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MOVIMENTOS CORPORAIS E SONS MUSICAIS SOB A ORDEM DA


MEMÓRIA DO CORPO DA RAÇA NEGRA

Componente Curricular: Corporalidades Negrodescentes


Professora Doutora Evani Tavares Lima

Alex Pereira de Araújo

Yasmine dos Santos Bandeira


Raone Calixto Sales

Ricardo Neves Rodrigues Júnior

Este breve ensaio trata especificamente dos movimentos corporais e dos sons
musicais sob a ordem de uma corporalidade movida pela memória da raça negra.
Mas o objetivo dessa nossa discussão é, sem sombra de dúvida, contribuir com essa
discussão que diz respeito aos discursos que tratam da valorização dos saberes
historicamente constituídos pela cultura negra trazida de África pelos nossos
ancestrais e, ao mesmo tempo, contribuir com os discursos de autoafirmação racial
dos afro-brasileiros que durante séculos foram oprimidos pelo discurso dos
colonizadores europeus que se valiam do etnocentrismo e do eurocentrismo para
assegurar o poder sobre os negros e também sobre os ameríndios.
Nestes termos, precisamos trazer para esta discussão alguns conceitos
essenciais que fundamentam e situam este ensaio no quadro teórico e empírico
sobre as questões ligadas aos processos de descolonização que vivenciamos hoje em
nosso continente que incluem ainda as discussões sobre o reconhecimento dos
processos de identificação e de subjetivação que surgiram no continente africano e
chegaram com os nossos ancestrais negros que foram trazidos para servirem ao
trabalho escravo implantado nas diversas colônias europeias nas Américas; trata-se
do conceito de raça usado pelos movimentos negros em suas lutas por políticas de
reparação racial que estimulem a autoafirmação da culta afro-brasileira, do conceito

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de corpo que tomamos de Foucault (1999), do conceito de memória que retomamos
de Halbwachs (2006) e, por fim, do conceito de corporalidade que surge de nossa
experiência adquirida pela nossa participação no componente curricular
Corporalidades Negrodescentes ministrado pela professora Evani Tavares Lima.
Ora, julgamos ser essa nossa discussão importante porque ainda há muita
desigualdade racial no Brasil, negada durante anos por um discurso que afirmava
existir uma democracia racial entre nós, ou seja, de que os afro-brasileiros teriam as
mesmas condições de trabalho e de ascensão social que os euro-brasileiros de pele
branca. Esse discurso é ainda hoje aceito por uma parcela da população, mas
duramente criticado pela maioria dos antropólogos e dos sociólogos, que o chamam
de mito da democracia racial brasileira; além, é claro, dos movimentos negros do
país.
Este mito foi, na verdade, a forma mais prática e econômica que o Estado
adotou para manter a estagnação social e política dos afro-brasileiros após a abolição
do regime que os mantinham sob a condição de escravos, ao se omitir de suas
responsabilidades. É esta omissão que fez aparecer este mito que funciona como
dispositivo que nega o racismo no Brasil, ao mesmo tempo, que o mantém sob tal
negação. Portanto, trata-se da omissão do Estado que nada fez para resolver o
problema socioeconômico que apareceu com os negros libertos pela lei áurea que
passaram a ter uma cidadania brasileira, tornando-se afro-brasileiros, mas, cuja
condição era de extrema pobreza, pois não tinham moradias nem trabalhos, muito
menos acesso à escola em sua grande maioria.
É justamente nesse mito que vamos encontrar um conceito de raça que está
sob a ordem dos discursos nazistas que surgiram na Alemanha de Adolf Hitler nas
três primeiras décadas do século XX, que, por sua vez, encontra-se fundamentado
na biologia desenvolvida principalmente na Europa no século anterior e
amplamente difundida pelo mundo (cf. GOMES, 2005, p.45). Da crítica a esta ideia,
surgiu, entre os antropólogos, sociólogos e o movimento negro brasileiro, um
conceito que se baseia na dimensão social, política e pragmática que ocorrem nas
questões relacionadas à discriminação racial e ao racismo existente na sociedade
brasileira decorrente do mito da democracia racial difundido nela, como dissemos
há pouco e conforme constata Gomes (2005).

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A contradição entre uma noção e outra é o reflexo de uma luta que, aos
poucos, tem buscado denunciar os casos de matança dos jovens negros no Brasil
pela polícia, os altos números de analfabetismo entre os afro-brasileiros, a
discriminação racial do mercado de trabalho etc. Tal contradição também
demonstra que ainda vivemos à margem do mito da democracia racial brasileira
que se afirmou negando a existência desses fatos que atestam o racismo nosso de
cada dia, ou seja, de que ainda somos escravos dessa doença do poder que mantém
as populações negras nos mesmos quadros sociais da última década do século XIX
e das primeiras do século XX.
Apesar de todos esses mecanismos de sujeição a dominação branca, os afro-
brasileiros conseguiram manter em seus corpos uma memória de uma
corporalidade que expressa sua liberdade e sua força que nem mesmo o mito da
democracia racial brasileira conseguiu conter, cujo exemplo maior é a capoeira,
sendo que as danças dos orixás do candomblé também resistiram ao racismo e à
discriminação racial, e a música popular brasileira se curvou aos sons dos tambores
e atabaques que saiam das mãos negras que traziam essa memória de liberdade e
da força do corpo negro que veio de África. Em outros termos, é como se o corpo
negro saísse de sua servidão para voltar ao estágio de sua liberdade ancestral por
meio do movimento dessas danças e dos ritmos que saem dos sons dos instrumentos
musicais tocados pelo corpo negro.
Nesta perspectiva, podemos dizer que essas corporalidades estão sob a
ordem de uma memória coletiva que se constituiu em África em tempos em que o
homem negro estava livre da sujeição etnocêntrica europeia, podendo dançar e
cantar para seus orixás sob os sons de seus instrumentos africanos, expressando, ao
mesmo tempo, toda força e liberdade do corpo negro. Em outras palavras, essas
corporalidades são um conjunto de memórias dos movimentos de um corpo negro
livre da dominação etnocêntrica europeia, são memórias de um tempo passado que
se atualiza no presente no discurso das lutas do movimento negro para devolver
aos afro-brasileiros o orgulho de sua cor de pele, de seus movimentos, de sua força
de sua humanidade aprisionados pelo regime escravocrata e mantidos pelo mito da
democracia racial. Podemos dizer ainda que se trata de um saber que foi conservado
primeiramente nos quilombos, depois nas senzalas e, no século XX, nas favelas e

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nos terreiros de candomblé que ficavam escondidos nas periferias das cidades
brasileiras, longe das vistas da polícia.
Portanto, é este saber que é usado pelo movimento negro brasileiro para
recriar os processos de identificação e de subjetividade do corpo negro para o
representar nos discursos e em suas práticas discursivas. Neste caso, podemos dar
como exemplo entidades que fomentam essa autoafirmação racial do povo negro e
que estão ligadas às lutas do movimento negro como o Olodum, o Ara ketu, o Malê
debalê, o Ilê Aiyé dentre outras. Estas entidades também promovem em meio as
suas oficinas de dança afro, capoeira, uma série de atividades que visam a inclusão
social aos afro-brasileiros negada pela omissão do Estado.
Cabe lembrar ainda que muitas das manifestações da cultura popular
brasileira também estão cheias de elementos que são próprios dessas memórias, mas
que se fundiram a outros que são próprios da cultura ameríndia e, mesmo, da
cultura do colonizador europeu. Neste caso, podemos dar como exemplo, o
maracatu, a marujada, o frevo, o reisado (principalmente o do bairro da Lapinha em
Salvador) etc. Todas essas manifestações são embaladas por instrumentos musicais
e ritmos que surgiram dessas memórias de que falamos antes.
Chegamos a esta consideração por meio de nossa vivência no componente
curricular Corporalidades Negrodescendentes, sobretudo, quando tivemos contato com
o conceito de partitura corporal do movimento que nos permitiu isolar, para
identificar, cada movimento executado pelos participantes que aparecem em vídeos
no Youtube. Com efeito, podemos reconhecer uma memória corporal cujos
movimentos nos permite pensar nas representações do corpo negro e suas
contribuições para a formação de uma cultura afrobrasileira. De certa forma, é como
fizéssemos o decalque de cada movimento corporal numa tela, como fez Carybé,
artista plástico naturalizado brasileiro, que bem registrou os movimentos da
capoeira e das danças dos orixás do candomblé em suas pinturas e gravuras.
Ora, as músicas e letras de vários compositores baianos, como Carlinhos
Brow, Daniela Mercury, Tatau (Gilson Dórea), Tonho Matéria, Gerônimo (Santana),
Vevé Calazans também são exemplos de evocação dessa memória do movimento
do corpo negro por meio de fragmentos ou parte integral de cantos dedicados aos
orixás do candomblé. Em linhas gerais, podemos dizer que o corpo negro é um

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corpo movido pelo ritmo dos atabaques, dos tambores e demais instrumentos que
vieram de África e de outros que surgiram em terras americanas, o que nos leva a
perceber a grande herança africana nas músicas e nos movimentos do corpo de
nosso presente. Em outras palavras, trata-se de um saber que se atualiza no
presente, tendo como necessidade a instauração de processos de identificação e de
subjetivação em torno de práticas discursivas que materializem a autoafirmação do
corpo negro, de toda sua corporalidade que vem da memória da nossa
ancestralidade afro-brasileira.
A importância das ações do movimento negro, que vem lutando ao longo dos
tempos pela existência de uma política justa de reparação racial no Brasil, tem
tornado possível à difusão dessa consciência de que temos um saber que nutre o
corpo negro de hoje, um saber historicamente constituído ao longo desses cinco
séculos que criação desse espaço geopolítico chamado Brasil.
A participação dos artistas nesse movimento de luta, promovendo essa
difusão, tem sido crucial para que a autoafirmação do corpo negro na cultura
brasileira seja uma realidade cada vez concreta em todos os cantos do país,
impulsionando o reconhecimento do saber do corpo negro que traz consigo todo o
traço de sua ancestralidade africana nesse processo de descolonização que
vivenciamos hoje em todos os cantos do continente americano.

REFERÊNCIAS

DANÇAS BRASILEIRAS - o frevo parte 1. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=DmAIBrfalos > Acesso: novembro de 2017.

DANÇAS BRASILEIRAS - o frevo parte 2. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=JBVkf023HJQ >Acesso: novembro de 2017.

FOUCAUL, Michel. Em defesa da sociedade: curso Collège de France (1975 -1976).


Tradução Maria Ermantina Galvão. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista:
Caminhos Abertos pela lei 10.639. – Brasília: Ministério da Educação.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. – São
Paulo: Centauro, 2006. (Nova tradução).

LIMA, Evani Tavares. Compilação de textos da Dissertação Capoeira Angola momo


Treinamento para o Ator.

MALUF, Sônia Weidner. Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas:


abordagens antropológicas. In: Revista Esboço. Dossiê Corpo e História; v.9, n.9,
2001. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/563>. Acesso em
novembro de 2017.

MOJUBÁ I | Ep. 06: Comunidades e Festas. Disponível em:


<www.youtube.com/watch?time_continue=186&v=E6vGlnaxSLk > Acesso:
novembro de 2017.

PATROCINIO, Moisés. Capítulo 6. In: AfroTranscendence Websérie. Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=iRFUI1bpYtE >. Acesso em agosto de
2017.

SALOMÃO, Salloma. Capítulo 7. In: AfroTranscendence Websérie. Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=HnqIfjc9AN0 >. Acesso em agosto de
2017.

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