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DOI: 10.22278/2318-2660.2016.v40.n2.

a2164

ARTIGO ORIGINAL DE TEMA LIVRE

DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS PARA TRANSPLANTES: IMPASSES SUBJETIVOS DIANTE


DA DECISÃO FAMILIARa

Maria Constança Velloso Cajadob


Anamélia Lins e Silva Francoc

Resumo
Apesar dos investimentos no desenvolvimento dos transplantes no estado da Bahia,
ainda prevalece um índice de 70% de negativa familiar para doação de órgãos e tecidos para
transplantes. Essa realidade motiva inúmeras considerações. O objetivo deste artigo foi revelar
os impasses subjetivos intervenientes em familiares e profissionais que participaram do processo
de doação de órgãos e tecidos para transplantes. Trata-se de um estudo qualitativo, no qual
foram construídos dez casos por meio de entrevistas e diários de campo referentes à observação
de familiares e profissionais que participaram do processo de decisão sobre a doação. A análise
e discussão demonstrou aspectos relevantes que interferem na escolha familiar sobre a doação:
a falta de informação sobre o tema, crenças culturais e religiosas, a maneira como é conduzida a
entrevista familiar para doação, dificuldade para compreender a morte encefálica, dentre
outros. As considerações finais indicaram que o tempo para a família tomar a decisão é um fator
significativo que pode contribuir para o alto índice de negativa familiar para doação. A família
precisa ser acolhida desde a abertura do protocolo de morte encefálica e a entrevista familiar
para doação deve possibilitar uma dimensão terapêutica que vise a amenizar a dor da família.
Palavras-chave: Transplantes. Doação de órgãos e tecidos. Relações profissional-família.
Psicanálise.

a
Este artigo é resultado da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação da Universidade
Católica do Salvador. Orientadora: Anamélia Lins Silva Franco. Defendida e aprovada em 29/07/2011. Local para
consulta: http://noosfero.ucsal.br/.
b
Psicóloga da Comissão Intra-hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes e da Organização de
Procura de Órgãos do Hospital Geral Roberto Santos. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Doutoranda
em Medicina e Saúde Humana na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública - EBMSP. Professora da Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública. Salvador, Bahia, Brasil.
c
Psicóloga. Doutora em Saúde Pública. Professora do Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton
Santos da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil.
Endereço para correspondência: Rua Alagoinhas, número 489, apartamento 304-B. Rio Vermelho. Salvador, Bahia,
Brasil. CEP: 41940-620. Email: constanca.psi@bahiana.edu.br / consvelloso@hotmail.com

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Revista Baiana ORGAN AND TISSUE DONATION FOR TRANSPLANTATION: SUBJECTIVE IMPASSES
de Saúde Pública
BEFORE THE FAMILY DECISION

Abstract
Despite investments in the development of transplants in the State of Bahia, a
70% family refusal index for organ and tissue donation for transplants still prevails. This reality
motivates countless considerations. The objective of this article is to reveal the subjective impasses
involved in family members and professionals who participated in the process of organ and tissue
donation for transplants. This is a qualitative study, in which ten cases were constructed through
interviews and field journals referring to the observation of family members and professionals
who participated in the donation decision process. The analysis and discussion showed relevant
aspects that interfere in the family choice on the donation: lack of information about the theme,
cultural and religious beliefs, the way in which the family interview for donation is conducted,
difficulty in understanding brain death, among others. The final considerations indicated that
the time for the family to make the decision is a significant factor that may contribute to the
high rate of family negative for donation. The family needs to be welcomed since the opening
of the brain death protocol and the family interview for donation should provide a therapeutic
dimension aimed at reducing the pain of the family.
Keywords: Transplants. Donation of organs and tissues. Professional-family relationships.
Psychoanalysis.

DONACIÓN DE ORGÁNOS Y TEJIDOS PARA TRASPLANTES: IMPASSES SUBJETIVOS ANTE


LA DECISIÓN FAMILIAR

Resumen
A pesar de las inversiones en el desarrollo de los trasplantes en el Estado de Bahía,
aún prevalece un índice de 70% de negativa familiar para donación de órganos y tejidos para
trasplantes. Esta realidad motiva numerosas consideraciones. El objetivo de este artículo es
revelar los impasses subjetivos intervinientes en familiares y profesionales que participaron en el
proceso de donación de órganos y tejidos para trasplantes. Se trata de un estudio cualitativo,
en el cual se construyeron diez casos por medio de entrevistas y diarios de campo referentes a
la observación de familiares y profesionales que participaron en el proceso de decisión sobre la
donación. El análisis y discusión demostró aspectos relevantes que interfieren en la elección

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familiar sobre la donación: la falta de información sobre el tema, creencias culturales y religiosas,
la manera como se conduce la entrevista familiar para donación, dificultad para comprender la
muerte encefálica, entre otros. Las consideraciones finales indicaron que el tiempo para
la familia tomar la decisión es un factor significativo que puede contribuir al alto índice de
negativa familiar para donación. La familia necesita ser acogida desde la apertura del protocolo
de muerte encefálica y la entrevista familiar para donación debe posibilitar una dimensión
terapéutica que tenga como objetivo amenizar el dolor de la familia.
Palabras clave: Trasplantes. Donación de órganos e tejidos. Relaciones profesional-familia.
Psicoanálisis.

INTRODUÇÃO
No cenário nacional relacionado à doação de órgãos e tecidos para transplantes,
o estado da Bahia apresenta uma alta taxa de negativa familiar para doação, em torno de 70%.
Apesar dos investimentos em capacitação técnica e de recursos tecnológicos que favoreçam a
efetivação dos transplantes, os resultados ainda não são satisfatórios. A população, até então,
demonstra pouca informação sobre o tema e a grande maioria das famílias entrevistadas não
autorizam a doação de órgãos e tecidos de seus familiares, dentre outras situações que agravam
esse quadro1.
Por meio da Lei 9.434, sancionada pelo governo brasileiro em 1977, a remoção
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, para fins de transplantes, deixou de ser um
procedimento experimental para tornar-se o tratamento de escolha para uma variedade de
doenças, representando um dos maiores triunfos da medicina no século XX2.
A Lei de Transplantes no Brasil é baseada no Modelo Espanhol3. Foram criadas
Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO’s) ou Centrais de
Transplantes Estaduais. No âmbito hospitalar, dentro de critérios estabelecidos pela legislação
foi efetivada a criação de Comissões Intra-hospitalares para a Doação de Órgãos e Tecidos
para Transplantes (CIHDOTT) em todos os hospitais públicos, privados e filantrópicos com
mais de oitenta leitos e unidades de urgência e emergência. Em 2009, foi publicada, pelo
Ministério da Saúde, a Portaria 2.600 que, no capítulo III, artigo 12, dá conformidade à criação
das Organizações de Procura de Órgãos e Tecidos (OPO), que deverão reportar-se à respectiva
CNCDO’s, atuando em parceria com as CIHDOTT’s dos hospitais localizados em sua área
de atuação. No estado da Bahia4, em 1992, foi criada a Central de Notificação, Captação e
Distribuição de Órgãos (CNCDO) que, juntamente, com a Coordenação do Sistema Estadual

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Revista Baiana de Transplantes (Coset) foram formalizadas no organograma da Secretaria de Saúde do Estado
de Saúde Pública
da Bahia (Sesab) no ano de 2000.
A necessidade de aumentar o número de órgãos para transplantes ainda é um
desafio a ser vencido pela sociedade brasileira. A realidade em torno da temática doação e
transplantes de órgãos e tecidos é complexa5. Dessa maneira, torna-se relevante conhecer
elementos de resistência e aceitação6 que envolvem o processo de doação de órgãos e tecidos
para transplantes. No Brasil, a doação é consentidad7 e apenas são transplantados órgãos de
indivíduos cuja família espontaneamente os disponibiliza. Existem duas possibilidades para a
doação de órgãos e tecidos: transplantes intervivos e de doadores falecidos. Os transplantes
intervivos ocorrem entre familiares ou por meio de autorização judicial e desses, o mais
comum é o transplante renal. Dos transplantes de tecidos, pode doar em vida a medula óssea.
Quanto às doações de órgãos e tecidos de um doador falecido, estas ocorrem somente após
a autorização familiar depois de concluído diagnóstico de morte encefálica (ME)8. Os mais
recorrentes na Bahia são: rins, fígado, coração, pâncreas e córneas. A Bahia, nesse momento,
não está realizando transplante de coração, entretanto disponibiliza na fila única9 para outros
Estados. Este artigo trata da doação de órgãos e tecidos de potenciais doadores falecidos.
Os órgãos e tecidos de um único doador falecido, a princípio, podem salvar
muitas vidas e, por isso, trata-se de um processo que envolve inúmeras questões médicas,
éticas, sociais, econômicas e subjetivas. No Brasil, a espera na fila dos transplantes pode ser
longa e durar até muitos anos para quem aguarda. O aumento do número de doação de órgãos
tem sido um desafio para nossa sociedade10.
De acordo com o levantamento da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos
(ABTO) , mesmo sendo uma ação que vem registrando no país um crescimento nas doações
11

e transplantes de órgãos, a quantidade de órgãos de doador falecido tem sido insuficiente para
atender à demanda de transplantes.
A decisão central sobre a doação é de responsabilidade da família, que tanto
pode representar o desejo do paciente em vida ou a sua livre escolha. Em alguns casos quando
a família tem a informação sobre o desejo do paciente, a decisão familiar sobre a doação e
consequentemente a assinatura do termo de consentimento do procedimento cirúrgico acontece
baseada na certeza e no respeito à vontade do paciente em vida. Entretanto, tal decisão, muitas
vezes, é permeada por tensões familiares em função da falta de informação sobre o desejo do

d
O termo 4º da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, determina que “a retirada de tecidos, órgãos e partes do
corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge
ou parente, 23/02/2015 maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive,
firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.”

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paciente. A referida situação pode contribuir para o surgimento de um impasse subjetivo12.
Para se chegar a uma decisão mais elaborada sobre uma escolha mais sensata para a família, é
fundamental percorrer um delicado caminho que envolve o campo da subjetividade. Compete
aos profissionais que conduzem a entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos para
transplantes13, acolher a família e sustentar a escuta em um campo permeado de sentimento,
emoção e afeto, notadamente: dor, medo, desespero, ressentimento, raiva e angústia, dentre
outros. Isso transforma a decisão familiar sobre a doação um momento delicado e complexo.
A literatura refere que a entrevista familiar para doação é o coração do processo em função da
sensibilidade e habilidade técnica que o referido momento exige.
A recusa familiar vem sendo apontada como uma das maiores causas da
diminuição de disponibilização de órgãos de doadores falecidos. Os motivos mais frequentes
são: dificuldade de compreensão e aceitação sobre a morte encefálica; desconhecimento sobre
o desejo do paciente em vida; inadequação da entrevista familiar para doação; problemas com
a integridade ou imagem do corpo após a cirurgia de doação de órgãos e tecidos; questões
religiosas; e recusa em vida por parte do falecido14.
Dentre os diversos fatores acima mencionados, para este artigo, destacou-se a
relevância da entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos para transplantes, considerada
como um momento significativo do processo15. Trata-se de um estágio em que à família ocupa
a centralidade16 do processo de doação, momento muito delicado por encontrar-se fragilizada
em função de ser comunicada oficialmente sobre o diagnóstico conclusivo de morte encefálica
e ter em mãos a decisão se haverá ou não a doação.
Ao serem comunicados da morte encefálica, os familiares são impulsionados
a tomarem consciência da morte. No momento a seguir um profissional capacitado conduz a
entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos para transplantes, em que devem participar
os membros da família. Durante a realização da entrevista é comunicada a possibilidade da
doação. De acordo com a literatura, ela deve ocorrer em um espaço reservado. Em muitos
casos, existem impedimentos para encontrar o referido espaço. Os familiares demonstram
dificuldades para tomar a decisão e um dos fatores a considerar é a proximidade de tempo
entre a confirmação da morte encefálica e a entrevista familiar para doação de órgãos e
tecidos.
Desde os primórdios da psicanálise, existe a consideração de que o homem
tem dificuldade de simbolizar a própria morte17 e se sente imensamente afetado diante do
falecimento de um ente querido. Ainda existem relatos de que a morte de um semelhante
convoca o homem a pensar na sua própria finitude18. Sabe-se o quanto é difícil para o homem

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Revista Baiana ocidental aceitar sua condição de mortal. A compreensão sobre a morte encefálica torna-se
de Saúde Pública
mais complexa, sendo considerado um dos fatores mais significativos e de difícil apreensão
para a família. Dessa maneira, a falta de informação sobre o desejo do paciente em vida,
os componentes religiosos e subjetivos, dentre outros, colocam a família diante de impasses
subjetivos, momento considerado muito delicado e difícil para a tomada de decisão sobre a
doação.
A psicanálise lacaniana19 compreende que o homem atravessa situações de
impasses no decorrer da vida, desse modo, encontra-se em alguns momentos diante de três
moções temporais: instante do olhar ou instante de ver, tempo de compreender, e momento de
concluir. No instante de ver, o sujeito depara-se com algo, mas é como se ele não apreendesse
o que aquilo quer dizer. O tempo de compreender é um tempo que se abre à meditação, ao
raciocínio do que está em questão. No terceiro momento, o de concluir, o sujeito é convocado
para uma definição, uma decisão.
Três momentos cruciais do processo de doação podem ser pensados a partir
das três moções temporais referidas: a gravidade do quadro clínico que exige a abertura do
protocolo para investigar a suspeita da ME sugerem articulação com o instante de ver; o tempo
de investigação e realização dos exames necessários para concluir o diagnóstico de ME podem
estar articulados com o tempo de compreender, e, a comunicação do diagnóstico de ME e a
decisão diante da possibilidade da doação sugerem relação com o momento de concluir20.
Como o tempo cronológico da medicina difere radicalmente do tempo do inconsciente
compreendido pela psicanálise como tempo lógico, pode-se pensar que o sujeito na urgência
subjetiva21 é movido por algo para além de uma urgência ligada ao tempo cronológico, mas sim
por um movimento de verificação instituído por um processo lógico inconsciente. Considera-
-se também, que as três moções temporais possam não coincidir com tempo cronológico da
doação. Entretanto, o papel do profissional que conduz o processo junto à família, deve ser o
de facilitador desse percurso.
Na entrevista familiar para doação, a família é convidada a apresentar sua
decisão diante do tempo cronológico exigido pelo processo de doação, necessitando de um
período para compreender o diagnóstico de morte encefálica. Nesse caso, o tempo ao qual a
família necessita não é um tempo cronológico, mas de um tempo lógico: trata-se da lógica do
inconsciente22, relacionado aos mecanismos de defesa, em que a denegação opera e dificulta a
compreensão sobre um fato ocorrido. Muitas vezes, tal compreensão acontece somente em um
momento posterior. Isso se deve ao fato em que os familiares diante da possibilidade da doação
podem ainda não ter assimilado a morte encefálica como sendo a morte real.

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Dentre as diversas demandas familiares que surgem nesse momento de dor e perda,
para o presente artigo destacam-se os impasses subjetivos, que se incluem no atendimento às
necessidades familiares imediatas e às questões relacionadas à subjetividade diante do sofrimento
e da morte de um ente querido. O profissional que conduz a entrevista familiar para doação de
órgãos e tecidos precisa ser capaz de identificar, acolher e manejar tais impasses.
Como afirmado anteriormente, o Brasil estruturou sua Política de doação
de órgãos e tecidos tendo como principal referência o Modelo Espanhol23. Este considera
relevante o momento da entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos, sugerindo, além
do acolhimento de sentimentos e emoções, a intervenção por meio de uma base teórica a fim
de atender às necessidades básicas e subjetivas dos familiares. Segundo o referido modelo,
o profissional responsável pela entrevista deve estar capacitado para acompanhar a família,
inclusive atendendo à demanda durante todo o tempo necessário, independente da escolha
sobre a doação. Em casos de negativa para doação, devem identificar a causa e respeitar a
escolha, prosseguindo com eles até o final do processo. Partindo da lógica do estabelecido
no Modelo Espanhol, é fundamental que a equipe esteja qualificada para acolher e escutar a
família, inclusive respeitar o momento do sofrimento familiar, ajudar na elaboração do luto e na
clareza necessária para apresentar sua escolha diante da possibilidade de doação.
O objetivo deste artigo é revelar os impasses subjetivos intervenientes em familiares
e profissionais que participaram do processo de doação de órgãos e tecidos para transplantes.

MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa baseada em estudos anteriores24-25.
O trabalho de campo foi realizado em um hospital geral de referência em politraumatismo da
rede pública da cidade de Salvador (BA), no período de junho a dezembro de 2010. Ressalta-
-se que o projeto de pesquisa de mestrado inicialmente foi aprovado pelo Comitê de Ética da
Escola Estadual de Saúde Pública do Estado da Bahia. Para este artigo foi realizado um recorte
do trabalho original26 frente à necessidade de síntese para publicação.
Os sujeitos participantes foram familiares de dez pacientes potenciais doadores
de órgãos e tecidos para transplantes e os profissionais responsáveis pelo fechamento do
protocolo de morte encefálica e também por conduzir a entrevista familiar para doação
de órgãos e tecidos para transplantes até a sua finalização. Os pacientes com suspeita de
morte encefálica em sua maioria eram adultos jovens e sofreram mortes violentas, acidente
motociclístico (4), queda (2), atropelamento (2), acidente por arma de fogo (1) e acidente
vascular cerebral (1). Nesse grupo havia apenas uma mulher e duas crianças, ambas de sexo

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Revista Baiana masculino, com idades de 10 e 12 anos. Em dois casos os pacientes tinham idades acima de
de Saúde Pública
45 anos.
O procedimento do estudo consistiu em acompanhar o profissional responsável
em conduzir o fechamento do protocolo de morte encefálica e a entrevista familiar para doação
de órgãos e tecidos para transplantes, enquanto observador. Os instrumentos de investigação
utilizados foram: diário de campo, entrevista individual semi-estruturada para os familiares e
entrevista individual semi-estruturada para os profissionais. Utilizando o diário de campo e as
transcrições das entrevistas realizadas com familiares e profissionais, foram elaborados dez casos,
que se constituem em narrativas que integram as diversas fontes. O processo de elaboração dos
casos foi detalhado e rigoroso, buscando representar a reprodução de falas e das observações
contidas no diário de campo. Após esse momento, no qual o caso já se apresenta em quase sua
totalidade, o foco do trabalho foi direcionado para a abertura de um diálogo entre esse material
até então produzido e a teoria psicanalítica aplicada em situações de hospitalização27. Dessa
maneira, buscou-se o aprofundamento sobre os impasses subjetivos no processo de doação que
nesse estudo puderam ser identificados por meio da expressão de sentimento, afeto e emoção
dos familiares e profissionais que participaram do processo de doação de órgãos e tecidos para
transplantes.
Apenas um membro de cada família foi convidado para conceder a entrevista da
pesquisa. A entrevista individual com o familiar e o profissional ocorreram no intervalo de até
um mês após o diagnóstico de morte encefálica. Os critérios para a escolha desse entrevistado
foram a participação do familiar desde a abertura do protocolo de ME até o final da entrevista
familiar para doação. Outro critério avaliado foi a condição emocional e psicológica do
familiar durante o processo. Os familiares que apresentaram demandas para acompanhamento
psicológico foram devidamente encaminhados.
Cinco familiares concederam a entrevista da pesquisa: irmão (1); irmã (1); filho
(1); prima (1); tio (1). Dos cinco familiares restantes, que não participaram da entrevista, três
residiam no interior do Estado e dois não se dispuseram a conceder a entrevista da pesquisa.
Vale ressaltar que o grau de parentesco referido neste trabalho está sempre relacionado ao
paciente. Seis profissionais concederam a entrevista da pesquisa após a conclusão do processo:
enfermeiras (4); médicas (2). Dos quatro casos restantes, dois casos foram acompanhados por
uma mesma profissional que não concedeu a entrevista da pesquisa. Quanto às outras dois, não
houve disponibilidade de horários para realização da entrevista.
Para a construção dos dez casos, partiu-se da leitura individual do diário de campo
e, na medida em que foram identificados conteúdos relevantes para análise e discussão, foi

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inserido recortes de trechos das entrevistas realizadas com o familiar e com a profissional que
acompanhou o caso. Primeiro tentou-se agrupar a fala do familiar e depois a do profissional. Em
alguns casos, foi possível relacionar a fala do familiar e profissional respectivamente. Em outros, tal
relação não foi possível, então procurou-se analisar as falas, independente de fazer essa relação.
Para apresentar uma análise e discussão sistematizada dos casos, seis aspectos
foram considerados relevantes: a família diante da gravidade do caso e da abertura do
protocolo de morte encefálica, a família diante do fechamento do protocolo e do recebimento
do diagnóstico de morte encefálica, a entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos, afeto,
sentimento e emoção intervenientes, o momento mais difícil durante o processo, o tempo
envolvido no processo de doação.
A pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP),
FR-356443. Todos os participantes concordaram e assinaram e Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido.

ANÁLISE E DISCUSSÃO
A análise e discussão ocorreram por meio dos casos elaborados e foi baseada nas
falas dos familiares e profissionais, relacionando-as com a teoria psicanalítica. Para o presente
artigo, constaram na discussão fragmentos de sete casos e das entrevistas realizadas com os
familiares (F) e profissionais (P) correspondentes aos casos: (F3); (P4); (F6) e (P6); (P7); (F8);
(F9); (F10) e (P10). A seguir os seis aspectos já mencionados, considerados relevantes para a
sistematização da discussão:

A FAMÍLIA DIANTE DA GRAVIDADE DO QUADRO E DA ABERTURA DO


PROTOCOLO DE MORTE ENCEFÁLICA
No discurso do familiar, a seguir, representado (F8), tornou-se evidente o impacto
vivido por ele diante da gravidade do caso. Com base nessa realidade, entende-se que o familiar
entrevistado utiliza de maneira singular a denegação como mecanismo de defesa, necessário
para ele no enfrentamento de tal realidade. Os significantes desestrutura e desequilíbrio podem
representar a fala a seguir. A esperança também foi um significante mencionado em um outro
caso.

“Assim, foi um pesadelo porque você não esperava. Uma pessoa estar bem, você
ter contato com essa pessoa durante o dia todo e em questão de segundos, assim,
você vê que aquilo tudo que você viveu já está vivendo, já é passado. Aquele

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Revista Baiana presente ali, a pessoa que você ama está hospitalizada, lutando a favor de sua
de Saúde Pública
vida, é muito complicado. Então, a família se desestruturou, um desequilíbrio,
uma falta de entendimento, assim a gente começa a julgar até a si própria. Por que
comigo? Por que ela?” (F8).

No fragmento da fala do familiar (F8), depreende-se a angústia28 vivenciada pela


família e revelada por meio da desestrutura e do desequilíbrio. As pessoas, ao depararem-se
com acontecimentos inesperados em suas vidas, tendem a rupturas que abalam o ego e a
estrutura familiar. Então, o sujeito imerso na angústia, na dor da perda ou no desespero, por
exemplo, passa, inclusive, a se questionar: como ficarei sem ela, quem sou eu agora? Tais
questões que se apresentam sugerem uma demanda familiar para atender a urgência subjetiva
que se apresenta desde a comunicação da gravidade do quadro e da abertura do protocolo de
morte encefálica.

A FAMÍLIA DIANTE DO FECHAMENTO DO PROTOCOLO E DO RECEBIMENTO


DO DIAGNÓSTICO DE MORTE ENCEFÁLICA
Nesse aspecto, encontram-se os significantes a seguir: angústia, impotência,
choque, dor, aceitação, fuga, denegação e desequilíbrio. Entretanto, angústia foi o significante
representativo de forma manifesta ou latente em outros casos. Compreende-se que tais
significantes coexistem como mecanismos de defesa e estes contribuem para proteger o ego
da angústia provocada diante de tal realidade. Para ilustrar, foram transcritas as falas a seguir:

“Uma sensação de angústia, que do jeito que ele teve eu acho que poderia ter
sido mais ágil, sei lá, é conhecido o hospital, sei lá, poderia ter dado mais atenção.
É uma coisa que você tem, traumatismo, a prioridade é assistência, então, quando
eu recebi aquela notícia, eu fiquei, disse, poxa, não pode ser.” (F3).

A fala acima, do familiar (F3), revela a angústia vivida pelo irmão quando
recebeu a notícia da morte encefálica. Em muitos casos, os membros da família procuram
alguém ou mesmo a instituição para ser responsabilizada pela morte. A angústia descrita nos
pareceu estar relacionada à sensação de impotência diante da notícia. Nesse caso, a família
não foi acompanhada para trabalhar questões subjetivas ao longo do processo. O contato do
profissional ocorreu somente no momento do fechamento do protocolo e da entrevista familiar
para doação.

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A seguir, na fala representada (F10), presencia-se uma situação que sugere que
ele, o filho, apesar de ter o sentimento de choque e dor, estava preparado para lidar com a
notícia da morte do pai. A aceitação da realidade foi o significante escolhido para representar
esse momento.

“Ah! Fiquei chocado, né? Doeu, mas o médico falou que eu podia esperar
qualquer coisa. Então já tava, já ciente, já que a qualquer hora podia chegar uma
notícia ruim, chegar uma notícia boa também ou chegar uma notícia ruim. E é isso
aí, né? E a vida continua.” (F10).

A seguir, ainda sobre o caso dez, encontra-se a fala da profissional (P10) e a


percepção da mesma sobre a reação do filho. Vale ressaltar que ele havia recebido o comunicado
da morte encefálica primeiro por meio do tio por telefone e depois pelo médico da UTI.
A profissional não estava presente nesse momento. Quando a mesma iniciou a entrevista
familiar em um momento posterior repetiu a comunicação sobre a ME.

“É, eu achei que o filho fugiu, procurou fugir um pouco. Eu não vi comparando
com outras famílias é aquele, aquela tristeza, aquela, algum pontinho de esperança
ou de dúvida do protocolo, eu achei que ele, assim, aceitou muito bem, né? Eu
achei, ele pode dizer assim, meio frio, diante de uma notícia como essa.” (P10).

Como o exemplo de outros casos deste estudo; a profissional que conduziu a


entrevista familiar para doação não ficou junto com o médico no momento da comunicação da
morte encefálica. Nesse momento, ele explicou que não tinha uma convivência muito próxima
do pai. Segredos da estrutura familiar são revelados nesse momento e são de fundamental
importância para a entrevista familiar para doação.

ENTREVISTA FAMILIAR PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS


Dentre os significantes mencionados nesse aspecto, destaca-se apego, denegação,
angústia, cuidado, respeito, aceitação e tempo. Nas falas a seguir, das participantes (F6), (F8) e
(P6), identificamos indignação, revolta e choque:

“Não quero doar nada, meu filho já sofreu muito e eu não quero que abra ele
para tirar órgãos, eu quero que ele volte a terra assim como ele veio.” (F6).

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Revista Baiana A fala da familiar (F6) revela a decisão da mãe de não conceder a doação.
de Saúde Pública
Nesses casos, a família teme a violação do corpo porque o familiar já sofreu muito. Tal atitude
poderia significar a existência de sentimento de culpa e, por isso, os familiares preferem manter
a integridade do corpo. No referido caso, diversos fatores podem ter contribuído para tal
reação, dentre eles, o acidente fatal sofrido pelo filho quando a mãe saiu para trabalhar e a
falta de vinculação da mãe com a equipe que trouxe desconfianças sobre a veracidade dos
fatos. Durante a entrevista familiar, a mãe apresenta o sentimento de indignação, revolta e, em
seguida, a negativa familiar para doação.
O recorte da fala da familiar (F8) representa os significantes apego e denegação
diante da comunicação da morte.

“Você vai se apegando em cada etapa, né? Você tenta se apegar em cada etapa.
Aí chega uma equipe médica pra passar informação pra gente e aí tenta de
alguma forma ajudar outras pessoas que também estão tentando lutar em favor
da vida, que é a doação de órgãos, mas pra gente que tá perdendo a pessoa
que a gente ama, assim é como se você tivesse cooperando com a morte dela
também. Não é ignorância não. Não é ignorância. Imagine uma pessoa boa que
você ama e que em questão de segundos ela não morreu por completo.” (F8).

É interessante que a familiar (F8) afirma não ser por ignorância essa dificuldade
de assimilação. Compreende-se que existe um mecanismo de defesa, nesse caso, a denegação
da morte real que atua impedindo que o ego receba o impacto da notícia. Então, ela denega
o que ouve, não consegue compreender, apesar de ser uma pessoa com grau de informação
diferenciado. Pensa-se que ela apresentava demanda para ser escutada desde a abertura do
protocolo, talvez pudesse elaborar a referida situação ao longo dos dias em que foram realizados
os exames do protocolo de ME e, assim, chegar ao momento de concluir a morte da irmã e a
decisão sobre a doação, de maneira mais equilibrada.
Na fala a seguir, a profissional (P6) destaca o “comportamento desequilibrado” da
mãe do paciente, entretanto, ela não analisa tal comportamento. Deve-se ressaltar que nesse
caso, a mãe esteve na UTI acompanhando o filho menor durante alguns dias, tempo suficiente
para a equipe responsável por conduzir o protocolo de ME realizasse um acolhimento e escuta
específica em função do visível sofrimento e da demanda.

“É, pelo que me disseram, pelo que me disseram, eu pensei que, eu entendi que
eles [os pais] não tinham caído muito a ficha. Quando foi dada a notícia, porque

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sempre disseram [os profissionais da UTI] que a mulher era escandalosa. Que era
aquilo, que a mãe fazia um escândalo e na hora H ela ficou calada, né?” (P6).

No momento da entrevista familiar para doação, a mãe demonstrava estar em


estado de choque e apreensiva com a reação do pai. Na realidade, ela temia que ele pudesse
acusá-la pelo ocorrido. A profissional não identificou esse fato e não interviu diante da referida
situação. Depois da negativa familiar para doação, ela agradeceu a família e despediu-se.
Os familiares que acompanhavam os pais – duas tias – ainda apresentavam questões sobre a
veracidade dos fatos e o desligamento dos aparelhos. Uma assistente social e uma psicóloga
prosseguiram com a família até esgotar todas as demandas familiares.

AFETO, SENTIMENTO E EMOÇÃO INTERVENIENTES EM FAMILIARES E


PROFISSIONAIS
Os significantes mencionados nesse aspecto foram angústia, esperança, dor, apego,
frustração, desespero, confusão, tristeza, felicidade, satisfação, continuidade, solidariedade,
tranquilidade, alívio e esperança. A angústia foi um significante presente tanto na fala dos
familiares como também dos profissionais. Para a psicanálise, a angústia é o único afeto que
não engana, ela está presente no corpo real29. Trata-se de um afeto primordial, presente em
nossas vidas desde o nascimento30, ressurgindo sempre que existe um encontro com situações
de ameaça, como é o caso de algumas situações de hospitalização de um membro da família.
Muitas vezes, a angústia encontra-se latente no que se denomina de sentimentos, tais como dor,
sofrimento, ansiedade, dentre outros. A seguir, apresenta-se recorte das falas em que se pode
apontar a percepção do familiar e do profissional sobre esse aspecto:

“É que nem eu falei, assim, sabe, eu acho que vai ficar uma parte dele aqui. Salvar
outras vidas. Tem gente precisando de um coração, um fígado, um rim, na fila da
espera sofrendo, aí. Eu imagino assim.” (F10).

Na fala acima do familiar (F10), ele tenta nomear seu sentimento ao consentir a
doação. Talvez represente um sentimento de continuidade da vida quando diz que algo vai
permanecer e também de solidariedade ao referir que vai ajudar outras pessoas. A literatura
aborda que a doação é benéfica também para a família, serve como um consolo para a situação
trágica da morte. É possível pensar que aqueles que aceitam e lidam melhor com a perda
possam sentir-se mais tranquilos quando fazem a escolha pela doação de órgãos. Pensa-se que

492
Revista Baiana a família pode fazer um percurso pelo campo da subjetividade e concluir que a doação é uma
de Saúde Pública
escolha que vai lhe trazer benefícios31. Enfatiza-se que tal argumento não deve ser utilizado
pelo entrevistador, cabe tão somente à família um discurso que possibilite deslizar na cadeia
significante e construir uma elaboração singular sobre o significado da doação.
A seguir, a fala da profissional (P4) que chegou a identificar o afeto, porém ela
nomeia a angústia da mãe diante da situação de comunicação da morte do filho como um
significante mais premente. Mas a profissional não soube o que fazer diante da angústia do
outro.

“Eu acho que o [afeto] negativo foi a angústia da mãe em receber a notícia, não é?
E o [afeto] positivo, eu acho que foi o estímulo, a vontade de doar que tinha, né?
O restante dos familiares, o irmão, a tia, né? A cunhada, a mãe, e aquela vontade,
aquela [...] é esperança mesmo, né, de que pudesse doar.” (P4).

A mãe referida acima, ficou calada devido ao impacto da notícia. Encontrava-se


em estado de choque, imersa na angústia. Então, diante do silêncio, a profissional antecipou-
-se e ofereceu a oportunidade da doação. Após alguns minutos, a mãe, reagiu e disse de forma
muito enfática que não gostaria de conceder a doação porque ele já havia sofrido demais. Na
opinião da profissional, talvez para evitar outras argumentações, informou que, em vida, o filho
disse que não gostaria de doar.

O MOMENTO MAIS DIFÍCIL DURANTE TODO O PROCESSO DE DOAÇÃO


Os significantes que representam o aspecto acima foram frustração, parada de
órgãos, Instituto Médico Legal (IML) e espera do corpo. Entretanto, a ida do corpo para o IML
foi relevante. A seguir as falas dos familiares e profissionais:

“[...] tem que passar por uma exumação, então talvez esse seja um momento
difícil e doloroso porque ai você vai decidir ou eu jogo no lixo ou eu dôo pra
alguém que possa manter esses órgãos vivos e transformar esse momento feio
numa coisa prazerosa, satisfatória, que remete à felicidade, à continuidade, à
própria vida. Ele não tem filhos, então, de uma certa forma, ele continua.” (F9).

O familiar representado (F9) demonstra como é difícil deparar-se com a


necessidade de encaminhar o corpo para autópsia no IML, apesar de ter consentido a doação.

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No presente caso ainda houve atraso na cirurgia de remoção, então o corpo não seguiu para o
IML no horário previsto. O tio, no dia seguinte, retornou ao hospital e expressou indignação e
intolerância pela falta de definição de um horário preciso para a liberação do corpo. Segundo
os profissionais do plantão, ele chegou a verbalizar, em tom alto de voz, estar arrependido por
ter concedido a doação. Ameaçou falar para todos no interior sobre as dificuldades relativas ao
cumprimento dos horários nos casos de doação de órgãos. Talvez as famílias, diante de fatos
como esse, sintam-se desrespeitadas e desconsideradas nesse momento de dor e perda de um
ente querido.

“Eu acho que... que eles representaram mais dificuldade pra mim. Difícil foi
quando ficaram sabendo que iam, que o corpo iria ser encaminhado para o IML,
que seria realmente desligado o aparelho.” (P6).

A narrativa da profissional (P6) destaca que o momento mais difícil foi a


comunicação sobre a necessidade da ida do corpo para o IML. Algumas famílias desistem de
fazer a doação quando são informadas sobre o tempo necessário para a realização da cirurgia
de doação e, depois, o encaminhamento do corpo para o IML, nos casos de morte violenta.

O TEMPO ENVOLVIDO NO PROCESSO DE DOAÇÃO


Os significantes que representam esse aspecto são: desespero, preparação,
falta de informação, desconfiança, denegação, tempo e cuidado. Tais significantes podem ser
representados por meio das falas da familiar (F8) e da profissional (P7), apresentada a seguir:

“A gente pediu simplesmente à equipe médica que os órgãos dela deixassem parar,
que não desligassem os aparelhos, embora o relatório tivesse concluído no sentido
de dizer que era morte encefálica. [...] É morte, mas, mesmo assim, a gente só
pediu que os órgãos dela viessem a parar, já que a gente não optou pra fazer a
doação de órgãos. Aí, eles respeitaram deixaram ligado até de manhã.” (F8).

A fala acima da familiar (F8), remete ao tempo lógico . Isso porque, nesse
32

caso, entende-se que a familiar ainda estava no instante de ver a morte apenas como uma
possibilidade. Pareceu que o tempo foi curto para a familiar compreender que a morte
encefálica é a morte real. Apesar da escolha por não doar, ela sequer aceitou a ideia que os
aparelhos fossem desligados e, dessa maneira, pediu ao médico da UTI que esperasse até que

494
Revista Baiana os órgãos e o coração parassem. A denegação da morte demonstrada pela referida familiar foi
de Saúde Pública
marcante nesse caso. Considera-se que se trata de um impasse subjetivo.
A fala a seguir, da profissional (P7), revela diversas questões pertinentes. Ela refere
que, na entrevista para doação, a família está em momento de dor e tristeza e, dessa maneira,
isso pode influenciar na recusa familiar para doação32.

“Eu acho assim, que quando a gente tem um paciente com suspeita de morte
cerebral, isso tem que ser trabalhado durante todo o internamento, né? Desde a
suspeita até o estágio final, eu acho que como é feito aqui, eu acho que é muito
em cima. Então, você pega as pessoas em um momento de dor, num momento
de tristeza, num momento ... eu acho que isso influi na recusa, isso vai influir,
influenciar na recusa da doação. Então, eu dou a notícia de morte cerebral e
em seguida eu falo sobre a doação de órgãos. Então, nesse momento, eu acho
que a pessoa não está muito orientada, está um pouco desnorteada, acabou de
ter a notícia que o ente morreu, então, não tá muito centrada para decidir uma
coisa importante, se vai doar ou se não vai doar os órgãos, né? Eu acho que esse
tempo é pequeno e aqui, nessa entrevista, então, foi muito pequeno. Ele deve ser
trabalhado durante o processo do protocolo.” (P7) .

A fala da profissional (P7) considera curto o espaço de tempo oferecido à família


para decidir sobre a doação. Por isso, ela reconheceu que, durante a sua condução da entrevista
para doação, ofereceu pouco tempo para a família entre a comunicação da ME e a decisão
sobre a doação. A fala acima sugere que a família deveria ser preparada em um momento
anterior à realização da entrevista familiar para doação de órgãos e tecidos para transplantes.
Tal preparação poderia ocorrer por meio da singularidade de cada caso, quando, em alguns
casos, a família menciona o tema doação antes do momento da entrevista familiar para doação
de órgãos e tecidos para transplantes. Geralmente, os profissionais não acolhem essa demanda,
dizem que vão conversar sobre doação em um momento específico.
A profissional declara que o tempo é “pequeno” para a família. Então, ela
revela, de maneira clara, um impasse subjetivo quando a família é convocada ao momento
de concluir sobre a doação, sem ter passado pelo momento de compreender a ME como
sendo a morte real.
O tempo cronológico sempre se faz presente nas entrevistas devido à pressa dos
profissionais para não perder a possibilidade da doação. Afinal, eles consideram que o paciente

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abr./jun. 2016 495
pode “parar” a qualquer momento, o que significaria a perda da oportunidade de doar. Em
função disso, busca-se concluir o processo o mais rápido possível. É fundamental lembrar que,
apesar da pressa em função do tempo cronológico, a família precisa de acolhimento e de
escuta, considerando o tempo lógico para compreender o processo e concluir uma decisão
sobre a doação de maneira benéfica para a família e ética para os profissionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os familiares apresentam dificuldades para compreender a morte encefálica
como sendo a morte real conforme refere à literatura médica. Apesar de ser dada a explicação
sobre a ME, existe uma resistência para sua compreensão. Dessa maneira, considera-se que a
denegação da realidade da morte está relacionada também a mecanismos de defesa do ego
que buscam proteger-se da dor e do sofrimento. É necessário oferecer acolhimento e escuta
específica para tais questões.
Revela-se como fundamental que o profissional responsável pela condução da
entrevista familiar para doação esteja presente quando a família receber a comunicação da
morte encefálica. Nesse momento, a família precisa ser acolhida em sua dor. Além disso, o
profissional também terá acesso a conteúdos significativos das possíveis reações dos membros
das famílias durante a entrevista familiar para doação. O tempo e a escuta oferecida aos
membros da família são importantes para uma decisão coerente com o desejo familiar.
Quanto à entrevista familiar para doação, os profissionais, quando capacitados
para tal função, oferecem à família a oportunidade de doar e permitem uma decisão familiar
baseada no diálogo, no respeito e na livre expressão de dúvidas, sentimentos e angústias.
Reiteramos que o objetivo não deve ser o de convencer a família a doar.
No presente estudo, os profissionais apresentaram dificuldades para identificar e
manejar sentimentos, afeto e emoção na experiência vivida pelos familiares durante o processo.
Tornou-se evidente que os psicólogos do hospital não são solicitados pelos profissionais que
conduzem a entrevista familiar para doação para acompanhar as famílias desde a abertura
do protocolo de morte encefálica. Em alguns casos mais difíceis, ele é chamado apenas no
momento da entrevista familiar para doação e, por isso, sugere-se que as famílias sejam
acolhidas, avaliadas e acompanhadas pelos profissionais de psicologia, desde a abertura do
protocolo de morte encefálica até o fechamento do processo.
Concluiu-se que o vínculo construído com a família durante o processo de doação
de órgãos torna-se mais humanizado e a entrevista familiar deixe de ser um procedimento
pragmático e passa ser considerada a dimensão subjetiva que, de certo modo, envolve os

496
Revista Baiana sujeitos que estão vivendo o processo. Essa reflexão possibilita pensar na ação clínica diante
de Saúde Pública
do sofrimento imposto pela morte e pelo luto, como também, refletir sobre a dimensão
terapêutica que o processo de doação de órgãos e tecidos pode proporcionar. Reafirma-se que
um atendimento mais humanizado deveria buscar amenizar a dor da família, um benefício justo
diante da proposta do processo de doação de órgãos e tecidos para transplantes.

COLABORADORES
1. Concepção do projeto, análise e interpretação dos dados: Maria Constança
Velloso Cajado.
2. Redação do artigo e revisão crítica relevante do conteúdo intelectual: Maria
Constança Velloso Cajado e Anamélia Lins e Silva Franco.
3. Revisão e/ou aprovação final da versão a ser publicada: Maria Constança
Velloso Cajado e Anamélia Lins e Silva Franco.
4. Ser responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão:
Maria Constança Velloso Cajado e Anamélia Lins e Silva Franco.

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Recebido: 27.7.2015. Aprovado: 21.2.2016. Publicado: 19.9.2017.

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