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A fotografia contaminada

TADEU (HIARELLI

o Brasil, a fotografia - cuja história mundo : Dois dos primeiros artistas deste
confunde-se com a própria inven- tipo foram Militão Azevedo e Valério Vieira.
ção do processo fotográfico - pouco O primeiro, em 1887, publicou "Álbum
a pouco vem sendo estudada por especia- comparativo da cidade de São Paulo", onde
:llstas que tentam analisá-la não apenas por o leitor podia comparar alguns locais de São
sua importância para a história, a antropo- Paulo, fotografados em 1862 e 1887 pelo ar-
lo~a etc., mas também, como forma artísti- tista. A princípio "Álbum" é uma obra que
ca autônoma. O propósito deste texto é dar documenta a rápida transformação da anti-
aspectos de uma outra fotografia realizada ga aldeia em cidade. Por outro lado, porém -
no país. Uma fotografia contaminada pelo e ao mesmo tempo-, o que não salta à vista,
olhar, pelo corpo, pela existência de seus mas está sempre presente nas fotos, reuni-
autores e concebida como ponto de interse- das após 25 anos, é a presença de Azevedo
ção entre as mais diversas modalidades ar- como testemunha e agente daquela trans-
tísticas, corno o teatro, a literatura, a poesia formação. Ao narrar as rápidas transforma-
e a própria fotografia tradicional. Assim, os ções d~ São Paulo, o artista narra-se a si
autores aqui citados não .seriam vistos pro- mesmo como indivíduo e cidadão confiante
priamente como fotógrafos, mas corno artis- no progresso infinito da cidade que aquelas
tas que manipulam o processo e o registro imagens parecem revelar. Importantes como
fotográficos, contaminando-os com senti- documentos, as fotos transcendem esse ca-
dos e práticas oriundas de suas vivências e ráter quando são percebidas corno registros
do uso de outros meios expressivos. da atitude de Azevedo - um ex-ator -, na
A fotografia desde seu início, no Brasil, relação com a cidade em que vivia. Ali o ob-
por um lado serviu como registro da paisa- jeto fotografado confunde-se com o sujeito-
gem física e humana do país e, por outro, im- fotógrafo: a cidade e o artista que a registra
pulsionou certos artistas a realizar uma são um mesmo personagem em transforma-
imersão mais vertical na busca do autoco- ção no tempo e no espaço.
nhecirnento corno indivíduos ou seres s.oci- Valério Vieira, por sua vez, deixou para
ais. Para eles, a fotografia não foi um meio nós - voyeurs do futuro - uma foto onde sua
para conhecer o mundo, mas um instrumen- imagem desdobra-se em múltiplas personas:
to para conhecer-se e conhecer o outro no Os 30 Valérios. Essa mescla de auto-retrato e
tableau-uiuant faz com que se detecte aqui
no país, na passagem do século, um artista
que manipula o meio fotográfico não somen-
te para registrar seu entorno, mas para
buscar a si mesmo por meio do uso eufórico
e humorístico do processo fotográfico.
Vieira, em sua ânsia sensual, narcisista, des-
dobrada em trinta poses, seria o primeiro a timentos da sociedade contempor&ne
realizar - por meio de sua performance ela- Essa impossibilidade de identifi
borada em laboratório - a busca da identi-
dade (ou a denúncia de sua fragÍnentação). que Rosângela Rênnó realizou em S~e Pa~
Militão Azevedo e Valério Vieira foram os pi- em r99r. Em "Duas visões de realismofau
oneiros no Brasil no uso da fotografia como tástico", nenhum processo de identifiC'a!
teatro de suas individualidades, atitude entre a artista e a massa de desvalidos
que, parece, somente voltaria a se dar nesse
século h á bem pouco tempo. Um trabalho ras assustadas e aterradoras - presas naJii;:
que une essas duas vertentes é a série "Bra- eza dos retratos agigantados de identifü.\:a-
sil nativo/Brasil alienígena", de Anna Bella
Geiger, realizada nos anos 70. Nele, a artista lação onde a artista e o público especia!iz_~;
parece processar uma busca de identificação do dos museus parecem encastelados. CJ.
nostálgica com o elemento nativo brasilei- compromisso de Rennó ao tratar das di~tân­
ro. Sem dúvida aqui há um erro, pois, na re- cias entre as classes sociais no Brasil adqui-
alidade, essa busca aparente é apenas uma re uma força maior quando realiza em ,r9_92
operação crítica carregada de ironia para (em uma ação que poderia ser qualificad
que Geiger possa discorrer sobre si mesma como guerrilheira) a instalação "Atentado ao
(mulher, artista, intelectual}, sobre sua clas- poder", no Rio de Janeiro. Rennó atua di~e;
se social (e tudo o que isso significa) e sobre tamente sobre o fato mais comentado na-
a real impossibilidade de identificação com quele momento - a Rio 92 (The Fitst Ear~,
o outro (no caso da população brasileira, Summit)- e apropria-se de imagens de cadá-
sempre vista pelas elites como guardiã das veres de personagens do submundo carioc
virtudes individuais e sociais, e tradicional- estampadas nas primeiras páginas de jm;•
mente convertida em símbolo por meio da nais sensacionalistas. Cria 24 ataúdes, cor
figura do índio). Se em "Álbum", de Azeve- respondentes tanto aos dias que durou a Rir
do, a fusão do eu e do outro dá-se plenamen- 92 quanto aos passos da Paixão de Cristo. A
te por meio das imagens da polis em trans- frieza das caixas com os cadáveres ilumina-
formação, no caso da série de Geiger este dos desmascara o caráter hipócrita da soli
suposto desejo é desmascarado em sua im- dariedade pregada pelo evento (os indivídu-
possibilidade total. Apesar de, como Vieira, os fotografados foram assassinados no Rio de
Geiger utilizar sua própria imagem (o artifí- Janeiro pela polícia ou outros marginais du-
cio do tableau-uiuant), e aquele da repetição rante a Rio 92). Ante a impossibilidade de
da posse, a artista anula qualquer possibili- identificar-se com os despossuídos do país
dade de confluência entre os dois persona- - tantas são as contradições da sociedade
.i;i!eira - , Rennó transformou sua obra tória dos membros de sua família, sobretu-
palco para a reflexão raivosa sobre as do suas avós, mãe e irmãs . É graças à apro-
s·as dessa impossibilidade, priação e rearticulação das imagens dessas
·om um sentido menos explícito , os mulheres, processadas em fotocópias e
-retratos d.e Rubens Mano denunciam transformadas, ora em gravuras, ora em ele-
ém de maneira eficaz a impbssibilida- mentos constitutivos de objetos que recor-
o artista se reconhecer a si mesmo e ao dam antigos altares votivos populares patuás
tro na sociedade contemporânea. Esses (espécie de escapulários sincréticos afro-
to-retratos não o identificam e mais pa- católicos), que Paulino vem tentando situ-
em a imagem de um afogado, ou o refle- ar-se como mulher, mulher negra e artista,
~ ~. . .
· '.o de um Narciso indistinto. Já não se trata no momento brasileiro atual.
~o símbolo da absoluta auto-referência mas O outro, no caso de Rosana Paulino, pa-
~e um signo de total despersonalização do rece ser parte de seu próprio eu.
dridivíduo
,. na sociedade atual, incapaz de Se até agora comentaram-se os artistas
, econhecer nem a si mesmo. que grosso modo, seguiram os passos de Mili-
'.:.f Se os trabalhos de Geiger, Rennó e Mano tão Azevedo, no sentido de contaminar suas
'.,denunciam a impossibilidade de que o ar- fotos com o desejo de buscar uma identifica-
;tista contemporâneo possa criar uma fusão ção maior com o outro - ou de denunciar
feliz entre o eu e o outro (em seu sentido muitas vezes a impossibilidade dessa busca
~mais amplo), outros artistas buscam, por na atualidade - , seria importante nesse mo-
· meio de um recorte mais estrito, encontrar mento recordar os "herdeiros" de Valério Vi-
o elo destruído entre o indivíduo e o social. eira, ou seja, os artistas que, como ele, pro-
. Valeska Soares e Rosana Paulino, por duziram ações onde a relação entre o artista
. exemplo, tentam delimitar territórios mais e o instrumental que opera ganha formas de
restritos (embora não menos complexos) extrema sensualidade de fundo narcísico.
para empreender suas buscas. A primeira Levada pela intenção de transcender
prefere submergir no clima estereotipado do suas ações cotidianas, a poeta multimídia
"eterno feminino" (e suas emanações ao Lenora de Barros há anos realiza trabalhos
mesmo tempo sensuais e mórbidas), contra- bastante singulares: seus poemas-perfor-
pondo-o criticam.ente a outros estereótipos mances. Em r980, por exemplo, Barros deci-
da sociedade ocidental. Nos ambientes, ob- diu levar até as últimas conseqüências a
jetos e livros criados pela artista, fotos de intimidade que mantinha com sua ferra-
detalhes de corpos femininos e masculinos menta de trabalho: a máquina de escrever.
convivem com imagens e objetos distintos, Sua língua (órgão fundamental da fala) pro-
configurando um compromisso crítico, uma vava a máquina (instrumento fundamental
reflexão extremamente singular e atual so- para o registro da escritura, sucedâneo da
bre o universo da mulher. fala), até que esta se excita num paroxismo
Por outro lado, Rosana Paulino, em sua tenso e sensual. Poema e metáfora da poe-
trajetória apenas iniciada, busca poetica- sia, a seqüência fotográfica abre com a boca
mente dar conta da história da população de excitada da poeta para finalizar com o me-
origem africana no Brasil, por meio da his- canismo excitado da máquina. Da confluên-
eia dessas duas excitações surge o poema de nipulando sua máquina como :
.Lenora de Barros, surge toda a poesia. - parece resgatar para a fotografj.
Por sua vez, Hudnilson Jr. - cuja obra é ter mítico de arma capaz de arr·
pautada pela constituição de um repertório der a alma do fotografado: nes
visual e comportamental fortemente marca- alma agredida pelas ações de .,
do por uma sensibilidade homoerótica - re- e auto-sacrifício.
alizou em 1981 a ação "Xerox Action/Exercí- Essa documentação, artic
cio de me ver", onde repete no plano da rea- ·cera e parafina e colocada.em ca·
lidade o mito narcisista do auto-erotismo, tal, tende - como o trabalho dos
um tema recorrente em sua produção. Fas- tistas aqui apresentados - a retir'
cinado pela própria imagem, Hudnilson Jr. gem fotográfica o caráter banal que
envolve-se sensualmente com a máquina sumindo no cotidiano das pessoas
fotocopiadora e, como resultado dessa ação mas décadas.
(documentada por Afonso Roperto), encon- Os autores dessas fotografias co
tra-se a si mesmo na superfície replena de
tramas de seu corpo, reproduzida pela foto- seus trabalhos esgarçam ao máximo
grafia a seco. tes entre arte e vida -, fazem parte
Se do encontro de Hudnilson com a má- grupo maior de fotógrafos, poetas, pi
quina emanam um prazer e uma sensuali- músicos e gravadores dispersos no te
dade muito específica, a documentação do no espaço brasileiros, artistas compr
próprio corpo que Márcia Xavier realiza, por dos com a produção de uma arte alheiá
sua vez, com sua Polaroid, exala uma sensu- purismos dos cânones mas sempre p~e
alidade dramática e dolorosa. A artista, ma- pada com seu tempo e lugar.

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