um cinema-nosso, Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.
um cinema negro, que utiliza armas-outras, armas de aprender e de ensinar, para
ressignificar, para fortalecer e, quem sabe, (r)estaurar: uma nova ordem mundial, LIMA FILHO, Manuel Ferreira. Cidadania Patrimonial. Revista Anthropológicas.
Pernambuco, ano 19, v. 26, n. 2, 2015.
um novo sistema-mundo. Capaz de se articular na ideia de que é possível uma
humanidade onde todes possam contar as suas próprias histórias. Por menos OLIVEIRA, Janaina. Descolonizando telas: o FESPACO e os primeiros tempos do
Marieles tombadas e por mais narrativas representadas, resgatadas, sempre. cinema africano. Odeere – Revista do programa de pós-graduação em Relações
Étnicas e Contemporaneidade, UESB, ano 1, n. 1, v. 1, jan.-jun. 2016.
SOUZA, Edileuza. P.; ZENUN, Maíra. O Cinema Negro Africano Decolonial –
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EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.
*Maíra Zenun é Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008. de Goiás (UFG), com a tese intitulada “A Cidade e o Cinema [Negro] – o caso FESPACO”;
Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
FOSTER, Siegfried. “La nouvelle politique du cinéma en Afrique,” Les voix du
de Brasília (UnB), com uma dissertação sobre o processo de industrialização do cinema
monde, March 1, 2013.
brasileiro; e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema Colabora com o FICINE – Fórum Itinerante de Cinema Negro. E desde 2016 coordena e faz
(vol. III). Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2001. p. 264-298. a curadoria da Mostra Internacional de Cinema na Cova – África e suas Diásporas, que
acontece na Amadora, Lisboa, Portugal.
hooks, bell. O olhar opositivo – a espectadora negra. Trad. Maria Carolina Morais a
partir do texto The Oppositional Gaze: Black Female Spectators. In: hooks, bell,
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


ENTRE NARRATIVAS: CINEMAS
AFRICANOS E CULTURAL ORAL1
por Morgana Gama

Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser de-


vidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga,
em contrapartida, negava-se todo va-
lor à tradição oral africana [...].2

F
alar sobre as primeiras produções fílmicas da África Ocidental implica tratar
sobre as narrativas que atravessam esses filmes. Que histórias são contadas?
E o mais importante: como são contadas? É também nesse período inicial
que, gradativamente, surgem as primeiras preocupações em criar narrativas fíl-
micas que refletissem uma estética “africana”. Ao lançar um olhar retrospectivo,
percebe-se que é também a partir dessas produções que surgem na década de
1980 os primeiros textos críticos relacionando os filmes africanos às tradições
orais; particularmente, a partir da obra de Ousmane Sembène.3

O próprio Sembène provocou essa relação ao fazer afirmações como: “Um cine-
asta (africano), esteja ele fazendo filmes para o cinema ou para a televisão, possui
uma herança muito antiga, mas muito viva: a oralidade”. (1990, p. 5). Enquanto na
cultura ocidental, o registro escrito de acontecimentos e fatos históricos se so-
brepõe à oralidade, nas tradições africanas – especialmente as situadas na África
Subsaariana, ao sul do Saara – a “palavra falada”, para além do conteúdo que pode
transmitir, é valorizada. Tanto pelo seu aspecto moral quanto por ser considerada
“vetor de ‘forças etéreas’”, em que o material e o espiritual estão intimamente rela-
cionados (BÂ, 2010, p. 169).

1 Esse artigo faz parte da pesquisa de doutorado em desenvolvimento, financiada pela FAPESB, e é
resultante de comunicação apresentada em versão preliminar no II ENICECULT (Santo Amaro-BA),
realizado de 24 a 27 de setembro de 2019.
2 M. Amadou - Mahtar M’Bow, Diretor Geral da UNESCO (1974-1987) no prefácio do livro História
geral da África, II: África antiga (UNESCO, 2010, p. XXI).
3 Alguns textos precursores nesse sentido são: Ousmane Sembene and the Aesthetics of African Oral
Traditions (CHAM, 1982) eThe Cinema of Ousmane Sembene, a pioneer of African film (PFAFF, 1984).

48 49
Tendo em vista esse valioso repertório cultural, tais textos críticos despertaram o Não se trata apenas de uma afinidade baseada na função, mas na forma como se
interesse em observar a influência da cultura oral sobre os filmes africanos, ora fa- constrói a narrativa nesse processo. Para além das informações ou conteúdo que
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


zendo referência à presença do griot4 na diegese da narrativa – como narrador ou possam noticiar, de acordo com Hampaté Bâ (2010), os griots narram a memória
personagem –, ora estabelecendo relações comparativas entre recursos utilizados africana a partir de um presentismo, ou seja, em vez de recordarem a memória
no processo de transmissão dos contos orais e a estrutura da narrativa cinema- como passado, a trazem para o presente, permitindo a participação da audiência
tográfica. Com o fim de esclarecer essa perspectiva analítica, fazemos uma breve e a interação entre o narrador e o seu público.
incursão sobre as diferentes conjecturas lançadas nessa interface entre narrativas
– fílmicas e orais –, na tentativa de compreender como ela pode contribuir para a Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é
identificação de códigos e modos narrativos específicos dos cinemas africanos em contador de histórias a menos que possa relatar um fato
relação a outras cinematografias do cinema mundial. tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvin-
tes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas
e ativas desse fato. (BÂ, 2010, p. 208).
O cineasta griot

Talvez a aproximação mais comum entre os cinemas africanos e as narrativas orais Da adaptação de contos orais
seja a comparação do cineasta com a figura do griot. Considerado uma espécie
Embora a aproximação entre narrativas já existisse desde os primeiros filmes – dos
de trovador ou contador de histórias, o griot ganhou notoriedade no contexto
quais os de Ousmane Sembène são exemplos –, a discussão ganhou maior impor-
das tradições orais africanas, especialmente durante o período dos impérios me-
tância a partir da década de 1980, com o sucesso alcançado por filmes como Wênd
dievais africanos – como o Império do Gana, Mali (1230-1600) e Songai. Na épo-
Kûuni (Le don de Dieu, Burkina Faso, 1982), do diretor burkinabé Gaston Kaboré, e
ca funcionava como peça-chave para a preservação da memória e da história no
Nelisita: narrativas nyaneka5 (Angola, 1983), primeiro filme de Ruy Duarte de Car-
continente. Mesmo sendo estigmatizado por pertencer a uma casta considerada
valho, ambos frutos de adaptação de contos da tradição oral.
inferior (FOFANA, 2011, p. 256), o griot era respeitado pelo seu conhecimento e
possuía relativa liberdade de expressão, incluindo o direito de “desdizer” sem que Os filmes inspirados em contos tradicionais ficaram conhecidos como de “retorno
causasse ressentimentos ou ainda sem ter que “arcar com a responsabilidade de à fonte” (DIAWARA, 1992) e, em certo aspecto, configuravam um afastamento para
um erro que não cometeu, a fim de remediar uma situação ou de salvar a reputa- o mítico, em virtude do sentimento de frustração gerado com os desdobramentos
ção dos nobres”. (BÂ, 2010, p. 195). políticos após o processo de independência em alguns países. Eram considerados
politicamente ingênuos quando comparados a outros filmes do mesmo período.
Apesar de não haver um consenso, nem uma definição única para o griot, a sua
No entanto, essa crítica era um indício de que o olhar projetado sobre os filmes
associação com a figura do cineasta está mais relacionada ao seu papel como me-
ainda era, em certa medida, refém de modelos narrativos anteriores. Embora com
diador da sociedade ou, nas palavras de Sembène, a uma espécie de “memória
ideologias e finalidades diferentes, tanto as produções coloniais quanto os pri-
viva e à consciência de seu povo”. (PFAFF, 1993, p. 14). A questão, contudo, é: se
meiros filmes realizados por cineastas africanos estavam inseridos em um mesmo
os cineastas africanos podem ser, metaforicamente, considerados como griots ou
regime representacional: usar da narrativa fílmica como um meio de retratar a “re-
contadores de histórias da contemporaneidade, quais seriam então os elos pos-
alidade” dos povos africanos.
síveis de serem estabelecidos entre a tradição griot e filmes realizados por esses
cineastas? Os primeiros filmes realizados por Sembène, por exemplo, buscaram ao seu modo
re-construir a imagem do “homem africano” mostrando hábitos, costumes, deta-
4 Embora o termo seja um vocábulo franco-africano (LOPES, 2004, p. 310), a sua origem não é precisa. lhes do cotidiano, os contrastes sociais nas grandes cidades africanas, em con-
Alguns consideram que é africana (do wolof gewel, do fulbe (peul) gawlo, do malinké gele), árabe
(qawal), ou ainda do português criado (aquele que foi alimentado e educado e vive na casa do mestre) traposição às imagens exóticas e racistas difundidas pelas antigas produções
ou do francês (grelot). (THIERS-THIAM, 2004, p. 15). Não se trata de uma denominação universal, coloniais. Acreditava-se que o cinema era um meio potente para conscientizar e
podendo receber diferentes nomes conforme a cultura em que se desenvolve: “dyéli ou diali, entre
os bambaras e mandingas; guésséré, entre os saracolês; wambabé, entre os peulés; aouloubé, entre mobilizar as massas. Nesse cenário, a adaptação de contos tradicionais e, conse-
os tucolores; e guéwel (do árabe qawal), entre os Uolofes”. (LOPES, 2004, p. 310). No Brasil, o termo
mais conhecido é griô – contadores de história no contexto da cultura brasileira de matriz africana e 5 Filme ficcional baseado em duas peças de literatura oral das populações Nyaneka do Sudoeste de
indígena (LIMA; COSTA, 2015) – mas daremos preferência ao uso de griot com o fim de preservar a Angola, registradas no livro Cinquenta contos bantu do Sudoeste de Angola (ESTERMANN,, 2009, p.
diferença cultural entre os termos. 218).

50 51
quentemente, a saída de um regime representacional da narrativa parecia atender xo industrial; Guimba, un tyran, une époque (Cheick Oumar Sissoko, Mali, 1995),
mais aos anseios externos de um público estrangeiro ávido por encontrar a África que não só adota a estrutura do conto na narrativa como explora as habilidades
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exótica de seu imaginário do que à necessidade política de “descolonizar mentes” oratórias do principal personagem griot e Taafe Fanga (Adama Drabo, Mali, 1997),
por meio do cinema. em que um griot (Sidiki Diabaté) entra na sala onde crianças assistem a um filme
hollywoodiano na televisão e consegue chamar a atenção delas.
A questão é que, ao contrário do que se podia pensar, muitos desses filmes supos-
tamente naïf usaram a narrativa oral como um suporte estratégico para refletir a Para Mahomed Bamba (2015), os filmes em que a figura do griot e o relato oral
ideologia da época, por vezes entrando até em contradição com os valores ori- constituem a base da narrativa estão estruturados em uma espécie de “retórica
ginalmente defendidos pela história oral usada como matriz narrativa. Manthia do griot”. Tal relato, ao ser incorporado no filme, apresenta-se como uma espécie
Diawara, ao fazer uma análise narrativa do filme Wênd Kûuni (1987, p. 38-39), che- de código extra-cinematográfico capaz de interferir tanto no plano da construção
ga à conclusão de que onde a narrativa oral trazia como lição final o retorno à lei enunciativa – ou seja, no ato de narrar – quanto no plano da recepção, pela forma
e à ordem, a versão cinematográfica apresentava a proposta de uma nova ordem como o espectador é convidado a interagir com a narrativa. Com isso, “os filmes
em substituição à velha. Nem mesmo o griot era visto da mesma forma em cada africanos (como todos os filmes), além de tentarem dar uma impressão realista e,
filme. Por isso, a referência à cultura oral, seja em forma, seja em conteúdo, não em alguns casos, crítica da África e das suas culturas, também oferecem ao espec-
necessariamente corresponde a uma reverência ou subordinação à tradição, mas tador uma experiência discursiva e narrativa”. (BAMBA, 2015, p. 20). Esse sistema
antes à sua re-apropriação, re-leitura, subversão: textual a que ele atribui o nome de “filme griótico” pode ser observado especial-
mente em: Keita! L’héritage du griot (Dani Kouyaté, Burkina Faso, 1995) e Djeli, Con-
Claramente, portanto, o filme trabalha sobre as histórias tes d’aujourd’hui (Fadika Kramo Lanciné, Costa do Marfim, 1981).
arquetípicas da tradição oral subvertendo os sinais de
suas funções. [...] As funções da narrativa oral são usadas Keita!, filme realizado por Dani Kouyaté, filho do ator e griot Soutiguy Kouyaté,
menos para alcançar um fechamento tradicional/nostál- mostra o papel da oralidade no contexto de uma África contemporânea, em que
gico e mais para enunciar uma nova narrativa, colocando socialmente prevalecem os padrões e as convenções de uma educação ociden-
as condições de resistência à ordem tradicional e à cria- talizada. No filme, à medida que o griot Djéliba Kouyaté (interpretado pelo pai
ção de uma nova. (DIAWARA, 1987, p. 44).6 do diretor, o próprio Soutiguy Kouyaté) conta para o menino Mabo a lenda de
Sundiata Keita, são inseridas sequências que encenam a lenda, convertendo em
som e imagem aquilo que antes corresponderia apenas à imaginação do menino.
Assim, mais do que buscar traços da cultura oral nos filmes ou ainda discutir o ci-
nema sob a perspectiva da história contada, um aspecto que não tem sido obser- Em Djeli, a história também se desenvolve em um contexto contemporâneo e
vado é a possível transformação que ocorre nos pontos de vista narrativos quando mesmo não havendo destaque para uma personagem griot específica, o filme ini-
o filme adapta uma história da tradição oral ou ainda quando assume sua influên- cia com um trio de músicos griots que realizam sua performance para uma família
cia na construção de um estilo. em uma sala de estar e, ao mesmo tempo, introduzem o romance entre Fanta e
Karamoko, dois estudantes marfinenses que apesar da oposição de suas famílias,
O griot como personagem sonham em se casar. Mais do que a busca por uma resolução do possível conflito
entre os valores da modernidade e da tradição, a introdução dos griots no início
Há filmes em que a presença de personagens griots serve para introduzir ou narrar
da narrativa a um só tempo simula uma retórica oral no filme – fazendo retornar
a diegese fílmica e, ao mesmo tempo, transferir para a narrativa alguns aspectos
o tema musical em diferentes momentos da narrativa7 –, e também propõe uma
peculiares à forma do conto. (THACKWAY, 2003, p. 59). Entre alguns filmes que
re-interpretação da tradição no contemporâneo. Seja pela presença deles em uma
usam desse recurso, estão: L’exilé (Oumarou Ganda, Níger, 1980), considerado o
sala de estar (e não em uma aldeia), seja pelo vinil do cantor Kouyaté Sory Kandia8
primeiro filme a usar a estrutura do conto na narrativa; Jom (Ababacar Makharam,
que Karamoko encontra em uma loja.
Senegal, 1981), em que um griot (Khaly) usa suas habilidades para trazer à memó-
7 O canto iniciado pelo trio de griots pontua o filme inteiro, incluindo a interpretação da música
ria um evento passado (um príncipe que assassina um administrador da colônia Douga, uma das composições de Sory Kandia.
8 Natural da Guiné, Sory Kouayté (como também é chamado) é descendente da família de griots
francesa) como forma de falar para um grupo de trabalhadores de um comple- Balla Fasséké Kouyaté, considerada a primeira do Império Mandingue. É considerado o primeiro griot-
cantor a ter reconhecimento internacional no final dos anos 1950. Disponível em: <https://musique.
6 Tradução nossa para essa e outras referências em língua estrangeira citadas no texto. rfi.fr/actu-musique/musique-africaine/20130828-sory-kandia-kouyate>. Acesso em: 16/out./2019.
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temporal da narrativa por meio de flashback e flashforward; música como parte
Estratégias das narrativas orais na narrativa fílmica
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da estrutura narrativa do filme (com trechos musicais da performance do griot
Algumas características da narrativa no cinema podem ser resumidas em três as- servindo como leitmotif para enfatizar partes da história) (UKADIKE, 1994, p. 203);
pectos: a coerência espaço-temporal – a localização da história no tempo e no uso da estrutura do espelho (em que dois protagonistas reagem em lados opostos
espaço, a causalidade das ações –, a clareza na motivação das personagens e o a um mesmo desafio como forma de representar a dualidade humana); história
fechamento narrativo intrínseco à própria história. (NOGUEIRA, 2014, p. 179-182). em estrutura circular (o filme termina como começa); contação de história como
Tais características, de certo modo, convergem com as apresentadas por David momentos compartilhados coletivamente. (THACKWAY, 2003, p. 61).
Bordwell (2005) sobre a narrativa clássica e, de fato, são características facilmente Sobre esse aspecto, o filme Muna Moto - L’enfant de l’autre (Jean-Pierre Dikongué-
identificadas em boa parte dos filmes de circulação comercial. No entanto, com -Pipa, Camarões, 1975) apresenta algumas dessas estratégias. A narrativa se cons-
o passar do tempo e o surgimento de novas tendências no cinema mundial, essa trói a partir do romance entre Ngando e Ndomé. Ngando é órfão e não tem condi-
estrutura básica sofreu intervenções e rupturas, dando origem a novas compo- ções de pagar pelo dote de sua noiva (Ndomé), que está grávida. Por conta disso,
sições narrativas que interferiam na pretensão de transparência enunciativa da Ndomé é forçada a se casar com o tio de Ngando, enquanto esse reage com um
narrativa clássica. Ao fazer isso, os filmes não só convocavam o espectador a uma ato de desespero ao sequestrar sua filha no dia de festa da aldeia. Como possíveis
reflexão sobre o conteúdo, como renovavam a própria forma de contar histórias exemplos de influência da narrativa oral no filme, podem ser citados o momento
através do cinema. em que Ngando conversa com uma lagarta e as justaposições que interrompem
Em termos estruturais, há determinadas características apresentadas nas narra- a continuidade espaço-temporal da narrativa, a exemplo da inserção de flash-
tivas fílmicas africanas e que são comuns aos contos orais. A primeira delas está fowards com Ngando correndo pelas ruas da cidade com sua filha nos braços.
associada à ruptura na continuidade espaço-temporal da narrativa, realizada por Assim como a narrativa cinematográfica, de certo modo, tem a capacidade de
meio de digressões ou pausas na história principal. Tal intervenção é típica dos mimetizar ou imitar o gesto narrativo realizado pelo griot a partir de adaptação
contos orais, pois marcam o momento em que o griot faz uma breve interrupção dessas estratégias, outro aspecto a se pensar é acerca dos possíveis efeitos de-
para desenvolver um ponto ou lição antes de retornar à história principal. Isso las estratégias sobre a narrativa cinematográfica. O diretor senegalês Djibril Diop
pode resultar em narrativas não lineares, fragmentadas, cujos significados são Mambéty, em entrevista ao pesquisador Frank Ukadike (1999), além de afirmar a
construídos em camadas. Uma vez que tais narrativas têm o objetivo de entreter influência da tradição oral em relação ao cinema, apresenta o que, a nosso ver,
e manter uma interação com os ouvintes, a sua estrutura pode não seguir exata- pode ser o diferencial inserido por tais estratégias:
mente o molde clássico das narrativas ocidentais – com início, meio e fim explí-
citos – mas, como consequência de sua dinâmica com o público, apresentar um A tradição oral é uma tradição de imagens. O que é dito é
encadeamento conduzido pelos incidentes inseridos pelo narrador. mais forte do que o que está escrito; a palavra se dirige à
imaginação, não ao ouvido. A imaginação cria a imagem
Tal característica, em virtude do período em que tais filmes africanos emergiram,
e a imagem cria o cinema, por isso estamos na linhagem
não raro foi relacionada a vanguardas cinematográficas como o neorrealismo e a
direta dos pais do cinema. [...] A tradição oral não signifi-
nouvelle vague. Mesmo que seja possível observar questões comuns, sobretudo
ca apenas abrir a boca. Significa evocar, criar e escrever.
considerando que os cineastas africanos, para além da nacionalidade, são fruto
(MAMBÉTY, 1999).
do seu tempo, muitas das inovações narrativas observadas nos filmes africanos,
antes de serem resultantes de uma influência estrangeira, resultam de um diálogo
com o legado das culturais orais. Um legado cujo desconhecimento leva a crítica a E de fato, quando se recorre aos contos africanos, é possível perceber isso. Ain-
avaliar os filmes apenas com base em seus próprios parâmetros ocidentais. da que baseada em palavras, a tradição oral sobrevive em virtude do imaginário
construído a partir de suas narrativas. Um exemplo disso são as diferentes modali-
Outros elementos que podem ser observados nos filmes como padrões presen- dades de contos;9 entre eles, as fábulas de animais em que os bichos mantêm ca-
tes na literatura oral são: ilustrações dramáticas compostas por múltiplas vozes racterísticas de animalidade, porém com traços de personalidade humana. Outro
narrativas (a inserção da história dentro de uma história); transgressões no fluxo 9 No livro Alguns Contos Africanos (2016), são citados, pelo menos, 11 tipos de contos africanos.

54 55
exemplo é a própria lenda ou Épico de Sundiata,10 história mais famosa da tradição gogia do mistério, a construção alegórica, ao retardar a solução, incita a busca pela
oral que narra a saga de Sundiata Keita (também conhecido como Leão do Mali), resposta e incentiva o aprendizado. Em termos narrativos, de acordo com Ismail
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o fundador do Império Mali. De acordo com o escritor bissau-guineense Helder Xavier (2012), o discurso alegórico tem por característica uma estrutura fragmen-
Proença,11 a lenda que conta a história de Sundiata difere um pouco daquilo que tada, marcada pela presença de lacunas de sentido e é justamente essa “presen-
realmente aconteceu: em lugar da magia que a cerca, houve uma verdadeira guer- ça de ausências” que “tende a colocar o receptor numa postura analítica em que
ra em que Sundiata venceu e virou rei. Tal conversão de histórias em lendas é bas- qualquer enunciado fragmentado assume a aparência de mensagem cifrada que
tante comum no repertório de contos africanos, como diria Djibril Tamsir Niane: solicita deciframento”. (XAVIER, 2012, p. 446).
“Na África antiga, a magia era inseparável de toda e qualquer ação”. (2004, p. 149).
Embora poderia se alegar a existência da alegoria em função de questões como a
Antes do cinema, a imagem já estava pressuposta nos contos tradicionais por distância histórica que separa os leitores do texto literal (GAGNEBIN, 1999, p. 31)
meio da linguagem figurada. Mais do que histórias mediadas por palavras, tra- ou ainda o fato de serem narrativas produzidas em função do contexto político, a
tava-se de narrativas compondo imagens, imagens compondo imaginários. Do alegoria também se faz presente em publicações recentes da literatura africana,
amálgama entre o factual e o imaginado, as narrativas orais trazem como parte como nos livros do escritor nigeriano Chigozie Obioma.12 Neles, o autor faz uso de
de sua dinâmica a capacidade de evocar imagens e, com elas, acionar diferentes alegorias com animais para descrever as personagens que constituem as pessoas
camadas de sentido a partir de uma história. É assim que, para além das técnicas, da família, atualizando assim um recurso estilístico cuja relação com as narrativas
um dos maiores legados das narrativas orais para as narrativas fílmicas africanas é orais já foi comprovada em outros estudos.13
a composição de alegorias.
Alegorias evocam imagens (narrativas imaginadas) a partir das construções narra-
Alegorias: das narrativas orais para o cinema tivas. Entre essas imagens, está a própria memória. Retomando o que foi dito por
Hampatê Bâ (2010) acerca do presentismo da memória africana, podemos consi-
A grande questão dos estudos de narrativa cinematográfica em relação à imagem
derar a alegoria como um dos recursos narrativos empregados nos filmes que, à
é que a imagem “mostra, mas não diz” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 36). De um
semelhança das narrativas orais, articula a memória no interior da história, não
único plano fílmico, diversas interpretações são possíveis e, por conseguinte, di-
pelo gesto de recordação de um evento passado, mas pela sua restauração no
versas narrativas. De certo, a presença de construções alegóricas em filmes africa-
presente da narrativa. Sob essa perspectiva, eventuais interrupções no fluxo espa-
nos pode ser considerada uma resultante de dois aspectos: a tendência figurativa
ço-temporal da narrativa, em vez de soarem como experimentalismo, podem ser
própria dos contos africanos associada à pluralidade enunciativa da imagem fíl-
uma estratégia para construir esse elo.
mica.
Entre os filmes pioneiros a que associamos a influência da tradição oral pelo recur-
O uso de estruturas alegóricas em filmes africanos, de acordo com Melissa Tha-
so alegórico, podemos citar Afrique sur Seine (1955), realizado pelo Groupe Africain
ckway, é uma forma de incentivar o público a “interpretar o simbolismo da história
de Cinèma,14 em que as imagens de Paris, ao serem acompanhadas por uma trilha
da mesma forma que os movimentos estáticos ou minimalistas da câmera deixam
musical com língua africana e instrumentos como o kora, contrariam a expecta-
o espectador livre para dirigir seu próprio olhar”. (THACKWAY, 2003, p. 68-69). Ge-
tiva de um som com referência local.15 O som no filme se encarrega de simular a
ralmente relacionada a narrativas com finais abertos, a escolha por formas alegó-
ambiência de uma história narrada por um griot, na medida em que insere uma
ricas em narrativas fílmicas, embora tenha a sua ocorrência atribuída a contextos
melodia que utiliza o som emitido por instrumentos comuns à performance reali-
políticos marcados por regimes ditatoriais ou repressivos – uma forma de evitar a
zada por griots. Ao usar esse recurso, o cineasta de algum modo rompe com essa
censura –, demanda ser vista à luz das tradições orais, cujas narrativas fazem uso
da alegoria visando outros fins. 12 Considerado um sucessor de Chinua Achebe, em seu livro Os pescadores (Globo Livros, 2015) o
autor apresenta a história de uma família que tem como pano de fundo uma crítica ao processo de
transição política na Nigéria que no ano de 1993 não teve eleições para a presidência. Seu livro mais
Nesse sentido, a alegoria se torna didática não por apresentar as coisas de forma recente é Uma orquestra de minorias (Globo Livros, 2019).
mais clara, mas por provocar e intrigar (REBOUL, 2014). Em uma espécie de peda- 13 “Estudos de metáfora e alegoria são particularmente relevantes ao considerar a performance da
narrativa oral. Além disso, esses processos imaginários formam os elos entre a arte escrita e oral,
juntamente com os estudos da narrativa propriamente ditos, nos oferecem as melhores ferramentas
10 A história também foi adaptada para os quadrinhos pelo norte-americano Will Eisner, no livro para ver a tradição oral [...]” (CANCEL, 1989, p. 6, tradução nossa).
Sundiata, o leão do Mali, uma lenda africana (2002). Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/ 14 Formado por Paulin Soumanou Vieyra, Jacques Mélo Kane, Mamadou Sarr e Robert Caristan.
node/5335>. Acesso: 16/out./2019. 15 Os sons foram extraídos da seção musicológica do Musée de L’homme/Paris, mas é comum na
11 Disponível em: <http://triplov.com/guinea_bissau/helder_proenca/sundiata.htm>. Acesso: 16/ creditação dos filmes encontrar tocadores de Kora ou de outros instrumentos comuns à performance
out./2019. do griot.
56 57
transparência e expectativas criadas acerca da imagem, e insere um elemento estrangeiro, primeiramente através de uma animação, depois por meio de ence-
musical que, pela estranheza, funciona simultaneamente como uma espécie de nações em que homens são rebatizados com nomes franceses, carregam cruzes
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comentário, re-apropriação e re-leitura das imagens apresentadas. Assim, o filme que se convertem em espadas para o extermínio mútuo. Ao lançar mão de tais
não trata de uma Paris nos modos convencionais – embora apareça uma imagem encenações, o filme faz uma referência direta a um dos principais aspectos do
da Torre Eiffel –, mas de uma África que está sobre o Sena. Esse rio, embora geogra- processo de colonização francesa – a política assimilacionista – e aos seus efeitos
ficamente ligado à capital francesa, aqui pode ser considerado simbolicamente mesmo após a independência política dos países africanos. Uma narrativa alegóri-
como um novo Níger, referido no começo do curta como uma imagem da infân- ca que se alinha ao discurso de pensadores como Frantz Fanon em suas reflexões
cia, mas também local de convívio e experiência. sobre o colonialismo, o racismo, a relação opressor-oprimido e, especialmente, em
defesa da revolução como caminho necessário para o processo de descoloniza-
Migrando da questão sonora para a referência direta a elementos da tradição oral
ção, tendo em vista a experiência de violência vivida pelo colonizado.
como recurso alegórico na narrativa, podemos citar o exemplo de Touki Bouki (A
viagem da hiena, Djibril Diop Mambéty, Senegal, 1973). A própria referência à hie- Entre a memória do passado colonial e seus efeitos posteriores – agora disfarça-
na no título do filme é uma demonstração de uso alegórico da tradição oral. Ani- dos sob novas formas de exclusão e opressão colocadas em funcionamento pelo
mal comumente associado à ganância humana nos contos orais, a hiena no filme neocolonialismo e pelo racismo –, o filme traz diversas referências que remetem
traz uma ligação direta com os protagonistas – Anta e Mory. Cansados da rotina tanto ao contexto político e cultural do período histórico no qual foi realizado (fi-
local, eles realizam as mais diversas astúcias com o objetivo de sair da comunidade nal da década de 1960), quanto a contextos mais remotos, como o processo de
periférica onde moram em Dakar (Senegal) e fugir para Paris (França), “o paraíso colonização dos africanos pelos europeus e os conflitos que se desencadearam
na terra”16 anunciado romanticamente pela música cantada por Josephine Baker. após a independência política dos países africanos.
Enquanto para o público ocidental a referência à hiena pode não trazer muito sen-
Mesmo operando através de um distanciamento histórico entre os eventos ence-
tido, para um público familiarizado com o universo das tradições orais africanas,
nados e o momento em que a narrativa se desenvolve, a presença de estratégias
há uma justaposição de narrativas em que os atributos associados ao animal ser-
alegóricas induz quem assiste a estabelecer associações internas (entre os ele-
vem como chave estratégica para tecer uma crítica mordaz à própria sociedade
mentos da diegese fílmica) e externas (entre o filme e o seu contexto), revelando,
senegalesa e aos conflitos identitários que emergiram após a independência. Em
enfim, as múltiplas camadas significativas da narrativa. Em um contexto no qual,
reforço a essa mesma estratégia, o filme seguinte de Mambéty recebe o nome
por diversas vezes, a análise de filmes africanos esteve pautada no interesse em
Hyènes (Hienas, 1979), trazendo o retrato de uma comunidade inteira que se cor-
extrair apenas informações históricas, o recurso alegórico, enquanto um legado
rompe graças à riqueza de uma velha senhora que chega à cidade.
das tradições orais, ao provocar uma reflexão mais acurada dos elementos mobi-
Já em Soleil Ô17 (Ó sol, Med Hondo, Mauritânia, 1967), o recurso alegórico está lizados para se contar a história, favorece uma ruptura com a “transparência” da
presente na narrativa, sobretudo por meio da mise en scène, da forma como per- narrativa clássica e surge como um possível caminho para uma estética cinema-
sonagens, cenário, enquadramento e montagem são articulados para a composi- tográfica africana.
ção da cena. Enquanto a narrativa central traz a jornada de um imigrante africano
que busca por uma oportunidade de trabalho como contador em Paris, o filme é Referências
cercado por interrupções, digressões, que funcionam como comentários críticos
à narrativa, ao mesmo tempo em que contribuem para entender os conflitos da BAMBA, Mahomed. Reflexión sobre la dimensión espectatorial de las películas
personagem protagonista. Em uma espécie de prólogo, as cenas iniciais trazem à africanas: o cómo los cines africanos piensan de otra manera en sus públicos,
memória o paulatino processo de subordinação das culturas africanas ao domínio Secuencias: Revista de historia del cine, Pantallas contemporaneas de África y su
16 Expressão extraída do trecho da música Paris, Paris (Paris, Paris, Paris, c’est sur la terre un coin de diáspora. v. 41, 2015, p. 19-40. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.15366/se-
paradis - Paris, Paris, Paris, é na terra um canto do paraíso), interpretada pela cantora afro-americana
Josephine Baker e que serve de fundo musical para a célebre cena em que Anta e Mory passeiam cuencias2015.41.001>. Acesso em: 19/fev./ 2019. Tradução: Ana Camila Esteves
montados sob a moto estilizada com o crânio de animal. (no prelo).
17 O próprio título do filme é uma referência alegórica, uma vez que faz alusão a um cântico (Soleil
Ô), entoado pelos africanos enquanto eram levados como escravos para as Índias Ocidentais, que
expressava a indignação diante do abrupto desligamento em relação à sua terra natal. (UKADIKE,
1994, p. 79). Um gesto de resistência que indiretamente o filme convoca, ao denunciar como o BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrati-
contexto neocolonial reproduz, sob novos moldes, o preconceito e a segregação de outrora.

58 59
vos. In: Teoria contemporânea do cinema, v. 2, p. 277-301, 2005. MAMBÉTY, Djibril Diop. The Hyena’s Last Laugh. [Entrevista concedida a] Nwa-
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cop Paris C.N.P.C., Taare Film, Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF). França/Alema-
Filmografia nha/Mali, 1997, Bambara/Kaado, 102 min., color.

AFRIQUE sur Seine. Direção: Groupe Africain du Cinèma. Roteiro: Mamadou Sarr. TOUKI Bouki (The hyena’s journey). Direção: Djibril Diop Mambéty. Produção: Ci-
Filmagem: Robert Caristan. Montagem: Paulin Soumanou Vieyra. Som: G. Chou- negrit, Studio Kankourama. Senegal, 1973, Francês/Wolof/Árabe, 85 min., color.
chon, Seção musicológica do Musée de L’homme/Paris, 1955, Francês, 21 min.,
p/b. WÊND Kûuni (Le don de Dieu). Direção e produção: Gaston Kaboré. Produção: La
direction du cinema, Secrétariat d’État à l’information, La République de Haute-
DJELI, Contes d’aujourd’hui. Direção: Fadika Kramo Lanciné. Produção: Les Films -Volta (Burkina Faso), 1983, Mooré, 75 min., color.
du Sabre. Costa do Marfim, 1981, Dyula, 90 min., color.

GUIMBA, un tyran, une époque. Direção: Cheick Oumar Sissoko. Produção: Centre
Morgana Gama é doutoranda pelo Programa de Comunicação e Cultura Contem-
National de la Cinématographie du Mali (CNCM), Direction de la Cinematographie
porâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pesquisa sobre a relação
Nationale, Kora Films. Mali, 1995, Francês/Peul/Bambara, 95 min., color.
entre narrativas cinematográficas e a tradição oral em filmes de África e suas diás-
poras e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
HYÈNES. Direção: Djibril Diop Mambéty. Produção: ADR Productions, Channel Four
(co-production), DRS (co-production), Georges Reinhart Productions (co-produc-
tion), Maag Daan (co-production) e Thelma Film AG. Suíça/França/Senegal/Reino
Unido/Holanda/Itália, 1973, Wolof/Francês/Japonês, 110 min., color.

JOM ou l’Histoire d’un peuple. Direção: Ababacar Makharam. Produção: Baobab


Films, Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF). Senegal/Alemanha, 1981, Wolof, 76
min., color.

KEITA! L’héritage du griot. Direção: Dani Kouyaté. Produção: Sahelis Productions,


Burkina Faso, 1995, 94 min., Francês, color.

L’EXILÉ. Direção: Oumarou Ganda. Produção: Caba-Films. Níger, 1980. 1 DVD, Djer-
ma/Francês, 78 min., color.

MUNA Moto - L’enfant de l’autre. Direção: Jean-Pierre Dikongué-Pipa. Camarões,


1975, Francês/Duala/Bassa, 89 min., p/b.

NELISITA: narrativas nyaneka. Direção: Ruy Duarte de Carvalho. Produção: Labora-


tório Nacional de Cinema (Angola), 1982, 90 min., color.

SOLEIL Ô. Direção: Med Hondo. Produção: Shango; Grey Films. França/Mauritânia,

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


RETORNO, CAPTURA,
ABERTURA: O CINEMA DE
PAULIN SOUMANOU VIEYRA
COMO CAMPO DE FORÇAS
Marcelo R. S. Ribeiro
“Não existe obra de arte que não faça
apelo a um povo que ainda não exis-
te.” (Gilles Deleuze, “O ato de criação”)

Trajetória: desterro e retorno

A primeira geração de cineastas que emerge na África Ocidental tem em seu cerne
a figura de Paulin Soumanou Vieyra.1 Ele nasceu em 31 de janeiro de 1925, no que
era então o Daomé, um território colonial francês que se tornaria politicamente
independente em 1960, para se tornar a República Popular do Benim em 1975.
Falecido em 4 de novembro de 1987, em Paris, Vieyra não viu sua terra natal assu-
mir a denominação atual, República do Benim, em 1990, mas sua relação com o
país já era de distanciamento em vida. Aos 10 anos, vai estudar em um internato
na França, iniciando um período de desterro na Europa, que se estende, de modo
geral, até a década de 1950.

O engajamento de Vieyra na luta contra o colonialismo passa pelo encontro com


migrantes de outras partes da África de colonização francesa, no desterro em Pa-
ris, onde realizará seus primeiros filmes. Sua estreia na direção foi com C’était il y
a quatre ans (1954), trabalho de conclusão de curso apresentado no Institut des
hautes études cinématographiques (criado em 1943, atual FEMIS), onde tinha sido
admitido em 1952, tornando-se o primeiro estudante africano a graduar-se na ins-
tituição. No desterro metropolitano, Vieyra realiza também aquele que é consi-
derado por muitos como o primeiro filme africano, Afrique sur Seine (1955), em
codireção com Mamadou Sarr e em colaboração com Jacques Mélo Kane e Robert
Caristan, do Groupe Africain du Cinéma.2 Em ambos, o desterro se revela uma ex-
periência de divisão subjetiva, entre duas formas de desejo e delírio: de um lado,
a participação na comunidade supostamente universal associada à branquitude
europeia e, de outro, a construção de uma comunidade descolonizada projetada
em terras de origem na África, que permanecem, contudo, distantes ou perdidas.

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Com a independência do Senegal, em 1960, Vieyra se torna o responsável pela um ano de independência, ou Lamb (1963), sobre o esporte de luta livre homô-
produção dos programas semanais de atualidades cinematográficas, Sénégal en nimo e sua popularidade nacional. Birago Diop, conteur (1981), sobre o importan-
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


marche, no âmbito do Ministério da Informação, no governo do presidente Lé- te escritor senegalês, L’envers du décor (1981), sobre o trabalho de Sembène em
opold Sédar Senghor, com a cooperação do governo francês, por meio do Consor- Ceddo, e Iba N’diaye, portrait d’un peintre (1982) evidenciam que a sensibilidade
tium Audio-visuel International (CAI) e dos contratos que estabelecia com ex-co- crítica e historiográfica de Vieyra se volta para outras formas artísticas, além do
lônias, que permitiam a finalização, na França, de atualidades, filmes educacionais cinema, enquanto seu pensamento teórico sobre o cinema e as artes africanas
e documentários filmados nos países africanos. Nesse contexto, Vieyra se conver- se articula tanto em intervenções escritas quanto no que se pode compreender
te em um dos mais importantes formadores de técnicos para cinema nos países como filmes-ensaios.
recém-independentes (sobretudo cinegrafistas), observando a necessidade de
Em suas ficções, Vieyra aborda situações da vida em comum em aldeias, como na
construção de autonomia em relação à França, e em mentor de cineastas como
tragédia familiar de N’Diongane (1965) – um filme baseado no conto “Petit mari”,
Ousmane Sembène e Ababacar Samb Makharam. As contribuições de Vieyra para
que o escritor Birago Diop recriara ao escrever com base em narrativas orais, em
o campo cinematográfico emergente, que remontam à criação do Groupe Africain
Les contes d’Amadou Koumba (1947) – ou na comédia dançante Sindiely (1965), que
de Cinéma, em Paris, desdobram-se de modo contundente na fundação da Fé-
aborda o casamento. Vieyra também está interessado nos dilemas da experiência
dération Panafricaine des Cinéastes (FEPACI), em 1969, assim como em seu traba-
pós-colonial africana, como as relações entre modos de vida tradicionais e noções
lho de professor do Centre d’Études des Sciences et Techniques de l’Information
de progresso modernas, cujas eventuais contradições são resolvidas pela narrati-
(CESTI), ligado à Université de Dakar.
va de Môl (1966). Em seu único filme de longa-metragem, En résidence surveillée
Na importante revista Présence Africaine, Vieyra publica algumas intervenções (1981), são dramatizadas as disputas em torno do poder político e os limites das
críticas, teóricas e historiográficas inaugurais sobre os cinemas africanos, como reivindicações de democracia no continente africano, evidenciando um interesse
os artigos “Responsabilités du cinéma dans la formation d’une conscience natio- crítico no presente e nas perspectivas de futuro das nações africanas.
nale africaine” (1959) e “Le Cinéma et la Révolution africaine” (1960-61), republi-
Cinema: captura e abertura
cados no livro Le Cinéma et l’Afrique, em 1969. Nas décadas de 1960 e 1970, além
de outros artigos na Présence Africaine, Vieyra continua publicando livros na casa A trajetória pessoal de Vieyra atravessa um itinerário comum para a primeira gera-
editorial homônima, tais como Sembène Ousmane, cinéaste, em 1972, e Le Cinéma ção de cineastas da África Ocidental: ao desterro metropolitano sucede o retorno
Africain – Des origines à 1973, em 1975, enquanto trabalha como produtor em im- às terras africanas. Entre desterro e retorno, a promessa das independências polí-
portantes obras de Sembène, como Mandabi (1968), Emitaï (1971), Xala (1974) e ticas se desdobra como uma fantasia e um projeto compartilhados: o nascimento
Ceddo (1976). Em 1982, em Paris, Vieyra defende sua tese de doutorado, sob orien- de nações. As diferentes perspectivas dessa primeira geração estão associadas
tação de Jean Rouch, intitulada À la recherche du cinéma africain. Em 1983, publica ao modo como cada cineasta participa da partilha desse sonho, que encadeia o
o livro Le cinéma au Sénégal. que chamei, em outro lugar (Ribeiro, 2016), de cosmopoéticas da descolonização
e do comum: as formas de invenção (poiesis) do mundo como mundo comum
Ao mesmo tempo em que contribui para a formação de cineastas e técnicos, para
(cosmos). Estas estão associadas, de um lado, à reivindicação da descolonização
a institucionalização dos cinemas africanos e a reflexão crítica, teórica e historio-
como “experiência de emergência e de insurreição”, nos termos de Achille Mbem-
gráfica sobre esses cinemas emergentes, Vieyra continua construindo sua obra
be (2019, p. 18, tradução modificada); e de outro, à imaginação do comum, articu-
cinematográfica. Nas atualidades e em alguns documentários, condensa-se um
lando diferentes enquadramentos de comunidade, identidade e pertencimento.
testemunho do período após as independências, com base na perspectiva do
Esquematicamente, as cosmopoéticas da descolonização operam como desen-
governo de Senghor, que Vieyra acompanha em suas viagens internacionais; por
quadramento e abertura do mundo para a transformação, enquanto as cosmo-
exemplo, à União Soviética, em 1962, e ao Brasil, em 1964, entre outros países.
poéticas do comum se desdobram como enquadramento e fechamento do mun-
Além das atualidades senegalesas e de produções mais diretamente associadas à do em formas sedimentadas. Historicamente, como toda transformação tem sua
estética e à pedagogia nacional dos noticiários cinematográficos, seus documen- abertura limitada pela produção de novas formas, e toda sedimentação formal
tários abordam o Senegal, sua história e sua cultura por meio de perspectivas mais tem seu fechamento perturbado pela emergência de forças que não têm forma
reflexivas, como em Une nation est née (1961), no contexto das comemorações de fixa, cosmopoéticas da descolonização e cosmopoéticas do comum se complicam

66 67
e se renovam interminavelmente. Vieyra parece buscar, de modo geral, a resolução da tensão em favor das formas
nacionais de captura do comum. Lamb procura promover o discurso pedagógico
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


No caso de Vieyra, o engajamento inicial na descolonização se manifesta de for-
destinado à invenção do povo nacional – que transforma a luta livre, conhecida no
ma paradigmática em Afrique sur Seine, enquanto a maior parte de seus filmes
idioma wolof como lamb, em um “esporte nacional” e, portanto, em um dispositi-
parece estar associada, decidida e decisivamente, às diferentes formas de captura
vo de poder – e subordinar as forças da multiplicidade dos povos – que escapam
das forças desencadeadas pela emergência e pela insurreição da descolonização,
do enquadramento nacional, mas permanecem fragmentadas e frágeis, intersti-
convertendo-as em formas que é preciso organizar, sedimentar e dispor de acordo
ciais, menores, às margens do discurso fílmico.
com projetos específicos. Quando Afrique sur Seine inverte a hierarquia colonial,
reivindicando um direito de olhar que permanecia interditado e censurado pelo A pedagogia nacional de Vieyra inscreve a sequência inicial de Lamb, que justa-
Estado francês, o desejo de descolonização se manifesta em uma fantasia de reco- põe paisagens da terra e do mar, sob um comentário contundente, que explicita a
nhecimento universal. Essa fantasia desloca os ideais civilizacionais universalistas captura unificadora das paisagens e diferentes identidades étnicas que recortam
associados à língua francesa, que aparece nesse e em outros filmes como veículo a nação, nomeadas pela voz off: “Eles são agricultores. Eles são criadores de gado.
da perspectiva africana, e à cidade de Paris, que aparece como “capital da África Eles são pescadores. Wolofs, Toucouleurs, Sérères, Diolas. Eles são filhos do Sene-
negra”. A aspiração ao universal (re)captura e neutraliza a potência perturbadora gal.”3 A pluralidade étnica é subordinada à ontologia do projeto nacional, enquan-
da descolonização, enquanto esta desloca e perturba a captura colonial do co- to a luta lamb se converte em “esporte nacional”, por meio de um diálogo que se
mum como comunidade universal associada à branquitude, insinuando o delírio encena em off. Primeiro, assistimos a alguns movimentos da luta em uma praia:
e o desejo de uma comunidade aberta. passamos dos treinos a demonstrações da “dança ritual”, endereçados ao olhar da
câmera, que registra as diferentes posições de queda. Em seguida, em meio às
O desterro é, para Vieyra, a ocasião de um duplo movimento expressivo: o afasta-
movimentadas ruas de Dakar, o filme apresenta os espetáculos da luta em arenas
mento em relação à língua materna acompanha a adoção do francês, que se tor-
como formas de uma “festa do povo”, enquanto a música de toda a parte inicial do
na, assim, em sua trajetória e em seus filmes, um idioma ambivalente. Assim como
filme é substituída por toques militares que anunciam o espetáculo como uma
para as nações nascentes que se reconhecem, em parte, por meio dos idiomas
festa reconhecida e consagrada pelo Estado.
dos ex-colonizadores, para Vieyra, o próprio é, paradoxalmente, um dos signos de
uma expropriação originária. Nesse sentido, o retorno às origens não pode ocor- “Espírito, pode nos ouvir? O espírito fala e diz: ‘Escuta’, como diz o poeta, ‘Escuta
rer, a não ser como fantasia de resgate da origem perdida, e será, então, encenado mais vezes as coisas do que os seres’. Ouve-se a voz dos ancestrais.”4 A voz se tor-
como um retorno paradoxalmente inventivo, que passa pelo uso do francês como na cada vez mais performática em sua cena dialógica polifônica e ambivalente,
língua oficial senegalesa. Nesses termos, o retorno inventivo às origens converte enquanto acompanhamos, em diferentes arenas, a chegada dos lutadores e do
a própria experiência da nação em desterro, na medida em que a língua própria público, a pressa das apostas e o início das danças e das lutas, sob o som da mú-
permanece estrangeira e não originária, e a comunidade nascente que os filmes sica inicial e de sua cadência constante, repetitiva, ritmada. Quando o desafio da
de Vieyra promovem por meio de uma pedagogia nacional bastante explícita não luta se desencadeia, a cadência constante da música que tinha sido retomada é
encontra fechamento ontológico e não se realiza por completo como volição dos substituída por tambores rituais, em seu ritmo entrecortado e intenso, rico em va-
seres que viriam a compor a comunidade nacional. Isso ocorre porque suas experi- riações, atravessado pela força de algo que resta inassimilável aos toques militares
ências do comum são acolhidas por outros enquadramentos e continuam sujeitas que tinham ocupado a trilha sonora anteriormente.
à ação de diferentes forças de desenquadramento. Apesar das pedagogias que os
Em certo sentido, a trilha sonora constitui um campo de disputa análogo ao das
orientam, os filmes de Vieyra resguardam traços contundentes desses desenqua-
imagens, reproduzindo no extracampo a tensão entre captura nacional e abertura
dramentos do comum.
para o real que se estabelece na montagem. Tudo transcorre em diferentes arenas,
A descolonização diante da Europa, que desenquadra a comunidade universal em nas quais vários lutadores e espectadores se intercalam e se substituem, configu-
Afrique sur Seine, encadeia-se com uma espécie de recolonização, em filmes como rando uma montagem simbólica, e não simplesmente documental em sua relação
Lamb, por meio do enquadramento nacional do comum, que permanece pertur- 3 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Ils sont cultivateurs. Ils sont
éleveurs. Ils sont pécheurs. Wolofs, Toucouleurs, Sérères, Diolas. Ils sont enfants du Sénégal.”
bado por formas de descolonização diante do enquadramento nacional, confi- 4 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Esprit, es-tu là ? L’esprit parle et
gurando uma tensão indecidível entre captura e abertura do comum. A obra de dit: ‘Écoute’, comme dit le poète. ‘Écoute plus souvent les choses que les Êtres’. La voix des ancêtres
s’entend.”

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com o real, enquanto se estende a percussão polifônica e polissêmica dos tambo- a imaginação do comum).
res. A montagem cria equivalências formais entre os diferentes locais singulares
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


O protagonista, Ousmane, que realizou seu sonho de infância e se tornou um pes-
que aparecem nas imagens, extraindo do registro do real a mais-valia da comuni-
cador em Kayar, deseja comprar um motor para seu barco. A compra do motor
dade nacional e, dessa forma, buscando conter e neutralizar todo risco, todo traço
deve, contudo, ser debatida pelo conselho de anciãos da aldeia, pois os espíritos
de imprevisível, toda força intempestiva de desordenamento do discurso. Como
dos ancestrais precisam ser consultados, para que se chegue, finalmente, à deci-
essa contenção e neutralização nunca se efetivam por completo, as imagens con-
são de permitir que Ousmane aja livremente. Todo o desenrolar da ação é didati-
tinuam a abrigar a sobrevivência das forças (seria possível dizer, talvez, do pathos)
camente explicado pela narração em off, que ensina: “o caminho de Ousmane será
dos povos e de sua multiplicidade irredutível, que perturba a nação como forma
bom, pois tudo foi feito segundo a tradição”.8
simbólica e como ontologia.
Para obter dinheiro, Ousmane viaja a Saint-Louis, onde procura por seu tio, em
O projeto nacional se consagra com o encerramento das lutas e a glória dos ven-
busca de um empréstimo. Mais adiante, a narração resume o encadeamento dos
cedores (em um momento do filme em que encontramos, curiosamente, a figura
acontecimentos da trama: “Ousmane continuará sua viagem em Dakar, para juntar
de Ousmane Sembène, com seu indefectível cachimbo). Revela-se brevemente
o dinheiro que seu tio não pode emprestar a ele, para que compre seu motor.”9 O
aqui o olhar masculino que organiza a pedagogia fílmica (em continuidade com
percurso de Ousmane, que adentra o interior do país pelo rio Senegal e segue
aquele que insinuava a comunidade descolonizada em Afrique sur Seine), quando
para a cidade de Dakar, permite revelar diversas paisagens, que são enquadradas
assistimos à passagem de várias mulheres no campo da imagem e escutamos a
pela nação como forma de imaginação do comum, mas permanecem sugestiva-
voz off perguntando: “o que cantam então os corações das belas mulheres?”5 A
mente assombradas por forças de desenquadramento.
cena dialógica da voz off continua, respondendo com ironia à descrição das rou-
pas multicoloridas e alegres das mulheres como “enfeites para o prazer dos olhos”: Depois de um breve vislumbre sobre a aldeia e os conflitos que a atravessam, o fil-
após uma pausa, completa-se “e dos comerciantes”.6 O desfecho de Lamb inscreve me mostra que Ousmane chega à loja CFAO, onde se explica a ele o funcionamen-
a pedagogia nacional em uma forma alegórica, por meio da imagem de crianças to do sistema de crédito, que permitirá que leve o motor para Kayar. Para juntar
que brincam de lutar e são convocadas como guardiãs do futuro do esporte nacio- o dinheiro necessário, ele vai trabalhar no porto, e o filme utiliza diversos planos
nal: “E a próxima geração está aí, nesses jovens, que amanhã carregaram a tocha em preto e branco para representar o período de Ousmane como estivador. Retor-
das arenas.”7 A captura nacional do comum define um enquadramento dominan- nando em seguida aos planos coloridos, a narrativa chega ao seu desfecho com o
te, que projeta sua forma simbólica sobre as imagens do filme, rasurando as sin- retorno de Ousmane a Kayar. Com algum suspense, o filme adia a revelação final
gularidades que abrigam. Diante da rasura simbólica promovida pela nação como de que, na aldeia, a “alegria de reencontrar um filho” coincide com a alegria de
dispositivo discursivo, resta ler a contrapelo, por baixo da rasura, para reconhecer “acolher o progresso”,10 conformando a pedagogia nacional como resolução sim-
a sobrevivência fantasmagórica de forças da multiplicidade dos povos. bólica do antagonismo entre tradição e modernidade.

Em Môl, o desejo de resolver a tensão constitutiva da obra de Vieyra em favor da Em seus filmes-ensaios, como Birago Diop, conteur e Iba Ndiaye, portrait d’un pein-
captura nacional do comum define a teleologia da narrativa do curta como um tre, quando Vieyra se afasta da pedagogia nacional estrita das atualidades e das
ato simbólico de resolução do antagonismo social entre tradição e modernidade, alegorias documentais e ficcionais da década de 1960, torna-se mais explícita a
dificultando a abertura da ficção para o risco do real. A narração em off desdobra tensão entre abertura e captura, descolonização e reenquadramento do comum
o discurso interpretativo que consagra a ontologia nacional, enquanto as imagens que perpassa seu cinema. Em L’envers eu décor, ele reflete sobre o processo de cria-
que encenam o sentido simbólico dessa pedagogia nacional são subordinadas ção e de trabalho do “escritor-cineasta” Ousmane Sembène, particularmente no
pela narrativa, mas ainda resguardam alguns elementos que perturbam a captura decorrer das filmagens de Ceddo. Entre comentários analíticos em off e conversas
nacional (principalmente nas sequências de filmagem da pesca, que rarefazem a com o próprio Sembène, o cinegrafista Georges Caristan, a montadora Florence
pedagogia do discurso fílmico com sua força fugidia, que convida a desenquadrar Eymon e a esposa de Sembène na época das filmagens, a estadunidense Carrie
5 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “que chantent donc les cœurs des 8 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “la route d’Ousmane sera bonne, car
belles?”. tout a était fait selon la tradition.”
6 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “– […] tissues multicolor, joyeux, 9 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Ousmane poursuivra son Voyage
parures pour le plaisir des yeux. – Et des commerçants…”. sur Dakar, pour réunir l’argent que son oncle n’a pas pu le prêter pour acheter son moteur.”
7 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Et la relève est là, en ces jeunes, qui 10 Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “joie de retrouver un fils et
demain porteront, eux, le flambeau des arènes.” d’accueillir le progrès.”

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Moore, o discurso do filme-ensaio se configura como uma interrogação polifônica bio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
sobre a criação artística e a invenção cultural. A arte emerge como um espaço
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


PRÉSENCE Africaine, n. 170, 2º semestre 2004. Disponível em: <https://www.jstor.
inventivo, irredutível às formas de servidão ontológica a que se pretende sujeitar
org/stable/i24431086>. Acesso em: 20/out./2019.
sua potência cosmopoética, na medida em que recusa qualquer aspiração a re-
presentar (em todos os sentidos) um povo e se coloca em meio à multiplicidade RIBEIRO, Marcelo R. S. Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do
dos povos que faltam, seja porque ainda não existem (as gerações por vir, além do olhar, retorno às origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos.
futuro mais imediato) ou porque não existem mais (os ancestrais). Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, 2016, p. 1-26.

Pode ser interessante recordar alguns versos apreciados por Vieyra (citados por RIBEIRO, Marcelo R. S. Desterro, desejo, delírio. Catálogo da Mostra Grandes Clás-
ele em diferentes filmes e ocasiões), que aparecem no interior do conto “Sarzan”, sicos do Cinema Africano. Organização Tiago de Castro Machado Gomes. Rio de
no livro Contes d’Amadou Koumba, de Birago Diop, depois recolhidos sob a forma Janeiro: Caixa Cultural, 2017, p. 89-97.
de um poema, intitulado “Souffle”, no livro Leurres et lueurs (1960): “Atente os seus
ouvidos / Mais às coisas que aos Seres” (em tradução de Leo Gonçalves);11 “Escuta
mais vezes / As coisas do que os Seres” (na tradução que arrisco propor).12 Talvez se Marcelo R. S. Ribeiro é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual,
possa dizer que o cinema de Vieyra se define pela tensão entre a “escuta dos Seres” atuando desde maio de 2017 na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal
e a “escuta das coisas”. Na primeira, está em jogo um trabalho ontológico explícito da Bahia. Coordena o grupo de pesquisa Arqueologia do Sensível e participa do La-
e consciente de organização pedagógica do discurso, cujo objetivo é tornar possí- boratório de Análise Fílmica, desenvolvendo e orientando pesquisas sobre imagem,
vel a sedimentação da história e a disposição de seus traços dentro de um projeto história e direitos humanos. É doutor em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes
fundamentalmente nacional de imaginação do comum. Na escuta das coisas, por Visuais da Universidade Federal de Goiás (2016), fundador, autor e editor do inciner-
sua vez, há um trabalho fantasmagórico menos explícito, mais fugidio e eventual- rante (https://www.incinerrante.com), cofundador (com Juliana Costa), autor e editor
mente inconsciente de abertura para o “Sopro dos ancestrais”, para “os que falece- do a quem interessar possa (https://www.aquem.in), crítico de cinema, programador
ram [mas] jamais se foram”13; em suma, para a memória do mundo que sobrevive à e curador de mostras e festivais.
desaparição. Em Vieyra, o retorno inventivo às origens se torna projeto, na medida
em que seus filmes e sua atuação se acoplam aos dispositivos estatais e nacionais
de captura do comum, mas sobrevive em suas obras uma margem de indefinido,
entre passado e porvir, entre a ancestralidade dos povos que não existem mais e o
apelo aos povos que ainda não existem. É preciso uma leitura a contrapelo da obra
de Vieyra, cujas linhas gerais tentei insinuar aqui, para explorar os efeitos dessa
sobrevivência inaudita e para fazer a experiência da escuta das coisas que resta
possível entre as imagens de seus filmes.

Referências bibliográficas

DIAWARA, Manthia. African cinema: politics & culture. Bloomington: Indiana Uni-
versity Press, 1992.

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Trad. Fá-
11 A tradução de Leo Gonçalves para alguns poemas de Birago Diop foi publicada na revista
Modo de Usar & Co (disponível em: <https://revistamododeusar.blogspot.com/2011/06/birago-
diop-1906-1989.html>; acesso em 20/out./2019).
12 No poema original: “Écoute plus souvent / Les choses que les Êtres”.
13 No poema original: “le Souffle des ancêtres”; “Ceux qui sont morts ne sont jamais partis”.

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CI NE ASTAS Clássicos Africanos

CINEASTAS
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Bassori Timité Jean-Pierre Dikongué Pipa
(Aboisso/Costa do Marfim, 1933) (Duala/Camarões, 1940)

Considerado o pai do cinema marfinense, Estudou cinema no Conservatoire Libre


estudou cinema no Institut des Hautes du Cinéma Français, em Paris. Depois
Études Cinématographiques, em Paris. de três curtas-metragens, entre 1965
Seu primeiro filme é o curta-metragem e 1966, dirigiu os longas Muna Moto
Na duna da solidão, de 1964. Cinco anos (1975) e Le prix de la liberté (1978), filmes
depois, em 1969, realiza A mulher com que o levaram à fama internacional.
uma faca, seu único longa-metragem e Escritor, dramaturgo e encenador,
o primeiro da Costa do Marfim. Bassori Jean-Pierre Dikongue também dirigiu e
foi também diretor da Société Ivoirienne interpretou cerca de 30 peças ao longo
de Cinéma e publicou vários romances. da sua carreira.
CI NEASTAS

Djibril Diop Mambéty Med Hondo


(Atar/Mauritânia, 1936 - Paris/França, 2019)
(Dakar/Senegal, 1945 - Paris/França, 1998)
Mohammed Abid Hondo, conhecido
Formou-se em artes cênicas, tendo
como Med Hondo, emigrou para a França
trabalhado primeiramente como ator
em 1959. Lá, enquanto se dedicava a
no Teatro Nacional Daniel Sorrano,
trabalhos temporários, começou a ter
famosa companhia em Dakar. Em 1968,
aulas de teatro. Conheceu Françoise
aos 23 anos de idade e sem experiência
Rosay, famosa cantora de ópera e atriz,
prévia com cinema, filmou o curta-
que o adotou como pupilo. Montou
metragem Contra’s city. No ano seguinte
companhias teatrais onde produzia
Badou Boy, filme que percorreu festivais
peças de autores como René Depestre,
internacionais ganhando prêmios.
Aimé Césaire e Daniel Boukman. A transição ao cinema foi natural, com a
Em 1973, lança sua obra mais conhecida, Touki Bouki, longa-metragem de
criação da produtora Soleil Ô. Sua carreira cinematográfica inclui 13 filmes,
extrema relevância devido à narrativa marcada pela fuga da linearidade e
entre curtas e longas, ficções e documentários. Entre os mais relevantes estão:
outras experimentações formais, até então pouco exploradas por outros
Ó, Sol (1969), um dos primeiros e principais filmes africanos experimentais e
realizadores africanos. Apesar da carreira curta, com apenas sete filmes, é um
Lumière noire (1994).
dos cineastas africanos mais renomados e emblemáticos.

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Moustapha Alassane Ousmane Sembène
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


(N’Dougou/Níger, 1942)
(Ziguinchor/Senegal, 1923 — Dakar/ Senegal, 2007)
Estudou cinema no Centre Culturel
Considerado por muitos o “pai do
Franco-Nigérien, em Niamey, tendo
cinema africano”, nasceu no interior do
contato com Jean Rouch, o qual
Senegal, em uma família humilde. Na
viabilizou a continuidade de sua
França, escreveu romances abordando
formação no National Film Board, do
a questão racial e da imigração e
Canadá. Lá, conhece o famoso Norman
conseguiu uma bolsa para estudar
McLaren, que lhe ensina os segredos da
cinema em Moscou, no estúdio Gorky.
animação. É um dos primeiros cineastas
Em 1963, aos 40 anos, lançou seu
de África, contribuindo para que o Níger
primeiro curta-metragem, Borom sarret.
se tornasse um país de referência no cinema africano, equilibrando os pratos
Em 1966, lançou A negra de..., obra que o tornou o primeiro diretor africano
da balança com o Senegal. As primeiras animações da África Subsaariana
a ser internacionalmente reconhecido. Sua obra é composta por diversos
são de sua autoria, como A morte de Gandji, Le Piroguier e Boa viagem, sim.
livros, além de treze filmes, entre curtas, médias e longas-metragens, como
CI NEASTAS

Realizou também documentários e obras de ficção, como O anel do rei Koda e


Xala (1975), Ceddo (1976) e Mooladé (2003).
O regresso de um aventureiro.

Oumarou Ganda Paulin Soumanou Vieyra


(Porto-Novo/Benin, 1925 - Paris/França, 1987)
(Niamey/Níger, 1935 - Niamey/Níger, 1981)
Primeiro africano negro a obter
Aos 16 anos, alistou-se no Corpo
diplomatura em cinema, formou-se
Expedicionário Francês, no extremo
em 1954 no Institut des Hautes Études
oriente, e participou na Guerra da
Cinématographiques, na França. Em
Indochina. No seu regresso, foi forçado
1955, dirigiu o primeiro filme de um
a emigrar para a Costa do Marfim, onde
africano negro, África sobre o Sena,
trabalhou como estivador. Encontrou
acerca da experiência imigrante em
Jean Rouch, que lhe propôs o papel de
Paris. Posteriormente, retornou ao
protagonista em Eu, um negro. Alguns
Senegal, onde se tornou diretor do
anos depois, retornou a Niamey, onde, a
Service des Actualités Cinématographiques du Sénégal. Em 1982, alcançou
partir da sua experiência na guerra, realizou seu primeiro filme, Cabascabo,
o grau de Doutor da Sorbonne (sob a direção de Jean Rouch), com sua tese
de 1969. Continuou a filmar nos anos 1970, obtendo reconhecimento
intitulada Em busca do cinema africano. Além de uma extensa carreira como
internacional, principalmente com Le Wazzou Polygame, que recebeu o
diretor, foi também produtor de vários filmes de Ousmane Sembène e mentor
Prêmio de Melhor Filme no primeiro FESPACO. Para além da ficção, realizou
de outros cineastas, como Ababacar Samb Makharam e Flora Gomes.
vários documentários. Nas suas homenagens póstumas, estão incluídos um
Centro Cultural em Niamey – Le Centre Culturel Oumarou Ganda – e o nome
de um dos prêmios mais importantes do FESPACO.
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Safi Faye
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


(Dakar/Senegal, 1943)

Nascida na aldeia Fad’jal, no berço de


uma família camponesa, Safi Faye era
professora da educação básica, quando
conheceu Jean Rouch, em 1966, no I
Festival Mundial de Artes Negras de
Dakar. Rouch a introduziu ao cinema,
com um papel no filme Petit à petit, de
1971. Safi se muda em 1972 para Paris,
com o intuito de estudar antropologia
na École Pratique des Hautes Études e, posteriormente, cinema na École
Nationale Supérieure Louis-Lumière. Em Paris dirige seu primeiro filme,
o curta-metragem La passante, de 1972. Em 1975, realiza o longa Carta
camponesa, tornando-se a primeira mulher africana a dirigir um filme
CI NEASTAS

distribuído comercialmente. Diretora pioneira numa área dominada por


homens, a carreira cinematográfica de Safi Fare nos lembra da importância
da luta feminista.

Souleymane Cissé
(Bamako/Mali, 1940)

Nascido em uma modesta família


muçulmana, sua paixão pelo cinema
surgiu ainda quando criança. Tornou-
se fotógrafo e projecionista, obtendo
posteriormente uma bolsa de estudos
na Universidade Russa de Artes
Cinematográficas (VGIK), em Moscou.
Em 1970, retornou ao Mali e trabalhou
fazendo documentários para o Service
cinématographique du Ministère de l’Information. Seu primeiro filme de
ficção é o curta-metragem Cinq jours d’une vie, de 1972. Três anos depois
dirige o longa-metragem A garota, banido no Mali por falar da questão do
estupro. Outras de suas obras mais importantes são O vento (Finye) e A luz
(Yeelen), ambas com importante carreira e prêmios em festivais ao redor do
mundo.
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F I L ME S Clássicos Africanos

FILMES
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A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO E ROTEIRO: Ousmane
DIREÇÃO: Paulin Soumanou Sembène
Vieyra, Mamadou Sarr PRODUTORA: Filmi Domirev
PRODUTORA: Comité du film Dakar
ethnographique du Musée de ASSISTENTES DE DIREÇÃO:
l’Homme, Le Groupe Africain de Ibrahima Barro, Pathé Diop
Cinéma FOTOGRAFIA: Christian Lacoste
PRODUÇÃO: Jack Melo Khane MONTAGEM: André Gaudier
ROTEIRO: Mamadou Sarr ELENCO: Thérèse Mbissine Diop,
FOTOGRAFIA: Robert Caristan Anne-Marie Jelinck, Momar
MONTAGEM: Paulin Soumanou Nar Sene, Robert Fontaine,
FILMES

Vieyra Bernard Delbard, Nicole Donati,


TRILHA SONORA: G. Raymond Lemery, Suzanne
Chouchon, Seção musicológica Lemery, Ibrahima Boy, Phillipe,
do Musée de L’homme/Paris Sophie, Damien
NARRAÇÃO: Mamadou Sarr e DUBLAGEM: Toto Bissainthe,
Paulin Vieyra Robert Marcy, Sophie Leclerc

ÁFRICA SOBRE O SENA A NEGRA DE...


Afrique sur Seine, França/Senegal, 1955, 21’ La noire de…, França/Senegal, 1966, 56’

Realizado por um grupo de africanos que estudava cinema no Baseado em um conto homônimo de Ousmane Sembène
Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC) em Paris, publicado em 1961, “La noire de...” conta a história de Diouana,
o projeto inicialmente se passaria em Dakar, mas teve sua uma humilde jovem senegalesa que se muda de Dakar, no
produção barrada pelo governo de Senegal. Considerado um Senegal, para Antibes, na França, a fim de trabalhar como babá
dos precursores do cinema africano, África sobre o Sena conta de um casal francês. No entanto, ao chegar à casa dos patrões,
anedotas de imigrantes africanos em Paris. Diouana é obrigada a assumir todos os serviços da casa.

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DIREÇÃO E ROTEIRO:
Souleymane Cissé
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


PRODUÇÃO: Les Films Cissé
(Sisé Filimu)
ASSISTENTES DE DIREÇÃO:
Abdoulaye Séki, Karimu Daramé DIREÇÃO E ROTEIRO: Timité
FOTOGRAFIA: Abdoulaye Bassori
Sidibe, Cheick Hamala Keïta, PRODUTORA: Société
Souleymane Cissé, Mariselen Ivoirienne de Cinéma
Jara ASSISTENTES DE DIREÇÃO:
ARTE: Lamine Dolo, Yaya Konate Philippe Gam, Emmanuel
MONTAGEM: Andrée Davanture Kouadio
SOM: Mariselen Kone FOTOGRAFIA: Ivan Baguinoff
MIXAGEM: Robère Amar SOM: Pascal Kouassy
MÚSICA: Wandé Kuyaté MONTAGEM: Guy Ferrant
ELENCO: Balla Moussa Keïta, MIXAGEM: René Blanc
Dounamba Dany Coulibaly, ELENCO: Marie Vieyra,
Danielle Alloh, Tim Sory,
FILMES

Gogo Danba, Fanta Diabate,


Omou Diarra, Yaya Jakite, Emmanuel Diaman, Reneé
Adulayi Jara, Amadou Keyita, Ayépa, Joséphine Lopes, Marie-
Fanta Keyita, Yaya Konaté, Jeanne Sako, Bertin Kouacou,
Burama Samake, Mamoulou Ernest Iriébi, Jean Koffi Tapen,
Sanogo, Ismaila Sarr, Mamadu Bienvenu Neba Robert, Attawa
Tarawele Mathieu, François Yapobi.

A GAROTA A MULHER COM UMA FACA


Den Muso, Mali, 1975, 88’ La femme au couteau, Costa do Marfim, 1969, 80’

Sekou é demitido da fábrica onde trabalha porque se atreveu Um jovem intelectual marfinense retorna da Europa a seu país
a pedir um aumento. Desempregado, ele sai com Tenin, uma natal, Costa do Marfim. Além do confronto entre modernismo
jovem muda e filha de seu ex-chefe, fato que ele desconhece. e tradição, ele está sujeito à inibição sexual. Uma fantasia o
Em um passeio, Sekou se torna agressivo e estupra Tenin, que paralisa: uma mulher brandindo uma faca. Não encontrando
engravida. Ela então se vê brutalmente confrontada com a ajuda dos médicos ou dos curandeiros, ele compreenderá,
moral de sua família e a covardia de Sekou, que se recusa a com a ajuda de um amigo, que ficou traumatizado pela
reconhecer a criança. imagem repressiva de sua mãe durante a infância.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO, ROTEIRO E
PRODUÇÃO: Djibril Diop
Mambéty
PRODUTORA: Kankourama
FOTOGRAFIA: Baïdy Sow
Som: Grégoire Cabou
MÚSICA: Lalo Dramé, DIREÇÃO: Safi Faye
Christophe Colomb FOTOGRAFIA: Patrick Fabry
MONTAGEM: Andrée Blanchard SOM: Doudou Charles Diouf,
ELENCO: Lamine Bâ, All Demba Mayer Bracher
FILMES

Ciss, Christophe Colomb, Aziz MONTAGEM: Andrée


Diop Mambéty, Moustapha Davanture, Marie Christine
Touré, Diara Djimbo, Momar Rougerie, Dominique Saint
Thiam, Assy Dieng, Anta MIXAGEM: Robert Hamard
N’Doye, Djibril Diop Mambéty, ELENCO: Assane Faye,
Langouste. Maguette Gueye

BADOU BOY CARTA CAMPONESA


Badou Boy, Senegal, 1968, 56’ Lettre paysanne, França/Senegal, 1973, 98’

Com referências do cinema norte-americano e da Nouvelle Ngor e Coumba habitam uma pequena vila Sererê, no interior
Vague francesa, Djibril Diop Mambéty conta a história de do Senegal. Há algum tempo, eles querem se casar, mas neste
Badou, um jovem rebelde e delinquente que vive aprontando ano a colheita de amendoim está fraca devido às chuvas
e aplicando golpes em sua cidade, Dakar, para o desespero da irregulares. Buscando contornar a situação, Ngor parte para a
polícia, que nunca consegue capturá-lo. cidade em busca de trabalho.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO: Souleymane Cissé DIREÇÃO E ROTEIRO: Djibril
PRODUÇÃO: Le Consortium Diop Mambéty
Audiovisuel International (CAI) PRODUTORA: Kankourama
TÉCNICOS: Equipe FR3 Rennes FOTOGRAFIA: Georges Bracher
FILMES

MONTAGEM: Marie-Christine SOM: Dovidis


Blamont MONTAGEM: Jean Bernard
MIXAGEM: G. Lamps Bonis, Marino Rio
NARRAÇÃO: Douglas Cedras MÚSICA: Djimbo Kouyaté
ELENCO: Jacob Marie, Marius ELENCO: Inge Hirschnitz, Djibril
Camille Diop Mambéty

CANTORES TRADICIONAIS CONTRA’S CITY


DAS ILHAS SEICHELES Contra’s city, Senegal, 1968, 22’
Chanteurs traditionnels des îles Seychelles, Mali, 1978, 13’
Um filme no qual o personagem protagonista é a cidade de
Rennes, 1978. Durante o 5º Festival de Artes Tradicionais, Dakar, capital do Senegal. Partindo do centro, construído de
contadores de histórias e músicos das ilhas Seychelles acordo com a mais alta tradição francesa, vamos até a periferia
expressam sua preocupação diante do desinteresse dos jovens e lá encontramos uma profusão de profissões, personagens,
pela música tradicional. cores, comidas e costumes.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO E ROTEIRO:
Ousmane Sembène
PRODUTORA: Les Films
Domirev
PRODUÇÃO: Ibrahima Barro, DIREÇÃO: Safi Faye
Paulin Soumanou Vieyra FOTOGRAFIA: Patrick Fabry,
FOTOGRAFIA: Georges Caristan Jean Monod, Papa Moctar
MONTAGEM: Gilbert Kikoine Ndoye
SOM: El Hadj M’bow SOM: Magib Fofana
MÚSICA: Manu Dibango MONTAGEM: Andrée
FILMES

ELENCO: Thérèse Mbissine Davanture, Marie Christine


Diop, Robert Fontaine, Ibou Rougerie, Dominique Smadja,
Camara, Michel Renaudeau, Babacar Diagne
Andoujo Diahou, Ousmane MIXAGEM: Gérard Lamps
Camara, Joseph Diatta, Pierre ELENCO: Iboy N’Dong e sua
Blanchard grande família

EMITAI FAD’JAL
Emitai, Senegal, 1971, 96’ Fad’jal, França/Senegal, 1979, 113’

Inspirado em fatos reais de resistência, conta a história de uma Crônica de um povoado Sererê da região do cultivo do
pequena vila do grupo étnico Diola, no interior do Senegal. amendoim no Senegal. Os aldeões testemunham, através
Em 1942, após o início da II Guerra Mundial, os jovens são da fala dos anciãos, a história do povoado transmitida pela
recrutados pelo exército francês, que também tem a ordem de tradição oral, além das dificuldades que eles têm para explorar
confiscar arroz para as tropas. As mulheres da tribo, no entanto, sua terra e se alimentar.
escondem toda a colheita e se recusam a colaborar. Os anciões
consultam seus deuses, tentando entrar em um acordo.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO E FOTOGRAFIA:
Souleymane Cissé
PRODUÇÃO: Studio VGIK DIREÇÃO: Paulin Soumanou
SOM: Kharlamenko V. Vieyra
FILMES

MÚSICA: Miriam Makéba PRODUTORA: Ministério da


NARRAÇÃO: Sali Diallo Informação, Les Films P.S.V.
Poemas: Léopold Sédar Senghor, FOTOGRAFIA: André Jousse,
Aimé Césaire Christian Lacoste, Soumanou
ELENCO: Mamadou Somé Vieyra
Coulibaly MONTAGEM: André Gaudier

FONTES DE INSPIRAÇÃO LAMB


Sources d’inspiration, Mali, 1968, 8’ Contra’s city, Senegal, 1968, 22’

Um retrato do artista maliano Mamadou Somé Coulibaly, que Documentário sobre o “lamb”, esporte genuinamente
se inspira na história do povo africano para pintar. senegalês. Bastante semelhante à luta greco-romana, é uma
das mais antigas e principais manifestações culturais do país,
com regras bastante rígidas e uma legião de aficionados.

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DIREÇÃO: Ousmane Sembène
PRODUTORA: Filmi Domirev,
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Comptoir Français du Film
Production
PRODUÇÃO EXECUTIVA:
Robert de Nesle
PRODUÇÃO: Ibrahima Barro,
Jean Maumy, Paulin Soumanou
Vieyra
ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Ababacar Samb Makharam
FOTOGRAFIA: Paul Soulignac,
DIREÇÃO, ROTEIRO E
Robert Caristan
PRODUÇÃO: Oumarou Ganda
MONTAGEM: Gilbert Kikoine,
PRODUTORA: Argos Films
Max Saldinger
FOTOGRAFIA: Gérard de
SOM: Henry Moline
Battista
ELENCO: Mamadou
MONTAGEM: Danièle Tessier
“Makhouredia” Guéye, Isseu
FILMES

SOM: Moussa Hamidou


Niang, Younousse Ndiagye,
ELENCO: Issa Gombokoye,
Serigne Ndiaye, Serigne Sow,
Zalika Souley, Lam Ibrahima
Moustapha Touré, Christophe
Dia, Joseph Salamatou, Garba
Colomb, Farba Sarr, Mouss
Mamane, Amadou Seyni, Hadiza
Diouf, Mamadou Cisoko, Thérèse
Zaraki
Bas, Ousmane Sembène

LE WAZZOU POLYGAME MANDABI


Le Wazzou Polygame, Níger/França, 1970, 38’ Mandabi, Senegal, 1968, 86’

Um crente muçulmano, voltando de Meca, recebe o título Ibrahim, líder muçulmano de seu bairro, é casado com duas
de El Hadj. Ele não tem escrúpulos e cobiça a jovem Satou, esposas e tem vários filhos. Um dia, recebe uma ordem de
prometida a Garba. Só resta a Garba, furioso, deixar a aldeia e dinheiro de seu sobrinho que vive em Paris. A partir daí, passa
ir à cidade. No entanto, um drama mais grave surge: a segunda a lidar, de um lado, com a burocracia e a corrupção dos órgãos
esposa de Hadj, Gaika, não aceita a intrusa e, para impedir o senegaleses e, de outro, com a ganância de sua família e
casamento, decide matá-la na véspera do evento. amigos.

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DIREÇÃO E ROTEIRO: Jean-
Pierre Dikongué Pipa
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


PRODUTORA: Cameroun
Spectacles
ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Manfred Ngom
DIREÇÃO: Paulin Soumanou FOTOGRAFIA: J-P. Delazay, J-L.
Vieyra Léon, M. Tagny
ROTEIRO: Paulin Soumanou SOM: Ambroise Ayongo, Joseph
Vieyra e Robert Caristan Betare, Henry Humbert
PRODUTORA: Le Groupe ARTE: Jean-Pierre Dikongué
Africain de Cinéma Pipa, Anne Bebe
PRODUÇÃO: Mamadou Sarr MÚSICA: Georges Anderson,
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: A.G.A’STYL
Jacques Melo Kane MONTAGEM: Andrée
FOTOGRAFIA: Robert Caristan Davanture, Dominique Saint,
SOM: Danièle Tessier Jules Takam
MÚSICA: Ocora MIXAGEM: Robert Hamard
FILMES

NARRAÇÃO: Med Hondo ELENCO: David Endéné, Arlette


ELENCO: Ousmane Gadiaga, Din Bell, Jeanne Mvondo,
Alice Bengeloun, Etienne Philippe Abia, Jeacky Kingue,
William, François Achouet, Gisèle Dikongué-Pipa, Esther
Nicolas N’Diaye, Awa Gadiaga e Mwembe, Catherine Biboum,
a população de Nimzath e Cayar Justine Sengue, Samuel Baongla

MÔL MUNA MOTO


Môl, Senegal, 1966, 27’ Muna Moto, Camarões, 1975, 85’

Um jovem pescador sonha em motorizar seu barco para tornar Ngando e Ndomé estão apaixonados e querem se casar, mas
o trabalho mais fácil. Graças a sua coragem e teimosa, tal a família de Ndomé só aceita a união mediante o pagamento
sonho se torna realidade, mas traz também um conflito entre de um dote, como manda a tradição. Sem dinheiro, o jovem
os valores tradicionais e as noções modernas de progresso. Ngando recorre ao tio para ajudá-lo, mas é traído pelo mesmo,
que está disposto a tomar Ndomé como sua quinta esposa na
esperança de ter um filho.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO E ROTEIRO: Paulin
Soumanou Vieyra
PRODUTORA: Les Films P.S.V.
FILMES

FOTOGRAFIA: Philippe Cassard


SOM: Jules Sagna
MONTAGEM: Andrée
Davanture, Marie Christine DIREÇÃO E ROTEIRO:
Rougerie Moustapha Alassane
MIXAGEM: Alain Garnier PRODUÇÃO: Myriam Smadja

NOS BASTIDORES O ANEL DO REI KODA


L’envers du décor, Senegal, 1981, 25’ La bague du Roi Koda, Níger, 1962, 24’

Diário de filmagem do filme Ceddo, de Ousmane Sembène, Inspirado em uma antiga lenda da etnia Zarma, no Níger. No
mostrando os desafios em se filmar no continente africano, o reino do Rei Koda, selvagem e cruel déspota, vive um bravo
processo criativo de Sembène e sua relação de amizade com pescador chamado “Lei de Deus”. Para testar sua virtude, o rei
Paulin Soumanou Vieyra. Koda lhe dá seu anel, com a missão de que seja devolvido após
três anos. Se “Lei de Deus” não for capaz de restituir o anel, ele
terá a cabeça cortada.

100 101
DIREÇÃO E ROTEIRO: Med Hondo
PRODUTORA: Films Soleil O, Shango
Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


Films
FOTOGRAFIA: François Catonné,
Jean Claude Rahaga, Denis Bertrand,
François Pailleux
Montagem: Clément Menuet,
Michèle Masnier
SOM: Jean Paul Loublier, Yves Allard,
Alain Contreau
MÚSICA: Georges Anderson
ANIMAÇÃO: Jean François Laguionie
ELENCO: Robert Liensol, Théo
Légitimus, Gabriel Glissand, Greg
Germain, Mabousso Lô, Alfred
Panou, Les Black Echos, Ambroise
DIREÇÃO E ROTEIRO: M’bia, Akonio Dolo, Jean Baptiste
Ousmane Sembène Tiemele, Georges Hilarion, Djibrill,
Jean Edmond, Armand Abpnanalp,
PRODUTORA: Filmi Domirev,
Marc Dudicourt, Armand Meffre,
Les Actualités Françaises Jean Pierre Lituac, Gerard hernandez,
FILMES

ASSISTENTE DE DIREÇÃO: Jean Guy Lecat, Georges “Kalymnos”,


Ibrahima Barro Bernard Fresson, Pierre Santini, Pierre
Tabard, Gilles Segal, Juran Mladen,
FOTOGRAFIA: Christian Lacoste
Roland Guillemard, Odette Piquet,
MONTAGEM: André Gaudier Ginette Franck, Hortense Guillemard,
ELENCO: Ly Abdoulaye, Geraldine Baaron, Sarah Hardenberg,
Albourah Josette Barnet, Yane Barry, Michele
Perelot.

O CARROCEIRO Ó, SOL
Borom Sarret, Senegal, 1963, 21’ Soleil Ô, França/Mauritânia, 1969, 98’

Um humilde carroceiro realiza diversos serviços ao longo de Realizado durante cinco anos, em parceria com a companhia
um dia. Seu último cliente, um senegalês abastado, pede para teatral de Med Hondo, e possuindo um pequeno orçamento,
ser levado a um bairro de classe alta, onde esse tipo de veículo Ó, Sol narra uma série de situações pelas quais os africanos
é proibido. Mesmo sabendo disso, o carroceiro decide arriscar passam em um mundo dominado pelo ocidente.
pensando numa possível boa remuneração.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


DIREÇÃO E ROTEIRO: Djibril
Diop Mambéty
PRODUTORA: Cinegrit,
Kankourama
ASSISTENTES DE DIREÇÃO:
Momar Thiam, Ben Diogaye
Beye
FOTOGRAFIA: Pap Samba Sow,
George Bracher
SOM: El Hadj M’bow
DIREÇÃO: Djibril Diop Mambéty ARTE: Aziz Diop Mambéty
PRODUTORA: Diproci, Thelma ELENCO: Magaye Niang,
Film AG, Maag Daan Marème Niang, Christophe
PRODUÇÃO: Gaï Ramaka Colomb, Moustapha Toure,
FOTOGRAFIA: Michel Duverger, Aminata Fall, Ousseynou Diop,
FILMES

Issaka Thombiano Fernand Dalfin, Al Demba,


MONTAGEM: Chantale Rogeon Dieynaba Dieng, Assane Faye,
“De Santaal”, Martine Olive Brun Robbie Lawson, Magoné
SOM: Issa Traoré N’Diaye, Aliou N’Diaye, Apsa
MIXAGEM: Elvire Lerner Niang, Omar Seck, Colette
TRADUÇÃO: Valérie Kaboré Simon, Langouste

PARLONS GRAND-MÈRE TOUKI BOUKI – A VIAGEM


Parlons grand-mère, Senegal, 1989, 34’
DA HIENA
Touki Bouki, Senegal, 1973, 95’
Diário de filmagem do filme Yaaba, do cineasta burquinense
Idrissa Ouédraogo. Um poderoso registro acerca das
dificuldades e dos prazeres de se fazer cinema em Burkina Um dos principais expoentes da vanguarda cinematográfica
Faso. africana conta a história de Anta e Mory, dois jovens
senegaleses que sonham em sair do Senegal para morar em
Paris. Para tal, precisam arranjar o dinheiro das passagens.

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Clássicos Africanos

A primeira geração de cineastas da África do Oeste


FICHA TÉCNICA AGRADECIMENTOS
PRODUÇÃO ASSESSORIA DE IMPRENSA Alain Sembene
Insenstaez Audiovisual Eduardo Santos Caio Tavares
Luzes da Cidade - Grupo de Cinéfilos Carmen Accaputo
e Produtores Culturais REDES SOCIAIS Daniel Martins
Fausto Júnior Evelyn Sacramento
CURADORIA Fabio Gomes
Tiago Castro Gomes REGISTRO FOTOGRÁFICO E Gustavo Andreotta
VIDEOGRÁFICO Janaína Damaceno
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Matheus Magalhães Janaína Oliveira
Aleques Eiterer Lígia Gabarra
Marília Lima PROJEÇÃO Marina Berthet
Pedro Nogueira Luiz Guilherme Richard Nivia Machado
Stéphane Vieyra
PRODUÇÃO DE CÓPIAS Teemour D. Mambety
Pedro Nogueira Thiago Cabrera
Thomas Sparfel
PRODUÇÃO Vanda Eiterer
Fausto Júnior

EDITORAÇÃO DO CATÁLOGO
Tiago Castro Gomes

REVISÃO DOS TEXTOS


Fernanda Cupolillo

TRADUÇÃO E LEGENDAGEM
Felipe Gonçalves

PROJETO GRÁFICO, WEB


DESIGNER E VINHETA
Inhamis Studio

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Clássicos Africanos

CAIXA Cultural RJ
Av. Almirante Barroso, 25, Centro
(21) 3980-3815

www.caixacultural.gov.br
facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro

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Cuide da natureza. Recicle!

Clássicos Africanos
Distribuição gratuita. Venda proibida.
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento

CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA
L - 16 Linguagem imprópria
Conteúdo sexual
Conteúdo varia de Livre a 16 anos.
www.mj.gov.br/classificacao
www.classicosafricanos.com.br
Realização Apoio Pat r ocí ni o
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