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Universidade de Brasília

Faculdade de Educação

III Narrativas Interculturais, Decoloniais e


Antirracistas em Educação

Anais

Ana Tereza Reis da Silva


Carolina Soares Mendes
(organizadoras)

Brasília-DF

2023
© 2023 os autores e as autoras.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial-SemDerivações 4.0 Internacional. A responsabilidade pelos direitos
autorais de textos e imagens dessa obra é das autoras e dos autores.

Elaboração e informações
Universidade de Brasília
Faculdade de Educação
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Faculdade de Educação, CEP: 70910-900 Brasília-DF, Brasil
Contato: (61)3107-6154 Site: www.fe.unb.br

Equipe técnica
Identidade visual e diagramação Anderson Lopes dos Santos Melo
Revisão Carolina Soares Mendes
Organizadoras Ana Tereza Reis da Silva
Carolina Soares Mendes
CORPO EDITORIAL

COMISSÃO CIENTÍFICA
Alessandro Roberto de Oliveira - UnB
Aline Seabra de Oliveira - UnB
Ana Maria de Araújo - SEEDF
Ana Tereza Reis da Silva - Gpdes/UnB
André Marques do Nascimento - Núcleo Takinahakỹ/UFG
Atauan Soares de Queiroz - Gecria/UnB
Bárbara Ribeiro Dourado Pias de Almeida - Gpdes/UnB
Daniela Barros Pontes e Silva - Gpdes/UnB
Elizabeth Del Socorro Ruano Ibarra - Ceam/UnB
Fabiana Ana da Silva Vencezlau - Aqcc, Conaq, UFRGS
Francineia Alves da Silva Ehlers - SEEDF
Gilson Ipaxi'awyga Tapirapé - Núcleo Takinahakỹ/UFG
Hugo Nicolau Vieira de Freitas - Gpdes/UnB e SEEDF
João Roberto dos Reis de Souza - Ela/UnB
John Cleber Sarmento Santiago - Movimento da juventude quilombola do território de Jambuaçu - JQTJ,
Gpdes/UnB
Jonathan Gonçalves Dutra de Souza - USP
Juliana de Freitas Dias - Gecria/UnB
Leonardo Ângelo de Araújo Andrade - Ela/UnB e Capes
Lucas Ferreira dos Santos - Gpdes/UnB
Lurian Lima - Cultna/UFF, Gpdes/UnB
Mariana Bracks Fonseca - UFS
Matheus Costa de Sousa - SEEDF
Meritxell Simon-Martin - Universidad de Lleida
Mirim Ju Yan Cavalcante Lobato Alves da Silva Guarani - UnB e AAIUnB
Paula Fernandes de Assis Crivello Neves - Gpdes/UnB
Paula Gabriella Silva Gomes - Gecria/UnB
Ramon de Oliveira Santana - Gpdes/UnB e Ueap
Ricardo Cruccioli Ribeiro - Gpdes/UnB e SEEDF
Romero Antonio de Almeida Silva - Coletivo de Educação da Conaq e Gpdes/UnB
Saulo Pequeno Nogueira Florencio - Gpdes/ UnB e UniCeub
Sila Marisa de Oliveira - Gecria/UnB
Vânia dos Reis Sousa – Gecria/UnB

COMISSÃO ORGANIZADORA
Ana Tereza Reis da Silva - Gpdes/UnB
Anderson Lopes dos Santos Melo
Carolina Soares Mendes - Gpdes/UnB e IFB
SUMÁRIO

Apresentação………………………………………………………………………………………………..…. 05

Conversatório 1 - Narrativas de interculturalidade: sentidos e práxis para a transformação…………. 07

Conversatório 2 - Os intercâmbios epistolares como ferramenta de interculturalidades e


56
decolonialidades…………………………………………………………………………………………..…...

Conversatório 3 - Vivenciando a Educação na Matriz Africana…………………………………………... 73

Conversatório 5 - Pluralismo epistêmico, justiça cognitiva e decolonização do conhecimento nas


106
universidades ocidentalizadas: territórios educativos em disputa…………………………………..……

Conversatório 6 - Decolonizar a escola: artes, crianças e infâncias………………………………...…... 217

Conversatório 7 - Educar para as Relações Étnico-Raciais………………………………………..…….. 268

Conversatório 8 - Narrativas Autobiográficas de estudantes indígenas…………………………..…….. 410

Conversatório 9 - Educação quilombola: território de (re)existência……………………………..……... 448

Conversatório 10 - Autoria criativa, educação e consciência linguística: estudos críticos do


494
discurso……………………………………………………………………………………………………..…..

Conversatório 11 - Trânsitos e trajetórias de pessoas LGBTQIAPN+ da escola à universidade:


574
opressões e violências nos transcursos formativos………………………………………………..……...
APRESENTAÇÃO

O evento Narrativas interculturais, decoloniais e antirracistas em educação é realizado desde


2017 pelo Grupo de Pesquisa Educação, Saberes e Decolonialidades (Gpdes/UnB), em parceria com
outros coletivos provenientes da academia, da sociedade civil organizada e de povos e comunidades
tradicionais.
Em sua terceira edição, realizada em 2022, assim como nas anteriores, o evento procurou reunir
professoras/es do ensino superior, professoras/es da educação básica e em processo de formação,
educadoras/es populares, mestras e mestres do conhecimento tradicional, artistas, pesquisadoras/es e
intelectuais de dentro e de fora da academia, para o intercâmbio de saberes e práticas educativas em
chave intercultural, decolonial e antirracista.
Nesse sentido, o Narrativas interculturais, decoloniais e antirracistas em educação tem se
consolidado como um espaço de diálogo, trocas de saberes e vivências, visando explorar o potencial
educativo da diversidade cultural, étnica e epistêmica que constitui a sociedade brasileira, procurando
abrir-se ainda para outras pluralidades da América Latina. Uma importante dimensão desse exercício
colaborativo é a valorização e visibilização positiva de conhecimentos historicamente racializados e
subalternizados, especialmente aqueles provenientes das tradições orais africanas, indígenas, de
comunidades tradicionais e periféricas. O reconhecimento da legitimidade desses saberes passa também
pela valorização das intelectualidades que os produzem e dos loci de enunciação, territórios e
corporeidades que os elaboram.
Além disso, como forma de questionar as estruturas de saber/ser/poder e as lógicas hegemônicas
de legitimação do conhecimento - que frequentemente excluem saberes não chancelados pelos métodos
científicos, apesar de comportarem valores de interesse social, ecológico, político e estético -, o evento
tem como uma de suas principais estratégias conferir lugar de destaque às falas e narrativas de sujeitos
historicamente e epistemicamente subalternizados (mulheres, negras(os), indígenas, quilombolas
LGBTQIA+, indígenas, infâncias, pessoas com deficiência).
Em sentido amplo, o evento se inscreve no campo das lutas antirracistas que buscam promover
justiça epistêmica e cognitiva, difundindo práticas e saberes que potencializam o enfrentamento do
racismo/eurocentrismo nos campos da educação, do ensino, das artes, da pesquisa e da produção do
conhecimento. Coerente com essa perspectiva, o evento tem adotado metodologias participativas e
formatos circulares que favorecem a troca e o diálogo horizontais.
Os anais aqui reunidos congregam, portanto, resumos submetidos aos 10 conversatórios
propostos para o evento. Imaginados como espaços de diálogos e trocas de processos de pesquisa em
curso ou já finalizados, os conversatórios foram propostos a partir de uma pluralidade de temáticas:
* Narrativas de interculturalidade: sentidos e práxis para a transformação;
* Os intercâmbios epistolares como ferramenta de interculturalidades e decolonialidades;
* Vivenciando a Educação na Matriz Africana;

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* Pluralismo epistêmico, justiça cognitiva e decolonização do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: territórios educativos em disputa;
* Decolonizar a escola: artes, crianças e infâncias;
* Educar para as Relações Étnico-Raciais;
* Narrativas Autobiográficas de estudantes indígenas;
* Educação quilombola: território de (re)existência;
* Autoria criativa, educação e consciência linguística: estudos críticos do discurso;
* Trânsitos e trajetórias de pessoas LGBTQIAPN+ da escola à universidade: opressões e
violências nos transcursos formativos
As submissões foram avaliadas em função de seu alinhamento com as temáticas propostas e seu
quantitativo não foi limitado - razão pela qual cada conversatório recebeu números variados de
participações e ocorreu, por vezes, em mais de uma sessão concomitante.
Finalmente, os trabalhos aqui reunidos estão organizados de acordo com os conversatórios aos
quais foram submetidos, ainda acompanhados por apresentação-síntese do conversatório delineada pela
coordenação responsável por cada um deles. Ao disponibilizarmos aqui estes resumos almejamos não
só registrar a riqueza dos diálogos e das trocas ocorridos, mas esperamos contribuir para a ampliação
vozes, falas e narrativas sobre estas temáticas que nos são tão caras.

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Conversatório 1

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Gestada nas lutas e movimentos dos povos originários, a concepção de interculturalidade, numa
perspectiva crítica, tem potencializado práxis fundadas na afirmação de formas de ser, saber e agir no
mundo conectadas com princípios cosmológicos ancestrais do Bem Viver. Esses princípios, ao mesmo
tempo em que tornam explícito o poder destrutivo da racionalidade moderno-colonial, ensinam
alternativas para coexistências regidas pela consciência da interdependência entre todas as formas de
vida entre si e com a Terra e o Cosmos. Da abertura a essas alternativas, que ensejam a práxis e o
diálogo interculturais, emergem conhecimentos, práticas educativas (escolares/acadêmicas ou não),
ações de sustentabilidade, bem como formas diversas de resistências socioculturais e políticas. Neste
sentido, o Conversatório 1 buscou compartilhar narrativas de interculturalidade, desde experiências
fundadas em, ou que estabelecessem diálogos com, cosmologias, epistemologias, vivências e práticas
indígenas e de outras populações e comunidades tradicionais, de modo que colaborassem não só com o
aprofundamento da concepção, mas, principalmente, com formas de ação no mundo, em diferentes
campos sociais.
Fundados nessas diretrizes, os treze trabalhos que compuseram o Conversatório 1, trouxeram
para a reflexão coletiva experiências situadas diversas, que nos dão uma ideia da importância da
interculturalidade crítica como perspectiva para entender e atuar no mundo social.
Desde o campo educativo, Ingrid Alfredo Carvalho apresenta suas reflexões sobre a “Educação
escolar indígena Magüta: bilinguismo na Terra Indígena Vila Betânia-Mecürane”, destacando a intrínseca
relação entre línguas, saberes, educação e território desde experiências do povo Magüta-Tikuna. A
autora ressalta como a luta pelo território foi fundamental para pensar processos educativos escolares
bilíngues e diferenciados, como garante a Constituição brasileira, uma vez que, segundo Ingrid, “sem
terra não há como lutar pela educação e pela saúde da população”. É nos contatos entre povos, línguas
e conhecimentos que vislumbramos sua compreensão de interculturalidade e como esses encontros
devem ser considerados nos processos educativos escolares indígenas. Para a autora, “a importância do
ensino bilíngue Tikuna no processo de ensino e aprendizagem tem um grande papel para uma educação
promissora e de qualidade para o seu resgate de cultura da comunidade em questão ou mesmo para as
outras que queiram conhecer e aprender a língua materna Tikuna”.
É também a partir de uma experiência educativa que Taynã Andrade Tupinambá, Ana Cláudia
Vieira Braga e Francisco Darci Feitosa apresentaram a importante iniciativa do “Espaço cultural
Tupinambá em Olivença: a rua é nossa aldeia”. Como definem as autoras e o autor, o espaço, situado
em Ilhéus, na Bahia, “é considerado uma reação à limitação e distorção da propagação da cultura
Tupinambá originária nos territórios, comunidades e aldeias demarcadas e para Taynã é um refúgio em
seu próprio território”. Liderado por Taynã Tupinambá, o espaço quebra os rigores da educação
institucionalizada e leva para a rua o “território total” dos povos originários, mostrando alternativa para
uma educação que alcance a todas as pessoas e rompa com padrões coloniais de produção de
conhecimento, alcançando a ancestralidade da cultura Tupinambá, em processos educativos que
acontecem nas praias, nas ruas, nas estradas nas matas e em muitos outros territórios. Nesta lógica,
conforme as autoras e o autor, “o espaço exorta a cultura viva e em constante transformação e também

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abraça causas recentes de demarcação de terras originárias, do exercício de uma interculturalidade
crítica na educação formal e informal, da valorização dos saberes ancestrais, do exercício do direito da
autodeclaração indígena”.
Emylia da Costa, Thaís Silva, Denise de Souza e Danilo Kato, ao trazerem para o Conversatório o
trabalho “Que histórias (não) contam a paleontologia? As bionarrativas sociais como potencialidade para
uma educação transdisciplinar decolonial”, apresentam uma experiência educativa na área da
Paleontologia, no curso de Licenciatura Em Educação do Campo, da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro, a partir de uma reflexão crítica sobre conhecimentos científicos hegemônicos perpassados por
marcadores sociais, como gênero, raça e classe, que historicamente têm servido para a subalternização
de conhecimentos e saberes diversos. Nesta direção, a experiência apresentada se funda em saberes
diversos de comunidades não hegemônicas, partindo da realidade cotidiana desses grupos, assumindo
uma orientação intercultural e descolonizadora para as práticas pedagógicas e políticas locais. A
experiência em questão, nomeada Bionarrativas Sociais, parte da escuta sensível da realidade, dos
conhecimentos e da cosmopercepção dos sujeitos e suas comunidades para pensar o conhecimento
paleontológico, revelando como o conhecimento não é neutro ou livre de perspectivas e, principalmente,
como está profundamente vinculado ao território, abrindo caminho para alternativas educativas
transdisciplinares e decoloniais.
Também a partir do campo educativo, Silvana Bastos e Anelise Rizzolo apresentam reflexões
sobre “A interculturalidade na formação em justiça climática de jovens quilombolas, indígenas,
pescadores e agricultores familiares do Tocantins”. As autoras destacam como a crise climática no Brasil
reflete desigualdades e injustiças sociais, projetadas na falta de representação de povos e comunidades
tradicionais nos espaços de negociação e acordos sobre a agenda climática. A partir desta importante
constatação, apresentam as bases pedagógicas do Curso Modular em Justiça Climática, direcionado a
jovens representantes indígenas, quilombolas, pescadores, assentados e acampados, além de
agroextrativistas do estado do Tocantins. Fundada nos princípios e práticas da educação popular, a
dimensão intercultural desta experiência reside, principalmente, na compreensão de que os temas de
estudo “devem emergir da realidade e seu significado para os participantes e promover o encantamento
necessário para mobilizar ação voltada ao bem comum”, uma vez que cada um dos grupos envolvidos
tem suas próprias perspectivas e relações com o meio ambiente e os impactos gerados pela crise
climática.
A partir do trabalho “Interculturalidade e a formação dos povos do campo”, Pedro Fernando dos
Santos e Maria da Conceição Fernandes de França partem da ideia de que o campo é compreendido
como algo além do espaço geográfico e colocam em relevo dimensões como pertencimento,
significações e formação identitária dos povos que nele habitam e identificam a dimensão intercultural na
diversidade das manifestações culturais, saberes e práticas cotidianas a partir das quais essas
identidades são construídas. Partindo desta concepção, o autor e a autora apresentam experiências de
educação intercultural e decolonial e, a partir das narrativas dos/as participantes, constatam o desejo
dos/as estudantes de aprenderem a partir de seus contextos e a importância da interlocução de saberes,
de modo a manter a dinamicidade intercultural entre os diversos sujeitos envolvidos nestes processos.

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Samanta Madruga e Anelise Rizzolo apresentam suas reflexões a partir das “Narrativas e
histórias de vida de mulheres lideranças de uma cozinha solidária”, concebida como um espaço de
resistência e enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional, situação agravada no Brasil nos
últimos quatro anos. Trata-se, segundo as autoras, de um espaço promotor de soberania, segurança,
inclusão e educação popular. Neste contexto, Samanta e Anelise buscam dar visibilidade às narrativas
interculturais de mulheres pretas, periféricas, cozinheiras e coordenadoras de uma cozinha solidária,
assumindo essas narrativas como práxis de produção de saberes culturalmente relevantes, que
valorizam o conhecimento popular vivenciado no cotidiano e que dialogam com o projeto decolonial, uma
vez que se trata de um lócus de luta contra estruturas hegemônicas de poder/saber em favor de
cosmovisões que ressignificam cultura, produção, território, comida e, principalmente, potencializam
solidariedade e apoio a mulheres negras. As cozinhas solidárias tornam-se, portanto, um espaço que
produz pedagogias interculturais e decoloniais.
Partindo da arte para pensar a realidade, Renan Campos, Amanda de Andrade, Amanda da
Silva e Kaiser Schwarcz apresentaram o trabalho “Outros nomes para o mundo: ciências, literatura e
educação em um estudo integrador sobre racismo científico”. Em suas reflexões, os autores e as autoras
trazem uma análise da instigante obra “Floresta é o nome do mundo”, de Ursula K. Le Guin, ressaltando
como o colonialismo presente na narrativa reflete o colonialismo que estrutura o mundo moderno colonial
e seus processos de hierarquização e subjugação de tudo aquilo que é construído como diferente pela
perspectiva dominante. Como os autores e autoras identificam na narrativa sob análise, “desde a
aparência à cultura, tudo o que cause estranhamento aos colonizadores se torna pretexto para o
estabelecimento forçado no planeta de um sistema imperialista.” Em sua análise, os autores e autoras
destacam criticamente o papel que a ciência hegemônica exerce nos processos de dominação colonial,
uma vez que instrumentaliza saberes e vocabulários em situação de exploração que a justifique. A
interculturalidade é aqui trazida à discussão ao mostrar como os diferentes pontos de vista narrativos na
obra revelam zonas de tensão, de encontro e diálogo entre culturas, de modo que “o outro estático da
diferença deixa de existir, emergindo sujeitos com culturas e complexidade muito diferentes do ponto de
vista colonialista. Tais sujeitos têm muito a nos ensinar e suas vozes continuam ecoando no meio de
Floresta em busca de ouvidos atentos para serem ouvidos.”
Pensando, também, na arte produzida no espaço intercultural, Thiago Sampaio Rosa apresenta
suas reflexões sobre “O poder da palavra: uma perspectiva de educação decolonial a partir do rap
indígena”, por meio das quais reconhece o poder de alcance da música como importante ferramenta de
luta e de transformação. Especialmente através do rap, o autor destaca como jovens artistas indígenas
têm se apropriado da cultura hip hop e de tecnologias de comunicação, criando frentes de luta contra
desigualdades. Reconhecendo o rap indígena como um fenômeno transgressor, intercultural e
transcultural, Thiago o entende como um “importante recurso para construção de um novo panorama de
valorização de epistemes socialmente negadas” e como “um caminho da construção de uma perspectiva
de educação decolonial”.
Patricia Santos Santana e Lívia Alessandra Fialho da Costa também buscam na arte elementos
para pensar a realidade, através de “Narrativas (auto)biográficas de mulheres negras: entre processos

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educativos e sexonegação”. Em suas reflexões, as autoras problematizam hierarquizações e violências
contra corpos femininos negros originadas nas intersecções entre gênero e raça, tendo como motivação
a leitura crítica do romance “Niketche: uma história de poligamia”, da autora moçambicana Paulina
Chiziane. É a partir de categorias que emergem no romance que Patrícia e Lívia buscam estudar
aspectos da vida de mulheres negras brasileiras e de como certos contextos sociais são lugares de
produção da sexonegação, ou seja, da negação do feminino e da subjugação e do controle que recaem
sobre esses corpos e que não deixam de ser construções sociais reproduzidas e reafirmadas
cotidianamente, como a família, as instituições de poder e o matrimônio.
Partindo dos conhecimentos de populações tradicionais, mais especificamente das
rezadeiras, Andréa Gonçalves da Luz apresenta o trabalho “O ofício das rezadeiras de tradição:
preservação de uma memória ancestral”, no qual destaca a situação preocupante de redução deste
grupo de tradições, que compromete a transmissão intergeracional de uma rica herança ancestral que,
conforme a autora, é a responsável pela base de sustentação de uma gente resistente, já que se pauta
no cuidado e na cura. Andréa destaca como as rezadeiras são parte da história não só de cada brasileiro
e brasileira, como da própria história do Brasil, uma das razões para a preservação deste legado
epistêmico e cosmológico. Nesta mesma direção, Lídia Mejia apresenta o trabalho “Mulheres raizeiras e
mulheres benzedeiras do cerrado, saberes tradicionais”, no qual destaca como os “saberes tradicionais
das plantas medicinais, que compõem o universo de curas e cuidados tradicionais brasileiros, originários
da cultura indígena e africana e europeia, estão presentes em ritmos e intensidades distintas por todo o
território brasileiro”, saberes esses que, sob a égide da modernidade/colonialidade têm sido limitados,
interferindo em sua transmissão oral e nas complexas interações com o sagrado, a natureza, o cosmos e
os territórios. A partir desta constatação, Lidia recorre a mulheres raizeiras e benzedeiras do cerrado para
compreender sua força de resistência e também as bases do que chama de pedagogia corpo-territorial,
que tem ampliado e consolidado as redes para a transmissão desses saberes e aberto caminhos para
formas de ensinar e aprender interculturais e decoloniais.
Compreendida desde uma perspectiva crítica, a ideia de interculturalidade também nos impõe a
necessidade de pensar seus limites e conflitos inerentes, especialmente nos territórios e corpos
marcados pela experiência colonial. Nesta direção, o trabalho apresentado por Ana Luiza Martins Silva,
“Ideologias e políticas linguísticas em processo penal com réus indígenas: um estudo de caso”,
problematiza as reiteradas negativas ao pedido de habeas corpus de réus indígenas, no que se refere à
tradução do processo para a língua Kaingang, desde seu julgamento em primeira instância, até o
julgamento no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), já em 2019, meses depois de o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) editar a Resolução n. 287, que tem por finalidade estabelecer procedimentos específicos
destinados ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e
dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário.
Conforme destaca a autora, “esta situação impõe urgentes reflexões sobre como o direito, como campo
de atuação e controle social, precisa se abrir para uma práxis intercultural, de modo que possa servir a
uma democracia cultural e linguisticamente diversa”.

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Nesta mesma direção, Sara França Eugênia apresenta o trabalho “A solução indígena para o
problema da educação: uma reflexão sobre a falta de efetividade dos direitos indígenas no Brasil”, a
partir de uma experiência educativa num curso de formação superior intercultural indígena. Nesta
experiência de educação intercultural, constatou-se o descompasso entre direitos indígenas garantidos
nas leis e a realidade na qual, segundo os/as estudantes indígenas, esses direitos não são usufruídos.
Em suas reflexões, a autora problematiza os ideais humanistas, democráticos e altruístas que subjazem
as leis, já que, na prática, continuam operando na perpetuação de estruturas de poder desigual e de
opressão. Ao reconhecer que os povos indígenas vivem a partir de outras lógicas de estar e entender o
mundo, Sara reconhece que não há uma resposta fácil para o dilema identificado, mas aponta para a
importância do diálogo intercultural com diferentes cosmologias como uma alternativa viável, inclusive
sobre as leis e sua aplicação, num país marcado pela diversidade de culturas.
Os trabalhos apresentados no Conversatório 1 suscitaram conversas muito importantes, pautadas
pela criticidade, especialmente sobre o que cada um dos contextos e experiências destacadas tem a
contribuir em espaços hegemônicos de poder e produção de conhecimento, como a universidade. De
maneira geral, os/as participantes entendem como fundamental a necessidade do diálogo intercultural,
compreendido como diálogo interepistêmico, ou seja, que essas experiências originadas nas
cosmologias, vivências e sabedorias de povos indígenas, populações tradicionais e periféricas não sejam
cooptadas para controle e, assim, se tornem esvaziadas dos seus contextos de produção,
profundamente marcados pela luta coletiva. Enfim, os trabalhos e a conversa gerada a partir deles
reafirmam a importância de agirmos para transformação de nossas compreensões e ações de modo que
concretizemos a possibilidade de um mundo em que caibam vários mundos.

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AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Renan Rodrigues Campos


Amanda Bandeira de Andrade Outros nomes para o mundo: ciências, literatura e educação em um
14
Amanda Luzia da Silva estudo integrador sobre racismo científico
Kaiser Dias Schwarcz

Emylia Angélica da Costa


Thaís Ferreira Bessas Silva Que histórias (não)contam a paleontologia? As bionarrativas sociais
18
Denise Caroline de Souza como potencialidade para uma educação transdisciplinar decolonial
Danilo Seithi Kato

O ofício das rezadeiras de tradição: preservação de uma memória


Andréa Gonçalves da Luz 21
ancestral

Ideologias e políticas linguísticas em processo penal com réus


Ana Luiza Martins Silva 24
indígenas: um estudo do caso Kaingang

Mulheres raizeiras e mulheres benzedeiras do cerrado, saberes


Lidia Mejia 27
tradicionais

Educação escolar indígena Magüta: bilinguismo na Terra Indígena Vila


Ingrid Alfredo Carvalho 30
Bet Nia-Mecürane

Taynã Andrade Tupinambá


Ana Cláudia Vieira Braga Espaço Cultural Tupinambá em Olivença: a rua é nossa aldeia 33
Francisco Darci Feitosa

A interculturalidade na formação em justiça climática de jovens


Silvana Bastos
quilombolas, indígenas, pescadores e agricultores familiares do 37
Anelise Rizzolo
Tocantins

Pedro Fernando dos Santos


Maria da Conceição Interculturalidade e a formação dos povos do campo 40
Fernandes de França

O poder da palavra: Uma perspectiva de educação decolonial a partir do


Thiago Sampaio Rosa 43
rap indígena

Patricia Santos Santana


Narrativas (auto)biográficas de mulheres negras: entre processos
Lívia Alessandra Fialho da 46
educativos e sexonegação
Costa

A solução indígena para o problema da educação: uma reflexão sobre a


Sara França Eugênia 50
falta de efetividade dos direitos indígenas no Brasil

Samanta Winck Madruga Narrativas e histórias de vida de mulheres lideranças de uma cozinha
53
Anelise Rizzolo solidária

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OUTROS NOMES PARA O MUNDO: CIÊNCIAS, LITERATURA E EDUCAÇÃO EM UM ESTUDO
INTEGRADOR SOBRE RACISMO CIENTÍFICO1

Renan Rodrigues Campos


Graduando do curso de Licenciatura em Letras - Língua Espanhola pelo IFB. Possui bolsa de PIBIC vinculada a
este trabalho. renan.campos@estudante.ifb.edu.br

Amanda Bandeira de Andrade


Graduanda do curso de Letras - Língua Espanhola, pelo IFB. Realiza pesquisa vinculada a este trabalho.
amanda.andrade1@estudante.ifb.edu.br

Amanda Luzia da Silva


Mestra em Literatura Hispano-americana pela USP, professora de Literatura no IFB, doutoranda em Teoria Literária
pela Unicamp. amanda.luzia@ifb.edu.br

Kaiser Dias Schwarcz


Doutor em genética e biologia molecular pela Unicamp. Professor no Instituto Federal de Brasília (IFB). Membro do
NEABI do campus Recanto das Emas. Coordena o projeto de extensão do Círculo de Leitura sobre ficção científica
e o projeto de pesquisa "Ficção Civilizadora: ensino por investigação em um diálogo entre ciência e literatura".
kaiser.schwarcz@ifb.edu.br

Introdução

A partir de uma análise literária do livro Floresta é o nome do mundo (The Word for World Is
Forest, 1972), de Ursula K. Le Guin, busca-se investigar como o colonialismo presente na narrativa
permite revisitar os processos históricos de construção de discursos do racismo científico. Em um futuro
no qual a Terra é já um ambiente devastado e todos sofrem com a escassez de recursos naturais, a
história narra o processo colonialista interplanetário em Athshe, um planeta onde há condições muito
favoráveis à exploração e à colonização.
No planeta, os invasores encontram vida inteligente que exploram como mais um recurso natural,
utilizando de meios violentos e tecnologias de escravização em massa. Os protagonistas e narradores da
história são os terranos Davidson e Raj Lyubov, respectivamente um capitão que se ocupa da exploração
colonial e um antropólogo que estuda a cultura nativa; e Selver Thele, um athsheano representante
místico de seu povo forçado a trabalhar para os terranos. A mobilidade da perspectiva entre as três
personagens oferece ao leitor a oportunidade de observar os fatos não apenas pelo olhar do sujeito
estrangeiro (do homem branco e colonizador), mas também pelo ponto de vista dos seres humanoides
de Athshe.
Tradicionalmente, os nativos se organizavam em uma sociedade pacifista gerida pelas fêmeas e
consciente da importância da preservação dos recursos naturais. Le Guin constrói uma crítica aos
processos colonizadores, debatendo temas incontornáveis para a ciência, para a literatura e para a
educação; entre eles, o recurso às diferenças biológicas entre terranos e athsheanos para validar o uso
da exploração do trabalho no ambiente colonial. Desde a aparência à cultura, tudo o que cause
estranhamento aos colonizadores se torna pretexto para o estabelecimento forçado no planeta de um
sistema imperialista.
1 Trabalho financiado pelo Instituto Federal de Brasília e por bolsa PIBIC da FAPDF.

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Propõe-se aqui analisar fragmentos do texto nos quais são realizadas comparações entre as duas
espécies/culturas, a fim de observar a instrumentalização do vocabulário e do saber científico em
situações de exploração. Ao investigar essa proximidade entre ciência e racismo no texto de Le Guin, os
paralelos entre o colonialismo e a exploração do trabalho humano aparecem justificados em discursos
pretensamente científicos.

Colonialismo

Gestado durante a guerra dos EUA contra o Vietnã do Norte, o texto é uma ficção científica (FC)
muito influenciada pelo contexto desse conflito de origem colonial. Em Floresta, os invasores reforçam
as diferenças entre humanos e athsheanos, referendando estereótipos científicos que ratifiquem a
superioridade daqueles sobre estes. “O outro” é um “crechie” (uma criatura), um selvagem, um bárbaro,
que precisa ser controlado, adequado, civilizado.

Giro decolonial e racismo científico

No texto de Le Guin, a régua neutra dos terranos não se interessa pelos aspectos subjetivos do
mundo athsheano. Desde o âmbito da ficção, o discurso do capitão Davidson parece regurgitar o
colonialismo europeu que subjugou e escravizou povos em diferentes partes de nosso planeta, sob um
pressuposto de hegemonia cultural plasmada na ideia de uma superioridade física, moral e cultural da
Europa. A ideia de sobrepor uma cultura a partir de uma cultura dominante, acontece no cenário fictício
de Athshe. Davidson não apenas domina o território com seu povo, como também, se vê como alguém
superior. Ele não respeita os costumes dos nativos e, ao longo da narrativa, é notório seu desprezo.
Como descrevem Candau e Sacavino, o giro decolonial veio como uma resposta a demandas por novas
epistemologias para interpretar os processos históricos, culturais e econômicos do colonialismo moderno
e de sua manutenção pela via da colonialidade:
o colonialismo é mais do que uma imposição política, econômica, militar, jurídica ou
administrativa. Este, na forma da colonialidade, do poder, do saber e do ser, segundo os
autores decoloniais, chega às raízes mais profundas de um povo e sobrevive apesar da
descolonização dos países latino-americanos. (CANDAU, 2020, p. 14-15)

Em um mundo imaginado, Le Guin demonstra de forma tácita a permanência da colonialidade,


sobretudo em sua referência à guerra do Vietnã, na qual se acreditava que os EUA não teriam
dificuldades de vencer a guerra pela superioridade de sua força física, cultural e tecnológica.
Representando este pensamento, o Capitão Davidson é a síntese da lógica biológica
essencialista como base do discurso colonial e imperialista. Nota-se, por exemplo, um debate entre as
ideias de monogenismo e poligenismo - origem comum ou independente das etnias -, controvérsia
superada no meio acadêmico, mas com frequentes ressurgências no senso comum. No romance, há um
debate caloroso sobre a origem comum de athsheanos e terranos, os quais seriam descendentes de
uma mesma cadeia evolutiva.

15
Contudo, tal como a guerra do Vietnã foi um momento histórico permeado por reveses, o texto de
Le Guin coloca em cena outras perspectivas narrativas para contrastar com o hegemonismo cultural de
Davidson.

Perspectivismo narrativo e interculturalidade

Em Floresta, a perspectiva colonialista do capitão Davidson é rompida pela de Lyubov que,


apesar de terrano, se interessa pela língua e pela cosmovisão athsheana, buscando estabelecer um
diálogo com esse outro, cuja organização social matrifocal lhe parece fascinante e tem muito a ensinar.
É a partir de Lyubov que se compreende que o conflito estabelecido entre os invasores terranos e a
população nativa de Athshe vai muito além das diferenças biológicas, estendendo-se ao imaginário
cultural.
Para Charles Taylor (2004), imaginários são esquemas cognitivos amplamente compartilhados
pelos membros de uma sociedade:
A forma como as pessoas imaginam sua existência social, como se ajustam aos outros,
como as coisas acontecem entre elas e seus companheiros, as expectativas que são
normalmente atendidas e as noções normativas e imagens mais profundas que
fundamentam essas expectativas. (TAYLOR, 2004. p. 32, tradução nossa)

Le Guin mostra os terranos dominados por um imaginário ultra-utilitarista, parábola do conflito


entre culturas nativas e tecnocratas, que ressoa tanto o colonialismo francês no Vietnã quando o
genocídio indígena nas Américas.
O imaginário dos athsheanos, ao contrário, é repleto de valores simbólicos que favorecem o
equilíbrio ambiental e espiritual. Destaca-se a importância dos sonhos para os nativos, não como um
mero subproduto sem valor de um aparelho psíquico deixado ocioso, mas como um fenômeno que
funciona tanto como referencial interpretativo para os acontecimentos do mundo desperto quanto como
elemento de unidade na existência social de todos os athsheanos. Os sonhos revelam a Selver e a seu
povo o perigo que os terranos significam para o planeta, profetizam uma espécie de Queda do Céu, em
sintonia com Davi Kopenawa. Nenhuma decisão é tomada pelas anciãs athsheanas sem que antes
sejam consultados os 'sonhadores', homens nativos treinados na interpretação dos sonhos:
quando as chefes enviavam suas jovens portando mensagens, as cartas iam de Casa a
Casa e os Sonhadores as interpretavam para as mulheres mais velhas, assim como era
feito com os demais documentos, rumores, problemas, mitos e sonhos. Mas acreditar ou
não era sempre escolha das Anciãs. (LE GUIN, 2020, p. 35)

A forma como Le Guin imagina a cultura athsheana e sua relação com os sonhos e com o tempo
foi influenciada pelos estudos sobre a cultura de povos nativos da América do Norte. Embora a autora
não tivesse conhecimento das culturas dos povos nativos da América do Sul, podemos encontrar
semelhanças entre o imaginário criado por ela para os athsheanos e a relação, apontada por Hanna
Limulja, que o povo Yanomami estabelece com seus sonhos.
Os três pontos de vista se alternam estabelecendo zonas de tensão, de encontro e de diálogo
entre culturas, permitindo ao leitor transitar entre perspectivas diferentes. Desse pluralismo, o outro
estático da diferença deixa de existir, emergindo sujeitos com culturas e complexidade muito diferentes

16
do ponto de vista colonialista. Tais sujeitos têm muito a nos ensinar e suas vozes continuam ecoando no
meio de Floresta em busca de ouvidos atentos para serem ouvidos.
Esperamos que um diálogo maior com a concepção intercultural possa enriquecer nosso trabalho,
revelando os melhores caminhos para utilizar a ficção de Ursula K. Le Guin como ponto de partida lúdico
para discutir multiculturalidade e interculturalidade na sala de aula do ensino básico.

PALAVRAS-CHAVE: Ursula K Le Guin. ficção científica. colonialismo. racismo científico.

REFERÊNCIAS
CANDAU, Vera Maria. Pedagogias Decoloniais e Interculturalidade: Insurgências. Rio de Janeiro:
APOENA, 2020.
LE GUIN, Ursula K. Floresta é o nome do mundo. São Paulo: Editora Morro Branco, 2020.
TAYLOR, Charles. Modern social imaginaries. Duke University Press, 2004.

17
QUE HISTÓRIAS (NÃO)CONTAM A PALEONTOLOGIA? AS BIONARRATIVAS SOCIAIS COMO
POTENCIALIDADE PARA UMA EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR DECOLONIAL

Emylia Angélica da Costa


Doutoranda em Educação (UFTM) e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Interculturalidade e Educação
em Ciências (GEPIC). emyliaac@yahoo.com.br

Thaís Ferreira Bessas Silva


Mestranda em Educação em Ciências e Matemática (UFTM) e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Interculturalidade e Educação em Ciências (GEPIC). thaisfbessas@gmail.com

Denise Caroline de Souza


Doutoranda em Educação (UFTM) e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Interculturalidade e Educação
em Ciências (GEPIC). denise.caroline@gmail.com

Danilo Seithi Kato


Doutor em Educação Escolar, Docente da Licenciatura em Educação do Campo/UFTM, e integrante do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Interculturalidade e Educação em Ciências (GEPIC). danilo.kato@uftm.edu.br

Introdução

Que imagem nos vem à cabeça, quando nos questionam sobre Paleontologia? Essa foi a primeira
pergunta feita aos(às) discentes de Licenciatura em Educação do Campo (LECAMPO), modalidade
Ciências da Natureza, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), ao iniciarmos nossa
primeira aula da disciplina de Paleontologia. Como era esperado, a maioria respondeu que a
Paleontologia tem como foco os estudos dos fósseis e dos dinossauros. Mencionamos que este
resultado era esperado, visto a visão reducionista, disciplinar, na qual essa área de conhecimento é
representada pelo senso comum. O ensino de Paleontologia, dada a sua natureza multidisciplinar, é uma
ciência que analisa o passado através da morte e da extinção como regra, nos permite olhar o presente e
apontar um futuro por meio das lentes da diversidade, do tempo e da evolução, entendendo o sobreviver
como resistência. Contudo, o conhecimento paleontológico é distante das realidades escolares,
predominantemente restrito a centros de pesquisa, museus e atividades acadêmicas.
Diante dessa realidade, como pensar em possíveis aproximações dos conhecimentos
paleontológicos às comunidades distantes dos grandes centros? Como propiciar que estudantes de
grupos não hegemônicos tenham acesso a artefatos paleontológicos, a partir de suas realidades? Por
meio desses questionamentos apostamos em um ensino transdisciplinar. Neste trabalho, buscou-se a
transdisciplinaridade decolonial. Para atingir tal feito, é necessário que se contemple a combinação de
alguns elementos, tais como: questionar os saberes hegemônicos; a problematização dos conceitos de
raça, gênero, classe e qualquer outro marcador social que sirva para promover uma diferenciação
hierárquica entre seres humanos; utilizando articulação de problemas de diversas esferas por meio de
variadas expressões – de conhecimento e criativa – incluindo saberes diversos das comunidades não
hegemônicas, partindo da realidade cotidiana; e que denotam uma orientação decolonizadora, esses
elementos culminam numa atitude que visa se apropriar criticamente da utilização de diversas disciplinas

18
e metodologias, a fim de construir novas práticas pedagógicas e políticas locais em uma perspectiva
decolonial (MALDONADO-TORRES, 2016).
Assim, o emaranhado desses elementos é uma potência para a consolidação de espaços
transdisciplinares decoloniais. Propomos a construção de Bionarrativas sociais (BIONAS) como uma
possibilidade para uma educação transdisciplinar decolonial.

Os primeiros vestígios: a organização da disciplina de Paleontologia

A disciplina de Paleontologia é ofertada pela LECAMPO no 8º período. A turma de 2022, cuja


experiência é narrada aqui, possui discentes que vêm de Uberaba, do norte de Minas Gerais e do Sul da
Bahia, de comunidades tradicionais e assentamentos. A LECAMPO está fundamentada na pedagogia da
alternância, proposta oriunda dos movimentos sociais ligados à terra, que levam os sujeitos do campo a
se reconhecerem e a valorizarem sua identidade. Apoia-se em um currículo organizado em um tempo-
espaço, ou seja, apresenta suas atividades formativas em um tempo universidade e um tempo
comunidade. A experiência relatada parte da escuta sensível da realidade dos participantes da disciplina
e na construção conjunta de um diálogo intercultural entre a cosmopercepção dos sujeitos e dos
conhecimentos próprios de suas comunidades e o conhecimento paleontológico.
Um dos momentos marcantes na formação durante a disciplina de Paleontologia foi a visita no
Museu dos Dinossauros, localizado na comunidade rural de Peirópolis, em Uberaba-MG. Este território é
mundialmente conhecido como um dos maiores sítios paleontológicos brasileiros, e possui histórias de
contribuições científicas e econômicas, mas também de conflitos. Ao visitar Peirópolis, os(as) discentes
tiveram acesso aos conhecimentos científicos produzidos neste território, mas também às histórias (não)
contadas em livros didáticos ou pelas guias do Museu, que perpassam os conflitos socioambientais
locais, o racismo e a história de vida e conhecimentos dos moradores locais. Entendemos que o
conhecimento científico produzido localmente não é neutro e discutiu-se como a produção de
conhecimento está vinculada ao território. Esse diálogo possibilitou que os(as) discentes pensassem no
Ensino da Paleontologia considerando os fatores axiológicos que o abarcam.

Movendo os sedimentos coloniais

Ao se considerar possibilidades para cessar o distanciamento do conhecimento paleontológico


das realidades das escolas do campo e propor discussões sobre Paleontologia com as(os) discentes que
dialogassem com suas vivências/experiências e de seus territórios, exploramos o processo de
construção das BIONAS dentro da disciplina de Paleontologia, com o objetivo construir narrativas plurais
acerca das questões que atravessam as biodiversidades e culturas e que podem atuar como potência
em processos formativos e educativos (KATO, 2020). A partir de uma interlocução entre sujeitos e
territórios que fizesse sentido na perspectiva da pedagogia da alternância, e em concordância com as
discussões e reflexões durante a disciplina, em contato com outras BIONAS como movimento de
diálogos entre o sujeito locutor, sua cultura e biodiversidade com os sujeitos interlocutores que se

19
propõem à leitura e, especialmente, com a saída de campo ao Museu dos Dinossauros, as/os discentes
foram encorajados a refletirem e escreverem sobre seus afetamentos científicos, sociais, raciais,
ambientais, políticos e culturais durante a disciplina.
O processo de construção de narrativas na forma de BIONAS é um processo formativo para
docentes de Ciências da Natureza e possibilita que conceitos científicos acadêmicos possam ser
pensados evidenciando as dimensões subjetivas dos sujeitos e dos territórios, sendo importante para
uma formação profissional mais sensível à diversidade cultural, que combata o racismo, sexismo,
xenofobias e demais desigualdades. As BIONAS evidenciam uma relação identitária que explica um
modo de ser e estar no mundo, relacionada às questões relativas à diferença cultural, desigualdades e
identidade docente (KATO, 2020). O presente trabalho parte da reflexão sobre o próprio processo de
construção das BIONAS por discentes, e apontamos como os afetos positivos e negativos interpelam
sujeitos durante a formação docente. As BIONAS se materializam tanto no processo narrativo de contar
a história vivida por uma perspectiva outra, como em produções de materiais didático-pedagógicos, como
os recursos educacionais abertos (REAs).
Ao final, dos REA produzidos percebemos em algumas narrativas figuras negras representadas e
também personagens regionalizados que narram a Paleontologia. Entretanto, esperávamos mais
elementos que pudessem retratar os territórios e suas biodiversidades. As BIONAS, enquanto processo
formativo e educativo na construção desta disciplina se mostraram como um momento transdisciplinar,
conforme Maldonado-Torres (2016), visto que é possível a sua não fixidez frente aos métodos
disciplinares do projeto colonizador. O ato de narrar a própria experiência nos pareceu de grande
potencial para uma educação que considera as dimensões afetivas, dialógicas e interculturais.

PALAVRAS-CHAVE: bionarrativas; paleontologia; decolonialidade.

REFERÊNCIAS
KATO, D. S. Caravana da diversidade: diferença cultural na formação de professores de biologia. In:
CHAVES, S. N., AMORIM, A. C. R., GASTAL, M.L. de A., BASTOS, S. N. D. Vidas que ensinam o
ensino da vida / Org. FERREIRA, M. S. [et al.]. – São Paulo: Editora Livraria da Física, 2020.
MALDONADO-TORRES, N. Transdiciplinaridade e decolonialidade. Revista Sociedade e Estado, v.31,
n.1, p.75-97, jan/abr. 2016.

20
O OFÍCIO DAS REZADEIRAS DE TRADIÇÃO:
PRESERVAÇÃO DE UMA MEMÓRIA ANCESTRAL

Andréa Gonçalves da Luz


Doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. PPG Psicossociologia de Comunidades e Ecologia
Social – EICOS. daluz32@yahoo.com.br

Introdução

O interesse pelo estudo sobre o ofício das rezadeiras surgiu acerca das lembranças de minha
infância, acompanhando minha bisavó rezando os moradores da localidade, preparando remédios,
confeccionando patuás, aconselhando e socorrendo. De início eram observações de uma rotina
corriqueira, pois esse era o nosso cotidiano, mas aos poucos, com a passagem do tempo, o cenário foi
mudando e as rezadeiras, figuras tão respeitadas e queridas, foram desaparecendo e com elas o seu
legado.
Hoje, retomo esta história com o olhar de pesquisadora e considero preocupante a redução deste
grupo de tradições, pois compromete a transmissão intergeracional de uma herança ancestral, que tem
resistido à passagem do tempo. As rezadeiras fazem parte não só da história do Brasil, mas da história
pessoal de cada brasileiro, pois eram representadas pela figura de nossas avós, que seguiam em sua
missão de transmitir pela oralidade, o conhecimento ancestral sobre a cura, como meio de preservação
desse legado.
Para entendermos o universo destas mulheres anciãs, é importante um retorno ao passado, a fim
de conhecer as suas origens e o importante papel que desempenharam na sociedade brasileira na época
da Colônia, perdurando até os dias de hoje como resistência cultural. Conhecer esse percurso histórico
nos permitirá entender a sua representação simbólica na atualidade e o legado deixado para as gerações
futuras, que podem ser considerados patrimônio imaterial.
O presente estudo ressalta a importância do resgate e da preservação dessa memória ancestral, a
fim de acessar as nossas origens e por meio delas nos reconhecermos como sujeitos históricos, pois
somos atravessados e marcados pela história de nossos antepassados.

Objetivos

Os objetivos desta pesquisa estão baseados nos estudos do processo de construção da


identidade cultural das rezadeiras e o seu legado, bem como, ressaltar a importância da preservação e a
difusão dessa memória ancestral. Para isto, considera-se: conhecer a trajetória de vida das rezadeiras
que estarão presentes nesta pesquisa, estudar o processo de formação da identidade cultural deste
grupo de tradições e registrar o legado histórico, criando um acervo dos elementos que compõem o
universo das mulheres rezadeiras.

21
Metodologia

Para o desenvolvimento deste estudo, foi escolhida a pesquisa participante, cuja proposta
metodológica apoia-se nos referenciais teóricos da memória social e da história oral. A partir do
levantamento de dados históricos e da pesquisa em campo, busca-se analisar o apagamento social da
tradição do ofício das rezadeiras e consequentemente o enfraquecimento de um legado, que resistiu por
séculos e ainda mostra-se presente e atual na vida do povo brasileiro, através das mulheres anciãs que
habitam nas regiões mais isoladas e empobrecidas, atuando de forma efetiva dentro das comunidades.

Resultados e discussões

A presente pesquisa segue em processo de coleta de dados, que ocorre a partir dos encontros
com as rezadeiras de tradição e estudos referentes às ervas e à espiritualidade. Por estar ainda em
desenvolvimento, não será possível a apresentação de resultados e conclusão final, porém muito já foi
produzido neste percurso e pode ser exposto neste congresso de forma consistente e dentro do contexto
do conversatório 1. Esta pesquisa é financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES.

Considerações

Este estudo tem base na história de todo brasileiro, as rezadeiras são parte da memória viva da
cultura popular de um país que é pura resistência, de um país colonizado, que, em seu desenvolvimento,
fez-se marcar por uma identidade calcada em uma história de sofrimento pela maneira como foi se
constituindo, mas também de beleza, ilustrada em suas terras e na sua gente forte. As rezadeiras são
aquelas que deram base para sustentar essa gente resistente.
No entanto, ao longo desta pesquisa, deparo-me com o questionamento acerca dos herdeiros que
não levaram adiante a sua missão e com isso a ciranda de nossas anciãs mágicas parou de rodar, mas
as mãos ainda estão entrelaçadas. Apesar de todas as pressões e opressões que estas mulheres
sofreram ao longo do tempo e ainda assim sobrevivem como grupo de resistência, com as mãos
entrelaçadas, vamos acessar em nossas origens o aprendizado que nos foi passado para seguir com a
transmissão e preservação deste legado. Afinal qual brasileiro não possui em sua árvore genealógica
uma rezadeira?

PALAVRAS-CHAVE: ofício das rezadeiras; memória social; práticas de cura.

REFERÊNCIAS
AYALA, Marcos e Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil: Perspectiva de análise. São Paulo:
Ática, 2006.

22
ARAÙJO, P Nunes. As rezadeiras: Quando fé possibilita a cura – o poder de cura das rezadeiras em
Teresina (1950-2000).
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade, lembrança de Velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
–––––. O tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial; 2003.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Vale do Rio dos Sinos: Editora UNISINOS, 2003.
CUNHA, Lidiane Alves da. Saberes e Religiosidades de Benzedeiras. Anais dos Simpósios da ABHR,
v. 13, p. 1-6, 2012.
DEL PRIORE, MARY. Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino. In: ______ (Org). História das
mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 48ª ed. Recife: Global Editora, 2003.
MIRANDA, Carlos Alberto. A Arte de curar nos tempos da colônia – Limites e espaços da cura. 3ª ed.
Recife: Editora UPFE, 2017.
MOURA, Elen Cristina Dias de. Entre ramos e rezas: o ritual de benzeção em São Luiz do Paraitinga,
de 1950 a 2008. 2009. Mestrado em Ciências da Religião, São Paulo, PUC.
OLIVEIRA, Elda Rizzo. Doença, cura e benzedura: estudo sobre o ofício da benzedeira em Campinas.
Campinas, SP, s.n,1983.
SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Ramos, Rezas e Raízes. A benzedura em Vitória da Conquista.
Mestrado em Ciências Sociais. PUC/SP, 1999.

23
IDEOLOGIAS E POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EM PROCESSO PENAL COM RÉUS INDÍGENAS: UM
ESTUDO DO CASO KAINGANG

Ana Luiza Martins Silva


Mestranda em Linguística no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Goiás. martins_ana@discente.ufg.br

As reflexões aqui elaboradas partem de uma compreensão de interculturalidade crítica que tem
sua genealogia fundada nas experiências e lutas dos povos originários do espaço geopolítico que
convencionou-se chamar de América Latina. Neste sentido, se funda no reconhecimento das diferenças
étnicas como um “espaço de resistência cultural e como lugar de construção de novas identidades
políticas” (TUBINO, 2004, p.151). Neste contexto, a ideia de interculturalidade, em sua perspectiva
crítica, surge como perspectiva e ação para demandas dos povos originários, como na educação, na
saúde, etc., mas vai muito além delas, ao levar em conta o necessário enfrentamento da estrutura
colonialista que funda as relações dos povos indígenas com os Estados-nação, visando a ruptura com
sua assimilação forçada e a usurpação de seus territórios e direitos coletivos básicos. A interculturalidade
se trata, portanto, de um projeto de transformação social radical com base no reconhecimento das
diversas identidades étnicas, como identidades políticas, que problematiza, antes de tudo, as causas
históricas do não diálogo, situando os conflitos do presente como consequências da estrutura colonial,
mais profunda e pervasiva. Como um projeto ético-político na contemporaneidade, busca,
necessariamente, a transformação das estruturas de iniquidade em democracia, partindo do pressuposto
de que “as democracias ou são interculturais ou não são democracias” (TUBINO, 2004, p. 152).
A partir desta perspectiva crítica de interculturalidade, este estudo busca problematizar a própria
ideia de democracia, a partir do estudo de caso de um processo judicial no qual 19 indígenas do povo
Kaingang, do Rio Grande do Sul, figuram como réus, acusados de homicídio, num conflito gerado na luta
pelo território indígena, no município de Faxinalzinho, em abril de 2014. Para além de toda a
complexidade que envolve o caso, o recorte analítico aqui adotado centra-se, especificamente, nos
pedidos de habeas corpus feitos pelas equipes de defesa dos acusados indígenas, demandando, em
síntese, a realização de laudo antropológico, para melhor compreensão da situação sociocultural dos
acusados; e a tradução de todo o processo judicial para a língua Kaingang, de modo que os acusados
pudessem melhor compreender e se defenderem de forma plena, no curso do processo, bem como a
presença de intérpretes, quando necessário.
O que nos chama a atenção para este caso são as reiteradas negativas ao pedido de habeas
corpus, no que se refere à tradução do processo para a língua Kaingang, desde seu julgamento em
primeira instância, até o julgamento no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), já em 2019, meses depois de
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editar a Resolução n. 287, que tem por finalidade estabelecer
procedimentos específicos destinados ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas
ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal
do Poder Judiciário, nos seguintes termos:

24
Art. 2º Os procedimentos desta Resolução serão aplicados a todas as pessoas que se
identifiquem como indígenas, brasileiros ou não, falantes tanto da língua portuguesa
quanto de línguas nativas, independentemente do local de moradia, em contexto urbano,
acampamentos, assentamentos, áreas de retomada, terras indígenas regularizadas e em
diferentes etapas de regularização fundiária. [...] § 2º Em caso de autodeclaração como
indígena, a autoridade judicial deverá indagar acerca da etnia, da língua falada e do grau
de conhecimento da língua portuguesa. Art. 5º A autoridade judicial buscará garantir a
presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em
todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte: I - se a língua
falada não for a portuguesa; II - se houver dúvida sobre o domínio e entendimento do
vernáculo, inclusive em relação ao significado dos atos processuais e às manifestações
da pessoa indígena; III - mediante solicitação da defesa ou da Funai; ou IV - a pedido de
pessoa interessada.2

Contudo, em 01 de outubro de 2019, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça apreciou o


habeas corpus em definitivo e decidiu que:
Sem embargo da necessária e benfazeja proteção constitucional aos direitos dos povos
indígenas, inclusive na condição de acusados em processo criminal, alcança especial
relevo o apontamento feito pelo Magistrado de primeiro grau, ao destacar ser "fato notório
que os indígenas da etnia Kaingang no contexto geográfico em que estão inseridos os
acusados relacionam-se diariamente com a comunidade envolvente nas mais diversas
áreas desde há muito tempo, o que acabou por ocasionar, ao longo do tempo, pleno
domínio da língua portuguesa, ao menos como forma de se comunicar com os não
indígenas" (fl. 111, grifei). Não desconheço o fato de estudos apontarem ser "praticamente
impossível atingir-se uma proficiência total em duas ou mais línguas, considerando-se as
quatro habilidades linguísticas (fala, escrita, compreensão auditiva e leitora) e cada um
dos seus subcomponentes linguísticos de cada língua (morfologia, sintaxe, semântica,
pragmática, discurso e fonologia)" (ZIMMER, Márcia; FINGER, Ingrid; SCHERER, Lílian.
Do bilinguismo ao multilinguismo: intersecções entre a Psicolingüística e a
Neurolinguística. Revel, vol. 6, n. 11, 2008, p. 4). Entretanto, não verifico a ocorrência de
constrangimento ilegal no cenário aqui apresentado, ou, pelo menos, nada está a indicar
uma situação de hipossuficiência linguística de tal monta a comprometer o direito à ampla
defesa dos acusados3.

Verifica-se que, em linhas gerais, o Poder Judiciário, em todas as oportunidades, negou o pedido
dos acusados que solicitavam que os autos do processo fossem traduzidos para o idioma Kaingang e
negou também a presença de intérprete durante a realização dos eventos presenciais (audiências para
depoimentos dos acusados e das testemunhas). As negativas se fundamentaram, essencialmente: 1) na
alegação de que não existe lei que justifique tais concessões, mesmo com a publicação da Resolução
antes da decisão do STJ; 2) no entendimento de que os acusados indígenas entendem o que foi dito e
têm condição de se comunicar valendo-se da língua portuguesa.
Em nossa compreensão, ao analisar o caso desde uma perspectiva dos estudos da linguagem,
entendemos que as decisões refletem e se constituem ideologias de linguagem que se articulam com
ideologias raciais, na interdição de direitos linguísticos que deveriam fundar uma democracia constituída
por povos cultural e linguisticamente diversos. Como destaca Woolard (2020, p. 1), as ideologias da
linguagem são as representações moral e politicamente carregadas da natureza, estrutura e uso das
linguagens em um mundo social. Como representações sociais, ligadas a interesses morais, políticos,
econômicos etc., as ideologias de linguagem podem ter efeitos reais na vida de pessoas reais. Como

2 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2959, acesso em julho de 2020.


3 O voto do Ministro do STJ, Rogerio Schietti Cruz, e demais decisões referentes ao caso estão disponíveis em:
https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?
seq=97463531&tipo=91&nreg=201701571703&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20191018&formato=PDF&salva
r=false, último acesso em abril de 2020.

25
destacam Rosa e Flores (2017, p. 10), esses efeitos podem “excluir populações racializadas do acesso a
oportunidades e recursos relativos à educação, ao emprego, à representação legal, ao asilo, à cidadania,
à migração”.
Segundo aponta Sílvio Luiz de Almeida (2019), o racismo é estrutural. A partir de tal constatação,
podemos compreender que o racismo é o cerne da organização política, econômica, jurídica e social que
conhecemos hoje no país, dando a estrutura necessária para a manutenção das relações de poder
historicamente construídas para assegurar a hierarquização racial, não podendo ser encarado como fator
isolado. Desta forma, a divisão hierarquizada de raças continua a ser um tópico essencial para a
discussão de desigualdades legitimadas, como também para a resistência de grupos historicamente
prejudicados pelos processos de colonização europeia e suas consequências contemporâneas. Neste
enquadre mais amplo, o conceito de racismo institucional constitui importante nicho de estudo das
relações sociais, a partir do qual o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado
como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere
desvantagens e privilégios com base na raça (ALMEIDA, 2019). Desse modo, em um país marcado
pelos suplícios decorrentes do racismo, um sistema jurídico que não tenha por objetivo minimizar os
prejuízos causados às etnias e raças subalternizadas está fadado a ser um sistema jurídico reprodutor
de práticas racistas já consolidadas.
A partir do estudo realizado até o momento, entendemos que os fundamentos invocados
juridicamente para negar o direito à língua previsto como garantia aos acusados indígenas submetidos
ao processo penal brasileiro, sustenta e dá continuidade a uma política linguística colonizadora,
historicamente vigente no Brasil, à qual subjazem ideologias de linguagem que se materializam em um
discurso assimilacionista, monolíngue e racializado. Esta situação impõe urgentes reflexões sobre como
o direito, como campo de atuação e controle social, precisa se abrir para uma práxis intercultural, de
modo que possa servir a uma democracia cultural e linguisticamente diversa.

PALAVRAS-CHAVE: povos indígenas; direito; ideologias de linguagem; interculturalidade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural.São Paulo; Pólen, 2019.
ROSA, J.; FLORES, N. Unsettling race and language: Toward a raciolinguistic perspective. Language
and Society, 46(5), 2017, p. 621-647.
TUBINO, F. Del interculturalismo funcional al interculturalismo crítico. In: M. SAMANIEGO; C. G.
GARBARINI, C. G. (eds.). Rostros y fronteras de la identidad. Temuco, Universidad Católica de
Temuco, 2004, p.151-164.
WOOLARD, Kathryn A. Language Ideology. In: The International Encyclopedia of Linguistic
Anthropology, 2020. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118786093.iela0217.
Acesso em 02 de novembro de 2022.

26
MULHERES RAIZEIRAS E MULHERES BENZEDEIRAS DO CERRADO, SABERES TRADICIONAIS

Lidia Mejia
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/ UnB – lydiamejia@hotmail.com

O Brasil é um país rico em saberes ancestrais, populares e tradicionais, frutos das experiências
de vidas que constituem a diversidade cultural brasileira, e desta emerge uma complexa rede de
conhecimentos, que constituem os saberes tradicionais e populares.
Os saberes tradicionais das plantas medicinais, que compõem o universo de curas e cuidados
tradicionais brasileiros, originários da cultura indígena e africana e europeia, estão presentes em ritmos e
intensidades distintas por todo o território brasileiro. No entanto, desde império, sob o paradigma da
modernidade aliado à necessidade de expansão do capitalismo, buscou-se limitar a rede de saberes, que
se replicava pela transmissão oral entre indivíduos, comunidades, em complexas interações com o
sagrado, a natureza, territórios e cosmo compondo um universo subjetivo, particular dos modos de vida
dos saberes tradicionais e populares. Esses saberes apesar de não estarem inseridos em uma categoria
do conhecimento científico, na educação escolar, permeiam o cotidiano da sociedade brasileira, fruto dos
conhecimentos desenvolvidos com as experiências de vida. Nesse sentido, direciona para a diversidade
de saberes comumente tipificados como sabedoria popular, cuja construção e transmissão de
conhecimentos estão calcadas em suas práticas, em seus fazeres da vida cotidiana (BRANDÃO, 1985).
É nesse universo de práticas de curas e cuidados, dos modos de vida tradicionais, com o uso de
plantas medicinais do cerrado, que se inserem os saberes e fazeres das mulheres raizeiras e mulheres
benzedeiras do Cerrado, que resistem à discriminação, subalternização e marginalização de seus
saberes, mas que perpetuam seus saberes e fazeres às novas gerações, em uma pedagogia própria.
Compreender como se constitui o processo de formação e perpetuação de saberes tradicionais
das mulheres raizeiras e benzedeiras, quais conflitos são vivenciados frente aos novos processos de
modernização dos territórios do bioma Cerrado, e de que maneira seus saberes resistem e se
ressignificam em um processo contínuo de (re)existência são pontos importantes para entender,
conforme Beth Lozano (2016), as maneiras pelas quais as comunidades recriam seus mundos materiais
e simbólicos e, a partir daí, enfrentam desigualdades, constroem redes solidárias e perpetuam seus
saberes.
A partir deste repertório de saberes tradicionais, dedico apresentar breve reflexão do processo
formativo e de perpetuação de saberes a partir das entrevistas e das narrativas de 5 mulheres: 2
raizeiras, sendo uma pertencente à Articulação Pacari e 3 mulheres benzedeiras do Cerrado,
pertencentes à Escola de Alma Benzedeiras de Brasília.4
As narrativas das mulheres entrevistadas apontam que os aprendizados dos seus saberes
ofícios aconteceram fora do modelo de ensino escolar; em espaços onde sua prática acontece e, ainda,
pela memória individual e coletiva, por sua ancestralidade e pela relação afetiva com seus territórios.

4 Este texto é parte das reflexões que vêm sendo realizadas em tese de doutorado, na Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília, sob a orientação da Professora Doutora Vera Margarida Lessa Catalão.

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Desenvolvem processos educacionais que lhes conferem autonomia na transmissão e na formação
identitárias, ética, cultural, imbricada aos territórios aos quais pertencem, de maneira participativa e
criativa. Ao longo de sua trajetória, compartilham e atualizam seus saberes no cotidiano, em uma lógica
distinta a do processo homogeneizador da produção de conhecimento para o mercado.
Nascidas em distintos territórios do cerrado, desenvolvem um amplo e profundo conhecimento,
especializado em plantas do Cerrado e ciclo das águas, na interlocução com o Sagrado para curas e
tratamentos do mundo físico e subjetivo. E partilham seus saberes em um universo simbólico do meio em
que se encontram; as subjetividades que carregam consigo, em seus corpos-territórios não seguem uma
lógica hegemônica racional, que separa o homem, a natureza e o sagrado. Suas práticas pedagógicas
constroem saberes ecológicos, espirituais, culturais, por onde habitam e por onde praticam seus
atendimentos para cura e cuidado. Em oposição à lógica ocidental, paradigma da modernidade,
colonialidade, que resume a vida em categorias estanques binárias: negro/ branco; natureza/ cultura;
corpo/ razão.
A construção dos saberes se dá utilizando todos os sentidos, interação contínua entre seus
corpos, mentes e a interlocução com o sagrado, experienciando sabores, aromas, texturas, sons, escuta
sensível, partindo dos corpos como o espaços de sentimentos, de afetividades, de exposição para se
permitir ser tocado pelas vivências, que articulam as territorialidades. A categoria corpo-território propicia
ao indivíduo entender o que está ao seu redor a partir do seu próprio corpo, de si mesmo, sua posse
sobre o seu corpo, assim como uma territorialidade em constante movimento, que para onde se desloca
carrega consigo toda a bagagem cultural construída ao longo das suas trajetórias (MIRANDA, 2014, p.
69-70).
Portanto, os corpos-território dessas mulheres trazem a natureza e os ritmos em que habitam. Em
suas pedagogias criam um invólucro psíquico subjetivo para construção e compartilhamento de seus
saberes, em íntima ligação com o território e seus corpos. O corpo é uma atualidade porque ele não é
apenas o físico, ele também abarca as questões do campo da fisiologia, do mental, do simbólico e da
interlocução com o Sagrado. É no corpo que se dão as sensações, as pressões, os julgamentos e as
estratégias de insurgências. Seus corpos-território são marcados pelos registros históricos de grupos de
povos originários. Assim, incorpora-se o sentido mítico-ancestral ao conceito de lugar, de onde se
enuncia a fala, pelo sentimento de representatividade territorial, contra os efeitos da modernidade e sua
forma de ser e de saber.
O Cerrado brasileiro abriga territórios de encontros, da modernidade e da tradição, e nesta
coexistência surgem os novos projetos modernizadores que comprometem a sobrevivência e a
reprodução dos ciclos da vida do Cerrado e da sociodiversidade cultural deste bioma, provocando
relações sociais assimétricas, especialmente dos saberes e práticas tradicionais das raizeiras e
benzedeiras. Mas esse grupo de mulheres elaboram estratégias de re(existência) e se organizam e
integram movimentos ambientalistas, criam redes solidárias entre mulheres de saberes tradicionais para
compartilhar e perpetuar seus saberes. Nas entrevistas, o grupo de mulheres destaca a importância de
sua atuação em centros de saúde e de participarem nas pesquisas acadêmicas e de ofertarem cursos
em espaços educacionais escolares para uma re(existência) de seus saberes e fazeres.

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A estratégia de re(existência) aponta para uma via de libertação da corporeidade, que implica
devolver o controle das instâncias básicas da sua existência social: trabalho, sexo, subjetividade e
alteridade. E, a partir da sua estratégia de (re)existência, estabelecem estratégias de insurgências.
Segundo Catherine Walsh (2013), estratégias insurgentes respondem ao propósito de intervir e
transgredir o social, o cultural, a política e, principalmente, a construção do conhecimento.
A participação desse grupo de mulheres em seminários, cursos, oficinas, rodas de conversas,
onde levam consigo sua pedagogia corpo-territorial, em espaços não formais e formais de ensino e em
unidades saúde, nas práticas integrativas de saúde, como é o caso das mulheres benzedeiras da Escola
de Alma Benzedeiras de Brasília, amplia e consolida redes de saberes tradicionais, e podem ser
percebidas sob a perspectiva do pensamento decolonial, como passos iniciais para um diálogo
intercultural entre os saberes tradicionais e científico, e, neste encontros e atendimento, descolonizam a
esfera do conhecimento ao reconhecer suas próprias epistemologias; destes encontros pode resultar
uma ecologia de saberes, com novas epistemologias do sul (SANTOS, 2010). Suas pedagogias
possibilitam a auto-organização, e incentivam a autoagência e contribuem para a ruptura de um
paradigma educacional fragmentado da disciplinaridade e da visão binária de mundo, possibilitando aos
educandos, a construção de um olhar ampliado e capaz de promover libertação das amarras impostas
pelo paradigma da modernidade/ colonialidade.

PALAVRAS-CHAVE: raizeiras; benzedeiras; mulheres do cerrado; corpo-território

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, C. R.. O que é Educação. 14ª ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
LOZANO, Betty. Pedagogías para la vida, la alegría y la re-existencia: Pedagogías de mujeres negras
que curan y vinculan. Colciencias, 9. 2016.
MIRANDA, Eduardo O. O negro do Pomba quando sai da Rua Nova, ele traz na cinta uma cobra
coral: os desenhos dos corpos-territórios evidenciados pelo Afoxé Pomba de Malê. 2014. 180 f.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Desenho Cultura e Interatividade) - Universidade Estadual de
Feira de Santana, Feira de Santana, 2014.
SALAZAR, Juan García Salaza; WALSH, Catherine. Sobre pedagogías y siembras ancestrales. In:
Pedagogias decoloniales: prática insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito-Ecuador:
Ediciones Abya-Yala, 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo:
Cortez, 2010.

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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA MAGÜTA: BILINGUISMO NA TERRA INDÍGENA VILA BETÂNIA-
MECÜRANE

Ingrid Alfredo Carvalho

Introdução

Este trabalho tem como objetivo mostrar a importância do ensino bilingue na Terra Indígena Vila
Betânia-Mecürane, localizada no Município de Santo Antônio do Içá, do Estado do Amazonas, a partir da
realidade do povo Magüta-Tikuna. Estou começando a trabalhar neste tema dentro do Programa de
Iniciação Científica – PROIC da Universidade de Brasília – UnB. O objetivo geral da minha pesquisa é
abordar as relações entre os saberes indígenas do povo Tikuna e as experiências de educação escolar
desenvolvidas pelo meu povo nas últimas décadas. Na primeira fase da pesquisa, estou realizando um
levantamento e sistematização da bibliografia contemporânea produzida sobre relações interculturais e
educação, privilegiando autores(as) do meu povo e pesquisas que tratem de situações semelhantes a
que vou abordar. Além do desenvolvimento de uma narrativa autobiográfica da minha trajetória pessoal,
pretendo conversar com professores(as) indígenas, realizar rodas de conversas e entrevistas narrativas
com outros estudantes indígenas. A partir deste percurso metodológico, pretendo captar a percepção da
comunidade, quando se trata de ensino de bilinguismo Magüta, consequentemente da vida indígena
atrelada à valorização da língua materna e da cultura Tikuna. Para tanto, com este presente estudo,
pretende-se trabalhar nos mais diversos espaços, acadêmicos, como nas escolas, para assim
reconhecer e valorizar o ensino de bilinguismo da comunidade Magüta. No meu relato neste evento, os
subtópicos que proponho abordar são: 1. Percurso histórico da educação escolar indígena no Brasil; 2.
Educação magüta tikuna e 3. O bilinguismo e sua importância nas escolas indígenas.
Durante os anos de luta, os povos indígenas conseguiram ter o direito a uma educação
diferenciada e de qualidade e este direito é assegurado pela Constituição Federal de 1988. Neste
trabalho, o ambiente escolar busca constantes alternativas para as melhorias do processo de ensino
bilingue, como respaldado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei nº 9,394/96, que diz no
artigos 78 e 79 que é dever do Estado o oferecimento de uma educação escolar bilíngue e intercultural
que fortaleça as práticas socioculturais e a língua própria de cada comunidade indígena.
Para o povo Magüta-Tikuna, o ensino bilíngue é tão importante quanto necessário, pois a partir
dele os alunos se situam no meio social, compreendendo que nesse universo de signos e símbolos
linguísticos há a língua portuguesa formal, padrão, a ser escrita e falada. Na educação Magüta-Tikuna, a
língua Tikuna exerce um papel importante na educação, tal como a língua portuguesa.
O presente trabalho constitui-se em três subtópicos: no primeiro tópico, vamos abordar o percurso
histórico da Educação Escolar Indígena no Brasil. Neste, apresentamos os avanços que já aconteceram.
No segundo tópico, aborda-se a Educação Magüta-Tikuna, e, no terceiro tópico, vamos abordar o
bilinguismo e sua importância na escola indígena.

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Com estes subtópicos, vamos conhecer as trajetórias da Educação Escolar Indígena no Brasil e
conhecer também a trajetória da educação Magüta-Tikuna e sobre bilinguismo na Terra Indígena Vila
Betânia-Mecürane.

Percurso histórico da educação escolar indígena no Brasil

Consideramos que a educação é um dos pontos fundamentais para o desenvolvimento de uma


pessoa. É através dela que os seres humanos adquirem conhecimento e uma melhor qualidade de vida.
Como afirma Brandão (2007, p. 7), “ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na
escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços de vida como ela: para aprender, para
ensinar, para aprender-e-ensinar.” Conforme o autor, todos nós vivemos em situações que envolvem
ensino e aprendizagens, sendo que não existe um modelo de educação único, mas modelos de
educação que são praticados em situações diferentes e de diversas formas. Assim, nota-se que a
educação é um meio de atender às necessidades do homem. Para falar da história da educação escolar
indígena, vamos entender um pouco da história da educação escolar indígena no Brasil.

Educação Magüta-Tikuna

Aqui vamos diferenciar a educação indígena Tikuna de Educação Escolar Indígena. Como
referido neste trabalho, é importante lembrar que os Tikuna tiveram uma luta pela demarcação de terra,
assim, para se ter uma educação escolar indígena diferenciada e bilíngue. Sabe-se que sem terra não há
como lutar pela educação e pela saúde da população.
De acordo com Felipe (2018), a luta pela demarcação de terra dos Tikunas iniciou-se após
contatos com não indígenas, no alto rio Solimões, no ano de 1982, sobretudo a sua mobilização e
organização de luta foi em torno de terra a princípio. Em 1981, os Tikuna fizeram uma ampla convocação
direta de lideranças com 37 comunidades presentes na primeira reunião na aldeia/comunidade indígena
Campo Alegre, onde se definiu uma proposta quanto à demarcação de terras, e a ser encaminhada à
FUNAI. Participaram da reunião 31 lideranças (caciques) e 1139 pessoas, reuniram-se sem nenhum
órgão ou qualquer agência de contato de não indígenas.
Nesse primeiro encontro (reunião de lideranças) que definiu pela primeira vez e surgiu uma
proposta de delimitação das terras que resultasse inteiramente de reivindicações e discussão feitas pelos
próprios Tikuna. E, assim, o povo indígena Tikuna conseguiu a demarcação de suas terras após 10 anos
de lutas, ou seja, nos anos 1990 e 1993, aproximadamente.
Como dito acima, é importante ressaltar a luta dos Tikuna pela demarcação de terra, porque só
assim foi possível lutar pela educação e a saúde do povo. Falando em educação indígena Tikuna, como
ressaltado no primeiro tópico, é preciso distinguir claramente dois termos: educação indígena Tikuna e
Educação Escolar Indígena Tikuna. Como notamos no tópico anterior, cada povo tem sua forma de
educar a sua sociedade, neste caso, irei me referir aqui à educação indígena Tikuna.

31
O bilinguismo e sua importância nas escolas indígenas

O bilinguismo, no seu sentido mais amplo, caracteriza a utilização de duas ou mais línguas por
um mesmo indivíduo. Além disso, abarca uma definição multifacetada, visto que se trata de uma
competência linguística individual que pode ocorrer em diversos níveis e graus.
Sabemos que o português não é a única língua falada em nosso país. No Brasil, são faladas
muitas línguas diferentes porque aqui convivem muitos povos e culturas diferentes. Conforme o
RCNE/Indígena (1988, p.115),
A exemplo no município de Tabatinga, do Estado do Amazonas, tríplice fronteira entre
Brasil, Colômbia e Peru, por exemplo, pode-se encontrar crianças falantes de língua
Tikuna, espanhol e o Português convivendo numa mesma escola.

Conclusão

Diante de tudo o que foi mencionado, com este trabalho podemos refletir para pensar além das
escolas indígenas, mesmo sabendo que é um grande desafio, para comunidade Magüta, também para
sociedade não indígena, porque requer um preparo maior e intérpretes.
A importância do ensino bilíngue Tikuna no processo de ensino e aprendizagem tem um grande
papel para uma educação promissora e de qualidade para o seu resgate de cultura da comunidade em
questão ou mesmo para as outras que queiram conhecer e aprender a língua materna Tikuna.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Escolar Indígena; bilinguismo; TI Vila Betania-Mecürane.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar / Elaborado pelo comitê de
Educação Escolar Indígena. – 2! ed. Brasília: MEC/SEF/DPEF, 1994.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.
LDB. Lei de Diretrizes Base da Educação Nacional, Lei nº 9.294, de 20 de Dezembro 1996. Disponivel
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm. Acesso em: 29 de setembro de 2022.
FELIPE, I. C. História Contadas em Mecürane: um estudo sobre a organização Social e o Terrotório dos
Tikuna. DISSERTAÇÃO DE GRADUAÇÃO. Universidade de Brasília, 2028.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi Grupioni. As leis e a educação escolar indígena: Programa
Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Fundamental, 2001.
Referencial curricular nacional para as escolas indígenas/Ministério da Educação e do Desporto,
Secretaria de Educação Fundamental. - Brasília: MEC/SEF, 1998.
SIMAS, Hellen Cristina Picanço. Letramento indígena potiguara. Editora valer/ Fapeam, 2012.

32
ESPAÇO CULTURAL TUPINAMBÁ EM OLIVENÇA:
A RUA É NOSSA ALDEIA

Taynã Andrade Tupinambá


Idealizadora, organizadora e mantenedora do espaço cultural Tupinambá. Autodeclarada ativista identitária,
deseducadora, mestra da cultura popular, diretora produtora cultural e atriz.

Ana Cláudia Vieira Braga


Doutoranda em Educação- FE- Universidade de Brasília-UnB, mestra em tradução LET/UnB, especialista em
Gestão e Administração Escolar, licenciada em Pedagogia, licenciada em Letras/latim/francês. Professora
aposentada da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Membro pesquisadora do Grupo de Pesquisa
Interdisciplinar em Educação, Gestão e Cultura Regional -GEGC- UEG e do grupo ÁBACO- UnB.
anaclaudiaunb2012@gmail.com

Francisco Darci Feitosa


Mestrando em Educação, Gestão e Tecnologias na Universidade Estadual do Goiás - UEG, especialista em
Cenários e Modalidades de Educação à Distância da Faculdade Metropolitana. Graduado em Pedagogia/UEG-UnU
Luziânia/GO. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Educação, Gestão e Cultura Regional-
GEGC. franciscodarcifeitosa@gmail.com

Apresentamos aqui o Espaço Cultural Tupinambá em Olivença, Ilhéus – Bahia, que teve sua
origem na cidade de Salvador- BA, em uma área onde aconteceu o primeiro aldeamento oficial do Brasil.
Como o Espaço Cultural Tupinambá em Salvador sofreu ataques e depredações, foi reconstruído em
Olivença. Sua liderança é firmada em Taynã Andrade Tupinambá e Xawã Tupinambá e tem como lema: A
rua é nossa aldeia. O espaço é considerado uma reação à limitação e distorção da propagação da
cultura Tupinambá originária nos territórios, comunidades e aldeias demarcadas e para Taynã é um
refúgio em seu próprio território.

Figura 1 – Taynã e Xawã Tupinambá, idealizadores e dirigentes do espaço cultural Tupinambá em Olivença. Fonte:
acervo fotográfico do Centro Cultural Tupinambá

O espaço cultural está ao ar livre, nas ruas e nos muros de Olivença em Ilhéus – BA, assim Taynã
Tupinambá quebra os rigores de uma educação formal das escolas estaduais indígenas da região e traz
para a rua, as praias e a praça da igreja católica o território total dos povos originários Tupinambá e de
todo tronco Tupi. Reaprende como se ensina e como se aprende, ao promover uma educação que
alcance todos e todas, evidenciando uma estruturação do conhecimento que permita uma apropriação
honesta dos padrões de produção de conhecimento impostos pelo colonialismo (QUIJANO, 1992).

33
Figura 2 – Vista do espaço Cultural Tupinambá a partir da rua do mirante de Olivença. Fonte: acervo fotográfico
pessoal do Espaço Cultural Tupinambá

A organização do Espaço Cultural Tupinambá traduz a iniciativa independente de seus


idealizadores. O espaço busca sentido na decolonização do espaço do saber e as informações textuais
estão presas às paredes públicas sem nenhuma delimitação territorial, no espaço amplo da Aldeia Mãe
Tupinambá, que é toda Olivença.
Para o espaço Cultural Tupinambá, Olivença é toda Tupinambá, informação ratificada por
Florestan Fernandes (1963) ao afirmar que: “Quando os Portugueses iniciaram a colonização da Bahia,
os Tupinambá dominavam extensas áreas territoriais nesta região. Toda zona costeira, do São Francisco,
Itaparica e Prado até junto dos Ilhéus, estava sujeita ao domínio do Tupinambá” (p.33).
O lema do Espaço Cultural Tupinambá inclui a origem, a fonte, o fundo, a verdade e a realidade
primordial da humanidade, inclui o falar dos Tupinambá enquanto povo originário e traz na pauta da
própria educação a colonização. A visão de que educar é impor crenças, costumes e ideais é permitida e
afirmada no ambiente do espaço Cultural Tupinambá.
O Espaço Cultural Tupinambá, em busca desse resgate territorial e cultural de resistência, está
distribuído em muros e calçadas, localizados principalmente na região da Rua José Carlos Arleu de
Olivença e tem como referências as laterais da igreja Nossa Senhora da Escada e a rua do mirante.
Várias parcerias foram formadas com pessoas e instituições para que o espaço existisse e
permanecesse.
Os banners foram criados e arrumados ordenadamente nos muros da igreja católica e da casa
que fica na esquina da rua do mirante. O espaço vivo nos muros da igreja traz, em suas paredes, o
resgate da cultura do povo catequizado, colonizado, escravizado e silenciado a partir da negação das
existências Tupinambá pela educação ocidentalizada.
As aldeias e recolhimentos, no processo de catequização, proliferaram nas propriedades e
fazendas dos jesuítas e concomitantemente o provincial padre Manoel da Nóbrega, em terras basílicas,
fundou colégios jesuítas entre 1560 e 1570 para educar os filhos de não indígenas. No entanto, algumas
crianças indígenas frequentavam esses colégios. O Espaço Cultural Tupinambá busca o deseducar e
seus líderes e idealizadores defendem uma denominação mais ampla para os povos indígenas que
devem ser conhecidos como povos originários

34
Figura 3 – Aula no Espaço Cultural Tupinambá. Fonte: acervo fotográfico pessoal do Centro Cultural Tupinambá

O título de espaço cultural de educação evidencia uma ideia de ensinar e aprender


descolonizada. Para o centro cultural, a educação perpassa os mediadores acadêmicos e alcança a
ancestralidade de aprendizagens resgatadoras da cultura originária Tupinambá que acontecem a partir
de um viver cultural nas praias, nas ruas, nas estradas, nos muros, nas matas, entre tantos outros
territórios.
Seguindo o raciocínio, a partir de Arlei Laraia (2001) sobre o significado de cultura, o espaço
exorta a cultura viva e em constante transformação e também abraça causas recentes de demarcação
de terras originárias, do exercício de uma interculturalidade crítica na educação formal e informal, da
valorização dos saberes ancestrais, do exercício do direito da autodeclaração indígena como também do
registro e denominação de nomes civis a partir da cidadania dos povos originários.
Concomitante a essa jornada da interculturalidade vertical centralizada no saber colonizador,
surgem os entraves e os avanços enviesados pelo ponto de vista educacional, que deveria considerar
nossa sociedade como multiétnica e multicultural, pautada em uma interculturalidade crítica (WALSH,
2010). O espaço Cultural Tupinambá caminha lado a lado com a resistência e a manutenção de raízes
originárias e propaga essa resistência por meio da voz de seus dirigentes e apoiadores, formando uma
teia viva de revelações Tupinambá e do tronco Tupi.

PALAVRAS-CHAVE: decolonização do conhecimento; educação; espaço cultural; interculturalidade;


Tupinambá.

REFERÊNCIAS
CHADA, Sonia. A música dos caboclos nos candomblés baianos. Salvador: Fundação Gregório de
Mattos/Edufba, 2006
FERNANDES, Florestan. Organização Social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1963.
LARAIA, Roque de Barros, 1932. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge
"Zahar” Editora, 2001.
LEITE, Serafim, S. J. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário
da Cidade de São Paulo, l954. v II: 1553-1558.

35
MAURÍCIO, Ivan. CIRANO, Marcos ALMEIDA, Ricardo de. Arte popular e dominação: o caso de
Pernambuco 1971/77.
OLIVEIRA, João Pacheco. FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença indígena na formação do
Brasil, Brasília: Série Vias do Saber, 2006.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad-racionalidad. Peru Indígena, 13(29): 11- 20, 1992.
Disponível em: http://www.lavaca.org/wpcontent/uploads/2016/04/quijano.pdf
RIBEIRO, Darci. As Américas e a civilização – processo de formação e causas do desenvolvimento
cultural desigual dos povos americanos. 1ª Ed. brasileira, Rio de Janeiro: Editora civilização, 1970.
WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de) colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Visão Global,
Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012

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A INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO EM JUSTIÇA CLIMÁTICA DE JOVENS QUILOMBOLAS,
INDÍGENAS, PESCADORES E AGRICULTORES FAMILIARES DO TOCANTINS.

Silvana Bastos
Assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN e mestranda do Mestrado Profissional em
Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) da Universidade de Brasília.

Anelise Rizzolo
Professora do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Comunidades Tradicionais (MESPT) da Universidade
de Brasília.

A crise climática, no Brasil, está emoldurada por desigualdades, violação de direitos, violência no
campo e injustiças sociais que distanciam e retardam o processo de amadurecimento e consolidação da
democracia e da materialização dos direitos previstos em nossa Constituição. Um dos elementos desse
quadro é a insuficiência de vozes representativas de povos e comunidades tradicionais nos espaços de
negociação, construção de acordos e visibilidade da Agenda do Clima, seja em nível internacional, nas
Conferências das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COPs do Clima), seja em nível nacional, nos
espaços de construção e implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima.
A Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática articula dez organizações 5 com o objetivo de
ampliar e qualificar a atuação e a visibilidade de quilombolas, indígenas, pescadores artesanais,
assentados e acampados da reforma agrária e agroextrativistas na defesa dos seus direitos. Diante do
desafio de “forjar justiça” na Agenda do Clima, também apoia a luta por políticas públicas engajadas com
a inserção de jovens e organizações comunitárias do Tocantins no debate global sobre justiça climática e
sobre a Agenda do Clima da Amazônia, por meio de formação continuada de jovens, fortalecimento de
organizações de base comunitária e estratégia integrada de comunicação & advocacy.
No âmbito da formação de jovens, a coalizão vem estruturando o plano pedagógico do Curso
Modular em Justiça Climática que será implementado a partir de março de 2023, envolvendo trinta
jovens a serem indicados e acompanhados pelas organizações da coalizão. A turma será composta por
jovens entre 16 e 35 anos, representantes indígenas Krahô e Apinajé, quilombolas do Quilombo Kalunga
do Mimoso, pescadores da Colônia de Pesca de Araguacema, assentados e acampados ligados ao MST,
além de agroextrativistas de várias regiões do estado do Tocantins.
O objetivo desse processo de educação intercultural é contribuir para a formação de agentes de
mudança por meio do desenvolvimento de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) para
uma atuação diante dos problemas da invisibilidade das juventudes e da insuficiência de vozes de povos
e comunidades tradicionais do Tocantins no debate sobre justiça climática e na luta pelo reconhecimento
dos territórios tradicionais e da produção familiar para a conservação ambiental, para a segurança e

5 Membros da Coalizão: Ongs/assessoria: 1) ISPN – Instituto Sociedade, População e Natureza, 2) Associação Onça D
´Água de apoio à Gestão e ao Manejo das Unidades de Conservação do Tocantins e 3) Coopter – Cooperativa de Trabalho,
Prestação de Serviços, Assistência Técnica e Extensão Rural. Organizações de base comunitária: 1) Associação
Quilombola Kalunga do Mimoso Tocantins – AKMT, 2) Associação Indígena Pyka Mex – Povo Apinajé, 3) Associação
Central Cultural Kyjre – Povo Kraho, 4) Colônia de Pescadores e Pescadoras de Araguacema. Ensino: 1) UFT -
Universidade Federal do Tocantins e 2) EFA - Escola Família Agrícola de Esperantina. Movimento Social: MST –
Movimento dos Trabalhadore/as Rurais Sem Terra.

37
soberania alimentar e nutricional associados ao BemViver no Brasil, em contraposição ao modelo
econômico intensificado no estado do Tocantins nos últimos anos, baseado no avanço do agronegócio,
grilagens com expulsão de comunidades de seus territórios, do desmatamento e da exclusão social.
Para isso, a abordagem da formação é baseada nos princípios e práticas da educação popular.
Tal orientação implica que os temas devem emergir da realidade e seu significado para os participantes e
promover o encantamento necessário para mobilizar ação voltada ao bem comum. Ampliar essa
concepção é uma tarefa importante na construção do plano pedagógico, propiciando aos participantes
reconhecer e organizar o aprendizado que vem das suas descobertas e vivencias da prática. Essa
premissa é a base do processo de aprendizagem da educação popular traduzida no planejamento do
curso a partir dos temas geradores, identificados com as comunidades e pactuados no âmbito do
conselho gestor da Coalizão.
Essa abordagem “do aprender da prática” foi implementada pelo Instituto de Desenvolvimento
Social e Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN em 2018 no Oeste da Bahia e inspira essa
iniciativa no Tocantins. Essa abordagem contempla quatro etapas na concepção das situações de
aprendizagem e das relações interculturais que a formação propiciará:
i) Revelar e caracterizar a realidade: a caracterização é acima de tudo uma tomada de
consciência. Possibilita aos participantes evidenciar e estruturar sua percepção da realidade (a
comunidade, as organizações, o contexto, a si mesmo), ao mesmo tempo em que cria a
oportunidade de ampliar esse olhar a partir da troca com os outros participantes. Na
caracterização o participante tem a chance de tomar consciência de aspectos que anteriormente
não estava percebendo.
ii) Ampliar referenciais: Se por um lado a caracterização pode levantar novas perguntas acerca da
realidade, na etapa de oxigenação o que se busca é trazer referenciais que sirvam como termo
de comparação e reflexão sobre a realidade (incluindo a si mesmo), mas também sejam capazes
de indicar instrumentos e técnicas que possibilitem novas formas de lidar com determinadas
situações. A oxigenação é o elo entre a caracterização e a tomada de iniciativa (realizar),
retroalimentando a caracterização e orientando a realização de uma ação, iniciativa, ou
experimentação;
iii) Experimentação: possibilita ao participante levar para a prática uma habilidade ou conhecimento
adquirido, e assim identificar dúvidas, limites (pessoais inclusive) e verificar potenciais e desafios
para a integração com a sua realidade. Embora o foco da ação seja criar base para a
aprendizagem.
iv) Refletir e aprender: na reflexão o facilitador tem um papel fundamental que é conduzir os
participantes a identificar, organizar e valorizar os aprendizados vindos da prática. Para tanto,
devem ser criadas situações de aprendizagem que conduzam a pessoa a aprofundar sua
reflexão, lidar com resistências e tirar conclusões.
Estas quatro etapas são processos essenciais e fundamentam a construção dos quatro módulos
presenciais e três módulos à distância (tempo comunidade) da formação em justiça climática junto a
jovens ligados à Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática. Dessa forma, os conteúdos serão

38
definidos com forte participação da turma, orientados pelos temas geradores: i) conservação do Cerrado;
ii) direitos dos povos e comunidades tradicionais; iii) comunicação social; iv) mudanças do clima e
engajamento das juventudes por justiça climática. Esses temas serão entrelaçados por três fios
condutores: a) habilidades sociais para liderar/ser agente de mudanças; b) conceitos, informações e
ferramentas chaves nos espaços de negociação da Agenda por Justiça Climática; e c) experimentos de
mudança – planos de ação elaborados, implementados e gerenciados pelos participantes.
Espera-se que a formação em justiça climática contribua para a sustentabilidade e fortalecimento
das articulações em rede e interculturais no estado aliada ao aumento da visibilidade das reivindicações
e das soluções promovidas por agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais no âmbito da
Agenda do Clima da Amazônia, especialmente com a ampliação de vozes das juventudes do Tocantins
nos espaços de negociação de acordos globais e nacionais, a exemplo da Conferência das Nações
Unidas sobre Mudança do Clima.
Por fim, este trabalho é parte integrante da dissertação/trabalho de conclusão do Mestrado do
MESPT/UnB.

PALAVRAS-CHAVE: justiça climática; interculturalidade; formação de jovens; comunidades tradicionais.

39
INTERCULTURALIDADE E A FORMAÇÃO DOS POVOS DO CAMPO

Pedro Fernando dos Santos


Graduado em Letras, especialista em História Afro-brasileira e Indígena e mestre em educação.
pedrinho_quilombola@hotmail.com

Maria da Conceição Fernandes de França


Graduada em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia Institucional e mestra em Educação.
naidefernandes@hotmail.com

Introdução

O campo compreende aspectos além do geográfico, sobretudo aspectos de pertença,


significações e formação identitária de povos que ocupam todos os lugares. A partir desse olhar voltado
para a dimensão do campo numa perspectiva da diversidade, não podemos deixar de fora a discussão
acerca da interculturalidade, visto ser a partir das variadas manifestações culturais, dos saberes e das
práticas cotidianas que as identidades são construídas. É proposta deste texto tecer discussões acerca
da identidade dos sujeitos e do caráter intercultural da educação.
Assim, através do método de análise dos discursos de especialistas do tema, do levantamento
bibliográfico e pelas experiências enquanto mediadores dos processos de formação com os sujeitos do
campo, propomos evidenciar que a intercultura levada para os caminhos da educação gera algo que
ultrapassa politicamente a tolerância e faz emergir no sujeito a visão da incompletude cultural dos povos,
o comportamento em assumir-se pelo outro e a postura do respeito para além do seu conceito. Para
configurar as discussões apontadas no decorrer deste estudo, apresentaremos, ainda, fragmentos de
processos de formação desenvolvidos com os sujeitos dos diversos cenários do campo, suas
perspectivas e aspirações de manutenção de seus valores, costumes, pertenças e tradições culturais.
Sobre interculturalidade, a “sua riqueza consiste justamente na multiplicidade de perspectivas que
interagem e que não podem ser reduzidas por um único código e um único esquema a ser proposto
como modelo transferível universalmente”. (FLEURI, 2003, p. 17). Propõe uma dialética entre novas
perspectivas do currículo de forma que nada se isole, mas tudo se complete. O currículo sem a proposta
da intercultura6 ainda continua promovendo uma relação etnocêntrica-hegemônica-monocultural que
historicamente se caracteriza pelas relações de superposições antagônicas. Candau (2008) procura
trazer uma concepção mais política voltando-se para o seu processo de produção de identidades ao
afirmar que “a perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática,
plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade”.
A escola precisa problematizar questões que ela mesma foi guardiã durante a era do currículo
eurocêntrico-hegemônico-monocultural, e fazer o caminho por outra perspectiva, discutindo as relações
de poder visíveis e invisíveis que se estabelecem diante das identidades constantes no âmbito escolar,
nos espaços sociais de convivência, promovendo as tomadas de decisão não mais com base em

6 Refere-se a um campo complexo em que se entretecem múltiplos sujeitos sociais, diferentes perspectivas epistemológicas e
políticas, diversas práticas e variados contextos sociais. (FLEURI, 2003, p. 31).

40
conhecimentos instalados historicamente, mas com os instrumentos e com as condições de produção e
recepção deles.

Os sujeitos do campo e a formação na interculturalidade

Em 2012 professores de instituições públicas do ensino superior se reuniram na proposição de


um curso de formação continuada para atender às bandeiras de luta dos sujeitos do campo. O objetivo
do curso seria combater a colonialidade, fomentar a pesquisa e a valorização dos saberes populares, a
humanização docente e congregar as identidades dos povos do campo. Denominado de Especialização
em Educação Intercultural no Pensamento Decolonial, o processo de seleção e metodologia foi pensado
coletivamente, concretizado no formato desejado e o curso ofertado no campus de Floresta, pertencente
ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano – IF-SERTÃO. A
dinâmica da especialização se dava em dois momentos: ‘tempo presencial’ e ‘tempo comunidade’. As
aulas ministradas tiveram profundas reflexões e aproveitamentos tanto para as relações da causa quanto
para a adoção das atividades e práticas do tempo comunidade.
Outro percurso formativo com os sujeitos do campo e sua interculturalidade, em nível de ensino
superior, é o Curso de Licenciatura em Educação do Campo – LEDOC, ofertado pela Universidade
Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA, no município de Mossoró, Rio Grande do Norte. Traz, na sua
perspectiva curricular, as discussões inerentes ao campo, primando pela identidade, pertença e valores
culturais do semiárido nordestino. Perceber-se protagonista neste processo formativo é fundamental para
a reafirmação dos alunos.
Apontamos algumas considerações de dois alunos do referido curso, em que sugerem que a
admissão dos saberes construídos a partir das suas vivências em seus territórios e nas culturas que os
fazem pertencer a um determinado contexto, sentem-se cidadãos em processos formativos de uma
educação que aponta para o direcionamento da cidadania.
[...] no decorrer desse processo, interações com os professores e colegas foram criadas,
os conteúdos começaram a fluir ao meu redor, minha realidade começou a se encaixar no
que estava sendo repassado, então a ideologia e o preconceito que me acorrentava foi
quebrantado. [...] Hoje compreendo que somos capazes de ultrapassar os limites
sobrepostos a nós, vendo a educação como uma utilidade transformadora. (Aldefran
Silva)

O que me fez cursar a LEDOC foi primeiramente pela metodologia dos professores, o
comprometimento com os objetivos do curso na formação dos alunos. [...] me sinto
realizado e busco aprender com cada professor um pouco das metodologias deles,
compreender acerca da pedagogia popular para utilizar como futuro profissional. (Ramon
Torquato)

As narrativas mostram o desejo dos estudantes em adquirirem conhecimentos a serem efetivados


em seus contextos. Significa, sobretudo, que as metodologias e práticas pedagógicas buscam atender
aos anseios destes futuros educadores do campo. A Pedagogia da Alternância7 enfatiza a necessidade
da interlocução dos saberes, mantendo a dinamicidade da interculturalidade entre os diversos sujeitos.

7 Metodologia sob a divisão formativa entre o Tempo Escola e o Tempo Comunidade, no sentido de promover o diálogo entre
os saberes acadêmicos e as vivências no campo.

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Considerações

Os princípios de tolerância da modernidade: pluriculturalismo e multiculturalismo, considerando, é


claro, toda a polifonia ao seu redor, agora podem ser lidos pela ótica do combate ao monoculturalismo
colonial, caracterizado como hegemônico pelos colonizadores de estruturas sociais. Sendo que estes
também já eram frutos de outras lutas em outros campos e com outros contextos. O fato é que
potencializá-los seria uma forma de aumentar e crescer o poder da demanda na modernidade social.
Seria uma forma de garantir que, mesmo sem se acentuar contextualmente, a diversidade tivesse lugar
assegurado nesse novo universo de disputas, através de novas leituras da pluriculturalidade e da
multiculturalidade. Pensar os sujeitos do campo, suas ressignificações e seus diferentes modos de ser e
de fazer-se culturalmente diferente, é necessidade atribuída a todo processo de formação e em qualquer
tempo e espaço ocorrido.

PALAVRAS-CHAVE: educação; interculturalidade; povos do campo.

REFERÊNCIAS
CANDAU, Maria Vera. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade
e diferença. Rio de Janeiro: v.13 - n.7 - jan./abr. Revista Brasileira de Educação, 2008.
___________. Cidadania e direitos humanos. IEA/USP. (texto de uma conferência) (Texto disponível
em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/textos#Direitos Humanos / Cidadania. Acesso em
16/10/2013).
FLEURI, R.M. Intercultura e Educação. Revista Brasileira de Educação – ANPEd. Campinas – SP:
Editores Associados, n.23, 2003.

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O PODER DA PALAVRA: UMA PERSPECTIVA DE EDUCAÇÃO DECOLONIAL A PARTIR DO RAP
INDÍGENA

Thiago Sampaio Rosa


Licenciado em Música pela Universidade Católica do Salvador, mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Educação e Contemporaneidade (PPGEduC), da Universidade Estadual da Bahia (UNEB).
thiagosampaiorosa@gmail.com

Introdução

Analisar a sociedade brasileira do ponto de vista de suas desigualdades étnico-raciais é revisitar


a sua historicidade recompondo o colonialismo europeu e suas influências na construção da identidade
do povo brasileiro na atualidade.
Nesse contexto, pode-se inserir os diversos povos indígenas que sofreram a partir da
colonização europeia um intenso processo de subjugação cultural, uma quincentenária e violenta
trajetória colonial fundada em silenciamentos forçados que não findaram com o término da colonização
europeia, mas que estão entranhados no imaginário tanto do dominado quanto do dominador. Essa
realidade perpassa por toda estrutura social, incluindo setores de grande relevância como a educação.
Os povos originários sujeitos dessa desvalorização são muitas vezes retratados nos meios escolares de
maneira estereotipada, “oscilando entre a concepção romântica de um indígena puro, inserido na
natureza, ingênuo e vítima, e um índio bárbaro, selvagem e preguiçoso, empecilho para o progresso”.
(BERGAMASCHI, 2012, p.09). Isso se dá porque um dos produtos do colonialismo, a colonialidade,
transformou as formas de pensar de maneira tão intensa que invadiu o imaginário impondo uma
supremacia que desconsidera qualquer outra forma de saber como válida.
Segundo Quijano (2005), colonialismo e colonialidade são dois conceitos relacionados, porém,
distintos. O colonialismo refere-se a um padrão de dominação e exploração no qual:
O Colonialismo é, obviamente, mais antigo; no entanto a colonialidade provou ser, nos
últimos 500 anos, mais profunda e duradoura que o colonialismo. Porém, sem dúvida, foi
forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser imposta à
intersubjetividade de modo tão enraizado e prolongado. (QUIJANO, 2005, p. 93).

O rap indígena e seu potencial contra-hegemônico

Sabe-se que a música tem um grande poder de alcance e tem sido ao longo da história uma
importante ferramenta nas diversas lutas. É nesse sentido que vislumbramos o potencial transformador
dessa arte, que acreditamos no rap produzido por indígenas brasileiros de diferentes grupos étnicos e
regiões do Brasil como forma de promover novos diálogos.
Através das redes, jovens artistas indígenas apropriam-se de forma significativa das tecnologias,
criando uma frente de luta contra desigualdades. Desta forma podemos relacionar esse contexto com o
discurso presente no estudo de Fantin e Girardello (2009), onde as autoras abordam a inclusão digital na
perspectiva da educação e da cultura. Neste sentido, a produção desses jovens é dotada de um senso

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de participação, termo que as autoras definem como: “autonomia e autoria no exercício político da
cidadania”.
Ao longo da história surgiram diversos movimentos de natureza contestadora, dentro desse
contexto destaca-se a importância das manifestações culturais como movimento de resistência. Baseado
nessa perspectiva destacamos o movimento hip-hop. “Movimento que ganha força nos Estados Unidos a
partir do final dos anos 1970 e posteriormente se espalha pelas grandes metrópoles do mundo (SOUZA,
2011, p.15). Nas palavras de Souza (2011), o Hip Hop é marcado pela reflexão e crítica que faz em
relação às desigualdades sociais e raciais por meio da poesia, dos gestos, falas, leituras, escritas e
imagens.
Sob a perspectiva de um contexto de fluxos e atravessamentos, onde culturas milenares
atualizam-se encontrando novos espaços discursivos e tecnológicos, o hip-hop:
[...] tem se tornado um meio através do qual são criados novos espaços de enunciações
contra-hegemônicas, contra a marginalização racial histórica, de denúncia das condições
de vida dos povos indígenas na periferia contemporânea do sistema-mundo
moderno/colonial e ainda de emergência de histórias locais negligenciadas, de
conhecimentos subalternizados, e de práticas e sensibilidades aos quais sempre foram
imputadas categorias que instituem inferioridade (NASCIMENTO, 2014 p. 94).

De acordo com Souza (2011), a face mais expressiva do hip-hop está ancorada no rap, cujo
discurso empodera-se munindo-se de uma fala que geralmente versa sobre as desigualdades sociais,
racismo, discriminações e violência de toda sorte. É a partir desta poderosa linguagem artística que
buscamos, através deste trabalho, apresentar uma interpretação fundada em perspectivas teóricas
decoloniais de discursos do rap produzido por grupos indígenas do Brasil. Nascimento (2014), argumenta
que:
[...] ao se apropriarem criticamente de um estilo cultural cujo poder de comunicação
atravessa fronteiras e cria redes de coalizão contestatória, os povos indígenas apropriam-
se também da enunciação historicamente negada e desafiam, assim, a hegemonia de
projetos globais desde suas histórias locais, marcadas pela violência e pela exclusão.
(NASCIMENTO, 2014, p. 91)

Um discurso intercultural para a construção de uma perspectiva decolonial

A relação dos indígenas com outras culturas distintas das suas é constantemente marcada por
tensões de diversas naturezas, um desses conflitos baseia-se em questionamentos acerca da
identidade. Nesse contexto, “a dicotomia tradição / modernidade não se sustenta, pois em um tecido
poroso repleto de fluxos e atravessamentos, a cultura milenar é atualizada e encontra novos espaços
discursivos e tecnológicos para enunciar narrativas [...] (SCHIFFLER; NATHANAILIDIS, 2017, p.1).
Portanto, questionar a identidade dos indígenas a partir do seu contato com outras culturas, é uma visão
ultrapassada, carregada de preconceitos e desinformação, que tenta segregar e conduzir os povos
originários ao campo da invisibilidade.
A respeito do conceito de hibridização Souza (2011) discorre:
O conceito de hibridização permite colocar em xeque os discursos essencialistas da
identidade, do autêntico e da pureza cultural, mostrando a possibilidade de negociações,
conflitos, alianças - mais ou menos duradouras -, presentes nos arranjos tensos que se
dão nos entrecruzamentos geradores de múltiplos processos culturais. (SOUZA, 2011, p.
52)

44
Desta forma, com base em um fenômeno transgressor, intercultural e transcultural, que é o rap
indígena, podemos vislumbrar um importante recurso para construção de um novo panorama de
valorização de epistemes socialmente negadas, e assim, apontar para um caminho da construção de
uma perspectiva de educação decolonial.

PALAVRAS-CHAVE: decolonialidade; rap indígena; interculturalidade.

REFERÊNCIAS
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos indígenas: conhecer para respeitar. In: Bergamaschi, Maria
Aparecida et al (org.). Povos indígenas & educação. 2. ed. Porto Alegre: Mediação, 2012. p. 7-15.
FANTIN, Monica; GIRADELLO, Gilka. Diante do abismo digital: mídia educação e mediações culturais.
Perspectiva, Florianópolis, v. 27, n 1, p. 69-96, jan/jun 2009. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2009v27n1p69/1221. Acesso em:
11 nov. 2020.
NASCIMENTO, André. O potencial contra-hegemônico do rap indígena na américa latina sob a
perspectiva decolonial. Polifonia, Cuiabá, MT, v. 21, n. 29, p. 91127, jan/jul., 2014.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Eduardo
(Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino
americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
SCHIFFLER, Michele Freire; NATHANAILIDISILVA, Andressa Zoi. O Sujeito Indígena Brasileiro E Os
Projetos Globais: Protagonismo E Resistência No Rap Guarani. In: III EVENTO INTERNACIONAL
OBSERVARE, 1. , 2017, Lisboa. Anais
SOUZA, Ana. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança : hip-hop. São Paulo:
Parábola, 2011.

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NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS DE MULHERES NEGRAS: ENTRE PROCESSOS EDUCATIVOS
E SEXONEGAÇÃO

Patricia Santos Santana


Mestranda em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB),
Coordenadora Pedagógica da Rede Pública da Educação Básica do Estado da Bahia, membro do grupo de
pesquisa Educação e Desigualdades (PPGEduc/UNEB). patriciassanttana88@gmail.com

Lívia Alessandra Fialho da Costa


Doutora e Pós-doutora em Antropologia Social e Etnologia. Professora Titular do Departamento de Educação e do
Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Editora Científica da Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade (UNEB). Docente e pesquisadora no
Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica do Salvador.
fialho2021@gmail.com

Esta pesquisa, em andamento, busca discutir a problemática de gênero e raça na sua dimensão
de desigualdades que continuam provocando rachaduras sociais, cuja polarização dos corpos é critério
de hierarquização. Porém, esses corpos verticalizados são os fatores que alargam estatisticamente as
disparidades. Dessa maneira, pode-se compreender que o gênero e a raça são promotores potenciais
das desigualdades e das diversas formas de violências que subjugam o corpo feminino.
À luz do romance “Niketche: uma história de poligamia” (2014), da autora moçambicana Paulina
Chiziane, é possível refletir acerca das relações de gênero e raça no Brasil e como essas categorias
configuram-se numa perspectiva dialógica de consolidação matrimonial. Assim, é a partir de categorias
que emergem no romance que propõe-se um estudo sobre muitos aspectos da vida de mulheres negras,
marcadas por dificuldades e desafios econômico-financeiros e culturais. A aparente generalidade do
estudo, entretanto, afunila-se na ideia de que alguns contextos sociais (escola, família, bairro) são
lugares de produção da sexonegação. O termo sexonegação, criação da autora, refere-se à negação do
feminino nas suas diversas formas, ocorrendo desde o nascimento das mulheres e perpassando ao
longo da vida. É uma estrutura fundante da cristalização dos corpos femininos que emergem na
subjugação e no controle.
Nessa perspectiva, busca-se investigar quais processos educativos formais e não-formais
interferem na sexonegação das mulheres negras a partir da perspectiva da narrativa “Niketche: uma
história de poligamia”.
A partir da problematização de conceitos geridos em torno da fabricação da raça e gênero,
percebem-se as latências das rachaduras provocadas nas relações humanas, principalmente, nos corpos
negros e femininos. Desse modo, o conceito “imagem de controle” de Collins (2019) possibilita a reflexão
da objetificação das mulheres negras, entendendo a raça como “uma categoria social de dominação e de
exclusão” (MUNANGA, 2014, p. 6).
De forma análoga, pode-se fazer uma comparação entre o corpo negro e o título do livro “Quarto
de despejo” (2014), da autora Carolina Maria de Jesus, que provoca um desvelamento da realidade
brasileira, pois nele são depositados as piores mazelas: a fome, o abandono, a pobreza, a violência,
inclusive, a negação do ser mulher. É possível refletir acerca do que Sardenberg (2015) conceitua como

46
“mosaico de interseccionalidades”, ou seja, os atravessamentos interseccionais que personificam as
categorias de opressão.
Goellner (2003) elucida acerca da construção cultural do corpo, ao contrapor com o percurso
natural da sociedade, da natureza humana. Nessa lógica, os caminhos esperados para a masculinidade
e feminilidade são antagônicos, percorrem por direções contrárias e fatalistas. O patriarcalismo construiu
definitivamente o corpo masculino como livre, sem fronteiras, sem regras, um corpo aberto para atuações
em espaços públicos; em contrapartida, o aprisionamento, o inacabamento, a fragilidade, caracterizam a
falta muito revelada na construção, desigual e hierárquica, do corpo feminino. Em suma, “um corpo não é
só um corpo. É, ainda, um conjunto de signos que compõem sua produção” (GOELLNER, 2003, p. 39).
Nessa perspectiva, as maneiras como os corpos são inscritos nas sociedades dão-se por diversas
variantes e metamorfoseiam-se no tempo, no espaço e na cultura.
A partir do romance foi possível formular três estágios de sexonegação que conferem uma
terceirização de domínio do feminino. O primeiro compete ao controle da família (é o primeiro contato da
criança com o mundo), o segundo às instituições de poder (escola, igreja, Estado) e o terceiro ao
matrimônio (cabe ao marido o controle sobre o corpo da esposa, propriedade).
A imbricação da sexonegação no romance demonstra como os estágios de dominação do
feminino articulam-se para as permanências dos arranjos sociais. No romance, o casamento entre os
personagens Rami e Tony revela questões sobre o lugar da mulher na sociedade moçambicana, mas
também fomenta compreensões mais amplas sobre tradições culturais e religiosas, escolarização,
dependência financeira, poligamia, solidão, misoginia, maternidade. Tais questões retratam a estrutura da
subalternidade feminina decorrente do terceiro estágio de dominação. Ao longo da trama, torna-se
evidente que o título de “esposa” confere à mulher completude e status social, porém está imbricado em
um processo de violações distintas para ambos os sexos (o homem é o violador e a mulher a violada).
O romance torna-se o pano de fundo desta pesquisa, na medida em que é a partir dele que
categorias analíticas são tomadas como princípio norteador para se ler o processo educativo por que
passam mulheres negras e pobres da periferia de Salvador. As especificidades das experiências
certamente nascerão no trabalho analítico de mapear os modelos e conflitos que permeiam as histórias
de vida de mulheres que conhecem os desafios de ser mulher negra de camada popular. Esta pesquisa
quer mapear de que maneira as relações conjugais e os processos de sexonegação vivenciados por
mulheres moradoras de uma periferia de Salvador-BA dialogam com as mulheres ficcionadas no
Romance "Niketche: uma história de poligamia”. A partir daí, busca-se discutir as categorias gênero, raça
e os estágios de dominação feminina e analisar a terceirização do feminino a partir do casamento como o
terceiro setor de dominação.
Considerando a proposta e o teor da investigação, será utilizada a pesquisa qualitativa por
possibilitar “um estudo detalhado de um determinado fato, objeto, grupo de pessoas ou ator social e
fenômenos da realidade” (OLIVEIRA, 2012. p. 60). Assim, será utilizada a pesquisa descritiva, pois
segundo Gil, “vão além da simples identificação da existência de relações entre variáveis, e pretendem
determinar a natureza dessa relação” (2002. p. 42).

47
Mediante a compreensão da organização e classificação histórica atribuídas aos sexos através
das performances corporais, faz-se necessário a ida a campo para dialogar acerca das variáveis do
romance, os achados teóricos e as realidades sociais vivenciadas por mulheres das periferias. Desse
modo, dar-se-á uso dos estudos (auto)biográficos na tentativa de aproximar-se das histórias e memórias
das mulheres, buscando dialogar acerca dos processos educativos e da sexonegação.
Os estudos (auto)biográficos consistem no tipo de investigação que visa captar, através
de um relato ou narrativa, a interpretação que determinada pessoa faz do seu percurso de
vida, com a respectiva diversidade de experiências e sentimentos pessoais que tiveram
lugar ao longo do tempo e por fases, nas mais diversas circunstâncias ou contextos e em
ligação com uma multiplicidade de sujeitos (e. g., pais, irmãos, colegas, patrões) e de
sistemas (família, escola, emprego) (AMADO; FERREIRA, 2014, p.169).

No intuito de aproximação com a realidade das mulheres ficcionalizadas, as participantes da


pesquisa serão mulheres negras, faixa etária entre 18 e 59 anos, exercendo funções profissionais
informais no ramo de vendas (beleza, varejo e confecção) e que tenham vivência de casamento. A
pesquisa será realizada no bairro de Paripe, um centro comercial que atende comunidades
circunvizinhas sendo considerada uma área marginalizada da cidade. É o bairro mais populoso do
subúrbio ferroviário de Salvador; possui uma larga extensão e subdivisão espacial e reúne os três ramos
das atividades econômicas desempenhadas pelas mulheres ficcionadas.
Para análise das informações valer-se-á da abordagem qualitativa, pois será necessário o
esmiuçamento a partir das subjetividades advindas das histórias e memórias para que seja possível uma
articulação teórica. Para a coleta de informações será utilizada a técnica da entrevista semiestruturada e
como instrumentos de pesquisa o romance e roteiro para orientar as entrevistas, buscando articulação
entre o romance, os fundamentos teóricos e as informações coletadas.

PALAVRAS-CHAVE: processos educativos; narrativas (auto)biográficas; gênero; raça; sexonegação.

REFERÊNCIAS
AMADO, João; FERREIRA, Sônia. Estudos (auto)biográficos - Histórias de vida. In: AMADO, João (org.).
Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra - Portugal: imprensa da Universidade de
Coimbra, 2014.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do
empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane
Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate
contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10º ed. São Paulo: Ática,
2014.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e
etnia. Niterói, 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-

48
abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf. Acesso em: 16 setembro
2021.
OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2012.
SARDENBERG, Cecilia. Caleidoscópios de gênero: gênero e interseccionalidades na dinâmica das
relações sociais. Mediações. v. 20, n. 2 (2015), p. 56-96. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/24125/Caleidosc%C3%B3pios%20%20de
%20g%C 3%AAnero. Acesso em 20 de setembro 2021.

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A SOLUÇÃO INDÍGENA PARA O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A FALTA DE EFETIVIDADE DOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL

Sara França Eugênia


Doutoranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação interdisciplinar em Direitos Humanos na
Universidade Federal de Goiás. saraeugenia87@gmail.com

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a problemática acerca da efetividade dos
direitos indígenas no Brasil, tendo como referências discussões propostas no contexto da formação
intercultural indígena da Universidade Federal de Goiás, com alunos indígenas que cursaram o tema
contextual denominado “Direitos Indígenas”, no ano de 2020.
No mencionado tema contextual buscou-se trabalhar prioritariamente com os alunos as normas
jurídicas internacionais que contribuíram para os direitos garantidos pela Constituição da República do
Brasil de 1988. Para tanto, foi indicada a leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da
Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. As leituras e a posterior discussão em grupo
revelaram de imediato um certo descompasso entre a letra da lei, que garante inúmeros direitos que os
alunos julgaram importantes para seus respectivos povos, e a realidade, onde manifestaram por diversas
vezes o sentimento de não usufruírem dos direitos garantidos e de certa dificuldade de lutarem pelo
respeito a esses direitos frente ao Estado brasileiro.
O reiterado desrespeito que sofrem com relação a sua cultura, organização política, território e
autonomia, por exemplo, pareceu causar alguma confusão ao verificarem pelos textos legais
disponibilizados que eram, de acordo com a lei, sujeitos possuidores dos direitos que queriam e
precisavam usufruir cotidianamente em território brasileiro. “Em que pese os avanços da lei, ainda pesa
sobre os povos indígenas a dependência da vontade política para o reconhecimento de fato de seus
direitos territoriais.” (ARAUJO, 2006, p. 88) A pergunta logo surgiu: “Mas se está na lei, porque não
respeitam?” A resposta não pode ser dada de maneira satisfatória, porque a dúvida com relação à
efetividade das leis não concerne apenas aos alunos indígenas, mas também à maioria dos cidadãos
brasileiros. Se a lei emana do povo, através do poder legislativo, que é eleito democraticamente pelo
povo, porque tanta lei sem efetividade, ou sendo descumprida sem maiores consequências? Por que
criar uma lei que não será respeitada? O que explica esse abismo entre textos legais tão densos,
democráticos e humanos e uma realidade repleta de infrações e tentativas de burlar a efetividade da lei?
Assim, proponho neste artigo que analisemos essa proposição trazida pelos alunos para refletir
como a educação pode contribuir para manter ou mudar a realidade de falta de efetividade das leis que
garantem os direitos indígenas no Brasil. “Ou seja, a experiência sociocultural concreta dos alunos são o
ponto de partida para a orientação da aprendizagem.” (LIBANEO, 2002, p. 07) A proposta é pensar
porque a realidade prevista pelo diploma legal se torna tão destoante da realidade experimentada na
prática quando os indígenas buscam por seus direitos perante o Estado brasileiro. Embora exista um
anseio na letra da lei de que o país se desenvolva dentro de ideiais muito humanitários, democráticos e
de alteridade, a realidade se desenrola de maneira oposta. Em benefício de uma elite cada vez mais

50
abastada e restrita, a efetividade da lei perde espaço para o favorecimento de condições que contribuem
para a perpetuação das estruturas de poder e de opressão. Nisso, a educação tem tido um papel
relevante ao ser utilizada como forma de controle e de perpetuação de privilégios.
É nesse contexto individualista e de competição por acúmulo de capital que o texto da lei deve
ser aplicado, e exatamente por isso é difícil imaginar que o texto legal terá efetividade real se os
cidadãos privilegiam na prática interesses individuais e não coletivos, acúmulo de capital e não
humanidade, dependência e não autonomia. Nessa realidade o texto legal parece dizer respeito a uma
realidade paralela e nada praticável, portanto, não existe empenho em aplicar o texto da lei na realidade
de fato. Por isso, o texto da lei passa a ser negligenciado ou até mesmo interpretado de maneira que
possa permitir uma maior adequação aos anseios do capital, mesmo que isso signifique subverter
totalmente os motivos do texto legislativo.
Assim, é possível perceber que a autonomia que é tão almejada nas lutas dos povos indígenas
frente ao Estado brasileiro, não tem sido negada apenas a eles. Para Luciana Oliveira Dias e Iodenis
Cerqueira (2018, p. 131), a construção da autonomia tem se destacado como principal bandeira de luta
dos povos indígenas no Brasil nos seus mais variados campos de atuação. A luta dos povos indígenas é
para exercerem a autonomia que, em função da necessidade legal de tutela estatal, não usufruem
perante o Estado brasileiro. Contudo, é possível observar que essa autonomia existe perante suas
respectivas aldeias, pois seu processo educacional fomenta alteridade e autonomia.
A pergunta feita em sala de aula, do porquê não cumprimos a lei com relação aos direitos
indígenas garantidos no Brasil, parece repousar no fato de que a lei prevê uma realidade de alteridade
que a educação falha em proporcionar ou convenientemente deixa de fomentar a fim de evitar a
construção de uma sociedade que coloque em risco os anseios do capitalismo com relação ao acúmulo,
à competição e ao individualismo. Educar para a alteridade e para a autonomia parece ser a solução que
a educação indígena pode trazer para essa problemática da efetividade das leis. “A educação indígena
não é a mão estendida à espera de uma esmola. É a mão cheia que oferece às nossas sociedades uma
alteridade e uma diferença, que nós já perdemos.” (MELIA, 1999, p. 16) A práxis indígena fundada em
formas de estar e ver o mundo em reverência a preceitos ancestrais, se contrapõe à forma ocidental,
eurocêntrica e capitalista. Por isso a pergunta feita pelos alunos da educação intercultural não possui
uma resposta fácil, mas induz a uma reflexão de como nossa sociedade cria leis baseadas em um ideal
humanitário, enquanto se forma e vive de forma diametralmente oposta a esses ideais. O diálogo,
portanto, com diferentes cosmologias parece ser uma possibilidade de encurtar essa distância,
permitindo que a troca de saberes e o reconhecimento da tradição oral enquanto forma de saber possam
nos auxiliar enquanto sociedade, contribuindo para um processo educacional mais amplo, inclusivo e
autônomo.

PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos; interculturalidade; educação; alteridade; autonomia.

REFERÊNCIAS

51
ARAÚJO, Ana Valéria; et all (Orgs.). Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;
LACED/Museu Nacional, 2006.
CERQUEIRA, Iodenis Borges Figueira; DIAS, Luciana de Oliveira. Licenciatura intercultural indígena
como instrumento de efetivação de direitos humanos: notas sobre uma experiência didática. Revista
Territórios. Universidade Federal do Pernambuco. Caruaru – PE. Volume 04, número 07. 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra, 1996. – (Coleção Leitura).
LIBANEO, José Carlos. Didática: Velhos e Novos Temas. Edição do Autor. 2002.
MELIA, Bartolomeu. Educação Indígena na Escola. Cadernos Cedes, ano XIX, no 49, Dezembro/99
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 2008.
Disponível em: http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf

52
NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE MULHERES LIDERANÇAS DE UMA COZINHA SOLIDÁRIA

Samanta Winck Madruga

Anelise Rizzolo

As Cozinhas Solidárias (CS) do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), para além da
luta por moradia, se caracterizam por um espaço de resistência e enfrentamento da insegurança
alimentar e nutricional que vem aumentando de forma assustadora no Brasil, principalmente nos últimos
quatro anos. Esse equipamento social, para além do prato de comida, é promotor de soberania,
segurança, inclusão e educação popular. No Brasil, os dados recentes apresentados pela Rede Brasileira
de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN, 2022) mostram que 33,1
milhões de brasileiros estão em insegurança alimentar grave, ou seja, passam fome, e, ainda, mais da
metade da população encontra-se em algum grau mais leve de IAN, convivendo com a incerteza de ter
alimento no próximo dia para se alimentar. Ainda, os dados mostram que as maiores dificuldades estão
nos lares chefiados por mulheres, negras e famílias com pelo menos um membro sem emprego.
A partir deste contexto, com o propósito de conhecer os sujeitos e agentes sociais que coordenam
as Cozinhas Solidárias, fomos em busca de estabelecer relações sociais e parceria para a realização de
atividades, etnografia e processos educativos com as lideranças, com usuários e com as coordenações
estaduais e nacionais.
Este processo é parte do meu estágio pós doutoral em realização junto ao Mestrado em
Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) que visa, entre outras atividades,
construir, resgatar e dar visibilidade às narrativas interculturais de três mulheres pretas, periféricas,
oriundas de diferentes territórios, cozinheiras e coordenadoras da CS Sol Nascente – Ceilândia DF.
Entende-se que a produção de saberes culturalmente relevantes e a valorização do conhecimento
popular a partir de atores que vivenciam os sentidos do cotidiano, dialogam com um projeto decolonial
que visa ativar e difundir valores, saberes e práticas a partir da compreensão das suas próprias
subjetividades e do espaço que ocupam.
Interessante identificar que pedagogias em rede, como por exemplo as promovidas por arranjos
sócio-políticos nas Comunidades que Sustentam a Agricultura – CSA, são reconhecidas como
pedagogias decoloniais produzidas em contexto de luta contra as estruturas hegemônicas de
poder/saber e em favor da valorização das cosmovisões de saberes que foram subalternizados e
racializados pela modernidade/colonialidade (REIS DA SILVA, 2022; BOTELHO, 2021).
Este enfoque está presente na intersecção com as pessoas, o território e o espaço da CS do
MTST. É a rede de aprendizagem que ressignifica a relação com a comida, desde o cuidado com a horta
que alimenta e gera significados culturais, ativando memórias decoloniais de saberes ancestrais
relacionados a práticas de cultivo e preparação de alimentos e ainda, cria laços com seus usuários,
lideranças e aliados. A cozinha é tratada como espaço de ressignificação de cultura, produção, território,
comida e as práticas de comensalidades no contexto do enfrentamento da fome e insegurança alimentar

53
e nutricional. Além disso, assim como na CSA, as cozinhas são espaços de socialização onde se
estabelecem trocas e fortalecimento de relações de solidariedade e rede de apoio social, principalmente
entre mulheres.
O presente estudo está sendo desenvolvido em uma CS, em Ceilândia que, juntamente com a
ocupação Pôr do Sol, constituem a maior favela horizontal do país. Nesse território onde está instalada a
CS é um espaço de ocupação onde o MTST possui grande número de lotes conquistados (cerca de 108
famílias). A cozinha possui três coordenadoras (duas locais e uma estadual) e dois coordenadores
nacionais que viabilizam o funcionamento da cozinha, cinco dias da semana, servindo refeições gratuitas
a uma média de 120 pessoas diariamente.
O projeto se propõe a dar visibilidade às histórias de vida a partir do convívio e interações
cotidianas na Cozinha, como também a partir de entrevista/conversa aberta para fazer emergir as
narrativas das mulheres coordenadoras da CS. Segundo Bastos (2015), contando suas histórias os
indivíduos organizam suas experiências de vida e constroem sentido sobre si mesmos e, analisando
histórias, podemos alcançar e aprofundar inteligibilidades sobre o que acontece na vida social. Se
partimos da premissa que a cozinha é um território intercultural, ela produz narrativas interculturais,
possibilitando visualizar a potencialidade decolonial no comer. Se observarmos a interculturalidade dos
saberes em suas comidas, a visão intercultural se expressa nos territórios reais ou simbólicos onde a
comida se reproduz.
Entende-se que, no território cozinha, a partir das narrativas dessas mulheres, ecoarão de seus
corpos distintas lutas e formas de existência, configurando o que Andrade (2021) chama de corpos-
territórios. Segundo Santos (2013), nesta mesma perspectiva, essas narrativas interculturais nascem das
Epistemologias do Sul porque são produzidas por sujeitos em seus contextos identitários e de lutas
sociais, lutas essas que questionam os processos de exploração, de regulação e exclusão produzidos
pelo sistema capitalista e suas agências. Nesse sentido, lutam por igualdade social, mas também pela
não colonialidade dos seus corpos e formas de existência.
A inserção no campo iniciou em março de 2022 e, conforme reflexões de Brandão (2007), se deu
sem uma atitude imediata de pesquisa, onde a pesquisadora pôde conviver com as lideranças das
cozinhas, com os usuários (saber um pouco como eles são), conhecer e sentir aspectos peculiares de
cada grupo, como se colocam no espaço, como reagem às questões rotineiras do território e pôde
também se inserir em grupos de trabalho do movimento, como as brigadas de hortas e de saúde.
Por fim, me apresento como mulher, nutricionista e pesquisadora na construção participativa de
um fazer etnográfico entrelaçado com os corpos-território-mulheres. As narrativas interculturais
promovem o reencontro dessas mulheres com o seu mundo sociocultural, através da memória e no
transbordamento da historicidade. (ANDRADE, 2021) A potência da vivência também vai ao encontro da
produção de saberes comprometidos com a diversidade intercultural em diálogo com epistemologias
decoloniais.

54
Figura 1 – Primeiro encontro. Fonte: Arquivo pesquisadora

PALAVRAS-CHAVE: história de vida; decolonialidade; interculturalidade; corpo-território; cozinha


solidária.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, G. M.; CAMPANI, A.; HOLANDA, V. C. C. A potencialidade decolonial das narrativas
interculturais na docência indígena. Ensino em Perspectivas, Fortaleza, v. 2, n. 4, p. 1-11, 2021.
BASTOS, L. C.; BIAR, L. A. Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. D.E.L.T.A.,
31-especial, 2015 (97-126). http://dx.doi.org/10.1590/0102-445083363903760077.
BOTELHO, T. A soberania alimentar como luta decolonial e territorial. Ver. Culturas Jurídicas, Vol. 8,
Num. 20, mai/ago., 2021.
BRANDÃO, C. R. Reflexões sobre como fazer trabalho de campo. Sociedade e Cultura, v. 10, N. 1,
Jan./Jun. 2007, P. 11-27.
II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro
eletrônico]: II VIGISAN : relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar – PENSSAN. -- São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022. Disponível
em: https://olheparaafome.com.br/. Acessado em 10 de outubro de 2022.
REIS DA SILVA, A. T.; DORNELES, A. B. Pedagogias ecológicas e decoloniais em rede: o movimento
CSA como comunidade de aprendizagem. Desenvolv. e Meio Ambiente. Vol. 59, p. 399-417, jan./jun.
2022. DOI: 10.5380/dma.v59i0.75659 e-ISSN 2176-9109.
SANTOS. B. S.; MENESES, M. P. [orgs.]. Epistemologias do sul. São Paulo : Cortez, 2013.

55
Conversatório 2

56
El conversatório “Os intercâmbios epistolares como ferramenta de interculturalidades e
decolonialidades” exploró simultáneamente las connotaciones (neo)coloniales/racistas/sexistas del uso
de la epistolar y su potencial como herramienta para imaginar otras realidades más inclusivas. Para ello,
dimos la bienvenida a 4 ponentes invitadas, que reflexionaron, a partir de sus proyectos de investigación,
sobre el potencial (y las dificultades) de los intercambios epistolares para fomentar la educación
intercultural y decolonial.
Siguiendo una lógica epistolar, las 5 ponentes presentaron su trabajo en forma de carta. Para
romper el hielo, la primera carta fue escrita por la moderadora, Meritxell Simon-Martin, quien dirigió la
siguiente misiva, tanto a las 4 ponentes como a tod@s l@s participantes:

Caras participantes,
Fico muito feliz em conhecer-lhes e contar com a sua participação nesse conversatório epistolar.
Infelizmente, nossa parceira, a artista Morgana Barbosa, não pode estar aqui conosco hoje para
iniciar nosso diálogo epistolar. Então resolvi escrever esta carta para quebrar o gelo (se é que
existe essa expressão em português).
Nessa carta gostaria de contar sobre uma atividade que desenvolvemos entre a UnB e a minha
universidade, a Universidade de Lleida, na Espanha, no ano letivo 2020-2021, em plena pandemia
e em pleno confinamento.
A professora Ana Tereza Reis da Silva, a minha companheira Gloria Jové e eu queríamos, ao
mesmo tempo, responder aos desafios educativos e humanos que a pandemia da COVID-19
estava a provocar, e fomentar o diálogo intercultural no campo da educação. Para isso
desenhamos uma atividade epistolar. Consistia em criar uma rede de trocas de e-mails entre
alunos de graduação da UdL matriculados na disciplina "Educação na diversidade” e os alunos de
graduação da UnB matriculados nas disciplinas “Educação das relações étnico-raciais” e
“Fundamentos da Educação Ambiental”. Comprometidas com pedagogias críticas (feministas)
decoloniais, nosso propósito era transformar a diferença linguística, cultural e social dos alunos
em uma oportunidade de aprender com a alteridade e refletir, por um lado, sobre o racismo na
sociedade e as práticas antirracistas nas escolas e, por outro lado, sobre a relação
cultura/natureza na episteme do ocidente e nas visões de mundo dos povos nativos de Abya Yala,
questões que constituem pontos de contato entre as nossas disciplinas.
Como professoras interessadas em melhorar nossa prática docente, nos perguntamos: o que
realmente significaram esses diálogos epistolares para os alunos? Nós os incorporamos com toda
a ilusão de neutralizar os efeitos nocivos do isolamento durante a pandemia e incentivar a
discussão e amizades (transatlânticas) que fomentem imaginários e subjetividades antirracistas e
estejam abertas a alteridade. Mas, os alunos vivenciaram isso assim? Eles serviram como
estímulos de aprendizagem intelectual e emocional? O clima de confiança, empatia, intimidade e
liberdade de pensamento que queríamos criar, se traduziu numa comunidade de aprendizagem e
afetividade que reconhece a diferença que nos constitui como fonte de convivência criativa? Mais

57
importante ainda, será que eles gostaram dessa nova atividade que desenhamos como
ferramenta de ensino e como estratégia de humanização do processo educativo?
Ainda que, nesse caso em particular, as cartas tenham sido trocadas por meio eletrônico, entre
pessoas desconhecidas que nunca haviam tido qualquer contato antes, parece-nos evidente que
a atividade promoveu uma aproximação entre as (os) estudantes, tornando a alteridade e a
diferença uma presença mais palpável. Isto é, o diálogo epistolar tornou possível o encontro à
medida que proporcionou a consideração da humanidade do outro, promovendo,
consequentemente, situações de reconhecimento mútuo, empatia e afeto. Por outro lado, as
diferenças linguísticas que, em um primeiro momento, víamos como uma barreira para o diálogo,
acabaram por suscitar a curiosidade e o fascínio pelo contato com o diferente, com uma realidade
que se pode estranhar colocando em perspectiva as próprias referências culturais.
Nas cartas que agora eu vou distribuir entre vocês, vocês vão poder ouvir as vozes dos próprios
estudantes e identificar como elas (eles) remarcam positivamente a possibilidade do encontro que
as cartas proporcionaram, “ainda que à distância”; e, também, como enfatizam o estranhamento, a
riqueza e a interatividade que se abre a partir do contato com um mundo e pessoas diferentes.
Então, o nosso diálogo epistolar vai continuar da seguinte forma: vocês vão poder ler essas cartas
(e ouvir as vozes dos próprios alunos). E a partir do que as cartas suscitem em vocês e
conectando elas com os resumos que vocês enviaram para participar nesse conversatório, vocês
vão responder com uma carta (oral ou talvez, se vocês desejarem, escrita). Talvez vocês queiram
ler fragmentos das vozes dos estudantes ou dos resumos que vocês enviaram para ajudar a
“escrever” a sua carta.
Em última instancia, o objetivo desse conversatório dialógico é criar, juntas, de forma coletiva,
uma reflexão sobre os intercâmbios epistolares como ferramenta de interculturalidades e
decolonialidades.
Obrigada uma vez mais por estar aqui hoje e ... começamos o diálogo epistolar! Abraços,
Meritxell

A partir de esta carta, las 4 ponentes fueron presentando su investigación de forma epistolar,
encadenando las respuestas, que siguieron este orden: Damiana Sousa Campos (“NOTAS SOBRE AS
CARTAS DE AMOR ENTRE COMUNIDADES TRADICIONAIS DO RIO CARINHANHA NA REGIÃO DO
GRANDE SERTÃO VEREDAS”), Cássia Elen Nunes de Almeida (“NARRATIVAS DE CRIANÇAS DO
CAMPO DE BRAZLÂNDIA (DF): A TROCA DE CARTAS COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA”),
Daiane Messias dos Santos (“ESCRE(VIVÊNCIAS) DE MULHERES NEGRAS TRABALHADORAS
DOMÉSTICAS: DAS AUSÊNCIAS ÀS INSURGÊNCIAS”), y Sabrina Stein (“CARTAS-NARRATIVAS DE
MULHERES PROFESSORAS”).
Estas 5 cartas suscitaron un diálogo epistolar extendido, que incluyó la improvisación de cartas de
otros miembros que participaron en el conversatório.

58
Para terminar la sesión, tod@s l@s participantes escribieron una carta como ofrenda, que
depositamos bajo el Árbol de los Afectos, situado en el hall central de la Casa do Professor.

59
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Narrativas de crianças do campo de Brazlândia (DF): a troca de


Cássia Elen Nunes de Almeida 61
cartas como ferramenta metodológica

Sabrina Stein Cartas-narrativas de mulheres professoras 64

Notas sobre as cartas de amor entre comunidades tradicionais do


Damiana Sousa Campos 67
Rio Carinhanha na região do Grande Sertão Veredas

Daiane Messias dos Santos


Escre(vivências) de mulheres negras trabalhadoras domésticas: das
Lívia Alessandra Fialho da 70
ausências às insurgências
Costa

60
NARRATIVAS DE CRIANÇAS DO CAMPO DE BRAZLÂNDIA (DF): A TROCA DE CARTAS COMO
FERRAMENTA METODOLÓGICA

Cássia Elen Nunes de Almeida


Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Brasília na linha de pesquisa
Educação Ambiental e Educação do Campo. almeidacassiaa@gmail.com

Esse texto pretende apresentar possibilidades de reflexões teóricas e metodológicas a respeito


da pesquisa em andamento, que tem como proposta implementar a carta como ferramenta metodológica.
A pesquisa tem como objetivo conhecer a história de Brazlândia/DF, por meio das narrativas e do
cotidiano vivido pelas crianças, visto que a infância do campo possui significados singularizados e de
múltiplas experiências. Isto posto, se espera que a carta seja uma ferramenta metodológica nas oficinas
vivenciais para legitimar as reflexões, interações e relações com os espaços em que as crianças do
campo habitam.
Dessa forma, o estudo busca identificar a concepção de crianças do campo de sete (7) a onze
(11) anos de idade matriculadas no ensino fundamental - séries iniciais - da rede pública de ensino e
moradoras da IV Região Administrativa (RA IV), Brazlândia DF. A IV RA foi fundada em 5 de julho de
1933, e é localizada aproximadamente a 50km de Brasília-DF, capital do Distrito Federal. Nesse
contexto, Passeggi (2014) menciona que “é importante que se leve a sério as possibilidades de escutá-
las e de legitimar sua reflexão sobre o pensam que fazem, como fazem, e como aprendem a ser, e a
conhecer nas escolas que as acolhem na infância” (PASSEGGI, 2014, p. 99).
Isto posto, Paulo (2022) compreende que as cartas promovem o diálogo crítico. Logo, permitem
que as crianças apresentem suas significações da cidade habitada, conforme seu contexto vivencial.
Esse conhecimento permite valorizar a infância, como sujeitos de direito e que têm muito a contribuir na
sociedade, valorizando e legitimando seu conhecimento. Müller (2012) bem pontua sobre “a necessidade
de incluir as crianças nas discussões sobre a cidade que habitam e de promover o diálogo com elas, de
forma a engajá-las nos processos de mudança” (MÜLLER, 2012, p. 19). Sendo assim, por meio delas é
possível propor um novo modelo de cidade.
Nesse sentido, o referencial teórico-metodológico adotado por esta pesquisa é o qualitativo, tendo
como instrumento as narrativas (CLANDININ & CONNELLY, 2011), o que possibilita ampla compreensão
e investigação a respeito do tema, partindo da colaboração e compartilhamento dos indivíduos. Chizzotti
(2000) afirma que a finalidade da pesquisa qualitativa é:
intervir em uma situação insatisfatória, mudar condições percebidas como transformáveis,
onde pesquisador e pesquisados assumem, voluntariamente, uma posição reativa. No
desenvolvimento da pesquisa, os dados colhidos em diversas etapas são constantemente
analisados e avaliados (CHIZZOTI, 2000, p.89).

Durante o período de pesquisa serão realizadas as oficinas vivenciais em que os estudantes


apresentarão suas opiniões e experiências através da dinâmica interativa e lúdica que a oficina permite.
As oficinas vivenciais permitem utilizar diversas ferramentas de incentivos para a percepção das crianças
sobre a cidade de Brazlândia (DF). Assim, dentro dessas oficinas o uso das cartas será uma ferramenta

61
ideal para implementação, visto que a metodologia permite mostrar opiniões, sentimentos, recordações e
expressar pensamentos. Paulo (2018) menciona que a carta possibilita que o pesquisador se aproxime
do sujeito da pesquisa, permitindo uma análise crítica e reflexiva e que todos os sujeitos tenham a
liberdade e a criatividade de escrever de diferentes formas conforme o contexto em que estão inseridos.
Dickmann (2020) bem pontua que as cartas “são incentivadoras da produção de conhecimento com base
no cotidiano de quem escreve” (DICKMANN, 2020, p. 48).
Rocha (2013) destaca que observar as narrativas das crianças e para infância do campo é
reconhecê-las diante das identidades socioculturais, “sujeitos históricos e sociais, produtoras de cultura e
identidade” (ROCHA, 2013, p. 06). Isso posto, buscarei mostrar a voz da criança camponesa e sua
relação com espaços que lutam por uma educação digna de qualidade e que se aproxime com a
realidade do campo, “uma luta em que estão presentes valores como cooperação e solidariedade, em
que brincar e trabalhar são práticas sociopolíticas, se constituindo como dimensões formadoras do ser
humano” (ROCHA, 2013, p.12).
É necessário, portanto, sinalizar que a educação do campo defende práticas pedagógicas
dialógicas e com forte viés crítico, desta forma, colocam-se em questão as relações capitalistas de
produção, desigualdade, exploração do trabalhador. O trabalho é parte constitutiva do processo
educativo e pressupõe a organização coletiva. Outro fator preponderante diz respeito à articulação do
processo educativo com a realidade do educando. Molina (2011) nos traz reflexões sobre protagonismo e
autonomia dos estudantes e da comunidade no processo de construção do conhecimento acerca do
território ao qual estão vinculados, mostrando seus saberes e vivências em diálogo com os
conhecimentos científicos.
Em conclusão, espera-se que o conhecimento produzido sobre esse assunto, contribua com a
discussão sobre a importância da utilização de diferentes e inovadoras ferramentas metodológicas para
alcançar os objetivos de pesquisas. E que por meio das cartas as crianças do campo possam trazer suas
próprias vivências e experiências adquiridas no tempo e nos espaços de que se apropriam e no modo de
viver sua infância, descobrindo através das próprias narrativas meios de transformação no processo de
formação. Deseja-se oportunizar espaços para que as vozes infantis também sejam ouvidas, uma vez
que o conhecimento é corpóreo e é com o corpo que temos percepção, experiência e memória do
espaço e do mundo.

REFERÊNCIAS
CHIZZOTTI, Antonio. A pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Editora Vozes. Petrópolis.
2006.
DICKMANN, Ivanio. As dez características de uma carta pedagógica. In: PAULO, Fernanda dos Santos;
DICKMANN, Ivo (Org.). Cartas pedagógicas: tópicos epistêmico metodológicos na educação popular. 1.
ed. –Chapecó: Livrologia, 2020.
MOLINA, M. C. e FREITAS, H. C. de A: “Avanços e desafios na construção da educação do campo”. Em
Aberto, 24 (85): 17-31, Brasília, 2011.

62
MÜLLER, Fernanda. Infância e Cidade: Porto Alegre através das lentes das crianças. Educação &
Realidade, Porto Alegre, 37(1), jan./abr., 295-318, 2012.
PASSEGGI, Maria da Conceição et al . Narrativas de crianças sobre as escolas da infância: cenários e
desafios da pesquisa (auto)biográfica. Educação. Santa Maria, Santa Maria , v. 39, n. 01, p. 85-104, abr.
2014 . Disponível em <http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
64442014000100007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 out. 2022.
PAULO, Fernanda dos Santos; DICKMANN, Ivo (Org.). Cartas pedagógicas: registro e memória na
Educação Popular. 1. ed. –Chapecó: Livrologia, 2020.
ROCHA, Maria Isabel Antunes. Prefácio.In: Infâncias do Campo, (Coleção Caminhos da Educação do
Campo). Autêntica: Belo Horizonte, 2013. 9-12
SILVA, Isabel Oliveira e; SILVA, Ana Paula Soares da; MARTINS, Aracy Alves [Org.]. Infâncias do campo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 248 p. (Coleção Caminhos da Educação do Campo)

63
CARTAS-NARRATIVAS DE MULHERES PROFESSORAS

Sabrina Stein
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade de Brasília (UnB) na linha de pesquisa Educação Ambiental e Educação do Campo.
sabrinastein03@gmail.com

Introdução

No final de 2019, a disseminação do vírus SARS-CoV-2 mudou por completo a nossa vida,
causando medo, incertezas e assolando vidas com partidas sem despedidas. De forma inesperada,
tivemos que abandonar nossas rotinas e nos mantermos em distanciamento social para nossa
segurança. Essa mudança repentina afetou profundamente o trabalho escolar, já que todas as escolas
foram fechadas e professores e professoras tiveram que transformar suas casas em um local de
trabalho. Quando nos referimos à mulher professora, essa teve que ser, além de mãe, esposa e filha,
também professora em home office, o que trouxe uma sobrecarga muito grande, gerando um misto de
sentimentos e até mesmo esgotamento físico e mental. Em meio a todas essas mudanças, como mulher
e professora, senti todos esses afetamentos e atravessamentos provocados pela pandemia da Covid-19
e, dentro dos espaços escolares, não tivemos um espaço de diálogo para que pudéssemos compartilhar
nossas alegrias e até mesmo angústias, de modo a criarmos uma rede de afetos para partilhas e
fortalecimento docente.
Assim, o que é apresentado aqui faz parte de uma pesquisa em andamento que tem o interesse
de investigar, por meio de narrativas docentes, as experiências que nós, professoras dos Anos Iniciais e
Finais do Ensino Fundamental estamos vivenciando nos cotidianos escolares campesinos atravessados
pelo vírus SARS-CoV-2, tendo como disparador as memórias-fragmentos de nossa vida.

Narrando a vida por meio de cartas-narrativas

O ato de escrever é um hábito e assim como nos diz Deleuze (2013, p. 17) “Escrever é um fluxo
entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relação de corrente,
contracorrente, e redemoinho com outros fluxos" pois a escrita nos aproxima, nos faz caminhar por vários
caminhos, nos fazendo pensar e refletir.
A pandemia provocada pela Covid-19 trouxe um misto de medo e apreensão em todos os
aspectos de nossa vida, pois, ao nos referirmos aos espaços escolares, observamos que esses sofreram
muitos impactos, já que todas as aulas foram suspensas e nós, professores e professoras, tivemos que
nos adaptar a esse modelo de trabalho que nos obrigava a termos distanciamento e fazermos uso das
tecnologias para que os estudantes pudessem aprender.
Em meio a isso, a mulher professora teve que assumir muitos papéis ao mesmo tempo e, devido
a essa sobrecarga de trabalho, não tivemos um espaço para dialogarmos sobre aquilo que nos
afetou/afeta, restringindo nossos encontros virtuais a obrigações escolares.

64
A mulher professora se torna protagonista dessas narrativas porque, “Pensar no magistério sem
pensar no feminino é hoje inviável [...]” (ALMEIDA, 1998, p. 78), já que a mulher é a maioria no
magistério. Por isso apresento um projeto para que nossas vozes sejam compartilhadas e narradas a
partir do que vivenciamos durante a pandemia da Covid-19, de modo a dialogarmos sobre as mudanças
que ocorreram em nossas vidas, nos espaços escolares e como isso tem afetado a nossa prática
docente.
Falar sobre aquilo que nos afeta é muito importante porque criamos espaços de fortalecimento e,
assim como nos diz Certeau (2001), no coletivo entendemos as microrresistências, as “táticas de
resistências”, criadas e desenvolvidas para resistir, observando os desdobramentos e
contingenciamentos causados pelo vírus SARS-CoV-2 na prática docente.
Para potencializar os diálogos, se apoia nas redes de conversações, que se constitui como um
encontro de corpos para que possamos refletir sobre os afetamentos provocados pela pandemia da
Covid-19, tanto em nossa vida pessoal, quanto profissional.
Nesses encontros, todas nós, mulheres professoras vamos experienciar o trabalho com textos
epistolares, escrevendo cartas umas para as outras sobre as vivências e experimentações nos/dos/com
os cotidianos da escola, atravessados e afetados pela pandemia, se constituindo um instrumento
metodológico de registro escrito dessas narrativas.
Assim, iremos problematizar coletivamente sobre a prática educativa como um processo que
afeta as subjetividades e implica movimentos de formação continuada, possibilitando modos outros de
exercitar a docência.
A formação desses encontros dialógicos são uma possibilidade potente de produzir as narrativas
orais e escritas considerando nossas histórias, memórias e práticas docentes que foram tecidas dentro
do cotidiano escolar, a partir da relação conosco e com os outros corpos exteriores, a qual nos possibilita
observar que por meio dessas relações somos afetadas e podemos afetar (ESPINOSA, 2007).
A proposta inicial é tecer esse diálogo com as mulheres professoras dos Anos Iniciais e Finais do
Ensino Fundamental das escolas EMEF Aracê e EMEF Luiz Pianzola, no município de Domingos
Martins-ES, por meio de redes de conversações, através de cinco encontros presenciais, nos quais
dialogaremos sobre os atravessamentos da pandemia da Covid-19 em nossas vidas e no cotidiano das
escolas, problematizando e debatendo sobre aquilo que nos afetou/afeta. A opção por esse campo de
pesquisa se dá porque sou mulher e professora da rede municipal de Domingos Martins e experiencio
esses afetamentos.
Ao final de cada encontro iremos propor a escrita de cartas entre as participantes para que
possamos iniciar a produção dessas narrativas, de modo a registrar aquilo que nos afetou/afeta porque a
escrita também é uma forma de manifestação de sentimentos, importante para nos ajudar a refletir sobre
nossa vida e como podemos romper com aquilo que nos incomoda. Escrever é libertador para a alma.
Esse movimento de tramar e produzir é importante porque irá possibilitar o trabalho com autoria,
autonomia, legitimidade, beleza, pluralidade estética dos discursos dos sujeitos que estão envolvidos
com a pesquisa (FERRAÇO, 2008), pois cada um poderá falar ou escrever suas narrativas, resgatando
as memórias-fragmentos importantes para nossa formação pessoal e profissional.

65
Palavras finais

Assim, diante do movimento de tramar e produzir, ao puxar os fios das narrativas, cada uma de
nós fornecerá os elementos que irão possibilitar uma reflexão da prática docente, construindo forças que
nos ajudarão a refletir e a nos fortalecer diante das mudanças que sofremos com a pandemia da Covid-
19, enfatizando que nós nos reinventamos, como nos afirma Carvalho (2009) cotidianamente a partir da
multiplicidade do encontro dos corpos.
A escrita de cartas será um importante recurso metodológico no processo de tessitura da escrita
daquilo que nos afetou/afeta, bem como teremos a oportunidade de ler narrativas de vida, resgatando
essa importante comunicação.

PALAVRAS-CHAVE: narrativas docentes; pandemia; cotidiano escolar; cartas-narrativas.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: Editora UNESP,
1998.
CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et
Alii: Brasília, DF: CNPq, 2009.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano I: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2001.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013.
ESPINOSA, Benedito de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. A pesquisa em educação no/do/com o Cotidiano das Escolas. In:
FERRAÇO, Carlos Eduardo; PEREZ, Carmen Lúcia Vidal; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (orgs.).
Aprendizagens cotidianas com a pesquisa: novas reflexões em pesquisa nos/dos/com os cotidianos
das escolas. Petrópolis: DP et Alii, 2008. p.23-34.

66
NOTAS SOBRE AS CARTAS DE AMOR ENTRE COMUNIDADES TRADICIONAIS DO RIO
CARINHANHA NA REGIÃO DO GRANDE SERTÃO VEREDAS

Damiana Sousa Campos

Resumo

O presente relato é uma tentativa de refletir acerca das experiências vividas nos tempos de professora
rural (2002 a 2005) e mais recentemente como pesquisadora social em que a troca de cartas de amor
entre os jovens e adultos das comunidades da beira do rio Carinhanha movimentaram a dinâmica social
e das unidades domésticas. Nossa proposta é demostrar como o desejo, a palavra e o amor são lidos
nessa realidade por aquele que escreve, o mediador que leva e o receptor que recebe.

De onde falamos:
Carinhanha, palavra de origem tupi que remete a um peixe que vive nas profundezas e se
alimenta de lodo. Por algumas vezes, eu pensei sobre as profundezas desse rio que ora é feminino, a
Carinhanha, ora é trazido por seus habitantes no masculino.
Aqui, vou pedir a licença poética e tratá-lo no feminino, a Carinhanha, quando me remeter ao
lugar. Nesse momento, estamos falando de um rio de águas verdes e caudalosas, que une dois estados
irmãos, Minas Gerais e Bahia.
Ele nasce do lado de Minas, mais especificamente nos arredores do Parque Nacional Grande
Sertão Veredas e é um dos principais afluentes do rio São Francisco livre de barramento. A sua bacia
tem extensão de 1.670 hec. e abriga uma rica biodiversidade, caminhos de veredas e comunidades
tradicionais veredeiros, quilombolas e geraizeira. Sua nascente está próxima à trijunção entre Minas
Gerais, Bahia e Goiás.
Na comunidade quilombola Retiro dos Bois, o trânsito dos moradores se dá para além das
fronteiras entre estados e munícipios. A vida cotidiana traz o rio como extensão da casa e a morada é
passagem e pouso para os que chegam sem demora.
No início dos anos 2002, fui morar no Retiro. Era professora recém-chegada e já era mãe. A
notícia que a professora nova chegaria foi enviada por bilhete, outra categoria diferente da carta. O
bilhete é algo simples, não demanda envelope e pode ser lido facilmente. Já a carta, é algo mais
trabalhado. Geralmente quem escreve enfeita a carta com desenhos e dobra por várias vezes. Carta é
enviada com menção, se faz necessário um mensageiro.
Passados alguns meses, já de posse da escola e entrosada com a comunidade, abri vagas para
uma turma especial de alfabetização de jovens e adultos. O projeto durou seis meses e foi o tempo
suficiente para conhecer um pouco mais do universo da juventude. Foi em uma das aulas que escutei
pela primeira vez sobre as cartinhas de amor. Percebi que o tema demandava por um corpo e postura

67
diferente dos estudantes. Em especial dos homens, que encabulados deixavam transparecer desejo de
aprofundamento.
João, filho de Lourença, era o mais o sorridente de todos. De acordo com os colegas, era o que
mais escrevia e recebia cartas, mas não seguia no compromisso de noivado. Os temas eram variados,
mas sempre remetiam às festas de Folias de Reis e de São Raimundo Nonato, ocasião de encontro de
todos. As histórias das festas e do possível futuro encontro também circundavam o desejo da escrita.
Esse tema é sempre carregado de riso e alguma espécie de timidez. Não se fala muito sobre
amor e não se declara.
Helena, filha de Jovem, conta que as cartas eram mandadas por gente de confiança. Tudo era em
segredo e a frequência era o tempo da resposta. Todos os seus irmãos, oito ao total, escreveram ou
receberam uma carta. E, desta forma, os casamentos na família também foram acertados através de
cartas.
Aos risos, os próprios primos lembram da vez que o pedido de casamento foi negado. Toninho
amava Maria que amava Zezinho. Toninho insistiu namoro com Maria e toda semana enviava uma carta
a ela. Sem saber como falar, Maria dizia que não queria. Logo, Toninho começou a enviar carta para sua
irmã, Dinalva. Dinalva, ainda moça, não gostou da ousadia e respondeu em seguida. Mesmo assim,
Antonio aguardou.
Dinalva e Maria são filhas de Lourença e irmãs de João e José. Essa família é conhecida na
região por sua boa fé e recepção. Todos os anos, rezavam de São Sebastião e Bom Jesus. Nesse
período, a circulação de gente cresce tão quanto a devoção. Já Antônio é filho de Jovem e Gerônimo,
irmão de Helena. Ambas as famílias trazem disputadas de eras, em especial, de jura de casamento.
Por mais que os filhos trocassem cartas, os pais não aceitavam a união. Diziam que era assim
que era para ser, sem união. As histórias eram muitas, tanto de reza quando de feitiço. E que se fosse
quebrado, ocorreria morte. Desta forma, Helena guardou o seu grande amor Zé para sempre. Foram
mais de centenas de cartas até o envio da última. Helena, presa entre os afazeres de casa e cuidado
com a mãe, esqueceu de seu lado mulher.
Helena, como eu, foi mãe muito nova e não se casou. Essa decisão para a zona rural é bem
desafiadora,que sofre muitos julgamentos e pressão familiar. Ela manteve a permissão para ter o bebê e,
desde o nascimento do seu filho, não se relacionou. Ela trocou cartas com Zé por 10 anos, mas sem
sucesso do seu retorno. Zé seguiu para outro estado e não mais voltou.
O juramento das mães de Zé, Lourença, e de Helena, Jovem, permanece valendo mesmo depois
de falecidas. Todas as pessoas que acompanharam essa história de amor imaginam que ao finalizar a
vida das mães, a paz voltaria e Helena e Zé ficariam juntos. Mas não foi bem assim. As cartas
mantiveram a frequência, porém agora mais compassadas e sem resposta de Zé. O tempo aflige e a
deixa pensativa se é isso mesmo que quer.
Os mais velhos contam que antigamente não tinha como trocar essas cartas que os mais novos
usavam. Mandou uma carta, a resposta já vinha para casamento. Foi assim para o casal Maria e Edgar.
Edgar já sabia que demoraria, mas sua companheira viria para casa. Porém, ele não teve pressa. O seu
mediador foi Bastião, casado com Raimunda e pais de Ilma e Vilma.

68
Para conseguir dar apoio de Bastião para levar o recado de casamento a sua futura esposa,
Edgar recebeu a promessa que ganharia uma caneca de alumínio vinda diretamente da Serra das
Araras. Esse distrito rural é conhecido pela Romaria de Santo Antônio. Após o sim de Raimunda, Edgar
recebeu seu presente e, 15 anos depois, se orgulha de mostrar a caneca raríssima e carregada de afeto.
Essa caneca foi a primeira dessa categoria, por isso o alvoroço.
Existem muitas histórias como essa que vão cruzando com as dinâmicas da vida. As cartas não
são usadas mais com tanta facilidade na Carinhanha. Agora, o WhatsApp deu passagem e é o meio de
comunicação mais acessível. Com essa alteração, o desejo de casamento e de trocar informações se
manteve. Porém, quem passou pela experiência da carta, não se esquece.
Esse é um breve relato que trouxe algumas das histórias escutadas em campo. O desejo é
realizar uma cartografia dos afetos montando as histórias e seus respectivos lugares. Desejo com essa
inscrição escutar mais sobre as teorias decolonias, escrever com mais detalhes cada passo dado em
direção ao outro e sobre o amor romântico do século 12.
Não obstante, acredito que pensar essa temática valida outras formas de se posicionar no
mundo. Abre novas conexões de aprendizado e de criação.

PALAVRAS-CHAVE: carta, amor, território, rio, cartografia dos afetos.

69
ESCRE(VIVÊNCIAS) DE MULHERES NEGRAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS: DAS AUSÊNCIAS
ÀS INSURGÊNCIAS

Daiane Messias dos Santos


Pedagoga e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (UNEB).
daianemessias87@gmail.com

Lívia Alessandra Fialho da Costa


Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB). lcosta@uneb.br

O presente trabalho consiste numa pesquisa de mestrado no qual as narrativas de mulheres


negras empregadas domésticas é o foco central. Intento trazer uma escre(vivência) a partir da oralidade
através das narrativas autobiográficas de mulheres negras que tiveram seu percurso escolar
interrompido e/ou prejudicado, melhor dizendo, desejo produzir informações, do relato oral de
experiências de vida individuais e coletivas, dessa forma, serão pontos de referência. A partir disso,
tenho como objetivo geral analisar as estratégias de letramento de trabalhadoras domésticas negras com
foco nos elementos que afastaram-nas do espaço escolar e, de modo mais específico, procuro mapear
as estratégias de insurgência/enfrentamento/superação à exclusão escolar de mulheres negras
trabalhadoras domésticas; bem como apontar como as trabalhadoras domésticas com trajetórias
escolares prejudicadas transformaram processos de desigualdade em processos de luta e comparar as
histórias de vida identificando aspectos comuns da trajetória escolar das trabalhadoras domésticas que
evadiram do espaço escolar.
Diante disso, o trabalho permeará por narrativas autobiográficas. Como critério de identificação
das interlocutoras da pesquisa, delimitou-se que são mulheres, negras, todas integrantes do meu ciclo
familiar, que são e/ou foram trabalhadoras domésticas, que tiveram percurso escolar prejudicado ou
interrompido. Sigo uma abordagem feminista negra, autobiográfica, e como instrumento para produção
de dados a entrevista semiestruturada para orientar as narrativas autobiográficas. Entendo as
entrevistadas como coautoras da pesquisa, visto que recorro à narrativa de mulheres negras
apresentando-as como protagonistas do/no processo da minha escrita, sigo guiada por elas. O trabalho
se dá por meio de narrativas autobiográficas atravessadas pela “escrita de si”, como define Lia Scholze
(2005) que é a experiência da escrita de si no texto narrativo, assim sendo, a autobiografia, e
“escre(vivência)” cunhada por Conceição Evaristo (2005), que é falar de si, pondo na escrita a dupla
face, a intersecção de raça e gênero. Desse modo, a autobiografia reconfigurada pela escre(vivência)
será tecida na pesquisa pela oralidade de quem não domina a escrita por conta da exclusão escolar, mas
nem por isso menos autobiográfica.
Desta forma, suas narrativas serão tecidas pela oralidade, pois viso identificar e apontar como
transformaram processos de desigualdades em atos de luta, revelando processos de insubmissão, em
contraposição à invisibilidade direcionada às mulheres negras empregadas domésticas. Assim, mapear
as formas de resistência de mulheres negras, numa contemporaneidade que ainda sim, teima em negá-
las.

70
Aqui em específico, remeto à mulher negra, que foi construída historicamente como não mulher, e
quando vista como uma, vista como inferior, ou seja, à hierarquização de gênero como remete Lélia
Gonzalez (2018, p. 191). Dessa forma, intersecciono gênero, raça e educação, no intuito de analisar
como estas categorias, aqui tidas como marcadores de desigualdades se articulam pondo as mulheres
negras historicamente em um não lugar. Diante disso, trago Jimena Furlani (2016) que ressalta quê, para
entendermos gênero, é necessário entender que todas as pessoas possuem “um sexo e um gênero”
(2016, s.n)8.
No que tange à raça, Nilma Lino Gomes (2005) afirma que raça é o termo que consegue
dimensionar a discriminação vivenciada pela população negra e de como o racismo os afeta. No Brasil, a
cor da pele é determinante para seu destino na sociedade. Assim, defende que esse fator social tem
raízes históricas causadas pelo período da escravidão ocorrida no Brasil nos séculos anteriores e que o
racismo constrói a desigualdade e põe a população negra em um patamar de desvalia.
Trago a interseccionalidade como ferramenta analítica, vislumbrando mostrar os marcadores
sociais que afetam as mulheres negras e de como as afetam, posicionando-as num lugar de
desvantagem em detrimento de outros grupos de mulheres no Brasil, culminando em prejuízo no campo
educacional, social, psíquico dentre outros. No esforço de fornecer elementos para entender os fatores
que prejudicam ou afastam as mulheres negras do espaço escolar, exploro a interseccionalidade de raça
e gênero, pois a categoria permite compreender a localização social de desvantagem. Estas categorias
imbricadas dão outra conotação à localização social das mulheres negras, esses marcadores sociais são
formadores de fatores cruciais de desempoderamento que permeiam a vida das mulheres negras.
Assim, a necessidade de entender a interseccionalidade existente se relaciona com a educação,
pois entender estes marcadores imbricados e de como agem criando vulnerabilidades possibilita
compreender as desigualdades produzidas por eles. E como dificultam e/ou impedem o acesso à
educação e o deslocamento social, econômico de pessoas interseccionadas por diferentes marcadores.
Dessa maneira, a educação formal é uma das vias essenciais para enfrentar eixos de exclusão,
de dominação, de invisibilidade que o poder hegemônico impõe às pessoas não brancas. Segundo
pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no Brasil, em 2015, o nível escolar de
mulheres negras e pardas era de 6,6 anos de estudo, enquanto das mulheres brancas era ascendente
de 6,9. Os dados revelam a interseccionalidade de gênero e raça, dificultando a mobilidade social de
mulheres negras. A pesquisa do IPEA (2015) ainda aponta que as mulheres negras estão em maior grau
no emprego doméstico, bem como em maior grau na distorção idade série. Embora nas últimas três
décadas tenha se universalizado o ensino fundamental no Brasil, o mesmo não garantiu o acesso igual
da população à escola, de acordo com o livro Mulheres negras contam sua história (2013)9. Contudo, a
instituição escolar precisa ser um espaço de quebra de padrões, que redefina trajetórias, que possibilite
quebra de ciclos de exclusão.

8 DIP, Andreia. Existe “ideologia de gênero”?, entrevista com a doutora em educação, Jimena Furlani. Agência Patrícia
Galvão. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres de-olho/existe-ideologia-de-genero-entrevista-com-
doutora-em-educacao-jimena-furlani/. Acesso: 01 dez. 2021.
9 Brasil. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Prêmio Mulheres Negras Contam sua História –
2013 p. 11.

71
PALAVRAS-CHAVE: empregada doméstica; auto-biografia; gênero; raça; educação.

REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: Uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza
Martins de Barros; SCHNEIDER&lt; Liane, (orgs). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora.
João Pessoa: Ed.Idéia, 2005a.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº
10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade. P. 39 – 60.
2005.
GONZALEZ, Lélia 1935-1994. Primavera para rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa.../Lélia
Gonzalez. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. 486 páginas. 1º Edição.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato da desigualdade gênero e Raça.
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf. Acesso em: 25 Fev.2022.
SCHOLZE, Lia. Narrativas de si: o olhar feminino nas histórias de trabalho. 181p. Tese de
Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre – RS. 2005.

72
Conversatório 3

73
Vivenciar a educação na Matriz Africana está relacionado a fortalecer e reconstituir, pelo alicerce
da coletividade, da ancestralidade, e de comunidades diaspóricas, fundamentos de existência
combatidos pela colonialidade e pelo eurocentrismo.
Por toda a África, a educação das novas gerações é um processo longo e vital, que envolve todas
as dimensões do ser humano e perpassa por todas as fases do desenvolvimento. Cantar, dançar,
celebrar a vida, reverenciar a pessoas mais velhas e a ancestrais são parte de processos educativos,
que ensinam os valores fundamentais da comunidade, reforçam os vínculos coletivos, rememoram o
passado, performam responsabilidades e papéis sociais.
Esta forma de ensinar e aprender de base africana está presente no Brasil, apesar dos séculos de
escravidão e colonização forçada sobre o ser. Os povos africanos em diáspora venceram o racismo, as
diversas formas de genocídio, a negação, o silenciamento, a deturpação, a criminalização, a
demonização de seus corpos, culturas, religiosidades, comunidades e conseguiram manter vivo e
atuante um modelo de educação, que no presente é capaz de informar, ensinar, refletir, fazer-se
conhecer nas lutas, vitórias, desejos de seus antepassados, atravessados pelo estado de Maafa10, mas
que não desistiram de trazer a força de suas origens para fazê-los vitoriosos no Brasil.
O processo de apagamento se inicia em África e nos porões de navios de escravagistas,
reafirmado nas Américas pelo desrespeito de identidades étnicas e culturais, pela desumanização de
seus corpos, pela imposição da língua, religião e modos de vida do colonizador europeu. Este processo
não se findou com o término formal do período colonial, continuou se estendendo às transformações da
dinâmica de vida através do tempo.11
Contudo, os povos africanos em diáspora não se deixaram denominar. Em contraposição a todas
essas violências, pessoas, corpos e culturas negras existem, e resistem dialogando. As matrizes
africanas que germinam nas festas, nas famílias negras, nas tradições culturais, nos terreiros fizeram
brotar um modelo educativo que deu bom fruto e bela flor. Os diálogos, alargamentos e tensionamentos
constantes entre referências filosóficas, culturais, cotidianas, históricas de comunidades africanas e afro-
brasileiras caracterizam a Matriz Africana na Diáspora, que são o ponto de partida das discussões que
compõem este conversatório.
A perspectiva comum a todas as contribuições é dizer um basta para que a população preta lute
apenas pela sua sobrevivência e afirmar a necessidade de se mobilizar para afirmar, valorizar e
aprofundar suas muitas formas de viver, circular, criar. Esta postura impõe a proposição de pesquisas,
reivindicações e militância que evidenciam os laços educativos de matriz africana em diversos contextos.
Alguns destes elementos civilizatórios e educativos foram abordados durante a sessão.

10 Maafa é o termo em língua kiswahili para denonimar esse longo processo de violência vivida pelos africanos que age desde
a colonização árabe e europeia até os dias atuais. Este termo foi usado por Marimba Ani com o sentido de “grande
desastre/destruição/desintegração” em seu livro Let the Circle Be Unbroken: The Implications of African Spirituality in the
Diaspora (1998) e por Maulana Karenga (Introduction of Black Studies, 2001) no sentido de “holocausto africano” como a
desumanização total dos povos pretos.
11 LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectvias Latino-americanas.
Colécio Sur-Sur, CLACSO. Buenos Aires, 2005. MIGNOLO, Walter; SCHIWY, Freya; MALDONADO-TORRES, Nelson
(orgs.) Des-colonialidade del ser y del saber: vídeos indígenas y los limites coloniales de la izquierda en Bolivia. Buenos
Aires: Del Signo, 2006

74
Foi destacado o fundamento Festa como um alicerce da educação na Matriz Africana. A
celebração festiva compõe os terreiros, o carnaval, os saraus, batalhas e slams, as culturas populares,
clubes negros e as famílias. Pela festa há a conexão com o Sagrado, com a sua comunidade, com a
corporalidade, com o acervo de trabalho, história e memória da coletividade, conexão com a estética
negra da qual emanam alicerces para sua ética e sua beleza. Ao contrário de uma visão colonial na qual
a festa tende ao profano, faz oposição ao que é racional e pode suspender moralidades, na matriz
africana a festa pode ser vista como parte essencial da existência, que afirma o sagrado, complementa e
aguça as sensibilidades, racionalidades e éticas agenciadas coletivamente. A kizomba, a celebração que
une e alegra a comunidade, é parte central dos processos educativos.
É possível perceber que parte significativa dos elementos de ensino e aprendizagem da matriz
africana são vivenciados além do repertório hegemônico da escolarização. Aquilo que é validado pelo
eurocentrismo como conhecimento subalterniza e invisibiliza as experiências educativas pretas. E,
justamente por se articular fora da linearidade e do desenvolvimentismo da razão colonial, são nos
momentos de encontro e convivência das pessoas e comunidades pretas que se atam e reatam os
pontos que permitem a constituição de pessoas nas inúmeras formas de expressar as identidades
negras.
Como outro fundamento, a educação acontece em espaços cotidianos, marcados pelo cuidado e
pela oralidade como metodologia para a memória e para a transmissão de saberes 12. Seja em contexto
de convivência familiar em suas práticas culinárias, de trançadeiras, no improviso criador das poesias e
do rap; e também em contextos definidos por uma organização, como terreiros ou escolas de samba por
exemplo, a magia das palavras se faz presente e se revela como principal instrumento educativo. A
palavra cantada, contada, rezada transmite conhecimentos e devemos escutá-las com atenção para bem
aprender.
A partir destas observações foi destacada a forma como a experiência da matriz africana é
marcada pelas experiências situadas, que representam uma pluralidade em modos de ser que coabitam
as formas de vivenciar negritudes, em oposição à proposta de universalização total aos moldes
ocidentais, que, ao definir aquilo que é válido para tudo, para todas as pessoas e em qualquer
temporalidade, age de forma homogeneizante, estabelece uma história única, violenta contra qualquer
pluralidade. Assim, a colonialidade procura revestir sua proposta única como técnica, óbvia, civilizada e
correta, e, portanto, marca tudo mais, “o outro”, como subalterno, selvagem, pior, exótico.
Vivenciar a educação na matriz africana assume o caráter ritualizado presente em todas as
coisas, uma vez que todas as coisas estão relacionadas às múltiplas histórias e culturas que se fizeram e
se fazem na Diáspora. Assume a pluralidade, respeita as diferenças, valoriza a diversidade. É uma forma
de educação em que a espiritualidade está presente, em que a força da ancestralidade se faz sentir, que
desconstrói a oposição entre racional X emoção. Assume que conhecer é também um gesto
transcendental, envolve percepções metafísicas, envolve sentimentos, envolvimentos, processo contínuo

12 BARROS, Daniela ; FLORENCIO, S. P. N. ; PEDERIVA, P. L. M. . Educação na Tradição Oral de Matriz Africana: a


constituição humana pela transmissão oral de saberes tradicionais - um estudo histórico-cultural. 1. ed. Curitiba: Appris,
2019.

75
e holístico.13 Na Matriz africana, o cotidiano é ritualizado, o que abre portas para investigar os elos
ancestrais das práticas educativas de dança, música, conhecimento, filosofia, espiritualidade, evidencia
genealogias e as ligações intergeracionais, enriquece a experiência humana e fortalece a existência dos
seres que se percebem parte desta rede interconectada que liga a comunidade, antepassados e aqueles
que ainda nem chegaram.
Como último elemento transversal às discussões, é marcante a forma com que corpos, culturas e
tradições negras realizam interferência na ordem pública. Desde as tranças nas cabeças-coroas às
propostas educativas em escolas, desde os terreiros ao toque dos tambores pretos do carnaval de rua,
das Escolas de samba, ou mesmo os tambores Candombe em Montevidéu/UR, desde a poesia, o rap, o
stencil e a circulação dos corpos nos espaços rurais e urbanos. Essa interferência na ordem pública é
alvo de violência por parte do racismo, que atua sobre as pessoas em seus corpos e sensibilidades,
sobre organizações e instituições como os terreiros, e sobre os próprios saberes e culturas. Mas esta
interferência na ordem pública também representa meios de viver, de criar, de existir e germinar,
possibilitando maior expansão e possibilidades de modos de vida pela matriz africana. A educação de
matriz africana busca nos valores ancestrais seus fundamentos mas olha para o futuro, direciona sua
ação para colheita das novas gerações, em movimento Sankofa 14, assim propõem-se a transformar, a
garantir direitos ao povo preto, a sua própria história e a afirmação positiva de sua identidade.
O conjunto das participações do conversatório evidencia a necessidade de fortalecimento de
compreensão das muitas relações de africanidades e diasporidades, pelo combate ao racismo em todas
as suas manifestações, e pela valorização das manifestações de matriz africana em todos os espaços
com o objetivo de reconhecer e fortalecer suas características, saberes e metodologias próprias de
educação.
Durante o conversatório, foram compartilhadas experiências educativas, dançamos, cantamos,
alegramos em união trazendo para o momento na UnB as perspectivas educativas dos terreiros, ruas,
encontros. Em roda, na gira, reforçamos a necessidade das universidades e escolas aplicarem as formas
africanas de ensinar e aprender, em posição de igualdade com a escrita e a leitura.
Tivemos a oportunidade de ouvir um mais velho, uma autoridade de terreiro, Tata dia Nkisi
Katuvanjesi, guardião do Inzó Tumbansi, braço forte dos primeiros terreiros do candomblé Kongo-Angola
no Brasil. Tata Katuvanjesi detalhou os fundamentos educativos processados em sua comunidade,
explicou o que é ancestralidade, a importância dos tambores, dos cantos sagrados, do banho de ervas,
dos ritos de iniciação. Para aprender mais que isso, só mesmo indo a inzó, pois este tipo de educação se
aprende mesmo é na vivência. Mas de certo, ouvir este grande sábio foi muito instrutivo para conceber o
que é educação na Matriz Africana, uma vez que Tata Katuvanjesi aprendeu muito com a matriarca
Nengwa Kwa Nkisi Nvujiká desde seus 11 anos de idade, quando foi iniciado em 1974. Além de tomar
todas as obrigações conforme determinam os fundamentos espirituais para o sacerdócio do candomblé
no Brasil, Tata Katuvanjesi foi em busca profunda por suas raízes africanas. Foi consagrado nganga

13 BA, Ahmadou Hampate. Vie et enseignament de Tierno Bokar, 1980. FONSECA, Mariana Bracks. Histórias Africanas em
sala de aula: em busca da educação alinhada às epistemologias negras. MELLO, Janaína Cardoso de. O Caleidoscópio de
Clio: saberes históricos em diferentes espaços de memórias. Belém: RBF, 2022.
14 Ideograma Akan que representa o provérbio “se wo were fi na wosan kofa a yenki” que pode ser traduzido por “não é tabu
voltar atrás e buscar o que esqueceu”, significa a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro.

76
pelos soberanos da Lunda onde ganhou o mágico sexto de adivinhação ngombo, também pelos sobas
do Bailundo e do Gabão. Hoje é o representante dos povos Bantu na Diáspora através do Ilabantu 15 e
vem trabalhando incansavelmente para a “reafricanização do candomblé” no Brasil a educação dos
valores centro-africanos promovendo a valorização desta matriz, tantas vezes desprezada pela
historiografia “nagocêntrica”.16
O conversatório Vivenciando a educação na Matriz Africana foi um delicioso espaço de
circularidade de saberes, fazeres, sentires e pulsares educativos, que nos apontou diversas perspectivas
afroreferenciadas para o exercício de uma educação antirracista, ancestral, libertadora, festiva e
amorosa.
Convidado especial: Taata Katuvanjesi

REFERÊNCIAS
ANI, Marimba. Let the Circle Be Unbroken: The Implications of African Spirituality in the Diaspora . Red
Sea Pr, 1998
BA, Ahmadou Hampate.Vie et enseignament de Tierno Bokar : le sage de Bandiagara. Editions du Seuil,
1980.
BARROS, Daniela ; FLORENCIO, S. P. N. ; PEDERIVA, P. L. M. . Educação na Tradição Oral de Matriz
Africana: a constituição humana pela transmissão oral de saberes tradicionais - um estudo histórico-
cultural. 1. ed. Curitiba: Appris, 2019.
BORGES, Kamila Gomes. Candomblé Bantu e a importância dos afro-saberes na educação. Portal
Geledés. 21/08/2013. https://www.geledes.org.br/candomble-bantu-e-a-importancia-dos-afro-saberes-na-
educacao/
FONSECA, Mariana Bracks. “Histórias Africanas em sala de aula: em busca da educação alinhada às
epistemologias negras”. Em: MELLO, Janaína Cardoso de. O Caleidoscópio de Clio: saberes históricos
em diferentes espaços de memórias. Belém: RBF, 2022
Karenga, Maulana. Introduction of Black Studies, 2001
LANDER, Edgardo(org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectvias Latino-
americanas. Colécio Sur-Sur, CLACSO. Buenos Aires, 2005.
MIGNOLO, Walter; SCHIWY, Freya; MALDONADO-TORRES, Nelson (orgs.) Des-colonialidade del ser y
del saber: vídeos indígenas y los limites coloniales de la izquierda en Bolivia. Buenos Aires: Del Signo,
2006

15 https://inzotumbansi.org/category/ilabantu/
16 BORGES, Kamila Gomes. Candomblé Bantu e a importância dos afro-saberes na educação. Portal Geledés. 21/08/2013.
https://www.geledes.org.br/candomble-bantu-e-a-importancia-dos-afro-saberes-na-educacao/

77
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Andréa Valemtim Alves Ferreira A vida de Iyawó: relato sobre minha experiência de lésse orixá 79

Layla Maryzandra Tranças no mapa: modos de saber e fazer de trançadeiras do DF 82

Saberes afrodiaspóricos encarnados em festa: o corpo carnavalizado


Marcone Loiola dos Santos 85
como propulsor crítico e criativo de pesquisa

Projeto pedagógico Negritude Contemporânea: práticas de uma


Maria Eliane Dantas dos Santos 88
educação antirracista em Divina Pastora/SE

Miguel Angel Rodriguez Silva Candombe transformação e permanência uma letra de palco e rua 91

Natana E. S. Coelho O que diz a palavra? Juventudes negras nas escolas e nos saraus 93

Raimundo Jerusalém Marques A geografia do território sagrado: os povos de matriz africana, suas
96
Mota tradições e expressões culturais em Brasília

O corpo encantado: reverberações do chão afro-brasileiro na Escola


Vitor Gonçalves Pimenta 99
de Samba Acadêmicos do Salgueiro

Wanderson Sousa Costa


Sem folha não há orixá: a representação da natureza nas religiões afro
Emerson Gabriel Rodrigues 102
brasileiras como prática de ensino
Almeida

78
A VIDA DE IYAWÓ: RELATO SOBRE MINHA EXPERIÊNCIA DE LÉSSE ORIXÁ

Andréa Valentim Alves Ferreira


Iyawó do Ilé Àse Ode Onísèwe Wúre. Historiadora e Mestranda do Curso de Mestrado Profissional junto a Povos e
Territórios Tradicionais do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios
Tradicionais.

O processo de iniciação para uma pessoa na religião de Matriz Africana, envolve longo processo,
que tem início com o nosso renascimento, onde uma iniciação começa sempre por uma morte e uma
ressureição simbólicas, que marcam a ruptura do noviço com seu passado e mostra seu renascimento
para uma vida nova, consagrada à divindade. (Verger, 2012, p.82). Além disso, estabelece entre o
iniciante e o orixá uma ligação sagrada, na qual nosso corpo passa a ser morada do orixá, ou seja, nele
habita o sagrado e o corpo físico não lhe pertence mais, ele é emprestado para que se possa desfrutar
da vida terrena.
Para o iyawó, ou seja, a pessoa que já passou pelo processo de iniciação e que se encontra no
processo inicial de aprendizagem, o conhecimento adquirido de forma oralizada exige respeito aos mais
velhos, humildade, resiliência e paciência, pois não se trata de um conhecimento momentâneo e sim de
um aprendizado temporalizado pelo seu tempo iniciação. Ele é hierárquico e cíclico, ou seja, conforme
vão se passando os anos e conforme a posição que irá ocupar após a sua maior idade no terreiro, o
conhecimento dado deve ser exercido e repassado para os que virão depois.
Não há escritos que te ensinem a ser lésse orixá, todo o processo de aprendizado sobre o awo –
segredo – é realizado por meio oralizado, onde os mais velhos de iniciação repassam aos mais novos o
conhecimento que envolve rezas, folhas, alimentos e procedimentos ritualísticos.
O conhecimento oralizado e tradicional está intimamente ligado ao culto ancestral, este sendo um
laço sagrado que une uma compreensão de se saber por que está ali e qual o caminho a se seguir.
Para Hampaté Bâ:
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e
nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a
menos que se apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente
transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. (HAMPATÉ
BÂ, 2010, p.167)

Diante disso, o meu breve relato dissertará sobre como vejo a importância do conhecimento
oralizado e tradicional no culto ao orixá e ancestralidade, trazendo de que forma o aprendizado contribui
para a minha vida, tanto no terreiro quanto fora dele.
Sou iniciada há 8 anos e apesar de já possuir o tempo necessário para me tornar uma ebomi17
ainda não paguei a obrigação18 para me tornar uma. Apesar do pouco tempo de iniciada, estou presente
na religião desde criança, quando ainda com minha avó e tios e tias frequentava e acompanhava a
dinâmica da casa mesmo sem ter o entendimento do que aquilo significaria para a minha vida.

17 Ebomi ou Ẹ̀ gbọ́n mi, em yorubá escrito Ẹ̀ gbọ́n, que significa o irmão mais velho e que na religião de Matriz Africana é
aquela que ao completar sete anos de iniciada sai da condição de yawó e passa a ser uma mais velha, podendo ou não
ocupar um cargo no terreiro e a desenvolver funções específicas.
18 Obrigação é a forma que chamamos os processos que realizamos como forma de demonstrar satisfação ao orixá e a crescer
hierarquicamente na religião.

79
Ainda criança, fui apontada pelo Babalorixá da minha avó que seria uma das nossas, que eu seria
a pessoa da família que daria continuidade ao culto ancestral em minha família. Entretanto, somente com
o tempo pude entender o valor daquelas palavras em minha vida, pois conforme fui crescendo parei de
frequentar por achar que aquele não era o meu lugar, mas apesar de longe sempre estive envolvida com
a religião. O meu retorno se deu em uma visita contra a minha vontade a um terreiro para acompanhar
uma amiga que auxiliava o Babalorixá Wagner ti Odé em suas consultas com suas entidades as pessoas
que ali frequentavam a procura de uma palavra de conforto e orientação. No dia, ele realizava uma
consulta com seu Zé da Boiada e ele disse que gostaria de falar comigo e, eu ao me negar, saiu do
quarto em que se encontrava e foi em minha direção e ao falar que eu era uma das deles e que meu
caminho estava torto que precisava retornar às minhas origens, me fez lembrar das palavras proferidas
anos atrás enquanto ainda criança.
Ao retornar e durante os 11 anos que fui abiã19, fui aprendendo aquilo que me cabia e
amadurecendo a ideia de me iniciar na religião. Em dezembro de 2015 tomei a decisão e assim me tornei
Gbalejinam, vódunsi do orixá Iansã e iyawó pertencente ao Iyawó do Ilé Àse Ode Onísèwe Wúre.
Os aprendizados que meus mais velhos me dão estão em ver o mundo além do terreiro, estão em
entender que todas as coisas estão ali porque existe uma explicação e ocorrem por uma vontade do
sagrado em operar para que existam. Mas a vida de iyawó não são só flores e como trazido
anteriormente exige sacrifícios, dedicação, abdicação e uma boa dose de paciência e resiliência, para
que seja merecedora da dádiva do conhecimento. Por diversas vezes me vi em situações que exigiram
de mim calma e uma boa cabeça para poder lidar com as adversidades e as pessoas que ocupam este
espaço, e que hoje acredito que seja o princípio de tudo para aquelas que se colocam a fazer parte do
grupo e do culto ancestral africano.
Pude aprender que ser iyawó vai muito além das roupas e fios de contas, nele está inserido o
aprendizado que envolve além do que já foi trazido, envolve a condição de ajudar na casa em todos os
afazeres domésticos, em compartilhar com seu igual a esteira e o alimento e a entender principalmente
que estamos ali por um propósito, não estamos em uma casa de candomblé à toa, estamos porque
possuímos ancestralidade e a ela devemos satisfação.
[...] a gente sempre acaba na Casa da nossa família. Se você roda, roda e acaba numa
casa jeje, é porque a sua família, lá nos primórdios, vem do Daomé. A gente sabe que o
ser humano veio da África. Então todo mundo só está achando o caminho de volta pra
casa [...]. (FLAKSMAN. 2018. p.128).

E diante desse caminho de volta para casa, encontrei outra forma dessa procura identitária que
foi a possibilidade de levar para a academia20 o conhecimento oral e tradicional, a partir de uma pessoa
que vive a Comunidade Tradicional de Matriz Africana e de Terreiros. A pesquisa tem por título inicial “A
construção da origem ancestral do Ilé Axé Odé Onísèwe Wúre”. O objetivo está em descrever a história
ancestral do terreiro, tendo como recorte cronológico de 1849 a 2022. E por meio da pesquisa
documental e bibliográfica e da articulação das histórias cotidianas narradas pelas/os zeladoras/es das
casas, será tecida a memória social.

19 Abiã é a pessoa que ainda não passou pelo processo iniciático.


20 O trabalho será desenvolvido a partir do que me é permitido falar e ao que cabe a mim dentro da dinâmica do terreiro.

80
Finalizo trazendo que a pesquisa para mim pessoalmente é uma possibilidade de entender minha
história ancestral, de saber porque ocupo aquele espaço e entendendo que minha contribuição para a
história do meu povo está em poder levar nossas narrativas para todes aqueles que se interessam por
um direito à memória e a verdade de todes aqueles que vieram antes de mim, pois se hoje estou aqui é
porque meus ancestrais permitiram.

PALAVRAS-CHAVE: candomblé; relato; oralidade; tradicionalidade.

REFERÊNCIAS
FLAKSMAN, Clara. “De sangue” e “de santo”: o parentesco no candomblé. Mana 24 (3). Dez 2018.
P.124-150. Disponível em https://doi.org/10.1590/1678-49442018v24n3 Acesso em 08 Outubro 2022.
PARÉS, Luis Nicolau. O Rei, O Pai e a Morte: A religião Vodum na antiga costa dos escravos na
África Ocidental. Companhia das Letras. SP. 2016. p. 327-335.
Hampaté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da
África. 2.ed – Brasília: UNESCO, 2010.
SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. Assembleia Legislativa. BA. 2010.
VERGER. Pierre Faumbi. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos,
no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. Trad. Carlos Eugênio Marcontes de Moura. 2º
ed. SP. USP. 2012. p.35-118.

81
TRANÇAS NO MAPA: MODOS DE SABER E FAZER DE TRANÇADEIRAS DO DF

Layla Maryzandra
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da UNB.
Especialista em História e Cultura Africana e Afrobrasileira e Educação em Direitos Humanos e Idealizadora do
Projeto Fios da Ancestralidade

Introdução

A minha relação com a prática de trançar se inicia ainda na infância, quando entre as pernas de
minha mãe meu cabelo era trançado, envolto a todo cuidado, memória e sabedoria ali existente. Os ritos
de sociabilidades entre as mulheres negras da minha família ocorriam nos finais de semana, onde nos
reuniamos no quintal de casa para trançar o cabelo uma das outras, entre conversas e risadas altas, ao
som de reggae ou bumba-meu-boi, inebriada com o cheiro do arroz de cuxá, e o vatapá. Eu sentia a
textura escorregadia e nutrida dos meus fios, quando misturados com o óleo babaçu, penteados com a
leveza das mãos de minhas tias ou da minha mãe.
Adolescente, tornei-me trancista/trançadeira, trabalhei Salão Afro de Brasília, locais que
contribuíram para aprimorar minhas habilidades manuais e as diferentes técnicas de penteados
trançados, mas sobretudo para fortalecer a minha formação identitária e política.
Tornei-me idealizadora do Projeto Fios da Ancestralidade - voltado para Formação e Pesquisa
sobre Penteados Tradicionais Africanos e Afrodiaspóricos como dispositivos de memória, história e
cultura, um projeto que fortalece a luta por direitos culturais, além do direito à memória.

Trançando saberes tradicionais

No conjunto complexo e heterogêneo das formas de expressão e dos modos de saber/fazer das
comunidades afro-brasileiras, trançar cabelos se destaca como uma das práticas culturais no cotidiano
das periferias do Distrito Federal.
Resumidamente, Trançadeiras/Trancistas são mulheres que fazem tranças afro, uma prática
cultural de matriz africana que se utiliza de métodos e técnicas de entrelaçamento dos fios do cabelo,
podendo usar fibras naturais ou sintéticas, adornadas com miçangas, palhas da costa ou búzios.
Entre as mais tradicionais, está o trançado rente ao couro cabeludo – chamado de Trança
Raiz/Trança Nagô – que caracteriza um movimento de baixo para cima para fazer uma fileira contínua e
elevada. São muitas vezes feitas em linhas simples e retas, e também podem ser estilizadas em
elaborados desenhos geométricos ou curvilíneos.
Essa prática tem crescido nos territórios do DF, assim como em outras regiões do país, sobretudo
entre as jovens negras em contexto urbano, com poucas oportunidades para ingressar profissionalmente
em outros espaços e que por vezes também não se apropriam da importância histórica e cultural dessa

82
prática enquanto uma tecnologia ancestral com linguagens próprias, um saber/conhecimento tradicional.
Onde por vezes é também associado a uma “tendência” e “moda”.
De acordo com Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan, saberes são a
realização de um produto ou serviço que envolvem técnicas e conhecimentos próprios que podem se
constituir em referências culturais para um grupo.
Tais saberes envolvem conhecimentos, técnicas e matérias-primas que dizem muito sobre a
territorialidade e o modo como as pessoas interagem com eles, trançar é um exemplo disso, sendo
assim, associá-la apenas a uma tendência modista, mercadológica, corrobora com deformações e
esvaziamentos culturais que podem identificar grupos sociais ou uma localidade.
Segundo Kobena Mercer (1987) o racismo 'funciona', encorajando a desvalorização da negritude
pelos próprios assuntos negros. O autor enfatiza que um senso de orgulho centrado é um pré-requisito
para uma política de resistência e reconstrução. Para Stuart Hall (1997), “[…] membros de uma cultura
usam a linguagem para instituir significados”. Porque para ele, somos nós, em sociedade, entre culturas
humanas, que atribuímos sentidos às coisas.
É a partir destas análises que está sendo desenvolvido o primeiro Mapeamento SocioCultural de
Trancistas negras do DF, que busca identificar a prática de fazer penteados afrotrançados enquanto um
saber tradicional africano, que contém epistemologias interculturais.
De acordo com Nilma Gomes (2006), Leusa Araújo (2012) e Emma Dabiri (2019), a prática de
trançar acompanha a história do negro desde a África. As Trançadeiras/Trancistas materializam técnicas
estéticas, o que Nilma Gomes (2017) define como saberes estético-corpóreos, de acordo com a autora,
eles são ligados às questões da corporeidade e da estética negra. São saberes que contribuem para
superação dessa visão erótica e exótica do corpo negro, podendo reeducar a sociedade no seu olhar
sobre como mulheres negras trançadeiras formulam conhecimentos.
Dito isso, entende-se a grande variedade de estilos de tranças africanas, que vão desde curvas
complexas e espirais à composição estritamente linear, formando um sistema de linguagem estético,
artístico, e topográfico, pois podem formar Mapas. Remontando à História Oral Afrocolômbiana do uso
das tranças como rota de fuga (estratégia territorial/espacial e corporal).
Em Cabelos de Axé (2004) Raul Lody afirma que trançar é uma tarefa familiar, que pentear
cabelos é um ofício tão antigo e tão importante quanto uma atividade de subsistência. O autor conclui
que "o espaço da cabeça identifica a pessoa, os cabelos e a cabeça tem esse poder de falar sobre a
pessoa (…)", sobre a sua origem.
Byrd e Tharps (2002) complementam dizendo que: “termos étnicos como Nagô, Angola, Jejê e
Fula representavam identidades específicas, onde seus penteados afros teriam significados de acordo
com os territórios de origem.
Sendo assim, a importância de compreender a prática de trançar como um saber tradicional,
analisando suas perspectivas interculturais no decorrer da história de etnias africanas, em especial entre
aquelas que constituíram sociabilidades e conhecimentos afro-brasileiros, readaptando seus modos de
“saber fazer”, ajudam na preservação de um conjunto de elementos materiais e imateriais que constituem
simbolismos fundamentais para a interpretação, afirmação e identidade dos sujeitos negros.

83
Por fim, a produção de um estudo sobre mulheres negras Trançadeiras do DF irá trazer à tona a
importância da preservação dos modos de saber e fazer relacionados à estética negra nas periferias da
cidade, incorporando novas perspectivas nos estudos das relações raciais, no patrimônio e na
preservação da memória negra no DF, pois “a mudança da textura do cabelo pode significar a mudança
de cor da história de uma raça” (GOMES, 2006).

PALAVRAS-CHAVE: mapeamento social; trancistas; patrimônio cultural; tranças; saberes tradicionais.

REFERÊNCIAS
ÁLVAREZ. Lina María Vargas. Poética del peinado afrocolombiano. 2013
BYRD, Ayana D., Tharps, Lori L.. Hair Story: Untangling the Roots of Black Hair in America, New
York: St. Martin Griffin Press, 2002
DABIRI, Emma. Don't Touch My Hair. London: Allen, a division of Penguin Random House UK, 2019.
Educação Patrimonial : inventários participativos : manual de aplicação / Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional ; texto, Sônia Regina Rampim Florêncio et al. – Brasília-DF, 2016.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
São Paulo: Editora Vozes, 2017
GOMES, Nilma Lino, (2002). Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade
negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, USP.
______. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo da identidade negra. 2ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5 ed. Rio de Janeiro: DPA, 2001 LODY, Raul.
Cabelos de Axé: identidade e resistência, Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2004.
NAVARRO, Ereilis. Origen y resistência de los peinados afrodescendientes como estratégia
pedagógica
SANTOS, Milton. O retorno do territorio. En: OSAL: Observatorio Social de América Latina. Año 6 no. 16
(jun. 2005- ). Buenos Aires: CLACSO, 2005- . - ISSN 1515-3282 Disponible
en:http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf

84
SABERES AFRODIASPÓRICOS ENCARNADOS EM FESTA: O CORPO CARNAVALIZADO COMO
PROPULSOR CRÍTICO E CRIATIVO DE PESQUISA

Marcone Loiola dos Santos


Integrante do bloco de rua afro Angola Janga, no Carnaval de Belo Horizonte, Minas Gerais; Bacharel em Ciências
Biológicas, mestrando em Educação das Relações Étnico-raciais na UFMG. marconeloiola28@gmail.com

Agô! Nas páginas seguintes, pincelo nuances narrativas da minha experiência corpórea no bloco
de rua afro Angola Janga, no Carnaval de Belo Horizonte, Minas Gerais, e suas reverberações em
fagulhas de criatividade e de pensamento críticos mobilizados na pesquisa sobre o referido coletivo.
Biólogo de formação, digo que foi no Carnaval onde me notei mais em contato com a própria
Biologia, com a vida em articulação com a cultura, com a política, com a arte, com a espiritualidade e a
ancestralidade, em movimentos coletivamente embebidos em cosmopercepções (OYEWÙMÍ,1997) dos
ritmos e ritos afro-brasileiros. Não à toa, Muniz Sodré (2019) diz que mergulhado na miscelânea de
sentires das linguagens dos festejos, o corpo negro se movimenta criativamente, interferindo em
coordenadas históricas de espaço e tempo, ampliando sua humanidade. Assim, noto que meu corpo em
festa se afirma constantemente como território de axé (SODRÉ, 2019). Compreendo o axé como a força
vital e criativa fundamental em meus processos de produção de conhecimento no campo da Educação
das Relações Étnico-raciais no contexto do Carnaval. Acionado e mobilizado no contato e na afetação
dos corpos pelo sensível e pelos afetos (SODRÉ, 2019), o axé, a meu ver, entretece os conhecimentos
tecidos em coautorias nas lutas de persistência histórica em educações pautadas na justiça cognitiva e
social.
O Carnaval dos blocos afros possui uma dimensão educativa de caráter não institucionalizado, a
qual possui potencial de educar para as relações étnico-raciais e fomentar a habilidade de convivência
no afloramento da sensibilidade da percepção estética (VARGAS & BRASIL, 2020). Em minha
experiência, atesto também outras dimensões substanciais: a política, a poética e a ética (RUFINO,
2019). Assim, “a educação é aqui lida como fenômeno existencial na articulação entre vida, arte e
conhecimento” (Idem, p. 20), que revela a cultura como princípio pedagógico, como fonômeno encarnado
na existência e movimentado na dinâmica das energias vitais (axé) (RUFINO, 2019).
Em reflexões, compreendo que minha circulação nas dinâmicas e relações que constituem o
Angola Janga, no encontro de múltiplos corpos, me educa no mesmo instante em que faz-se o chão afro-
mineiro como cultura e como assentamento da afrodiáspora, que ressemantiza sociabilidades
transafricanas em ecologias de pertencimento transculturais e interculturais (RUFINO, 2019).
O assentamento é o lugar de encantamento, de profusão e resignificação da vida (RUFINO,
2019). É o território onde se risca as encruzilhadas de Exu. Sendo o portador do axé, uma educação
como energia vital só é possível se imantada pelos princípios e potências de Exu, aquele que opera a
“travessura que carnavaliza o mundo e o recria enquanto possibilidade” (RUFINO, 2020, p. 131). Nesse
sentido, a carnavalização do meu corpo no balaio cultural afro-mineiro se tornou a propulsão de
formação crítica que ressaltou os limites das razões que interditam o corpo, as experiencias e o mundo

85
pelos imperativos monológicos coloniais, aqueles cuja lógica nega o corpo enquanto possibilidade e
recusa os movimentos enquanto possibilidade de invensão da vida (RUFINO, 2020). Nisso, qualquer
educação que destitui Exu, destitui a vida, posto que sem ele o axé não pode ser dinamizado, o corpo se
desmantela pela codificação do pecado e todas operações são, em suma, de uma educação imóvel,
avessa à vida em sua diversidade (RUFINO, 2019).
Portanto, ouso dizer que se para Edgar Morin (1998) a primeira definição do sujeito deveria ser
bio-lógica: o indivíduo como sistema vivo como condição para erigir-se no centro do mundo em
capacidades de conhecimento e ação, desde minha experiência educativa e corpórea em festa,
compreendo que há outros tantos sentidos e práticas, já que dobrar a morte é uma experiência
substancial para manter a condição bio-lógica nas bandas de cá do Atlântico, em que o “bio” se expande
através da perspectiva da ancestralidade e a “lógica” é cosmopolita e pluriversal. Assim, carnavalizar é
praticar a vida em saberes imantados em diferentes linguagens, no alagarmento dos horizontes possíveis
pautados na ancestralidade africana. É na avenida que os corpos negros performam seus saberes. O
corpo carnavalizado, dono de si, é aquele que escapa ao aprisionamento da existência como projeto de
desencanto e mera espera da morte certa (SIMAS, 2019). Sendo assim, nessa perspectiva, entendo que
o Carnaval do Angola Janga contém em si o potencial educativo de “converter vítimas da opressão em
atores políticos que protagonizam a resistência e a luta” (GOMES, 2017, p.11).
Ao revisitar os reinados, territórios e históricos de África para ressemantizá-los nos tambores de
Minas e na manifestação dos corpos, o bloco contitui uma atmosfera cosmológica potente na perspectiva
da criação da autossuficiência negra que Abdias Nascimento (2019) desde muito nos chama atenção:
aquela que se alimenta da mitopoesia, onde a cultura exerce uma função crítica, criativa e libertadora de
toda sociedade, atualizando o conhecimento existente. Nisso, a corporeidade mergulha em sensações
que irão aflorar através dos enredos de conhecimento.
Como pesquisador iniciante, compreendo esse processo experiencial desde o meu corpo na
afervescência da cultura afro-mineira como uma oportunidade ímpar de propulsões criativas que podem
reverberar na pesquisa em um perfil de aprendizagens que me conduzem às posturas éticas e políticas
na trangressão do regime moderno colonial. Algo com potencial crítico que dialoga com o que Denise
Ferreira da Silva (2016) postula como substancial para superarmos a violência da Modernidade: a
exigencia da imaginação e da criação a partir de incertezas. No cenário aqui pincelado, tal artesania
utópica só é possível com a carnavalização do corpo que, em festa, dinamiza os poderes de Exu em
danças relacionais que cruzam a ordem colonial em transgressões encarnadas.

PALAVRAS-CHAVE: educação; bloco afro-mineiro; educação das relações étnico-raciais.

REFERÊNCIAS
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
MORIN, Edgar. Sociologia: a sociologia do microssocial ao macroplanetário. 1. ed. Sintra/Portugal:
Publicações Europa- América, 1998.

86
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan- Africanista. 3. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2019.
OYEWÙMÍ, Oyèrónké.Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos. Tradução de
Leonardo de Freitas Neto. Novos Olhares Sociais – UFRB. n.2, v.1, 2018.
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: Corpo e Mito na Filosofia da Educação
Brasileira. 2005. Tese (Doutorado em Educação Brasileira) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2005.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019. RUFINO,
Luiz. Exu: tudo o que a boca come e tudo o que o corpo dá. In: TAVARES, J.C.
Gramática das Corporeidades Afrodiaspóricas. Appris: Curitiba, 2020, p. 115-134.
SILVA, Denise Ferreira. Sobre diferença sem separabilidade. In: BIENAL DO MERCOSUL, n° 32,
2016, São Paulo. Feminino(s): visualidades, ações e afetos. Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p. 3-
24.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Mauad X,
2019.
SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2019.ISBN: 978-85-200-1397-7.
VARGAS, S.A.; BRASIL, A. O Carnaval educa: um olhar a partir da primeira capital do Brasil.
Extraprensa: cultura e comunicação na América Latina. São Paulo, n.1, p.254-273, 2020.

87
PROJETO PEDAGÓGICO NEGRITUDE CONTEMPORÂNEA: PRÁTICAS DE UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA EM DIVINA PASTORA/SE

Maria Eliane Dantas dos Santos


Pedagoga, Licenciada em História e Pós-Graduada em Educação Inclusiva, Prof. da Rede Municipal de
Ensino/Divina Pastora (SE).

O Projeto Negritude Contemporânea apresenta-se como um trabalho pedagógico realizado na


Escola Municipal de Ensino Fundamental Fausto Aguiar Cardoso, localizada no estado de Sergipe no
município de Divina Pastora, que compreende a oferta do ensino fundamental obrigatório de nove anos e
a modalidade do ensino de Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos três turnos: manhã, tarde e noite.
Observou-se dentro da unidade escolar a falta significativa de inclusão de materiais didáticos com a
representação de escritores/as negros/as dentro do contexto do protagonismo da população negra em
suas narrativas com a finalidade de proporcionar à comunidade discente e docente um trabalho voltado à
diversidade dentro do processo de ensino-aprendizagem que atendesse o cumprimento da Lei
10.639/2003 que afirma:
A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de
direitos, no que diz respeito à educação, passou ser particularmente apoiada com a
promulgação da Lei nº 10.639/2003, alterou a Lei n° 9394/1996, estabelecendo a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. (2013, p. 84)

Mediante a problemática observada, criou-se a iniciativa da criação do Projeto Negritude


Contemporânea resultado de um trabalho de extensão já existente na instituição desde o ano de 2016
com o objetivo de dialogar através de palestras, oficinas e roda de conversas o processo da presença do
negro no Brasil e a sua ancestralidade africana, bem como toda contribuição na formação do povo
brasileiro, sua luta pela conquista de direitos e igualdade social. Nesse contexto, traz-se à luz o Plano
Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que cita:
Sem dúvidas, praticas pedagógicas e rotinas educacionais devem estar plenamente
orientadas para relações sociais igualitárias, as quais requerem o reconhecimento e a
valorização da contribuição de mulheres e homens africanos e seus descendentes para a
formação social brasileira. […] (2013, p. 07)

Dessa forma, faz-se necessária a construção do projeto anual de 2022 com o intuito de
desenvolver práticas pedagógicas através de ações afirmativas que estimulassem o respeito entre as
diferenças desde muito cedo, discutindo sobre identidade, racismo estrutural, colorismo,
empoderamento, representatividade e ancestralidade, trazendo o educando para o centro do debate.
Nesse contexto, trazemos a filósofa e escritora Djamila Ribeiro em seu livro Pequeno Manual Antirracista
(2019, p. 09) que diz “ O primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo um
debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e
racismo, mapeando suas consequências.” Diante disso, o sistema governamental e educacional
brasileiro possui uma dívida de retratação histórica com a população negra em seu território nacional,

88
referente ao estudo dos povos africanos e suas origens ao longo dos séculos, negligenciando o
conhecimento e pertencimento dessa população em diáspora.
Com tudo, mapear novos caminhos e estratégias dentro do universo da educação antirracista
permite ações afirmativas nas unidades de ensino, objetivando o contato com a história africana e cultura
afro-brasileira na contribuição para a formação e construção do Brasil, destacando o privilégio da
propagação do ensino de uma história única prevalecendo a versão apenas de um grupo dominante que
atua na sociedade.
De acordo com a proposta apresentada, o presente projeto teve início em meados do mês de
maio do corrente ano, por ocasião da passagem do 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, e seguiu
com propostas organizadas de forma trimestral e interdisciplinar, sendo programadas ações pedagógicas
referentes ao tema central. Dentro dessa perspectiva foram realizadas atividades que ultrapassaram as
paredes da escola, possibilitando ao corpo discente a vivência e a troca de experiências em novos
espaços de socialização.
Dentre as ações pedagógicas, foram propostas três principais ações durante o período letivo. No
primeiro trimestre, trabalhou-se o tema Fotografia: contando suas histórias – discutindo a valorização
da imagem e dos traços negroides, oferecendo aos discentes rodas de conversas e oficinas com
fotografias que discutiram os primeiros passos da criação fotográfica, a partir do cotidiano e referências
narrativas da presença do negro perante as lentes de maneira positiva, resgatando histórias registradas
pelos alunos através das fontes históricas visuais e memórias.
No segundo trimestre, realizou-se a III Mostra Cine África do Projeto Cineclube
Candeeiro/EGBÈ com a finalidade de proporcionar a esse público alvo o acesso à cinematografia
nacional e local de curtas-metragens que pretende, através do cinema itinerante, utilizar o audiovisual
como elemento na construção do conhecimento, oportunizando novos espaços de convivência, bem
como um lugar de formação de senso crítico, viabilizando no diálogo a consecução do direito
fundamental à cultura e à educação com abertura de novos olhares e janelas com produções e narrativas
cotidianas sobre a população negra afrodescendente.
No terceiro trimestre conclui-se a ação Mãos que Fazem, com o intuito de valorizar e preservar a
arte da técnica de fazer, resgatando a memória da cultura local no que diz respeito à produção da Renda
Irlandesa classificada em 2008 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como
patrimônio imaterial de Sergipe. Além disso, a oficina de artesanato foi ministrada pelos membros da
Associação de Rendeiras de Divina Pastora (ASDEREN) e da Associação das Rendeiras Independentes
de Divina Pastora (ASDRIN), que contribuíram com a perpetuação e memória do patrimônio cultural
regional do município para gerações atuais e futuras, utilizando como instrumento o âmbito escolar.
Ademais, em alusão ao dia da Consciência Negra realizou-se a oficina de Identidade e Estética
Negra com profissionais da área da beleza, com o propósito de transmitir conhecimentos sobre a origem
das tranças no contexto dos povos africanos e afrodescendentes no Brasil, dialogando, assim, a
ancestralidade através dos fios condutores que revelam a história e identidade de um povo, por meio de
valores, costumes, conhecimentos e técnicas dos antepassados, estimulando a autoestima dos alunos

89
através da representatividade. O conceito de estética trazido pela escritora Joice Berth em sua obra, O
que é Empoderamento?, destaca-se:
Estética, uma palavra originária do grego aisthesis significa, genericamente, percepção
ou sensação. É a parte da filosofia que estuda o que julgamos e percebemos daquilo que
considerado belo, as emoções que essa percepção produz e a definição que se pode
fazer entre o que é de fato belo ou não. Portanto, o belo é uma percepção e como
percepção pode ser alterada, manipulada ou influenciada. (BERTH, 2018, p. 91 e 92)

Logo, em uma sociedade que sofreu o processo de colonização, o conceito de belo possuirá o
parâmetro padrão imposto pelo colonizador, que enaltece a figura e características do indivíduo europeu,
com seus heróis e fatos históricos, necessitando da inclusão do protagonismo negro e suas narrativas
como sujeitos da sua própria história e identidade étnica.
Por fim, a culminância do projeto deu-se com a gincana sobre a cultura afro-brasileira, organizada
com tarefas e apresentações de todo trabalho estudado e vivenciado durante o ano letivo pela
comunidade escolar, convidando a sociedade civil pastorense, grupos folclóricos da região e de outras
localidades dos municípios sergipano a prestigiar o trabalho pedagógico com um desfile étnico trazendo
estampas africanas e renda irlandesa, envolvendo a participação dos alunos, encerrando, assim, o
evento com um show musical de samba de raízes.
Levando-se em conta o que foi apresentado, pretende-se discutir no III Narrativas Interculturais,
Decoloniais e Antirracistas em Educação as experiências do Projeto Pedagógico Negritude
Contemporânea como forma de troca de conhecimentos e vivências, criando pontes e possibilidades que
venham agregar uma educação transformadora.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz D. Racismo estrutural. São Paulo; Sueli Carneiro; ed. Jandaíra, 2020.
ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis/ Jarid Arraes.- São Paulo: Pólen, 2017.176 p.
AGUSTONE, Prisca . O mundo começa na cabeça/Prisca Agustoni; ilustrações Tati Moés. São Paulo:
Paulinas, 2011.- (Coleção árvore falante).
BERTH, Joice. O que é Empoderamento?, Belo Horizonte-MG: Letramento: Justificando, 2018.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural,
orientação sexual/ Secretaria de Educação Fundamental.- Brasília: MEC/SEF, 1997.
OLIVEIRA, Renata. Superblack o poder da representatividade/ Renata Oliveira, Tatiane Santos. 1º.ed.—
São Paulo: Editora Clube da Cultura, 2021.
Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. /Ministério da Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Brasília: MEC, SECADI, 2013.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista / Djamila Ribeiro.- 1ª ed.-São Paulo: Companhia da
Letras, 2019.

90
CANDOMBE TRANSFORMAÇÃO E PERMANÊNCIA UMA LEITURA DE PALCO E RUA

Miguel Angel Rodriguez Silva

Este trabalho vai conversar sobre Candombe, que é uma manifestação da cultura popular negra,
que nasceu na cidade de Montevidéu colonial, como manifestação típica dos escravos. A primeira
vertente musical deste ritmo que tinha ligação direta com os rituais africanos deu passagem às novas
representações, fruto das crescentes relações interculturais. E desses primeiros toques africanos, dos
quais os historiadores dizem não ter registro, surgem novos toques que com o tempo ficaram conhecidos
como “Toques Madres (Mães)”. O Candombe, que é um grupo formado por música e dança, estará
presente em diversos momentos da vida sociopolítica da cidade (festas religiosas, casamentos, festas,
velórios, manifestações políticas, entre outros), e é na sua performance que teremos as discussões que
serão apresentadas neste trabalho. Além do espaço de prática festiva, que incluía a rua desde a sua
criação, as novas situações de concurso implantadas ao longo do século XX farão com que essa prática
musical negra se consolide no carnaval, em festas de ruas e palcos. Como resultado desse processo de
expansão, a prática do Candombe, historicamente vinculada à comunidade afro-uruguaia, ganha maiores
proporções, alcançando novos atores e configurações sociais, o que fará com o tempo que essa prática
musical da cidade de Montevidéu seja elevada a símbolo de identidade nacional. No entanto, essa nova
condição do Candombe e sua forma oficial de organização do grupo, que é a "Comparsa", será
carregada de contradições e conflitos, principalmente de raça e gênero, estabelecendo novos diálogos
devido à busca de espaço e legitimidade dentro dessa manifestação. Veremos qual é o papel da ditadura
militar, num processo de integração que vai trazer, não apenas novos atores para a prática do
Candombe, mas, também, novos espaços territoriais para esta manifestação musical. Estabelecendo-se
também uma unificação cultural ao nível regional, já que essa música negra de Montevidéu será
praticada nos países vizinhos de Argentina e Brasil. No caso do Paraguai teremos uma conexão com o
candombe mais antiga rítmica mais antiga, e esta tem a ver com um episódio de migração forçada
relacionado às lutas de independência do poder hegemônico da época. Motivos não muito diferentes às
migrações mais recentes. Falaremos sobre a cultura como símbolo de poder, utilizando para este diálogo
a introdução do negro no continente americano, e a escravidão como produto do mercado de capitais.
Trataremos da importância da cultura oral, já que o Candombe é uma cultura musical dinâmica, este
depende muito do ensino prático, mais do que teórico. E vamos a analisar como essa prática musical nos
permite dialogar com o nascimento de uma nova cultura latino-americana, a mestiça. Abordamos
também alguns processos históricos que gerarão transformações significativas na atual cultura negra de
Montevidéu, onde o “Candombe” desempenha um papel significativo de resistência na formação histórica
e sócio-político-cultural da cidade e, por extensão, no nacional. Também falamos brevemente sobre sua
patrimonialização (UNESCO 2010) e por fim como o “Candombe” é apresentado pelas estruturas oficiais
de ensino à população em geral.

91
PALAVRAS-CHAVE: candombe; Montevidéu; integração; racismo; educação.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Janeslei. O Racismo Silencioso nas escolas públicas de Curitiba: Imaginário, poder de
exclusão social- 2002. https://acervodigital.ufpr.br
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2008.
ALTEZOR CARLOS “Esclavitud urbana y trilogías habitacionales de Montevideo-”. Estudos Ibero-
americanos, PUCRS-, Porto Alegre-Rs, 1990.
AÑÓN, Andrea. El Candombe en el Rio de La plata: Evolución y espectacuralización de ambos lados-.
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ARTAGAVEYTIA, Lucila, -B. C.-H. 2. /. M. A. Y. U. (. X. A. X. ).-S. C.-. - HISTORIA 2 / Mundo, América y
Uruguay (siglo XV al XIX )-SERIE CONEXIONES- HISTORIA 3 / Mundo, América y Uruguay (1850-
2010). Montevidéu- Uruguai: Ed. SANTILLANA, 2012.
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1990.
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El Folklore musical uruguayo. Montevideo, Uuruguay: Arca, v. Bolsillo, 1972.
BECERRA, María J. Y. O. Los estudios afroamericanos y africanos en América Latina: herencia,
presencia y visiones del otro. CLACSO, Córdoba, Argentina, 2008.
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Diccionario de Política. Brasilia: Universidade de Brasilia, 2016.
BONET Lluis - Indústrias culturais e desenvolvimento na Ibero-América: antecedentes para um
debate- Ed. Moderna-São Paulo, Brasil- 2003
BOTELHO, José M. Oralidade Primaraia e Oralidade Secundadia: Características distintivas
fundamentais, Rio de Janeiro, n. V Congreso de Letras da UERJ, 2007.
CAMOU, Maria M. Mercado de trabajo e migración en la globalización: Uruguay y comparaciones
regionale- Revista Uruguaya de Historia Económica, Montevideu uruguay, v. 17, n. Año X, p. 15, Julio
2020
CANALDA, Edmundo. Historia Del Carnaval. Mate Amargo, ed. El Pais, Montevideo, Uruguay- 1988.
CARPENTIERT, Alejo - Barroco, Real maravilloso- Ensaio- Caracas Venezuela 1975

92
O QUE DIZ A PALAVRA? JUVENTUDES NEGRAS NAS ESCOLAS E NOS SARAUS

Natana E. S. Coelho

Este projeto de pesquisa em desenvolvimento é uma proposta de investigação sobre as relações


entre juventudes, a escola e os saraus marginais de poesia. Busca compreender, a partir do contraste
dos dois espaços de socialização, quais aspectos se fazem presentes na experiência das juventudes
negras que podem estimular ou desestimular a expressão e a manifestação da palavra (escrita e oral).
A realidade escolar de jovens brasileirus é um grande desafio a ser enfrentado. Segundo dados
do IBGE (2019), quase 20 milhões de pessoas entre 14 e 29 anos não completaram o ensino médio.
Fazendo recorte de raça, a porcentagem é ainda mais alarmante: do número total de jovens que
evadiram ou nunca frequentaram o ensino médio, 71,7% são negrus ou pardus e 27,3% são brancus
(IBGE, 2019).
Nesse aspecto, me questiono sobre a configuração do cotidiano escolar. A escola tende a ser
distante da realidade de jovens, dificultando a sua permanência (DAYRELL, 2007). Pesquisas apontam
recortes significativos de raça e classe social sobre as condições de acesso e permanência nas escolas,
delineando um cenário em que tais juventudes ao entrarem na escola já carregam consigo
vulnerabilidades sociais e estigmas provenientes dos lugares sociais em que ocupam. Quando a escola
adota uma abordagem homogeneizante, moral e disciplinadora (DAYRELL, 2007), ela contribui para
manutenção de um cenário social de dominação, exclusão e estigmatização das juventudes negras e
pobres (CANDAU; RUSSO, 2010).
Nilma Gomes (2002) fala sobre os processos de exclusão e estigmatização vivenciado pelas
juventudes negras nas escolas e aponta que são sustentados por uma estrutura e práticas escolares que
desconsideram os processos históricos, políticos e sociais da população negra no Brasil. Tais práticas
excludentes sustentam uma tradição verticalizada e tradicional da escola que reforça e reproduz o
racismo estrutural, implicando diretamente nas trajetórias escolares das juventudes negras (GOMES,
2002).
Segundo Alexandre Pereira (2015), muitas vezes alunus pobres demonstram dificuldade em
incorporar os aprendizados de escrita e leitura no ambiente escolar, mas se relacionam com a escrita e a
leitura em outros espaços de socialização e culturas juvenis para além dos muros da escola, como no
caso da pixação.
Também observa-se a emergência do movimento de “Saraus”, protagonizado por jovens diversus
e plurais em todo território nacional a partir dos anos 2000 (SEPÚLVEDA, 2017). Os Saraus são espaços
onde o uso da palavra, da voz e da expressividade juvenil não só é reconhecida, como também é ponto
de partida para outras construções coletivas, seja no âmbito da arte ou do desenvolvimento de
identidades juvenis e consciência crítica diante da realidade que se vive (SEPÚLVEDA, 2017).
A participação de jovens em Saraus perpassa por um movimento de criação e expressão. A
constituição desse espaço revela um ambiente em que juventudes expõem o seu eu, através da palavra

93
falada, encenada, lida ou cantada. São criadores do evento quando organizam um Sarau, e criadores de
sua própria história quando decidem se apresentar e direcionar sua voz ao público, que é o mundo, o
Outro. A palavra, a criação e a expressão, nesse sentido, é a ponte para o encontro com o Outro, que
conduz ao encontro consigo mesmo (HONNETH apud DAYRELL, 2015).
Lélia Gonzalez (1984) nos convida a pensar a cultura brasileira a partir da herança compartilhada
através da educação da mãe preta - o ensino da linguagem, o “pretuguês”. Aqui a língua é elemento
central de transmissão de valores, de aprendizagem e aquisição de toda uma cultura - é o primeiro elo
que a mãe transmite aos filhos (sejam eles os saídos de seu útero, sejam eles os de criação, isto é, filhos
dos colonos brancos). O português, língua imposta pelo colonizador, ganha novos sentidos e
significantes quando é transmitido pela mãe que carrega culturas e ancestralidades outras, que se
misturam ao português do colono, criando algo novo, carregado de simbolismos da cultura negra - o
pretuguês.
Se a palavra, criação e expressividade são aspectos importantes na constituição do Eu e na
relação que u jovem estabelece com o mundo, é relevante pensar sobre os fatores que influenciam e
propiciam sua manifestação. Pensar a linguagem, a língua e a palavra como elemento simbólico que
garante a conexão com o Outro, com o mundo e consigo nos conduz a reconhecer seu papel central nos
processos de socialização.
Ao pretender aprofundar nosso entendimento sobre os processos de socialização de juventudes
negras a partir de sua experiência nos saraus e nas escolas, e tendo a palavra como eixo central de
análise, considero necessário buscar reflexões afrocentradas que reflitam sobre os processos históricos
e políticos do uso e apropriação da palavra e da linguagem pelos povos negros ao longo dos anos no
movimento da afrodiáspora. Assim como nos demonstra bell hooks (2017), culturas como o RAP (e
nesse ponto, incluo aqui também a poesia marginal por ser mais um exemplo de manifestação de uma
cultura periférica, negra e suburbana) nos oferecem elementos para compreender os usos da palavra
para além de suas atribuições formais ou oficiais - essa palavra que corre na boca das juventudes negras
e periféricas, a palavra como expressão, a palavra como produção, a palavra que conduz à socialização.
Que palavra é essa? Seria a mesma palavra utilizada na escola e nos saraus?
Na tentativa de tentar responder estes questionamentos, esse projeto de pesquisa aponta para
uma proposta metodológica de caráter qualitativo que utiliza enquanto abordagem a pesquisa biográfica.
Serão selecionados jovens negros que estejam frequentando o Ensino Médio e também participem de
um Sarau. Com a realização da pesquisa, outros apontamentos e considerações serão apresentados,
contribuindo com a discussão na seara do trabalho com as juventudes e nos estudos sobre os
desdobramentos do racismo estrutural e processos de colonização no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: juventudes; socialização; saraus; escolas.

REFERÊNCIAS
CANDAU, Vera; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e educação na américa latina: uma construção plural,
original e complexa. In: Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 10, n. 29, p. 151-169, jan./abr. 2010

94
DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? reflexões em torno da socialização juvenil. In:
Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1105-1128, out. 2007
DAYRELL, Juarez. “Ser alguém na vida”: juventude, escola e a busca por reconhecimento. Mimeo.
2015
GOMES, Nilma Lino. Educação e identidade negra. In: Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v. 9,
2002: Alteridades em Questão, p. 38–47. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/17912
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, 1984, p. 223-244.
HOOKS, Bell. A língua: Ensinando novos mundos/novas palavras. In: Ensinando a transgredir: a
educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Martins
Fontes. 2017. 283p.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua - Educação 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível
em:<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf> . Acesso em julho de
2021.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. Escritas dissonantes: escolarização, letramentos, novas tecnologias e
práticas culturais juvenis. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 81-107, jul./dez.
2015.
SEPULVEDA, Lucas Oliveira. A PALAVRA É SUA! Os Jovens e os Saraus Marginais em Belo
Horizonte. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, 2017.(Dissertação,
mestrado em educação) Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AQQK7A/1/disserta o_completa_impres s_o_final.pdf.
Acesso em maio de 2021.

95
A GEOGRAFIA DO TERRITÓRIO SAGRADO: OS POVOS DE MATRIZ AFRICANA, SUAS
TRADIÇÕES E EXPRESSÕES CULTURAIS EM BRASÍLIA

Raimundo Jerusalém Marques Mota


Estudante do 6º semestre do curso de Licenciatura em Geografia do Instituto Federal de Brasília – IFB, campus
Riacho Fundo I, e profundo admirador das tradições negras e afrodescendentes, especialmente das nuances das
expressões culturais da religiosidade de matriz africana.

Resumo

Sob uma perspectiva interdisciplinar, mas fundamentalmente sob o olhar da Geografia com o enfoque da
Geografia Cultural, verificaremos os saberes, as tradições e as expressões culturais dos espaços
sagrados de povos, grupos assentados em Brasília/DF de 2000 a 2022, cuja origem venha da
religiosidade de matriz africana, e relacionaremos tais tradições e expressões com suas raízes ancestrais
e com base em sua oralidade. Para tanto, a pesquisa se dividirá em duas etapas: A primeira será um
levantamento documental de identificação desses espaços e grupos em registros públicos da União, em
órgãos como o IBGE, o INCRA, a Fundação Palmares e na Secretaria de Estado da Cultura e Economia
Criativa e no Arquivo Público do Distrito Federal, ambos do Governo do Distrito Federal, além de
universidades. Na segunda etapa, faremos visitas de campo com aplicação de questionário, entrevistas e
registros audiovisuais. O objetivo a que se quer chegar é o mapeamento desses espaços, suas
produções, suas tradições, seus saberes e suas expressões culturais e seus festejos e rituais. Essas
informações alimentarão uma base cartográfica virtual.

Introdução

Brasília, a capital do Brasil, à época de sua construção, iniciada em 1956, por determinação do
então Presidente Juscelino Kubistchek, as pessoas que nela se instalaram eram oriundas de todo o
território brasileiro em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Mas sua história tem início de
fato em 1892 com a Missão Cruls21.
O bioma Cerrado, também chamado de berço das águas do Brasil22, espaço geográfico onde há
muitos povos remanescentes, em que a Capital Federal está localizada, ocupa uma vasta extensão. Por
essa razão, torna-se praticamente impossível tentar desbravar todo esse território no presente projeto em
busca de nosso objetivo acadêmico. Assim sendo, o recorte territorial do presente estudo será Brasília e
o recorte temporal será o período do ano de 2000 à 2022.
Encravada no Cerrado brasileiro, a capital do país traz em si uma representatividade muito
apurada da diversidade do povo brasileiro e de outras nações, com suas línguas, seus sotaques, seus
hábitos, sua cultura e sua religiosidade, traços estes fundamentais para esse trabalho. Mas, apesar de

21 Para saber mais acesse: Missão Cruls. <http://www.senado.gov.br/noticias/especiais/brasilia50anos/not02.asp>. Último


acesso em: 28 set. 2022.
22 Para saber mais acesse: Cerrado Berço das Águas. Disponível em: <https://ispn.org.br/biomas/cerrado/berco-das- aguas/>.
Último acesso em: 28 set. 2022.

96
todo o contexto sociocultural existente na Capital Federal, ainda não há um mapeamento que evidencie a
rica história e a cultura dos povos de matriz africana assentados em Brasília, cujo legado, traços culturais
de suas expressões trazem em seu lastro a ancestralidade da religiosidade de matriz africana.
Nesse sentido, pretendemos apresentar como resultado deste trabalho um espaço documental
virtual e, com base em pesquisa interdisciplinar, um mapa que aponte a existência de grupos ancestrais
de matriz africana radicados em Brasília. Busca-se com isso retirar da invisibilidade suas produções,
suas tradições, seus saberes e suas expressões culturais e as datas dos seus festejos e rituais, pois
acreditamos que todas as manifestações que emanam de um povo são a sua mais pura identificação,
portanto, precisam ser valorizadas e reconhecidas, posto que é fundamental para que as identidades
culturais agregadas tenham uma interação harmoniosa pois, “... o pluralismo cultural é propício aos
intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida ...”
(UNESCO, 2002).
E, justamente nessa expectativa buscamos como contraponto ao preconceito existente contra os
povos e a cultura de matriz africana no Brasil destacar sua música, dança, gastronomia, religiosidade e
seus rituais; seu artesanato, seus folguedos populares e a oralidade desses conhecimentos praticados
num território livre e diverso. Entendemos que é importante trazer à tona a beleza que a cerca, assim
como a todas as demais culturas já que, à luz da ciência, não há que se tratar nenhuma delas
qualitativamente. Essa nossa observação está em acordo com a perspectiva de Raffestin (1993) que nos
diz que a “[...] territorialidade-adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade
do "vivido" territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral”.
A cultura é subjetiva e particular. A exemplo disso é a nossa própria percepção pessoal de todo
esse processo que vem desde o convívio familiar até a formação do nosso intelecto através das leituras,
dos interesses e da admiração por essa cultura, por esse povo e seu conhecimento vivencial. Entretanto,
na execução desse trabalho, nosso esforço, no sentido da total isenção, será redobrado como convém a
uma pesquisa acadêmica. Assim, apesar de nossa motivação pessoal, é “[...] imprescindível trabalhar
com rigor, com método, para assegurar a si e aos demais que os resultados da pesquisa serão
confiáveis, validos.” (Laville; Dionne, 1999).
Considerando tudo isso, o trabalho será “suleado”23 pelo olhar atento das ciências humanas,
observando também estudos acadêmicos sobre os povos, a cultura e a religiosidade de matriz africana,
que tratam desses temas, em especial os que nos alertam em relação ao pensamento colonizado, mas
decolonizando-o, evitando assim o que Anjos (2004) apud Carril (1997) chamou de diluição do “[...]
passado do negro escravo e do negro aquilombado."
A história brasileira tem se referido aos quilombos sempre no passado, como se estes não
fizessem mais parte da vida do país. Não podemos perder de vista que esse aparente
desaparecimento das populações negras, principalmente dos livros didáticos, faz parte da
estratégia do branqueamento da população brasileira. (ANJOS, 2004 p. 2).

PALAVRAS-CHAVE: Brasília; cerrado; geografia cultural; matriz africana; religiosidade.

23 De Sulear (em contraponto a nortear, termo considerado eurocêntrico): O Termo Sulear foi cunhado pelo professor Marcio
D’Olne Campos, quando publicou o texto “A Arte de sulear-se”, no qual, pela primeira vez, fez menção aos termos "sulear-
se" e "suleamento". Disponível em: https://iela.ufsc.br/noticia/origem-do-sulear. Último acesso em: 28 set. 2022.

97
REFERÊNCIAS
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Cartografia e Cultura: Territórios dos remanescentes de
quilombos no Brasil. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/rafaelsanzio.pdf. Último acesso
em: 28 set 2022.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A Construção do Saber: manual de metodologia da pesquisa em
ciências humanas. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/287028/mod_resource/content/1/Laville%2C
%20Christian%20%20Dionne%2C%20Jean_A%20Construcao%20do%20Saber%20%28completo
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RAFFESTIN, Claude. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo, Ática, 1993. Disponível em:
file:///C:/Users/Admin/Downloads/RAFFESTIN,%20Claude%20-%20Por%20uma%20Geografia%20do
%20Poder(3).pdf. Último acesso em: 28 set 2022.

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O CORPO ENCANTADO: REVERBERAÇÕES DO CHÃO AFRO-BRASILEIRO NA ESCOLA DE
SAMBA ACADÊMICOS DO SALGUEIRO

Vitor Gonçalves Pimenta

Introdução

Neste trabalho, evoco o “corpo encantado” da minha vivência corporal e dos demais componentes
da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, na tentativa de descrever essa experiência coletiva via
“corpo comunitário”. O “corpo encantado” é entendido aqui como os corpos dos componentes em
conjunto que fazem a escola de samba na sua performance de desfilar. O “corpo comunitário” configura-
se na conexão cosmológica de cada corpo que compõe o grande corpo coletivo da escola de samba.
Assim, procuro evocar esse corpo coletivo, chão em movimento, como um “corpo comunitário”,
“uma vivência do corpo singular como não separado, não isolado das coisas e dos outros corpos” (GIL,
1980, p. 48), formado por inúmeros corpos afro-brasileiros, negros, pretos e pardos, que fazem o
carnaval na sua dimensão performática.
A partir da experiência brincante no seio desse “corpo comunitário”, busco trazer com potência as
minhas percepções sobre o desfile da comunidade do Salgueiro. Nesse sentido, o “corpo encantado”
reverbera em traços simbólicos a experiência do “corpo comunitário” no dia do desfile, evocando a
existência cosmológica corporal da escola de samba. Para isso, vamos nos debruçar agora sobre o
“corpo encantado” dos sentidos, que reverberam a conexão com o “corpo comunitário”.

Os sentidos no desfile

Agora, vamos trazer as reverberações do “corpo comunitário” no “corpo encantado”, evocando os


sentidos no dia oficial do desfile. A narrativa que desabrocha nessas páginas está conectada a minha
experiência e à experiência dos demais componentes que compõem uma das alas que contam o enredo
da escola. O “corpo encantado” que canta e dança, aqui, é percebido não como um simples suporte de
uma consciência, mas como corpo reflexionante, que se movimenta na comunicação entre os sentidos.
Vamos agora alargar resumidamente nossas potências perceptivas e evocar o “corpo encantado”
conectado com o “corpo comunitário” no interior de um desfile de escola de samba. No desfile, os/as
componentes veem, ouvem, tocam, cheiram, saboreiam a avenida.

1. Visão
Diante dos olhos, milhares de corpos. O que se vê são corpos, fantasias, corpos-fantasias, que se
misturam na concentração. Imensos carros alegóricos saltam aos olhos. Eles atraem muitos olhares,
tanto de componentes quanto do público. A escola desfila para ser vista e admirada. “O olho é sem
inocência, ele chega às coisas com uma história, uma cultura, um inconsciente. Ele pertence a um

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sujeito. Enraizado no corpo e nos outros sentidos, ele não reflete o mundo, o constrói por suas
representações.” (LE BRETON, 2016, p. 93). O olhar carrega a história precedente do sujeito até aquele
momento de encontro com a formação da escola.

2. Audição
O som da avenida é o som da pulsão do corpo. Na concentração, escutam-se os passos dos/as
corpos dos/as componentes, as fantasias tocando uma nas outras, carros alegóricos sendo empurrados,
burburinhos das conversas dos/as componentes, gargalhadas, conversas, o público em geral, etc. “O
som é mais enigmático que a imagem, já que ele se dá no tempo e no fugaz, aí aonde a visão
permanece impassível e explorável.” (LE BRETON, 2016, p. 130). Os sons se misturam. Eles vão e vêm
de maneira efêmera. O som que se renova a cada passagem é o som do samba-enredo entoado pelos
corpos da escola de samba até que os corpos atravessem a linha final do fim de desfile.

3. Tato
Desfilar é, acima de tudo, encontro de corpos. É tocar na pele do outro corpo. É sentir o calor e a
vibração da existência do/a outro/a. Da montagem da ala na concentração até a dispersão, os corpos
dentro de cada ala se cruzam, se encostam, se esbarram, se esfregam, se tocam. O movimento lateral
do/a componente de um lado para outro é um contato constante com os corpos da esquerda e/ou da
direita, dependendo da posição na ala. Corpos-fantasias se tocam do começo ao fim do desfile.
Cabeças, braços, pernas, pés, costas, peitos, ombros etc. de um componente tocam essas partes do
corpo de outro/a componente. Com o tato, cada componente percebe a presença do outro/a. “O sensível
é em primeiro lugar a tatilidade das coisas, o contato com os outros ou os objetos, o sentimento de estar
com os pés no chão.” (LE BRETON, 2016, p. 203). O toque de peles é algo marcante do começo ao fim
do desfile.

4. Olfato
O cheiro do ambiente do desfile na Avenida Presidente Vargas é de uma festa na rua. Os aromas
mais agradáveis vêm das comidas e bebidas vendidas nos bares do prédio “Balança Mas Não Cai”, nas
diversas barracas e camelôs espalhados ao longo de todo o espaço de concentração. Acima do cheiro
da cidade, o cheiro que predomina no desfile é o cheiro de gente. Os corpos chegam à concentração
exalando diversos aromas. O perfume é um “suplemento sensorial para embelezar a presença,
artimanha olfativa destinada a seduzir, mas também a criar bem-estar e a oferecer uma imagem
conveniente de si, o odor aumenta o poder da relação estética com o mundo.” (LE BRETON, 2016, p.
293). Ao longo do desfile, o perfume no corpo se mistura ao suor do corpo. Com a evolução do corpo na
avenida, o cheiro do corpo vai dominando o perfume no corpo. O corpo em movimento produz sua
presença também jogando a sua essência no ar.

5. Paladar

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Na concentração, horas antes do desfile, os corpos percebem os odores ao redor. Ao se caminhar
à volta do espaço destinado a aguardar o horário do início do desfile, os corpos são atraídos pela
exalação de diversos alimentos presentes nas ruas e bares. “A cozinha é a arte de elaborar sabores
agradáveis ao comensal, ela produz degustação. Entretanto, raramente ela se satisfaz com sabores em
que não intervenham igualmente as formas de preparação do prato e os odores por ele emanados.” (LE
BRETON, 2016, p. 377). Antes do desfile, corpos saboreiam bebidas como cervejas, refrigerantes, água
etc.

Prospectiva

Neste resumo, evoquei brevemente os sentidos do “corpo encantado” em conexão com o “corpo
comunitário” no dia de desfile na escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. Para a maioria dos/as
componentes, o dia do desfile é o dia mais importante do ano. Nesse dia especial para o corpo, o/a
componente sente o corpo vivo em harmonia com os demais corpos da escola e apresenta-o de maneira
potente e encantadora ao público.
Com o canto, a dança, a brincadeira e o batuque da bateria, o “corpo em movimento” reverbera
sua energia criativa pelos ares da cidade, encantando todos os corpos ao redor. O corpo vê, cheira, toca,
ouve, saboreia os outros corpos e o mundo ao redor. Com os sentidos focados em fazer o desfile da
escola de samba e reverberar sua história ancestral do chão afro-brasileiro da Acadêmicos do Salgueiro,
o corpo compreende o/a outro/a e as coisas em volta e percebe a potencialidade da existência corporal
conectada ao cosmos.

PALAVRAS-CHAVE: corpo encantado; chão afro-brasileiro; Acadêmicos do Salgueiro

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
GIL, José. As metamorfoses do corpo. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
LAPLANTINE, François. A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Coleção Os
pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 85-112.
TYLER, Stephen. A etnografia pós-moderna: do documento do oculto ao documento oculto. In:
CLIFFORD, James; MARCUS, George (Org.). A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de
Janeiro: EdUERJ; Papéis Selvagens Edições, 2016. p. 183-206.
LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

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SEM FOLHA NÃO HÁ ORIXÁ: A REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA NAS RELIGIÕES AFRO
BRASILEIRAS COMO PRÁTICA DE ENSINO

Wanderson Sousa Costa


Graduado em História pela Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão. Bolsista do Programa de
Apoio Técnico Institucional - BATI/UEMASUL. Integrante da Clínica de Direito Ambiental Paulo Nogueira da
Universidade de São Paulo - CPaNN/USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos e Indígenas-
NEAI/UEMASUL.

Emerson Gabriel Rodrigues Almeida


Graduando em História pela Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão. Pesquisador do
Núcleo de Estudos Africanos e Indígenas- NEAI/UEMASUL. Bolsista PIBEXT/UEMASUL com o projeto
África em Imagens: a Expografia para Democratização do Saber.

Introdução
Foi na água de Oxum que eu achei morada
Foi na água de Oxum que eu achei morada
Foi no canto da alma que eu vi trovoada
Foi no canto da alma que eu vi trovoada
Na Água de Oxum (part. Margareth Menezes e Linn da Quebrada)

Desde a diáspora é notória a presença de muitas das práticas religiosas herdadas do continente
africano, seu afloramento em território brasileiro,se dá pela relação com o meio ambiente, econômico e
social. O emaranhamento cultural é a chave para entender como os conhecimentos cosmológicos se
perpetuaram. A cultura imaterial resgatada através da história oral, como as encantarias, os sons, os
sabores, e os modos de organização ensinados de geração para geração permanecem presentes e
vividos até os dias de hoje.
Segundo Gomes, Dantas e Catão, "a medicina mágica está muito vinculada aos ritos afro-
brasileiros e indígenas, especialmente os de macumba, candomblé ou umbanda e dos catimbós. Ela
procura curar o que de estranho foi colocado pelo sobrenatural no doente ou extirpar o mal que o faz
sofrer" (2008, p.111). É uma relação que perpassa o material e é vivenciada pelos poderes de cura e de
magia, quando as plantas passam a ser dotadas do sobrenatural, e se tornam canais entre o sagrado e o
mundo material.
Como muito bem comentado por Reginaldo Prandi "Na aurora de sua civilização, o povo africano
mais tarde conhecido pelo nome de iorubá, acreditava que forças sobrenaturais impessoais, espíritos, ou
entidades estavam presentes ou corporificados em objetos e forças da natureza” (2001, p.1). A natureza
se torna então uma extensão do sobrenatural, uma forma de ligação entre os homens e as entidades.
Assim o seguinte debate teórico busca, a partir da percepção da representação da natureza em religiões
de matriz africana, discorrer sobre novas possibilidades de discussão do conceito de ecologia a partir do
processo educacional.

Metodologia

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Segundo Hampaté Bâ “nas tradições africanas, a palavra falada se empossou, além de um valor
moral, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas” (2010,
p.169). A oralidade foi uma das maneiras que cantos, danças e unguentos atravessavam o Atlântico, se
resistiu através da fala e do poder das palavras. Em território brasileiro, as procedências africanas
afloraram e fincaram raízes permanentes. Pensando em uma perspectiva decolonial, as fontes da
tradição oral se tornam também uma ferramenta de percepção de outras formas de se construir a
História.
Usando da pesquisa bibliográfica que para Macedo “trata-se do primeiro passo em qualquer tipo
de pesquisa científica, com o fim de revisar a literatura existente e não redundar no tema de estudo ou
experimentação” (1994, p. 13) . Aqui buscou-se trazer para o debate historiográfico teóricos que discutem
essa relação com a natureza e a religião, e de que forma ela se materializou a partir dos estudos
produzidos.
E partindo do Paradigma Indiciário (GINZBURG, 1992) buscou-se a partir da análise das práticas
e dos comportamentos culturais traçar esse panorama geral de que forma as religiões afro brasileiras
são também munidas de ideais de preservação e de cuidado com a natureza.

Resultados

Não há como falar em ancestralidade sem mencionar os aspectos e formas que a natureza
assume, através de folhas, galhos, cheiros, banhos, unguentos, chás, alimentos, se preparados de forma
correta, se tornam superdotados e habitados por forças sobrenaturais. Assumindo caráter que vai além
do material, se torna forma de ligação com orixás, sendo canal de comunicação com o mundo espiritual.
E todas essas relações estão intrinsecamente ligadas à questão de preservação e manutenção do
cosmos, perpassando o significado de local, indo além do geográfico e físico, e assumindo relação
cultural e social com a natureza.
Para Santos e Gonçalves "a relação entre as religiões afro-brasileiras e a natureza, está marcada
pela necessidade que os terreiros têm da natureza como parte integrante de seu universo, dos rituais e
da própria identidade dos seus deuses” (2011, p. 14). A condição de respeito e de enxergar a natureza
como algo que vai além da materialidade cria o sentimento de pertencimento e de cuidado, aqui cabe
salientar sobre o próprio conceito de territorialidade que já se insere na relação de ligação com o meio
ambiente (Figura I). Enxergando o sujeito também como modificador do meio que ocupa, a partir das
trocas socioambientais. Neto e Alves comentam que:
O candomblé fundamenta-se em crenças, valores e mitos que muitas vezes se expressam
em elementos da natureza. Tais características do candomblé influenciam diretamente
e/ou indiretamente na relação com a biodiversidade. Certos animais são protegidos por
serem considerados sagrados (2010, p.568) .

Introduzindo o debate da Etnoecologia, devemos ter a premissa de que devemos enxergar os


sujeitos que ocupam o meio ambiente, não há debate ecológico sem colocá-los como agentes ativos no
processo de construção e modificação dos espaços que vivenciam. Suas experiências se expressam por
suas relações culturais e expõem suas práticas e conhecimentos advindos da suas ancestralidades.

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Como comentado por Alberti (2004) a tradição oral não é estatística, pelo contrário ela é viva, então está
sujeita a modificações dos sujeitos que a constroem.

Figura 1 – Exemplo de Plantas. I- Pé de Aroeira, II- Pé de Boldo, III- Pé de Arruda, IV- Espada de São Jorge.
Fonte: Wanderson Costa (2022)

Conclusão

Compreendendo essas relações, é de suma importância discutir a representação da fauna da


flora nos ritos, festas e manifestações das religiões afro-brasileiras. A invocação de entidades, a prática
das oferendas, demonstram a ligação entre o plano superior e o terrestre, que se materializa e se
perpetua a partir da conexão com a mãe natureza.
Em tempos que a ideia de acúmulo dizima e destrói o que resta do meio ambiente, olhar por
outras lógicas de ligação com a natureza é encontrar e reconhecer formas de adiar o fim do mundo.
Sobre a ótica decolonial (MALDONADO-TORRES, 2005), é enxergar fora da ótica do colonizador e fazer
o exercício de ouvir outras vozes, sonhos e possibilidades.

PALAVRAS-CHAVE: natureza; ecologia; religiões afro-brasileiras.

REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Tradição Oral e história oral: proximidades e fronteiras. In HISTÓRIA ORAL. Revista
da Associação Brasileira de História Oral, v.8, n.1, jan-jun. - São Paulo, 2005.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais, morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.

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GOMES, Heloisa Helena Sucupira. DANTAS, Ivan Coelho. CATÃO, Maria Helena Chaves de
Vasconcelos. PLANTAS MEDICINAIS: SUA UTILIZAÇÃO NOS TERREIROS DE UMBANDA E
CANDOMBLÉ NA ZONA LESTE DE CIDADE DE CAMPINA GRANDE-PB. ISSN 1983-4209 - Volume
03 – Número 01 – 2008.
Hampaté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da
África. 2.ed – Brasília: UNESCO, 2010.
MACEDO, Neusa Dias de. Iniciação à pesquisa bibliográfica: guia do estudante para a
fundamentação do trabalho de pesquisa. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Decolonization and the New Identitarian Logics after September
11:Eurocentrism and Americanism against the Barbarian Threats’, Radical Philosophy Review, vol. 8,
no. 1, pp. 35 67, 2005.
PRANDI. Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTOS, Rosalira Oliveira dos. GONÇALVES, Antonio Giovanni Boaes. ANAIS DO III ENCONTRO
NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES – ANPUH - Questões
teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista Brasileira de História das
Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html.

105
Conversatório 5

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As universidades são parte constitutiva do empreendimento de dominação moderno/colonial das
Américas. Nasceram e se estabeleceram com a função de propagar os valores, a racionalidade e os
modelos científicos europeus, empreendendo, ao mesmo tempo, um sistemático processo de
racialização, sexismo e apagamento das filosofias, ciências e cosmopercepções dos povos indígenas,
africanos e periféricos (GROSFOGUEL, 2016). Essa dupla herança – eurocentrismo e epistemicídio – e
seus preceitos seguem definindo as normas e bases de estruturação das nossas universidades. Estão
presentes na organização (disciplinar e fragmentária) dos currículos, nas práticas hegemônicas de
pesquisa e escrita, nas regras que definem o bom trabalho acadêmico, nos mecanismos de validação e
legitimação do conhecimento (CARNEIRO, 2005). Opera, assim, um legado epistemológico que “nos
impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes
são próprias” (PORTO-GONÇALVES, 2020).
No Brasil, um importante passo ao enfrentamento dessa estrutura de saber/ser/poder (QUIJANO,
2005) são as políticas de ações afirmativas que asseguram o acesso de pessoas negras, indígenas,
quilombolas, com deficiência, LGBTQIAPN+ e demais grupos periféricos à universidade. Além de
assegurar a presença de grupos sub representados na academia, essas políticas têm oportunizado o
reconhecimento, valorização e visibilização positiva de outras corporalidades e saberes, assim como dos
regimes e sistemas de conhecimento a partir dos quais são formulados. É nesse sentido que as
universidades têm se transformado em um território educativo em disputa. Multiplicam-se, em diversos
cursos de graduação e pós-graduação, iniciativas que buscam assegurar o pluralismo epistêmico,
transgredir as formas hegemônicas de produção do conhecimento e promover justiça cognitiva.
Visando o debate dessas questões, o Conversatório 5 acolheu uma importante diversidade de
estudos em andamento, relatos de experiência e reflexões críticas que examinam a persistência do
eurocentrismo nas universidades ocidentalizadas, bem como informam caminhos para o enfrentamento
do racismo epistêmico e do epistemicídio, dentro e fora delas. Dentre esses caminhos possíveis
destacaram-se nos trabalhos acolhidos: inovações pedagógicas, curriculares e teórico-metodológicas,
experimentações em escrita acadêmica, práticas de pesquisa engajada/colaborativa, formas de valorizar
e conferir visibilidade positiva aos saberes afroindígenas periféricos, dentre outras experiências que
desafiam os herméticos formalismos acadêmicos.
O conversatório foi organizado e realizado em três sessões simultâneas, que focalizaram as
seguintes temáticas: 1) Colonialidade do ser/saber e Epistemologias Contra-hegemônicas; 2) Povos e
Comunidades tradicionais – PCTs; 3) Pensadoras/es Negros, Gênero, raça e classe. No que segue,
apresentamos um breve relato dos trabalhos que compuseram cada uma dessas sessões, bem como
das reflexões críticas que nelas se desenvolveram.
A Sessão Colonialidade do poder/ser/saber: epistemologias contra-hegemônicas iniciou com a
fala da convidada especial, professora Elizabeth Del Socorro Ruano Ibarra, que refletiu sobre a docência
como um espaço de escuta e humanização que ainda é frequentemente desperdiçado no jogo dos
formalismos acadêmicos, uma vez que as regras e os valores hegemônicos que regem a formação
acadêmica desautorizam as/os estudantes a mobilizarem suas vivências, seus corpos e violências que

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atravessam suas vidas como locus de teorização. Algo que nos interpela a pensar sobre quem são e
onde estão os sujeitos e as identidades invisibilizadas pelas estruturas de poder/ser/saber que persistem
nos espaços formativos (nas escolas e nas universidades).
A dinâmica prosseguiu com rodadas de falas breves das autoras/es e ouvintes que compunham a
sessão: professoras/es, intelectuais, pesquisadoras/es, militantes e artistas de diversas origens e
campos do conhecimento nos reportaram uma diversidade de reflexões e experiências transgressivas no
campo da educação. Perpassamos por estudos que abordam a inclusão de epistemologias afroindígenas
em projetos pedagógicos, a exemplo do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS); que analisam grupos teatrais em Bogotá (na Colômbia) e São Luís (Brasil) visando a
produção de métodos e poéticas de origem latina, naquilo que a francesa Lîlâ Bisiaux conceitua como
“deslocamento epistêmico e estético do teatro decolonial”.
Por outro lado, as noções de “diversidade epistemológica” e “equidade epistêmica” foram objeto
de incursões teórico-práticas desenvolvidas pelo Coletivo Educação Científica Decolonial, composto por
15 pesquisadores do Rio Grande do Norte, São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Também tomamos contato
com trabalhos que analisam, em chave decolonial, as implicações das disciplinas eletivas do Novo
Ensino Médio ou, ainda, que formulam propostas pedagógicas transgressivas sob a ótica da diversidade
de gênero.
Em síntese, os trabalhos que compuseram a sessão versaram sobre saberes e práticas contra
hegemônicas no campo da educação, em diferentes níveis de ensino e formação, enfatizando em
particular os alcances, limites e desafios que perpassam os processos educativos desenvolvidos em
chave decolonial. As reflexões apontaram, em consonância com os trabalhos propostos, que o principal
entrave a esses processos educativos é a persistência da perspectiva monocultural (eurocêntrica,
cientificista e escritocêntrica) do conhecimento.
É importante também registrar o potente testemunho da estudante indígena Manuele Tuyuka que
atuou como monitora. Ao final da sessão, ela lembrou que a luta dos povos indígenas por direitos passa
por ocupar o território acadêmico, mas, também, pela transformação da universidade visando a
valorização, inclusão e visibilização positiva dos saberes afroindígenas nesses espaços de privilégio
epistêmico. E que apesar da saudade que sente de seus parentes e de celebrar a vida no seu território
ancestral, reconhece a importância de estar na universidade representando sua comunidade e
fortalecendo a luta do seu povo.
A sessão Povos e Comunidades tradicionais (PCTS) reuniu participantes originários de Povos e
Comunidades Tradicionais e aliados, pesquisadoras/es, professoras/es e estudantes que atuam no
campo político, pedagógico e epistêmico movimentado por essas coletividades. A sessão teve início com
uma intervenção inspiradora realizada por Edel Moraes, mulher extrativista da Amazônia, liderança no
campo de lutas dos PCTs, atualmente doutoranda no Centro de Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília e Secretária de Desenvolvimento Rural Sustentável do Ministério do Meio
Ambiente (MMA).
A partir dessa fala inicial se seguiram intervenções das/os participantes que aportaram uma
diversidade de práticas e discussões teóricas, a saber: o processo formativo em um espaço não escolar

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dedicado à discussão sobre os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais conduzido por
uma organização da sociedade civil; a experiência de uma escola de Brasília que recebe estudantes
indígenas, que aponta para os desafios pedagógicos e epistêmicos da interculturalidade e da
decolonialidade; o desenvolvimento da educação patrimonial como didática decolonial junto a
pescadores/as do litoral pernambucano; os desafios da cooperação epistemológica e da justiça
epistêmica no âmbito do Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade-ICMBIO; as
transgressões que tomam lugar na educação amazônica amapaense por meio de experiências didáticas
nas fronteiras entre o conhecimento científico e tradicional; a luta pela inserção da língua pomerana nas
redes de ensino do Espírito Santo; a experiência de pesquisa com as juventudes ribeirinha e quilombola
da Amazônia tocantina.
Além das/os autores/as diversas outras vozes se somaram no debate sobre os desafios da
interculturalidade e da justiça cognitiva na educação. Das experiências da educação básica à educação
superior, passando por iniciativas de formação promovidas por organizações da sociedade civil e da
educação corporativa no interior de órgãos públicos, mapeamos alguns desafios transversais que têm a
ver com currículos, práticas pedagógicas, formação de professores, protagonismos, distâncias e
sintonias entre o domínio normativo e prático desses territórios educativos em disputa.
Em diálogo dinâmico, a Sessão Pensadoras/es Negros, Gênero, raça e classe procurou tecer um
argumento coletivo a partir das particularidades das experiências, expertises e achados científicos
compartilhados pelos participantes (autoras/es e ouvintes). Partindo da fala inspiradora da intelectual
negra e quilombola Elionice Conceição Sacramento, a sessão teve como norte a análise de como o
racismo, articulado às estruturas de classe e gênero, atravessa as universidades enquanto instituições
movidas por pessoas de carne e osso; e de como nós – participantes do conversatório e nossas redes de
formação – temos tentado combatê-lo.
Restou claro para a coletividade de argumentação que compôs a sessão que o racismo em sua
manifestação epistêmica (o descrédito e invisibilização de intelectuais negras/os como produtoras/es de
conhecimento), institucional e socioeconômica (o número relativamente pequeno de estudantes e
professores não brancos, em especial de mulheres negras) permeia todas as áreas do conhecimento e
define notórias desigualdades na comunidade universitária.
Nos relatos compartilhados pudemos observar que as trajetórias das/os autoras/es foram
diretamente afetadas pelo racismo. Muitas/muitos de nós fomos, nos ambientes universitários e fora
deles, vítimas de comentários e olhares insultuosos, exclusões veladamente racistas, insinuações
desrespeitosas e de outras sortes de violência destinadas a nos expulsar das universidades, a nós e as
forças sociais e culturais que representamos ou com as quais nos aliamos. Pudemos constatar, uma vez
mais, que estas eram apenas as últimas expressões de barreiras e violências que vinham impedindo
nossas famílias, e aqueles em posições sociais similares, de escapar à marginalização e, mesmo tempo,
do abandono pelo Estado à própria morte.
Entendemos, por outro lado, que a universidade é um campo em disputa, no qual nossa presença
se faz cada vez mais necessária para decolonizar – des-racializar – a produção do conhecimento e a
própria sociedade. Pois ela é o locus eminente do saber/poder, símbolo e instrumento de inércia ou

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transformação social. Nossa presença nela se destina à transformação, tanto pela afronta que nossos
corpos, e de nossas/os semelhantes, representam às desigualdades históricas, quanto pela intenção
revolucionária (antirracista) de nossas ideias, referências intelectuais e comprometimentos epistêmico-
políticos.
Assim, entendemos que decolonizar as universidades e nossa sociedade implica, entre outras
coisas, em: a) africanizá-las, introduzindo e legitimando nas instituições de ensino pessoas, ideias,
epistemologias, cosmopercepções e espiritualidades de matrizes africanas e indígenas; b) reconhecer a
importância das mães, sobretudo das mães negras e indígenas, como pilares da sociedade brasileira; c)
teorizar e praticar regimes mais maternos de ser homem; d) destrinchar analiticamente, e destruir, o
racismo no ambiente universitário; e) entender os corpos dos grupos subalternizados como territórios de
r-existência e luta epistêmica e política; em suma, f) continuar a agenda científica e política que chega
até nós por Lélias González, Du Dois, Fanons, bell hooks, Betrizes Nascimentos, Conceições Evaristo,
Orixás, Racionais, Albertos, Guerreiros Ramos, Abdias, Marieles, Malês, Lecys, Jamelões...
Se tivéssemos, afinal, que resumir a polifonia epistêmica deste conversatório, diríamos que ele
evoca, de modo muito esperançoso, o ser duplo das instituições do nosso tempo. Elas são herdeiras do
poder/ser/saber colonial, mas, quando ocupadas por aquelas e aqueles que herdaram a luta
contracolonial (SANTOS, 2015), podem se tornar espaços de emergência de outras formas de produzir
conhecimento, em que a atividade intelectual não está apartada do afeto, da amorosidade, do
engajamento com a transformação do mundo. Podem, por isso mesmo, se tornar espaços de
fortalecimento de outros projetos de vida e liberdade. De outros mundos possíveis.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p.96 – 124.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:
racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. In: Revista
Sociedade e Estado, v. 31, nº 1, janeiro/abril 2016.
PORTO-GONÇALVES, 2020. Apresentação da edição em português. In. LANDER, Edgardo (org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur
Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro, 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO,
2005.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília. INCTI, UnB, 2015.

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AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Cooperação epistemológica e justiça epistêmica na gestão de áreas


Alex de Castro Fiuza 113
protegidas: oportunidades junto a experiências universitárias

Aline Matos da Rocha Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí: em defesa do Oxunismo 116

Rafaela Camargo dos Santos


Isabella Pereira Yamamoto Por um feminismo afrolatinoamericano na formação inicial de
122
Guilherme Vieira do Nascimento professoras/us/es: narrativas para semear pedagogias decoloniais
Janaina Melques Fernandes

Tatielly Valadares Pinon Nery Caminhos de reflexão: conhecendo a educação amazônica


127
Ramon de Oliveira Santana amapaense

Dandara Baçã de Jesus Lima Pacto narcisístico e mediocridade na hotelaria brasileira 131

Estudos latino-americanos: pesquisas e práticas docentes a partir


Edson Antoni 134
do pensamento decolonial

Helmar Spamer
A língua pomerana nas redes de ensino do Espírito Santo 137
Vera Lucia Mayer Seibel

Rute Carvalho Farias


Maria e o açaí - Uma história que transcende gerações 144
Ramon de Oliveira Santana

Colonialidade do saber e eurocentrismo: memórias de docentes


Albert Cordeiro 149
sobre sua formação acadêmica

Leandro Kerber
Luiz Carlos Jafelice Coletivo Educação Científica Decolonial: por uma decolonialidade
152
e demais membros do Coletivo do saber
Educação Científica Decolonial

Territórios vivos: relato de experiência sobre um processo de


Alicia Silva Uchôa Correia 156
formação em espaço não escolar

Pelos ventos de Oyá: corpo-território de mulheres negras e


Amine Fernandes Meira
ventanias insurgentes da educação decolonial na formação em 159
Eduardo Oliveira Miranda
comunicação social

(Entre)tecendo fios (e teias) entre Educação Escolar Indígena e


Jhemerson da Silva e Neto Educação Matemática na perspectiva da interculturalidade e 162
decolonialidade

A escrita acadêmica da história do samba como experiência de


Lellison de Abreu Souza 165
enfrentamento de práticas bibliográficas e discursos racistas

Manuela Rodrigues
Carla Ladeira Pimentel Águas Curta! Diversidade! Visibilizando práticas e saberes em resistência
168
Iraima Lugo Montilla no IFMG
Manuela Rocha

Educação entre os Munduruku (Jacareacanga – Pará): um exercício


Tony Leão da Costa 171
de diálogo intercultural crítico e de sistematização de experiências

111
Bruno Gomes
Educação crítica: uma análise a partir da epistemologia decolonial 174
Débora Reis Schnekemberg

Estudantes indígenas e a Escola Classe 115 Norte: considerações


Fábio Ultra 177
epistemológicas, interculturais e decoloniais

Juventudes ribeirinha e quilombola na Amazônia tocantina: (re)


Grazielle de Assunção Azevedo existências, utopias e a democratização do acesso e ensino na 180
educação superior

Como ter um projeto de vida em uma economia de morte? Entre


Izabela Amaral Caixeta 183
sonhos fabris e futuros contra coloniais

Luiz Carlos Jafelice Educação científica decolonial 186

Paulo Henrique Ferreira Borges De “Ela partiu” a “Homem na estrada”: um possível entendimento
189
dos Santos sobre as potencialidades dos samples através de Du Bois

Saber para historiar ou historiar para saber? Reflexões sobre


Debora Viveiros “afloramentos desnorteadores” e a colonialidade do saber na 192
formação superior em história

O giro epistêmico e suas nuances na formação de professores de


Ramon de Oliveira Santana 196
química na Amazônia amapaense

Juliana Soares de Jesus


Corpo feminino negro e o processo de acumulação capitalista 200
Eduardo Oliveira Miranda

Sérgio Pereira dos Santos


Negro(as) e brancos(as) em carreiras de prestígios sociais 203
Emerson Ferreira Rocha

Repensar as teorias do Brasil por meio das autorias indígenas:


Natiele Rosa de Oliveira 206
reflexões a partir da análise da obra de Darcy Ribeiro

A educação intercultural e a presença de indígenas em sala de aula:


Karollyne Andrade de Sousa 209
processos e desafios pedagógicos

Mario Wiedemann Nossa história é de pescador: a educação patrimonial como didática


214
Debora F. Herszenhut decolonial

112
COOPERAÇÃO EPISTEMOLÓGICA E JUSTIÇA EPISTÊMICA NA GESTÃO DE ÁREAS
PROTEGIDAS: OPORTUNIDADES JUNTO À EXPERIÊNCIAS UNIVERSITÁRIAS

Alex de Castro Fiuza


Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação – FE/UnB. Analista Ambiental do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade -ICMBio/MMA. lexfiuza@gmail.com

Segundo autores como Casanova (2007) e Stavenhagen (2001), grupos étnicos que foram e
seguem sendo subalternizados, escravizados e mortos através de processos coloniais, se configuram
hoje como grupos sociais minoritariamente representados, quando não ausentes, nos principais espaços
de poder estatais que tiveram e ainda têm como protagonistas uma elite branca e herdeira dos povos
colonizadores (apud JARDIM, 2018). E além de uma dimensão política e econômica, processos
colonizadores possuem também uma dimensão epistemológica (BLANCO, 2009).
O Estado brasileiro, além de administrar o conhecimento no âmbito da educação formal, o
administra também em outras esferas de atuação, a exemplo das escolas de governo 24. E também a ele
compete um papel de defesa e proteção ambiental, utilizando-se para tanto de alguns instrumentos,
entre os quais a definição de espaços especialmente protegidos.
No âmbito federal, compete ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio/MMA), gerir as unidades de conservação instituídas pela União. E também executar as políticas
relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e às populações
tradicionais25 (BRASIL, 2007).
Para dar conta desta missão, o ICMBio conta em sua estrutura com diferentes instâncias que
constituem a Educação Corporativa do instituto26, entre as quais uma escola de governo: o Centro de
Formação em Conservação da Biodiversidade (ACADEBio). Essas instâncias têm como atribuições o
planejamento e a execução de práticas educacionais continuadas, contribuindo com a constante
qualificação profissional dos seus servidores, colaboradores e parceiros.
No entanto, relembrando Jardim (2018) quando aborda a relação entre o conhecimento e o
Estado, inclusive na finalidade daquele “capacitar” este; através de uma concepção eurocêntrica da
educação, o Estado faz a mediação de processos educativos que carregam consigo heranças coloniais e
potencialmente excludentes.
Esses processos de exclusão, quando consideramos povos e comunidades tradicionais, tendem
a acarretar consequências na efetividade de políticas públicas ambientais. Partindo de estudos de

24 As Escolas de Governo são instituições públicas criadas com a finalidade de promover a formação, o aperfeiçoamento e a
profissionalização de agentes públicos, visando ao fortalecimento e à ampliação da capacidade de execução do Estado,
tendo em vista a formulação, a implantação, a execução e a avaliação das políticas públicas. Nesse contexto, compete ao
Poder Executivo federal manter escolas de governo com a finalidade de promover o desenvolvimento de servidores públicos
(UFES, c2013).
25 Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).
26 Para conhecer mais sobre a Educação Corporativa do ICMBio, acesse: https://ava.icmbio.gov.br/

113
Primack e Rodrigues, Reis da Silva (2015) reforça que os modos de vida das populações tradicionais
colaboram significativamente para a diversificação genética das espécies.
Com efeito, parece-nos correto pensar que, partindo de tecnologias apropriadas e referenciando-
se por um entendimento completo, os saberes e modos de vida tradicionais podem ser acionados como
alternativa viável para pôr em curso um desenvolvimento autêntico que, diferentemente do
desenvolvimento modernizado, oriente-se por valores de justiça e equidade socioambiental. Isso porque,
ao contrário da monocultura e da tecnociência, que tendem a tornar estéreis e a sufocar a criatividade da
auto-organização viva e dos processos humanos, o saber que informa as práticas tradicionais de
agricultura, pesca e manejo observa as dinâmicas da natureza, restaura os ciclos naturais, sintoniza as
ações humanas às sutilezas do mundo vivo e de seus processos (REIS DA SILVA, 2015).
É certo que o ICMBio já executa ações de desenvolvimento onde encontram-se, enquanto
participantes/educandos dessas ações, membros de povos e comunidades tradicionais. Mas será que é
suficiente? Como potencializar, promover e consolidar ainda mais este movimento de decolonização do
conhecimento e inclusão epistêmica nos processos educativos do instituto, no seio do próprio estado
brasileiro? Uma inspiração que pode contribuir com este propósito é o Encontro de Saberes, projeto de
inclusão epistêmica desenvolvido no âmbito de universidades públicas brasileiras e internacionais.
O Encontro de Saberes é um projeto de inovação epistêmica e pedagógica iniciada em 2010 pelo
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), sob a
coordenação de José Jorge de Carvalho, e com intenso trabalho executivo e reflexivo de uma rede
composta por mestres e mestras, professores, professoras e estudantes das mais variadas áreas do
saber acadêmico. Trata-se da inclusão de mestres e mestras oriundos de sociedades indígenas,
comunidades de terreiro, quilombolas, agroextrativistas, grupos urbanos de diferentes culturas e demais
povos tradicionais para atuarem como docentes nas universidades (DE CARVALHO; VIANNA, 2020).
Portanto, acredito no Encontro de Saberes enquanto uma fonte contínua de inspiração, não só de
premissas e pressupostos teóricos, mas também de pedagogias, práticas, técnicas, metodologias e
procedimentos didáticos com potencial de serem modelados e adaptados para outros contextos
educativos, a exemplo das ações de desenvolvimento voltadas ao aperfeiçoamento de servidores,
colaboradores e parceiros do ICMBio e, inclusive, daqueles servidores que também atuam enquanto
educadores nas mais diferentes temáticas e ações de desenvolvimento promovidas pelo instituto.
Assim sendo, diante da problemática de pesquisa acima evidenciada estar relacionada à
colonialidade e ao pensamento moderno herdados e ainda presentes no seio do Estado brasileiro, e da
necessidade de enfrentamento a esta herança instituinte de nefastas relações, inclusive epistemológicas,
entendo que fontes teóricas que se referenciam no decolonialismo oferecem um arcabouço teórico
coerente e adequado à presente pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: colonialidade; cooperação epistemológica; justiça epistêmica; áreas protegidas.

REFERÊNCIAS

114
BLANCO, Juan. Cartografía del pensamiento latinoamericano contemporáneo. Guatemala:
Universidad Rafael Landívar, 2009.
BRASIL. Decreto Federal do Estado Brasileiro n. º 6040, de 07 de fevereiro de 2007. Regulamenta a
Lei Federal nº 9985/2000 que institui o SNUC. Diário Oficial da União.
DE CARVALHO, José Jorge; VIANNA, Letícia Costa Rodrigues. O Encontro de Saberes nas
Universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos. Revista Mundaú, n. 9, p. 23-49, 2020.
JARDIM, Raoni Machado Moraes. Educação intercultural e o Projeto Encontro de Saberes: do giro
decolonial ao efetivo giro epistêmico. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências
Sociais, Departamento de Estudos Latino Americanos, Programa de pós-graduação em estudos
comparados sobre as Américas, Universidade de Brasília. Brasília, 2018.
REIS DA SILVA, Ana Tereza. A conservação da biodiversidade entre os saberes da tradição e a
ciência. Estudos avançados, v. 29, p. 233-259, 2015.
UFES. Escolas de Governo, c2013. Disponível em: <https://progep.ufes.br/escolas-de-
governo#:~:text=As%20Escolas%20de%20Governo%20s%C3%A3o,e%20a%20avalia
%C3%A7%C3%A3o%20das%20pol%C3%ADticas>. Acesso em: 25 de jun. de 2022.

115
OYÈRÓNKẸ́ OYĚWÙMÍ: EM DEFESA DO OXUNISMO

Aline Matos da Rocha


Mestra em filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Metafísica da Universidade de Brasília (UnB) sob orientação do Professor Dr. wanderson flor do nascimento.
matosdarochaaline@gmail.com

Introdução

Este texto floresce de discussões que estão presentes na minha tese de doutorado intitulada
“Corpo-orí-idade: uma investigação filosófica sobre ontologia relacional no pensamento de Oyèrónkẹ́
Oyěwùmí”. Filósofa27 iorubá que vem nos demandando que
é hora de centrar a África [...]. Esta é um tesouro não só de bronzes beninenses, de minério da
República Democrática do Congo e de diamantes de Botsuana. As verdadeiras joias não trabalhadas são
conceitos, ideias, valores, formas de ser e sistemas de conhecimento e episteme africanas. (OYĚWÙMÍ,
2022).
Através desse alerta Oyěwùmí em sua conferência28, intitulada, “Desaprendendo lições da
colonialidade: escavando saberes subjugados e epistemologias marginalizadas”, proferida, aqui, na
Universidade de Brasília (UnB) em 7 de outubro de 2016 no encerramento do Seminário Internacional
“Decolonialidade e Perspectiva Negra” nos apresenta e defende seu conceito e ideia de oxunismo.

Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí através das águas29

Uma das principais vias de acesso à filosofia consiste em questões que não necessariamente
ofereçam respostas fixas, já que “as questões filosóficas são, em princípio, abertas” (FLORIDI, 2013, p.
200) nos possibilitando refletir, constantemente, sobre elas. Nesse sentido, algumas questões se
(im)põem: é possível falar de sociedade sem mãe? É possível defender a sociedade sem Oxum30?
Oxum é ìyá31 primordial, divindade mais antiga e mais velha não apenas relativamente à idade,
mas por ser mãe da humanidade e presença em todos os eventos relacionados à vida e à comunidade.
Trocando em miúdos, Oxum é uma “divindade brilhante, cujo imaginário e devoção exigem ampla e
profunda reflexão acadêmica” (MURPHY; SANFORD, 2001, p. 1), pois não há vida, sociedade, e
comunidade – de nenhum tipo – sem ìyá. Oyěwùmí (2016a, com adaptações) salienta que

27 O fato de Oyěwùmí não possuir um diploma, específico, em filosofia não a remove do âmbito da produção filosófica e dos
diálogos que mantém com a filosofia africana e ocidental largamente publicados em coletâneas de textos filosóficos, tais
como o The African Philosophy Reader dentre outros. Na esteira de Lewis Gordon (2018) também defendo que Oyèrónkẹ́
Oyěwùmí é uma filósofa, pois “como mostra a história da filosofia, seus principais desenvolvimentos frequentemente vêm
de pensadoras(es) que não foram convencionalmente formadas(os) como filósofas(os)”.
28 Disponível para acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=zeFI9vTl8ZU.
29 Alusão ao título da coletânea Ọ̀ṣun Across the Waters (2001).
30 “Ao longo da diáspora iorubá, a língua tem assumido as ortografias locais onde se estabeleceu. Assim, a nossa divindade
pode ser apresentada como Ọ̀ṣun, Ochún, Oxum e Oshun” (MURPHY; SANFORD, 2001). Utilizo a grafia abrasileirada de
Oxum em correlação à Ọ̀ṣun.
31 “É o termo para mãe na língua iorubá” (OYĚWÙMÍ, 2011, p. 233).

116
quando lê as teorias europeias, as teorias de contratos sociais, o que sempre lhe choca é
que muitos por si só estão criando comunidade política. Lembra de Rousseau? Mas não é
uma comunidade política, não há comunidade de nenhum tipo sem ìyá, sem a instituição
da maternidade. [Essa supressão] é um resultado do domínio masculino e do
ocidentocentrismo em que ìyá e todas fêmeas são totalmente apagadas dos discursos de
fundação da comunidade política.32

Na contramão desse apagamento a autora se volta para Oxum e forja33 oxunismo como uma
ferramenta necessária para escavar saberes subjugados, epistemologias marginalizadas, buscar justiça
cognitiva, descolonizar o conhecimento34 e desmantelar a casa do senhor e não a definir como nossa
única fonte de apoio (OYĚWÙMÍ, 2016a). Oxunismo é o modo como Oyěwùmí nomeia seu ativismo e
defende tradições, conceitos, e recursos intelectuais autóctones derivados de Oxum: divindade iorubá
relacionada à progênie da humanidade (OYĚWÙMÍ, 2016b), modelo de matripotência e ao mesmo tempo
representação35 que encarna conhecimento autóctone36 e permite com que nossa filósofa escave
saberes subjugados e sujeitados. Michel Foucault em sua obra “Em defesa da sociedade” entende por
saberes sujeitados
toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais,
como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. E foi
pelo reaparecimento desses saberes desqualificados mesmo, [...] que foi feita a crítica
(FOUCAULT, 2010, p. 8-9).

No caso de Oyěwùmí com a (manifest)ação de oxunismo, a crítica é feita à narrativa produzida


pelo racismo epistêmico de que Oxum37 não possui saberes. No entanto é Oxum que possibilita nossa
autora realizar seu trabalho e criar condições filosóficas, políticas e sócio epistemológicas que estejam
mais ligadas à sua história, memória e cultura, e confronte lógicas ocidentais (racistas) de produção de
conhecimento sobre África.
Vale ressaltar que embora Oxum seja uma divindade conceitual presente em What Gender is
Motherhood?38 (2016b) não encontramos na obra de Oyěwùmí referência à oxunismo39. Podemos
encontrar referência à oxunismo40 e oxunalidade41 em Nkiru Nzegwu (2011b; 2011a), que mobiliza a
divindade Oxum como uma força erótica transformadora que percorre e anima a vida ao delinear um
fluxo sequencial de energia criativa a partir do desejo, excitação e prazer. Em Nkiru Nzegwu (2011b, p. 2)
oxunismo quer “dizer uma força sexual e um modo de erotismo que está de acordo com o ethos pró
natalista dos valores sociais de África”.

32 Todas as passagens de textos cujos títulos não estão em língua portuguesa nas referências foram traduzidas por mim.
33 Utilizo forja em referência à Ogum, divindade responsável pelas propriedades sagradas do ferro e por forjar suas próprias
ferramentas (BARNES, 1997).
34 Compreendido em seu sentido mais amplo.
35 Desvinculada do imaginário colonial.
36 Por conhecimento autóctone, compreendo na esteira de Kwesi Kwaa Prah (2017), o “conhecimento que é construído no
pensamento e na prática cultural africana, cujas origens são anteriores à presença ocidental e que, em formas
constantemente modificadas, é transferido geracionalmente”.
37 E tudo que ela representa.
38 Em tradução livre: Qual é o gênero da maternidade?
39 Ọ̀ṣunism.
40 Osunism.
41 Osunality.

117
Essa leitura e interpretação de Oxum feita por Nkiru Nzegwu é completamente distinta da que
Oyěwùmí vem mobilizando tanto em What Gender is Motherhood? (2016b) quanto na ideia de oxunismo
apresentada, aqui, na UnB em sua conferência “Desaprendendo lições da colonialidade: escavando
saberes subjugados e epistemologias marginalizadas”.
Oyěwùmí argumenta em sua conferência que defender maternidade é central, e deve ser central
em qualquer esforço de (trans)formação da sociedade, de defesa da humanidade, e das crianças, “cujos
nascimentos são provas palpáveis que uma parcela da existência anônima é destacada e encarnada
com vista a cumprir uma missão sobre nossa terra” (HAMPÂTÉ BÂ, 2022, p. 2). E por que não cumprir
nossos esforços de transformação sócio comunitária com oxunismo, que é uma relação com ìyá, com
Oxum?
Logicamente que não podemos evocar Oxum sem descolonizar imaginários coloniais que foram
construídos – também em experiências diaspóricas iorubás no Brasil – em torno da mãe e divindade do
conhecimento e da cocrição/procriação. Um dos exemplos que ilustra esse ponto é o fato de uma das
mais importantes obras de Pierre Verger, intitulada Orixás, (d)escrever Oxum como uma “feminilidade
elegante e coquete” (VERGER, 2018, p. 20). Mas o que significa Oxum ser feminina e coquete? E qual o
sentido dessa interpretação encontrar abrigo em experiências diaspóricas no Brasil – tais como o
Candomblé, a Umbanda, a Jurema, etc. – em que os Orixás fazem gênero dentro dos rituais42 ?
Algumas das características da colonização são a demonização e generificação de divindades e
ancestrais, o apagamento da memória, a marginalização de línguas autóctones, a exclusão de
epistemes, a outrificação de culturas, de mentes e corpos, e a destruição de instituições sociais e
religiosas (OYĚWÙMÍ, 2016b). Colonizar mentes e corpos passa pela colonização da espiritualidade. O
fato de Oxum ter sido – e ser – (d)escrita, historicamente e socialmente com marcas de gênero em
cosmologias e instituições socioculturais iorubás responde a modelos generificados colocados pela
colonização e representa um valor patriarcal – moderno colonial – que impôs a imagem de mulher à uma
divindade que não é mulher.
Segundo Oyěwùmí (1997), o conceito de mulher remete a imagens de quem é subordinada, não
tem poder, e não participa da arena política e pública. Nessas imagens, homem é a categoria normativa
(implícita ou explícita) sob a qual mulher é definida. Assim, quais são as implicações sócio políticas e
sócio espirituais em conceber Oxum como mulher? E o que a emergência de Oxum como mulher nos diz
sobre a mudança epistemológica em cosmologia e instituições socioculturais iorubás?
Para Oyěwùmí (2016b, p. 7) essa emergência nos diz de um afastamento do ethos matripotente
baseado na senioridade autóctone para um ethos masculino baseado no gênero, “cuja
instrumentalização é tão marcante, que não se sente mais a necessidade de perguntar o que significa a
palavra ou a que se refere o conceito” (BONI, 2017, p. 50). Contudo, não podemos pensar em gênero
sem se perguntar sobre o significado desta palavra e ao que se refere.
Em os trabalhos de Oyěwùmí (1997, 2016b) gênero significa dicotomia de matriz binária e
hierárquica entre homem e mulher e se refere a um sistema de opressão marcado por um corpo sexuado
que confere privilégio ao homem e desvantagem a mulher. Desde o eixo fundamental do privilégio
42 Referência ao título do artigo das professoras Denise Botelho e Hulda Helena Coraciara Stadtler (2012).

118
masculino e subordinação feminina, ser mãe – no/e para o Ocidente – é uma coisa ruim, pois está
vinculado aos processos reprodutivos como o parto, a gestação, o nascimento, os cuidados com as
crianças, e “é uma experiência solitária, um papel social que é percebido como sendo ocupado por uma
pessoa” (OYĚWÙMÍ, 2003, p. 5). Entretanto, na sociedade iorubá – e em muitas sociedades africanas –
ser mãe não é uma experiência solitária, individual, mas comunitária, e os processos reprodutivos como
o parto, a gestação e o nascimento não têm equivalentes masculinos.
“Mãe não é apenas aquela que dá à luz43; seu papel também é fornecer alimento, cuidados e
educação. Há mães nutritivas, mães espirituais e mães protetoras, e desta forma, elas são poderosas e
têm tanto homens quanto mulheres sob seu controle” (BONI, 2017, p. 55). Oyěwùmí a partir de
cosmologias, instituições, e cosmopercepções iorubás nos mostra que maternidade não é gênero, mas
transcendência e escreve um livro inteiro44 sobre maternidade oxunista, argumentando que a
generificação da maternidade leva à sua patriarcalização (OYĚWÙMÍ, 2016a). Isto é, ao processo de
domínio social e de poder centralizado no homem, no masculino, no pai, o qual não é a contraparte da
maternidade em muitos conceitos filosóficos e instituições sociopolíticas iorubás, ao contrário do
Ocidente, em que “não podemos compreender a maternidade sem abordar a paternidade, a mãe sem o
pai, no sentido biológico e social do termo” (SCAVONE, 2001, p. 142).
Entretanto, ìyá não é mãe no sentido hegemônico ocidental de mulher e esposa do pai, e também
não é originalmente uma categoria de gênero porque não supõe ou funde o pai como lei e mediador da
relação com sua prole. A relação dessa instituição sócio espiritual com sua prole é pré-gestacional, pré-
terrena, pós-gestacional e pra sempre. Não há nessa relação a contraparte paterna. Por isso ìyá não é
gênero porque não tem binário constituído entre Homem/mulher; Pai/mãe. Ìyá é uma instituição e
posição matripotente, espiritual, física e não física de onde emana e flui toda vida e comunidade.
Portanto, oxunismo implica em defesa da maternidade, da sociedade, da comunidade, das
pessoas, das crianças, etc. É um ativismo que pri(orí)za ìyá e sua prole, e isso é inclusivo porque todo
mundo nasce de ìyá (OYĚWÙMÍ, 2016a) e, é essa compreensão que precisamos desenterrar e
dessujeitar em nossos esforços de descolonização, de restauração humana e de (trans)formação
epistêmico social:
a humanidade não pode se reproduzir sem maternidade. Portanto, a instituição e as
práticas cotidianas da humanidade maternal devem ser um ato coletivo, impulsionado pela
vontade comunitária. O desafio, então, é como convencer a sociedade de que a
maternidade não deve ser responsabilidade de apenas uma mulher ou de apenas uma
família nuclear, mas deve ser a base sobre a qual a sociedade é construída e a maneira
pela qual organizamos nossas vidas. Nossa insistência em usar o homem branco como
modelo de liberdade e privilégio masculino branco como o ideal que deve informar a
transformação social ignora o fato de que o privilégio branco, especificamente o privilégio
masculino branco, é uma patologia. Nós não precisamos construir nada sobre essa base.
Em vez disso, precisamos derrubá-la. [...] Em um mundo de possibilidades para todos(as)
que nascem de ìyá, a ideologia materna, que é orientada para a comunidade, que inclui
tudo, dar a vida, sustentar a vida e preservar a vida, pode fornecer a ambiência e a base
para a ação política e a transformação social necessária (OYĚWÙMÍ, 2016b, p. 220).

43 No sentido bio-lógico. Conceito criado por Oyěwùmí para nomear uma lógica social ocidental baseada na
instrumentalização da biologia e totalmente implicada em uma instância sociocultural que difunde essa prática numa
percepção determinista da sociedade que visualiza os corpos como sexos à mostra (OYĚWÙMÍ, 1997).
44 What Gender is Motherhood? (2016b).

119
Em suma, compreendo que toda transformação não depende de – e do que possa fazer – Oxum,
mas julgo, na esteira de Oyěwùmí, que com esta é possível tanto justiça cognitiva, (rel)ações decoloniais
antirracistas em educação45, práticas e saberes para o bem comum e a boa vida quanto lutar contra a
colonialidade do dia a dia: Oré Yeyé o!

PALAVRAS-CHAVE: Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí; oxunismo; descolonização do conhecimento.

REFERÊNCIAS
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BONI, Tanella. Feminism, Philosophy, and Culture in Africa. In: The Routledge Companion to Feminist
Philosophy. New York: Routledge, p. 49-59, 2017.
BOTELHO, D. M.; STADTLER, H. H. C. Os orixás fazem gênero dentro dos rituais. Revista da
Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) - ABPN, v. 3, n. 7, p. 171-190, mar./jun.
2012.
FLORIDI, Luciano. What is a Philosophical Question? Metaphilosophy, v. 44, n. 3, 2013.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de
Maria Ermantina Galvão. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
GORDON, Lewis. Black Issues in Philosophy: The African Decolonial Thought of Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí.
Blog of the APA (American Philosophical Association). 2018. Disponível em:
https://blog.apaonline.org/2018/03/23/black-issues-in-philosophy-the-africandecolonial-thought-of-
oyeronke-oyewumi/. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A noção de pessoa na África negra. Tradução para uso didático de: HAMPÂTÉ
BÂ, Amadou. La notion de personne en Afrique Noire. In: DIETERLEN, Germaine (ed.). La notion de
personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981, p. 181 – 192, por Luiza Silva Porto Ramos e Kelvlin
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https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/amadou_hampat%C3%A9_b%C3%A2_-
_a_no%C3%A7%C3%A3o_de_pessoa_na_%C3%A1frica_negra.pdf. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
MURPHY, Joseph M; SANFORD, Mei-Mei (eds). Ọ̀ṣun Across the Waters: A Yorùbá Goddess in Africa
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NZEGWU, Nkiru. Osunality. In: TAMALE, Sylvia (editora). African Sexualities. A Reader. Oxford, Nairobi,
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OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. (editora). African Women and Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood.
Trenton (New Jersey): Africa World Press, 2003.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Beyond Gendercentric Models: Restoring Motherhood to Yorùbá Discourses. In:
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. (editora). Gender Epistemologies in Africa: Gendering Traditions, Spaces,
Social Institutions, and Identities. New York: Palgrave Macmillan, 2011.

45 E não só.

120
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Desaprendendo lições da colonialidade: escavando saberes subjugados e
epistemologias marginalizadas. In: Seminário Internacional Decolonialidade e Perspectiva Negra.
Brasília, 2016a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zeFI9vTl8ZU. Acesso em: 21 de
outubro de 2022.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. ‘(Re)Centring African Epistemologies: An Intellectual Journey’: The Acceptance
Speech for the 2021 Distinguished Africanist Award. Codesria Bulletin Online, n. 3, fevereiro. 2022.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender
Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. What Gender Is Motherhood? Changing Yorùbá Ideals of Power, Procreation,
and Identity in the Age of Modernity. New York: Palgrave Macmillan, 2016b.
PRAH, Kwesi Kwaa. Intellectual sovereignty: Shifting the centre of gravity. In: University World News:
Africa Edition. 24 de mar. 2017. Disponível em: https://www.universityworldnews.com/post.php?
story=20170321092208711. Acesso em: 20 de outubro de 2022.
SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. cadernos pagu (16),
p. 137-150, 2001.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Solisluna Design Editora, 2018.

121
POR UM FEMINISMO AFROLATINOAMERICANO NA FORMAÇÃO INICIAL DE
PROFESSORAS/US/ES: NARRATIVAS PARA SEMEAR PEDAGOGIAS DECOLONIAIS

Rafaela Camargo dos Santos


Estudante de Licenciatura em Pedagogia na Universidade Metropolitana de Santos, Auxiliar de Desenvolvimento
Infantil na Rede Municipal de Santos e Umbandista

Isabella Pereira Yamamoto


Estudante de Licenciatura em Pedagogia na Universidade Metropolitana de Santos, estagiária na rede particular de
ensino e Umbandista

Guilherme Vieira Do Nascimento


Estudante de Licenciatura em Pedagogia na Universidade Metropolitana de Santos, estagiário na Prefeitura de São
Vicente no programa de reforço escolar, INTEGRASV. Um ser em constante desconstrução

Janaina Melques Fernandes


Professora na Rede Municipal de Santos e Universidade Metropolitana de Santos, artista circense e brincante na
área da Educação Física escolar. CREF 054915 -G/SP

Apresentação

É dentro de um contexto de formação inicial de professoras/us/es, do curso de Licenciatura em


Pedagogia da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES), em Santos/SP, que é tecido este relato
de experiência. A intenção é compartilhar as vivências e as aprendizagens construídas no componente
curricular Grupos Cooperativos de Estudos, a partir do estudo da obra Por um Feminismo Afro-latino-
americano, coletânea de produções da intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez (2020) acerca da
decolonialidade. Para que esse relato fosse justo com o processo pedagógico, visualizei uma construção
coletiva, em que fosse possível tecer as vozes das alunas, do aluno e a minha, a fim de valorizar o que
se busca: a afirmação de diversidades, de contrastes, de diferenças, para que as teorias decoloniais
alcancem a prática.
As autoras e autor são estudantes do 4° semestre de Licenciatura em Pedagogia que,
trabalhando junto com a professora, (re)conhecem a importância de valorizar e estudar as vozes
historicamente ignoradas e desvalorizadas pela academia. Ao identificar e compreender a importância
dos ensinamentos de Lélia Gonzalez para a formação docente crítica, antirracista, feminista, as duas
alunas e o aluno aceitaram o convite de pensar-sentir suas compreensões e aprendizagens ao longo do
semestre para fazer reverberar a necessidade de se pensar e praticar uma educação antirracista. Seria
esse um dos caminhos para semear pedagogias decoloniais?
Compreender a decoloneidade exige o entendimento das dimensões da colonialidade, esmiuçar
seus efeitos, tanto da vida objetiva, quanto da subjetiva. Trata-se de propor caminhos para a criação de
estratégias para combater a perpetuação da colonialidade. Nesse sentido, a germinação de pedagogias
decoloniais se fazem necessárias e urgentes, para que sua força acesse o maior número de espaços,
gentes e seres, das escolas e demais ambientes de aprendizagens de toda ordem (MOUJÁN,
CARVALHO; RAMOS JÚNIOR , 2020). Tecer relatos de experiências decoloniais na formação inicial de
professores movimenta a abertura de caminhos para os processos de afirmação das vidas e das

122
comunidades, na luta contra a colonialidade, a padronização ocidental do conhecimento e a violência
epistemológica que se naturaliza desde os primeiros anos de escolarização das pessoas.
O processo pedagógico se realizou a partir de alguns fazeres como rodas de leitura e de
conversa referentes a textos de Lélia Gonzalez, outras referências como Krenak (2019), Rufino (2021),
além de vídeos com temáticas decoloniais como a Flecha 2: O Sol e a Flor, Selvagem Ciclo de estudos
(2021). Todas as ações foram realizadas por estudantes dos 1°, 2° e 3° semestres que vivenciaram o
componente curricular ao longo do semestre. Após as leituras e conversas, cada estudante ficou
responsável em selecionar um capítulo da obra de Lélia Gonzalez, elaborar uma resenha e compartilhar
suas compreensões para o grupo. Elaborada a primeira produção escrita, o passo seguinte se deu com a
formação de grupos para a produção e elaboração de uma série de podcasts com a temática. Para tanto,
foram realizados encontros para criação da identidade da série, temas dos episódios e elaboração de
roteiros. Cada grupo foi responsável pela produção e gravação do episódio com a mediação e orientação
da professora ao longo das aulas. Como resultado, publicamos a série “Encontros Decoloniais”, que
contou com quatro episódios : 1 - A descoberta da colonização - quem descobriu o Brasil?, 2 – Bem-
vindes ao mundo de Lélia, 3 - Influências negras e 4 - Inspirações decoloniais. Os Episódios podem ser
encontrados em diversas plataformas, como Anchor e Spotify.
A seguir, encontram-se as narrativas dos estudantes que participaram desse processo e
voluntariamente registraram suas reflexões, no esforço de caminhar para uma formação de professores
que semeiam Pedagogias Decoloniais para dentro das escolas.

O meu reconhecimento como mulher negra acadêmica - Rafaela Camargo dos Santos

Ler histórias de mulheres negras é uma forma poderosa de reconhecer a minha história - e das
mulheres da minha família. E foi na Universidade que acessei a leitura de mulheres negras. Todo meu
processo de escolarização se forjou na escola pública. Situada em um bairro periférico, a falta de
infraestrutura e as práticas pedagógicas conhecidas como tradicionais (e, portanto, coloniais)
influenciaram muito a minha formação. Sempre estive em uma posição passiva como estudante, sem
espaço de voz e consciência para questionar as propostas e práticas valorizadas. Por ser uma jovem
negra, de baixa renda e fora do padrão estético legitimado pela estrutura racista, a realidade se
manifestava para mim diferente do que muitos diziam. Em relação à interação social, tanto com os
colegas quanto professores, sempre me senti inferior e sem capacidade de ser a “aluna inteligente” da
sala, conquistar um espaço de valor nas relações da escolarização. A manutenção desse pensamento
era muitas vezes reforçada pelos estudantes e algumas vezes até por professores. Diante dessa
experiência cotidiana, acabei me tornando uma pessoa retraída e convicta de que a escola não era pra
mim, mesmo tendo muito interesse em produções textuais e músicas.
A entrada no ensino médio chegou com responsabilidades. Trabalhando desde os 16 anos,
muitos desafios poderiam me levar ao desânimo, mas foi o encontro com alguns professores e estudos -
sociologia e história - que abriram meus caminhos para eu enxergar possibilidades e sentido nos estudos
- mesmo que não representada, como mulher negra, no repertório oferecido pela escola.

123
Foi o acesso à universidade, que a minha leitura de mundo (FREIRE, 2019) efetivamente se
transformou. Nas aulas que rompiam com os moldes tradicionais, sobretudo nos estudos decoloniais, fui
incentivada a participar e me expressar, fortalecendo a confiança e o entusiasmo para continuar a
aprender, vencer os medos de colocar minha voz em público. Foi muito mais fácil do que me diziam.
Estudar mulheres negras com repertórios iguais aos meus foi muito emocionante. Ter e conversar sobre
o livro de Lélia Gonzalez Por um feminismo afrolatinoamericano foi algo enriquecedor para minha
trajetória, pois pela primeira vez me identifiquei com a produção de uma autora.
Aprofundar os estudos no capítulo chamado: “Ora Yê Yê Ô!” - saudação a orixá Oxum para
religiões de matrizes africanas ou diaspóricas - trouxe não só o conhecimento acadêmico, mas também o
meu autoconhecimento, já que a escrita e pensamento de Lélia se ligavam ao meu em vários momentos.
Encontrar as palavras de Lélia Gonzalez me esperança - do verbo esperançar (FREIRE, 2019) , ao
conceber pedagogias decoloniais para as próximas gerações.
A produção do podcast neste percurso - utilizado como instrumento de avaliação - pode ser
considerado um instrumento para pedagogias decoloniais. Pois não se reduz à avaliação como produto
final e sim porque contempla todo o processo de construção do conhecimento dentro do contexto de
nossos sonhos e ancestralidades. Gravar um episódio com um tema com o qual me identifico fortalece a
minha confiança de saber que posso experimentar ser eu. E quando assim sou, minha comunidade
também pode começar a ser. Encontrar e estudar influências antirracistas é uma alegria, é produzir um
trabalho acadêmico de maneira responsável, e decolonial.

A percepção da realidade social e das influências da colonização no cotidiano - Isabella Pereira


Yamamoto

É pelos estudos decoloniais que inicio a compreensão do meu papel de mulher branca na luta
antirracista. Por ter vivido um processo de escolarização tradicional, temáticas como racismo, gênero,
feminismo, homofobia ou até sobre outras formas de opressão, não eram colocadas em pauta. Muitas
vezes, as violências vividas na escola eram silenciadas sob o discurso da brincadeira, ou seja,
naturalizavam-se as opressões e favoreciam suas reproduções. Soma-se a isso o clima de racismo
religioso, manifestado pela legitimação de uma única religião, o catolicismo, cujas práticas faziam parte
da rotina escolar e eram inquestionáveis.
A decoloneidade na educação deve se manifestar no conteúdo e na forma. Com Lélia Gonzalez
como referência, a escuta, principalmente de mulheres negras, se fez como premissa para o diálogo.
Escutamos as vivências e as compreensões de cada um acerca das leituras. E como estudante,
finalmente pude conversar sobre os efeitos da colonização e a urgência de um novo caminho para a
humanidade. Pela primeira vez, estudei um livro abordando religiões de matrizes africanas e não tive
medo de falar sobre minha fé - e ser criticada. Essas experiências fortalecem meu processo de
conscientização e me mostram que posso ser eu mesma, sem a companhia do medo, tão bem criado
pelas estruturas escolares tradicionais.

124
Com os estudos decoloniais, comecei a perceber como normalizamos a vida inteira as nossas
referências coloniais no nosso dia a dia. Os atores das novelas e filmes, os assuntos abordados com
preconceito, a falta de representatividade, os corpos padrões, os feriados religiosos católicos, entre
tantas outras coisas normalizadas na sociedade sem qualquer questionamento. Estudar decoloneidade
me fez entender que escola deve ser espaço de afeto e escuta, espaço de entendimento dos privilégios e
das opressões e criação de suas superações.

Meu primeiro passo no processo da pedagogia decolonial: em busca da desconstrução. -


Guilherme Vieira Do Nascimento

Lélia Gonzalez, mulher preta, militante, professora e pioneira no estudo da cultura preta no Brasil,
chegou para mim, homem branco, hétero, padrão, como banho gelado pela manhã. No início, dói e
incomoda, mas depois desperta e acalma. Apesar de nunca ter ouvido falar de sua história antes de
acessar o Ensino Superior, conheci, através de suas obras, uma nova leitura de mundo, antirracista e
decolonial. Lélia Gonzalez, em seu livro, Por um feminismo afro-latino-americano, afirma que:
A caracterização da produção cultural afro-brasileira nas instituições de cultura e
educação, por exemplo, ilustra esse fenômeno. Práticas educacionais, assim como textos
escolares, são marcadamente racistas. E isso sem levar em conta o sexismo e a
valorização dos privilégios de classe. É desnecessário observar que os meios de
comunicação de massa apenas reforçam e continuam a seguir a ideia da “superioridade
branca”.Enquanto o mito da democracia racial funciona nos níveis público e oficial, o
branqueamento define os afro-brasileiros no nível privado e em duas outras esferas.
Numa dimensão consciente, ele reproduz aquilo que os brancos dizem entre si a respeito
dos negros e constitui um amplo repertório de expressões populares pontuadas por
imagens negativas dos negros[...] (GONZALEZ, Lélia, 2020, pág. 68)

O sistema sempre puniu e sempre vai punir pessoas pretas, LGBTQIA +, pobres e tantas outras
consideradas minorias. Por isso, precisamos, diariamente, lutar contra o que nos ensinaram, rejeitando a
cultura colonizadora imposta em nosso cotidiano, Mais do que isso, precisamos nos desconstruir,
sensibilizar as pessoas para a violência e a opressão contra os diversos grupos sociais, para que uma
consciência crítica venha à tona e seja possível assumir uma postura efetivamente decolonial.
Em um de nossos últimos encontros presenciais, próximo ao final do semestre, nossa professora
propôs uma roda de conversa sobre nossas compreensões e sentimentos acerca dos textos de Lélia. A
partir da minha fala de que havia sido um texto difícil, de não tão fácil compreensão, tivemos, em
seguida, a fala da Rafaela, uma mulher preta, que muito se identificou e compreendeu a escrita. Vi,
naquele momento, enquanto falava e manifestava sentimento em suas palavras, a importância da
representatividade: se, para mim, os argumentos, vivências e questionamentos de Lélia chegaram a ser
complexos e muito acadêmicos, justamente por não viver aquela realidade, para a minha colega, foi uma
escrita simples, de representatividade e atual. Em suas palavras, ela viu em Lélia algo que fomentava
sua vida diariamente, suas relações parentais e espirituais e seus sentimentos. Reconhecer o lugar que
ocupa, conscientizar-se, é uma parte importante para iniciar o processo de desconstrução dos discursos,
das posturas e atitudes colonizadoras, passo fundamental para semearmos pedagogias decoloniais.

Encerramento

125
A obra de Lélia Gonzalez, foi a incentivadora deste relato. Estudar sua obra abrange uma
perspectiva que ao longo dos anos foi silenciada pelo sistema tradicional/colonizador. Ter acesso a
escrita e partilha de conhecimento de mulheres, especialmente mulheres negras, como Lélia, nos iniciou
em uma nova perspectiva para pensar-sentir as práticas pedagógicas. No decorrer de nossas
experiências estudando Lélia Gonzalez, pudemos ter acesso ao que sempre nos foi negado, silenciado e
imposto como errado – as culturas negras e afrobrasileiras. Lélia Gonzalez nos fez entender a
importância da representatividade nos espaços educacionais, bem como o sentimento de pertencimento
aos lugares de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: pedagogia decolonial; Lélia Gonzalez; formação inicial de professores.

REFERÊNCIAS
EDUCAST. Podcast. Pedagogia Unimes. Santos, 2022. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/34v5eKzvZUZzUMqjJQsd4K. Acesso em: 05 Nov 2022.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 81ª ed. Rio de Janeiro. Paz & Terra, 2019.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos /
organização Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro. Zahar, 2020.
KRENAK, Ailton. 1 Video (11 min). FLECHA 2 - O SOL E A FLOR. Publicado pelo canal SELVAGEM
ciclo de estudos sobre a vida, 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=_jVxOs70hpQ&ab_channel=SELVAGEMciclodeestudo ssobreavida. Acesso em: 28 set 2022
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2020.
MOUJÁN, I. F. , CARVALHO, E. S. S.; RAMOS JÚNIOR, D.V. Pedagogias de(s)coloniais:fazeres e
saberes. Goiânia : Econuvem , 2020.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2019.
RUFINO, L. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro, RJ: Mórula, 2021

126
CAMINHOS DE REFLEXÃO: CONHECENDO A EDUCAÇÃO AMAZÔNICA AMAPAENSE

Tatielly Valadares Pinon Nery


Graduanda de licenciatura em Química da Universidade do Estado do Amapá. tatiellynery.ueap@gmail.com

Ramon de Oliveira Santana


Doutor em Educação em Ciências. Professor do Colegiado de Química vinculado à Universidade do Estado do
Amapá. ramon.santana@ueap.edu.br

Da educação escolar para a educação amazônica

Desde quando iniciei os estudos escolares, sempre acreditei que só dava para adquirir
conhecimentos se estivéssemos tendo explicações de professores formados em universidades ou
faculdades. Acreditava que a educação só podia ser efetivada apenas de uma maneira, por meio do
ensino conceitual, em que o professor fica à frente da turma, com livro em mãos, e os alunos sentados
de frente para ele. Essa imagem padrão de muitas escolas foi construída em meu imaginário escolar
como sendo o único lugar para a aprendizagem.
Quando entrei para o curso de Licenciatura em Química, comecei a compreender que, além de
dominar os conceitos, precisava compreender que tudo que a gente sabe necessita ser validado e
comprovado, seguindo os padrões da ciência. Comecei, então, a explorar o mundo científico e, em meu
caminho acadêmico, percebi que precisava entender e aprender os conceitos científicos, os artigos e
tudo aquilo que era aceito pela comunidade acadêmica. Por alguns anos, agora na graduação, acreditei
que apenas com o saber científico era possível compreender tudo, e ainda acreditava que a escola
padrão continuava sendo o único lugar para se aprender. Porém, esse pensamento começou a mudar
quando recebi o convite para conhecer a Escola Família Agroextrativista do Carvão (EFAC).
Bom, me chamo Tatielly e era uma quarta-feira, 06 de abril de 2022, o dia estava chuvoso e com
o frio amazônico. Saí da UEAP, que é a Universidade do Estado do Amapá, localizada na capital Macapá,
na qual sou acadêmica do 7º semestre do curso de licenciatura em química. A experiência que narro aqui
ocorreu quando estudava o 6º semestre do curso. Por volta das 13h da tarde, viajei em direção à EFAC,
que fica localizada no interior do estado do Amapá, no município de Mazagão. A distância entre a UEAP
e a EFAC é em torno de 50Km, indo de carro (que foi o transporte que utilizei) e durou em torno de 1
hora e meia.
Enquanto estava no caminho, fui imaginando como seria essa escola. Idealizei que seria como
uma escola padrão, ou seja, além dos professores, achava que os alunos iriam estar uniformizados, que
as salas teriam ventiladores ou centrais de ar, que os alunos falariam sobre seus conhecimentos usando
linguagem científica; achava, também, que a escola ficava na área urbana da cidade de Mazagão.
Quando cheguei ao município, esperava já sair do carro, mas não via a fachada da escola nem os
portões. Depois de mais alguns minutos, já afastada da área urbana de Mazagão, observei a vegetação
mudando pelo vidro do carro. Ou seja, estava saindo da área urbana e indo para uma área mais

127
afastada, até que entrei em um ramal (nome dado a uma ramificação de estradas que ligam pequenos
vilarejos e povoados a estradas maiores como as rodovias).
Após entrar nesse ramal, pude ver um portão simples e o nome da escola. Foi totalmente
diferente do que imaginei enquanto estava a caminho. Quando saí do carro e comecei a andar pela
escola, me perguntei “como não imaginei isso antes?”, e aí foi quando me dei conta de que, até aquele
momento, todas as experiências educacionais que eu tinha vivenciado estavam atreladas à estrutura
escolar padrão.
A Escola Família Agroextrativista do Carvão é uma escola privada/comunitária de ensino regular,
voltada para o ensino fundamental e médio, fica localizada na área rural, no Ramal da Queimada, no
município de Mazagão/AP.
De fato, era uma realidade muito diferente daquela na qual eu cresci e com a qual estava
acostumada, pois, por todas as escolas que passei, todas eram na área urbana de Macapá e todas
tinham a estrutura de escola padrão, além de o ensino ser totalmente conteudista. A primeira vista,
observei que os estudantes não usavam uniformes, pois me chamou atenção devido aos alunos da
EFAC não serem obrigados a usarem calça jeans e uniforme. Na minha escola de ensino médio, por
exemplo, o aluno que não estivesse usando essa vestimenta (uniforme e calça jeans) não entrava na
escola. Já na minha escola de ensino fundamental, era mais rigoroso, além de ser obrigatório o uso do
uniforme, a calça jeans tinha que ser na cor preta ou azul escuro.
O local onde a EFAC se encontra também foi algo que não teve como não me chamar a atenção.
Ela fica dentro da floresta amazônica, muitas árvores ao redor do espaço escolar, a ventilação é por
conta da natureza, daí entendi porque nas salas há poucos ventiladores e não possuem portas e janelas.
Pelo fato de ficar na floresta, o chão só é de cimento em locais como salas, corredores, banheiros e
refeitório (que também é o lugar no qual eles se reúnem para outras atividades), porque o chão do
restante da escola é grama ou terra batida.
Assim como em outras escolas, a EFAC possui biblioteca. Já imaginava encontrar uma biblioteca
lá, pois é um local muito importante para adquirir sabedoria e serve como apoio aos estudos. Porém, não
imaginei que teria dormitório, até que um professor explicou o motivo do mesmo. A EFAC possui alunos
de ensino fundamental e médio que moram em comunidades distantes da escola; por isso, os
responsáveis administram as atividades educacionais da seguinte forma: os alunos de ensino
fundamental passam 15 dias na escola, ou seja, dormem lá esses dias e, nos outros 15 dias do mês, os
alunos do ensino médio é que dormem; além disso, o dormitório é dividido em dois: masculino e
feminino.
Acredito que tudo que relatei e de tudo que vivenciei, o que mais me surpreendeu foi como eles
(alunos) usam de uma linguagem particular para demonstrar conhecimento. Como mencionei, para mim,
era tudo científico. Com essa ida à EFAC, observei que existe um outro conhecimento que é o
popular/tradicional. Pude acompanhar a aula de química da turma de 1ª série do nível médio e também
foi totalmente diferente das aulas que eu tive quando estava nesse período. Naquela época, aprendi
sobre a tabela periódica, por exemplo, acompanhando a explicação do professor por meio do livro. Já na
EFAC, os alunos trouxeram para aula informações do dia a dia deles, ou alguma frase que os pais ou

128
parentes mais antigos falaram para eles, que era relacionado com o assunto que o professor estava
explicando.
Os alunos relatavam com naturalidade o seu dia a dia relacionando com assuntos de química,
isso me deixou muito surpresa e contente, porque eu pude perceber que estava também aprendendo
com o que eles estavam expondo. As atividades agrícolas que eles realizavam em suas comunidades,
acabavam sendo assunto em aula e, com base nisso, o professor já puxava um assunto envolvendo
essa atividade com a química. Isso não aconteceu comigo enquanto estava no ensino médio, pois o
professor era a figura central e não o aluno.
Ao final da tarde, por volta das 17h, saí da escola com destino à UEAP. Enquanto estava no
caminho de volta, percebi o quão importante foi essa ida à Escola Família Agroextrativista do Carvão.
Ficou claro que era diferente do que imaginei. Pude observar diversas coisas durante a tarde que passei
na escola e, com toda certeza, elas serão levadas como ensinamentos para a conclusão da minha
graduação, bem como para quando for exercer a profissão de professora. Poder partilhar da
aprendizagem do outro para gerar seu aprendizado, também é uma alternativa para adquirir
conhecimento.
Por fim, essa vivência é uma das mais importantes experiências dentre as demais que já tive na
vida acadêmica, pois, com ela, pude entender que não precisa de uma escola dita “padrão”, nem de um
ensino sistemático e tradicional. O saber científico é um dos tipos de linguagens particulares para o
ensino-aprendizagem e não o único, o conhecimento pode ser passado em qualquer lugar, sendo ao ar
livre ou em local fechado, bem como tendo o professor à frente do saber ou tendo o aluno como
protagonista.

Referenciais teóricos que me ajudam a pensar em uma educação libertadora

Aqui quero escrever algumas palavras para apresentar ao leitor algumas reflexões e teorias, as
quais venho estudando, que me ajudam a ampliar os meus olhares. Agora entendo porque o professor
de didática sempre reforça a importância da conscientização, o quanto é fundamental sermos seres
conscientes que vivem em um mundo real e que enxergam a realidade a sua volta, uma práxis que vai
além da relação teoria e prática.
Freire (1987) fundamenta suas reflexões na construção de uma práxis que se enraíza em um
esforço crítico de desvelamento da realidade, com isso, surge um engajamento político. Sem uma ação
concreta e crítica dos homens e mulheres sobre o mundo, se cria um ambiente difícil de superar a
contradição opressor-oprimido (FREIRE, 1987).
Uma categoria que venho utilizando nas minhas reflexões, a qual foi aprendida com Freire (1987),
é a problematização. Freire nos ensina que para fundamentar a ação do sujeito em seu esforço
conscientizador é a problematização, ação coletiva de reflexão que permite uma ação concreta do
próprio ato.

129
Na obra Pedagogia do Oprimido, Freire utiliza a educação problematizadora como antídoto para a
educação bancária, rompendo com as premissas autoritárias, narradas, verticalizadas, as quais não
permitem um ambiente dialógico e que não representam o contexto no qual está inserida.
O exercício de entendermos a importância da problematização nos liberta para enxergarmos a
grandeza da pedagogia da alternância. Crianças e jovens que precisam aprender com os mais velhos da
sua comunidade os saberes e fazeres que ajudam na dinâmica e no desenvolvimento comunitário
ganham um forte aliado com a EFAC. Uma escola que não tira o jovem de sua comunidade, pois a
alternância ajuda ao estudante a se manter engajado nas demandas locais e a ter acesso a
conhecimentos escolares que contribuem com o fortalecimento das suas atividades comunitárias.
Menezes (2013, p. 57) afirma que essa nova proposta de educação no campo, que é pensada e
construída com os povos no campo, vem criando espaços que valorizam:
...os seus conhecimentos, habilidades, valores, modo de ser e de produzir, de se relacionar com a
terra, as suas formas de compartilhar a vida, de preferência dentro de um espaço de emancipação, de
solidariedade e de luta pelo direito à terra, à educação, à saúde, ao lazer, entre outros.
Nos próximos meses, quero continuar essa viagem, hoje sei que no Amapá existem 6 escolas
famílias espalhadas no território. Quero conhecê-las e acompanhar de perto o importantíssimo trabalho
que esse projeto educacional realiza para fortalecer as comunidades ribeirinhas.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. 31ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
FREIRE, P.. Pedagogia do Oprimido. 29ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MENEZES, M. C. Políticas educacionais do campo: Pronera e Procampo no Maranhão. 2013. Tese
(Doutorado)- Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2013.

130
PACTO NARCISÍSTICO E MEDIOCRIDADE NA HOTELARIA BRASILEIRA

Dandara Baçã de Jesus Lima


Estudante de hotelaria no Instituto Federal de Brasília - Campus Riacho Fundo. hikingbiblio@gmail.com

Geraldo Castelli é uma referência na hotelaria, seus livros “Gestão hoteleira” tem 304 citações e
“Excelência em hotelaria” 262 citações, conforme apurado no Google Acadêmico. Seu currículo é
replicado em diversos sites e suas obras são obrigatórias nas bibliografias dos cursos de hospitalidade.
O autor é reconhecido por autoridades, é referenciado e ouvido pela área com grande notoriedade, assim
toda a sua obra tem importância para uma ciência e deve ser analisada sendo apontados os pontos
passíveis de críticas.
A biografia do autor que mais escreve na hotelaria (13 títulos publicados com diversas edições,
segundo informações do Lattes) não tem amplo acesso e disseminação. A GZH Economia (2010) informa
que em 1965 ele foi para Fribourg na Suíça onde morou por sete anos, mas essa informação contrasta
com a informação do autor em seu Lattes que informa que a graduação em ciências econômicas foi no
período de 1965 a 1972. Outra informação que entra em contradição é a de que ele realizou uma
especialização em filosofia na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Imaculada Conceição entre 1961 e
1964, antes de ter feito um curso superior. Geralmente os cursos de graduação e especialização têm
como requisito para a conclusão a apresentação de trabalho de conclusão, mas em nenhum dos cursos
informados constam essas informações.
É informado pela GZH Economia (2010) que na volta de sua temporada na Europa, Castelli
entrou na Secretaria Estadual de Turismo e implantou polos regionais de turismo, mas não foram
encontradas no momento de pesquisa para a redação do resumo informações que referenciam esse
trabalho. Alguns recortes do pensamento do autor retiradas do seu livro “Administração hoteleira”:
As pessoas contratadas devem ser aquelas que gostam de trabalhar com
pessoas, que gostam de servir pessoas. Servir cada vez melhor e ter orgulho disso.
(CASTELLI, 2003, p. 40)
[...]
Para as empresas prestadoras de serviço, contratar pessoas que gostam de servir
e desenvolver nelas cada vez mais o espírito de serviço não é meramente uma questão
humanística. É, isto sim, uma questão de estratégia comercial.
O espírito de serviço ou disposição para servir é um dos principais atributos da
excelência no atendimento, tão falho e causa principal de os clientes abandonarem uma
empresa. Para corrigir essa distorção é necessário, entre outras coisas, desenvolver nas
pessoas o espírito de serviço. (CASTELLI, 2003, p. 41)

Segundo informações publicadas pela GZH Economia (2010) Castelli criou a primeira escola de
hotelaria do Brasil em 1978. A escola já foi localizada na praia de Atlântida e era ligada à Universidade de
Caxias do Sul - UCS. Em 1986 a instituição foi deslocada para Canela (RS) e posteriormente a parceria
com a UCS foi encerrada.
A Castelli Escola Superior de Hotelaria foi credenciada junto ao Ministério da Educação com a
mantenedora CETH Centro de Estudos Turísticos e Hoteleiros LTDA pela Portaria 2.167 de 28 de
dezembro de 2000; a Portaria 1.200 de 26 de outubro de 2016 recredenciou a instituição. A Portaria nº 1,

131
de 22 de abril de 2020, da Diretora Geral Lucia Worma da instituição, aprovou a alteração do nome da
instituição para Faculdade Monte Pascoal, sigla FMP. A FMP está autorizada a ofertar 102 cursos de pós-
graduação e quatro cursos de graduação: gestão desportiva e de lazer, gestão de turismo, hotelaria e
produção cultural. Apesar de seu pioneirismo, não são encontradas informações sobre os egressos da
instituição, relação entre o conhecimento apreendido na instituição e desenvolvimento de técnicas,
atividades de ensino, pesquisa e extensão, é como se fosse uma instituição fantasma, no que diz a sua
visibilidade de produção acadêmica, pois somente aparecem as obras de seu fundador.
Castelli representa o pensamento da hotelaria brasileira e por isso as contradições de sua
biografia foram utilizadas para exemplificar como privilégio branco é uma arma para a manutenção da
subalternidade na hospitalidade. A hospitalidade brasileira tem se mantido no espírito de servilismo
defendido por Castelli que é abissalmente diferente do profissionalismo e qualificação necessários para o
desenvolvimento de políticas públicas e um setor da economia. A fragilidade de sua biografia, dos seus
textos, dos argumentos, da sua retórica é visível, mas não é discutida por conta do que Cida Bento
denominou de pacto narcisístico da branquitude. “Um pacto silencioso de apoio e fortalecimento aos
iguais. Um pacto que visa preservar, conservar a manutenção de privilégios e de interesses” (Bento,
2002, p. 105) . Essa branquitude também pode ser caracterizada como acrítica na definição de Cardoso
(2010, p. 621), que tem o discurso sustentado na ideia de existência de uma superioridade racial branca.
O pensamento hegemônico da hotelaria precisa ser superado porque ele naturaliza o lugar de
servidão que no Brasil sempre teve cor. Bento (2002) aponta que o cotidiano das empresas reproduz as
desigualdades raciais e a manutenção da mediocridade branca serve aos interesses de indivíduos que
lucram com a venda de livros, cursos, palestras, consultorias. São esses indivíduos que empobrecem a
cadeia do turismo e fazem com que o Brasil ainda seja vendido como paraíso para o turismo sexual46.

PALAVRAS-CHAVE: hotelaria; hospitalidade; pacto narcisístico; branquitude; privilégio racial.

REFERÊNCIAS
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas
organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de
Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002
BRASIL. Ministério da Educação. Mantenedora: (1073) Ceth Centro de Estudos Turísticos e Hoteleiros
LTDA. Disponível em:
https://emec.mec.gov.br/emec/consulta-cadastro/detalhes-ies/d96957f455f6405d14c6542552b0f6eb/
MTYzNg==. Acesso em: 29 set. 2022
CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco anti-racista. Revista
Latioamericana de Ciencias Sociales, Niñez e Juventud, Manizales, v. 8, n. 1, p. 607-630, ene./ jun.
2010.

46 SUDRÉ, Lu. Apologia de Bolsonaro à exploração sexual de brasileiras é repudiada nacionalmente. São Paulo: Brasil de
Fato, 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/04/30/apologia-de-bolsonaro-a-exploracao-sexual-de-
brasileiras-e-repudiada-nacionalmente. Acesso em: 30 set. 2022

132
CASTELLI, Geraldo. Administração hoteleira. 9. ed.Caxias do Sul: EDUCS, 2003. (Coleção Hotelaria).
CASTELLI, Geraldo. Currículo Lattes. 2017. Disponível em:http://lattes.cnpq.br/5951114527562382.
Acesso em: 29 set. 2022
CASTELLI, Geraldo. Google Acadêmico. Disponível em: https://scholar.google.com.br/scholar?
start=0&q=Geraldo+Castelli+&hl=pt-BR&as_sdt=0,5. Acesso em: 30 set. 2022
GZH ECONOMIA. Fundador de escola superior de hotelaria ensina a importância de receber
turista com emoção. Porto Alegre, 2010. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2010/08/fundador-de-escola-superior-de-hotelaria-
ensina-a-importancia-de-receber-turista-com-emocao-2998341.html. Acesso em: 22 set. 2022.
HABILIS EXPERTISE EM HOSPITALIDADE. Geraldo Castelli. Mauá, 2022. Disponível em:
https://habilisexpertise.com.br/geraldo-castelli/. Acesso em: 22 set. 2022.
PRASS, Heloisa. Ministro Lages visita Faculdade Castelli, em Canela (RS). S.l.: Panrotas, 2014.
Disponível em: https://www.panrotas.com.br/noticia-turismo/eventos/2014/11/ministro-lages-visita-
faculdade-castelli-em-canela-rs_107088.html. Acesso em: 22 set. 2022.
SINDHOTÉIS. Geraldo Castelli apresenta o futuro da hotelaria no Brasil e no mundo. Foz do
Iguaçu, 2017. Disponível em: https://sindhoteisfoz.com.br/geraldo-castelli-apresenta-o-futuro-da-
hotelaria-no-brasil-e-no-mundo/. Acesso em: 22 set. 2022.
UNIVERSIDADE CAXIAS DO SUL. SUCS 50 Anos – Reverência a trajetórias dedicadas à educação
superior. Caxias do Sul, 2017. Disponível em: https://www.ucs.br/site/noticias/12170/. Acesso em: 22
set. 2022.

133
ESTUDOS LATINO-AMERICANOS: PESQUISAS E PRÁTICAS DOCENTES A PARTIR DO
PENSAMENTO DECOLONIAL

Edson Antoni
Professor do Colégio de Aplicação e do PPG Mestrado Profissional em Ensino de História da UFRGS.
professor.antoni@gmail.com

Ao analisarmos trabalhos que problematizam a presença de temáticas relacionadas à América


Latina nos currículos escolares brasileiros – nas diferentes áreas do conhecimento –, identificamos
algumas características comuns. Mesmo considerando as especificidades dos diferentes componentes
curriculares, esses trabalhos apontam para o fato de que os conteúdos relacionados ao contexto latino-
americano se encontram, de forma mais ou menos expressiva, marginalizados ou submetidos a uma
perspectiva eminentemente eurocentrada.
A manutenção deste caráter eurocentrado na organização dos currículos e nos materiais
didáticos, ou mesmo como elemento definidor dos padrões de produção do conhecimento, pode ser
compreendida como representação da chamada colonialidade do saber. Tal categoria conceitual
representa a manutenção de um modelo de racionalidade que, ao mesmo tempo em que enaltece o
padrão de conhecimento proposto pela modernidade europeia, torna subalternas e invizibiliza outras
formas de conhecimento.
Tendo como base o referido contexto, levando em consideração as pesquisas acadêmicas e
avaliando criticamente as práticas docentes, foi elaborado um projeto pedagógico que instituiu, no ano de
2015, o componente curricular de Estudos Latino-americanos no Colégio de Aplicação da UFRGS.
A organização desse novo componente curricular, que tem como objetivo fundamental romper e
superar as limitações impostas por estruturas curriculares tradicionais em relação ao ensino das
temáticas latino-americanas, apresenta uma série de desafios. Para além de configurar uma tomada de
posicionamento político, a elaboração da referida proposta exigiu um processo de reflexão e
transformação mais profundo. Uma transformação que se propunha a “cambiar los términos y no solo el
contenido de la conversación” (MIGNOLO, 2014, p.15).
Dessa forma, ao assumir a proposta do giro decolonial (MALDONADO-TORRES, 2007) como
referencial teórico e metodológico para a elaboração do componente curricular de Estudos Latino-
americanos, várias das características presentes na organização dos currículos e nas dinâmicas
escolares precisaram ser revistas. Um desafio inicial se encontrava, justamente, na criação de mais um
componente curricular. A resposta que foi então apresentada no projeto pedagógico está relacionada ao
caráter eminentemente transdisciplinar (BARBOSA, 2005) que orientará o referido componente curricular.
Afora o fato de romper com os limites impostos pelo tradicional disciplinamento e fragmentação
do conhecimento, o caráter transdisciplinar abriu a possibilidade de elaboração de um planejamento que
repercutiu na ampliação de perspectivas analíticas, bem como na incorporação de novos conhecimentos
e epistemologias. Os caminhos abertos pela transdisciplinaridade, associados ao projeto pedagógico
decolonial, contribuíram para que Estudos Latino-americanos assumisse uma postura intercultural

134
(WALSH, 2014). O rompimento com a ideia de linearidade cronológica e desenvolvimento propostos pela
modernidade europeia, então, soma-se à transdisciplinaridade e à interculturalidade como princípio
fundante deste novo componente curricular.
Em razão disso, a opção foi organizar e dispor os conteúdos correspondentes às turmas de oitavo
e nono ano de forma temática. A construção de uma organização temática permite aos estudantes maior
liberdade no estabelecimento de relações entre os conteúdos, e destes com as diferentes áreas de
conhecimento, bem como em relação a distintos períodos e contextos históricos.
Os temas estão organizados em função da estrutura trimestral assumida pela escola. O programa
do componente curricular tem início, no primeiro trimestre do oitavo ano, abordando a temática de
formação e representação do espaço na América Latina. Nesse primeiro momento, o debate com os
estudantes contempla as definições acerca deste espaço definido como América Latina. E é a ocasião
em que compreendemos ser importante problematizar a própria concepção de uma América de essência
latina, contrapondo a outras definições para a região, como Pacha Mama e Abya Ayala.
Mais do que a definição do nome, o estudo das representações alcança as diferentes
representações acerca dos espaços, seja por meio de análise cartográfica, seja pela leitura de mitos de
diferentes povos originários e de expressões da literatura latino-americana. A apresentação dessa
diversidade de olhares enriquece as discussões e permite a construção de um conhecimento que nasce
a partir da pluralidade de perspectivas.
No segundo trimestre, o objetivo consiste em compreender os processos de ocupação dos
diferentes grupos humanos e a atual constituição e diversidade étnica da região. Nesse momento, são
analisadas as motivações e as consequências da ocupação realizada por povos originários,
afrodescendentes e europeus, atentando para as suas respectivas especificidades.
No último trimestre do oitavo ano, o desafio é analisar diversas manifestações culturais
produzidas pelos diferentes grupos sociais. E, inequivocamente, a participação dos estudantes na
definição de quais aspectos da cultura serão analisados é de fundamental importância.
Após estudar, no oitavo ano, os elementos internos à realidade latino-americana, o primeiro
trimestre do nono ano irá analisar a inserção da América Latina no sistema-mundo. São propostas,
então, as diferentes reflexões sobre os mecanismos de conquista e subordinação da América Latina em
diferentes períodos da história, abarcando desde o processo de exploração do período colonial até os
traços das diferentes colonialidades.
Frente às diferentes formas de inserção ao sistema-mundo capitalista, no segundo trimestre são
estudadas organizações e movimentações sociais de resistência. No último trimestre, por fim, os alunos
organizam-se em pequenos grupos e propõem uma atividade de pesquisa sobre o contexto latino-
americano no século XXI. E justamente essa liberdade de escolha das temáticas é um fator que, por si
só, enriquece sobremaneira o processo de construção do conhecimento, uma vez que o resultado da
pesquisa permite o desenvolvimento de um amplo espectro de conteúdos e análises.
Acreditamos que a experiência do componente curricular de Estudos Latino-americanos
representa um processo de novos aprendizados. Rompe com uma perspectiva colonizada do saber, bem
como, constrói alternativas aos modelos de narrativas e práticas pedagógicas eurocentradas. Em um

135
processo contínuo de incorporação de novos conhecimentos, de novas epistemologias e experiências
sociais, promove a construção de novas perspectivas acerca da cultura e dos povos de Nuestra América.

PALAVRAS-CHAVE: estudos latino-americanos; decolonialidade; currículo.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Derly. A Atitude Transdisciplinar na Educação. In.: FRIAÇA, Amâncio. [et. al.] Educação e
transdisciplinaridade III. São Paulo: Triom, 2005(p. 361- 377)
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In.: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (comp.) El giro decolonial:
reflexiones para una diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del
Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontifícia
Universidad Javeriana, Instituto Pensar. 2007(p. 127-167)
MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine; LINERA, Álvaro García. Interculturalidad, descolonización del
estado y del conocimiento. Buenos Aires: Del Signo, 2014.
WALSH, Catherine. Decolonialidade, Interculturalidad, Vida desde el Abya Yala-Andino. Notas
pedagógicas y senti-pensantes. In: BORSANI, María Eugenia; QUINTERO, Pablo (comp.). Los desafios
decoloniales de nuestros dias: pensar en colectivo. Neuquén: EDUCO – Universidad Nacional Del
Comahue, 2014(p. 47-78)

136
A LÍNGUA POMERANA NAS REDES DE ENSINO DO ESPÍRITO SANTO

Helmar Spamer
Pomerano. Professor efetivo da rede estadual de ensino do Espírito Santo. Presidente da Associação Pomerana de
Pancas (APOP). Conselheiro Pomerano no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).
Graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestre em Desenvolvimento
Sustentável, área de Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT/CDS/UnB).
helmarspamer@outlook.com

Vera Lucia Mayer Seibel


Pomerana. Professora efetiva da rede municipal de Laranja da Terra, Espírito Santo, onde atua na coordenação do
Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO). Graduada em Ciências Contábeis, Matemática e
Pedagogia. Mestranda em Desenvolvimento Sustentável, área de Sustentabilidade junto a Povos e Territórios
Tradicionais (MESPT/CDS/UnB). veramayerseibel@yahoo.com.br

O texto faz um breve panorama sobre a oferta da Língua Pomerana nas redes de ensino do
Espírito Santo, desde a criação do Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO) em 2005 até a
inclusão da língua no currículo da rede estadual em 2022. Dessa forma, por meio desse relato de
experiência, enquanto atores partícipes desse processo, queremos refletir sobre as práticas escolares
nas comunidades pomeranas a partir de uma perspectiva intercultural na educação formal, identificando,
assim, as potencialidades e os desafios. Porém, antes, vamos discorrer um pouco sobre quem são os
pomeranos e alguns aspectos importantes de sua história no Brasil.

Povo pomerano, povo tradicional

Oriundos da Pomerânia, região próxima ao Mar Báltico, muitos pomeranos vieram para o Brasil a
partir da segunda metade do século XIX em busca de novas terras, estimulados pela política imigratória
do governo brasileiro e pelas precárias condições em que viviam em seu território. A partir de então, o
Espírito Santo recebeu inúmeros contingentes de imigrantes europeus, dentre eles, os pomeranos, que
chegaram a esse estado com a missão de ocupar as porções de terras onde os portugueses
encontraram dificuldade de colonizar devido à forte resistência indígena (BAHIA, 2011).
Na Europa, os pomeranos, em sua maioria, viviam da agricultura e o processo de modernização
dessa atividade a partir do século XIX gerou graves crises, fome e desemprego no campo. Fatores que
contribuíram para impulsionar o processo migratório para o Brasil. Além disso, as guerras eram
constantes na Pomerânia, que sofria com frequentes invasões. Após a Segunda Guerra Mundial, a
Pomerânia deixou de existir no mapa Europeu e seu território foi dividido e anexado à Alemanha e à
Polônia (RÖLKE, 1996).
No Espírito Santo, os pomeranos chegaram principalmente entre os anos de 1849 e 1900. Os
primeiros imigrantes foram instalados na região centro-serrana do estado, onde fundaram as primeiras
comunidades. Posteriormente, as gerações seguintes começaram a migrar e a presença pomerana
expandiu-se em direção ao rio Doce. Atualmente, há pomeranos em grande parte do estado, com
destaque para os municípios: Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da Terra, Pancas, Vila

137
Pavão, Itarana, Afonso Cláudio, Itaguaçu, Baixo Guandu, Colatina, São Gabriel da Palha, Vila Valério
(SPAMER, 2017).
Um ponto crucial na história dos pomeranos no Brasil e que impacta diretamente na discussão
desse texto consiste na Campanha de Nacionalização realizada pelo governo Getúlio Vargas durante o
Estado Novo, que tinha como objetivo integrar os imigrantes e seus descendentes à cultura brasileira, ou
seja, nas escolas era proibido o ensino de línguas estrangeiras e das línguas indígenas, além da
proibição de falar outro idioma em público, inclusive durante celebrações religiosas. Dessa forma, os
pomeranos, assim como outros imigrantes e os indígenas, foram proibidos de comunicar-se em sua
língua materna. Além disso, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, os pomeranos foram perseguidos,
presos e violentados por serem considerados alemães e, por consequência, associados
equivocadamente ao nazismo (MANSKE, 2015).
Outro episódio importante para os pomeranos no Brasil ocorreu em Pancas/ES. No ano de 2002,
parte significativa do território da comunidade pomerana desse município foi transformado em uma
Unidade de Conservação de proteção integral: o Parque Nacional dos Pontões Capixabas. Segundo o
Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC), uma área de preservação ambiental na
categoria de Parque Nacional não permite a presença humana e atividades de produção, o que
acarretaria na desapropriação de terras de muitas famílias pomeranas da região (SPAMER, 2017).
A ameaça iminente de perda das terras iniciou um processo de luta pelo território, afirmação
identitária e organização social dos pomeranos que resultou na criação da Associação Pomerana de
Pancas (APOP) e na inserção desta instituição na antiga Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – atual Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais (CNPCT) (BRASIL, 2016) – e o reconhecimento do Povo Pomerano na
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT)
(BRASIL, 2007).
A partir dessas conquistas, da participação ativa da comunidade e com o apoio de outros
movimentos sociais, instituições religosas, sindicatos e o poder público local, no ano de 2008, a
comunidade pomerana de Pancas/ES conseguiu alterar a categoria da referida UC para Monumento
Natural que, apesar de ser uma categoria de proteção integral, permite a presença de propriedades
particulares em seu interior, assegurando a permanência das famílias em suas terras. Diante disso,
percebemos que desse conflito socioambiental, um evento em nível local, desdobraram-se mecanismos
de luta e de reconhecimento do povo pomerano como povo tradicional em todo o país (SPAMER, 2017).

O Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO)

O PROEPO surgiu de um debate coletivo articulado entre lideranças comunitárias pomeranas e


dirigentes municipais. A partir de avaliações que apontavam situações concretas em que pais, mães,
membros das comunidades (igreja, lideranças da sociedade civil), professores, pesquisadores,
manifestavam há muito tempo: a preocupação com as dificuldades de aprendizagem das crianças

138
pomeranas, principalmente, nas séries iniciais, pelo fato de dominarem o pomerano como língua materna
e não falarem a Língua Portuguesa ao ingressarem nas escolas.
Diante dessa problemática, representantes das Secretarias Municipais de Educação de cinco
municípios capixabas com predominância de comunidades pomeranas – Laranja da Terra, Domingos
Martins, Pancas, Santa Maria de Jetibá e Vila Pavão – começaram a se reunir e discutir uma política de
educação em favor da valorização e do fortalecimento da cultura e da língua pomerana (oral e escrita)
em suas redes de ensino. O debate foi intenso e contou com massiva participação comunitária. Em 2005,
após a consolidação dos diálogos, o Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO) tornou-se
uma realidade. O PROEPO tem como objetivo geral desenvolver nas escolas públicas um projeto
pedagógico que valorize e fortaleça a cultura e a Língua Pomerana, por meio da oralidade e da escrita,
manifestada nas danças, músicas, arquitetura, culinária, crenças, mitos e outras tradições do povo
pomerano.
A partir de então, foi celebrado um termo de parceria entre os municípios assegurando o
compromisso do poder público em manter, apoiar e fortalecer as ações do programa. Dessa forma,
podemos identificar alguns avanços importantes: i) a língua pomerana foi inserida como componente
curricular nas redes municipais de ensino de Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da Terra,
Pancas, Vila Pavão e, posteriormente, também nos municípios de Itarana e Afonso Cláudio; ii) a língua
pomerana foi co-oficializada por meio de leis municipais nos sete municípios mencionados acima, sendo
a primeira língua não-indígena no Brasil a passar por esse processo; iii) surgiram iniciativas de formação
continuada de professores bilíngues pomerano/português para atuarem nas escolas localizadas em
comunidades pomeranas; iv) realizaram-se esforços de consolidação da língua pomerana escrita com a
publicação de obras, em especial o Dicionário Enciclopédico Pomerano-Português (TRESSMANN,
2006); v) desenvolvimento de pesquisas acadêmicas sobre a língua pomerana e o ensino nas escolas.
Observe os dados abaixo:

Língua Pomerana nas Escolas Municipais (2022)47

Número de escolas que


Município ofertam a língua Etapas de ensino contempladas
pomerana na grade
curricular

46 Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais


Santa Maria de Jetibá
(todas as escolas da rede) e finais.

Domingos Martins 12 Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais.

16 Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais


Laranja da Terra
(todas as escolas da rede) e finais.

Pancas 07 Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais.

47 Informações fornecidas pelas coordenações do PROEPO de cada município.

139
Vila Pavão 03 Ensino Fundamental anos iniciais.

Itarana 04 Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais.

Educação Infantil e Ensino Fundamental anos iniciais


Afonso Cláudio 03
e finais.

A língua pomerana na rede estadual de ensino do Espírito Santo

A partir do ano letivo de 2022, as escolas da rede estadual de ensino do Espírito Santo
localizadas em comunidades pomeranas e/ou que atendam estudantes pomeranos puderam ofertar a
Língua Pomerana como uma disciplina na parte diversificada da grade curricular (ESPÍRITO SANTO,
2021). Essa conquista é histórica para o Povo Pomerano e advém de um longo processo de luta e
reivindicações que envolve toda a comunidade pomerana no Espírito Santo. Apesar de se tratar de um
debate antigo, as discussões sobre a inclusão da língua pomerana no currículo estadual foram
suscitadas no final do ano de 2019, quando as coordenações do PROEPO dos municípios de Santa
Maria de Jetibá, Laranja da Terra, Domingos Martins, Itarana, Afonso Cláudio, Vila Pavão e Pancas
convocaram a Secretaria de Estado da Educação (SEDU), por meio da Gerência de Educação do
Campo, Indígena e Quilombola (GECIQ), para uma reunião que ocorreu presencialmente no dia 30 de
setembro de 2019 no município de Santa Maria de Jetibá. Na ocasião foram discutidas inúmeras pautas.
No tocante à SEDU, foram deliberadas e encaminhadas como prioritárias as seguintes ações: 1)
Implementação da Língua Pomerana nas escolas estaduais; 2) Oferta de curso de formação continuada
para professores em Língua Pomerana; 3) Ativação do Comitê Estadual de Educação Escolar
Pomerana48 (ESPÍRITO SANTO, 2014).
Nessa articulação com a Secretaria de Estado da Educação faz-se necessário destacar a
participação do deputado estadual Adilson Espíndula, que, provocado pelas equipes PROEPO,
juntamente com o apoio da Associação Pomerana de Pancas (APOP), reuniu-se com o secretário
estadual da educação em junho de 2021. A partir desse encontro, o deputado encaminhou para a
Secretaria uma Indicação Parlamentar oficializando a solicitação de inclusão da língua pomerana no
currículo estadual. Em seguida, iniciaram-se os debates curriculares internos da secretaria para viabilizar
a proposta.
Esse processo ocorreu em diálogo com os municípios a partir de suas experiências do PROEPO
e como resultado de toda essa mobilização a SEDU publicou, na Portaria n° 279-R, de 06 de dezembro
de 2021, a garantia da oferta da Língua Pomerana como um componente curricular. Desse modo, as
escolas estaduais localizadas em comunidades pomeranas e/ou que atendam estudantes pomeranos
podem aderir (ou não) a uma grade curricular que contemple a oferta da língua pomerana como uma

48 O Comitê Estadual de Educação Escolar Pomerana foi criado em 2014, por meio de portaria, no âmbito da Secretaria de
Estado da Educação do Espírito Santo. Contudo, o Comitê nunca foi empossado e nem mesmo foram convocadas reuniões.
De todo modo, um ponto de atenção é que a composição desse Comitê não contempla a participação de lideranças ou
instituições comunitárias pomeranas, o que coloca em cheque sua legitimidade sobre a pauta.

140
disciplina. Essa decisão fica a cargo da gestão de cada unidade escolar que deve levar em consideração
o contexto sociocultural em que está inserida (ESPÍRITO SANTO, 2021).
Nesse primeiro ano de vigência, temos o seguinte cenário na rede estadual:

Oferta da Língua Pomerana na Rede Estadual (2022)

Escola Município em que está Etapas de ensino contempladas


localizada

EEEFM Sebastiana Grilo Pancas Ensino Fundamental anos iniciais e finais.

EEEFM Alto Jatibocas Itarana Ensino Fundamental anos iniciais e finais.

EEEFM Fazenda Emílio Ensino Fundamental (anos iniciais e finais) e


Santa Maria de Jetibá
Schroeder Ensino Médio.

EEEFM Alto Rio Possmoser Santa Maria de Jetibá Ensino Fundamental anos iniciais e finais.

EEEFM São Luís Santa Maria de Jetibá Ensino Fundamental anos iniciais e finais.

EEEFM Frederico Boldt Santa Maria de Jetibá Ensino Fundamental anos iniciais e finais.

Alguns apontamentos e considerações

O Povo Pomerano é reconhecido na categoria de Povo Tradicional no Brasil e no estado do


Espírito Santo, contemplado, assim, pela PNPCT, que garante aos PCTs o acesso a uma educação que
valorize e respeite os seus saberes, sua cultura e seus modos de viver, incluindo, sua língua. Dessa
forma, foi na perspectiva de ensino da língua materna que a língua pomerana foi incluída no currículo da
rede estadual, ou seja, devem ser considerados todos os aspectos históricos, sociais e culturais desse
povo junto ao ensino do idioma. Assim, a proposta do trabalho curricular deve ser desenvolvida nas
escolas com o objetivo de fortalecer e valorizar a língua oral e escrita, envolvendo aspectos históricos,
culturais, costumes e tradições do povo pomerano. De forma que contribua na construção da autoestima
dos estudantes durante a etapa da escolarização e no processo de reafirmação da identidade étnico-
cultural e linguística, associado ao sentimento de pertença aos territórios.
Importante destacar que a inclusão da Língua Pomerana na rede estadual parte das experiências
do PROEPO nos municípios, buscando garantir que não ocorra uma ruptura no ensino da língua materna
quando o estudante pomerano muda de rede. Lembrando também que a oferta da Língua Pomerana na
rede estadual não é uma completa inovação, considerando que a EEEFM Fazenda Emílio Schroeder,
uma escola estadual localizada em Santa Maria de Jetibá, já ofertava (e continua ofertando) a Língua
Pomerana em sua organização curricular. Desse modo, a novidade é que a possibilidade de oferta da
Língua Pomerana foi ampliada para todas as escolas estaduais localizadas em comunidades pomeranas
ou que atendam a estudantes pomeranos.

141
Outra questão primordial consiste no fato de que o Plano Estadual de Educação do Espírito
Santo, período 2015/2025, em sua meta 07, estratégia 27, estabelece, dentre outras coisas: “a oferta
bilíngue na educação infantil e no ensino fundamental, em língua materna das comunidades indígenas,
pomerana, quilombolas e outras e em língua portuguesa” (ESPÍRITO SANTO, 2015). Assim, a ação da
Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo em ampliar a oferta da Língua Pomerana na rede
estadual parte de uma reivindicação e mobilização do Povo Pomerano capixaba em atendimento ao
Plano Estadual de Educação.
O PROEPO nos municípios só se tornou possível graças às comunidades e lideranças que se
organizaram e articularam parcerias para lutar pelos seus direitos. A prática de organização e de união
da coletividade está presente nas comunidades pomeranas e é identificada desde a imigração, e se
mantém até os dias atuais. Hoje temos dicionários, materiais produzidos pelos professores, formações
continuadas considerando o modo de vida, a cultura, os saberes das famílias e das crianças.
Trabalhamos com cantigas, produções de textos, memorias, brincadeiras, teatro, música. Diante disso, o
PROEPO tem apresentado suas potencialidades e, também, seus limites ao buscar uma educação
escolar diferenciada.
Todavia, o currículo bilíngue nas comunidades pomeranas ainda tem muito a conquistar. A língua
pomerana está inserida na grade curricular como uma disciplina, o que fortalece o ensino do idioma,
porém isso não implica necessariamente num ensino bilingue. Da mesma forma, os municípios não
ofertam a língua pomerana em suas redes de maneira uniforme e nem todos têm condições (ou vontade
política) de oferecer formações adequadas e materiais didáticos bilíngues aos seus professores.
Portanto, apesar das conquistas, a luta é contínua em defesa de uma educação intercultural.

PALAVRAS-CHAVE: povo pomerano; língua pomerana; currículo; Espírito Santo; PROEPO.

REFERÊNCIAS
BAHIA, Joana. O tiro da bruxa: identidade, magia e religião na imigração alemã. Rio de Janeiro:
Garamond, 2011.
BRASIL. Decreto Federal n° 6.040. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), de 07 de fevereiro de 2007.
_____. Decreto Federal n° 8.750. Cria o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais
(CNPCT), de 09 de maio de 2016.
ESPÍRITO SANTO. Decreto Estadual n° 3.248-R. Cria a Comissão Estadual de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais do Espírito Santo, de 11 de março de 2013.
_____. Portaria n° 204-R. Institui o Comitê Estadual de Educação Escolar Pomerana, de 01 de
dezembro de 2014.
_____. Lei n° 10.382. Aprova o Plano Estadual de Educação do Espírito Santo – PEE/ES, período
2015/2025. De 25 de junho de 2015.
_____. Portaria n° 279-R. Define procedimentos e diretrizes para implementação das organizações
curriculares na Rede Escolar Pública Estadual, e demais providências, de 06 de dezembro de 2021.

142
MANSKE, Cione Marta Raasch. Pomeranos no Espírito Santo: história de fé, educação e identidade.
Vila Velha/ES: Gráfica e Editora GSA, 2015.
RÖLKE, Helmar Reinhard. Descobrindo Raízes: aspectos geográficos, históricos e culturais da
Pomerânia. Vitória: UFES, 1996.
SPAMER, Helmar. Monumento Natural dos Pontões Capixabas: identidade pomerana na luta por
direitos e território. Dissertação (Mestrado Profissional em sustentabilidade junto a Povos e Territórios
Tradicionais)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
TRESSMANN, Ismael. Dicionário enciclopédico pomerano-português. Santa Maria de Jetibá/ES:
Gráfica e Encadernadora Sodré Ltda., 2006.

143
MARIA E O AÇAÍ – UMA HISTÓRIA QUE TRANSCENDE GERAÇÕES

Rute Carvalho Farias


Graduanda de licenciatura em Química da Universidade do Estado do Amapá. rutecarvalho016@gmail.com

Ramon de Oliveira Santana


Doutor em Educação em Ciências. Professor do Colegiado de Química vinculado à Universidade do Estado do
Amapá. ramon.santana@ueap.edu.br

Introdução

Durante as aulas de Prática Docente III, fomos orientados pelo professor da disciplina a ler um
artigo de Chassot (2007). No texto o autor apresenta uma crítica referente à não valorização dos saberes
dos mais velhos. Chassot nos convida a entendermos a importância de ouvirmos e registramos esses
saberes, pois muitos deles se perdem com a morte, como uma biblioteca em chamas.
Posteriormente, deveríamos ouvir relatos das pessoas mais velhas das nossas famílias sobre
como foi sua juventude; e depois confeccionar uma unidade didática a partir destes conhecimentos. O
nosso trabalho buscou relacionar o ensino de Química, com os conceitos de substâncias puras e
misturas, com a produção artesanal do suco de açaí. Desta forma, podemos ensinar ciência a partir de
memórias importantes.
O objetivo do nosso trabalho é apresentar de forma mais detalhada a narrativa que inspirou a
produção da unidade didática na disciplina supracitada. No trabalho acadêmico tínhamos como foco a
construção do material, mas agora queremos enfatizar as reflexões que surgem a partir destes relatos e
os fatos que marcaram a nossa aproximação com os diferentes saberes não acadêmicos.

Raízes

Essa não é uma história de princesa, de contos de fadas ou de magia, mas de uma mulher forte e
guerreira, a qual eu tenho o imenso orgulho de chamar de mãe. Ela é forte porque assim precisou ser, a
vida não lhe reservou muitas escolhas, era uma guerra a cada dia por sobrevivência, em uma parte da
Amazônia ainda pouco habitada, com pequenos povoados e comunidades ribeirinhas que aprenderam
que a floresta e os rios seriam sua maior fonte de riqueza e o seu sustento, não digo simplesmente em
riquezas materiais, mas riqueza espiritual, de sabedoria ancestral, que perpassa gerações e que está
ameaçada pela modernidade, tecnologia e pelo poderio econômico.
Sua história começa em 1958, ano de seu nascimento, no munícipio de Mazagão/AP, na central
do Maracá, como ela sempre enfatiza, filha mais velha da dona Rosalina e do seu Antônio, lhes
apresento a dona Maria Raimunda Alves Carvalho, 64 anos, 10 filhos, sendo oito vivos. Sua infância foi
marcada pelo desejo de seu pai em ter um filho homem; por isso, lhe designou desde muito cedo
atividades que ele considerava que apenas um macho deveria fazer; assim, lhe ensinou a pescar,
derrubar roça, remar, tirar açaí, entre outros, isso aos nove anos de idade, o que lhe custou ficar fora da

144
escola, pois além de ser muito longe, iria comprometer o sustento da família que, a essa altura, já havia
aumentado.

Tronco forte, porém, flexível

Pois bem, estamos exatamente na década de 1960, em que todas as atitudes acima relatadas
hoje podem causar a mais profunda dor e desprezo, mas que eram atitudes consideradas aceitáveis,
naquele cenário em que o machismo e o trabalho infantil eram muito mais marcantes. Ainda nos anos
1960, o pai de dona Maria faleceu, e o que já era difícil ficou ainda mais, sua obrigação agora era
amparar sua mãe e seus irmãos. Para isso, usar as técnicas ensinadas por seu genitor foi sua solução
para sobreviver e ajudar sua família. O açaí entrou nessa história não como um alimento qualquer, mas
como uma fonte de renda para termos acesso a mercadorias básicas.
Por ser criança e sua mãe ainda muito jovem, não tinham conhecimentos sobre manejo, colheita
e plantio; o açaí era colhido das árvores que estavam nas margens dos rios. Colher esses frutos não é
tarefa fácil, precisa tecer um item chamado de peconha (Figura 1), que se trata de um objeto
confeccionado à mão, trançado como se fosse uma tiara de fibras de sacas de trigo ou de cebolas, entre
outros materiais, que sirvam para encaixar nos pés e subir nas árvores de açaí. Tais árvores podem ser
muito altas, com mais de quatro metros de altura. No inverno Amazônico, elas podem ser verdadeiras
armadilhas, por estarem muito escorregadias e, além do mais, seu troco pode afinar muito e balançar
com o peso da pessoa.

Figura 1 – “Caboclo fazendo a peconha”. Fonte: Isoppo, 2005

Após colher esse açaí, dona Maria relata que uma parte era separada para que sua família se
alimentasse e outra parte era reservada para vender a atravessadores, pessoas que compram o açaí nos
interiores dos ribeirinhos para vender, geralmente, nos portos das cidades grandes. Assim, com a venda
do açaí, era possível comprar os itens restantes de higiene e alimentação. O açaí que era reservado para
a alimentação exigia ainda um modo de preparo muito especial, como ela mesma relata abaixo:
Tirávamos o açaí, debulhava (tirar o açaí do cacho) dentro de uma vasilha, depois pegava uma
água quente e jogava em cima daquele açaí, em seguida jogava uma água fria, para que aquela água

145
ficasse morna, fica de molho por alguns minutos; com uns quinze minutos, já está mole, depois você lava
ele, no nosso caso como não tinha energia, nós íamos amassar aquele açaí, controlando a água,
utilizando duas peneiras, uma grossa em cima, onde passa toda a massa, e fica só os caroços de açaí e
uma mais fina em baixo, onde joga mais água e já vai caindo o suco do açaí na panela.

Frutos

Esses momentos não eram marcados apenas por um trabalho braçal qualquer, era um momento
de conexão entre as famílias, em que as mães ensinavam as suas filhas aquilo que aprenderam com as
suas próprias mães e suas avós, era um momento de contar histórias, de sorrir, de aprender. A
protagonista dessa história nos conta ainda que passou esses saberes para seus filhos e filhas mais
velhos, pois foram criados em condições e ambientes semelhantes. Tais atividades eram
desempenhadas mais para consumo próprio. Ela nos informa que eles tiveram a oportunidade de
estudar, haja vista que a comunidade em que passaram a viver, chamada de Vila Nova, contava com
uma escola de ensino primário.
Como disse quando iniciei, não se trata de um conto de fadas, mas de um fato real, como tantos
outros no Brasil, onde mulheres são provadas desde a infância; dona Maria não se considera uma vítima,
pelo contrário, ela conta com muito entusiasmo sua trajetória nas florestas e rios, pois é de superação.
Por mais difícil que possa parecer, foi essa história que a tornou essa mulher incrível, sempre alegre, que
goza de uma força inexplicável e que, aos 64 anos, ainda tira açaí para beber, com uma rapidez
surpreendente e com um sorriso no rosto, o que faz parecer algo simples devido a sua destreza,
conforme mostra a Figura 2:

Figura 2 – “Maria Carvalho colhendo açaí, 63 anos”. Fonte: Eriane Alves.

Hoje em dia não se amassa o açaí com as mãos, como na juventude dela. Sua antiga
comunidade conta com energia elétrica, internet; os barcos a remo são utilizados apenas para pequenas
distâncias, haja vista que se usam barcos com motor, seus filhos e netos cresceram, e contam com
universitários, psicólogo, funcionários públicos, empreendedores, funcionários exemplares, que guardam
em sua essência muitos desses saberes transmitidos pela oralidade nas rodas de conversa, em uma
mesa para um café.

146
Figura 3 – “Neto de dona Maria, Gustavo Carvalho, 18 anos, açaí em suas férias”. Fonte: Pablo Aguiar

Assim, a sua dura lida que começou ainda na infância, marcou seu corpo e sua mente, hoje é
registrada para que não se perca, de como a sua geração e as de antes dela trouxeram conhecimentos
que não são vistos em qualquer livro de escola, mas nos impactam e nos mostram como o saber
tradicional também é importante. Foi esse saber que permitiu que uma família resistisse às intempéries
de uma floresta densa, ainda pouco povoada, com o saber recebido dos seus pais e contribuiu também
para o comércio e a economia das cidades próximas.

Minhas, nossas reflexões

A história narrada acima foi utilizada para fundamentar a unidade didática. Utilizamos nesse
processo uma frase muito comum no Norte, onde se diz que “o açaí produzido de forma artesanal é um
açaí puro”, então, levantou-se os seguintes questionamentos: O que é uma substância pura? O que é
uma mistura? E também foram pesquisadas matérias jornalísticas sobre o suco de açaí adulterado com
emulsificantes, farinha de trigo e papel higiênico.
Nosso movimento dialógico vem com o objetivo de transformar as nossas aulas de
Ciências/Química em ambientes formativos em que diferentes vozes e diferentes saberes possam
permear as nossas reflexões. Um aspecto que ficou bastante evidente é que com apenas uma história
familiar e os conhecimentos tradicionais que sustentam a narrativa pode-se ensinar diversos saberes
escolares, de forma que os alunos sintam-se motivados no processo de ensino-aprendizagem e que as
discussões possam garantir um fortalecimento das lutas comunitárias e uma maior valorização do modo
de pensar e viver amazônico.
Nos últimos anos, observamos que uma postura muito radical não vai ajudar no diálogo com os
detentores dos padrões hegemônicos. A comunidade só vai se desenvolver se existir uma parceria para
fortalecer as lutas comunitárias. Santos e Menezes (2009, p.11) afirmam:

147
A ciência moderna não foi, nos dois últimos séculos, nem um mal incondicional nem um
bem incondicional. Ela própria é diversa internamente, o que lhe permite intervenções
contraditórias na sociedade. E a verdade é que foi (e continua a ser) muitas vezes
apropriada por grupos sociais subalternos e oprimidos para legitimar as suas causas e
fortalecer as suas lutas.

Esperamos que tenha ficado evidente para o leitor que as nossas estratégias não podem ser
apenas teóricas e pirotécnicas. Precisamos entender que só vai acontecer uma real defesa do território
se compreendermos bem as narrativas que permeiam o território, as vozes modernas que tentam
marginalizar e apagar a história dos que resistem e vivem dignamente na região. Aqui, deve ficar claro
que associar as práticas tradicionais a aspectos demoníacos é mais uma estratégia para desconectar o
homem e a mulher do seu território.
Os jovens que caem nessas armadilhas começam a negar os seus saberes ancestrais, suas
formas de viver e, por fim, são conduzidos por caminhos que potencializam a perda do seu interesse em
viver na região. A alternativa é vender a sua casa para servir de mão de obra barata nos grandes centros,
o que alimenta a escravidão nas grandes cidades e o esvaziamento dos territórios. Essa é a grande
estratégia para que o poderio econômico invada a região, derrube árvores, mate os rios e animais. Em
seguida, colocam cerca em tudo, começam a plantar soja, eucalipto ou a criar gado que vai alimentar os
países do hemisfério norte. O convite ao ideal mítico ganha força quando não levamos em consideração
os aspectos epistêmicos e ontológicos. É quando nos deparamos com lindos projetos fortalecendo as
estratégias do poderio econômico. Para termos uma luta justa e resistente, temos que entender o modo
de pensar do colonizador moderno, suas artimanhas e como ele faz uso de narrativas que nos
marginalizam e inferiorizam.

PALAVRAS-CHAVE: mulheres da Amazônia; saberes tradicionais; O Açaí de todo dia.

REFERÊNCIAS
CHASSOT, A. Fazendo educação em Ciências em um curso de pedagogia com inclusão de saberes
populares no Currículo. Química Nova na Escola, n. 27, p. 9-127, fev. 2008. Disponível em:
http://qnesc.sbq.org.br/online/qnesc27/. Acesso em: 17 de março de 2022.
ISOPPO, C. Caboclo fazendo a peconha. 2005. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/isoppo/1185016935. Acesso em: 31 De outubro de 2022.
SANTOS, B. S; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.

148
COLONIALIDADE DO SABER E EUROCENTRISMO: MEMÓRIAS DE DOCENTES SOBRE SUA
FORMAÇÃO ACADÊMICA

Albert Cordeiro
Pedagogo; Doutor em Educação; Docente do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Amapá – PPGED/UNIFAP. albert.cordeiro@unifap.br.

Este trabalho deriva de uma tese cuja investigação teve como Corpus memórias narradas por
docentes naturais e residentes em três estados amazônicos: Amapá, Amazonas e Pará. Estas pessoas,
além de exercerem o magistério, são artistas populares engajados com manifestações das culturas
populares na Amazônia.
Nosso intuito foi analisar as relações estabelecidas entre a sua formação educacional, desde a
educação básica ao ensino superior, além da sua atuação profissional, como docentes da educação
básica, com suas vivências com as culturas populares, mapeando possíveis conflitos, contradições,
resistências e negociações.
Seguindo as orientações da história oral, realizamos entrevistas semiestruturadas e coletamos
narrativas de suas memórias vinculadas ao tema da pesquisa e ao objeto da investigação.
Apresentamos aqui as memórias de suas trajetórias na Universidade, que nos ajudaram a
perceber que as instituições de ensino superior ainda são fortemente balizadas no eurocentrismo e
permeadas pela colonialidade do saber.
Dificilmente a produção de conhecimento nas universidades latino-americanas escaparia da
colonialidade do saber, pois, para Quijano (2005, p. 115), a elaboração intelectual do processo de
modernidade “produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que
demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado”.
Para Restrepo (2018), a colonialidade do saber diz respeito à dimensão epistemológica da
colonialidade e constitui-se por uma classificação e hierarquia global de conhecimentos em que alguns
aparecem como a personificação do conhecimento autêntico e relevante, enquanto outros são
inferiorizados e silenciados a ponto de perderem o status de conhecimento e serem tratados como
ignorâncias e superstições.
A universidade na América Latina, dizem Maso e Yatim (2014), deu sequência a esse modelo
europeu de formação do conhecimento, o que gerou uma ciência atrofiada no que se refere, dentre
outros elementos, à comunicação com a sociedade/povo.
Comecemos a analisar este fenômeno a partir das memórias de Lucas, que, aos 19 anos, presta
vestibular para o curso de Educação Artística habilitação em Artes Plásticas da Universidade Federal do
Pará, sendo aprovado. Narrou-nos a enorme felicidade por ter alcançado o objetivo de ingressar no curso
que sabia, desde a infância, ser a sua vocação. No ano 2000, com 20 anos recém completados, Lucas
sai de Marabá e se muda para Belém a fim de iniciar seu tão aguardado primeiro semestre letivo.
Contudo:
...começo a ver que aquilo na verdade é muito distante, sabe? Muito distante do que eu
almejava como arte. Ainda era aquela coisa do artista iluminado, sabe? Era todo um

149
processo de arte ultrapassada pra caramba no curso. O currículo, meu deus do céu! Arte
eurocêntrica! Enfim, era só aquilo. E aí, mano, menos de dois anos eu tava frustradíssimo
(LUCAS).

O jovem recém-chegado do interior do Estado, e que teve toda a sua vivência artística situada no
âmbito popular de sua vida cotidiana, viu suas expectativas frustradas perante o referencial de arte
compreendido pela academia. Suas aspirações artísticas não se viram representadas naquela estrutura.
[Putz], não me identifico com aquele tipo de arte, não entendo aquele tipo de arte também,
né? Não entendo aquele tipo de referência de arte contemporânea, né? “Porque a arte
antiga”, “renascentista” “dos grandes mestres”. É uma coisa inalcançável. As pessoas... do
interior a gente se acha burro, cara, se acha inferior e tudo e tem que enfrentar
dificuldade, falta de referência, não tinha cinema na cidade, nunca tinha ido a teatro nem
nada, né? Então isso, assim, chocou bastante, né? Eu falava: [“Poxa!”]…” até mesmo de...
não se vê artista, que você fica: “Arte é isso? (LUCAS).

Experiência semelhante pode ser identificada no relato de Letícia. Contou-nos que no início da
década de 1990 os grupos baianos Olodum e Ile Aye fizeram bastante sucesso nas rádios manauaras e
isto a instigou a querer conhecer mais sobre a cultura afro-brasileira, daí ter optado por mudar-se para
Salvador. Contudo, ao passar no vestibular e ingressar no curso de Dança, foi surpreendida por uma
composição curricular que em quase nada dialogava com suas aspirações sobre as danças populares:
Por incrível que pareça, pouquíssimas coisas, até isso a gente percebe, tanto é que eu ia
fazer as aulas fora, porque não tinha, a gente só tinha uma eletiva de uma dança lá que
nem era o que eu queria, era a dança afro dos orixás que eu falo, dança afro até o tango
é, dança dos orixás era o que me interessava, é a partir da dança dos orixás que vem a
dança afro contemporânea, essa era a coisa que eu queria fazer e não tinha isso
(LETÍCIA).

A condição de criação mesma das nossas universidades foi colonizada. Nossa elite branca trouxe
uma elite acadêmica europeia branca para fundar uma universidade estritamente nos moldes das
universidades ocidentais modernas. O modelo institucional foi o humboldtiano, com a separação entre as
faculdades e os institutos de pesquisa, obedecendo à mesma divisão de saberes da matriz europeia e
inscrevendo nossa academia como uma variante da chamada civilização ocidental (CARVALHO, 2019, p.
84).
Já o encobrimento de intelectuais negras/os dentro dos cursos de formação inicial foi denunciado
por Adriana. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará (2002-2006), ela diz que, além
desta falta de representatividade intelectual: “tu não discute nada de negritude no curso de Letras, não
sei agora se você discute. Literatura Africana não tem nada, só Literatura Brasileira e Literatura
Portuguesa” (ADRIANA) .
Chama a atenção esta ausência de autores de países africanos de língua portuguesa na
formação vivenciada por Adriana, mas reforça o que denuncia Conceição Evaristo (2007, p.7): “A
literatura, como espaço privilegiado de produção e reprodução simbólica de sentidos, torna-se um locus
propício para a enunciação ou para o apagamento das identidades”.
Com base nas memórias narradas, pode-se dizer que a imposição da colonialidade do saber na
formação de nossos/as narradores/as foi uma constante, pois se depararam, de um modo geral, com
instituições de ensino destinadas a promover a desvalorização dos saberes populares nas dimensões
estética/artística, linguística, epistemológica. A universidade, em especial, e isto ficou evidente, é

150
responsável por gerar encobrimentos e pautar a formação profissional na lógica eurocêntrica de
produção do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: memória; universidade; colonialidade do saber; eurocentrismo.

REFERÊNCIAS
CARVALHO José Jorge. Encontro de saberes e descolonização: para a refundação étnica, racial e
epistêmica das universidades brasileiras. In BERNARDINO-COSTA, Joase; MALDONADO-TORRES,
Nelson; GROSFOGUEL, Nelson. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2019.
EVARISTO, Conceição. “Dos Sorrisos, dos silêncios e das falas”. In: SCHNEIDER, L.; MACHADO, C.
(Org). Mulheres no Brasil: resistência, lutas e conquistas. João Pessoa: Editora Universitária, UEPB,
2007.
MASO, Tchella; Yatim, Leila. A (de)colonialidade do saber: uma análise a partir da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana (Unila). Paidéia. Revista do curso de pedagogia da Faculdade de
Ciências. Humanas, Sociais e da Saúde. Univ. Fumec Belo Horizonte Ano 11 n. 16 p. 31-53 jan./jun.
2014.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.).
A colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005.

151
COLETIVO EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DECOLONIAL: POR UMA DECOLONIALIDADE DO SABER

Leandro Kerber, Luiz Carlos Jafelice e demais membros do Coletivo Educação Científica Decolonial
Leandro Kerber é astrofísico e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus/BA. Luiz
Carlos Jafelice é astrofísico e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Acreditam que o mais importante é conhecermos o lugar do Universo em nós, e não o contrário. Amigos de mais de
20 anos, são os fundadores e atuais coordenadores do Coletivo Educação Científica Decolonial. Além deles, há
atualmente outros 13 membros deste Coletivo. educacao.cientifica.decolonial@gmail.com

A suposta superioridade epistemológica da ciência, particularmente das ditas ciências naturais, é


uma das fontes do pensamento único que tem justificado implicitamente o processo atroz de
ocidentalização do mundo, que nos conduziu, como sociedade, à atual crise civilizatória e ambiental. No
nosso entendimento, não haverá uma verdadeira e perene decolonialidade sem a própria decolonialidade
do saber, que por sua vez deve atuar na desconstrução da ideia de que existe um conjunto superior de
conhecimentos e formas de ser e existir, configurando-se em uma perigosa semente para todo tipo de
intolerância, preconceito, discriminação e autoritarismo.
Para jogar luz nestas questões ligadas à decolonialidade do saber, formamos o Coletivo
Educação Científica Decolonial. Ele surgiu a partir de uma proposta de aprofundarmos e difundirmos
uma educação científica em que a ciência é vista desde uma perspectiva decolonial. Ou seja, uma
educação em que a ciência é ensinada enquanto uma alternativa epistemológica, em nada privilegiada, e
na qual indígenas, quilombolas e conhecedores tradicionais são nossos mestres em incursões pluri-
epistemológicas. Maiores detalhes sobre a proposta de uma Educação Científica Decolonial constam
do trabalho com este título a ser apresentado neste Conversatório 5. Aqui focaremos na descrição do
próprio coletivo e de suas ações.
Nascido em janeiro deste ano (2022), o Coletivo Educação Científica Decolonial reúne atualmente
15 integrantes em uma organização horizontal e espalhados pelo Rio Grande do Norte, Bahia, São Paulo
e Minas Gerais, e em sua maioria professores ligados a instituições acadêmicas ou escolas. Para
contornar a distância e os efeitos da pandemia da COVID-19, nossas reuniões são virtuais (Fig. 1),
exceto pelos encontros dos integrantes que moram na mesma cidade ou no mesmo estado. Quase
metade dos integrantes (sete) do Coletivo possui formação em física, sendo quatro com doutorado em
astronomia e astrofísica e ampla experiência em ensino, divulgação e popularização destas áreas,
desenvolvendo trabalhos com enfoque em Astronomia Cultural e Educação Intercultural e abordagens
transdisciplinares (JAFELICE, 2010; 2015). Apesar deste núcleo interno ligado à astronomia e astrofísica
e o (ainda) pequeno número de membros, é um coletivo bastante heterogêneo, contando com
integrantes com formação e interesses diversos, cobrindo geografia, filosofia, artes na educação,
antropologia, música, economia, ecologia, agrofloresta, alimentação natural, plantas alimentícias não
convencionais e ervas medicinais.
O Coletivo Educação Científica Decolonial busca atuar em três frentes complementares de
atuação: 1) formação e produção de conhecimento no tema da Educação Científica Decolonial, com
minicursos, grupo de estudos, saraus e publicação de artigos e livros; 2) articulação com conhecedores

152
tradicionais, indígenas e quilombolas, com intuito de socializar seus conhecimentos e fortalecer suas
lutas; e 3) ação de divulgação da Educação Científica Decolonial junto ao público geral, focado em
professores e estudantes de ciências, com postagem de conteúdo audiovisual em redes sociais (Fig. 2).
Neste primeiro ano de existência, realizamos, de forma remota, o minicurso interno
“Decolonialidade, Ciências Naturais e Educação Científica”, com aulas ministradas por Luiz Carlos
Jafelice e baseadas em seu livro “Educação Científica Decolonial”, em estágio final de escrita. Em 25
aulas ao longo de mais de 6 meses, discutimos assuntos como: colonialidade e decolonialidade;
obstáculos para uma práxis decolonial, como o “mito” do progresso, a competitividade e o “mito” da
meritocracia; pluralidade epistemológica; a violência inerente à colonização e à colonialidade, e como ela
faz parte do processo de escolarização; ensino de ciências como doutrinação; oralidade e a riqueza dos
conhecimentos de indígenas, quilombolas e conhecedores tradicionais; cadeia da exclusão e como a
educação é parte dela. O conteúdo deste livro, bem como o material audiovisual produzido para as
publicações em redes sociais, irão compor um hipertexto dinâmico disponível gratuitamente via web.
Outra ação importante dentro do Coletivo tem sido a realização do “Sarau Decolonial”. Trata-se
de eventos internos e remotos em que, exercitando um olhar decolonial, debatemos temas diversos
como: carnaval; partoria; ervas e plantas medicinais; alimentação natural; os vídeos “Flechas Selvagens”;
o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922; músicas da tradição oral e de domínio público; o
racismo e a divulgação científica na obra de Monteiro Lobato. Nestas primeiras edições, além dos
diversos saraus conduzidos pelos próprios integrantes do Coletivo, conversamos com Dona Val, mestra
griô, parteira e erveira de Serra Grande, distrito de Uruçuca/BA, com as integrantes do grupo Mulheres
em Domínio Público, de Ilhéus/BA, e com Pedro Iafelice, músico paulistano e estudioso da música
maskandi, da cultura zulu, da África do Sul. As gravações destes encontros compõem matéria-prima para
publicações em redes sociais, bem como material complementar para o hipertexto do livro acima
mencionado.
Quanto à articulação com conhecedores tradicionais, indígenas, quilombolas e movimentos
sociais, destacamos as seguintes ações, como Coletivo: participação: no protesto Expresso 2222 contra
a instalação do Porto Sul, em 02/02/2022, em Ilhéus/BA; no seminário SESC Etnicidades, entre 10 e
12/08/2022, em São Paulo/SP (SESC 24 de Maio); na Caminhada Tupinambá em Memória aos Mártires
da Batalha do Cururupe, em 27/09/2022, em Ilhéus/BA.
Enquanto redigimos este resumo expandido, nos preparamos para nosso primeiro encontro geral
presencial, que ocorrerá, em poucos dias, em Nísia Floresta/RN, entre 17 e 25 de novembro de 2022. Na
oportunidade, em que muitos de nós vamos nos encontrar presencialmente pela primeira vez, iremos
aprofundar nossas discussões e realizar práticas decoloniais. Para nós, sabedores das artimanhas do
processo de colonialidade, é evidente que a decolonialidade precisa não apenas ser compreendida, mas
principalmente vivida, como naturalmente fazem nossos mestres em atos de resistência que não
negociam a sobrevivência.

153
Figura 1 – Impressão de tela mostrando uma imagem da reunião inaugural do Coletivo Educação Científica
Decolonial, realizada em 15/02/2022. Os nomes dos integrantes aparecem na imagem. Fonte: os próprios autores

154
Figura 2 – Impressão de tela mostrando uma imagem da página do Instagram do Coletivo Educação Científica
Decolonial, realizada em 06/11/2022. Fonte: os próprios autores

PALAVRAS - CHAVE: decolonialidade; educação científica; epistemologia.

REFERÊNCIAS
JAFELICE, Luiz Carlos. Astronomia Cultural nos Ensinos Fundamental e Médio. Revista Latino-
Americana de Educação em Astronomia (RELEA), n. 19, p. 57-92, 2015. Disponível em:
<http://www.relea.ufscar.br/index.php/relea/article/view/209/290>. Acesso em: 06/11/2022.
JAFELICE, Luiz Carlos (Org.). Astronomia, Educação e Cultura: abordagens transdisciplinares para os
vários níveis de ensino. Natal (RN): Editora da UFRN, 2010. 430 p. Com os coautores: Maria Luciene de
Souza Lima Freitas; Gilvana Benevides Costa Fernandes; Luziânia Ângelli Lins de Medeiros; e Luiz
Carlos Jafelice. [Livro disponível em PDF, gratuitamente, sob solicitação ao organizador.]

155
TERRITÓRIOS VIVOS: RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE UM PROCESSO DE FORMAÇÃO EM
ESPAÇO NÃO ESCOLAR

Alicia Silva Uchôa Correia


Graduanda em Pedagogia pela Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF – Brasil. alicia.uchoa1@gmail.com

Nesta comunicação apresento um relato da minha experiência em um processo educativo


direcionado a povos e comunidades tradicionais no campo das lutas pelos direitos territoriais. Sou
estudante do curso de pedagogia da Universidade de Brasília e neste semestre vivenciei a experiência
de “Estágio Supervisionado IV: Espaços educativos não escolares” através da minha inserção nas
atividades do Instituto Internacional de Educação Brasileira (IEB), uma organização da sociedade civil
sediada em Brasília que promove processos formativos na área socioambiental. Minha inserção se deu a
partir da preparação, execução e atividades pós segundo módulo do projeto “Formar Territórios Vivos”,
uma iniciativa do IEB em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), GIZ no Brasil, e a Rede dos
Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (Rede PCTs). O módulo ocorreu de 7 a 13 de agosto de
2022 em Brasília, no Instituto São Boaventura. O objetivo do projeto é formar representantes de povos e
comunidades tradicionais (PCTs) de todo o território brasileiro em relação ao uso de uma plataforma
digital promovida pelo MPF, denominada “Plataforma de Territórios Tradicionais”. Essa base de dados é
uma ferramenta na luta desses coletivos por seus direitos, cultura e tradições, mesmo em territórios
ainda não reconhecidos pelo Estado. Aqui reflito sobre essa iniciativa como inovação pedagógica capaz
de inspirar outros olhares para o currículo e as práticas pedagógicas no âmbito das Universidades,
particularmente no curso de pedagogia.
O objetivo deste módulo, em específico, foi auxiliar esses representantes no processo de
aprendizagem de como registrar seus territórios na plataforma, tornando-os também multiplicadores
desse aprendizado para outros representantes de PCTs. Esta modalidade de estágio foi importante para
a minha formação como pedagoga porque tive a oportunidade de conhecer uma experiência educativa
em um espaço não escolar que desenvolve uma proposta pedagógica rica em inovações metodológicas,
direcionada a um público caracterizado por sua diversidade sociocultural. O fato de poder ter tido a
oportunidade de exercer um estágio em um espaço não escolar cursando pedagogia é único pelo fato de
toda a estrutura do curso ser majoritariamente focada para o espaço escolar.
Essa experiência foi meu primeiro contato significativo com um espaço de aprendizado não
escolar, que aborda outras áreas e demandas, e que também é pedagógico, que também faz parte da
nossa formação como pedagogos. Foi, metaforicamente, a quebra de um dogma social, que é reforçado
pela Universidade, que pedagogos são formados para serem apenas professores de crianças, e eu
percebo que essa profissão vai muito além. O IEB trabalha com inspiração na pedagogia de Paulo Freire,
especialmente na relação dialógica entre facilitadores e participantes do curso e incorpora princípios da
pedagogia "de campesino a campesino" (CaC).
Para Freire, uma educação dialógica considera a experiência de vida e o contexto social do
educando essenciais para o processo educativo, sendo parte da construção real de conhecimento entre

156
educador e educando, possibilitando uma educação horizontal em que ambos aprendem. A frase
“ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em
comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1983, p. 79) é a essência da educação dialógica. Já o
CaC é uma metodologia desenvolvida originalmente na Ásia, na década de 1920. Na América Latina foi
difundida por indígenas camponeses da Guatemala, em 1970 (MST, 2021). Essa metodologia nasce de
uma reação ao modelo padrão de assistência técnica, que se assemelha ao da educação bancária
(FREIRE, 1983). A pedagogia CaC propõe uma educação horizontal libertadora, dinâmica e criativa, e
incentivadora de uma plena participação coletiva, em que as comunidades camponesas, neste caso os
PCTs, assumam o controle de seus processos produtivos como sujeitos partícipes, em diálogo com um
conjunto de saberes de vida e de luta herdados historicamente (MST, 2021).
O momento pedagógico central em um processo CaC ocorre quando um camponês ou
camponesa com um problema produtivo (por exemplo, um solo infértil ou um problema de praga no
plantio) visita o roçado ou o quintal produtivo de outro camponês ou camponesa que já implementou com
êxito uma solução agroecológica para o mesmo problema. A visita constitui a mediação pedagógica de
saberes camponeses e camponesas na resolução de problemas relacionados à produção agropecuária
em perspectiva agroecológica. A aprendizagem é horizontal, de camponês a camponês ou de
camponesa a camponesa. A base é o diálogo de saberes entre camponeses, e entre camponeses e
técnicos-facilitadores de processos (MST, 2021).
O processo de formação conduzido pelo IEB inspira-se nesses princípios da dialogia e da
educação horizontal e de troca de experiências entre os participantes, neste caso, para tratar das
realidades das lutas por direitos territoriais por PCTs no Brasil atual. Mesmo não tendo pedagogos
trabalhando na estruturação do curso, os profissionais do IEB atuam pedagogicamente para além do
ensino mecânico da plataforma para trazer também significado e importância para aquele aprendizado. O
módulo trouxe para pauta não só questões técnicas diretamente ligadas à plataforma, mas também
outros pontos que estavam acontecendo paralelamente ao curso e tinham relação com os contextos
dos/as cursistas, pois se tratou de uma pedagogia contextualizada na realidade e nas lutas sociais
desses PCTs. Ademais, foram utilizadas metodologias diversas durante o curso, como palestras, rodas
de conversa, atividades que demandavam dos estudantes suas opiniões, vivências, conhecimentos,
muitas desconhecidas por mim.
O mais significativo nesse estágio foi o fato de poder estar presente num espaço de educação
com pessoas de tantas etnias diferentes. A integração, a empatia, a sociabilidade entre participantes, e
com o IEB foi uma experiência que eu pude ter e que parece pouco presente na formação de estudantes
da pedagogia na UnB e na formação acadêmica de modo geral. Ali pude aprender tantas coisas de
formas diversas, aprofundar meus conhecimentos sobre o meu país, o que nos constitui como povo e
povos desse território que vai muito além do sistema dominante.
Em suma, a oportunidade de realizar um estágio em um espaço não escolar, em uma
organização da sociedade civil comprometida com a justiça socioambiental como o IEB foi extremamente
rica para mim não só como pedagoga, mas também como cidadã. Pude expandir meus horizontes como
pedagoga e como pessoa, para além até mesmo das propostas da Universidade. Atuar como estagiária

157
nessa iniciativa me permitiu visualizar na prática alguns princípios da pedagogia freireana e da
pedagogia CaC que podem ser inspiradores para refletirmos também sobre a educação escolar e sobre
o ensino superior. Ambientes de aprendizagem como esse criado pelo curso “Formar - Territórios Vivos”
revelam a importância do reconhecimento efetivo da diversidade cultural nos processos educativos e
indicam caminhos de inovação para processos formativos de modo geral.
Territorializar a educação é descontruir os valores hegemônicos que a universidade, como
instituição de caráter eurocêntrico e reprodutora do epistemicídio (CARNEIRO, 2008) tem transmitido. E
é através da abertura para as narrativas dos grupos marginalizados e a validação destas que a mudança
acontece.
[...] o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação, fundamental para
os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ ou exploradas, que passariam de objeto a
sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes. (hooks, 1995, p. 465).

A experiência de trabalhar com a formação de diversos PCTs do Brasil em uma perspectiva horizontal de
educação, em que se busca o ouvir e o aprender dessas narrativas durante o processo de formação é
teritorializar a educação.

Figura 1 – Fonte: IEB, 2022

PALAVRAS-CHAVE: estágio; espaço não escolar; povos e comunidades tradicionais; formação.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
METODOLOGIA “De Camponesa a Camponês à Camponesa a Camponês” e a territorialização da
agroecologia. Movimento dos trabalhadores rurais sem terra – Brasil. 17 de fevereiro de 2021.
Disponível em: <https://mst.org.br/2021/02/17/metodologia-de-camponesa-a-campones-a-camponesa-a-
campones-e-a-territorializacao-da-agroecologia/#:~:text=A%20Metodologia%20"De%20Camponês
%20a,camponeses> Acesso em: 12 set. 2022.

158
PELOS VENTOS DE OYÁ: CORPO-TERRITÓRIO DE MULHERES NEGRAS E AS VENTANIAS
INSURGENTES DA EDUCAÇÃO DECOLONIAL NA FORMAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

Amine Fernandes Meira


Relações Públicas, especialista em Estratégia e Inovação, MBA em Comunicação Empresarial e Mestranda em
Educação pela Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS Bahia. aminefernandes@gmail.com

Eduardo Oliveira Miranda


Professor Doutor em Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Estadual de Feira de Santana-
UEFS. eduardomiranda48@gmail.com

E lá da casa de Oxaguiâ, onde vivia, Oyá soprava em direção à forja de Ogum. E seu sopro
atravessava toda a terra que separava cidade de Oxaguiã da de Ogum. E seu sopro cruzava os ares e
arrastava consigo pó, folhas e tudo mais pelo caminho, até chegar às chamas que com furor atiçava. E o
povo se acostumou com sopro de Oyá cruzando os ares e logo o chamou de vento. E quanto mais a
Guerra era terrível e mais urgia a fabricação das armas, mais forte soprava Oyá a forja de Ogum. Tão
forte que às vezes destruía tudo no caminho, levando casas, arrancando árvores, arrasando cidades e
aldeias. O povo reconhecia o sopro destrutivo de Oyá e o povo chamava isso de tempestade. (PRANDI,
2001, p. 304)
Pelos ventos insubmissos de Oyá, descritos no itan, que cruzam territórios e varrem os espaços e
o tempo, propomos o Giro Decolonial, na formação de corpos-territórios de mulheres negras no campo
da Comunicação Social através das ventanias da educação decolonial.
Ventos que movimentam as estruturas das epistemologias eurocentradas e desorientam corpos-
territórios para o Sul, para os saberes e práticas do Sul Global. Sul entendido por Santos, não como
referência geográfica, mas com uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo
colonialismo e pelo patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão (SANTOS, 2016, p. 16).
Ventos potentes, resistentes que causam deslocamentos estruturais nos cânones das
epistemologias que reafirmam as colonialidades: do ser, do saber, do gênero e do poder. Colonialidades
essas, entendidas por Lugones como processos que envolvem a desumanização, não somente como
uma classificação de povos em termos de colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo
de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de
sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos (2014, p. 939).
Sopros que revertem os direcionamentos e causam o desengajamento epistemológico à luz do
feminismo decolonial de Ochy Curyel, feitos a partir de propostas de novas categorias não ocidentais,
novos conceitos não hegemônicos que expandem as possibilidades (CURYEL, 2014, p.135).Ventos que
expandem possibilidades de uma educação insurgente dos corpos-território de mulheres negras em
formação na área de Comunicação Social, através da Decolonialidade Afro-brasileira, como aponta
Eduardo Miranda, um dos dispositivos urgentes para intensificar a proposta do giro epistêmico e contra-
colonial. Ventania deformativa que atravessa e remexe os saberes ocidentalizados e universalizados,
levando-nos a problematizar, ou melhor, rachar a plataforma epistêmica eurocêntrica da Comunicação
Social como campo de conhecimento e seu ensino nos espaços acadêmicos.

159
Comunicação Social enquanto campo de conhecimento se baseia numa estrutura epistemológica,
teórica e metodológica de modelo linear e vertical de imposição de poder erigida pelas conjecturas
estadunidenses e europeias de dominação. Que contrasta diretamente com os atravessamentos das
colonialidades e as vivências de corpos-território de mulheres subalternizadas que estudam, se
especializam, reproduzem esse conhecimento na vida profissional.
A Educação Decolonial fundamentada nas epistemologias e saberes Afro-Brasileiros constitui,
aqui incorporados nos sopros poderosos e detruidores de Oyá, a frente insurgente, a força movedora que
nos ensina a deslocar, tempestadear o que está posto pela ocidentalização do conhecimento. Que nos
leva à inquietação diante da dominação, a insurgir num esforço beligerante frente a protoformas coloniais
de conhecimento. De acordo com Eduardo Miranda (2022, p.31) a partir da Decolonialidade Afro-
Brasileira buscamos reverberar os valores civilizatórios das diásporas africanas que em muito ficaram
perdidos, apagados e silenciados pelo cimento eurocêntrico.
O nosso compromisso com a Decolonialidade Afro-Brasileira afirma a não linearidade no
ato de existir e que as existências não se encaixem em sentidos universais, modelos
cartesianos e articulados por homens que vislumbram a cultura de outros povos como
incivilizados e legitimados ao apagamento. (MIRANDA, 2022, p.30)

Os deslocamentos das ventanias de Oyá contadas no itan, nos indicam como prover os
movimentos contrários aos epistemicídios causados pelas epistemologias eurocentradas reafirmadas no
meio acadêmico. Na Guerra Oyá sopra cada vez mais forte a forja de Ogum. As ventanias devem ser
propagadas e expandidas contrárias aos apagamentos e aos epistemícidios, que conforme elabora Sueli
Carneiro:
É para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um
processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à
educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos
diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de
conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no
processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento
dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como
sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, condição para alcançar o
conhecimento “legítimo” ou legitimado. (CARNEIRO, 2005, p.97)

O Itan nos mostra a potência do sopro de Oyá, que de maneira avassaladora destrói para vencer,
para dar combustão na forja que produz as armas para guerra, aqui entendidas como as disputas contra
os epistêmicídios e silenciamentos das colonialidades. Chamando-nos a tempestadear epistemologias
erguidas ao Norte, eurocentradas e capitalistas.
De acordo com Suely Messeder, para sairmos da episteme colonizada teremos que investir em
nossos olhares epistêmicos eurocêntricos e nos compreendermos como seres no mundo marcados, em
nossa pele e sangue, por uma política de conhecimento racializada, classista e heterossexista
(MESSEDER, 2016, p. 165). Nosso corpo-território, marcado por gênero, raça, pela territorialidade e
subalternização, que não cabe nos cânones academicistas e, como Eduardo Miranda postula, devemos
provocar nosso corpo a se perceber nessa disputa colonial. (MIRANDA,2022, p.92)
Nas disputas travadas dentro da Academia, convidamos a tempestadear como Oyá, nas disputas
em que os corpos-território de mulheres negras travam nos espaços de saber que ratificam as

160
colonialidades, aqui na formação em Comunicação Social, proporcionando uma transformação estrutural
por meio de uma Decolonialidade Afro-Brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Decolonialidade Afro-Brasileira; corpo-território; educação decolonial; ventanias.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do outro como nãos-ser como fundamento do ser.2005.
Tese- Programa de pós-Graduação em educação, Universidade de São Paulo, são Paulo: 2005
CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. Jornada de
metodologia de pesquisa feminista e sua aplicação. 2014. San Sebastian, Espanha.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa [online]. 2008, n.9, pp.73-102. ISSN 1794-
2489. Disponível em:http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S1794-
24892008000200006&script=sci_abstract&tlng=ptf.Acesso em: 02 de outubro de 2021
MIRANDA, Eduardo Oliveira. Corpo-território & Educação Decolonial: proposições afro-brasileiras na
invenção da docência.Salvador:UFBA 2020.
MIRANDA, Eduardo Oliveira. Rachar e despencar o Copo-território.Revista Interinstitucional Artes de
Educar. Rio de Janeiro, V. 7, N. 1 - pág. 467-487 janeiro- abril de 2021.Disponível em: DOI:
10.12957/riae.2021.54972. Acesso: 01 de outubro de e 2021.
MIRANDA, Eduardo Oliveira. Epistemologias dos Odus e Decolonialidade Afrobrasileira. Revista
estudos Literários, UFRJ ,Vol. 04, nº 11 , Rio de janeiro, 2022. Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/estudoslibertarios/article/view/53236.Acessado em 01 de agosto de 2022
MIRANDA, Eduardo Oliveira. Corpo-Território Decolonial. Suleando Conceitos em Linguagens.
Decoloniadades e Epistemologias Outras. Pontes Editores. São Paulo,2022
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTOS, Boaventura de Sousa.Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial. IN:
MENESES M. P. Para um pensamento alternativo de alternativas . 1a ed.- Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: CLACSO, 2018.

161
(ENTRE)TECENDO FIOS (E TEIAS) ENTRE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA NA PERSPECTIVA DA INTERCULTURALIDADE E DECOLONIALIDADE

Jhemerson da Silva e Neto


Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), mestre em Educação
em Ciências e Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM)
da Unifesspa e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Para a Ciência da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). jhemerson.neto@unesp.br

No resumo em tela busco compartilhar a tecitura de um projeto de pesquisa de doutorado – em


fase inicial – constituído no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação Para a Ciência
(PPGEdC), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Tem como objetivo
central propor uma etnografia na qual se possa compreender os movimentos e tensionamentos que
agem sobre o ensino de matemática na construção da Educação Escolar Indígena (EEI), no
entrelaçamento das possíveis práticas decoloniais e interculturais dos(as) professores(as) que ensinam
matemática na Escola Estadual Indígena Me Akre Kojakati, do povo Gavião Kyikatêjê.
Essa proposta de pesquisa surge a partir de um continuum de experiências que vivenciei ao
longo da minha formação acadêmica – e humana – até aqui, sobretudo em se tratando da minha
participação em projetos de ensino, pesquisa e extensão que versavam sobre formação de professores e
professoras para as diversidades, bem como na EEI. Tais experiências, vivências e estudos estão sendo
voltados para o campo da EEI, mais especificamente em como a Educação Matemática tensiona – e é
tensionada – no que tange à constituição da EEI, especificamente na escola Me Akre Kojakati, do povo
Gavião Kyikatêjê.
A construção da EEI é uma tarefa árdua, mas necessária, pois busca, a partir de seus
pressupostos (específica, diferenciada, intercultural e bilíngue) apresentar-se como uma possibilidade
para visualizarmos outras pedagogias, as quais não tenham um caráter centrado em conhecimentos
oriundos do Norte Global, isto é, um caráter de universalidade e uma epistemologia eurocentrada.
Em se tratando dessa noção de universalidade, a matemática historicamente se constituiu sob a
égide de tal premissa, sendo concebida como uma ciência da “certeza”, não sendo receptiva a outras
formas de ver e pensar o mundo (D’AMBROSIO, 2019). Em outras palavras, uma área que por muito
tempo contribuiu para a exclusão de epistemologias outras, tais como as diversas formas de pensamento
dos povos indígenas, africano e outras populações tradicionais.
Partindo-se dessa ótica, os desafios para a construção de uma pedagogia intercultural,
interepistêmica e intercósmica são essenciais na constituição da EEI, visto que “os conceitos e teorias
científicas são formas de ver o mundo, com epistemologias próprias, mas que podem dialogar com
alguns pontos de outras epistemologias que são tradicionalmente presentes nas comunidades em que os
estudantes indígenas estão inseridos” (LUCIANO, 2011, p. 63).
Dessa forma, compreender o modo como cada povo indígena tem constituído as escolas de suas
comunidades se faz demasiadamente importante, visto que a instituição “escola”, bem com a sua
implantação faz parte do “empreendimento colonial português” (LUCIANO, 2011, p. 74). Outrossim, a

162
educação escolar, mais especificamente a EEI, envolve um rol de “políticas culturais”, que podem ser
tanto para os indígenas quanto dos indígenas, além das políticas que, de alguma forma, envolvem tais
sujeitos – mas que não são a mesma coisa e produzem os mais variados efeitos (CUNHA; CESARINO,
2016).
Nesse aspecto, levando em consideração a discussão em torno dos pressupostos que balizam a
EEI (educação específica e diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária), alguns
questionamentos a respeito da EEI devem ser postos em evidência, a saber: A comunidade está
satisfeita com o tipo de escola que de dispõe? A escola indígena (diferenciada) está correspondendo às
necessidades apontadas pela comunidade? As práticas pedagógicas dos(as) professores(as) no âmbito
da escola contrapõem-se aos processos coloniais, sobretudo do saber? Os conhecimentos indígenas
estão em diálogo com conhecimentos escolares nas aulas ministradas? Quais os desafios e
possibilidades para a construção de práticas interculturais e decoloniais dos professores e professoras
da escola?
Assim, considero a necessidade de voltarmos nossos olhares para um contexto particular, no qual
está inserido o povo Gavião Kyikatêjê, no município de Bom Jesus do Tocantins-PA, a fim de interpretar o
tipo de escola que estamos falando. Nesse sentido, considero “a etnografia o melhor instrumento que
temos para enfrentar, analiticamente, este desafio: entender a(s) demanda(s) indígena(s) por escola”
(COHN, 2016, p. 315). Outrossim, a abordagem etnográfica pode nos proporcionar um deslocamento dos
olhares para a EEI, entendendo a escola indígena como parte do mundo vivido dessas comunidades em
um contexto “pós-contato” (LUCIANO, 2011; COHN, 2016).
Desse modo, o meu interesse na realização de pesquisa no contexto ora mencionado busca
apresentar reflexões outras para o campo da Educação Matemática, tendo em vista que se faz
importante apresentar possibilidades interculturais e decoloniais no que tange à EEI e ao ensino de
Matemática(s) a partir do “ambiente natural, social, cultural e imaginário” (etno), que possibilite “explicar,
aprender, conhecer” (matema) os mais diversos “modos, estilos, artes, técnicas” (D’AMBROSIO, 2019).
Essa proposta tem como elemento balizador aspectos de uma abordagem etnográfica,
compreendendo tal noção a partir de uma fundamentação teórico-etnográfica (PEIRANO, 2014), na qual
não buscar-se-á apresentar um retrato fidedigno da realidade (isto é, do etno) em que o pesquisador está
circunscrito, mas propor contribuições teóricas no que tange ao campo de estudos no qual se insere tal
pesquisa, qual seja: EEI e Educação Matemática.
Desta maneira, a experiência etnográfica implica – também – na aceitação de deixar-se ser
afetado, ou seja, experimentar “pessoalmente por minha própria conta – não por aquela da ciência – os
efeitos reais dessa rede particular de comunicação humana” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 157). Ou seja,
não se trata de “experimentar” o lugar do outro a partir de nossas próprias convicções (ou da ciência),
pois é precisamente por ocupar esse não-lugar da experiência de outrem que se supõe uma série de
percepções sobre o que seria estar lá (FAVRET-SAADA, 2005).
Sobre as formas de interpretação dos resultados, pretende-se fazê-la a partir da construção da
própria experiência etnográfica, não pressupondo categorias, comparação ou tipologização, de modo a
dar conta das especificidades do etno pesquisado. Assim, vislumbrar-se-á a construção de um texto

163
polifônico, em que, a partir da experiência etnográfica, das afetações, das histórias do povo Gavião
Kyikatêjê, ouvindo e convivendo com professores(as), lideranças, “velhos” e toda a comunidade, de
modo a tecer um trabalho de coautoria junto a estes.

PALAVRAS-CHAVE:: educação matemática; educação escolar indígena; interculturalidade; etnografia;


antropologia e educação.

REFERÊNCIAS
COHN, Clarice. A cultura nas escolas indígenas. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro
de Niemeyer (Org.). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 313-
338.
CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (Org.). Políticas culturais e povos
indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. 6. ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
FAVRET-SAADA, Jane. “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos
de Campo, São Paulo. [S. l.], v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263. Acesso em: 30 ago. 2021.
LUCIANO, Gersem dos Santos. Educação para manejo e domesticação do mundo: entre a escola
ideal e a escola real Os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011.
PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p.
377-391, jul./dez. 2014.

164
A ESCRITA ACADÊMICA DA HISTÓRIA DO SAMBA COMO EXPERIÊNCIA DE ENFRENTAMENTO
DE PRÁTICAS BIBLIOGRÁFICAS E DISCURSOS RACISTAS

Lellison de Abreu Souza


Doutorando em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Mestre
pelo mesmo programa. Pesquisa as relações entre história e música. Autor do livro “Balança que o samba é uma
herança: sambistas, mercado fonográfico, debates culturais e racismo nas décadas de 1960 a 1980”.
lellisonas@hotmail.com

Sistemas de ideias são propagados por meio de livros (ROCHE, 1998, p. 33) e ao escrever um
livro eu pretendi dialogar com os sistemas que encontrei na bibliografia sobre samba e música popular,
ao mesmo tempo em que expunha minhas próprias ideias. Relatarei a seguir elementos da experiência
que vivi ao fazer minha pesquisa de mestrado e a partir dela escrever e publicar um livro acadêmico,
intitulado “Balança que o samba é uma herança: sambistas, mercado fonográfico, debates culturais e
racismo nas décadas de 1960 a 1980”.
Sou filho de uma costureira e empregada doméstica com um ausente faz tudo. Meu avô materno
era analfabeto. Minha mãe terminou o ensino médio já após os 30 anos de idade, via supletivo, e meu
pai, até onde me lembro, não concluiu o ensino fundamental.
Fui a primeira pessoa da minha família a entrar numa universidade. Ao longo da graduação
descobri o gosto por ler sobre música, desenvolvendo a percepção de que quanto mais eu soubesse
sobre os artistas, discos e canções que ouvia, maior o prazer que sentia no já inculcado hábito de fazer o
máximo de atividades possíveis tendo algumas músicas tocando ao fundo.
Com as leituras específicas sobre samba e música popular brasileira e o conhecimento de mais
fragmentos e estórias das biografias de diversos artistas, pude perceber a existência de lacunas na
bibliografia especializada a que paulatinamente tive acesso e li. No caso específico do samba, notei que
a alta frequência de negros e descendentes de escravizados entre os sambistas atuantes na
consolidação do gênero nas primeiras décadas do século XX se destacava. Todavia, o contraste entre o
volume de informações e o material disponível sobre boa parte destes sambistas era pequeno, sobretudo
se comparado ao material produzido por artistas integrantes de outros grupos, como o Tropicalismo.
A pesquisa do mestrado se desenvolveu em meio a uma série de obstáculos, entre eles uma
fratura no pé direito, uma demissão durante a seleção do mestrado, cinco intervenções cirúrgicas que
enfrentei entre o fim de 2019 e o começo de 2020, burocracias diversas, uma invasão seguida de furto
ao apartamento onde moro e uma pandemia que limitou o acesso a fontes e a pessoas que gostaria de
entrevistar. Em setembro de 2020 defendi com êxito a dissertação e logo em seguida comecei a procurar
formas de publicar um livro derivado do texto defendido e aprovado.
Algumas das conclusões da pesquisa, que reproduzi no livro, abordam os fatos de que os
sambistas, incluindo diversas mulheres, participaram ativamente dos debates culturais de sua época.
Dentro de suas condições, emitiram suas considerações e defenderam posições. Com divergências
internas e graus variados de articulação e acesso à mídia, procuraram manifestar o que pensavam sobre
o que produziam e sobre como se inseriam no mercado fonográfico. Também se expressavam sobre

165
como viam a condição do artista enquanto cidadão e pessoa negra na sociedade brasileira. Sua
produção cultural não era desvinculada da observação da realidade social que os cercava. E o racismo
manifesto nos diversos mecanismos de exclusão presentes na sociedade e história brasileira foi um
adversário perene ao longo de toda a vida dos sambistas.
Após muita procura e ajustes no orçamento doméstico, assinei contrato com uma editora e fiz a
adaptação do texto da dissertação, mantendo as informações e conclusões e acrescentando dados e
observações que por diversas razões (com a preocupação com o tamanho final da dissertação) eu
retirara. A determinação de publicar um livro em parte se dava por conta da oportunidade de intervir
numa série de debates e disputas de narrativas e pela memória sobre o samba, sabendo que os livros
“são, é claro, um dos lugares privilegiados da memória” (TODOROV, 1999, p. 179).
Levando em conta o desejo de que o texto não fosse acessível somente ao público acadêmico, e
lembrando de minha própria dificuldade com pesquisadores que pareciam esquecer que o leitor não
necessariamente já chegava ao texto dominando conceitos e bibliografias, procurei redigir o texto do meu
livro e construir meus argumentos de modo que o leitor não dependesse de prévio conhecimento teórico
de música (notação musical, harmonia, ritmo, manejo de instrumentos musicais, recursos poéticos
utilizados em letras de canções etc) para compreender as reflexões expostas neste estudo.
Sendo um livro acadêmico, considero impossível não me preocupar com a forma com que a obra
seria recebida pelos leitores especializados. Um dos critérios para definir a qualidade e as possibilidades
de uma obra acadêmica é o diálogo que ela estabelece com outras obras. Levei isso em conta enquanto
escrevia, mobilizando dezenas e dezenas de obras com as quis concordava ou discordava para expor
meus argumentos e conclusões.
Também considerei que
As instâncias de legitimação representadas pela imprensa e pelos que tinham acesso a
meios para publicar livros e artigos, pela crítica de música popular que se desenvolvia em
paralelo com o samba e pelas pesquisas acadêmicas sobre música popular foram
constituídas e controladas majoritariamente por brancos ao longo de todo o século XX.
(SOUZA, 2022, p. 126)

Assim, ciente das limitações impostas pela academia a pesquisadores negros e a mulheres,
observei a frequência com que autores negros e mulheres apareciam nas referências bibliográficas dos
livros e também nas teses e dissertações sobre música popular e samba que fui lendo ao longo dos
anos. Pela qualidade das obras, boa parte dessas referências foram mobilizadas ao longo do livro e
devidamente creditadas no final do livro. Fiz um esforço consciente de mobilizar e divulgar o trabalho de
pesquisadores negros e pesquisadoras que na maioria das vezes não aparecem nas obras clássicas.
Ao longo da escrita, procurei manter em mente que a opinião do público em geral é fundamental,
uma vez que não pretendia que o livro ficasse restrito aos círculos acadêmicos. Desde a graduação me
preocupei com o fato de muitos historiadores escreverem de forma rebuscada, o que deu aos autores da
área a fama de escreverem mal quando se pensa nas chances de alcançar o público que não é
acadêmico, dificultando assim a propagação do conhecimento. Busquei escrever de forma acessível sem
simplificar os argumentos ou diluir a força das interpretações do passado que o livro oferece.
Um livro pode funcionar como uma estratégia cultural e é exatamente tal tipo de estratégia que
me interessa, por sua capacidade de interferir na realidade e modificar as relações de poder na luta pela

166
hegemonia cultural (HALL, 2003, p. 339). Luta que ocorre em todas as esferas, incluindo a cultura
popular, os espaços acadêmicos e o samba.

PALAVRAS-CHAVE: samba; mercado fonográfico; racismo; escrita.

REFERÊNCIAS
HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2003.
ROCHE, Daniel. Uma Declinação das Luzes. In RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jena-François. Para
Uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998
SOUZA, Lellison de Abreu. Balança que o samba é uma herança: sambistas, mercado fonográfico,
debates culturais e racismo nas décadas de 1960 a 1980. 1. ed. Curitiba: Editora Appris, 2022.
TODOROV, Tzvetan. O Homem Desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

167
CURTA! DIVERSIDADE! VISIBILIZANDO PRÁTICAS E SABERES EM RESISTÊNCIA NO IFMG

Manuela Rodrigues
Professora efetiva do Instituto Federal de Minas Gerais, Campus Formiga-MG. Doutora em Política Científica e
Tecnológica pela Universidade Federal de Campinas. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.
manuformiga84@gmail.com

Carla Ladeira Pimentel Águas


Pós-doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade
Estadual de Campinas, bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/Capes), doutora pelo Programa
de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, Universidade de Coimbra, Portugal.
carlaaguas@gmail.com

Iraima Lugo Montilla


Doutora pelo Programa de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de
Campinas. iraimalm@gmail.com

Manuela Rocha
Doutoranda e mestra em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de
Campinas, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
manuelaagrocha@gmail.com

Introdução

Este trabalho relata a experiência de formulação e aplicação do minicurso CURTA!


DIVERSIDADE!, ministrado durante a XI Jornada de Educação, Ciência e Tecnologia (XI JECT) do
Instituto Federal de Minas Gerais de Formiga (IFMG-Formiga), ocorrida entre 19 e 21 de outubro de
2022. O evento faz parte da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) (MCTI, 2022). O
minicurso disponibilizou 40 vagas para o público em geral e discutiu novos arranjos sociais e formas de
resistência ao modelo capitalista hegemônico, a partir de filmes curtas-metragens. Buscou ampliar o
debate sobre diversidade, costurando temas como agrobiodiversidade, redes de solidariedade e novas
formas de resistência dos trabalhadores urbanos, pensando não apenas no que poderia ou deveria ser,
mas principalmente nas experiências de vida e resistência que existem e insistem em resistir. O nome,
CURTA! DIVERSIDADE!, derivou da proposta metodológica de mesclar pequenas palestras, ou como
preferimos chamar “momentos de comunicação de saberes", com os filmes, em uma abordagem que
aproxima as "comunicadoras" dos demais participantes e propicia a construção horizontalizada e
dialogada do conhecimento.

Decolonialidade, educação e outros mundos possíveis

Vivemos um tempo de crise que atravessa várias dimensões – ética, política, ambiental, sanitária
etc. Segundo Echeverría (1994, p. 15), “o modo como as distintas crises se entrelaçam, se substituem e
complementam parece indicar que a questão está em um plano mais radical; fala de uma crise que
estaria na base de todas elas: uma crise civilizatória”. O modelo civilizatório que organiza o mundo
moderno ocidental, atualmente em crise, é uma decorrência da expansão europeia. Quijano (2009)

168
denomina como colonialidade a perpetuação do legado da colonização, através de uma matriz de poder
que situa o Sul global em um espaço geopolítico de subalternidade. Considerando nossa “encruzilhada
histórica”, são necessários exercícios de imaginação para pensarmos sobre outros mundos possíveis.

Discussão

A XI JECT conjugou oficinas, mesas redondas, minicursos e outras atividades, oferecidas por
professores do corpo docente do IFMG-Formiga e pela comunidade externa. A cada ano, a Jornada
apresenta um tema. Em 2022, foi “Bicentenário da Independência: 200 anos de Ciência, Tecnologia e
Inovações no Brasil” (XI JECT, 2022), tema este que não é estritamente vinculante.
O minicurso foi realizado de forma híbrida em dois encontros de duas horas cada. Para cada
encontro, escolhemos curta-metragens como fios condutores das discussões. Às exibições e debates
seguiram-se palestras curtas, ou, "momentos de comunicação de saberes", tratando dos temas da
agrobiodiversidade, redes de solidariedade, cultura quilombola, tecnologia e uberização do trabalho.
Dentre as quatro organizadoras do minicurso e autoras deste relato, apenas uma é professora do IFMG-
Campus Formiga e esteve presencialmente na atividade. As demais participaram online.
As atividades iniciaram com uma pergunta: “Qual o mundo que você gostaria de ter?”. Após, foi
solicitado que os participantes rascunhassem um outro mundo possível, pensando a partir dos seguintes
eixos: 1) Como seria a propriedade dos bens necessários à vida e ao dia-a-dia?; 2) Quem administraria e
resolveria os assuntos mais importantes da comunidade?; 3) Como seria a relação humano-natureza?; 4)
Como seriam as relações de trabalho? Finalizado esse rascunho inicial, alguns participantes
apresentaram suas ideias. O objetivo foi motivá-los a se expressarem, instigar o interesse e exercitar a
escuta.
Seguiu-se a exibição dos filmes e debates. As obras selecionadas foram: 1) "A desigualdade vista
do alto em imagens impressionantes" (4’11’), retratando uma entrevista com o fotógrafo Johnny Miller,
criador do projeto Unequal Scenes 49, que mostra em imagens a desigualdade refletida na arquitetura e
ocupação do espaço urbano; 2) “+20 ideias para girar o mundo - Ailton Krenak” (6’41’’), produzido pela
Unesco Brasil50, relatando o pensamento do intelectual indígena; 3) “Do quilombo pra favela: alimento
para a resistência negra" (22’32’’), produzido pelo Instituto Socioambiental 51, descrevendo a cooperação
com foco nas relações para garantir segurança alimentar durante a pandemia entre o quilombo São
Pedro e a comunidade de São Remo (SP); 4) “Pandelivery: quantas vidas vale o frete grátis?” (15’), de
Guimel Salgado e Antonio Matos52, abordando a precarização do trabalho dos entregadores por
aplicativo durante a pandemia.
A escolha dos filmes buscou apresentar produções que não são comumente vistas nos circuitos
comerciais e que dialogam entre si, de forma que os participantes pudessem enxergar semelhanças,
diferenças e intersecções. Depois das exibições, de breves debates e palestras, o tema inicial sobre a

49 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EMVnRq-Dqh8.


50 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f48HAu0bNPc.
51 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QgQkqt2auXc&t=21s.
52 Disponível em: https://libreflix.org/i/pandelivery.

169
construção de outros mundos possíveis foi retomado, desta vez emoldurado pelas novas reflexões
extraídas das obras selecionadas.
Entendendo o ensino formal como estratégico para a reprodução ou para a transformação do
tecido social, a metodologia aqui apresentada é uma experimentação que, convergindo com a teoria
decolonial, aponta para dois aspectos: por um lado, para as consequências do paradigma moderno
ocidental, que vem ampliando o fosso das desigualdades e se valendo, para tanto, de novas tecnologias.
Porém, a crítica à modernidade/colonialidade lança luz sobre outros modelos de ser e pensar que,
apesar de sistematicamente excluídos, insistem em existir. E é essa existência, constituída em
resistência permanente, que nos interessou destacar, tendo sido recebida de maneira aberta e viva pelos
participantes. Concluímos que a escolha de filmes simultaneamente contrastantes e dialogantes, bem
como a provocação inicial de outros mundos possíveis, estimularam a reflexão sobre dilemas centrais da
atualidade: eis o mundo em que estamos, eis a tecnologia que estamos comemorando; mas eis também
as relações de cooperação entre quilombo e favela, uma outra visão das comunidades, uma outra ideia
de progresso.

PALAVRAS-CHAVE: curtas-metragens; decolonialidade; estratégias didáticas.

REFERÊNCIAS
ECHEVERRÍA, B. “El ethos barroco”, in: Echeverría, B. (org.), Modernidad, mestizaje cultural, ethos
barroco. México: ENAM/El Equilibrista, 1994, 13-36.
MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÕES (MCTI). Semana Nacional de Ciência e
Tecnologia. Disponível em:<https://semanact.mcti.gov.br/o-que-e-a-semana-nacional-de-ciencia-e-
tecnologia/>. Acesso em: 30.out.2022.
QUIJANO, A. “Colonialidade do poder e classificação social”, in: SANTOS, B. e MENESES, M. (orgs.),
Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, 73-117.

170
EDUCAÇÃO ENTRE OS MUNDURUKU (JACAREACANGA – PARÁ): UM EXERCÍCIO DE DIÁLOGO
INTERCULTURAL CRÍTICO E DE SISTEMATIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS

Tony Leão da Costa


Doutor em História e professor adjunto da Universidade do Estado do Pará, atuando nos cursos de História e
Licenciatura Intercultural Indígena. tony.costa@uepa.br

A presente comunicação tem por objetivo refletir sobre a experiência de educação desenvolvida
com uma turma de estudantes Munduruku do alto Rio Tapajós, estado do Pará, por meio das atividades
regulares do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena, vinculado ao Núcleo de Formação Indígena
(NUFI), da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
O povo indígena Munduruku faz parte da família linguística Munduruku, pertencente ao tronco
Tupi. São conhecidos pela sociedade colonial desde fins do século XVIII e hoje ocupam um amplo
território dividido em várias aldeias nas margens do Rio Tapajós até o Rio São Manuel, no Sudoeste do
Pará, na fronteira com o estado do Amazonas e às proximidades do norte do estado do Mato Grosso.
Minha relação com os/as alunos/alunas indígenas da graduação intercultural se deu no decorrer
do ano de 2021, ainda durante o período agudo da Pandemia de COVID-19, de forma virtual por meio da
Internet. Nesse momento ministrei a disciplina Metodologia do Ensino de História na Escola Indígena.
Posteriormente, entre janeiro e abril de 2022, desenvolvi atividades de orientação de Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) com 3 duplas da referida turma, de forma presencial, com duas viagens até o
município de Jacareacanga, Pará, donde as atividades ocorriam.
A experiência com os Munduruku apresentou inúmeros desafios à minha prática como educador.
Primeiro pelo próprio contexto no qual as atividades ocorreram inicialmente, em plena pandemia. O que
me levou, juntamente com a turma, a buscar estratégias dialógicas que ocorriam com todas as
dificuldades técnicas do ensino remoto, particularmente com a existência de internet com sinal oscilante
e várias outras dificuldades dos alunos em conseguirem se conectar em suas aldeias.
Para além das dificuldades “técnicas” de comunicação, tratava-se de minha primeira experiência
em educação com um grupo indígena falante de língua originária, com pouca habilidade no português
formal e, obviamente, com características culturais próprias e desconhecidas para mim naquela
conjuntura. A tudo isso, somava-se o meu nulo conhecimento da língua Munduruku. Por fim, a distância
entre Belém do Pará, onde se localiza a sede da UEPA e a residência da maior parte dos professores do
Intercultural Indígena, e a cidade de Jacareacanga, no extremo sudoeste do Pará, onde as aulas
ocorriam, implicava vários dias de deslocamento por via aérea, fluvial e terrestre; no último intervalo em
estrada de condições muito precárias. Tal fato reduzia em boa parte a frequência de atividades
presenciais, mesmo após a fase mais aguda da pandemia, quando as viagens já haviam sido liberadas
pelos órgãos responsáveis.
Apesar das características peculiares da experiência acima citada, acredito que pude desenvolver
uma prática pedagógica baseada em um tentativa honesta de diálogo, como base da interculturalidade.
Entendia naquela situação, e ainda hoje, o diálogo tal como pensava Paulo Freire: “uma relação

171
horizontal de A com B. (...) [que] Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por
isso, só o diálogo comunica” (FREIRE, 1967, p. 07). Considerando minha experiência limitada e os
desafios que se avizinhavam, muito mais que teoria e técnica, eram a esperança, a fé e a confiança que
me moviam.
Evitando, contudo, o paternalismo e uma posição de educador salvacionista, busquei desenvolver
uma prática educativa pautada na interculturalidade crítica e não no mero elogio funcional da diferença
cultural. Elogio esse que, no dizer de Tubino, apenas “busca promover el diálogo y la tolerancia sin tocar
las causas de la asimetría social y cultural hoy vigentes” (2005, p. 02). Assim, busquei construir uma
diálogo intercultural crítico, que segundo esse mesmo autor se define da seguinte maneira:
Desde la filosofía, la interculturalidad alude - más que a una utopía abstracta - a un
proyecto societal viable en el tiempo de democracia radical. Interculturalidad es en este
contexto sinónimo de construcción de ciudadanías interculturales y de democracias
multiculturales. La Interculturalidad es, pues, una oferta ético-política de democracia
inclusiva de la diversidad alternativa al carácter occidentalizante de la modernización
social (TUBINO, 2005, p. 01).

Tendo em vista as peculiaridades da experiência dada, sobretudo pelo pouco tempo disponível ao
contato direto com a turma e pela barreira linguística existente, tanto para mim quanto para os
educandos, penso que o esforço de oferta ético-política de uma democracia inclusiva e alternativa ao
carácter ocidentalizante hegemônicos se deu muito mais como um ensaio, uma busca e, sobretudo, uma
tentativa de construção de estratégias políticas e metodológicas que viabilizassem a comunicação e a
troca intercultural de fato.
Um tanto quanto intuitivamente, as atividades com a turma e, particularmente, com meus
orientandos, se encaminharam para uma espécie de diálogo sobre suas experiências de vida, trabalho e
educação, individuais e coletivas, seguida da sistematização de tais experiências na forma de uma
Sequência Didática, que foi definida pela Coordenação do Curso como a forma do material didático final
correspondente ao TCC.
Mais que orientar, meu trabalho como professor e orientador se deu no sentido de escutar e
buscar entender as vivências de meus alunos indígenas em suas práticas educativas cotidianas em suas
respectivas aldeias e buscar, junto com eles e elas, a sistematização de tais práticas, sua “tradução” para
o mundo universitário formal (JARA HOLLIDAY, 2012). Mais que orientar busquei traduzir da maneira
mais dialógica possível as necessidades práticas e “técnicas” da elaboração de um TCC para algo que
fizesse sentido aos próprios alunos e alunas e tivesse viabilidade para suas atividades docentes em seu
local de vida e trabalho. Tal ensaio foi de fato um trabalho árduo e complexo que resultou numa dupla
tradução, uma rota de mão dupla permanente, na qual os alunos e alunas indígenas tentavam construir
estratégias pedagógicas próprias direcionadas às suas comunidades, ao mesmo tempo em que eu
buscava construir junto com eles tais estratégias e entender, traduzir e sistematizá-las para o material
final que daria base para o TCC.
Esta comunicação, assim, é muito mais (na verdade, “muito menos”) que uma reflexão acabada
sobre uma prática exitosa e de grande impacto. É possível que o impacto tenha sido, inclusive, mais forte
no “orientador” do que nos “orientandos”. Este texto não se trata, portanto, de uma finalizada elaboração
teórico-prática no campo da educação, mas é, muito mais, uma comunicação sobre uma experiência, ou

172
uma tentativa de sistematizar minha própria experiência como educador que buscou se comunicar e,
sobretudo, entender mais sobre a realidade do ensino intercultural indígena entre os Munduruku.

PALAVRAS-CHAVE: educação Munduruku; Educação Intercultural Crítica; educação e sistematização


de experiências.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1967.
JARA HOLLIDAY, O. La sistematización de experiencias, práctica y teoría para otros mundos
posibles. San José, C.R.: Centro de Estudios y Publicaciones Alforja, CEAAL, Intermon Oxfam, 2012.
TUBINO, F. La interculturalidad crítica como proyecto ético-político. In: ENCUENTRO CONTINENTAL DE
EDUCADORES AGUSTINOS, 1., 2005, Lima. Anais… Lima: Universidad Andina, 2005. Disponível em:
https://oala.villanova.edu/congresos/educacion/lima-ponen-02.html Acesso em: 28 set. 2015.

173
EDUCAÇÃO CRÍTICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DA EPISTEMOLOGIA DECOLONIAL

Bruno Gomes
Doutorando em Educação pela UFPR. b.gomes23@hotmail.com

Débora Reis Schnekemberg


Mestranda em Educação pela UFPR. debschnekemberg@gmail.com

Introdução

O presente trabalho versará sobre a compreensão da modernidade/colonialidade e seus impactos


políticos, econômicos, sociais e territoriais na sociedade contemporânea. Para tanto, objetiva-se
problematizar os impactos da modernidade no processo da invasão e dominação colonial na África e na
América Latina. A epistemologia decolonial segundo Torres (2019) busca desvendar as narrativas
falsamente constituídas e propagadas com apoio da modernidade ocidental sob a ótica da
desvalorização dos conhecimentos científicos e culturais produzidos nos países do Sul Global. Os
procedimentos metodológicos utilizados para realização deste trabalho foram de abordagem qualitativa,
tendo como materiais de análise livros, teses, dissertações e artigos científicos.

Decolonialidade: uma abordagem crítica e contra hegemônica

Segundo Torres (2018) a decolonialidade é uma teoria crítica e contra hegemônica que busca
trazer abordagens históricas, culturais e científicas dos povos colonizados, que ao longo do processo
histórico foram retratadas pela historiografia ocidental como selvagens, sem culturas, sem fé e sem rei.
No entanto, as produções decoloniais procuram problematizar os fatos com base nas contextualizações
históricas sobre as produções científicas desleais e universalizadas do ocidente, que desde a época da
escravidão e aos dias atuais detenham os monopólios das produções culturais, históricas e científicas,
devido à centralidade dos poderes econômicos, políticos e sociais.
Do ponto de vista conceitual, a colonização é definida como “modos específicos pelos quais os
impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo, e a colonialidade é a lógica global de
desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais” (TORRES 2018,
p.41). Atualmente, é possível afirmar que vivemos numa sociedade desigual, intolerante, xenófoba e
racista que pode ser caracterizada como fruto do passado histórico colonial, onde foram criados fatos
inexistentes que foram reproduzidos de geração em geração que classificam os colonizados como
inferiores em relação aos colonizadores, ou seja, os brancos ocidentais eram representados como
civilizados, religiosos, salvadores, inteligentes e superiores a todos os povos não ocidentais, identificado
por Dussel (2005) como mito da modernidade.
Narrativas como essas, são frequentemente reproduzidas em nossas sociedades em diferentes
meios das convivências sociais (famílias, escolas e outros), pessoas negras eram e ainda são as
principais vítimas desses discursos e práticas desumanas que são ativamente naturalizadas pelas

174
instituições modernas, com apoio das grandes mídias nacionais e internacionais dos países
desenvolvidos e/ou grupos economicamente poderosos, assim como, no Brasil, por exemplo, onde os
dados dos mapas da violência e as mídias estão encharcados com sangue negro e indígena.
De acordo com Torres (2018), a teoria decolonial procura sempre refletir sobre senso comum e
sobre “pressuposições científicas referentes a tempo, espaço, conhecimento e subjetividade, entre outras
áreas-chave da experiência humana, permitindo-nos identificar e explicar os modos pelos quais sujeitos
colonizados experienciam” (TORRES, 2018, p. 33) o processo da colonização, e ao mesmo tempo
potencializam a criação das estratégias que permitam avanços teóricos e práticos em relação aos
processos de descolonização do saber, do poder e do ser, hegemonicamente construídas do Norte para
o Sul.
Além de ser uma teoria contra hegemônica, também a decolonialidade é uma luta coletiva que
requer o engajamento de todas as pessoas (acadêmicos, políticos, movimentos sociais e outros); a teoria
decolonial procurar dialogar com todas as pessoas que se identificam ou solidarizam com as lutas pela
afirmação da identidade negra e indígena e contra a colonialidade na África e na América do Sul
(TORRES, 2018).
Para Gomes (2021), a luta contra a colonialidade não é algo recente, é uma luta que se iniciou
desde a época da dominação colonial com a criação dos movimentos anti-imperialistas na África e nas
diásporas africanas. Os movimentos pró-independências dos países africanos e contra a colonialidade
na América Latina também desenvolveram ações e críticas contra práticas de colonialidade exercidas por
parte de alguns organismos internacionais como é o caso de política de ajustamento estrutural do Banco
Mundial da década de 1980, que visa a concessão dos empréstimos aos países recém independentes
e/ou de economia fragilizada para reconstrução do Estado (PEREIRA, 2013).
Partindo disso, alguns autores como Gomes (2021), Neto (2017) e Pereira (2013) consideram que
a política de ajustamento estrutural do Banco Mundial teve impacto negativo na educação e na economia
dos países do Sul, que mesmo com a obtenção desses recursos não conseguiram suprimir as
necessidades básicas das suas populações (como garantir o acesso à educação a toda população,
saúde de qualidade, saneamento básico, segurança pública e outros), devido à corrupção e ao
endividamento dos Estados. Além disso, também é possível observar que as políticas intervencionistas
dos países do Norte potencializaram séries críticas por parte de alguns intelectuais africanos e
afrodiaspóricos do século XX, como Kwame N´krumah, Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Aimé Césaire, bell
hooks, Lélia Gonzales e outros que ao longo das suas trajetórias lutaram contra o imperialismo, racismo
e desigualdades sociais nos países do Sul.
Por isso, mesmo nas suas ausências físicas suas lutas não se perderam, porque alguns autores e
autoras africanos e afrodiaspóricos contemporâneos, como Joseph-Achille Mbembe, Kabengele
Munanga, Angela Davis, Kwame Anthony Appiah, Julieta Paredes, Nilma Lino Gomes, Anibal Quijano,
Nelson Maldonado Torres, Catherine Walsh, Chimamanda Ngozi Adichie, Antônio Bispo e outros
acadêmicos, políticos e lideranças dos movimentos continuaram lutando e produzindo conhecimentos
científicos que buscam resgatar valores dos povos colonizados, suas culturas, histórias e sabedorias que
foram subalternizadas historicamente pela dominação colonial.

175
Perante aos desafios atuais impostos pela modernidade é importante potencializar e incentivar
cada vez mais produções com temáticas decolonias, teoria crítica e epistemologias do Sul e
conscientizando pessoas sobre o perigo da colonialidade de ser, do saber, do poder e da natureza. Por
fim, reafirmamos a importância dos conceitos, posturas e lutas contra hegemônicas e decoloniais como
forma de impulsionar uma educação crítica.

PALAVRAS-CHAVE: epistemologia decolonial; modernidade; decolonialidade; educação crítica.

REFERÊNCIAS
GOMES, Bruno. Movimento estudantil na Guiné-Bissau em defesa da educação pública, gratuita e de
qualidade para todos(as). Alfenas-MG, 2021. Disponível em
https://bdtd.unifal-mg.edu.br:8443/bitstream/tede/1791/5/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20de%20Bruno
%20Gomes.pdf.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade
do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO,
2005, p. 24-32.
NETO, Kolmer Ramos Costa. Os impactos do programa de ajustamento estrutural no sector da educação
em São Tomé e Príncipe [Em linha]. Lisboa: ISCTE-IUL, 2017. Dissertação de
mestrado.<http://hdl.handle.net/10071/15336>
PEREIRA, João Márcio Mendes. O Banco Mundial e a construção política dos programas de ajustamento
estrutural nos anos 1980. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, nº 65, p. 359-381 – 2013.
<https://www.scielo.br/j/rbh/a/>
TORRES, Nelson Maldonado. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico / organizadores Joaze
Bernardino-Costa, Nelson Maldonado Torres, Ramón Grosfoguel. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica
Editora, 2018.

176
ESTUDANTES INDÍGENAS E A ESCOLA CLASSE 115 NORTE: CONSIDERAÇÕES
EPISTEMOLÓGICAS, INTERCULTURAIS E DECOLONIAIS

Fábio Ultra
Pedagogo (Faculdade de Educação da Universidade de Brasília FE/UnB), Professor de Ensino Fundamental
(Atividades) da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal- SEEDF, mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Educação - Modalidade Profissional (PPGEMP) da Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília (FE/UnB).

Resumo

Este trabalho expressa o resumo parcial da pesquisa em andamento que será parte integrante da
defesa da dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação - Modalidade
Profissional - PPGEMP - da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília - FE/UnB - cujo o tema
é “estudantes indígenas e a escola classe 115 norte: considerações interculturais e decoloniais”, o qual
levanta reflexões sobre a relação entre as crianças indígenas matriculadas nos anos iniciais do ensino
fundamental e a prática pedagógica no contexto escolar da Escola Classe 115 Norte no corrente ano.
Partindo de uma intenção decolonial e intercultural, a pesquisa busca entender o encadeamento
de compatibilidades e divergências entre as concepções e práticas de uma escola urbana regular frente
às vivências de seus nove estudantes indígenas. Esses pertencem às etnias Guajajara, Tuxá e Cariri-
Xoco/ Macuxi.
A pesquisa lança um olhar sobre o cotidiano escolar da unidade de ensino (que matricula crianças
indígenas há mais de dez anos) frente à presença de seus estudantes indígenas, herdeiros das
tradições, saberes e modos de vida dos seus respectivos povos, residentes nas aldeias da região da
reserva indígena Santuário dos Pajés (próximo ao bairro Noroeste de Brasília).
Mediante olhar crítico sobre o cenário educacional hegemônico, herdado da configuração
colonizada, a investigação dispõe-se a considerar questões em torno da interculturalidade,
decolonialidade e exclusão dos povos indígenas do sistema público de ensino. Assim como reflexões
sobre visibilidade, audibilidade (SILVA, 2018), protagonismo, pertencimento e fortalecimento da cultura
indígena no cotidiano da instituição de ensino em análise.

Metodologia

A pesquisa apoia-se nas abordagens metodológicas Sociopoética e Epistemologia Qualitativa


(GAUTHIER, 2012; GONZÁLEZ REY, 2005), procurando conferir caráter mais dialógico e subjetivo à
construção dos dados, e suscitar informações complementares às produzidas exclusivamente pela
objetividade instrumentalista. A adoção dessas metodologias também direciona-se a vias paralelas ao
uso racional positivista característico em pesquisas com predominância metodológica eurocentrada na
incursão das análises trans e interculturais.

177
Desenvolvimento e fundamentação teórica

No capítulo 1 o trabalho versa sobre a localização social entre-lugares (ANZALDÚA, 2012) da


pesquisa como ponto de partida na abordagem de uma pesquisa intercultural, traz bases normativas que
envolvem o tema da investigação (como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira - LDB 9394/96 e a Lei 11645/08, os Pareceres CNE 13/2012 e 9/2015 e a Portaria
SEDF 270/2018), além de situar a Escola Classe 115 Norte frente a noções sobre educação indígena e
educação escolar indígena trazidas por autores como Ely Macuxi, Daniel Munduruku, Edson Silva e Célia

Xakriabá.
No capítulo 2 o trabalho traz a concepção de Interculturalidade Crítica como mecanismo
decolonial, evidenciando linhas de compreensão direcionadas à educação concebidas por alguns de
seus principais expoentes como Catherine Walsh (2012), além de ideias sobre racismo epistêmico
enunciado pelo grupo Modernidade/Colonialidade. O capítulo ainda aborda reflexões sobre a articulação
(ou não) entre os modos de operação da instituição escolar e os saberes tradicionais.
No capítulo 3 a abordagem metodológica sociopoética, concebida por Jacques Gauthier (2012), é
apresentada como ferramenta de pesquisa intercultural de produção coletiva de dados, apoiada pela
Epistemologia Qualitativa de Fernando González Rey (2005), que salienta a percepção subjetiva no
processo de construção dos dados da pesquisa. A adoção dessas concepções metodológicas pretende
alinhar-se ao perfil decolonizador da pesquisa, trazendo uma reflexão epistemológica sobre a
exclusividade objetiva, racionalista e positivista da pesquisa qualitativa, enraizada na concepção
eurocêntrica de produção do conhecimento. O capítulo também traz breves (mas ricas) vivências
experienciadas por mim como professor de estudantes indígenas, além da oportunidade de ter
prestigiado eventos como a Marcha das Mulheres Indígenas (2019) e o Acampamento Terra Livre (2022).
Nos capítulos que se seguem e que ainda não foram produzidos, pois ainda me encontro no
processo de elaboração da dissertação, serão evidenciados os momentos de pesquisa de campo
iniciados com a observação dos estudantes indígenas no contexto escolar cotidiano de aula e seus
relacionamentos interpessoais, concomitantemente à prática pedagógica adotada pelas professoras e a
instituição de ensino. Na sequência, a pesquisa exibirá o processo de produção de dados com as
crianças indígenas e posteriormente com o grupo de seus professores, em que a metodologia
Sociopoética e a Epistemologia Qualitativa se complementam nos instrumentos subjetivos de produção e
análise de dados como alternativa à ferramentas exclusivas de coleta objetiva de dados.
Na conclusão, a pesquisa retomará algumas considerações sobre decolonialidade na escola,
interculturalidade crítica e normatizações acerca da temática escolar indígena ao exibir o cenário
investigado (suas ações ou omissões pedagógicas inclusivas ou excludentes, desafios, limites,
oportunidades) e refletir sobre alternativas à colonialidade epistêmica.

Considerações finais

178
A pesquisa chama a atenção sobre a Escola e seus alunos indígenas, percebendo-a como fio
condutor ambíguo de dominação e/ou fortalecimento cultural, em que enseja necessidades nem sempre
percebidas pelos profissionais da educação, mas que estão muito presentes no dia a dia dos estudantes
indígenas.

PALAVRAS-CHAVE: epistemologia; etnocentrismo; decolonialidade; interculturalidade; educação.

REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Glória. La frontera: la nueva mestiza. Madrid: Capitán Swing, 2012.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
FREIRE,Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa - Rio de janeiro, Paz e
Terra, 2015.
GAUTHIER, Jacques, O oco do vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais -
1.ed. - Curitiba, PR: CRV, 2012.
GONZÀLES REY, Fernando. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da
informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394/96. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm.
MALDONADO, B. Los indios en las aulas. Dinámica de dominación y resistencia en Oaxaca. Distrito
Federal, México: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2002.
Parecer 13/2012 do Conselho Nacional de Educação/ Ministério da Educação/MEC.
Parecer 09/2015 do Conselho Nacional de Educação/ Ministério da Educação/MEC.
Portaria SEDF Nº 279, de 19 de setembro de 2018.
SILVA, Edson. OS POVOS INDÍGENAS E O ENSINO: REFLEXÕES E QUESTIONAMENTOS ÀS
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS. Tópicos Educacionais, [S.l.], v. 23, n. 2, mar. 2018. ISSN 2448-0215.
Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/article/view/235106>. Acesso em:
19 jul. 2022. doi:https://doi.org/10.51359/2448-0215.2017.235106.
SOUZA, Ely Ribeiro de. EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL.
Disponível em: https://www.academia.edu/29549382/EDUCA%C3%87%C3%83O_IND
%C3%8DGENA_E_EDUCA%C3%87%C3%83O_ESCOLAR_IND%C3%8DGENA_NO_BRASIL
WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas.v.15 n. 1-2: Visão
Global, 2012.

179
JUVENTUDES RIBEIRINHA E QUILOMBOLA DA AMAZÔNIA TOCANTINA: (RE) EXISTÊNCIAS,
UTOPIAS E A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO E ENSINO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Grazielle de Assunção Azevedo


Ribeirinha da Amazônia Tocantina; Graduada em Educação do Campo – Ciências Humanas e Sociais; Mestranda
do curso de Pós Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais na Universidade de
Brasília. azevedograzielle98@gmail.com

Nós, juventude ribeirinha e quilombola, na maioria das vezes somos excluídos e


esquecidos por políticas públicas. Porém, somos jovens persistentes, resistentes, jovens
que sonham com um futuro digno para todos e que lutam para garantir seus direitos.
Queremos ser autores e construtores das nossas próprias histórias. Queremos ser
valorizados, ter voz e vez para que possamos ganhar nosso espaço na sociedade
(MARATAUIRA, 20 anos).

O presente estudo é parte dos resultados de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
da Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), iniciado no âmbito do projeto de pesquisa do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) 53, desenvolvido entre setembro de 2020
e fevereiro de 2022.
O objeto da pesquisa vem ao encontro do reconhecimento de que o tema da juventude é pujante
no contexto da educação superior. São jovens do campo e da cidade, que atravessam estradas e rios
carregando consigo suas histórias e projetos de vida. Importante premissa é também o reconhecimento
de que a juventude esteve invisibilizada nas políticas públicas, na pesquisa acadêmica, entre outros,
situação revertida nas décadas recentes, em que no Brasil políticas públicas foram instituídas e a
pesquisa deu saltos significativos. Lacunas, no entanto, ainda persistem nos marcos da produção do
conhecimento, sendo lacunar um maior domínio sobre a realidade de juventudes do campo e da cidade
no interior, especialmente sobre comunidades tradicionais da Amazônia.
A Universidade Federal do Pará (UFPA) a partir da década de 1980 assume a interiorização do
ensino superior na Amazônia como um dos pilares de sua política institucional, e a partir das décadas
mais recentes destaca-se a inclusão de povos tradicionais. Nesse contexto, a UFPA, ao se propor
acolher estudantes quilombolas e ribeirinhos/as, é desafiada a conhecer mais sobre suas juventudes,
inseridas num contexto de mobilidade campo-cidade, num mundo em múltiplas e aceleradas mudanças.
A pesquisa foi realizada com 20 jovens estudantes do curso de bacharelado Tecnólogo em
Agroecologia, correspondendo a 37% da amostra da pesquisa, e 63% da Licenciatura em Educação do
Campo (LEdoC) da Faculdade de Formação e Desenvolvimento do Campo (Fadecam), vinculada ao
Campus Universitário do Baixo Tocantins (CUBT), sediada no município de Abaetetuba, localizado na
microrregião tocantina do Estado do Pará.
Os/As jovens participantes da pesquisa estão na faixa etária de 19 a 29 anos, sendo 80% do
gênero feminino e 20% do gênero masculino, residindo em diferentes municípios e comunidades
quilombolas e ribeirinhas da microrregião tocantina.

53 Projeto de Pesquisa Diáspora e Mobilidade Juvenil na Amazônia: Histórias e Projetos de Vida de Jovens no Contexto da
Integração Internacional e Interiorização na UFPA.

180
Procedimentos metodológicos vinculados ao estudo de caso múltiplo (YIN, 2005) foram um
importante referencial, considerando que cada comunidade ribeirinha ou quilombola dos/as jovens,
constitui-se num universo particular. A observação participante foi um procedimento permanente nas
turmas da LEdoC (2020) e Tecnólogo em Agroecologia (2020) durante o Período Letivo Emergencial
(PLE) no ano de 2021, em que foi feita a imersão nas turmas e aproximações através da interlocução
com os professores que ora ministravam as disciplinas.
Foram utilizados instrumentos como a aplicação de questionário online com perguntas abertas e
fechadas, exercício de escrita autobiográfica e oficinas virtuais desenvolvidas por meio de metodologias
participativas de reflexão e partilha das histórias e projetos, tendo como base a utilização de músicas,
vídeos, poesias, leituras de fragmentos e perguntas norteadoras de debates.
Para Cardoso (2012, p.93), referenciar os sujeitos jovens “[...] possibilita o reconhecimento de
uma heterogeneidade a partir da diversidade de realidades que marcam identidades específicas das
mais diferentes juventudes e contextos específicos de relações”. Deste modo, os jovens são sujeitos
sociais mediante as relações que são desenvolvidas no seu percurso de amadurecimento, que
consequentemente se constitui a partir dos contextos sociais e culturais em que estão inseridos.
A análise das histórias de vida registradas no contexto mais amplo da pesquisa revela que os
marcadores mais relevantes e convergentes entre os/as jovens sujeitos da pesquisa são a vida familiar; a
trajetória de escolarização; a inserção em movimentos sociais; vivências socioculturais e o ingresso no
ensino superior.
Compreende-se que as dificuldades enfrentadas pelos jovens se tornam muito mais acentuadas
para adentrarem no ensino superior. Encontra-se nos relatos um processo de exclusão e de barreiras
relacionados aos seus pertencimentos. O rompimento dessas barreiras e a persistências dos jovens em
ocupar os espaços que lhes são de direito, traz consigo um significado que transcende desejos ou
projetos de vida pessoais.
Nesse sentido, compreende-se que a temática da juventude é importante no contexto do ensino
superior, visto que, diante de um cenário de invisibilidade de outrora, políticas inclusivas, a exemplo da
Lei de Cotas nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, vão reconhecendo a condição de sujeitos de direitos
de juventudes historicamente excluídas. As histórias e os projetos de vida dos jovens se inter-relacionam
com a crescente mobilidade campo-cidade, que no caso da UFPA foi intensificada pela política de
interiorização.
O ingresso de estudantes quilombolas, indígenas e do campo em cursos específicos da Fadecam
e na UFPA de um modo geral tem evidenciado a importância de que mais do que garantir o acesso,
ações de pesquisa, de ensino e de extensão devem se voltar para apoiar a permanência destes/as
estudantes na universidade e o envolvimento com suas comunidades, lutas e resistências. Neste sentido,
(re)conhecer as histórias e projetos de vida destes jovens pode favorecer a formulação e implementação
de políticas institucionais que contribuam para a superação de históricas desigualdades que atingem
povos tradicionais da Amazônia e grupos reconhecidamente vulneráveis.
A trajetória percorrida nesta pesquisa permitiu o direcionamento de novos olhares sobre
juventudes ribeirinhas e quilombolas na Amazônia. Durante o processo, os jovens puseram em

181
movimento seu imaginário e construíram uma linguagem que representou as suas identidades, os seus
territórios, sonhos e utopias. É nesse movimento que podemos também compreender os seus principais
desafios para o acesso e permanência no ensino superior.
Em síntese, as histórias e projetos de vida das juventudes são marcadas pela luta, resistência,
perseverança em construir possibilidades e projetos de vida que favoreçam uma ruptura com um padrão
de falta de oportunidades, acentuados num contexto de negação de acesso democrático à educação
superior com qualidade acadêmica, na expectativa de inserção no mundo do trabalho em condições
dignas.
Nesse sentido, evidencia-se que os projetos se associam na busca por um ensino superior que
futuramente possa contribuir com as discussões e principalmente com o desenvolvimento das
comunidades e a potencialização da educação do e no campo, tendo em vista que ambos os cursos
onde os jovens estão vinculados emergem com o intuito de formar os filhos dos trabalhadores do campo
e valorizar suas culturas e especificidades, com um desenho curricular sensibilizado e preocupado em
solucionar o problema da formação tecnicista, na perspectiva de rever a formação convencional que
descontextualiza o conhecimento. Assim, os cursos procuram construir um processo de formação que
responda aos desafios de cada época e de cada lugar, ao tomar como ponto de partida as situações
existenciais que demandam soluções concretas para os problemas e anseios das populações, sem
pensar em transferência de saber de forma vertical para o meio rural, ou seja, na construção de uma
ciência com as pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: juventudes; ribeirinhos; quilombolas; educação superior; projetos de vida.

REFERÊNCIAS
CARDOSO, Maria Bárbara da Costa. Saberes ribeirinhos quilombolas e sua relação com a
educação de jovens e adultos da comunidade de são João do Médio Itacuruçá, Abaetetuba/PA.
Dissertação de Mestrado. UFPA: Belém/PA, 2012.
YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.

182
COMO TER UM PROJETO DE VIDA EM UMA ECONOMIA DE MORTE? ENTRE SONHOS FABRIS E
FUTUROS CONTRA COLONIAIS

Izabela Amaral Caixeta


Professora de Sociologia da Secretaria de Estado de Educação do DF, doutoranda em Bioética pelo Programa de
Pós-graduação em Bioética/UnB, mestra em Políticas Públicas em Saúde pela Fiocruz/Brasília e especialista em
Estudos AfrolatinoAmericanos e Caribenhos pela CLACSO. izacamal18@gmail.com

Na esteira das reformas educacionais das últimas décadas, perpetradas pelo avanço do
neoliberalismo na Améfrika Ladina, junto às mudanças no cenário político pós 2016 no Brasil, em 2018
foi publicada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O documento em questão é a normativa que
estabelece os parâmetros da Educação Básica no país. Seus pressupostos norteadores orientam-se pelo
entendimento da chamada “formação integral” de estudantes e suas “aprendizagens essenciais”,
elencando uma série de competências e habilidades “generalizáveis” que devem ser prescritas nas três
etapas da Educação Básica.
Apesar do aumento no número de horas destinadas ao chamado Novo Ensino Médio-NEM,
muitas disciplinas estão sendo reduzidas (em especial as disciplinas de humanas) para dar espaço ao
novo formato que pressupõe oferta, responsabilidade e disponibilidade quase exclusiva dos recursos
locais, como também habilidades e competências individuais de cada docente.
Uma das indagações a respeito desse “enxugamento” aponta como responsável a nova disciplina
obrigatória intitulada “Projeto de Vida”. Chamado por alguns de “cloroquina” (COSTA et all. 2022) do novo
Ensino Médio, a disciplina Projeto de Vida - PV é considerada pela BNCC como peça “central em torno
do qual a escola pode organizar suas práticas” (BRASIL, 2018, p. 472). Única disciplina anual obrigatória
por todos os anos do NEM, o PV vem sendo alvo de muitas especulações dada a sua linguagem
supostamente universalista, meritocrática e centrada no indivíduo.
Através dos documentos de referência sobre o PV é possível perceber o destaque de palavras
como autonomia, organização, sentido/propósito de vida, realização, com nuances do chamado self-
made-man54 e a cultura empreendedora, imputando à agência docente uma discricionaridade
controversa. Espera-se protagonismo de jovens que, auxiliados por essa disciplina, trilharão seus
caminhos. Numa sociedade onde a juventude e, especialmente, a juventude negra e periférica vem tendo
vidas e sonhos ceifados, numa ‘máquina de moer’ jovens (FLORES, 2018), como é projetar futuros
plurais? Como desejar sonhos se até nossos desejos também são colonizados?
Dentre os diversos conflitos morais que acampam discussões referentes à vida num cenário de
mortes e guerra permanente, enquanto professora de sociologia e, recentemente, também de projeto de
vida na escola, resolvi pensar junto da intitulada “ciência da sobrevivência” (POTTER, 1971), no campo
interdisciplinar da Bioética, reflexões-caminhos que auxiliem na construção de novas éticas libertárias.
Como exercitar o sonhar, democraticamente, de modo a assegurar a pluralidade de projetos/sonhos?
54 Acerca da falácia da liberdade e escolhas individuais, Facas (2020) explica que a expressão self made man, ou o homem que
faz a si mesmo (em tradução livre) aborda o “sujeito que se constrói e que se basta. Nesta direção, o trabalho seria a via que
possibilitaria sucesso e uma realização plena, e a organização o espaço privilegiado para a superação indefinida dos seus
próprios limites” (p.68).

183
Compreendendo os interesses em disputa do novo Ensino Médio, através da disciplina de PV, é
absolutamente fundamental (re) pensar de que modo a veiculação de valores com lastros coloniais incide
nas intersubjetividades desde o chão da escola e para além de seus muros. A escola, enquanto
instituição de controle, segue como importante agente para (de) formações e reproduções de valores
hierarquizados. O extermínio dos saberes diferentes, não hegemônicos, o chamado epistemícidio, advém
justamente desse racismo estrutural que informa o saber científico hegemônico há séculos,
marginalizando pessoas pretas, indígenas, não-brancas, periféricas, negando seu lugar de produção de
conhecimentos legítimos.
O epistemícidio enraíza-se profundamente junto aos silenciamentos cotidianos das diversas
violências sofridas por crianças e jovens na escola. Também está na banalização da linguagem racista,
no racismo recreativo. Faz-se presente na grade curricular euro centrada, no congelamento imagético e
estereotipado de outras pluriexistências. Está na base da naturalizada subestimação da cognição de
estudantes negro/as.
Na escola geralmente não se aprende a valorizar o diferente, o fora do ‘padrão’ hegemônico, o
“outro” histórico. Pois a escola não é “uma preparação para que aprendamos a ouvir essas outras vozes,
mas uma preparação para tolerá-las e superá-las na medida em que nos esforcemos por modernizá-las”
(BOTELHO, NASCIMENTO, 2022, p.80). Quando não para somente torna-las e ou mantê-las invisíveis,
apagadas.
Nos documentos norteadores do DF, o PV é apresentado como a potência capaz de “[...] em
sintonia com seus percursos e histórias, permita-lhes definir seu projeto de vida, tanto no que diz respeito
ao estudo e ao trabalho como também no que concerne às escolhas de estilos de vida saudáveis,
sustentáveis e éticos.”.(BNCC, 2018, p. 463.).
Parece contraditório o requerimento sobre histórias, percursos e perspectivas de futuro num país
que desrespeita memórias coletivas e existências plurais, a partir de suas práticas de apagamento
sistemático de narrativas-existências contra hegemônicas e contra coloniais.
Nesse sentido, a proposta aqui é pensar de que modo a práxis docente pode incidir eticamente
na construção de subjetividades a partir do ‘Projeto de Vida’, junto aos impactos de implementação dessa
disciplina nas escolas de rede pública e rede privada no DF e suas discrepâncias orquestradas. Busco
também compreender em que medida uma matriz norte referenciada informa e sustenta as matérias do
sonhar. Nutrir solos existências, ou ainda, “Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte
prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo
que nós vivemos quer consumir” (KRENAK, 2019, p.28).
Indaga-se de que maneira é possível enriquecer subjetividades atravessadas por violências,
injustiças e desigualdades que embutem autorresponsabilização e limitam propósitos de vida a
utilitarismos mercantis? Como valorizar pluriexistências com estruturas que se supõem universais, logo
excludentes? Quais futuros estão sendo “florescidos” dentro de uma sociedade fabril com
relações/valores tão “agrotóxicas”?

PALAVRAS-CHAVE: projeto de vida; colonialidade; educação; bioética.

184
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Carlos Soares, and José Carlos Lima de Souza. "O novo ensino médio de tempo integral:
reducionismo, privatização e mercantilização da educação pública em tempos de ultraconservadorismo."
e-Mosaicos 8.19 (2019): 94-107.
BOTELHO, Denise; Flor DO NASCIMENTO, Wanderson. Colonialidade e educação:: o currículo de
filosofia brasileiro entre discursos coloniais. RevistaSul-Americana de Filosofia e Educação (RESAFE), n.
14, p. 66-89, 2011;
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018;
COSTA, E. et all. Projeto de Vida: cloroquina para os males do Ensino Médio. 10/02/2022 Coluna
ANPOF; [acesso em 2022 set 8]; Disponível em:
https://www.anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/projeto-de-vida-cloroquina-para-os-males-do-
ensino-medio;
FACAS, Emílio Peres. "Sociedade da performance e a falácia da liberdade no discurso neoliberal."
Souza-Duarte F, Mendes AM, Facas EP, organizadores. Psicopolítica e Psicopatologia do Trabalho. Porto
alegre: Editora Fi (2020): 63-75;
FLORES, Tarsila. Cenas de um Genocídio: homicídios de jovens negros no Brasil e a ação de
representantes do Estado. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, Brasil, 2018;
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1 ed. Companhia das letras. 2019;
POTTER, V.R, Bridge to the future, 1971.

185
EDUCAÇÃO CIENTÍFICA DECOLONIAL

Luiz Carlos Jafelice


Astrofísico e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

As ciências naturais e a matemática e seus ensinos são fontes de colonialidade em nós. Este
trabalho trata da identificação e desconstrução desses canais de modo a torná-los, inclusive eles,
instâncias para uma vivência da decolonialidade. Proponho dois conceitos centrais de orientação:
diversidade epistemológica e equidade epistemológica55.
Reconhecer o par diversidade e equidade epistemológicas é reivindicação a um só tempo
subversiva do status quo e solucionadora de nossos problemas de convivência interpessoal, intercultural
e ambiental no planeta! Diversidade porque não existe uma forma única, nem privilegiada, superior ou
melhor, de os seres humanos construírem conhecimentos. Equidade porque os diferentes sistemas de
conhecimento são igualmente válidos, legítimos e relevantes e não podem ser avaliados desde outros
referenciais epistemológicos.
Entendo por educação científica decolonial aquela em que a ciência é vista desde uma
perspectiva decolonial. Ela é ensinada enquanto uma alternativa epistemológica e em nada privilegiada.
Isto implica que outras epistemologias têm que ser trabalhadas na escola com igual ênfase e atenção
também, e com destaque, pelos professores de ciências naturais e de matemática. Indígenas,
quilombolas e conhecedores tradicionais são os nossos mestres para tais incursões pluriepistemológicas.
Essa educação explicita as relações entre ciência e poder e propõe formas de enfrentamento e
desmonte da ação colonizatória da ciência e do caráter epistemicida do ensino de ciências existente. A
educação científica decolonial promove uma nova percepção de mundo, acolhedora das diversidade e
equidade epistemológicas e problematizadora das implicações daí decorrentes para a superação da
atual crise civilizatória. Uma das consequências inevitáveis dessa proposta é que a formação dos
professores de ciências naturais e de matemática precisa ser radicalmente repensada. E a dos
professores formadores daqueles profissionais, também! Educação científica decolonial é uma
abreviação de educação científica intercultural transdisciplinar decolonial. Ser decolonial abarca de
modo consistente a interculturalidade e a transdisciplinaridade daquela educação no sentido proposto por
este trabalho.
A decolonialidade não vai se dar pela via científica – nem pela via acadêmica. Contudo, ela
tampouco vai se dar pela simples acomodação e continuidade em um modo de vida consumista,
imediatista, individualista. A decolonialidade pede o caminho da convivialidade para se realizar, um
caminho de construção e vivência em comum de um espírito comunitário e autônomo, acolhedor das
muitas diversidades intra e intercomunidades e emancipatório. Esse caminho, nas mais variadas culturas

55 Este trabalho desenvolveu-se do artigo Decolonialidade, ciências naturais e educação científica (JAFELICE, 2021) e de
reflexões com integrantes do Coletivo Educação Científica Decolonial, o qual deve ser apresentado em outra fala neste
mesmo Conversatório 5.

186
humanas no planeta, sempre foi não científico – foi político, ético, ao mesmo tempo de beligerância ritual
e de solidariedade existencial.
Portanto, livrar-se da racionalidade e modus operandi dominantes e superar o enfoque científico
do mundo, que nos dopa culturalmente e nos doutrina ao longo de toda nossa escolarização, é etapa
esperada na realização do ideal decolonial, qual seja: desconstrução da subjugação epistemológica,
psicológica e de poder ocidentais e construção coletiva de um mundo onde caibam muitos mundos,
como os zapatistas sabiamente praticam e ensinam.
Os teóricos da decolonialidade a categorizam em decolonialidade do ser, do poder e do saber.
Mas quando vamos observar o que de fato de substancioso existe especificamente sobre a
decolonialidade do saber, por exemplo – categoria que precisaria clamar gritantemente por uma
diversidade e equidade epistemológicas – vemos algo morno, genérico, ou restrito a certos setores da
área de ciências sociais. Não se sente como sendo algo enfático e com clareza sobre o que está em jogo
e sobre como deveria ser desconstruído na vida e na escola.
Na “cultura ocidental”, o poder emana do epistemológico: o ser e o poder costumam ser
polarizados e ganhar significado a partir do saber, ou seja, da ciência. Em última instância, esta
instituição social, enquanto braço armado do sistema capitalista, é que tem dado as cartas. A
decolonialidade do saber demandaria muito mais ações do que a maioria daqueles teóricos têm
dispensado a ela.
A decolonialidade do saber exige, a rigor, a desconstrução do poderio alcançado pela ciência –
em particular, mas não apenas, pelas ciências exatas e/ou naturais, que ainda seduzem como modelo
exemplar alguns setores das humanidades – e não a relativização e contemporização daquele poderio,
como se houvesse campo e espaço para negociações no domínio epistemológico, parciais que fossem,
com aquela imperialista instituição. Não há! A situação que vivemos é a de um autoritarismo
epistemológico regido por uma lógica binária: a ciência não pode ser questionada; quem o fizer é
porque é anticiência. É preciso encarar o problema de frente e expor com veracidade o que significa
contrapor-se a essa tirania.
É preciso entendermos que a decolonialidade do saber implica em um profundo revertério de
ordem epistemológica, ontológica, axiológica, simbólica, psicológica, cultural e ideológica. Senão, serão
só panos quentes para tentar contemporizar o que não pode ser vitalizado apenas através de reformas.
A ciência é colonizadora: impõe uma visão única de mundo e é fonte de poder do pensamento
único dominante. Isto torna seu ensino na escola epistemicida em inúmeras ocasiões. Nos programas de
pesquisa em ensino de ciências omitem-se as implicações interétnicas para comunidades em situação
de vulnerabilidade das políticas educacionais definidas tendo o paradigma universalista da ciência como
base e fio condutor das ações nessas áreas.
Discuto criticamente a educação científica em contextos multiculturais, que é o caso no Brasil
inteiro. Trago discussões e bibliografia inicial que permitam a quem for sensibilizado/a por esses temas
colocar em prática essa nova postura decolonial também nesses campos de atuação profissional. Mas a
proposta aqui não é desenvolver estratégias didático-pedagógicas para que os alunos vindos de outras
vivências culturais acatem e incorporem a cultura científica como esta costuma ser imposta na educação

187
básica, e sim, antes, problematizar essa cultura com questionamentos e práticas de ordem
epistemológica que propõem reconfigurar de modo radical a educação científica ao imbricá-la com o
processo de decolonialidade.
Meu lugar de fala é o de um não indígena/não quilombola/não conhecedor tradicional apoiador
radical dos direitos indígenas e quilombolas e dos seus respectivos movimentos e causas que abraçam.
Não sou representante de nenhum desses grupos. Eles são os protagonistas. Eles são nossos mestres
na necessária e urgente mudança de percepção de mundo e de modo de vida que precisamos
empreender individual e coletivamente. Viso fazer uma interlocução com não indígenas e não
quilombolas para esclarecer por que as causas indígena e quilombola são centrais e potencialmente
contêm as soluções epistemológicas, axiológicas e culturais para ajudar a todes nós superarmos a crise
civilizatória que nos acomete através da criação de um percurso inédito e transformador.

PALAVRAS-CHAVE: educação científica decolonial; decolonialidade e ciências naturais; decolonialidade


e ensino de ciências.

REFERÊNCIAS
JAFELICE, Luiz Carlos. Decolonialidade, ciências naturais e educação científica. In: BARRETO,
Ciclamio Leite (Coord. do PIBID-Física/UFRN). Trabalho apresentado no webinário com bolsistas,
voluntários e convidados, 01/06/2021, e incluído como parte do relatório para a CAPES do PIBID-
Física/UFRN, janeiro de 2022. Disponível em:
https://drive.google.com/drive/folders/1WxBkCpEvIdNlAIFhYMdqHp3s5QYFhzMM. Acesso em:
27/10/2022.

188
DE “ELA PARTIU” A “HOMEM NA ESTRADA”: UM POSSÍVEL ENTENDIMENTO SOBRE AS
POTENCIALIDADES DOS SAMPLES56 ATRAVÉS DE DU BOIS

Paulo Henrique Ferreira Borges dos Santos


Graduado em História, professor, mestrando em educação PPGE da UFSCar. pauloborges91@gmail.com

A centralidade da música na obra de Du Bois

Na contramão de um determinado pensamento composto por noções racializadas que


enquadravam africanas/os e descendentes no mundo da natureza e como povo sem história, W. E.B. Du
Bois ofereceu-nos um outro entendimento sobre as contribuições da diáspora negra cuja constituição nos
permite pensar o mundo contemporâneo. Em sua construção, o sociólogo nos apresenta um modelo
teórico-metodológico que destaca a agência criativa, assim como a continuidade histórica da população
negra (SILVÉRIO; SOUSA, 2020).
Du Bois utiliza em grande medida as “Sorrow Songs”57, que eram entoadas por mulheres e
homens submetidos ao crime da escravidão ou, posteriormente, nos processos de abolição que
ocorreram sem indenização.
Segundo o sociólogo:
[...] as canções do povo negro – o grito rítmico do escravo – erguem-se hoje, não só como
a única música americana mas como a mais bela expressão de experiência humana
nascida deste lado dos mares [...] a excepcional herança espiritual da nação e a maior
dádiva do povo negro (DU BOIS, 1999, p. 298)

Sob esse ponto de vista, Du Bois defende que a música negra é um testemunho que percorre a
História e que, através dela, podemos rastrear os sinais de seu desenvolvimento. Podemos melhor
compreender esse argumento ao constatarmos que, em suas três biografias oficiais, o autor conta a
história da “avó de seu avô” que após ter sido sequestrada e escravizada nos EUA cantava uma canção
bantu para uma criança. Essa canção havia sido transmitida por gerações até chegar em Du Bois e,
assim, eles seguiam cantando.
Nesse processo, explica Du Bois, o sentido de algumas palavras e melodias se perderam, porém,
a mensagem se manteve, servindo de alicerce para muitas obras posteriores. “Cerca de dez canções
padrões podem ser extraídas dessa floresta de melodias-canções sem dúvida de origem negra e de
ampla circulação popular, canções especialmente características do escravo.” (DU BOIS, 1999, p. 302).
Através de nossa apreensão, isso demonstra dois elementos importantes da episteme de Du
Bois: o primeiro, é que evidencia-se que antes do sequestro e escravização de sua ancestral, ela
carregava uma história e cultura. Isso é demonstrado através da canção que por ela foi aprendida entre
seu povo e que permaneceu em sua memória, mesmo quando submetida à desumanização
racionalizada imposta pela escravidão moderna.

56 Trecho de uma música, que o DJ recorta e cria uma nova música (Juca Guimarães, 2021).
57 Literalmente canções de dor.

189
O segundo elemento é a continuidade, pois a mulher ao cantarolar para a criança transmitiu sua
herança histórico-cultural que, da mesma forma, continuou sendo passada de geração em geração.
Um outro aspecto da obra de Du Bois que acreditamos se relacionar de igual maneira com as
reflexões por aqui propostas, é o fato de que todos os capítulos de seu livro “As Almas da Gente Negra”
(1999) têm como introdução um fragmento das Sorrow Songs.
Aqueles que caminhavam nas trevas cantavam canções – Sorrow Songs –, pois sentiam-se
exaustos em seus corações. E assim, diante de cada pensamento que escrevi neste livro, coloquei uma
frase musical, a presença de um eco dessas singulares canções antigas nas quais, a alma do escravo
negro falava aos homens. (DU BOIS, 1999, p. 298).
De acordo com Silvério e Souza, isso demonstra que Du Bois:
[...] deslocado de suas origens, capturou o legado do espírito (a mensagem) do africano
escravizado e, posteriormente, do negro, em condições racializadas que negavam a sua
humanidade e capacidade, ao considerar a música como forma de expressão e fonte, por
um lado, para compreensão do que “permaneceria” africano e não facilmente traduzível e,
por outro lado, o lugar de produção de novos sentidos na terra “adotiva” (SILVÉRIO;
SOUSA, 2020, p.1166)

Neste sentido, consideramos que a música é um elemento central da teoria de Du Bois, à medida
em que é entendida como um elemento de ligação e continuidade das culturas dos povos da diáspora
negra.
É nessa chave que acreditamos ser possível refletirmos sobre as potencialidades dos samples no
rap. Sobre isso trataremos a seguir. Samples resgate e continuidade: “O sample é como o ouro, você
pega o ouro e faz um anel, faz um colar.” (KL Jay, em entrevista à Alma Preta, 2021)”.
A citação acima, demonstra o valor que o sample detém na construção da música rap. Visto que
mesmo os samples não tendo sido inventados pelos praticantes da cultura hip-hop, foi através do rap
que essa prática passou a ser utilizada para se criar novas canções (ROSE, 2021).
Muitas são as fontes para um sample, de artistas consagrados como James Brown e Jorge Ben,
aos ritmos de matriz africana como o samba; ou de outras origens. Um sample que se destaca entre os
membros da cultura hip-hop no Brasil é o utilizado na canção “Homem na Estrada” (1993), do grupo
Racionais MCs. Nesse caso utilizou-se um fragmento da melodia (sample) da canção “Ela Partiu”, de Tim
Maia (1977).
Reflexões sobre as particularidades da construção musical de Tim Maia ultrapassam os limites
deste trabalho, no entanto, destaca-se o fato de que o músico viveu por cinco anos nos Estados Unidos.
Tendo chegado em 1959, mesmo ano da criação da gravadora Motown Records, o artista foi influenciado
diretamente pela música negra daquele país, assim como pelos movimentos dos direitos civis.
A melodia presente na canção de Maia (1977) é a base para um relato desolado do autor, homem
negro, abandonado pelo seu grande amor. “Ela partiu, partiu/ e nunca mais voltou/ Ela sumiu, sumiu/ e
nunca mais voltou.”
Já a criação sampleada, relata as dificuldades de ressocialização enfrentadas por um homem
negro, ao sair da prisão. “Um homem na estrada recomeça sua vida/ Sua finalidade a sua liberdade/ Que
foi perdida, subtraída/ E quer provar a si mesmo que realmente mudou/ Que se recuperou e quer viver
em paz/ Não olhar para trás/ Dizer ao crime: nunca mais!” (BROWN, 1993).

190
Chama-nos a atenção o fato de que a base melódica, nos dois casos, acompanha uma letra que
exprime as subjetividades do homem negro. Colocando-se dessa forma um retrato sobre esse grupo
diferente dos estereótipos que os fixam como fortes, violentos; seres imutáveis que não possuem a
capacidade de refletir sobre suas vidas ou rever suas atitudes.
Se eu soubesse onde ela foi, iria atrás
Mas não sei mais, nem direção
Várias noites que eu não durmo, um segundo
Estou cansado, magoado, exausto.
(MAIA, 1997)

Quero que meu filho nem se lembre daqui


Tenha uma vida segura
Não quero que ele cresça com um “oitão” na cintura
E uma “PT” na cabeça
E o resto da madrugada sem dormir
Ele pensa o que fazer para sair dessa situação.
(BROWN , 1993)

É sob esses aspectos que acreditamos ocorrer a convergência das Sorrow Songs com a canção
“Ela Partiu” e a continuidade em “Homem na Estrada”. Pois, assim como entendeu Du Bois, a mensagem
trazida da ancestralidade africana se mantem e continua sendo transmitida em diferentes formatos,
influenciando, assim, as construções subjetivas dos sujeitos negros na diáspora. Daí a centralidade que
dedicamos neste trabalho ao lugar da música na diáspora negra em consonância/concordância com a
forma como Paul Gilroy indica, de que observar o lugar da música na diáspora negra significa
observar a autocompreensão articulada pelos músicos que as têm produzido (GILROY, 2001).

PALAVRAS-CHAVE: Du Bois; música; rap; diáspora.

REFERÊNCIAS
BROWN, Mano. Homem na Estrada. Racionais MCs, In: Raio X do Brasil. 1993. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=SkHS9r1haXE. Acesso em: 25 jul. 2022.
DU BOIS, W. E. B. As Almas da Gente Negra. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1999. Tradução
GOMES, Heloisa Gomes Toller.
GILROY, Paul. O Atlântico negro – Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2021.
GUIMARÃES, Juca. O sample é uma matéria prima como o ouro, diz Kl Jay. Alma Preta, 23/04/2021.
Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cultura/o-sample-e-uma-materia-prima-como-o-ouro-diz-
kl-jay. Acesso em: 25 jul. 2022.
MAIA, Tim. Ela Partiu, In: Tim Maia e Convidados. 1977. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=syqJAgTQdlU. Acesso em: 25 jul. 2022.
ROSE, Tricia. Barulho de Preto: rap e a cultura negra nos Estados Unidos contemporâneo. São
Paulo: Perspectiva, 2021
SILVÉRIO, Valter e SOUSA, Karina Almeida de. Dançar, cantar, criar, no compasso da liberdade.
Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, v.10, n.3, set.-dez. 2020, pp.1157-1182

191
SABER PARA HISTORIAR OU HISTORIAR PARA SABER? REFLEXÕES SOBRE “AFLORAMENTOS
DESNORTEADORES” E A COLONIALIDADE DO SABER NA FORMAÇÃO SUPERIOR EM HISTÓRIA

Debora Viveiros
Bacharel em História pela PUC Minas, mestranda da linha Currículos, Culturas e Diferença pelo PPGE –
Conhecimento e Inclusão Social pela FaE/UFMG e bolsista CAPES. Atuou como consultora em patrimônios
culturais no estado de Minas Gerais e possui formação complementar em curadoria, gestão e produção cultural.
Mulher, branca, cis, bissexual, sobrevivente de abuso e assédio sexual. Artista autodidata interessada em
subjetividades e afetos transpostos em linguagens, como o audiovisual, fotografia, fotoperformance, fotobordado,
poesia, entre outros.

A proposta aqui apresentada busca refletir sobre como perspectivas não euro-estadunidenses
têm aflorado na graduação em História da UFMG, movimento aqui denominado “afloramentos
desnorteadores”58. O termo afloramento, emprestado de estudos geológicos e oceanográficos, designa
algo oculto que é exposto, como uma camada de rocha após os cortes em uma pedreira, ou as águas
profundas do oceano que sobem em direção às camadas superficiais. Assim, os afloramentos podem ser
escolhas temáticas, percursos formativos, produções acadêmicas, mas também subversões estilísticas e
estéticas de suas produções, bem como de “fontes oficiais”, além de insurgências de novas fontes
históricas e referências para além dos cânones. Indo além, os afloramentos também podem dizer sobre
formas de ser e estar nas universidades, vivências curriculares, tensões, vínculos afetivos, intervenções
estéticas nos espaços, entre outros.
Visualmente, busco inspiração na fita de Moëbius 59 para representar as trajetórias não-lineares
deste trabalho.

58 A noção de “afloramentos desnorteadores” é uma proposta desta autora para se referir a uma série de situações possíveis em
que a colonialidade do saber é colocada em xeque dentro do contexto analisado.
59 Segundo Rivera (2008), a Fita de Moëbius pode ser entendida, na psicanálise, da seguinte forma: “A fita de Moebius
concretiza a relação entre sujeito e objeto a [...]. Ou melhor: se introduzimos a terceira dimensão nesta inscrição
bidimensional que é o símbolo matemático da punção, ela se torceria talvez, tornando-se fita moebiana. A punção indica, diz
Lacan, "todas as relações, menos a igualdade " (apud BAUDRY, 1996, p.196), ela marca um circuito pulsional, uma
trajetória entre sujeito e objeto.” Neste projeto, ela representa uma trajetória sem início, meio e fim definidos, unindo
pesquisadora e pesquisa em uma trajetória desviante e, ao mesmo tempo, indissociável.

192
Figura 1 – Fita de Moëbius como representação visual do imbricamento entre pesquisa e pesquisadora. Autoria da
pesquisadora

Em minha formação acadêmica, fui ensinada que ser historiadora era algo apenas iniciado no
ensino superior, cabendo a cada graduanda(o) aprimorar habilidades no decorrer dos percursos
profissionais acadêmicos [e infinitos]. Ao longo de mais de dez anos de minha graduação e diversas
experiências enquanto pesquisadora de campo da área de Patrimônio Cultural, deparei-me com
situações que me fizeram reavaliar esse lugar de formação e despertaram interesse sobre mudanças e
permanências nas trajetórias formativas atuais.
Para compreender o atual contexto da produção historiográfica, as escolhas temáticas, as formas
de escrever, os pressupostos seguidos, entre outros, é importante entender como tem ocorrido a própria
formação em História, os parâmetros utilizados, as perspectivas privilegiadas, o que é enunciado e o que
é silenciado. Do mesmo modo, é preciso expandir o entendimento da formação e do currículo para além
da instituição, abrangendo também demandas e trajetórias discentes, bem como suas expectativas,
anseios e entendimentos do que seja o fazer historiográfico.
A reprodução da perspectiva eurocêntrica na formação em História, tanto nos conteúdos quanto
na forma, reforça a necessidade de buscar deslocamentos na produção de conhecimento na História,
lançando um olhar crítico para aquilo que aprendemos como nosso e nunca nos pertenceu. Desde a
obsessão pela raiz europeizada dos sobrenomes, pela aparência embranquecida, pelos casarões
setecentistas, pelo “barrococó”, chegando a um processo de fetichização dos elementos que considera
“ex-óticos”, pois já não entende a si mesmo como integrante e parte de uma sociedade culturalmente
plural. Como resultado, nossa sociedade está imersa em um complexo eurocêntrico repleto de
referências e conceitos que não ressoam em nossas vivências.

193
O discurso da história nacional [brasileira], dessa forma, pode ser compreendido com a
canonização de um “nós” como sujeito coletivo e excludente, provocando o deslocamento forçado de
grandes contingentes de indígenas, afrodescendentes e pessoas mestiças para as margens dessa
subjetividade oficial de nossas nações, subjetividade colonizada, sancionada pelo Estado e reproduzida
pela escola. [...] Esse discurso encoberto sobre o outro, que é a história dos livros oficiais, sem dúvida,
conduzirá à formação de um olhar excludente dirigido para sujeitos que carregam a marca de outras
histórias (SEGATO, 2021, p. 333).
Entendendo que estudantes da graduação em História produzirão conhecimentos que serão
referências no futuro, este trabalho busca refletir sobre as atuais dinâmicas de alcance de perspectivas
anti, pós, contra, des e decoloniais no ambiente acadêmico. Ao voltar o olhar para a formação em
História em um curso de graduação de referência, aciono as questões provocadoras “O que é o fazer
da(o) historiadora? / O que é o fazer historiográfico?” para entender as propostas curriculares da
instituição e a construção profissional de historiadoras(es). Tais provocações permitem vislumbrar
fissuras produzidas a partir de deslocamentos de uma visão eurocentrada do próprio papel e função de
historiadoras(es) e do fazer historiográfico. Entendendo que a História seria “o estudo das ações do ser
humano no tempo”60, como ensinado nas graduações, é preciso ir além, buscando entender quem
estuda, quem é estudado, em quais períodos de tempo e lugares e sob quais vieses.
É importante destacar que as discussões sobre a temática decolonial são vistas com interesse
em universidades situadas no Nordeste (UFPB, UFBA), Norte (UFPA), Sul (UFRGS, Unila) e no Centro-
Oeste (UnB). As instituições aqui citadas têm buscado debater novas possibilidades de formação,
incluindo atividades formativas sobre narrativas não-hegemônicas e as contribuições do pensamento
decolonial para se pensar teoria e metodologia na História. Assim, a questão não é se afloramentos
desnorteadores ocorrem na formação em História da universidade escolhida, mas como ocorrem em um
ambiente, aparentemente, inóspito a eles. É de interesse deste trabalho perceber as dinâmicas que
permeiam a insurgência destes afloramentos em meios saturados pelo colonialismo interno. No caso de
Minas Gerais, particularmente, a investigação acerca dos afloramentos desnorteadores se mostra
interessante para compreendermos quais as dinâmicas produzidas por estes dentro de um Estado
altamente orgulhoso de sua herança colonial. Uma colonialidade presente em sua arquitetura,
patrimônios e, até mesmo, em seus modos de sociabilidade que ganharam uma alcunha própria, a
“mineiridade”61.

PALAVRAS-CHAVE: graduação em história; colonialidade do saber; decolonialidade; mineiridade.

REFERÊNCIAS

60 Lucien Le Febvre tornou clássica a afirmação de que o objeto de estudo da história [com agá maiúsculo] seriam as ações do
homem no tempo.
61 A mineiridade é um termo cunhado por Gilberto Freyre em 1946, quando de sua conferência denominada “Ordem,
liberdade, mineiridade”, exaltando o caráter político dos mineiros por meio de uma análise histórico-geográfica. Ao longo
do tempo, o termo foi utilizado por diversos estudiosos, especialmente na área da historiografia social, passando por
revisões que ampliaram o sentido do termo para descrever aspectos tais como a conciliação e a representação de uma
ideologia da elite mineira.

194
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura Souza;
MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
RIVERA, Tania. Ensaio sobre o espaço e o sujeito: Lygia Clark e a psicanálise. Ágora, Rio de Janeiro, v.
11, n. 2, dez./2008, p. 219-233. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/agora/a/Mr9CthxNTP5vJRG7kBPGjZt/?lang=pt . Acesso em: 03 nov. 2022.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax vtxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos
colonizadores. São Paulo: N-1, 2021. 128 p.
SEGATO, Rita. Colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar
do Tempo, 2021. 346 p.

195
O GIRO EPISTÊMICO E SUAS NUANCES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE QUÍMICA NA
AMAZÔNIA AMAPAENSE

Ramon de Oliveira Santana


Doutor em Educação em Ciências. Professor do Colegiado de Química vinculado à Universidade do Estado do
Amapá. ramon.santana@ueap.edu.br

Como cheguei aqui

Em 2014, fui morar em terras amapaenses. Para chegar ao lado esquerdo do maior rio, preciso
de um barco ou, sendo um pouco mais moderno, um avião. Um grande rio divide meus mundos.
Expressão que usei por bastante tempo, mas na Amazônia aprendi que o rio tem o papel de unir, as
pessoas, as comunidades e suas histórias. Dizem que é o maior rio do mundo. Para quem cresceu e
brincou em um chão de terra batida, agora tenho os braços desse grande rio como estradas, ruas e
rodovias. Levo na mochila os saberes da academia, são 6 anos de formação, fiz graduação e mestrado,
ancorado nos padrões academicistas posso dizer que estou pronto. Consigo categorizar, classificar e
perfeitamente padronizo as realidades. Trago dentro da mochila saberes e fazeres que experimentei na
minha infância e adolescência. A cana de açúcar, a agricultura familiar, a castanha do caju são os
saberes ancestrais que, até então, foram menosprezados na academia.
Viajando pelas novas ruas (figura 1), em sua grande maioria fluviais, a bordo do Regatão – ouvi
de muitos ribeirinhos que o Regatão foi bastante usado por atravessadores, os quais exploraram os
produtos dos ribeirinhos – trago-lhes um regatão ressignificado; a figura de levar algo para explorar vem
sendo trocada pela imagem de troca de saberes, na qual a gente mais aprende do que ensina. Encontrei
o Marabaixo, o açaí de verdade e os povos da Amazônia. No início, perdi muito tempo, fui formando
professores comparando e classificando, mas na sala de aula, com o diálogo no meu coração, encontrei
outros saberes, totalmente diferentes da minha formação em licenciatura em Química. Como vou
categorizar? Como vou padronizar? As histórias são contadas oralmente, não existem livros, registros,
lembrei da minha avó, sentada na beira do fogão de lenha contando a história que a avó da avó dela
tinha contado.

196
Figura 1 – Imagem que representa as minhas viagens pelo rio Amazonas. Fonte: Kaic Costa, 2019.

Minha prática formando professores de Química precisava mudar, sim, claro, com certeza. O
Cordel me preparou o Marabaixo, a castanha do caju o meu açaí, e minha pedagogia que sempre me
deu autonomia, comunicação e liberdade aflorava para aquela diversidade de saberes.
Fiz uma escolha, decidi mergulhar nessa nova realidade, os cheiros, as cores, os corpos falam, a
mente registra e a boca compartilha. Há 3 anos, visitando uma comunidade à beira do Araguari, veio uma
nova cosmovisão, meu coração pulsando, há tempos gritava, e as águas correntes do Araguari falavam
em voz alta: “Minhas águas são correntes e desembocam no mar, muitas vezes me perguntei, mas por
que ir até o mar? Em frações de segundos, me vem a resposta, lá encontro águas diferentes, são
mundos diferentes, mas não posso me isolar, venho aqui para dialogar, você sabe fazer isso? Você
precisa dialogar”.
Naquela noite, fui dormir com aquilo na cabeça, sim, o rio deu um sinal. Aprendi nos últimos anos
que preciso ouvir meu coração, que a natureza fala, e o recado foi dado. Lembro que, ao som das
correntezas do rio batendo nas pedras à sua margem, uma palavra ressoava, resgatando dentro do meu
coração a minha nova missão: Ramon, é preciso dialogar, dialogar, dialogar (figura 2).

197
Figura 2 – Experiência de ouvir a natureza. Para pensar em práticas pedagógicas. Fonte: Kaic Costa, 2019

Resolvi expandir minhas fronteiras, seguindo o meu destino, compreendi minha missão, o mundo
precisa de diálogo, mesmo diante de todas as situações. Na expansão levo meu povo, meus costumes,
minha história e minhas experiências. Convivo com realidades que não concordo, discordo
veementemente, mas sei que todos colhem aquilo que plantam, não preciso me justificar, tenho dentro
de mim a certeza da minha missão, pois o diálogo é com todos, esse é o meu destino e preciso aceitar.

Giro epistêmico, nossas escolhas, minhas rupturas

Então, venho rompendo a dicotomia, deixando as análises unilaterais e bilaterais de lado, somos
diferentes, mas o diálogo é o caminho. Não tem como comparar, classificar ou quantificar. Mas comparo,
classifico e quantifico, tenho análises unilaterais e bilaterais, visto que, no diálogo, preciso silenciar, pois
só assim o outro pode crescer e se formar. Vejo que, com o tempo, o outro também aprende a
importância do silêncio, para que minhas ideias possam surgir. São mundos diferentes, mas, respeitando
o silêncio do outro, o que surge é a beleza do outro.
Aprendi com os povos da floresta que o aprendizado acontece no dia a dia, não se tem aulas e
muito menos lição, aqui se vive, observa e sente. Essa experiência que atravessou meu ser vem me
ajudando na formação de professores de Química na Amazônia amapaense. As narrativas dos
acadêmicos vão ganhando força e resistência e aos poucos vamos dialogando com os teóricos da
academia.

198
Que o nosso trabalho inspire cada vez mais jovens pesquisadores a entenderem a necessidade
de se envolver com a sua realidade, compreendendo as linguagens do mundo e reforçando em seu
coração a sede de justiça cognitiva.

PALAVRAS-CHAVE: narrativas autobiográficas; educação libertadora; formação de professores.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2013.
FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. 31ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
FREIRE, P.. Pedagogia do Oprimido. 29ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

199
CORPO FEMININO NEGRO E O PROCESSO DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA

Juliana Soares de Jesus


Licenciada em Pedagogia e Mestranda em Educação PPGE-UEFS. Professora da rede pública e privada de Feira
de Santana-BA. julisoares808@gmail.com

Eduardo Oliveira Miranda


Professor Doutor da Universidade Estadual de Feira de Santana.

Este é um ensaio fruto da disciplina Estado, Sociedade e Educação que compõe o currículo do
curso de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e tem como
objetivo discutir de que forma os corpos femininos negros oportunizam o processo de acumulação
capitalista na sociedade.
Trata-se de um trabalho de caráter bibliográfico, ancorado metodologicamente em referências
como Almeida (2019), que discute a partir do conceito de racismo estrutural, Carneiro (2011), que aponta
as políticas públicas descentralizadoras como reparação histórica/social, e Federici (2017) em uma
perspectiva a partir do estudo histórico, no qual demonstra que a discriminação contra as mulheres parte
de um projeto pensado para manter a sociedade capitalista construída sob o pilar da diferença sexual
atribuindo novas funções sociais. No que se refere à problematização da superexploração do trabalho
para reprodução do capital a serviço do Estado, são observadas também a ausência de investimento e a
descontinuidade de políticas públicas pensadas para grupos oprimidos historicamente.
É necessário problematizar as relações de acumulação capitalista a partir dos corpos femininos
negros, pois estes se localizam na base da pirâmide social e sofrem com a força coercitiva do sistema
capitalista, branco, heteronormativo e patriarcal, e que há longos anos serve como um dos principais
meios de reprodução a serviço da manutenção de poder do Estado.
Nesse contexto, a exploração do trabalho é elemento fundamental para a manutenção do projeto
de colonização que utiliza das formas de poder e naturaliza a super exploração dos corpos, consistindo
em baixa remuneração para a reposição da força de trabalho. Essa é uma situação comum na realidade
do povo negro: um trabalhador ou trabalhadora não consegue apenas com o seu salário manter a própria
família ou o faz com bastante dificuldade, situação que se repete independentemente das horas que são
trabalhadas e se torna ainda mais agravante nos lares em que a mulher é a única responsável financeira
pela família. Como apontado por Almeida (2019), a superexploração do trabalho está presente de
maneira acentuada na chamada “periferia do capitalismo”, onde a lógica colonialista está fortemente
instalada. E essa periferia é exatamente o lugar em que estão agregados os grupos oprimidos
socialmente e que não dispõem de bens sociais e culturais que possam tensionar a estrutura imposta
historicamente.
Com isso, outros mecanismos de opressão são utilizados para liberar os elementos que
sustentam a sociedade capitalista como o racismo, a expansão colonial e a violência nos processos de
acumulação primitiva de capital. O que se pode notar é que a institucionalização das diferenças raciais e

200
de gênero é que sustenta que as relações de trabalho vivam à mercê do capital, visto que a
discriminação racial e as políticas do Estado também promovem a desqualificação enquanto indivíduo.

Corpos femininos negros e a reprodução a serviço do Estado

A reprodução destinada às mulheres passou a ser pauta de discussão em rodas de conversas,


grupos e encontros que têm por finalidade falar dos direitos da mulher a partir de um olhar feminista. As
ações de dominação direcionadas aos corpos femininos, por séculos, são instauradas por duas grandes
instituições de poder soberano: a Igreja e o Estado, que historicamente declaram guerra aos corpos
rebeldes, à autonomia e ao autoconhecimento pertencentes às mulheres nos domínios da sua vida.
A estrutura global racista se sustenta nas relações de produção baseadas no controle do trabalho
e do corpo negro, sobretudo de corpos femininos, que se sustenta e fortalece o capitalismo. Desse
modo, Quijano (2005) definiu como capitalismo mundial, sendo uma de suas formas de exploração
expressa na distribuição racista do trabalho, na qual passa a existir a associação do trabalho não pago
ou não assalariado às classes dominadas, porque eram consideradas inferiores, e ao salário e postos de
administração como privilégio dos brancos. É nesse sentido que o Estado em sua racionalidade atua
como uma tecnologia de opressão da classe dominante pela coação física ou por meio de discursos
ideológicos que sustentam o poder e a dominação.
Devido à expansão capitalista/neoliberal, do fundamentalismo religioso e das políticas fascistas
patriarcais, a lógica da reprodução a serviço do Estado funciona com sucesso, visto que as expressões e
práticas se sustentam de maneira eficaz através da exploração dos corpos femininos. O controle
reprodutivo age sobre esses corpos femininos ou feminizados e também na eliminação física ou
simbólica destes, sobretudo nos corpos negros, sendo uma herança colonial que desmistifica a natureza
democrática da sociedade capitalista. Nesse pensamento, Federici (2017, p. 107) contextualiza que:
O Estado tornou-se o gestor supremo das relações de classe e o supervisor da
reprodução da força de trabalho – uma função que continua desempenhando até os dias
de hoje. No exercício desse poder, em muitos países foram criadas leis que estabeleciam
limites ao custo do trabalho, fixando o salário máximo [...] e incentivavam os trabalhadores
a se reproduzirem (FEDERICI, 2017, p. 107).

Os avanços alcançados no que tange à problemática da acumulação do capital através dos


corpos femininos surgem de um contexto de lutas de movimentos sociais, que criam perspectivas
positivas para o enfrentamento de antigas ideologias a partir de um enfrentamento promovido pelas
políticas públicas. A urgência de implementação dessas políticas surge de um lugar de reconhecimento
da invisibilidade humana feminina que condena a discriminação.
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo evidencia as mulheres como sujeitos
políticos que assumem um papel social a partir do lugar em que estão inseridas. A relação entre política e
representação social é uma das mais importantes no que se refere à garantia de direitos femininos, por
esse motivo é necessário rever e tensionar as relações de poder que se sobrepõem ao respeito aos
corpos femininos. Conforme aponta Sueli Carneiro (2018, p. 102):

201
O que devemos abominar é um processo histórico que transformou seres humanos em
mercadorias e instrumentos de trabalho. E, depois de explorá-los por séculos, destinou-os
à marginalização social.
A adoção de ações compensatórias deve ser a expressão do reconhecimento de que é
chegada a hora de o país se reconciliar com uma história em que o mérito tem se
constituído em um eufemismo para os privilégios instituídos pelas clivagens raciais
persistentes na sociedade (CARNEIRO, 2018 p. 102).

Considerações finais

Pesquisar a partir da perspectiva étnico racial é pensar a lógica estruturante da exploração dos
corpos femininos que se sustentam em lugares de subalternidades e exploração. No Brasil esses são
vestígios deixados também pelo processo de colonização do território, iniciando as desigualdades e
discriminações no espaço geográfico e aos corpos femininos negros.
A discussão lança luz sobre a questão do controle dos corpos para o desenvolvimento de um
regime patriarcal sustentado pelo poder estatal que se mantém garantido por meio da ascensão do
capitalismo e do sexismo. Esse é também um ataque genocida contra os corpos femininos reafirmado
diariamente na medida em que humanidades são negadas, tornando os corpos reféns da
superexploração do trabalho e da acumulação do capital.

PALAVRAS-CHAVE: corpo negro; capitalismo; colonização.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo :Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. De Coletivo
Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO,
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

202
NEGRO(AS) E BRANCOS(AS) EM CARREIRAS DE PRESTÍGIOS SOCIAIS

Prof. Dr. Sérgio Pereira dos Santos (UFMT)


Prof. Dr. Emerson Ferreira Rocha (UnB)

Com a estruturação determinista de raça pela via de uma racialização, seja na ordem biológica,
seja na cultural, dentro do desenvolvimento histórico de relações raciais produtoras de desigualdades
raciais, o uso da categoria raça se faz necessário como instrumento, espectro analítico e sociológico de
compreensão das posições e dos tipos contatos (harmônicos, conflituosos, negociados) entre sujeitos/as
negros/as e brancos/as portadores/as de distintas marcas raciais e fenotípicas localizadas em diferentes
estruturas de poder hierarquizadas, ora produtoras de desigualdades raciais, ora de privilégios raciais.
A partir das atividades de pesquisa em andamento de um estágio pós-doutoral em Sociologia pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPS) da Universidade de Brasília (UnB), a pesquisa
objetiva: analisar as narrativas de vida de negros/as e de brancos/as sobre suas trajetórias em carreiras
de prestígio social; Compreender os impactos do racismo e das dimensões deste nos processos de
afirmação/negação das identidades de negros/as egressos de cursos de prestígios; Analisar as
influências da branquitude (dos privilégios raciais) nos processos de afirmação/negação das identidades
brancas considerando as amplitudes e possíveis limitações disso na luta antirracista.
Para ajudarmos no entendimento das narrativas de vida sobre trajetórias de brancos/as e
negros/as em carreiras ditas de prestígios sociais, consideramos alguns debates clássicos e candentes
no campo de pesquisas sobre relações raciais brasileiras, muitos revisitados nas vivências e nas
investigações científicas, principalmente no contexto político de implementação das políticas de ações
afirmativas nas universidades brasileiras, a partir dos anos 2000. Sobre esses estudos, destacamos a
ascensão social vertical ascendente da população negra e suas relações com a negação e/ou afirmação
das identidades negras em contextos racializados (AZEVEDO, 1955; FIGUEIREDO, 2002; PEREIRA,
2001; JAIME, 2016; SANTANA, 2020); a discussão acerca da invisibilidade e/ou nomeação branca em
seus processos de naturalização e perpetuação de privilégios raciais e o impacto da branquitude crítica
na luta antirracista (RAMOS, 1957; BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2014; CARDOSO, 2014).
Nesse contexto, a identidade negra é pressuposto de um processo construído historicamente em
uma sociedade que padece de um racismo ambíguo e do mito da democracia racial controladores dos
níveis de desigualdades raciais com a pecha de que a mestiçagem une o Brasil a ponto de não penetrá-
lo qualquer nível de desigualdade racial. Portanto, como qualquer processo identitário, a identidade
negra se constrói no contato com o outro, no contraste com o outro, na negociação, na troca, no conflito
e no diálogo (GOMES, 2006); assim, para ser negro/a no Brasil, é tornar-se negro/a. Portanto, para
entender o tornar-se negro/a num clima de discriminação é preciso considerar como essa identidade se
constrói no plano simbólico, seja aos valores, às crenças, aos rituais, aos mitos, à linguagem (SOUZA,
1983).
Nesse intento, consideramos a intensificação do racismo nos processos de afirmação e negação
das identidades negras, assim como a dimensão da branquitude nos processos de afirmação e negação

203
das identidades brancas. Para isso, como procedimento metodológico, nos alicerçamos numa pesquisa
qualitativa (YIN, 2016), de perspectiva etnossociológica (BERTAUX, 2010), tendo as narrativas de vida
como instrumento de coleta de dados. A perspectiva etnossociológica, como uma pesquisa empírica, nos
ajuda a estudar um fragmento particular da realidade social-histórica constituído por um objeto social. Ela
permite a compreensão de como esse objeto funciona e se transforma, evidenciando as configurações
de relações sociais, os mecanismos, os processos e as lógicas de ação que o caracterizam.
A pesquisa tem uma amostra de 43 entrevistas, com profissionais negros/as e brancos/as
formados/as em 12 diferentes cursos de prestígio social de diversas instituições de ensino superior
públicas e privadas do Brasil, como: Medicina, Direito, Psicologia, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia
Civil, Relações Internacionais, Tecnologia Mecânica, Engenharia Elétrica, Engenharia Química, Ciência
da Computação, Marketing e Economia.
Alguns dados parciais da pesquisa apontam para o fato de que o acesso e a permanência da
população negra em carreiras de prestígios e de status social se constituem em estratégia mestra de, no
âmbito educacional, integrar o/a negro/a no ensino superior, espaço no qual a categoria raça sempre se
efetivou.
Os dados também apontam para o fato de que, em que pesem todos os esforços de ajustamento
social de negros e negras em cursos de prestígios sociais, como é o caso da Medicina, por exemplo,
eles/elas sofrem a ferida do preconceito racial, configurando a “cicatriz secreta”, que pode ser trazida à
luz do dia, seja por processos psicanalíticos, por meio do sonho, seja por “válvulas de escape”, como por
algum subterfúgio social, seja por um conflito racial.
Há a indicação de aspectos relevantes adstritos à narrativa de vida de brancos/as para
pensarmos a branquitude, como a criticidade e a não criticidade de perceber os seus privilégios raciais e
de outras pessoas brancas; diante de uma publicidade maior das lutas e das políticas antirracistas na
atualidade, alguns teriam uma maior dificuldade, disfarces e freios aprendidos sobre discursar
racialmente para se evitar a gravidade da raça.

PALAVRAS-CHAVE: negritude; branquitude; carreiras de prestígio; narrativas de vida; relações raciais.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Thales de. As elites de cor: um estudo de ascensão social. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1955.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO,
Maria Aparecida Silva (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e
branqueamento no Brasil. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 25-57.
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. São Paulo: Paulus; Natal: EDUFRN,
2010.
CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil.
2014. 290f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Unesp, Araraquara, 2014. Disponível em:

204
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115710/000809900.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Acesso em: 05 mar. 2022.
FIGUEIREDO, Angela. Novas elites de cor: estudo sobre os profissionais liberais negros de Salvador.
São Paulo: Annablume/ Sociedade Brasileira de Instrução/ Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2002.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
JAIME, Pedro. Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial. São Paulo: Edusp
Editora Universidade de São Paulo; Fapesp, 2016.
PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, profissão e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. 2. ed.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Patologia social do “branco” brasileiro. In: RAMOS, Alberto Guerreiro. A
introdução crítica a Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957. p. 171-202.
SANTANA, Ivo de. Negros de prestígio e poder: ascensão social, estilos de vida e racismo na cidade
de Salvador. Rio de Janeiro: Ape´Ku, 2020.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e
poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. 2. ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. (Coleção tendências, v. 4).
YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016.

205
REPENSAR AS TEORIAS DO BRASIL POR MEIO DAS AUTORIAS INDÍGENAS: REFLEXÕES A
PARTIR DA ANÁLISE DA OBRA DE DARCY RIBEIRO

Natiele Rosa de Oliveira


Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, campus Ouro Preto.
Doutora em História pela UNICAMP. natiele.oliveira@ifmg.edu.br

No dia 31 de agosto de 2022, o jovem Oyniin Suruí, pertencente ao povo indígena Paiter Suruí,
habitantes da região localizada entre os atuais estados brasileiros de Rondônia e Mato Grosso, fez uma
postagem emblemática em uma rede social. Sob um vídeo em que um homem branco aparecia
apontando uma arma de fogo para um grupo de manifestantes indígenas, Oyniin Suruí escreveu a
seguinte legenda:
Um homem falou pra mim que ‘não tem que ter essa divisão toda, somos todos
brasileiros’, se referindo a essa cena ocorrida hoje em que um homem à paisana se
dizendo policial aponta uma arma para manifestantes Pataxó, Tupinikim, Krenak e
Maxakali na BR 116 em Governador Valadares – MG. Ele não se incomodou com o
homem da arma, se incomodou com os indígenas na BR. Pois bem, fora o fato de que
antes de ser Brasil isso aqui é Pindorama, fiquei pensando sobre quem é quem nesse
‘todos brasileiros’ dele. De que lado desse ‘todo’ você está, no lado de quem tem a arma
na mão ou no lado de quem tá na mira da arma? Isso faz toda diferença para o teu
conceito de unidade nacional (SURUÍ, 2022).

Talvez possa soar estranho, incorreto ou no mínimo curioso para os padrões acadêmicos
convencionais que este texto se inicie com a citação de uma postagem de rede social, ao invés de uma
passagem de um livro ou de um artigo acadêmico. Não se trata, contudo, de um desmerecerimento do
valor de nossas instituições de ensino e pesquisa (tão atacadas nos últimos anos), nem dos legítimos
veículos de divulgação da produção de conhecimento. Mas, justamente a este respeito, é pertinente
destacar que a postagem de Oyniin Suruí abre alguns pontos importantes de reflexão.
O primeiro deles refere-se ao próprio espaço destinado aos saberes, às narrativas e reflexões
produzidas por sujeitos pertentencentes a grupos historicamente marginalizados no interior dos debates
públicos e acadêmicos brasileiros. O segundo diz respeito à nossa própria ideia de brasilidade e a partir
de quais perspectivas refletimos acerca do que, comumente e genericamente, chamamos de “realidade
brasileira”.
Em relação a este último aspecto, uma gama de autores que foram e são tradicionalmente
alçados ao posto de “intérpretes do Brasil” buscaram, em diferentes momentos, refletir sobre a formação
histórica do país. Mas quem, em geral, formula a pergunta sobre o caráter da nacionalidade? A quem
coube historicamente a tarefa de “teorizar o Brasil”? Em que termos essas teorizações são formuladas? A
partir de quais lugares sociais e epistêmicos elas se colocam? Que outras questões e saberes elas
silenciam e interditam? Como linguagens políticas se gestam por meio das intepretações do Brasil
criadas a partir dessas tradições intelectuais? De que modo determinados grupos, como os povos
indígenas, foram discursivamente construídos a partir de todos esses procedimentos?
Essas são algumas das indagações que constituem, grosso modo, o cerne de problematizações
propostas neste trabalho. Buscarei colocá-las a partir da análise de parte da obra do antropólogo, político

206
e educador Darcy Ribeiro. A escolha pela análise do trabalho do autor, além de dar continuidade a
reflexões realizadas anteriormente (OLIVEIRA, 2022), se dá também em razão do importante papel
exercido por Ribeiro, tanto por meio de sua atuação política quanto por meio de sua obra, nos debates
acerca da situação dos povos indígenas no interior do Estado brasileiro. Deste modo, é possível
perceber que sua “Teoria do Brasil” esteve fortemente permeada por um discurso indigenista,
compreendido aqui em um sentido mais amplo, como um leque de construções discursivas construídas
sobre a condição indígena (OLIVEIRA, 2022).
Neste sentido e em consonância com reflexões oriundas do campo da historiografia indígena e da
antropologia, este trabalho afirma a importância de refletir sobre a produção de “relatos e documentos
que formaram uma larga parcela do senso comum sobre a história dos índios no Brasil” (ARRUTI, 2013,
p.8), evidenciando, assim, “as relações de poder que regem tais registros escritos ou imagéticos”
(ARRUTI, 2013, p.8). Afinal de contas, como argumenta Tracy Guzmán, desde a retórica política e
cultural da independência, passando pelo desenvolvimento dos discursos nacionalistas do século XX até
a emergência do mais recente multiculturalismo liberal, “o indígena tem sido uma figura maleável que
pode ser moldada ou “jogada” de acordo com as exigências da situação” (GUZMÁN, 2013, p.19).
Aos poucos, porém, tem-se reconhecido a relevância e urgência de buscar os significados
próprios atribuídos pelos povos indígenas aos processos históricos por eles vivenciados e
protagonizados (FERNANDES, 2022). Atualmente, inclusive, um número crescente de pesquisadores
indígenas, que têm conquistado mais espaço nos meios acadêmicos, vem reescrevendo a história
desses povos e trazendo nova luz a certas percepções anteriormente arraigadas (CORRÊA XAKRIABÁ,
2018). Com isso, emergem trabalhos nos diferentes campos das ciências humanas que buscam
evidenciar a lógica própria, inerente às suas formas de experienciar o mundo, por meio das quais os
sujeitos indígenas atuam sempre de acordo com as possibilidades que se apresentam a eles disponíveis,
mesmo reconhecendo a inegável marca de assimetria nas relações de poder constituídas (ALMEIDA,
2017, p.23).
Partindo destas questões, proponho uma análise das teorizações de Darcy Ribeiro sobre a
formação do Brasil, feita a partir de narrativas de autoria indígena (PORTELA; NOGUEIRA, 2016),
buscando privilegiar o modo como diferentes pensadores indígenas vêm colocando indagações acerca
dos termos em que se realiza a produção de conhecimento sobre estes povos e sobre a própria história
do Brasil. Assim, defendo que o diálogo com os saberes indígenas, além de constituir-se como um
importante exercício ético, político e epistêmico, contribui para colocar em movimento o discurso de
autores como Ribeiro, situando-os em relação a seu contexto de formulação, mas sem deixar de indagar
sobre suas ressonâncias e limites de apropriação no tempo presente.

PALAVRAS-CHAVE: teoria do Brasil; indigenismo; autoria indígena; epistemologias indígenas; Darcy


Ribeiro.

REFERÊNCIAS

207
ALMEIDA, Maria Celestino de. Os índios na História: avanços e desafios das abordagens
interdisciplinares – a contribuição de John Monteiro. História Social, Campinas, n.25, 2013, p.19-42.
ARRUTI, José Maurício. John Monteiro e o projeto ampliado de história indígena: apresentação do
Dossiê História e Índios. História Social, Campinas, n.25, 2013.
CORRÊA XAKRIABÁ, Célia Nunes. O barro, o genipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria
Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Sustentável). Brasília: UnB, 2018.
FERNANDES, Juliana Ventura S. A guerra dos 18 anos: uma perspectiva Xakriabá sobre a ditadura e
outros fins de mundo. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022.
GUZMÁN, Tracy. Native and national in Brazil. Indigeneity after independence. North Carolina:
University of North Carolina Press, 2013.
OLIVEIRA, Natiele. Corpos transitórios: a utopia Brasil e o discurso indigenista de Darcy Ribeiro (1968-
1997). Tese (Doutorado em História). Campinas: UNICAMP, 2022.
PORTELA, Cristiane de Assis, NOGUEIRA, Mônica Celeida Rabelo. Sobre o indigenismo e autoria
indígena no Brasil: novas epistemologias na contemporaneidade. História Unisinos, São Leopoldo, v.
20, n.2, pp. 154-162, 2016.
SURUÍ, Oyniin. Postagem no Instagram, em 31 de agosto de 2022. Disponível em:
https://www.instagram.com/oyniin_surui/. Acesso em: 31 de agosto de 2022.

208
A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E A PRESENÇA DE INDÍGENAS EM SALA DE AULA: PROCESSOS
E DESAFIOS PEDAGÓGICOS

Karollyne Andrade de Sousa

Nesta comunicação apresento alguns elementos parciais da minha experiência no Programa de


Iniciação Científica – PROIC da Universidade de Brasília – UnB, que está sendo realizada no âmbito da
Faculdade de Educação – FE/UnB, com apoio da FAP/DF. O tema da minha pesquisa são os processos
e desafios pedagógicos para uma educação intercultural no Distrito Federal, considerando a presença de
estudantes indígenas em escolas da rede pública. Estou interessada em conhecer os processos de
aprendizagem de estudantes indígenas que frequentam o sistema universal da educação básica.
A presença de estudantes indígenas traz alguns desafios para o currículo e as práticas
pedagógicas do sistema universal. Segundo as leis vigentes o sistema de ensino deve respeitar a
diversidade cultural indígena. Atualmente, no Distrito Federal vivem aproximadamente 6.128 mil
indígenas, principalmente nas regiões do Plano Piloto, Ceilândia, Planaltina e Samambaia (CODEPLAN,
2015). A presença indígena na capital do país enriquece a diversidade cultural do DF e coloca desafios e
horizontes para o sistema de educação.
A Lei nº 11.645/2008 torna obrigatório o ensino sobre a História e as culturas dos povos
indígenas, conforme o texto a seguir:
Art. 1.º O Art. 26-A da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a
seguinte redação: Artigo 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena. § 1.º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e
dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e
indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2.º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas
brasileiros serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial nas áreas
de educação artística e de literatura e história brasileira. (BRASIL, 2008)

Nesse sentido, a Lei nº 11.645/2008 tornou efetivo o estudo da temática indígena em sala de aula
e estabeleceu de forma obrigatória conteúdos programados, sugerindo às áreas do conhecimento que
tratem como forma prioritária sobre está temática. Graças à esta lei os temas como diversidade e
interculturalidade saíram do plano de currículo e foram para o seu devido lugar, que é para o cotidiano
dos alunos nas escolas. Contudo a maneira como algumas instituições de ensino abordam este tema
vem causando divergências de opiniões, devido ao fato de que desenvolvem conteúdos de forma
errônea, que auxilia a produzir mais preconceitos e estereótipos contra os povos indígenas. Existem
outras leis e decretos que asseguram a educação escolar indígena através da educação intercultural,
específica e bilíngue, dentre outros direitos educacionais. É uma das formas para que possam ter o
reconhecimento e respeito de suas culturas e formas de viver de todas as 305 etnias indígenas que são
reconhecidas no país que as escolas insistem em ignorar.

209
A Educação Escolar indígena é considerada pelos povos originários dessa comunidade e os
demais grupos que se consideram apoiadores das causas e dos direitos indígenas como uma
modalidade da educação básica que garante a esses povos a recuperação de suas histórias, vivências,
memórias, também, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e crenças
e o acesso às informações, essas que, ao decorrer da colonização, foram sendo apagadas, excluídas e
inferiorizadas.
É imprescindível pontuar que documentos e leis normativos, como a LDB e a Constituição
Federal, garantem o direito dos indígenas de terem uma educação diferenciada, específica, bilíngue e de
qualidade. Dessa forma, devem ser valorizadas suas línguas e ciências e a garantia aos povos indígenas
do acesso às informações, sem que seus valores e culturas sejam ignorados.
Na prática, essa educação ocorre nas aldeias por meio da própria pedagogia dos povos
indígenas como suas vivencias e saberes compartilhados. Vale ressaltar que o papel da educação
indígena é reafirmar as identidades étnicas, dessa forma valorizar suas línguas e ciências e garantir aos
indígenas e as suas comunidades o acesso às informações, sem que seus valores e culturas sejam
ignorados. Para tanto, as instituições formais terão seus calendários adaptados junto aos indígenas e
suas crenças.
De acordo com o livro “Educação Escolar Indígena no Século XXI: encantos e desencantos”, os
territórios Etnoeducacionais são áreas territoriais específicas que dão visibilidade às relações interétnicas
construídas como resultado da história de lutas e reafirmação étnica dos povos indígenas, e visam
garantir seus territórios, políticas especificas como nas áreas da saúde, educação e desenvolvimento. Os
Territórios Etnoeducacionais (TEE) foram criados a partir do Decreto nº 6.861, de 27 de maio de 2009,
que estabelece sobre a educação escolar indígena, determina que os sistemas de ensino possam passar
a atender às demandas educacionais dos povos indígenas a partir de unidades etnoterritoriais que
abrangem: terras, línguas, relações sociais, culturais e políticas específicas como base administrativa e
pedagógica. Os povos indígenas continuam empenhados em cobrar do governo para que dê
continuidade à concretização dos Territorios etnoeducacionais, viabilizando fortalecer uma educação
escolar indígena mais especifica e de qualidade. Sem o decreto existe a possibilidade de retorno a
antigas pautas de federalização das políticas de educação escolar indígena, que seria muito prejudicial a
essas pessoas, poderia causar um grande retrocesso nas conquistas por seus direitos fundamentais que
demoraram anos para que fossem legitimados e reconhecidos pelo governo.
A pesquisa atual que está sendo realizado com o tema “a educação intercultural e a presença de
indígenas em sala de aula: processos e desafios pedagógicos”, visando estudar sobre como acontecem
as relações interculturais no cotidiano da escola classe 115 Norte, no Distrito Federal. Esta escola foi
inaugurada no dia 13 de março de 1984 e atualmente é responsável por 300 estudantes que moram nos
arredores do Plano Piloto. Segundo o Projeto Político Pedagógico (PPP), a instituição se guia pelos
valores da Amorosidade, Respeito, Responsabilidade, Autonomia, Liberdade, Honestidade e Justiça.
Esta escola foi escolhida para a realização da pesquisa porque a instituição tem em seu horizonte
uma perspectiva intercultural. Os objetivos específicos previstos no PPP enfatizam sobre “elaborar
espaços múltiplos e flexíveis de aprendizagem e ensino, incluindo o território educativo”, ou seja

210
destacam ainda que “o território educativo são as pessoas, culturas e espaço de acolhimento de todas as
dimensões humanas na busca de um espaço de troca que envolve sentimentos, renovação e criações,
aprender, ensinar na diversidade com autonomia, responsabilidade, amorosidade e respeito a
singularidade, trocas de saberes e vivências”.
Essa perspectiva está expressa no calendário da escola como a realização da festa da cultura
popular em julho, festa da família em agosto, festa afro Brasileira em novembro, e a última é chamada de
festa do encerramento do ano letivo em dezembro. Em todas essas comemorações existe um espaço
reservado para os povos indígenas. A escola está localizada bem próximo da comunidade indígena do
Santuário dos Pajés, e os pais de estudantes ou mesmo os que moram nas proximidades são
convidados a mostrar um pouco de suas tradições e cultura para os convidados, expor e comercializar
seus artesanatos. Logo, a escola classe 115 Norte valoriza a troca de saberes e as cosmologias dos
estudantes, visto que existe a presença de discentes indígenas nesse local. São cerca de 8 estudantes
indígenas que estão matriculados no 3°, 4° e 5° anos do ensino fundamental nessa escola; 3 desses
alunos estudam no período matutino e os outros 5 no período vespertino.
Nesse momento estou começando meu trabalho de campo e espero que essa pesquisa possa
trazer uma contribuição empírica ao debate teórico e epistemológico no campo da educação a partir de
uma perspectiva da educação intercultural no país. Nesse percurso, pretendo reunir elementos para
responder à seguinte pergunta: como tratar desses temas e conteúdos previstos na lei em turmas
multiétnicas considerando a presença de estudantes indígenas em sala de aula?
Esse é um desafio pedagógico permanente, considerando que uma educação intercultural deve
ser direcionada não apenas aos povos indígenas, mas a todos que frequentam o sistema escolar.
Nesta primeira etapa da pesquisa estamos realizando um levantamento e sistematização da
bibliografia contemporânea produzida sobre relações interculturais e educação, privilegiando autores(as)
indígenas e pesquisas que tratem de situações semelhantes à que se pretende abordar nesta pesquisa.
Para isso, decidimos delimitar a busca por artigos publicados nos últimos 6 anos, de 2016 a 2022, para
que dessa maneira tivéssemos informações um tanto quanto mais recentes que fossem pertinentes para
serem usadas durante a pesquisa, sendo utilizadas as palavras-chave “educação intercultural”,
“educação indígena” e “estudantes indígenas na sala de aula” na plataforma google acadêmico, SciELO-
Brasil e Portal de Periódicos da CAPES. Consegui rastrear inicialmente nove artigos, a grande maioria
ainda sem números de citação, provavelmente em virtude de serem textos muito recentes, dos últimos
dois anos (WINCKELMANN, 2022; MACHADO, 2022; CAMPOS FLORES; GOMES, 2022; FAUSTINO et
al, 2022; MORAIS, 2021; ISAAC; RODRIGUES, 2020). Enquanto outros artigos publicados há mais
tempo, como o de Bergamaschi e Menezes (2016), Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento (2016) e
Aline Abboniziol (2016), repercutem em outros trabalhos, possuindo uma quantidade de citações
significativas. Uma parte dos textos enfatiza a importância da língua materna dos alunos indígenas e
como funcionam os processos educacionais que reconhecem seus costumes e culturas em sala de aula,
mostram formas e sugestões de valorizar e respeitar a presença de estudantes indígenas nas instituições
escolares.

211
Os resultados estão sendo diferentes do que era esperado inicialmente sobre a possibilidade de
encontrar múltiplos levantamentos bibliográficos a respeito da temática dessa pesquisa que se
encaixassem nos requisitos que foram colocados acima: o tema educação escolar indígena,
interculturalidade e experiências de indígenas em sala de aula. Percebemos através de pesquisas
aprofundadas que existem poucos artigos recentes sobre as experiências de alunos indígenas dentro da
sala de aula, havendo alguns que os próprios docentes buscam fazer em relatos sobre as vivências
desses estudantes. A questão da educação escolar indígena e a interculturalidade aparecem com mais
decorrência nos periódicos acadêmicos, entretanto não detêm muitas informações novas e variadas que
possam ser aproveitadas de forma mais significativas; uma parte razoável é de 6 anos atrás e também
observamos que a maioria dos artigos encontrados são produzidos por pesquisadoras não indígenas.
Do ponto de vista temático, os artigos identificados nesse levantamento tratam principalmente
sobre as abordagens das culturas indígenas na educação básica; as temáticas indígenas em aulas de
língua portuguesa; o papel da literatura infantojuvenil indígena no letramento literário; bilinguismo e
interculturalidade e os processos de apagamento da língua materna. Quanto ao trabalho com a temática
indígena nas escolas, uma das autoras lidas ressalta que:
Os conhecimentos pertencentes às culturas indígenas, tais como o grafismo, a música, a
dança, a pintura corporal, os seres sagrados, devem ser abordados nas escolas de forma
contextualizada, respeitando e valorizando a diversidade dos povos indígenas brasileiros.
(CAMPOS FLORES, 2022, p. 13).

Nessa primeira etapa da pesquisa também estou trabalhando em outro levantamento nas bases
google acadêmico, SciELO- Brasil e Portal de Periódicos da CAPES com as seguintes palavras-chaves:
“Lei 11.645”, “Políticas Públicas para Indígenas” e “aplicação da lei 11.645/2008” delimitando a busca
sobre esses temas nos últimos seis anos. O objetivo desta busca foi ampliar a pesquisa para identificar
trabalhos que tratam diretamente da temática indígena na escola e verificar se essa produção trata
também da presença indígena nas salas de aula da educação básica universal.
A segunda etapa da pesquisa será dedicada a observar como ocorre a aplicação da Lei nº
11.645/2008 em uma escola em que há a presença de estudantes indígenas em suas salas de aulas.
Este é o caso da Escola Classe 115 Norte, no DF, uma instituição reconhecida por seu trabalho de
recepção de estudantes indígenas que moram na região. Atualmente a escola conta com a presença de
8 crianças indígenas que estão nas series do 3°, 4° e 5° ano do ensino fundamental.
Ao longo do próximo período devo acompanhar os processos pedagógicos que a escola
desenvolve, com atenção para as dinâmicas interculturais em sala de aula. O objetivo será observar as
relações entre o projeto político pedagógico da escola, o currículo, as atividades pedagógicas
desenvolvidas e o cotidiano escolar. Nesta etapa também pretendo conviver e entrevistar as profissionais
da instituição, realizar alguma atividade pedagógica, como uma roda de conversa sobre o tema e
interagir com estudantes indígenas e não indígenas da escola. Dessa forma, a intenção é contribuir para
os futuros pesquisadores com questões sobre a presença dos estudantes indígenas nas instituições
escolares e como trabalham a interculturalidade em seu cotidiano, para que assim possam se tornar
mais evidentes os métodos e políticas pedagógicas das escolas no Distrito Federal ou, ao menos, da
escola que iremos apresentar para finalizar está investigação.

212
REFERÊNCIAS
ABBONIZIO, Aline; GHANEM, Elie. Educação escolar indígena e projetos comunitários de futuro.
Educação e Pesquisa, v. 42, p. 887-901, 2016.
BERGAMASCHI, M. A., & MENEZES, A. L. T. (2016). Crianças indígenas, educação, escola e
interculturalidade. Revista e-Curriculum, 14(2), 741-764.
BRASIL. Lei n.º 11.645, de 10 março de 2008. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder
Executivo, Brasília, DF, 11 mar. 2008.
CODEPLAN, Companhia de Planejamento do Distrito Federal. População indígena Um primeiro olhar
sobre o fenômeno do índio urbano na Área Metropolitana de Brasília, 2015. Disponível em:
https://www.codeplan.df.gov.br/raio-x-da-populacao-indigena-no-df-e-em-cidades-vizinhas/. Acesso em:
04 outubro de 2022.
DE CAMPOS FLORES, Cristine Gabriela; GOMES, Luana Barth; CASAGRANDE, Cledes Antonio.
Abordagens das culturas indígenas na Educação Básica brasileira: reflexões para um ensino
intercultural. Práxis Educativa, v. 17, p. 1-19, 2022.
DO NASCIMENTO, Raimundo Nonato Ferreira; DE QUADROS, Marion Teodósio; FIALHO, Vânia.
Interculturalidade enquanto prática na educação escolar indígena. Revista Anthropológicas, v. 27, n. 1,
2016.
Escola Classe 115 Norte. Projeto Político Pedagógico. Disponível em:
https://escolaclasse115norte.org.br/. Acesso em: 28 setembro de 2022.
FAUSTINO, Rosangela Celia, et al. "A INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA."
Teoria e Prática da Educação 25.1 (2022): 174-189.
ISAAC, Paulo Augusto Mario; RODRIGUES, Sílvia de Fátima Pilegi; BOKODORE, Arcênio. Escola
bilíngue e o processo de apagamento da língua materna. Revista Brasileira de Alfabetização, n. 12, p.
14-30, 2020.
MACHADO, Maria Tavares. A INTERCULTURALIDADE COMO CAMINHO PARA UMA PEDAGOGIA
CRÍTICA NA CONSTRUÇÃO DE CURRÍCULOS À EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA. Revista Científica
UMC, v. 7, n. 1, 2022.
WINCKELMANN, Ana Carolina. "Temáticas indígenas na aula de língua portuguesa: concepções e
sugestões para práticas pedagógicas." (2022).

213
NOSSA HISTÓRIA É DE PESCADOR: A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO DIDÁTICA DECOLONIAL

Mario Wiedemann
Doutor em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de
Pernambuco, com ênfase de pesquisa em ambientes costeiros do Nordeste.

Debora F. Herszenhut
Antropóloga-documentarista, especialista em comunidades tradicionais e doutoranda pelo Centro de
Desenvolvimento Sustentável – CDS/UNB.

Torna-se evidente, do ponto de vista historiográfico, arqueológico e etnológico, que a ocupação e


a diversidade cultural do território brasileiro foram aspectos constituídos em um processo de longa
duração temporal, abrangendo períodos pré-coloniais antigos. Esse processo, por sua vez, envolve
matrizes linguísticas, econômicas, políticas e cosmológicas (CASTRO, 2002), nativas e de
conhecimentos originados oralmente, transmitidos em encontros, através do envolvimento cosmológico
com o que nós chamamos de “paisagem” (BALEÉ, 2008; SILVA, 2009). Mas que, nesse raciocínio,
também é “casa”, que é “território” para os grupos e sociedades que estão em uma relação ampla com
essa paisagem. Nesse contexto, as atividades de pesca e coleta, desenvolvidas em tempos pretéritos,
revelam-se como práticas muito importantes ao longo dessa história de longa duração, indicando a
fluência destes grupos com estes ambientes, em razão da disponibilidade e diversidade de seres
aquáticos (FIGUTI,1999), também observadas pelos colonizadores (ABBEVILLE, 1614) desde o início do
processo, quando tiveram contato com os grupos Tupi do litoral.
Usam de Anzóis a que chamam de Pinda, para os peixes pequenos e médios e arpões
para os peixes-boi e outros maiores. Há também muitas outras qualidades de pescarias,
que fazem de pedra, junto às praias, ou de paus e varas, na entrada dos rios, como se
fossem redes onde entram os peixes de diversas espécies com o fluxo do mar e aí ficam
no refluxo sendo assim apanhados. Inventaram ainda outro meio de apanhar peixe e é
saltando e mergulhando na água como eles fazem e para isso metem-se dentro d’agua
até a cintura e fazem inclinar de um lado suas canoazinhas ou cascos e com jeito que os
peixes com seus pulos caem dentro e as vezes em quantidade. (ABBEVILLE, 1614, p.
354-35562)

Exímios pescadores, coletores e horticultores, os grupos Tupi unem-se em torno de uma língua
desde o sul até o extremo norte do Brasil (CORRÊA, 2014; PEREIRA, 2009). Essa história de longa
duração espaço-temporal tem grande influência nas manifestações culturais brasileiras, especialmente
se observarmos as práticas de trabalho, vida e autossuficiência praticadas pelas comunidades que,
tradicionalmente, habitam os rios, praias, estuários e mangues do litoral nordestino, particularmente no
Pernambuco.
Da mesma forma, o litoral do nordeste hoje constitui-se por muitas comunidades que encontram
na pesca e coleta o principal mecanismo de geração de renda, trabalho e alimentação – e enfrentam hoje
a perda predatória de seus territórios tradicionais (CPP, 2016) –, realizadas através de grande variedade
de estratégias, entre elas, as Camboas 63, a Mariscagem e a Pesca de Currais que podem existir há pelo

62 Trecho extraído do livro “História da missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Circunvizinhanças”, edição do
Maranhão, de 1874, traduzida por Dr. Cezar Augusto Marques, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro -
IHGB.
63 No Maranhão, “ Camboas” são também conhecidas como “Tapagens”.

214
menos 5.000 anos, conforme atestado pelo conjunto de informações arqueológicas disponíveis
(BANDEIRA, 2012).
Em razão das pesquisas desenvolvidas pelos autores na região, entre 2017 e 2021, os mesmos
desenvolveram o Projeto “Camboas Tupi: educação patrimonial sobre as atividades de pesca do litoral do
Pernambuco”, com financiamento do FUNCULTURA - Fundo de cultura do estado do Pernambuco. O
projeto teve como objetivo executar atividades de educação patrimonial com professores da rede pública,
gestores públicos, alunos das escolas e pescadores nos municípios de Itamaracá e Goiana, no litoral
norte de Pernambuco e no município de Cabo de Santo Agostinho, litoral sul do mesmo estado.
Propondo metodologias de pesquisa participativa inspiradas no Inventário Nacional de Referências
Culturais – INRC (IPHAN, 2000). O trabalho envolveu diferentes metodologias de pesquisa e didática
sobre a pesca local e artesanal, além de integrarem ações de sala à pesquisa de campo etnográfica do
trabalho de pesca tradicionalmente desenvolvido de pesca de Camboas, na Comunidade de Barra de
Catuama, em Goiana, na comunidade de pesca da associação de pesca do Pilar ( Z11), em Itamaracá, e
na comunidade de pesca e mariscagem da Ilha de Tatuoca, em Cabo de Santo Agostinho, estabelecendo
conexões com as ocupações atuais, históricas e pré-coloniais a partir das estratégias referidas e de
outras associadas, conforme identificado previamente.
A educação patrimonial tem sido considerada uma importante ferramenta por meio da qual se
possibilita (re) construir identidades, (re) conhecer territórios, produzir conhecimentos, entender e
transformar a compreensão que temos do lugar onde vivemos e das atividades que exercemos.
A importância da Educação Patrimonial reside no fato de que as comunidades devem ser
as grandes protagonistas de seus patrimônios e indicar os rumos que as futuras políticas
preservacionistas devem tomar. A preservação de bens culturais deve ser tratada como
uma prática social, ou seja, é necessário que os sujeitos e a comunidade reconheçam e
agreguem valor aos bens culturais que o Estado pretende preservar por meio dos
mecanismos e instrumentos de que dispõe (IPHAN, 2011, p. 10).

Neste sentido o projeto, teve como proposta pedagógica a experimentação etnográfica com os
participantes do curso das atividades nas referidas comunidades, e tal experiência trouxe consigo o
território da pesca. Orientados pelo INRC, foi realizado inventário amostral e sensível da pesca a partir
das principais referências culturais, envolvendo os lugares que configuram o território da pesca, os
objetos da pesca, as celebrações e o saber, relacionados ao histórico de vida dos indivíduos envolvidos
com a pesca nas comunidades pesquisadas. A pesquisa agregou o conhecimento de diferentes agentes
sociais, da extensa cadeia que envolve a pesca e a educação e verificou a necessidade de utilização de
diferentes estratégias de inserção do conhecimento tradicional da pesca no âmbito da prática didático-
pedagógica a partir da lógica vivenciada por pescadores (as) e marisqueiras (os) e sua comunidade.
Nesse movimento, foram desenvolvidas atividades de sala cujos temas remetiam às
práticas/manifestações tradicionais desenvolvidas naqueles contextos, protagonizadas pelos atores
culturais locais, invertendo o fluxo de conhecimento estabelecido à priori. Em outras palavras, os
professores e gestores passaram a aprender com os alunos, observando a realidade para além dos
processos de integração dos participantes do curso. O resultado do projeto em cada município envolveu
a produção de um Dossiê sobre as atividades de pesca das referidas comunidades, propostas
pedagógicas e recomendações, e revelou-se uma importante ferramenta de integração de conhecimento.

215
A união das experiências desenvolvidas no estado do Pernambuco permitiu, mais recentemente, o
desenvolvimento do livro “História de pescador: Pequeno guia de educação patrimonial”, com a meta de
partilhar uma metodologia criada em processos de formação e sensibilização em educação patrimonial.
Pretende inspirar novos processos de identificação e valorização de patrimônios e referências culturais,
oferecendo ferramentas para realizar novas pesquisas nos contextos mais diversos.

REFERÊNCIAS
ABBEVILLE, C. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas
circunvizinhanças (Publicada originalmente na França em 1614). Traduzida e Anotada por Dr. Cezar
Augusto Marques. Maranhão 1874.
BALÉE, W. Sobre a indigeneidade das paisagens. Revista de Arqueologia, v.21, n.2, p. 09-23, 2008.
BANDEIRA, A. M. Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís 􀂱 MA: inserção dos sítios
arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica- Tese de Doutorado, MAE/USP-
2012.
CASTRO, E.V. O Nativo Relativo. Mana Revista do Museu Nacional- Estudos de Antropologia Social,
v.8, n.1, 2002.
CORREA, A. A. Pindorama de Mboiá e Iakarê: Continuidade e Mudança da Trajetória Tupi. Tese de
doutorado. MAE/USP-2014.
CPP. Conselho Pastoral dos Pescadores, Org.: Tomáz, Al- zení de Freitas & Santos, Gilmar. Conflitos
Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no
Brasil. – Brasilia/ DF. 2016. 104p.
FIGUTI, L. Estorias de Arqueo-pescador: Considerações sobre a pesca nos sítios de grupos
pescadores coletores do litoral. Revista de Arqueologia, n.11 (pág.57-70), 1998.
IPHAN. Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Apresentação de Célia
Maria Corsino. Introdução de Antônio Augusto Arantes Neto. – Brasília : Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, 2000.
Patrimônio cultural arqueológico: diálogos, reflexões e práticas. Edição de Rossano Lopes Bastos e
MariseCampos de Souza. – São Paulo, SP: Superintendência do Iphan em São Paulo, 2011.
SILVA, F.A. Etnoarqueologia: Uma perspectiva arqueológica para o estudo da cultura material.
Metis História &Cultura, V.8, nº16, p.121-139, 2009.

216
Conversatório 6

217
O conversatório 6, Decolonizar a escola: artes, crianças e infâncias, teve como objetivo ser
campo de diálogo e reflexões sobre o protagonismo estético, político e epistêmico de crianças no espaço
escolar e sobre os discursos narrativos presentes nas artes feitas por elas. Para tanto, fomentamos a
troca de experiências entre professoras e professores de artes e demais profissionais interessados no
campo das artes, sobre diferentes práticas artístico-pedagógicas decolonizadoras realizadas com e por
crianças nos ambientes formais de educação.
Entre os trabalhos inscritos e apresentados, as ideias de educação decolonial giraram em
diferentes temas e áreas educacionais, tais como: sensibilização ambiental, análise de discurso por meio
de desenhos infantis, a escola que desejamos, educação campesina, educação antirracista para as
infâncias, cinema, línguas, literatura etc.
Para que as ideias apresentadas pudessem circular de maneira mais fluida, foi organizada uma
atividade em que pequenos parágrafos retirados dos trabalhos inscritos foram dispostos no chão da sala
de partilha dos trabalhos, impressos em pequenas tiras de papel. Cada participante teve de buscar os
parágrafos que julgava pertencer ao seu trabalho, o que proporcionou a percepção de que os trabalhos
dialogavam fortemente entre eles. Os trechos foram:
“Ouvir o que dizem as crianças é reconhecer sua importância na sociedade e também compreender que
estas têm maneiras particulares e diversas de entender, compreender e intervir no contexto no qual estão
inseridas.”
“...o desenho infantil é uma rica linguagem que comunica sonhos, desejos, interpretações, ideias e
pensamentos das crianças.”
“ O pensamento decolonial quanto o pensamento pós-colonial fazem referência a princípios como o
ético-político, identidade, território, subjetivações, gênero, antirracismo e etnicidade.”
“... o antirracismo não é um tema e, sim, a urgência em criar interlocuções, provocar intermidialidades,
reconhecer experiências, impulsionar o agir no mundo, atitudes críticas e criativas, exercitar diferentes
‘pedagogias’.”
“Uma educação antirracista é eficiente quando entendemos que a casa e a escola ainda são lugares
violentos para pessoas não-brancas e, a partir dessa percepção, fazer constante busca em decolonizar o
pensamento e o olhar do povo branco opressor.”
“Uma educação antirracista é eficiente quando se compreende que a mesma escola que tem sido
historicamente opressora com tantas crianças, pode ser o melhor espaço para transformações humanas
positivas.”
“Compreender as crianças como agentes sociais ativos requer um olhar não adultocêntrico, que
desconsidera os aspectos singulares da infância, como a diversidade cultural.”
“... as múltiplas linguagens que se evidenciam durante o desenhar podem ser construídas e
experienciadas por meio das culturas infantis em que as crianças são protagonistas do processo de
criação.”
“Um dos propósitos é fomentar iniciativas que contribuam para o fortalecimento e a visibilidade artística
da cultura afro-brasileira, trazendo à tona memórias pouco valorizadas...”

218
“... tem um caráter pedagógico, transgressor, de contar o que a história não costuma contar, de educar
pela arte, provocando a reflexão crítica sobre a história brasileira expondo as feridas ainda abertas da
escravidão e do racismo para um público de estudantes, professoras e também para a sociedade em
geral.”
“A escola de educação infantil é o lugar onde as crianças irão ter suas primeiras experiências em um
ambiente coletivo, e este lugar precisa ser o lugar do encontro e do encanto, do maravilhamento e das
experiências com sentido e significados.”
“ ... o trabalho pedagógico com crianças pequenas envolve uma intencionalidade na organização das
propostas, a partir da escuta, das narrativas, do diálogo, do estímulo à curiosidade da criança, tornando a
escola um lugar de acesso e de construção de diferentes culturas e conhecimentos sobre o mundo.”
“... dar aos grupos feitos desiguais condições mínimas de escolarização não é o suficiente para que
estes saiam do nível de pobreza, de sobrevivência e do trabalho informal ou subemprego.”
“... a escola deve cumprir um papel além da política de inclusão, pois precisa avançar no
reconhecimento dos sujeitos que nela estão inseridos, levando em consideração suas experiências, suas
expressividades, suas falas.”
“A escola, as crianças e os professores podem através do seu agir, abrir fissuras decoloniais,
ressignificando práticas discursivas eurocêntricas em possibilidade para refletir saberes outros,
“transformando” projetos consolidados sob a égide colonial em uma tentativa de práticas educativas
decolonizadoras realizadas com e por crianças no espaço escolar.”
“Vamos seguindo e tentando realizar um “giro decolonial” (in)tentando decolonizar a escola, as crianças
e as infâncias.”
“Enquanto atividade humana, a arte é complexa, diversa e rica em possibilidades de experimentação,
imaginação e criação, especialmente em processos educativos para as infâncias.”
“A constituição e a singularidade da subjetividade social se expressam, também, no valor à qualidade e
às possibilidades relacionais e educativas que o espaço proporciona para crianças e adultos...”
“... as narrativas dos professores apontam para a concepção de experiências artísticas voltadas para a
valorização da identidade dos estudantes e da escola como um território plural em que os indivíduos se
percebem e atuam no espaço, reconhecendo a si e ao outro.”
“Embora atreladas a um modelo de atendimento que impõe desafios ao trabalho docente e à qualidade
dessas experiências, as concepções indicam um movimento de (re)pensar, resistir e (re)inventar da arte-
educação nessas instituições face a um processo de fragilização das humanidades nos currículos
escolares que favorece a instrumentalização da educação.”
“Dar atenção aos discursos narrativos infantis pode ser o início de um trabalho promissor com resultados
significativos para uma prática pedagógica que tenha o protagonismo infantil como parceiro.”
“... escutar as crianças exige dos professores além da atenção e preocupação, uma interpretação e
tradução competente com o que dizem.”
“Como atitude pedagógica, a perspectiva interdisciplinar não rompe com as divisões e categorias do
conhecimento, mas solicita o pluralismo e a multiplicidade de perspectivas ...”

219
“... servirá de suporte para pensar ações artísticas que partam das relações existentes no ambiente que
nos cerca, tornando possível uma educação que estimule novos comportamentos de respeito e
cocriação.”
“A construção da autoestima se dá em um processo que inclui tanto um olhar para si, bem como a
relação com o olhar do outro...”
“... trabalhar alternativas a ações tidas como padrão colonial e como efetivamente utilizar práticas
antirracistas e se fortalecer e se empoderar para lidar com situações de racismo no cotidiano.”
Assim, a partir desses parágrafos e da fala inspiradora da professora doutora Luciana Hartmann,
discutimos sobre a necessidade de compreender as crianças como agentes sociais ativos, participantes
da sociedade, contadores de histórias e escreventes de suas próprias histórias. Conversamos sobre a
importância de se trabalhar numa perspectiva de que devemos conversar com as crianças e não apenas
sobre elas. Assim, observamos também a necessidade de escutar as crianças a fim de, entre outros,
incluí-las nas pesquisas como pesquisadoras.
Debatemos sobre a importância de exercitar uma escrita científica feita para meninas, menines e
meninos que seja capaz de se comunicar com as crianças. Observamos que os currículos escolares
ainda não comportam a diversidade de crianças e infâncias existentes e trocamos informações sobre
possibilidades de inclusão da diversidade infantil nos currículos como prática decolonial. Colocamos em
questão o que seria de fato a inclusão escolar. Pensamos que um bom giro decolonial é agenciar o
protagonismo das crianças nos seus processos de aprendizagem. É também pensar o mundo a partir de
diferentes saberes das diferentes crianças e infâncias. Pensamos ser urgente colocar em evidência a
abundância de saberes outros que estão presentes nas culturas negras, indígenas, quilombolas,
ribeirinhas, entre outras. Trocamos experiencias que refletem os ganhos pedagógicos possíveis quando
se trabalha com referências culturais de uma história não hegemônica. Pensamos que todas essas
questões tratam do empoderamento das crianças. Te convidamos, então, a buscar nos textos que
seguem as referências trazidas anteriormente e, a partir delas, pensar uma infância decolonial.

220
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Angélica Aparecida Ferreira da Silva


Desenho infantil: arte comunicativa das crianças 222
Ingrid Dittrich Wiggers

Pedro Peres e a boneca de cabelo de cor dourada: cultura visual e


Cássia Macieira 226
antirracismo, na sala de aula

Lenda da cobra Boiúna: os saberes das culturas indígenas


Gildelio da Silva Cunha 229
brasileiras em sala de aula

Higor Ramos Ferreira


Aldecilene Cerqueira Barreto
“Colorindo as brincadeiras”: o protagonismo das crianças por meio
Anielly Luiza Silveira Nunes 232
de uma coleção de desenhos infantis
Juliana de Oliveira Freire
Ingrid Dittrich Wiggers

Coletivo Ação Zumbi – Uma história de (re)existência e inspiração


Janaína Amorim da Silva 235
para uma educação antirracista e decolonial

Jucelaine Domingues Curin Frika Kahlo e as infâncias: vivências decoloniais por meio das
238
Vanessa Medianeira da Silva Flôres artes na educação infantil

Pessoas em situação de rua e as aprendizagens: uma abordagem


Larissa Vagas Brandão 242
etnográfica

Decolonizando práticas no ensino de francês língua estrangeira:


Marilene Almeida
possibilidades outras através da produção do conto-livro “Rita, uma 245
Rosivaldo Gomes
tampinha no fundo do oceano”

Subjetividade social na Biblioteca infantil-Escolinha de criatividade


Paula da Silva Moreira 249
104/304 sul: arte, cultura e educação

Rafaella Lira de Vasconcelos Movimentos de (re)pensar; resistir e (re)inventar as experiências


256
Ingrid Dittrch Wiggers artísticas nas Escolas-Parque de Brasília na contemporaneidade

Renata de Moraes Lino A escola que temos e a escola que queremos 259

Rita Naj Oleari Veronese


Ações artísticas e sensibilização socioambiental: modos poéticos
Rita de Cassia Santos Buarque de 263
de estimular novos comportamentos
Gusmão

Roseana Vitoria de Souza Lisboa Curta Hair Love e o cabelo afro como símbolo de empoderamento 265

221
DESENHO INFANTIL: ARTE COMUNICATIVA DAS CRIANÇAS

Angélica Aparecida Ferreira da Silva


Doutoranda pela Universidade de Brasília – UnB. Brasília/Brasil. angelic.sil@gmail.com

Ingrid Dittrich Wiggers


Professora Drª da Universidade de Brasília – UnB. Brasília/Brasil. ingridwiggers@gmail.com

Introdução

O desenho infantil, neste estudo, é compreendido como arte e instrumento comunicativo das
crianças. Consideramos que as crianças ao desenharem buscam concretizar material e visivelmente a
experiência de existir (DERDYK, 2010), e que o desenho “realiza a integração entre pensamento e
imaginação, podendo expressar a cultura infantil de um tempo e de um lugar” (WIGGERS; SOARES,
2019, p.318).
Assim os desenhos das crianças, neste estudo, têm por objetivo compreender como estas
materializam suas idéias e pontos de vistas sobre o mundo (SARMENTO, 2011; GOBBI, 2012; DERDYK,
2010). E busca demonstrar que os desenhos podem ser utilizados como instrumentos privilegiados para
dialogar com as crianças sobre questões que as envolvem direta e/ou indiretamente.
E, neste particular, reafirmamos a compreensão das crianças como agentes sociais que
participam da construção de cultura, identidade e conhecimento, considerando que seus “desenhos são
suportes que revelam aspectos diversos das próprias culturas nas quais está inserida” (GOBBI, 2012, p.
136). Deste modo entendemos o desenho como linguagem comunicativa e instrumento para o diálogo
com as crianças.

Diálogos com as crianças

O presente estudo reconhece as crianças como atores sociais defendendo que suas vozes
precisam ser ouvidas e consideradas pela sociedade. Reconhecemos a agência das crianças e
entendemos que estas se apropriam criativa e criticamente das informações do contexto do qual fazem
parte. Afastando a ideia de que a criança apenas reproduz o que a sociedade lhe apresenta como norma
social, mas reafirmando que suas conjecturas podem ensejar e provocar novas formas de entender e
viver no mundo.
Sarmento e Pinto (1997) consideram que ouvir o que as crianças dizem sobre si nos permite
descortinar uma realidade social desconhecida pelos adultos, que emerge das interpretações infantis
sobre seus mundos e que podem revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra
ou obscurece totalmente.
Ouvir o que dizem as crianças é reconhecer sua importância na sociedade e também
compreender que estas têm maneiras particulares e diversas de entender, compreender e intervir no
contexto no qual estão inseridas. Além de tudo é considerar que suas percepções podem indicar

222
caminhos e soluções de como lidar com as adversidades e limitações que o mundo atualmente nos
impõe.

Caminhos da pesquisa

De acordo com os elementos teóricos apontados, o estudo foi organizado metodologicamente


para ouvir as crianças, evidenciando as interpretações que elas constroem sobre suas experiências e
seus locais de moradia. Apresentaremos um recorte da pesquisa em andamento com a apresentação de
desenhos e diálogos de duas crianças.
Como explicitamos acima o desenho infantil é uma rica linguagem que comunica sonhos,
desejos, interpretações, ideias e pensamentos das crianças. Contudo consideramos também essencial a
interpretação oral que a criança realiza ao fazer e/ou concluir o seu desenho. Compreendemos que
esses comentários expressam os sentidos e percepções das crianças e podem complementar a
mensagem que o desenho deseja explicitar e que nós adultos não temos sensibilidade e capacidade
para entender toda a sua complexidade. Assim, neste estudo, as crianças, concomitantemente,
desenham e conversam.
Vejamos os desenhos de Artur (figura 1) e Érica (figura 2) seguidos de trechos dos diálogos
estabelecidos com as crianças.

Figura 1 – Desenho de Artur (8 anos) sobre o lugar onde mora. Fonte: Corpus da pesquisa, 2022.

Pesquisadora: O que você desenhou aqui?


Artur: Eu desenhei minha rua... onde moro.
Pesquisadora: Você costuma brincar aqui nesse lugar?
Artur: É aqui e aqui. Aqui eu fico andando de patinete às vezes.
Pesquisadora: Quando é que você vai para a rua, quando você brinca na rua?

223
Artur: Eu vou quando meu pai tá em casa, que às vezes ele me leva lá.
Pesquisadora: Hum... já foi alguma vez a qualquer um desses lugares sozinho?
Artur: Hum... Não.
Pesquisadora: Não. Por quê?
Artur: Porque eu acho perigoso.
Pesquisadora: Acha perigoso? E qual seria o perigo?
Artur: Porque tem bandido lá.

Figura 2 – Desenho de Érica (9 anos) sobre o lugar onde mora. Fonte: Corpus da pesquisa, 2022.

Pesquisadora: Me conte o que você desenhou aqui?


Érica: O parque perto da minha casa. Só que ele não tá bom pras crianças, né?
Pesquisadora: Você está dizendo que o parque precisava ser adaptado para as
crianças?
Érica: Sim. A única coisa que eu vejo é uma quadra de vôlei e... hum... uma
quadra de futebol. Mas a quadra de futebol é ruim, por causa que... é na terra! E
alguém pode jogar caco de vidro e ninguém perceber. Porque os meninos,
quando eu vejo, tão tudo descalço.
Pesquisadora: Então dá sua opinião pra mim: como é que a gente poderia
melhorar esse parque?
Érica: Botar um parquinho pras crianças...
Pesquisadora: Hum... e nesse parquinho para as crianças, como é que seria?
Érica: Tem duas parques de futebol. Um que eu... hum, que eu odeio, é que...
hum... Tem gente... Os jogadores que ficam lá, né, jogando futebol... Ter
balanço... É... Tipo... um quadradão, areia... aí balanço... é, escorregador... aquele
negocinho, né, “tun, tun, tun”...

Algumas considerações

224
As percepções das crianças sobre o lugar onde moram demonstram que estas conseguem
identificar aspectos positivos e negativos sobre o lugar onde residem. Destacam e representam espaços
de convivência coletiva como a rua e o parque, reconhecendo esses locais como espaço para a
brincadeira e diversão.
Interessante observar o detalhe na figura 1: o da criança na janela olhando para a rua. Artur, por
meio do desenho, busca expressar um pouco do seu cotidiano e o complementa ao dizer que “Eu vou
quando meu pai tá em casa, que às vezes ele me leva lá”. Deixando evidente que as idas para a rua são
organizadas de acordo com a disponibilidade e horários dos adultos e não de acordo com os desejos
dele.
Érica, na figura 2, busca mostrar a grandiosidade do parque e a ausência de locais interessantes,
na visão dela, para as crianças se divertirem. Há a predominância de árvores e espaço vazio, ou seja,
poucas opções para as crianças brincarem. Ela, em suas colocações, orais faz críticas ao local e sugere
alternativas para que o parque se torne mais atrativo para as crianças “Ter balanço... É... Tipo... um
quadradão, areia... aí balanço... é, escorregador... aquele negocinho, né, “tun, tun, tun”...”.
Os diálogos com as crianças nos deram mostras de que elas também são conhecedoras das
limitações que esse espaço lhes impõe e as implicações promovidas por esses espaços nas suas
rotinas. Como também são capazes de opinar sobre melhorias que consideram essenciais para um
melhor aproveitamento das crianças.

PALAVRAS-CHAVE: desenho; crianças; infância.

REFERÊNCIAS
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho - desenvolvimento do grafismo infantil. 4a ed. Porto
Alegre, RS: ZOUK, 2010.
GOBBI, Márcia. Desenhos e fotografias: marcas sociais de infâncias. Educar em Revista-UFPR,
Curitiba, v. 43, n. 135, p. 135–147, 2012.
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando
o campo. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel (org.). As crianças, contextos e
identidades. Portugal: Centro de Estudos da Criança, Universidade do Minho. 1997.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Conhecer a infância: os desenhos das crianca como produções simbólicas.
In: Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas - SP: Autores Associados,
2011. p. 27–60.
WIGGERS, Ingrid Dittrich; SOARES, Carmem Lucia. Recreação e vida ao ar livre em parques infantis de
São Paulo na coleção desenhos de Mário de Andrade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
São Paulo, n. 74, p. 302-322, dez. 2019.

225
PEDRO PERES E A BONECA DE CABELO DE COR DOURADA: CULTURA VISUAL E
ANTIRRACISMO, NA SALA DE AULA

Cássia Macieira
Profª no Curso de Artes Visuais Licenciatura da Universidade do Estado de MG. Bacharelado em Gravura; Cinema
de Animação; Licenciada em Artes Visuais; Licenciada em Letras. Doutora em Literatura Comparada: literatura e
outras Artes. cassia.macieira@uemg.br

A pintura “Fascinação”, de 1909, do artista Pedro Peres (1850-1923), acervo da Pinacoteca/SP,


certamente, pode ser um elemento norteador da criticidade de docentes do Ensino, a partir da mediação
da/o professor/a de Artes. Sob a perspectiva da Cultura Visual e decolonizadora, pode-se reconhecer a
boneca da pintura (objeto presente na pintura) como objeto relacional [artesanato, design] que favorece a
discussão de modo individual e coletivo pelo seu caráter lúdico [fácil adesão].

Figura 1 – “Fascinação”, de Pedro Peres. Fonte:Pinacoteca/SP

Ao pensar na inserção da obra do pintor Pedro Peres na prática da/o futura/o mediador/a-
educador/a, em sala de aula, poder-se-á reconhecer e incentivar várias práticas, uma vez que a boneca
faz parte do universo simbólico da criança. A sistematização descritiva da obra pode, inclusive, ser
coletiva, corroborando a “leitura de imagem da turma” – consubstanciada pelo que os discentes veem e
pelas diferentes camadas interpretativas que a imagem eventualmente sugerir. Ainda, entende-se que

226
apresentar a pintura de Peres como disparador de prática artística antirracista é um caminho profícuo
para sensibilizar, mediar, fundamentar a criticidade e gerar prática decolonizadora com a turma.
Reconhecer os estudantes como seres potentes, empenhar esforços para que o passo inicial da
discussão seja acolhedor, oferecer “nutrição” teórica e empírica aos discentes e alavancar inquietações
são objetivos desse estudo.
O pensamento decolonial quanto o pensamento pós-colonial fazem referência a princípios como o
ético-político, identidade, território, subjetivações, gênero, antirracismo e etnicidade. Nas Artes, o
decolonialismo não deve ser reduzido à mera aplicação do termo (temática), pois as questões do campo
ético-político são constitutivas do humano e de suas práticas, e tematizar diferencia-se de internalizar as
relações assimétricas ainda vigentes no mundo. A práxis antirracista deve prevalecer porque o racismo é,
no fim das contas, um sistema de racionalidade, como nos ensina o mestre Kabengele Munanga,
antropólogo e professor brasileiro-congolês, ao afirmar que o “preconceito não é um problema de
ignorância, mas de algo que tem sua racionalidade embutida na própria ideologia” (ALMEIDA, 2019, p.
71).
Tanto o pensamento decolonial quanto o pensamento pós-colonial fazem referência a princípios
como o ético-político, identidade, território, subjetivações, gênero, antirracismo e etnicidade. Porém, o
primeiro não consente a superação do colonialismo: “no discurso colonial, o corpo colonizado foi visto
como corpo destituído de vontade, subjetividade, pronto para servir e destituído de voz” (BERNARDINO-
COSTA; GROSFOGUEL, 2021, p. 19). Assim, o decolonialismo, pela voz dos anticolonialistas, dissemina
conhecimento a partir de locais de alteridade e de múltiplas influências teóricas. Para falar em
pensamento de(s)colonial é preciso trazer as experiências políticas inovadoras que brotaram na América
Latina, em especial o movimento zapatista dos anos 1990 (HAESBAERT, 2021, p. 94).
No documento “A Base Nacional Comum Curricular e a Educação étnico-racial na promoção de
uma educação antirracista” (SILVA; SILVA, p. 553), os autores constataram que a educação voltada para
as relações étnico-raciais, proposta pela BNCC, não está articulada ao pensamento antirracista e apenas
reforça os conteúdos questionáveis sobre a África e os afro-brasileiros, difundidos nos currículos da
Educação Básica. Diante de tal realidade, como promover práticas artísticas decoloniais (sem recorrer ao
discurso salvacionista) se o próprio documento normativo da Educação Brasileira tem caráter de
“currículo de instrução”? As respostas, entre outras, podem estar na formação libertadora de
professoras/es-artistas; no empenho em promulgar modos de existência-resistência (Foucault/Deleuze);
em menos corpos dóceis (disciplinados) e mais corpos não-colonizados empossados de vontade,
compromissados com o antirracismo (atentos) e munidos de reconhecimento ao locus epistêmico (lugar
de fala).
Na perspectiva da Cultura Visual e do decolonialismo, levar a imagem de uma boneca (artefato
lúdico de fácil adesão) a partir da pintura de Pedro Peres, na sala de aula, significa reconhecê-la como
dispositivo ético-político capaz de impulsionar discussões, embates, processos artísticos; e demanda
indagar que o antirracismo não é um tema e, sim, a urgência em criar interlocuções, provocar
intermidialidades, reconhecer experiências, impulsionar o agir no mundo, atitudes críticas e criativas,
exercitar diferentes “pedagogias”. Também pressupõe fomentar a educação local, diminuir os

227
estereótipos e apresentar novas sinapses, ampliar e despertar saberes em construtores-intérpretes,
discutir imagens padronizadas e colonizadoras para, com isso, proporcionar a prática da educação
estética decolonial.
Refletir sobre o respeito à igualdade de direitos (equidade) a partir de práticas artísticas tende a
ser congruente e atrelado às prerrogativas de Ensino, Pesquisa e Extensão. Sob tal prisma, salientam-
se, aqui, os eixos de experiências propostos por Rosa Iavelberg (2003), correlacionando-os às práticas
do artista-educador/a (mediador/a). Dessa forma, a/o estudante (aquela/e que estuda /devir deleuziano)
poderá ser estimulada/o a verbalizar suas proposições pessoais (exercícios que contemplem
subjetividades), relacionando-as ao conhecimento prático e teórico, assim adquirindo o saber-artístico,
reconhecendo suas marcas particulares (corpo não oprimido) e noções de pertencimento. Segundo Rosa
Iavelberg, há três domínios que o/a artista-educador/a deve demonstrar em seus experimentos: saber-
saber (fatos, conceitos, princípios); saber-fazer (procedimentos); saber-ser (no convívio com o outro,
prevendo valores, atitudes e sensibilidade). Segundo ela, são “três eixos de experiências de
aprendizagem para preservar a possibilidade de viver arte na escola” (IAVELBERG, 2003, p. 48).
Para Fernando Hernandez são as experiências e o conhecimento advindo do campo das artes
“os que mais contribuem para configurar as representações simbólicas portadoras dos valores que os
detentores do poder utilizam para fixar sua visão de realidade.” (HERNANDEZ, 2013, p.21). Nesse
sentido, prevê-se que avanços do pensamento criativo, lógico e crítico sejam estimulados por meio da
elaboração de indagações e pela capacidade de avaliar respostas e interagir com diferentes produções
culturais, possibilitando ao estudante ampliar a compreensão de si mesmo e do mundo.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BERNARDINO-COSTA, J. & Grosfoguel, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e
Estado. Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. 31(1), 15-24, v. 36, n. 03, 2021.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino da história afro-brasileira e africana. Brasília: SECAD/ME, 2004.
HAESBAERT, R. Território e descolonialidade: sobre o giro(multi) territorial de(s)colonial na
“América Latina”. Ciudad Autônoma de Buenos Aires: CLACSO: Niterói: Programa de Pós-Graduação
em Geografia, Universidade Federal Fluminense, 2021.
HERNÁNDEZ, Fernando. A pesquisa baseada nas artes: propostas para repensar a pesquisa educativa.
In: DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L. (orgs.) Pesquisa educacional baseada em Arte: a/r/tografia. Santa
Maria: Ed. UFSM, 2013, p. 39-62.
IAVELBERG, R. Para gostar de aprender arte. Sala de aula e formação de professores. Porto Alegre:
Artmed, 2003.
SILVA, Assis Leão.; SILVA, Clesivaldo da. A Base Nacional Comum Curricular e a educação étnico-racial
na promoção de uma educação antirracista. Revista Eletrônica Pesquisaeduca. Revista do Programa
de Educação – Universidade Católica de Santos, Nº Formação de Educadores em contexto de
mudanças políticas, educacionais, teorias e práticas, v. 13, n. 30, 2021.

228
LENDA DA COBRA BOIÚNA: OS SABERES DAS CULTURAS INDÍGENAS BRASILEIRAS EM SALA
DE AULA

Gildelio da Silva Cunha


Artista e Professor de Artes Visuais da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal – SEEDF para
crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Pós-graduando (especialização) em Direitos Humanos na
Universidade de Brasília.

Enquanto professor no componente curricular das artes visuais e trabalhando com discentes dos
anos iniciais do Ensino Fundamental, me preocupo em levar para a sala de aula conteúdos que
valorizam as culturas indígenas e africanas brasileiras, trazendo destaque também para a população
afro-brasileira e algumas de suas manifestações artísticas, tirando assim o foco das culturas norte-
americanas e eurocêntricas, comumente presente no currículo das escolas brasileiras.
Em um de nossos projetos de aprendizagens, o de saberes das culturas indígenas brasileiras,
partimos da lenda da cobra boiúna. Foi feita a leitura do livro de literatura infantil de Raul Bopp (1994).
Resumidamente, conta a lenda:
que, em certa tribo indígena da Amazônia, uma índia, grávida de Boiuna (Cobra-grande,
Sucuri), deu à luz duas crianças-cobras gêmeas: um menino, que recebeu o nome de
Honorato (ou Nonato) e uma menina chamada Maria. Para ficar livre dos filhos, a mãe
jogou-os no rio, onde sobreviveram como cobras gigantes. Honorato não fazia mal a
ninguém, mas sua irmã era muito perversa e causava sérios prejuízos aos outros animais
e às pessoas. Eram tantas as maldades praticadas por ela que Honorato acabou por
matá-la. Em algumas noites de luar, Honorato perdia seu encanto e adquiria a forma
humana: transformava-se em um belo e elegante rapaz, deixando as águas para levar
uma vida normal na terra. Para que se quebrasse definitivamente o encanto de Honorato,
era preciso que alguém tivesse muita coragem, para derramar leite na boca da enorme
cobra e fazer um ferimento em sua cabeça até sair sangue. Mas ninguém tinha coragem
de enfrentar o enorme monstro. Até que um dia um soldado de Cametá (município do
Pará) conseguiu libertar Honorato do terrível encanto, fazendo com que deixasse de ser
cobra d’água e vivesse na terra com sua família. (UFMG, 2012, p.1)

Posteriormente à leitura, foram mostradas para as turmas de estudantes imagens ilustrativas e


fotografias de serpentes que vivem na floresta amazônica. Inspiradas nas fotos e imagens, as crianças
desenharam cobras, utilizando alguns grafismos presentes nas pinturas corporais indígenas, e as
coloriram com as cores primárias.
Como passo seguinte, sugerimos ressignificar galhos secos de árvores encontrados no cerrado
do Parque Dona Sarah Kubtschek, da cidade de Brasília, Distrito Federal, pintando-os a partir de
desenhos feitos e escolhidos pelas crianças. Depois de pintados, os galhos, então transformados em
Cobras Boiúnas, receberam pinceladas de verniz e foram expostos nos jardins da Escola Parque
313/314 Sul.
O objetivo dessa atividade foi, além de promover a leitura coletiva de algumas das histórias dos
povos originários em sala de aula – o que significa visibilizar saberes historicamente subalternizados –,
valorizar o respeito aos povos oriundos das terras brasileiras e mostrar para as crianças o quanto é
construtivo expressarmos e criarmos nas artes visuais com elementos retirados da natureza.

229
Figura 1 - Desenho das cobras Boiunas feitos pelas crianças. Arquivo do autor.

Assim, foi possível às crianças conhecer as histórias indígenas como parte das nossas histórias,
histórias que constituem o Brasil. Foi uma oportunidade de as crianças perceberem como muitas
histórias dos povos originários sofreram com tentativas de apagamento e invisibilização pelas práticas e
olhar do povo branco colonizador.

Figura 2 - Cobras Boiunas produzidas pelas crianças. Fotografia do autor.

Dessa maneira acreditamos que projetos artísticos como esses podem ser interdisciplinares e
multidisciplinares, de combate ao racismo presente nas escolas e fora delas.

230
Acredito ser uma responsabilidade e um compromisso docente perceber quais são os grupos
étnicos que vivem de privilégios no Brasil e darmos atenção sobre os lugares onde os povos originários e
negros continuam sendo postos. Uma educação antirracista é eficiente quando entendemos que a casa e
a escola ainda são lugares violentos para pessoas não-brancas e, a partir dessa percepção, fazer
constante busca em decolonizar o pensamento e o olhar do povo branco opressor. Uma educação
antirracista é eficiente quando se compreende que a mesma escola que tem sido historicamente
opressora com tantas crianças, pode ser o melhor espaço para transformações humanas positivas.
Precisamos urgentemente compreender que muitas de nossas atitudes são racistas e responsáveis por
construir o ódio e a segregação de milhares de seres humanos. Precisamos estar em constante
vigilância de nós mesmos.

REFERÊNCIAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG. A lenda amazônica de Boiúna. [Belo
Horizonte], 2012. 1 cartaz. Disponível em:
https://www.ufmg.br/cienciaparatodos/wp-content/uploads/2012/08/leituraparatodos/e5_30-
alendaamazonicadeboiuna.pdf.
BOPP, Raul. Cobra Norato. 17 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
CRUZ. Nelson. A cobra grande. Editora: FTD. 1ª edição. 2002.

231
“COLORINDO AS BRINCADEIRAS”: O PROTAGONISMO DAS CRIANÇAS POR MEIO DE UMA
COLEÇÃO DE DESENHOS INFANTIS

Higor Ramos Ferreira


Mestrando em Educação Física pela Universidade de Brasília. higoramosferreira2009@gmail.com

Aldecilene Cerqueira Barreto


Doutora em Educação Física pela Universidade de Brasília. aldecilene@gmail.com

Anielly Luiza Silveira Nunes


Mestranda em Educação Física pela Universidade de Brasília. aniellyluiza2@gmail.com

Juliana de Oliveira Freire


Doutora em Educação pela Universidade de Brasília. juliana2609@gmail.com

Ingrid Dittrich Wiggers


Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. ingridwiggers@gmail.com

Introdução

A expressão livre e criativa das crianças apresenta-se desde um mergulho profundo na caixa de
lápis de cor, que esconde um tesouro perdido, até uma partida de pique-esconde com os amigos da
escola. Compreender as crianças como agentes sociais ativos requer um olhar não adultocêntrico, que
desconsidera os aspectos singulares da infância, como a diversidade cultural. Isto está representado nas
brincadeiras e nos desenhos infantis. Os desenhos infantis se destacam como documentos preenchidos
com riqueza de detalhes, em que as crianças escolhem cores, formas e possibilidades.
Portanto, os desenhos infantis manifestam-se como uma oportunidade de a criança se expressar
de forma original e singular, viabilizando a comunicação. Logo, destacam-se como um recurso de fala
dos pequenos, contribuindo para seu protagonismo e autonomia. Os desenhos possibilitam que as
crianças atribuam sentidos e significados às suas experiências (GOLDBERG; FROTA, 2017). Além disso,
quando combinados à oralidade, permitem escutar o que as próprias crianças têm a dizer sobre suas
artes, considerando, assim, a expressão do autor e não apenas uma interpretação dos adultos sobre o
que a criança elaborou.
O conceito da Sociologia da Infância dialoga com a busca de problematizar, na sociedade, a visão
sobre as crianças e o reconhecimento de seus direitos próprios (SARMENTO, 2005). Destarte, a
brincadeira “esbarra” na infância, que por sua vez se incorpora em outras ações das crianças, como o
desenho infantil, capaz de unir o brincar e o ser criança. Um copo de plástico se torna uma embarcação
com 40 marinheiros, serviço de bordo, as laterais do copo são cortadas e se transformam em portas e
passagens secretas. Nesse universo, é possível fazer continhas, se movimentar e socializar na
pluralidade da infância.
A compreensão das crianças como atores sociais rompe com a ideia de que elas são como
miniaturas e possibilita que a infância faça parte da produção de conhecimento (GOMES-DA-SILVA;
BUSS-SIMÃO, 2010). A partir disso, espaços e oportunidades com a participação das crianças
colaboram para a criação e desenvolvimento de práticas sociais (PIRES; BRANCO, 2007). Por meio do

232
sistema cultural das crianças, o papel é preenchido pelas criações e representações de brincadeiras
(WIGGERS, 2004). Diante disso, o presente estudo tem como objetivo compreender o desenho como
forma de expressão e de agência das crianças.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa documental, com abordagem qualitativa, que inicialmente buscou
identificar e compreender aproximadamente 1.600 desenhos infantis preservados em formato original e
digital, compondo um inventário de obras produzidas por crianças no período de 2001 a 2020. A coleção
possui 24 pesquisas que foram realizadas com crianças, a partir de investigações de pesquisadores do
Imagem - Grupo de Pesquisa sobre Corpo e Educação. Para a elaboração do inventário, utilizou-se
como fonte os trabalhos acadêmicos dos pesquisadores, entrevistas semiestruturadas com eles e os
desenhos que as crianças produziram em diferentes tempos e espaços, com diversas temáticas como
brincadeiras, contextos, mídias, imagem corporal e outros.
Para compreender o desenho como forma de expressão e de agência das crianças, foi realizada
uma análise minuciosa dos 24 trabalhos e seus respectivos desenhos que compõem a coleção.
Outrossim, é necessário considerar os elementos que fazem parte do processo e da produção dos
desenhos. Cabe ressaltar que essas informações estão categorizadas dentro de uma planilha de excel
identificada como quadro geral da coleção dos desenhos.

Resultados

O inventário da coleção dos desenhos retrata diversas obras infantis nacionais, nas regiões
Centro-Oeste, Sul, Sudeste e Nordeste; e internacionais, sendo na Alemanha, em Portugal e na Suécia.
As pesquisas apresentam produções acadêmicas em nível de graduação, especialização, iniciação
científica, mestrado, doutorado e relatório de pós-doutorado. Por conseguinte, por meio da análise da
coleção dos desenhos do Imagem observa-se uma infinidade de elementos que se relacionam com a
produção do desenho e o momento após essa confecção. É possível identificar que existem elementos
que se integram à confecção dos desenhos das crianças, por exemplo, o modo como os desenhos foram
produzidos e o ambiente da elaboração. Nas pesquisas da coleção, as crianças realizavam os desenhos
na sala de aula de forma individual, mas entre os pares. Entretanto, as crianças externalizam suas
singularidades para expressar as necessidades, os desejos e as vivências. Nesse aspecto, Sarmento e
Pinto (1997) ressaltam que cada criança, na interação com os outros, produz e reproduz. Assim, as
múltiplas linguagens que se evidenciam durante o desenhar podem ser construídas e experienciadas por
meio das culturas infantis em que as crianças são protagonistas do processo de criação.
Ademais, os materiais disponibilizados e utilizados para a constituição dos desenhos demonstram
um repertório artístico que envolve folhas brancas, lápis de colorir, canetinhas e giz de cera. Contudo,
isso não quer dizer que os instrumentos são padrões rígidos, pois as crianças podem ressignificar e criar
novos materiais, como uma parede, a capa do caderno, um pedaço de carvão ou uma pedra afiada.

233
Recorrendo à coleção aprecia-se que, mesmo tendo orientações dadas pelos pesquisadores acerca do
tema dos desenhos, as crianças tinham liberdade para desenhar suas preferências e possibilidades.
Para mais, segundo Gobbi (2002), os desenhos combinados com a oralidade permitem escutar o que as
crianças falam sobre suas produções, e, sendo assim, os desenhos não se limitam ao que o adulto vê,
coadunando-se a expressão artística do desenho com os sentidos e significados que a criança estipula.
Em suma, compreende-se que o inventário contribui com a valorização dos desenhos produzidos pelas
crianças em formato de pesquisas acadêmicas e também como uma coleção artística.

Conclusão

Indubitavelmente, compreende-se que os desenhos infantis são uma forma de expressão das
crianças que representa suas singularidades. Por meio do desenho a brincadeira se movimenta, entre os
traços da margem ao sol colorido no canto da folha, as pernas e braços que evidenciam a propulsão dos
corpos na disputa de pique-bandeirinha. Outro aspecto a ser considerado se refere aos elementos que
permeiam a produção dos desenhos, sendo que o ambiente, como foi a produção, quais os materiais
utilizados e as conversas sobre o desenho, com qual lápis colorir, as relações com os pares durante o
desenhar e as descrições relatadas sobre sua expressão artística revelam o protagonismo das crianças
no momento de escolher suas brincadeiras.

PALAVRAS-CHAVE: desenho; brincadeira; infância.

REFERÊNCIAS
GOBBI, M. Desenho infantil e oralidade: instrumentos de pesquisa com crianças pequenas. v. 252, p.
233-252, 2002.
GOLDBERG, Luciane; FROTA, Ana Maria Monte Coelho. O desenho infantil como escuta sensível na
pesquisa com crianças: inquietude, invenção e transgressão na elaboração do mundo. Revista de
Humanidades, v. 32, n. 2, p. 172-179, 2017.
GOMES-DA-SILVA, Eliane; BUSS-SIMÃO, Marcia Buss. Pesquisa com crianças na Educação Física:
Questões teóricas e desafios metodológicos. Revista Inter Ação, v. 33, n. 2, p. 395-416, 2008.
PIRES, Sergio Fernandes Senna; BRANCO, Angela Uchoa. Protagonismo infantil: co-construindo
significados em meio às práticas sociais. Paidéia (Ribeirão Preto), v. 17, n. 38, p. 311-320, 2007.
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos,
delimitando o campo. 1997.
WIGGERS, Ingrid Dittrich. Corpo, mídia e infância: imagens de meninas de Brasília. 2004.

234
COLETIVO AÇÃO ZUMBI – UMA HISTÓRIA DE (RE)EXISTÊNCIA E INSPIRAÇÃO PARA UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E DECOLONIAL

Janaína Amorim da Silva


Professora de história da Educação Básica, doutoranda do Programa de Educação da UFSC e bolsista do
FUMDES/UNIEDU/SC. janainayemanja03@gmail.com

O Coletivo Ação Zumbi é um coletivo teatral que realiza performances multidimensionais e está
situado entre duas cidades interligadas por pontes. A ilha de Santa Catarina, que faz parte da cidade de
Florianópolis, capital catarinense, e a cidade vizinha São José. Entre o lado de lá e o de cá da ponte
vivem os integrantes deste coletivo, que reivindicam através de expressões artísticas multidimensionais,
visibilidade aos artistas e as memórias negras contra-hegemônicas, que as cidades mantinham
silenciadas. As ações do grupo, desde a sua criação até o presente momento, sempre assumiram um
caráter pedagógico com suas reflexões, oferecendo uma educação para as relações étnico-raciais de
maneira não formal, uma educação outra, instigando o poder público a repensar suas políticas públicas
educacionais e a incluir sujeitos até então excluídos ou pouco valorizados nas propostas curriculares. A
história da educação de Florianópolis e São José está vinculada ao seu projeto de cidade e a sua
experiência histórica de colonização e escravização, assim como foi em todo o Brasil. No entanto,
diferente do que ocorreu em outros Estados, o território da região metropolitana da Grande Florianópolis,
que inclui os municípios vizinhos à capital, fez uma escolha estatal na década de quarenta, por enaltecer
seu passado europeu açoriano, inventando uma tradição que pretendeu homogeneizar a formação
cultural do território, em detrimento do reconhecimento da participação das populações originárias,
afrodescendentes e mesmo das demais culturas europeias na formação da história dos municípios. As
políticas públicas educacionais catarinenses compactuam com a colonialidade do poder, do saber e do
ser, mantendo até hoje as perspectivas epistemológicas eurocêntricas, mesmo após séculos do término
da colonização e culturas para além da Europa.
Neste sentido, dizemos que o coletivo Ação Zumbi, criado em 2003 por três mulheres negras que
atuavam no teatro, na dança, na música e na educação, rompeu com estes traços colonialistas e criou
brechas com sua intervenção artística, mostrando que a população negra também faz parte da história
da região, entrelaçando a história do Grupo Ação Zumbi com a educação formal de São José, ao inserir
possibilidades metodológicas outras, contribuindo assim para romper com a colonialidade dos currículos
e práticas escolares, ainda presentes no século XXI.
As práticas coletivas dos movimentos sociais e artísticos negros, a exemplo do Ação Zumbi,
assumem práticas e dinâmicas transgressoras e criativas, deixando como legado aprendizagens
dissonantes que nos orientam a considerar pedagogias decoloniais e perspectivas de insurgência
comunitária (MIRANDA; ARAÚJO, 2019).
Incentivadas também pela lei 10.639/03 que tornou obrigatória a história e a cultura afro-brasileira
e africana nos currículos escolares em todos os níveis educacionais, o Coletivo teve sua primeira
atuação com a organização de uma grande feira, chamada “Kizomba Ação Zumbi”, realizada no Centro

235
Histórico de São José em 2003, que contou com a exibição do filme “A negação do Brasil” e a presença
do cineasta Joel Zito, além de apresentações musicais, teatrais e manifestações afro-culturais;
recebendo também a colaboração de professoras e estudantes das escolas municipais de São José, que
foram convidadas a realizarem uma exposição dos trabalhos desenvolvidos em sala de aula, que
promoveram a valorização da cultura afro-brasileira, africana, o enfrentamento ao racismo e a promoção
da igualdade racial. Essa ação é um marco histórico relevante por ter sido a primeira iniciativa a
promover a educação para as relações étnico-raciais nas escolas municipais da cidade de São José no
século XXI, apesar de não ter sido uma iniciativa governamental, mas contar com o apoio da Fundação
Municipal de Esporte de São José. Nos anos seguintes o Coletivo Ação Zumbi continuou atuando na
promoção da igualdade racial, tensionando o poder público a cumprir a legislação 10.639/03 nas escolas
municipais.
A cidade de São José guarda muitas histórias da presença negra na cidade, que rompem com a
lógica dessa colonialidade eurocentrada, mas que estão ainda ausentes dos currículos escolares. Como
as memórias da dança do Cacumbi do Pedro Leite, a Banda Quebra Quilos formada exclusivamente por
músicos negros, os mais de trezentos terreiros que reafirmam a presença ancestral de origem africana,
os antigos clubes negros, a capoeira, os blocos de carnaval nas periferias da cidade, o clube
abolicionista, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os quilombos, entre outras
memórias contra-hegemônicas invisibilizadas (SILVA, 2011).
Ao longo desses quase vinte anos, a Associação Cultural Ação Zumbi vem desenvolvendo
projetos nas áreas de teatro, cinema, dança, vídeo, entre outras, que incluem a montagem de
espetáculos, oficinas e organização de eventos, buscando também valorizar e incentivar a formação de
artistas negros. Um dos propósitos é fomentar iniciativas que contribuam para o fortalecimento e a
visibilidade artística da cultura afro-brasileira, trazendo à tona memórias pouco valorizadas, quase
esquecidas da presença negra na Grande Florianópolis. Suas ações além de buscarem a inclusão social,
revelando talentos trazidos de comunidades periféricas, têm um caráter pedagógico, transgressor, de
contar o que a história não costuma contar, de educar pela arte, provocando a reflexão crítica sobre a
história brasileira, expondo as feridas ainda abertas da escravidão e do racismo para um público de
estudantes, professoras e também para a sociedade em geral.
A reafirmação do grupo ao longo de sua história, do propósito educativo de sua atuação artística,
levando ao palco memórias que não tinham escuta, permite que possamos considerar essa outra forma
de educar como uma prática de resistência contra-hegemônica, que confronta modelos de
subalternização epistêmica, com estratégias educadoras que se definem como emancipatórias. Como
contribuem Walsh e Salazar (2015, p. 97), “cartografias decoloniais provocam mudanças de status de
narrativas e de protagonistas historicamente representados como fora do lugar, portanto de
subjetividades desautorizadas”
A proposta dessa pesquisa é para que possamos aliar o conhecimento escolar do Ensino
fundamental, portanto formal, dos anos iniciais e anos finais com a educação não formal dos movimentos
sociais e artísticos, a exemplo do Coletivo Ação Zumbi; por acreditar que ambas as categorias de

236
educação são importantes e atuam na nossa vida de forma complementar, se entrecruzando
constantemente e inspirando a produção de uma educação antirracista e decolonial.

PALAVRAS-CHAVE: Ação Zumbi; antirracista; decolonial; educação; (re)existência.

REFERÊNCIAS
GOMES, Nilma Lino. O movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis: Vozes, 2019.
MIRANDA, Claudia, ARAUJO, Helena M. M. Memórias Contra-hegemônicas e Educação para as
Relações Étnico-Raciais: práticas coloniais em contextos periféricos. Perspectiva – Revista do Centro
de Ciências da Educação. V. 37, nº 2, p. 378-397, abril/junho 2019.
SILVA, Janaína Amorim da. Tramas cotidianas dos afrodescendentes em São José no Pós-abolição.
Dissertação (Mestrado em História), Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina – UFSC,
2011.
WALSH Catherine; SALAZAR, Juan García. Memoria colectiva, escritura y Estado. Prácticas
pedagógicas de existencia afroecuatoriana. Cuadernos de literatura, [S. l.], v. XIX, n. 38, p. 79-98,
jul./dez. 2015. Disponível em: https://bit.ly/2VCGjUL. Acesso em: 20 dez. 2018

237
FRIDA KAHLO E AS INFÂNCIAS: VIVÊNCIAS DECOLONIAIS POR MEIO DAS ARTES NA
EDUCAÇÃO INFANTIL

Jucelaine Domingues Curin


Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Santa Maria/RS. Mestranda do Programa Pós-
Graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Vanessa Medianeira da Silva Flôres


Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Santa Maria/RS. Doutoranda do Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

O presente trabalho se configura como relato de experiência da prática pedagógica realizada com
uma turma de pré-escola, em uma escola pública municipal, localizada na região oeste do município de
Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Sérgio Lopes
está localizada em um bairro da periferia e atende famílias em situação de vulnerabilidade social.
A oferta de educação infantil e ensino fundamental atende atualmente 174 estudantes, em turmas
de berçário I ao nono ano. A turma, na qual aconteceu a proposta pedagógica, tinha como característica
ser uma turma de educação infantil multi-idade (4 e 5 anos) de pré-escola. O currículo sempre esteve
pautado de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI, 2009) e
nos interesses, curiosidades e necessidades das crianças. As crianças têm interesses, porém para que
isto aconteça é necessário que desejos sejam despertados e os repertórios ampliados. Parafraseando
Rubem Alves, “precisamos provocar o desejo e a curiosidade nas crianças”. Deste modo, a partir do
planejamento e da intencionalidade, e a partir do Projeto Político Pedagógico da instituição (PPP, 2018),
que afirma “a escola fundamenta-se como um espaço feminista, antirracista, que fomenta a autonomia e
autoria de estudantes e de docentes”, buscamos repertórios que pudessem despertar, provocar e
convocar as crianças para pesquisar, fazer perguntas e para aprender.
A escola de educação infantil é o lugar onde as crianças irão ter suas primeiras experiências em
um ambiente coletivo, e este lugar precisa ser o lugar do encontro e do encanto, do maravilhamento e
das experiências com sentido e significados. Taís Romero (2019, p.17), argumenta que “A escola e,
sobretudo, a escola de educação infantil, precisa ser o lugar de ecos, e os adultos dessa escola precisam
saber escutar com todos os sentidos e olhar com olhos capazes de ver e reconhecer a infância e as cem,
as outras cem e as tantas outras cem linguagens da criança.”
Nessa perspectiva, de provocar o desejo e também possibilitar a apropriação pelas crianças das
contribuições histórico-culturais, trouxemos a proposta sobre as obras e a vida da pintora mexicana Frida
Kahlo. Contamos a história da Frida, apresentando um livro de história, o qual falava sobre a sua história
de vida e sobre suas obras. Conforme era contada a história, percebemos o olhar atento das crianças e o
desejo de conhecer cada vez mais sobre a pintora. Apresentamos algumas obras impressas em papel
A4. Observamos tudo, todos os detalhes das obras: cores, formas, roupas, paisagens, animais. Em um
segundo momento, as crianças receberam papel e tintas coloridas para se expressarem criativamente.
Em outro momento, foi proposto que fizessem um autorretrato, após terem observado a si mesmos em
um espelho.

238
Em outra tarde, no cantinho da fantasia usando uma caixa de roupas, a proposta foi que as
crianças se vestissem como a Frida e fizemos fotos como se fossem o autorretrato de Frida. As crianças
se encantaram e demonstravam alegria em estar vivendo a experiência de ser a pintora mexicana Frida
Kahlo. Meninas e meninos participaram experimentando e explorando os acessórios: chapéus, flores,
colares, tiaras, paletós, vestidos. As crianças viveram a experiência de se conhecer e de serem elas
mesmas. Esta experiência rica e extraordinária foi possível de ser vivida a partir do projeto feminista da
instituição, que a partir da valorização das mulheres propõe romper com o sexismo.
Ao perceber que as crianças estavam felizes ao conhecer a vida da pintora e se identificavam
com a mesma, tivemos a ideia de propor a construção de uma bonequinha de pano com o objetivo de
que cada dia uma criança a levasse para casa. Outro objetivo era que as crianças pudessem contar para
a família sobre a pintora e sobre a sua importante superação de dor atravessada pela sua história de
vida e a desconstrução de estereótipos e padrões que a arte de Frida nos faz refletir.
A professora e as crianças construíram a bonequinha. Cada um contribuiu com uma ideia para
que a bonequinha ficasse bem parecida com a Frida que havíamos observado nos autorretratos e nas
imagens de livros. O cabelo, a sobrancelha, a roupa, os olhos. Pouco a pouco fomos coletivamente
tecendo a bonequinha e a tornando real. As crianças se encantavam com a possibilidade de levá-la para
casa e poder compartilhar com a família esta experiência. Decidimos que a bonequinha iria em uma
sacolinha e um diário a acompanharia, para que as crianças pudessem fazer o desenho da Frida em sua
casa. A família também poderia fazer, se quisesse, o registro de como foi a experiência de ter passado
um dia com a bonequinha.
Desta maneira, ao final dos 24 dias o resultado foi um diário, escrito com registros de 24 famílias,
as quais demonstraram alegria e comprometimento ao compartilhar as experiências com suas filhas e
filhos.

Figura 1 - Boneca Frida Kahlo construída pela turma. Fonte: Arquivo pessoal, autora 1(2019).

239
Figura 2 - Diário de registro da Frida Kahlo construído pela turma. Fonte: Arquivo Pessoal, autora 1 (2019)

A arte é fundamental no desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional da criança, bem como


permite que ela explore diversos tipos de materiais. Essa diversidade de elementos incentiva várias
potencialidades, sendo elas realizadas de forma espontânea ou através de um convite.
De acordo com o Documento Orientador de Santa Maria (D.O.C/SM, 2019), o trabalho
pedagógico com crianças pequenas envolve uma intencionalidade na organização das propostas, a partir
da escuta, das narrativas, do diálogo, do estímulo à curiosidade da criança, tornando a escola um lugar
de acesso e de construção de diferentes culturas e conhecimentos sobre o mundo. É importante que a
organização do planejamento seja feita de forma flexível para que haja espaço para o inusitado, as
descobertas, os interesses e as curiosidades sem perder do horizonte a dimensão da intencionalidade
pedagógica.
Nós, professoras, sempre temos o cuidado de oferecer à criança o que vem ao encontro dos seus
interesses, para isso é preciso observar atentamente e sensivelmente, oportunizando variadas
possibilidades, materiais e recursos para ampliação do seu repertório. Em nossa prática proporcionamos
vivências, as quais permitem que a criança se expresse através de sua criatividade, imaginação e
autoconfiança.
As crianças desenvolvem seu protagonismo de acordo com o desenvolvimento de suas
potencialidades criativas, entretanto, as aprendizagens somente são construídas a partir de vivências
que sejam capazes de permitir vivências com sentidos e significados.
A escola não é a preparação para a vida, a escola é a própria vida. Portanto, é fundamental que
nós professoras sejamos capazes de criar oportunidades enriquecedoras, que despertem o imaginário e

240
a curiosidade, sobretudo que causem espanto através de propostas inéditas e extraordinárias como as
que Frida Kahlo trouxe para as crianças e professoras da escola por meio da arte.
Acreditamos que práticas pedagógicas como a que relatamos se configuram em situações
educativo-pedagógicas decoloniais, pois estas rompem com paradigmas estereotipados de artes
desenvolvidos a partir de desenhos prontos e sem significado para as crianças.
[...] a creche é compreendida como lócus privilegiado na construção de práticas de
educação e cuidado descolonizadoras, embasadas em pedagogias emancipatórias onde a
criança pequena em sua centralidade, as mulheres em sua maioria – docentes e
educadoras, são sujeitos no combate a múltiplas formas de opressão, violência e
discriminação. (SILVA, 2018, p.224)

Neste sentido, a partir de práticas decoloniais, as crianças vivenciam o mundo, conhecem outras
culturas, o que promove a superação do eurocentrismo desde a infância. Deste modo, constroem
conhecimentos, formulam conceitos na interação com seus pares e os adultos, e participam ativamente
da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: arte; educação infantil; prática pedagógica.

REFERÊNCIAS
Documento Orientador Curricular (D.O.C) Santa Maria, 2019. Disponível em:
https://www.santamaria.rs.gov.br/smed/710-documentos Acesso em: 08 Set. 2022.
Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Infantil - DCNEIs. 2009. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12579:educacao-infantil- Acesso em: 18 Set. 2022.
MARTINI, Daniela; MUSSINI, Ilaria; GILIOLI, Cristina e RUSTICHELLI, Francesca. Educar é a busca de
sentido. São Paulo: Editora Ateliê Carambola, 2020.
SILVA, Adriana A. Niunamenos: feminismos, pedagogias e poéticas de resistência. Dossiê Feminismo
em estado de alerta na educação de crianças pequenas em creches e pré-escolas. Revista Zero-a-seis
(UFSC), jan-jul, 2018. p.221-234.

241
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E AS APRENDIZAGENS: UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA

Larissa Vagas Brandão

Resumo

Este resumo visa explicitar as motivações que me levaram a produzir uma dissertação de
mestrado tendo como objeto pensar a escolarização das pessoas em situação de rua matriculadas na
Secretaria de Educação do Distrito Federal, buscando um olhar decolonial em torno das relações entre
Educação e Desigualdade. Traço uma linha crítica a estas políticas e à escolarização de grupos feitos
desiguais e justifico a escolha pela pesquisa etnográfica, tendo como ponto de culminância uma oficina
que foi ofertada ao público já citado, com o objetivo de relacionar os saberes e práticas apreendidas em
suas realidades com o corpo e a natureza.

Desenvolvimento

Decidi empreender esta pesquisa a partir de uma inquietação frente aos desafios observados por
mim, na posição de servidora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal - SEEDF, para a
consolidação de ações capazes de promover a escolarização da população em situação de rua.
Observa-se que, enquanto há uma extensa discussão sobre grupos marginalizados no espaço formal da
escola, a população de rua nem sequer é considerada dentro de tais discussões. Portanto, o projeto a
que me propus visou construir um diálogo com uma parcela da população de rua que não concluiu a
Educação Básica, matriculada na EMMP – Escola Meninos e Meninas do Parque, da SEEDF. Junto com
estas pessoas, intentei elaborar possibilidades de como a escola pode se aproximar de suas rotinas,
suas relações com o corpo e com a cidade. E, ao pensar nestas relações, busquei criar alicerces por
meio da Educação Ambiental crítica, que não pode ser construída de outra forma que não pensando as
relações de poder estruturantes da sociedade moderna e sem que se questione as identidades e seus
sistemas de representação. Estes sistemas promovem danosas hierarquias ao criar a diferença,
produzindo exclusão.
Em seu texto “Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de novos significados”, o
pesquisador Miguel Arroyo (2017) coloca que muitas políticas meramente inclusivas também servem
para regular um sistema de exclusão. A crítica de Arroyo dialoga com o fato de que, no campo da
educação, dar aos grupos feitos desiguais condições mínimas de escolarização não é o suficiente para
que estes saiam do nível de pobreza, de sobrevivência e do trabalho informal ou subemprego. Por isso,
para Arroyo, é preciso deixar de tratar os grupos desiguais como meros destinatários de políticas e
convidá-los a participar das políticas, pois quando as desigualdades se aprofundam estas políticas de
inclusão acabam perdendo significado e os grupos desiguais seguem sendo vistos como um problema
social. Nas palavras de Arroyo:

242
É preocupante que, na medida em que os mais desiguais chegam ao sistema escolar
expondo as brutais desigualdades que os vitimam, as relações educação-políticas-
desigualdades fiquem secundarizadas e sejam priorizadas políticas de inclusão, de
qualidade, de padrões mínimos de resultados. (ARROYO, 2017)

Nesse sentido, é fundamental reconhecer as imensas desigualdades vivenciadas no âmbito


educacional por aquelas/es em situação de profunda vulnerabilidade social das quais se destacam as
pessoas em situação de rua. Tal cenário exige a radicalização do princípio da equidade na estruturação
das políticas públicas que devem garantir o atendimento do conjunto de estudantes e a escola deve
cumprir um papel além da política de inclusão, pois precisa avançar no reconhecimento dos sujeitos que
nela estão inseridos, levando em consideração suas experiências, suas expressividades, suas falas.
A partir das relacionalidades percebidas entre a necessidade de legitimar as falas dos sujeitos em
situação de rua e seus processos de escolarização e, sem negar as contradições que irradiam do nosso
sistema de educação nos obrigando a pensar no quanto precisamos avançar em termos de políticas
públicas para a erradicação das desigualdades sociais, me propus a encarar a perspectiva de que há
que se aprender, e muito, com esta população, produzida por uma sociedade por essência excludente e
ainda apegada à ideia de que a escola se constitui como único espaço de conhecimento, já que
influenciada pelos teóricos positivistas do século XIX. Ainda não superamos a visão de uma educação
pautada no racionalismo instrumental (ADORNO; HORKHEIMER, 1995).
Neste cenário, optei pela etnografia como resposta ao entendimento de que a organização de
dados quantitativos sobre a população de rua estará sempre desatualizada, visto que há uma dificuldade
no acompanhamento de pessoas que organizam sua existência de modo itinerante e à margem da
formalidade que nossa burocracia prevê como mecanismo de controle populacional. Os campos da
etnografia e educação podem produzir possibilidades de experimentação para se construir um olhar mais
atento para as questões educacionais e, quem sabe, consigamos nos livrar da percepção de que
formulamos um sistema que, em largada, já se constitui excludente porque não se organiza a partir da
necessidade da base de nossa escala social piramidal.
Ainda, minha pesquisa teve como ponto de culminância do período de campo uma oficina
intitulada “Oficina do Bem Viver”, de 10 horas de duração, realizada com a comunidade escolar da
EMMP – Escola Meninos e Meninas do Parque, a fim de propor formas de registro de vivências tanto da
expressividade quanto no campo da Educação Ambiental e pautadas na proposta de uma educação da
atenção. A oficina foi ofertada para os estudantes matriculados na EJA e para as crianças que participam
da turma multisseriada dos anos iniciais. Estas crianças têm entre sete e doze anos de idade e
encontram-se em defasagem idade-ano. É sobre o diálogo com essa turma que me proponho a discorrer
no presente seminário.
A oficina teve como base metodologias que colhi da minha formação inicial em Artes Cênicas,
com abordagens ambientais inspiradas no Bem Viver, que é “essencialmente, um processo proveniente
da matriz comunitária dos povos que vivem em harmonia com a natureza.” (ACOSTA, 2016, p.24).
Intencionei fugir do ponto de vista hegemônico como o modelo de sustentabilidade atualmente proposto,
que vê a natureza como recurso e não como sujeito de direitos, me lançando na construção de vivência
que poderá servir como mecanismo de diálogo e baseando-me nos princípios da cosmovisão andina.

243
O trabalho foi desenvolvido em consonância com a transdisciplinaridade que vê o ser humano
como peça chave para a compreensão das diversas realidades e, ainda, que “um ser humano que só é
na relação com os outros e com o mundo vital que o constitui como corpo vivente infinitamente
transformativo, em movimento, nascendo e morrendo em infindáveis eras…” (GALEFFI, 2019, p. 226).
Serão apresentados diversos recursos expressivos e socioambientais usados para estimular as várias
possibilidades de interação coletiva, a partir de cinco princípios fundamentados no Bem Viver e na ética
Ubuntu, além de seus resultados construídos coletivamente com um grupo de estudantes em situação de
rua matriculados na SEEDF.

PALAVRAS-CHAVE: educação; corpo; educação ambiental; decolonialidade; pessoas em situação de


rua.

REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu
Breda. São Paulo: Autonomia Literária/Elefante, 2016.
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. O conceito de Esclarecimento. A dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
ARROYO, M. G. Políticas educacionais e desigualdades: à procura de novos significados. Disponível
em: https://www.scielo.br/pdf/es/v31n113/17.pdf
GALEFFI. Dante Augusto Transdisciplinaridade e coprodução de conhecimento: uma proposição
polilógica. In: DRAVET, Florence; PASQUIER, Florent; COLLADO, Javier,
GUIMARÃES, Mauro. Por uma Educação Ambiental Crítica na Sociedade Atual. Revista Margens
Interdisciplinar, v. 7, n. 9, Dossiê Educação Ambiental, 2013. Disponível em:
&lt;https://bit.ly/37inkCW&gt;.

244
DECOLONIZANDO PRÁTICAS NO ENSINO DE FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA:
POSSIBILIDADES OUTRAS ATRAVÉS DA PRODUÇÃO DO CONTO-LIVRO “RITA, UMA TAMPINHA
NO FUNDO DO OCEANO”

Marilene Almeida
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal do Amapá (PPGLET-UNIFAP).
Licenciada em Letras Português-Frances pela UNIFAP. Especialista em Metodologia do Ensino de Línguas e
Literaturas pela UEAP. Professora de Língua Francesa do Governo do Estado do Amapá.
almeidamarilene03@gmail.com

Rosivaldo Gomes
Orientador. Coordenador do NEPLA. Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas e
Professor no Curso de Letras/Português do Campus Marco Zero na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).
Professor Permanente na Pós-Graduação em Letras da UNIFAP (PPGLET-UNIFAP). rosivaldo@unifap.br

Resumo

O estudo em tela inscreve-se no campo da Linguística Aplicada Indisciplinar. Apresenta-se com um


recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento, e surge a partir dos dados da pesquisa de campo.
Este trabalho possui como objetivo principal analisar o protagonismo infantil através da produção do
conto-livro “Rita uma tampinha no fundo do oceano”; produzidos a partir do projeto colonial FrancEcolab
Brasil. Como objetivos específicos, intentamos discorrer sobre o agir/agência dos professores da Escola
Estadual Marly Maria e Souza da Silva e discutir acerca da reflexão infantil a partir de ações que
possibilitem pensar atitudes, tendo como princípio a pesquisa qualitativa-interpretativista (BORTONI-
RICARDO, 2008). Os resultados parciais mostram que o projeto FrancEcolab está alinhado às
colonialidades.

Práticas insurgentes para re-existir

“Rita uma tampinha no fundo do oceano” é um livro-conto escrito, criado e ilustrado por alunos da
Escola Estadual Professora Marly Maria e Souza da Silva, instituição escolar que possui na sua
constituição um Projeto Bilíngue (português-francês). A atividade foi orientada pelos professores de
Francês e coordenadora linguístico-pedagógica da instituição; tal produção autoral foi vencedora do
concurso nacional FrancEcolab 2021.
O projeto FrancEcolab foi implementado em 2021, possuiu como tema “A preservação dos
oceanos e rios e a luta contra microplasticos”, conta com uma edição a cada ano sendo realizado
anualmente pela Embaixada Francesa no Brasil. Observamos no projeto a colonialidade enquanto matriz
ou padrão cultural colonial de poder” (MIGNOLO, 2017).

245
Figura 1 – Crianças protagonistas do conto-livro e vencedoras do concurso nacional. Fonte: Portal Governo do
Estado do Amapá, 19 de novembro de 2021

Em seu bojo, “a França ressalta seu compromisso em proteger o oceano, as águas e, assim, a
vida no planeta, graças ao projeto FrancEcolab”, que apresenta-se enquanto “dinâmico, inovador e
promissor e visa sensibilizar escolas e jovens ativistas sobre a importância do meio ambiente". Na
referida edição, o projeto envolveu “50 escolas parceiras” totalizando 3.500 estudantes, em 12 estados
da federação brasileira.

Figura 2 – Colaboradores do projeto e vencedores do Concurso Nacional FrancEcolab 2021 (professores/as de


francês, coordenadores e gestores da instituição escolar). Fonte: Portal Governo do Estado do Amapá, 19 de
novembro de 2021

No que concerne a colonialidade, é factível que “a colonialidade do poder não é uma entidade
homogênea que é vivida do mesmo modo por todos os grupos subalternizados, e que a interculturalidade
não é um conceito isolado das complexas imbricações da diferença e das histórias locais.” (Walsh, 2019,
p. 19)
O conto escrito pelas crianças da escola mostrou como um microplástico pode viajar por todo o
mundo através das águas, se este for descartado de maneira irregular na natureza, e mostrou a
preocupação das crianças com o meio ambiente.

246
Do projeto colonial ao conto-livro enquanto possibilidade decolonial

A produção de conhecimento na América latina é permeada por influências europeias e, apesar


da colonialidade do saber, do ser e do poder imperar no Projeto FrancEcolab, é possível pensar em
possibilidades outras, transformando essa prática colonial em atividades educativas, numa opção
decolonial (MIGNOLO, 2021), bem como, numa tentativa de desobediência epistêmica (MIGNOLO,
2008) para uma reflexão e conhecimento outro (WALSH, 2019), através do protagonismo das crianças.

Figura 3 – Conto-livro “Rita uma tampinha no fundo do oceano” produzido por crianças da Escola Estadual
professora Marly Maria e Souza da Silva. Fonte: Portal Governo do Estado do Amapá, 19 de novembro de 2021

A partir da visão da construção do conhecimento outro, mencionado por Walsh, as crianças


visibilizam positivamente os atores envolvidos instituindo nesse contexto, a si, a escola, suas produções
autorais, as estéticas produzidas no livro, os discursos, difundindo assim seus saberes e fazeres locais.
Através de “ações” como essa é possível tentar romper com essas colonialidades, abrindo
fissuras decoloniais para, quem sabe, alcançar “virada epistemológica”, buscando
Um pensamento “outro”, que orienta o programa do movimento nas esferas política, social
e cultural, enquanto opera afetando (e descolonizando), tanto as estruturas e os
paradigmas dominantes quanto a padronização cultural que constrói o conhecimento
"universal" do Ocidente. (WALSH, 2019, p. 16)

Mesmo o projeto representando a tríade colonial, as produções que espelham os saberes locais
trazem em parte do seu bojo contextos da realidade amazônica e, diga-se, amapaense. Os anseios
apresentam-se materializados no livro, na busca de reverberar um saber outro.
O professor, nesse contexto, desempenha um papel importante através do seu agir/agência, haja
vista que mobiliza uma série de repertórios didáticos, poder-fazer, querer-fazer, saber-fazer (LEURQUIN,
2013). Precisamos decolonizar as crianças, pois as mesmas são agentes responsáveis e responsivos a
demandas sociais/ambientais.
A escola e os/as professores/as necessitam incitar os alunos a pensar alternativas para além das
já instituídas pelas colonialidades e, nesse contexto, pelo Projeto FRANCECOLAB BRASIL.

247
Considerações Insurgentes

Os resultados parciais mostram, a partir das epistemologias decoloniais, que o Projeto


FrancEcolab (e suas ações) reverbera a colonialidade do saber-ser-poder, mas o professor, através da
sua agência contra hegemônica e transgressora, pode buscar romper essa realidade, através das suas
práticas laborais, mesmo que estas sejam moldadas sob uma estrutura colonial.
A escola, as crianças e os professores podem, através do seu agir, abrir fissuras decoloniais,
ressignificando práticas discursivas eurocêntricas em possibilidade para refletir saberes outros,
“transformando” projetos consolidados sob a égide colonial em uma tentativa de práticas educativas
decolonizadoras realizadas com e por crianças no espaço escolar.
No Amapá, estado localizado no extremo norte do Brasil, única fronteira com um departamento
ultramarino francês, em uma instituição escolar que possui um Projeto Bilíngue e colonial, é possível
transgredir, resistir e re-existir através da construção de contos-livros amazônicos na escola, inscritos e
escritos através do protagonismo infantil. Vamos seguindo e tentando realizar um “giro decolonial”
(in)tentando decolonizar a escola, as crianças e as infâncias.

PALAVRAS-CHAVE: infância; discursos; (de)colonialidade; práticas outras; escola.

REFERÊNCIAS
LEURQUIN, E. V. L.F. O que dizem os professores sobre seu agir professoral? In: Ensino-
aprendizagem na perspectiva da linguística aplicada. MAGELA, A. F. L. (org). Campinas: Editora
Pontes, 2013, p. 299-233.
KLEIMAN, Angela B.Vianna, Carolina Assis Dias. De Grande, Paula Baracat. A Linguística Aplicada na
contemporaneidade: uma narrativa de continuidades na transformação Calidoscópio 17 (4), 2019,
p.724-742.
WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder um pensamento e posicionamento
"outro" a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel) V. 05, N. 1, Jan.-Jul., 2019.
WALTER, Mignolo. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política. Cadernos de Letras da UFF, 2008.
_______, Mignolo. Desafios decolonais hoje (2017) In: Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu/PR, 1(1),
2017, p. 12-32.

248
SUBJETIVIDADE SOCIAL NA BIBLIOTECA INFANTIL-ESCOLINHA DE CRIATIVIDADE 104/304 SUL:
ARTE, CULTURA E EDUCAÇÃO

Paula da Silva Moreira


Licenciada em Pedagogia pela Universidade de Brasília (2003). Especialista em Educação Infantil pela
Universidade de Brasília (2015). Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade de Brasília (2022). Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal desde 1998,
com experiência nas áreas de Educação Infantil, Alfabetização e Coordenação Pedagógica.
paulamoreira.educ@gmail.com

Resumo

A presente pesquisa teve como objetivo geral compreender e dar visibilidade às produções e expressões
da subjetividade social que configuram o espaço físico, e social, da Biblioteca Infantil-Escolinha de
Criatividade 104/304 Sul, localizada na Asa Sul, Região Administrativa de Brasília, Distrito Federal. A
Teoria da Subjetividade, os princípios da Epistemologia Qualitativa e a proposta da Metodologia
construtivo-interpretativa elaboradas por González Rey (1949-2019) constituem uma tríade teórica-
epistemológica-metodológica que fundamentou, e subsidiou, a complexidade do processo de construção
de informações nesta investigação. Para compreender os processos constitutivos das expressões da
subjetividade social no contexto de pesquisa, diversos instrumentos e estratégias foram utilizados, tais
como: complementos de frases, observações participantes, dinâmicas conversacionais, análise
documental, análise de registros fotográficos e de redes sociais como o Instagram. A construção
interpretativa permitiu compreender que a diversidade de vivências em artes, possibilitada pelo projeto
Escolinha de Criatividade, reverbera para além das infâncias das crianças que participam do projeto,
constituindo-se como parte significativa da subjetividade social deste espaço educativo. A configuração
da subjetividade social da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade também é marcada por incertezas
decorrentes da Portaria nº 380/2018, na qual o grupo de profissionais produz, subjetivamente, um
posicionamento crítico e reflexivo diante das tensões e questionamentos, e reorganiza coletivamente
seus processos de atuação e de relacionamento institucional com a Secretaria de Educação.

Introdução
“Poesia é voar fora da asa”
Manoel de Barros

Segundo a Teoria da Subjetividade, o processo educativo se qualifica pelo seu caráter amplo e
abrangente, e suas ações devem estar alicerçadas “na pessoa que se educa” (MITJÁNS MARTINEZ et
al, 2020, p. 29) e “na ideia de produção criativa e, por isso mesmo, plenamente subjetivada e
proficuamente diversa” (MITJÁNS MARTINEZ et al, 2020, p. 34).
Arte e educação são processos complexos e imprevisíveis. Estão profundamente imbricados e
em constante movimento na sociedade, especialmente se partirmos do princípio de que a diversidade de

249
processos e experiências constituem os seres humanos “dentro das importantes dimensões individual,
social, cultural e histórica” (MITJÁNS MARTINEZ, et al, 2020, p. 29).
Enquanto atividade humana, a arte é complexa, diversa e rica em possibilidades de
experimentação, imaginação e criação, especialmente em processos educativos para as infâncias. A arte
nos processos educativos possibilita a potencialização do desenvolvimento humano, pois “[...] a arte
sempre carregará em sua feitura uma apreciação do que é humano” (FERREIRA, 2020, p. 201).
A Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade está localizada em um prédio idealizado por Oscar
Niemeyer na 104/304 Sul, na Asa Sul, Plano Piloto na cidade de Brasília. É uma das bibliotecas
administradas pela secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), e atualmente está
sob a legislação da Portaria n° 380 de 23 de novembro de 2018 e, segundo essa norma, está
denominada como uma Biblioteca Escolar-Comunitária.
Na Proposta Pedagógica da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade 104/304 Sul consta que,
desde a sua criação em 1969, oferece serviços integrados de biblioteca e de educação não formal por
meio da Escolinha de Criatividade. As atividades são focadas na promoção da leitura, nas vivências em
artes e no desenvolvimento da criatividade para crianças e adolescentes (DISTRITO FEDERAL, 2020)
“[...] esta Biblioteca nasceu diferenciada das outras bibliotecas escolares-comunitárias, por ter o seu
funcionamento vinculado ao da Escolinha de Criatividade já desde a inauguração [...]” (DISTRITO
FEDERAL, 2020, p. 04). A proposta educativa da Biblioteca Infantil-Escolinha da Criatividade reverbera
os ideais de uma nova educação propostos pelo educador Anísio Teixeira, além de incluir os preceitos do
Movimento das Escolinhas de Arte do Brasil (DISTRITO FEDERAL, 2020).
As crianças matriculadas na Escolinha da Criatividade encontram-se duas vezes por semana, e
cada encontro dura em média 1h45min. A Biblioteca é especializada em literatura infanto-juvenil e conta
com um acervo amplo e diverso. O empréstimo de livros é feito também para as crianças que não
participam do projeto da Escolinha, mediante cadastro. O projeto Escolinha de Criatividade destaca-se
pelo seu fazer pedagógico exitoso, historicamente constituído em referência de educação e cultura em
Brasília. É a única Biblioteca pública, escolar-comunitária do Distrito Federal com estas especificidades,
e que desenvolve um trabalho pedagógico com ênfase à arte e ao protagonismo infantil há 53 anos.
Para compreender aspectos que configuram a subjetividade social Biblioteca Infantil-Escolinha de
Criatividade, evidenciada nesta pesquisa, é essencial apresentar a Teoria da Subjetividade, uma
perspectiva teórica, crítica e dialógica desenvolvida por González Rey (1949-2019) que fornece um
conjunto de categorias conceituais: sentidos subjetivos, configuração subjetiva, subjetividade individual,
subjetividade social, agente e sujeito.
O aporte teórico da Teoria da Subjetividade de González Rey enfatiza o lugar do social nos
processos educativos.
O social deixa de ser considerado como externo ao indivíduo, considerando-se como
constitutivo dele, para qual o conceito de subjetividade social em suas articulações com a
subjetividade individual resulta importante. (MITJÁNS MARTÍNEZ; GONZÁLEZ REY,
2017, p. 16-17).

O objetivo geral desta investigação consiste em compreender e dar visibilidade às produções e


expressões da subjetividade social que configuram o espaço físico e social da Biblioteca Infantil-

250
Escolinha de Criatividade. E os objetivos específicos consistem em: 1. Compreender o funcionamento da
Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade, os processos e dimensões da configuração subjetiva social
que se relacionam ao espaço físico da Biblioteca Infantil e à proposta educativa da Escolinha de
Criatividade expressos nas ações e inter-relações constituintes desse espaço social educativo não
formal; 2. Analisar documentos norteadores do trabalho da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade
104/304 Sul e as produções subjetivas do grupo de profissionais relativas à Portaria nº 380/2018, bem
como seus desdobramentos nas configurações da subjetividade social.

Figura 1 – “Área Externa da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade 104/304 Sul”. Fonte: Acervo da autora,
2021

Configuração de Pesquisa

A proposta deste tópico consiste em apresentar a proposta epistemológica e metodológica desta


investigação, tendo em vista os estudos com o tema da subjetividade. A Epistemologia Qualitativa se
articula aos conceitos teóricos da Teoria da Subjetividade e a materialização do referido estudo se dá por
meio da Metodologia construtivo-interpretativa, que define a pesquisa em sua dupla condição teórica e
dialógica (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTINEZ, 2017).
Nesta pesquisa, o diálogo permitiu a expressão autêntica e diferenciada das participantes de
pesquisa; o valor epistemológico da singularidade se expressou nas especificidades da Biblioteca
Infantil-Escolinha de Criatividade, se constituindo em uma fonte diferenciada para a construção do
conhecimento, o caráter construtivo-interpretativo foi o processo no qual, com base na interpretação de
informações, a pesquisadora elaborou indicadores que subsidiaram a construção de hipóteses,
resultando no modelo teórico constituído por dois eixos de inteligibilidade.

Construção do cenário social de pesquisa

251
O processo de construção do cenário social de pesquisa se deu, inicialmente, na modalidade
virtual, devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19.
O retorno presencial ocorreu de maneira gradual e inicialmente se deu na modalidade híbrida,
pois algumas participantes foram vacinadas com dose única e outras estavam aguardando a segunda
dose da vacina contra a Covid-19. Nesse contexto, as aulas de artes ocorreram presencialmente e a
hora do conto permaneceu no Google Meet. Mas ambas as modalidades estavam com o número
reduzido de crianças, pois algumas famílias apresentaram dificuldades com a nova rotina e outras
esperavam a vacina para as crianças. Esse período, de setembro a dezembro de 2021, não foi tão
favorável para a pesquisa.
Em fevereiro de 2022, o projeto Escolinha de Criatividade retornou em sua integralidade. Percebi
que, nesse novo contexto, o processo investigativo foi intensificado, pois as dinâmicas conversacionais
ficaram mais ricas e diversificadas, assim como tive acesso a mais informações e expressões subjetivas
– se constituindo como elementos favoráveis ao processo construtivo-interpretativo.

Participantes da pesquisa

O estudo foi desenvolvido com o grupo de profissionais da SEEDF lotados na Biblioteca Infantil-
Escolinha de Criatividade, vinculados à Coordenação Regional de Ensino do Plano Piloto. Participaram
desta investigação 8 professoras que atuam em diferentes funções, para efetivação do funcionamento e
atendimento da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade.

Instrumentos de Pesquisa

Visando gerar inteligibilidade e dar visibilidade às produções e expressões da subjetividade social


que configuram o espaço físico, e social da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade, foram utilizados
no processo investigativo os seguintes instrumentos: Observação participante; Dinâmicas
conversacionais; Momentos informais; Entrevistas semiestruturadas; Análise documental da Proposta
Pedagógica da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade; Análise documental da Portaria nº 380/2018;
Complementos de frases; Análise de fotos e rede sociais, como o Instagram.

Processo construtivo-interpretativo

A pesquisa apontou que as expressões da subjetividade social da Biblioteca Infantil-Escolinha de


Criatividade se configuraram historicamente de maneira singular, contraditória e dinâmica. Isso significa
dizer que o entrelaçamento entre subjetividade social e individual expressa na configuração da
subjetividade social da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade está permeado pela singularidades e
diversidades das pessoas que compõem esse espaço educativo (MITJÁNS MARTINEZ; et al, 2020).
Neste estudo, o entrelaçamento entre subjetividade social e individual ficou visível pela forma com que

252
cada participante subjetiva singularmente sua relação e vinculação afetiva com o espaço da biblioteca e
como as diversas expressões subjetivas se configuram na subjetividade social.
O grupo de profissionais da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade valoriza afetivamente o
seu local de trabalho, atribuindo valor à qualidade e às possibilidades relacionais e educativas que o
espaço proporciona para crianças e adultos. A emergência de sentidos subjetivos relacionados ao
carinho, ao respeito e ao acolhimento está configurada socialmente no valor que cada profissional atribui
à Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade.
O projeto Escolinha de Criatividade, desenvolvido no espaço da Biblioteca Infantil, se configurou
historicamente em uma proposta educativa emancipadora alinhada aos preceitos da educação integral e
integradora proposta por Anísio Teixeira no Plano Educacional para a nova capital. Sua configuração
subjetiva social se relaciona recursivamente ao espaço físico da Biblioteca Infantil e à proposta educativa
da Escolinha de Criatividade.
A constituição e a singularidade da subjetividade social se expressam também, no valor à
qualidade e às possibilidades relacionais e educativas que o espaço proporciona para crianças e adultos,
se expressam também na valorização do objeto livro e da literatura infantil que se configuram como um
suporte histórico-cultural primordial da subjetividade social do espaço e a partir deles se organizam as
relações interpessoais e o desenvolvimento do trabalho pedagógico com as crianças.
Outra expressão da subjetividade social da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade está
relacionada ao valor da arte e da cultura nas vivências institucionais, como os Saraus Literários. As
vivências culturais são favorecedoras à produção de sentidos subjetivos relativos a confiança,
envolvimento e participação ativa da comunidade e se converteram, ao longo do tempo, em um espaço
profícuo para educação intergeracional.
A subjetividade social da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade também é constituída por
expressões de frustações, desconfortos e incômodos institucionais devido à ausência de apoio e
reconhecimento da Secretaria de Educação em relação ao trabalho pedagógico da Escolinha de
Criatividade, especialmente expressos pelo texto da Portaria nº 380/2018 que se contrapõe ao
reconhecimento acadêmico, histórico e social em relação ao trabalho desenvolvido. Nesse contexto, as
expressões de luta e resistência fazem parte da configuração subjetiva social da Biblioteca Infantil-
Escolinha de Criatividade, pois, ao longo do tempo, criou vias alternativas e estratégicas em parceria
com a comunidade, possibilitando a continuidade do trabalho pedagógico da Escolinha de Criatividade.
Lopes defende (2018), que a questão geográfica também participa dos processos de
desenvolvimento humano. E a partir da perspectiva de desenvolvimento articulada teoricamente com o
conceito de subjetividade social, nesta pesquisa foi possível perceber que a relação que as pessoas
estabelecem com o espaço físico é expressão que constitui a subjetividade social da Biblioteca Infantil-
Escolinha de Criatividade.

Considerações Finais

253
Inicialmente, a pesquisa foi idealizada para acontecer no espaço físico da Biblioteca Infantil-
Escolinha de Criatividade, mas devido à pandemia de Covid-19 precisou acontecer em muitos momentos
de frente para tela de um computador ou de um telefone celular. A pesquisa que aconteceria entre livros,
tintas, pincéis, papéis coloridos, crianças e professoras, ficou em segundo plano. Apesar de todas
contrariedades, foi por meio da virtualidade que a pesquisa foi iniciada e a construção do cenário social
de pesquisa pôde ser realizada. O acolhimento que se iniciou virtualmente, permaneceu na modalidade
híbrida e presencialmente, na espacialidade da Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade.
O trabalho pedagógico realizado pela Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade em sua
essência inspira e permite um novo olhar para a educação. É um olhar diferenciado, que se configura no
valor da educação não formal para o desenvolvimento infantil. Ao ampliar e fortalecer a emergência de
novas concepções de educação, a Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade expressa em suas
proposições educativas o valor de espaços educativos não formais na cidade, por ir além da formalidade
da escola e potencializar os processos de desenvolvimento humano.
A Biblioteca Infantil-Escolinha de Criatividade, localizada em uma das asas do Plano Piloto,
constituiu-se historicamente como um espaço educativo com asas, um lugar dedicado à liberdade e à
criatividade. É passarinho! Pois aprendeu com Manuel de Barros a fazer poesia fora da asa. Ou seja, é
um espaço que não nasceu em gaiola, portanto, rapidamente percebe as grades que tentam aprisioná-la.
É também um espaço de existência, de resistência e de potencial revolucionário.
E, sendo uma “Biblioteca com asas”, esse espaço educativo voa por outros caminhos, resistiu e
permanece resistindo aos ventos fortes, não se deixando engaiolar, porque, como bem diz Rubens Alves
(1997), “[...] passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar…”

PALAVRAS-CHAVE: subjetividade Social;biblioteca infantil; arte; trabalho pedagógico; educação não


formal.

REFERÊNCIAS
ALVES, Rubens. O Passarinho Engaiolado. 8ªEd. Editora Papirus 7 Mares.1997. ISBN:
9788530804848.
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado de Educação. Portaria no 380, de 23 de novembro de 2018.
Dispõe sobre a organização e funcionamento das bibliotecas escolares e bibliotecas escolares-
comunitárias da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal e dá outras providências. Brasília:
Governo do Distrito Federal, 2018. Disponível em: https://www.sinprodf.org.br/portaria-no-380-de-23-de-
novembro-de-2018/.
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF). Proposta
Pedagógica da Biblioteca Infantil 104/304 Sul, 2020.
FARIAS, Rhaisa Naiade Phael; MÜLLER, Fernanda. A Cidade como Espaço da Infância. Educação &
Realidade, Porto Alegre, v. 42, n. 1, p. 261-282, jan./mar. 2017. https://doi.org/10.1590/2175-623654542
Acesso em: 06 out. 2021.

254
FERREIRA, Nathalia Botura de Paula Ferreira. Catarse e Literatura: uma análise com base na
Pedagogia Histórico-Crítica. In: GALVÃO. Ana Carolina (Org.). Infância e Pedagogia histórico-crítica.
2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2020. p. 195-210.
GONZÁLEZ REY, F. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thomson
Learning, 2003.
GONZÀLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da
informação. Tradução de Marcel Aristides Ferrada Silva. São Paulo: Cengage Learning, 2005.
GONZÁLEZ REY, F. La significación de Vygotsky para la consolidación de lo afectivo en la educación: las
bases para la cuestión de la subjetividad. Actualidades Investigativas en Educación, v. 9, p. 1-24,
2009. Acesso em: 13 set. 2020.
http://www.fernandogonzalezrey.com/images/PDFs/producao_biblio/fernando/artigos/
Psicologia_historico_Cultural/La_significacion_de_vygotsky.pdf
GONZALEZ REY, Fernando Luis; MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. Subjetividade: teoria, epistemologia e
método. Campinas, SP: Alinea, 2017.
LOPES, Jader Janer Moreira. Geografia e educação infantil: espaços e tempos desacostumados. Porto
Alegre: Mediação, 2018.
MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. Subjetividade social: desafios de um conceito. In: MITJÁNS MARTÍNEZ,
Albertina; TACCA, Maria Carmen V. Rosa; PUENTES, Roberto Valdéz (Org.). Teoria da subjetividade:
discussões teóricas, metodológicas e implicações na prática profissional. Campinas, SP: Alínea, 2020.
MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina; GONZÁLEZ REY, Fernando. Psicologia, educação e aprendizagem
escolar: avançando na contribuição da leitura cultural-histórica. São Paulo: Cortez, 2017.

255
MOVIMENTOS DE (RE)PENSAR; RESISTIR E (RE)INVENTAR AS EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS NAS
ESCOLAS-PARQUE DE BRASÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE

Rafaella Lira de Vasconcelos


Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Arte-educadora na Secretaria de Estado de Educação
do Distrito Federal (SEEDF). Membro do grupo de pesquisa Imagem – UnB. ellaella68@gmail.com

Ingrid Dittrch Wiggers


Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente na Faculdade de Educação e
Educação Física da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. ingridwiggers@gmail.com

O estudo tem como objetivo compreender, em uma perspectiva comparada entre os tempos, as
concepções das experiências artísticas vivenciadas na contemporaneidade das escolas-parque de
Brasília. Buscou-se conhecer essas concepções a partir das percepções de nove arte-educadores
atuantes na Escola Parque da 313/314 Sul, expressas em entrevistas semiestruturadas realizadas no
ano de 2019, enquanto aporte metodológico de pesquisa desenvolvida no âmbito do doutorado em
Educação na Universidade de Brasília. A entrevista, segundo Szymanski (2018), constitui uma rede
particular de conversa que adentra as subjetividades, memórias e elaborações dos entrevistados. A
problematização das entrevistas foi realizada à luz da análise pragmática da linguagem (MATTOS, 2005).
As escolas-parque de Brasília foram idealizadas no final da década 1950 pelo filósofo e educador
brasileiro Anísio Teixeira (1900-1971) em seu Plano de Construções Escolares (1961) e inspiradas nos
preceitos do pragmatismo de John Dewey (1859-1952). Neste projeto, Teixeira concebeu a
materialização da educação em uma prática democrática, pautada na integralidade da formação de
indivíduos para a sociedade moderna (VASCONCELOS; WIGGERS, 2020, p. 583). A edificação das
escolas-parque de Brasília representa importante experiência da educação artística no ensino brasileiro.
Na proposta educativa para a nova Capital, Teixeira (1961) vislumbrava uma arquitetura escolar
articulada aos ideais de renovação pedagógica, apta a romper com os modelos tradicionais da
transmissão dos saberes e estimular as práticas sociais democráticas, as construções, experimentações
e novas problematizações do cotidiano infantil. Nesse sentido, o plano se alinhou ao projeto urbanístico
de Lúcio Costa para a nova Capital, pensando as escolas-parque como fomentadoras da convivência
social, capazes de entrelaçar espaço, indivíduo e aprendizagem (VASCONCELOS, 2011).
Ao longo dos 62 anos de existência das escolas-parque houveram diversas transformações que,
na contemporaneidade, têm movido os arte-educadores a (re)elaborarem suas práticas pedagógicas e
(re)conceberem as experiências artísticas nessas instituições de ensino.
Nessa toada, o professor Araújo manifestou que ao (re)pensar seu trabalho enquanto arte-
educador entende a necessidade de estimular práticas pedagógicas libertadoras. Já o Professor Freitas
se põe como um articulador da pluralidade apresentada pelas crianças, seja em termos culturais, sociais
e/ou econômicos. Essa atenção para a diversidade e, consequentemente, para a valorização da
identidade, tem relação com as peculiaridades do público atendido nas escolas da CRE do Plano Piloto e
da relação deste com a cidade, uma vez que as escolas classe e parque de Brasília recebem estudantes
de diversas regiões do Distrito Federal e Entorno.

256
Dessa forma, os professores necessitam estar preparados para lidar com uma variedade de perfis
de crianças, pois cada localidade expressa uma realidade social, cultural, política e econômica. O
Professor Freitas reforça, portanto, a importância da pedagogia do educador Paulo Freire, a qual
evidencia que cada criança traz consigo um conjunto de vivências, informações e formas de atribuição de
sentido para a realidade e que estas características não podem ser ignoradas no processo de construção
dos conhecimentos, dos ensinos e aprendizagens.
A educação na perspectiva libertadora também é citada na prática pedagógica da Professora
Mello, que afirma conceber seu trabalho alicerçado no pensamento freiriano, em particular através do
lúdico, da alfabetização do olhar, da leitura de imagens e da busca por soluções para os problemas
propostos pelas próprias crianças. Os elementos apontados pelo Professor Ribeiro acerca de suas
proposições para as experiências artísticas nas escolas-parque evidenciam um trabalho pautado no
processo colaborativo e na construção da identidade dos indivíduos. Para isso, o professor se utiliza da
dramaturgia, da oralidade, da valorização dos saberes e das histórias das crianças.
Vê-se que as narrativas dos professores apontam para a concepção de experiências artísticas
voltadas para a valorização da identidade dos estudantes e da escola como um território plural em que
os indivíduos se percebem e atuam no espaço, reconhecendo a si e ao outro. Essa dinâmica, segundo a
Professora Mercês, é possível no entrelace das propostas curriculares, dos projetos políticos
pedagógicos das instituições e das demandas e expectativas das crianças. No caso da Professora
Ribeiro, as práticas pedagógicas em música envolvem um exercício de resistir e (re)inventar da arte nas
escola-parque, pois esta linguagem permite ao professor explorar a fala e a escuta, tanto das crianças
em relação às músicas como umas em relação às outras.
Observa-se que as concepções das experiências artísticas elaboradas pelos arte-educadores
atuantes nas escolas-parque de Brasília na contemporaneidade pelejam por um ensino de arte que
resista aos aspectos de uma formação centrada em competências e habilidades, descolada do caráter
crítico e criativo, condição irrefutável para estruturar um público forte (DEWEY, 1946), voltado ao
exercício democrático. Embora atreladas a um modelo de atendimento que impõe desafios ao trabalho
docente e à qualidade dessas experiências, as concepções indicam um movimento de (re)pensar, resistir
e (re)inventar da arte-educação nessas instituições face a um processo de fragilização das humanidades
nos currículos escolares que favorece a instrumentalização da educação. Isso porque outros elementos
impostos a esse modelo de atendimento, como os cuidados com a higiene, alimentação e descanso das
crianças, por exemplo, atravessam a realização do labor artístico e das possibilidades de uma poiesis
educativa.

PALAVRAS-CHAVE: escola-parque; arte-educação; experiências artísticas.

REFERÊNCIAS
DEWEY, John. The Public and Its Problems: An Essay in Political Inquiry. Chicago: Gateway, 1946.

257
MATTOS, Pedro Lincoln C. L. A entrevista não estruturada como forma de conversação: razões e
sugestões para sua análise. Revista de Administração Pública (RAP), v. 39, n. 4, p. 823-846, 2005.
Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6789. Acesso em: 12 abr. 2020.
VASCONCELOS, Maria Paula de Almeida. Sonho, memória e educação: a construção do brasiliense.
2011. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília,
Brasília, 2011. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/9425. Acesso em: 14 mar. 2018.
VASCONCELOS, Rafaella Lira Silva dos Santos de; WIGGRES, Ingrid Dittrich. A arte nas escolas-parque
de Brasília: concepções do trabalho pedagógico. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (Rbep),
v. 101, n. 259, p. 547-566, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.101i259.3870.
Acesso em 07 out. 2021.
SZYMANSKI, Heloisa. A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. 5. ed. Campinas:
Autores Associados, 2018.
TEIXEIRA, Anísio Spindola. Plano de construções escolares de Brasília. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos, Guanabara, v. 35, n. 81, p. 195-199, jan./mar. 1961. Disponível em:
www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/plano3.html. Acesso em: 2 fev. 2018.

258
A ESCOLA QUE TEMOS E A ESCOLA QUE QUEREMOS

Renata de Moraes Lino


Mestre em Educação Física (2020). Licenciada em Educação Física pela Universidade de Brasília (2000).
Licenciada em Dança pelo Instituto Federal de Brasília (2013). Licenciada em Pedagogia pela UniCESUMAR
(2015). Especialista em Esporte Educacional pela Universidade de Brasília (2002), Psicopedagogia pela
Universidade Católica de Brasília (2006) e Psicomotricidade pela Faculdade JK Michelangelo (2021). Atualmente é
professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. renatinhamlino@gmail.com

A escola é um espaço de possibilidades de aprendizagens e desenvolvimento. Pensar numa


escola de crianças é buscar garantir espaços pedagógicos que valorizem a infância em suas
particularidades. Para isso, é necessário que os professores ouçam e valorizem as vozes das crianças.
Dar atenção aos discursos narrativos infantis pode ser o início de um trabalho promissor com resultados
significativos para uma prática pedagógica que tenha o protagonismo infantil como parceiro. Entendemos
neste trabalho a criança como sujeito integrado e situado histórica, social e culturalmente. Ela é, ao
mesmo tempo, produto e produtora da história humana (VYGOTSKY, 1991; CASTRO, 2019).
A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) tem no Currículo em Movimento
para a Educação Infantil (2018) uma visão centrada na participação ativa da criança no fazer pedagógico
escolar. Nele incentiva-se que as crianças participem de experiências na cultura falada. Ao participar de
conversas, momentos de descrição, expondo suas narrativas de forma individual ou coletiva, utilizando-
se de múltiplas linguagens, elas se afirmam como sujeitos singulares de um grupo social.
Tais participações, quando os professores terão oportunidade de conhecer as preferências das
crianças, ajudarão na reorganização das atividades visando o alcance dos objetivos infantis e das
aprendizagens coletivas. As práticas pedagógicas de escuta das crianças e a interação entre elas são
fundamentais nos tempos e espaços, no planejamento e nas atividades (DISTRITO FEDERAL, 2018).
Além do currículo para Educação Infantil, encontrarmos uma proposta de escuta em relação às
crianças no Guia para a Elaboração do Projeto Político-Pedagógico das Unidades Escolares - PPP
(UNIEB CRE/PP, 2021). Este Guia possibilita a qualificação e o fortalecimento do processo de
elaboração do PPP, uma vez que contribui com reflexões sobre a fundamentação da prática pedagógica,
metodológica e educativa das Unidades Escolares da primeira infância. Ali, sugere-se que ao
diagnosticar a realidade escolar, as crianças sejam ouvidas. Ao conhecer esse público será possível
elaborar soluções para a melhoria das aprendizagens.
O documento solicita “registrar atividades das crianças referentes ao tema “a escola que temos” e
a “escola que queremos” (expressão oral, desenhos, pinturas, colagens, fotografias, dentre outras)”
(UNIEB CRE/PP, 2021, p.12). Tais narrativas ocorrem em sala de aula com o auxílio do(a) professor(a)
regente e subsidiam a organização do trabalho pedagógico no decorrer do período letivo. Foi por meio
desta proposta que se consignou o trabalho doravante apresentado.
A turma deste relato é composta por 8 crianças, tendo cinco anos de idade. Elas fazem parte do
2º período H do Centro de Educação Infantil 01 de Brasília. A pesquisa foi realizada na última semana de
maio de 2022. A temática desenvolvida em sala era sobre as ações e transformações do homem no

259
ambiente. A partir de rodas de conversas foi possível explorar, além das ações humanas no nosso
planeta, as ações que cada um tinha dentro da escola. Foi questionado para as crianças: O que nós
temos em nossa escola? O que podemos transformar? O que queremos?
A partir dessas reflexões por meio de conversas, propusemos às crianças três momentos de
registro. Após cada registro, as falas das crianças foram anotadas, tendo a professora como escriba,
para que ficasse evidenciado ainda mais o pensar, o sentir, o relacionar e o movimento que elas
transbordam na participação do fazer pedagógico diário. No primeiro momento, elas tiveram que
fotografar a escola que têm. Cada criança pôde escolher o que queria fotografar, pessoas, espaços,
atividades, entre outros. Os registros fotográficos foram realizados com o celular da professora regente.
No segundo momento, com as fotografias impressas, as crianças puderam observar detalhes do que
fotografaram e foram convidadas a desenhar esses registros pessoais.

Figura 1 – “Eu gosto da piscina e das plantas da minha escola”. Fonte: Arquivo pessoal, 2022

Figura 2 – “Eu gosto muito do parquinho”. Fonte: Arquivo pessoal, 2022


Foi possível observar nos registros desses dois primeiros momentos outras falas como: “Eu amo
a escola”, “Eu gosto muito da escola porque tem muitas árvores”, “Minha escola é bonita e linda”, “Minha
escola é legal, eu gosto bastante”, “Eu gosto do tio Robson”. É notável o prazer que elas sentem pelo
espaço escolar e a preferência pelos espaços abertos. A relação com a natureza e com as pessoas
também pode ser percebida. No terceiro e último momento as crianças desenharam livremente o que
queriam na sua escola.

260
Figura 3 – “Eu queria os pais dentro da escola”. Fonte: Arquivo pessoal, 2022

Figura 4 – “Eu queria uma escola cheia de jardins”. Fonte: Arquivo pessoal, 2022

As crianças demonstraram nas suas falas e nos seus registros novamente uma relação direta
com o brincar, a natureza e as pessoas. Além das figuras 3 e 4, listamos falas como: “Eu queria muita
gente nova”, “Eu queria brinquedos do homem aranha”, “Eu queria ter muitos carrinhos na escola”, “Eu
queria uma baby alive na escola”, “Eu queria muitas árvores para eu brincar”. Isso nos revela a essência
da Educação Infantil. A presença do brincar na sua constância, por meio de espaços para que isso
floresça.
A partir desta singela pesquisa64, realizada com base na proposta da SEEDF, percebemos que
escutar as crianças faz sentido. É claro que não deve ser o único caminho para o planejamento
pedagógico, pois os professores devem estar cientes da necessidade do estudo, do engajamento junto
aos documentos norteadores que estabelecem objetivos de aprendizagens para a Educação Infantil.

64 O resultado dessa pesquisa pode ser observado no vídeo confeccionado pela professora regente de turma por meio do link:
https://www.youtube.com/watch?v=yPOXDlX0ApA

261
Tratamos aqui de uma parceria no fazer pedagógico. Assim como buscamos a parceria junto às famílias,
é imprescindível que a criança também seja protagonista neste processo. Segundo Ferreira (2002),
escutar as crianças exige dos professores, além da atenção e preocupação, uma interpretação e
tradução competente com o que dizem.
Dessa forma, propomos o desafio da reflexão sobre o tipo de relação que estabelecemos com as
crianças em sala. Estamos envolvendo as mesmas de forma a participar nas tomadas de decisões no
planejamento cotidiano? O que estamos fazendo com a escuta dessas vozes? Que transformações
estamos vendo acontecer? Esperamos com este trabalho provocar questionamentos para que a nossa
realidade educacional encontre respostas possíveis e mais próximas de práticas pedagógicas
decolonizadoras.

PALAVRAS-CHAVE: escola; infância; educação infantil.

REFERÊNCIAS
CASTRO, L.G. Conhecer os espaços com as crianças: escuta como postura ética. In: Kramer, S. et al.
Ética: pesquisa e práticas com crianças na educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 2019.
DISTRITO FEDERAL. Currículo em Movimento do Distrito Federal: Educação Infantil. 2º. Ed. Brasília:
Governo do Distrito Federal, 2018.
FERREIRA, M. Criança tem voz própria (pelo menos para a sociologia da infância). A página da
Educação, 2002. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/21460/2/84402.pdf
Acesso em: 08 de outubro de 2022.
UNIEB CRE/PP. Guia para Elaboração do Projeto Político-Pedagógico Educação Infantil. Brasília,
2021.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

262
AÇÕES ARTÍSTICAS E SENSIBILIZAÇÃO SOCIOAMBIENTAL: MODOS POÉTICOS DE ESTIMULAR
NOVOS COMPORTAMENTOS

Rita Naj Oleari Veronese


Rita de Cassia Santos Buarque de Gusmão

Esta é uma pesquisa em andamento. O conteúdo se constitui de investigação sobre ações no


campo da simbolização estética e de como estas podem afetar e reconstruir as relações do ser humano
com a natureza. Buscamos dar sentido novo à cultura de exploração de recursos naturais; e também
elaborar propostas pedagógicas interdisciplinares sobre as relações com o ambiente que possam se
utilizar dos fundamentos da educação artística. Essa investigação se pauta em como realizar ações
interdisciplinares entre Artes e Estudos da Sensibilização Ambiental na educação escolar.
A metodologia de investigação consiste em três frentes: coleta e catalogação de bibliografia
interdisciplinar para ambos os campos de conhecimento; elaboração de ações de ensino que visam a
interação entre aprendizagem e hábito de pesquisa.
A pedagogia da interdisciplinaridade está sendo entendida aqui como um processo de interação
propositiva entre os campos de conhecimento, de forma dinâmica e aberta à fluidez; que desnaturaliza
os mecanismos de destruição e opressão sociocultural, no qual as relações sejam pensadas e realizadas
visando combater modos excludentes de exercício do poder que, por sua vez utilizam de invisibilização
de seres e de elementos da vida. E também que, de alguma forma, estimula à transgressão dos valores
e hábitos que geraram a autocracia e a tentativa de homogeneização das necessidades e dos
conhecimentos, que assistimos como prática política na atualidade. O desejo é progredirmos para uma
escola que se empenha em estimular uma aprendizagem crítica e prazerosa para seus alunos, que se
distancia da educação bancária que Paulo Freire uma vez denunciou, voltando-se para a troca genuína
entre os conhecimentos e saberes, que vai além da divisão de disciplinas.
Como atitude pedagógica, a perspectiva interdisciplinar não rompe com as divisões e categorias
do conhecimento, mas solicita o pluralismo e a multiplicidade de perspectivas, ensinando a "criar um
distanciamento relativamente ao nosso próprio ponto de vista, a fim de avaliar a sua relação, de
competição ou de cooperação, com outros pontos de vista" (SANTOS, 2019, p. 308). Como resultado
elaboramos uma proposta pedagógica para o ensino de Artes na educação básica que contempla a
sensibilização para a fruição do próprio ambiente como lugar de criação artística.
Será trazida uma perspectiva educacional decolonial e sul-centrada, honrando os saberes
ancestrais dos povos originários da América do Sul e propondo uma nova possibilidade de ensino de
artes que se volte para as questões ambientais latentes nos dias de hoje. Foi desenvolvida uma Mandala
Pedagógica como metodologia que integra os pilares de uma educação artística e ambiental, para que
possa ser apropriada por docentes em geral nas escolas para trabalhar com os educandos. Formada por
sete pétalas, a Mandala foi criada como base dessa metodologia; são elas: Fertilidade, Harmonia, Fluxo,
Afecção, Ética, Cooperação e Beleza, todas vinculadas ao Ambiente. A Mandala Pedagógica é um
instrumento de usufruto livre para todos que queiram trabalhar com essas questões e servirá de suporte

263
para pensar ações artísticas que partam das relações existentes no ambiente que nos cerca, tornando
possível uma educação que estimule novos comportamentos de respeito e cocriação.
Tendo em vista os pilares da Mandala Pedagógica, foi desenvolvida uma oficina com 25 alunas e
alunos do sexto e sétimo anos do ensino fundamental na Escola Estadual Padre João de Mattos Almeida
em Belo Horizonte, MG. A oficina desenvolveu-se em vários momentos que seguiram um fluxo de
atividades que culminaram no desenvolvimento de uma mandala coletiva.
A experiência de colocar em prática as propostas de teatro ambiental nos proporcionou muito
material para pensar qual seria a abordagem que melhor funcionaria em um contexto de sensibilização
ambiental através das artes. Foi percebendo as dificuldades existentes em abordar esses temas que
analisamos qual seria a melhor forma de construir uma metodologia que abarcasse a imensidão que
pode ser a arte ambiental. Foi pensando nisso que foi criada a Mandala Pedagógica da arte ambiental.
Um instrumento de ensino que servirá de suporte a todas e todos que se propuserem a pensar uma arte
que se integre com os pensamentos socioambientais.

PALAVRAS-CHAVE: pedagogia das artes; sensibilização ambiental; interdisciplinaridade.

REFERÊNCIAS
SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, quilombos: Modos e Significações. Brasília/DF: Editora AYÔ,
2019.

264
CURTA HAIR LOVE E O CABELO AFRO COMO SÍMBOLO DE EMPODERAMENTO

Roseana Vitoria de Souza Lisboa

Introdução

Há séculos os negros sofrem com as consequências do racismo, sendo que o preconceito se


estende a todos os âmbitos, sobretudo na estética, sendo o cabelo crespo um dos principais alvos de
práticas racistas, o que influencia sobretudo na noção de pertencimento e de identidade dessas pessoas,
já que o cabelo é um dos principais símbolos da identidade negra. A construção da autoestima se dá em
um processo que inclui tanto um olhar para si, bem como a relação com o olhar do outro, visto que as
experiências vividas por uma pessoa envolvendo o seu cabelo ao longo da vida afetam diretamente o
seu autoconceito.
Esse trabalho busca trabalhar alternativas a ações tidas como padrão colonial e como
efetivamente utilizar práticas antirracistas e se fortalecer e se empoderar para lidar com situações de
racismo no cotidiano. Além de trabalhar com as crianças brancas reflexões sobre a sociedade racista
para que se evite a repetição dessas ações. Trabalhar-se-á essa questão por meio de uma proposta
pedagógica a partir da análise do curta Hair Love que trabalhe a discussão sobre autoconceito,
autoestima e empoderamento de crianças negras.
Percebe-se a importância de trabalhar um curta como Hair Love dentro de sala de aula, uma vez
que sua narrativa explora noções de afeto tanto em família quanto consigo mesmo por meio da tentativa
de Zuri de arrumar seu cabelo. É interessante perceber as potências e as possibilidades que o cinema e
a educação possuem quando estão em conjunto. Hair Love é um curta que nos dá uma imagem positiva
sobre o viver e o ser de pessoas pretas; a ideia de Hair Love não é apagar séculos de racismo e de
violência, mas sim de reinventar um olhar sobre a perspectiva de uma família preta que usa seu cabelo
afro ou dreadlocks como o pai, convocando o espectador a se reconhecer naquela imagem.
Com duração de 6 minutos e 47 segundos, roteiro de Matthew A. Cherry e direção de Matthew A.
Cherry, Bruce W. Smith e Everett Downing Jr, esse curta venceu na categoria de melhor curta-metragem
de animação durante o Oscar 2020. Seu diferencial é uma mensagem de afeto e autoestima sobre uma
família negra em uma situação cotidiana, incentivando o amor-próprio, a partir da normalização do cabelo
afro.
A escolha de um curta para tratar dessa temática foi feita considerando a potência de se trabalhar
com imagens, pois “As imagens do cinema e da televisão governam a educação visual contemporânea e,
em estética e política, reconstroem, à sua maneira, a história de homens e sociedades.”(ALMEIDA, 2000,
p.2).
Reconhece-se, assim, a capacidade do cinema não apenas para reproduzir a realidade, mas,
também, para reconstruí-la. Há de se compreender que, como qualquer outro objeto cultural, o cinema

265
deve ser compreendido como uma produção histórico-social, que pode vir a ser um aparato sócio-cultural
comprometido com a transformação da sociedade.

Objetivo geral

Analisar o curta e elaborar uma proposta didático-pedagógica que aborda autoestima, identidade
e empoderamento de crianças negras.

Objetivos específicos

• Como usar o cinema na educação pode contribuir para as discussões dentro da sala de aula sobre
questões étnico-raciais da atualidade;
• Discutir a importância do cabelo afro na construção da identidade, autoestima e autoconceito de uma
criança negra;
• Analisar a linguagem audiovisual do curta Hair Love e seus elementos constitutivos, como paleta de
cores, planos e estilo.

Metodologia

Essa pesquisa, de caráter exploratório, tem por finalidade investigar como o curta Hair Love pode
contribuir para a discussão sobre autoconceito e empoderamento de crianças negras. Isso será feito por
meio de levantamento bibliográfico e análise da linguagem audiovisual do curta Hair Love, por meio da
decupagem das cenas, levando em consideração também o currículo da BNCC e o Currículo em
Movimento.

Resultados

Espera-se obter, com essa monografia, um projeto pedagógico em forma de sequência didática,
visando trabalhar um olhar positivo no que diz respeito ao cabelo crespo. Além de trabalhar práticas
antirracistas dentro de sala de aula.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Milton José de. A educação Visual da memória – Imagens Agentes do Cinema e da Televisão.
Pro-Posições, vol. 10 [2] : 29, p. 5-18. Campinas, 1999.
CASTRO, Amanda Motta; DE OLIVEIRA, Elina Rodrigues; PEREIRA, Gabriele Costa. EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA E RESISTÊNCIA: o cabelo como posicionamento político. Revista Pedagógica, v. 23,
p. 1-18, 2021.
FAGUNDES, Raphaela M. Penteado Afro: Cultura, identidade de profissão. Fundação Cultual Palmares,
2007.

266
FERNANDES, Rosana; ALMANSA, Sandra. A aula, o cinema: exercício e invenção. Saberes y prácticas.
Revista de Filosofía y Educación, v. 5, n. 2, p. 1-12, 2020.
J. Stokes. “Hair Love” won an Oscar. Is that it? Tit 4 Tat. 2020. Disponível em:
https://k3mblog.wordpress.com/2020/03/13/hair-love-won-an-oscar-is-that-it/. Acesso em: 04 de julho de
2022.
MENDES, Aline Moreno; DE LIMA CARNEIRO, Ana Maria; DOS ANJOS, Joseane Macedo. Identidade e
processos de subjetivação: a importância da transição capilar no enfrentamento ao racismo. Brazilian
Journal of Development, v. 6, n. 12, p. 96657-96669, 2020.
Sem autor. ‘Hair Love’: curta animado emociona o mundo após ganhar o Oscar. Lunetas, 2020.
Disponível em: https://lunetas.com.br/hair-love-oscar/. Acesso em: 04 de julho de 2022.

267
Conversatório 7

268
O Conversatório 7, Educação para as Relações Étnico-Raciais, teve por objetivo a troca de
experiencias e o diálogo sobre práticas educativas para as relações étnico-raciais na educação básica.
Para tanto, foram recepcionados relatos de experiências e estudos críticos acerca de avanços, desafios
e inovações que atravessam as abordagens, estratégias e conteúdos mobilizados por docentes para a
implementação das Leis de n° 10.639/03 e de n°11.645/08 na educação básica. Historicamente, a
educação gerenciou a desigualdade, reforçou o mito da democracia racial e negou as violências
impostas aos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas. Uma das dimensões dessa história de
injustiça é o epistemicídio (CARNEIRO, 2005), isto é, o apagamento da cultura e das elaborações
mentais desses povos e de suas contribuições para a sociedade brasileira. Nilma Gomes (2011) e
Gersem Baniwa (2016) afirmam que a construção de uma sociedade antirracista passa pela criação de
leis, ações afirmativas capazes de “reparar” por meio da educação séculos de negação de direitos.
Diante do exposto, o Conversatório 7 foi dividido em três sessões. Em peso os trabalhos foram
relacionados a espaços formais de educação e ao campo de construções de conhecimento acadêmico
não lineares e eurocêntricas, resgatando saberes historicamente negados dos povos e sujeitos que
foram subalternizados (afro-brasileiros e indígenas). Relatos afirmaram que a educação antirracista na
escola pode favorecer: o respeito e empatia com todas as pessoas; ferramentas de combate aos crimes
raciais e aos pré-conceitos; construções de conhecimentos relacionados aos direitos e deveres de todo
cidadão para uma convivência plural; estudos e trabalhos em direção de mudanças sociais; a aceitação
do Outro e o respeito às diferenças; uma formação do povo brasileiro, valorizando a cultura afro-
brasileira e indígena; o empoderamento das pessoas pretas em respeito a suas identidades e culturas.
Também perpassamos discussões e análises críticas relacionadas aos dispositivos legais
refletindo que esses aparelhos podem favorecer e instigar na Educação Básica construções de projetos
pedagógicos e práticas pedagógicas outras, não eurocêntricas e em consonância com a pluralidade
social, política e histórica do Brasil. No entanto, os relatos evidenciaram que são comuns no cotidiano
escolar práticas pedagógicas sobre essas temáticas desconectadas das pautas e lutas dos povos afro-
brasileiros e indígenas. Também são comuns reproduções de atividades apenas para cumprimento das
leis, em datas comemorativas, como da “Consciência Negra” e do “Dia do Índio”.
Reconhecemos que as reproduções exóticas e equivocadas sobre esses povos são reforçadas
em instituições educativas. E que esses fatores colocam em questão a necessidade de ampliar e
incentivar o interesse político e pedagógico de professores por práticas antirracistas contínuas durante
todo o ano letivo, etapas e modalidades da educação, não se remetendo ao equívoco de que a
transmissão de informações e conteúdos relacionadas às históricas culturas indígenas e afro-brasileiras
são suficientes para afetar as estruturas racistas e favorecer a formação antirracista das pessoas.
Além disso, por meio dessas experiências, entramos em diálogo com relatos de violência, dor e
sofrimento, com o racismo vivido pelas pessoas pardas, negras e indígenas. Também discutimos que ao
abordar a Educação para as Relações Étnico-Raciais, tendo como apoio a Lei n° 11.645/08 na Educação
Superior e Básica, as possibilidades nascem a partir da abertura das diferentes experiências e relatos
dos envolvidos sobre suas percepções, suas autoimagens e as inúmeras violências simbólicas que

269
vivenciam no seio familiar e nos espaços institucionais a partir de suas características fenotípicas, como
a cor de suas peles, a textura de seus cabelos, seus traços físicos. O entusiasmo dos autores em
processos pedagógicos que permitiram o autorreconhecimento positivo de suas identidades e
(re)encontros com suas origens e ancestralidades é um dos fatores que nos colocou o sentimento de
esperançar um futuro menos injusto.
Autores engajados e motivados para o trabalho com a temática também revelam desafios
vivenciados em virtude de lacunas em seus processos formativos no Ensino Superior. A inserção dessas
áreas de conhecimento nas licenciaturas pode contribuir na atuação cidadã e profissional, permitindo aos
sujeitos outras perspectivas do pensar, sentir e agir com/no mundo. No entanto, o currículo é um campo
historicamente em disputa e que em peso privilegia os conhecimentos eurocêntricos. Nesse sentido, a
formação profissional antirracista na Educação Básica e na graduação do Ensino Superior é um campo
que necessita de atenção.

270
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Riscos e controvérsias da experiência escolar: reflexões sobre o


Débora Silva de Azevedo 274
racismo na escola

Josiane Ramos Ilha Crispam


O despertar para o amor próprio e autoestima de crianças pequenas
Vanessa Medianeira da Silva 277
e mulheres negras de uma escola da periferia de Santa Maria-RS
Flôres

Marcelo Marques de Almeida Filho A BNCC e o ensino de história das relações étnico-raciais:
282
Danielle Castro da Silva Lobato contribuições ao debate antirracista nas escolas

Aline Alves de Almeida A lei 11.645/2008: implicações para o currículo 291

Ana Tereza Ramos de Jesus


Ferreira Jogos e brincadeiras africanas: uma proposta antirracista para a
297
Hélio Rodrigues dos Santos educação infantil e anos iniciais
Geraldo Eustáquio Moreira

Mostra de Arte e Cultura na escola e suas implicações no debate


Paulo César dos Santos 301
étnico-racial com estudantes do ensino fundamental

Relato de uma docente: educar para relações étnico-raciais no


Gabriela de Paula e Silva Muniz 306
ensino médio

“Tia, eu sou cor de pele!”: aspectos para pensar a construção do


Lidiane Agostinho Ferreira 309
pertencimento étnico-racial

Dayse Rayane e Silva Muniz Propostas para a literatura negra no ensino básico: por uma
312
Mylena Cristina Félix de Almeida educação antirracistas, reflexiva e propulsora de mudanças sociais

Tempos e espaços para uma educação antirracista: experiências


Técia Goulart de Souza 315
vividas e compartilhadas no chão da escola em São Sebastião-DF

Luís Paulo Cruz Borges


Brena Carvalho Ferreira Por uma didática racial: relatos de experiência sobre (antir)racismo
317
Janine Magarão das Neves na escola
Guilherme Silva Simões

Circuito herança africana e sustentabilidade: um relato de


Florence Mendez Casariego
experiência na formação inicial de professores na Universidade do 322
Fátima Teresa Braga Branquinho
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Ramaira Jacira Fagundes Ramos Um olhar matemático, crítico e cultural sobre a arte visual afro-
326
Christine Sertã Costa brasileira

Ana Júlia Vicari Por um ensino de ciências antirracista: documentos embasadores e 329

271
ações

Gislaine Maria Barbosa Antunes


Nicolle Estanislau Moreira Alves
Rezende
Ensino de arte, iniciação científica e poéticas autobiográficas: uma
Iniciação Científica/ UBUNTU-
experiência de pesquisa-ação na educação básica - contribuições 332
NUPEAAs (Núcleo Pesquisa e
para uma sociedade antirracista
Estudos Africanos e Afro-
brasileiros) - E.E. Geraldo
Bittencourt

Ildete Batista do Carmo Identidade étnico-racial: infância, escola, família e subjetividade 337

Novas contações de mundo através de narrativas míticas iorubás em


Daniele Rodrigues Moreira 340
práticas docentes transdisciplinares no ensino fundamental

Marcello Lucas de Araújo Negritude e o protagonismo Juvenil 343

Educação participativa e antirracista como instrumento de


Cinara Matoso Machado da Silva desconstrução das permanentes estratégias as quais oportunizam a 350
manutenção da seletividade penal

Análise dos projetos políticos pedagógicos das escolas classes da


Giovanna Viana Dias 365
Estrutural: observar a educação antirracista

Aspectos da educação étnico-racial e decolonizadora no Museu


Breno de Oliveira Conde 368
Histórico e Pedagógico de Araraquara-SP

Adriana Costa de Miranda


Mediação da leitura antirracista em bibliotecas escolares 371
Viviane Lopes Villodres Dias

A coleção “História Geral da África” (Unesco) e a descolonização da


Marcelo Felício Martins Pinto 374
educação

Andreia dos Santos Gomes Vieira A formação inicial: espaço-tempo para o letramento racial 377

Pretas acadêmicas: Trajetória de mulheres negras no Programa de


Viviane Oliveira de Jesus Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade da Universidade do 380
Estado da Bahia

Notas sobre a capoeira (afrobrasilidade e questões raciais) em


Giulia Cristina Schroder Bernardo 382
textos/documentos curriculares oficiais (1998-2017)

Márcia Santos Severino Decolonialidade, didática da história e história afro-brasileira 385

Christiane Corrêa de Oliveira Racismo religioso na escola: articulações e contribuições de práticas 387
Jane Adriana Vasconcelos antirracistas

272
Pacheco Rios

Educação para o mercado de trabalho de meninos pobres e órfãos


Rejane Pereira Correia
acolhidos entre 1818 e 1850 na Casa Pia Colégio de Órfãos de São 390
Gilmário Moreira Brito
Joaquim na Bahia

Enraizando o ser: o cabelo como instrumento de conscientização


Rebeca Flor da Silva 393
racial na literatura para a educação básica

O afrofuturismo: um movimento decolonial e antirracista para a


Shirley Fiuza Dias 399
educação em artes visuais no Novo Ensino Médio (NEM)

Daniela Barbosa da Fontoura


Vanessa Medianeira da Silva Produção literária na escola: um ensino antirracista e feminista 405
Flôres

273
RISCOS E CONTROVÉRSIAS DA EXPERIÊNCIA ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE O RACISMO NA
ESCOLA

Débora Silva de Azevedo


Professora de Teatro, mestre em Ciências Sociais Aplicadas e pós-graduada em Educação a Distância. Atualmente
é servidora na Funarte (desde 2016) e professora formadora do curso de Licenciatura em Teatro da UaB/UnB
(desde 2021).

Esse trabalho pretende lançar o olhar para a escola e suas funções sociais, refletindo a partir do
artigo 205 da Constituição Federal do Brasil, sobre os riscos e as controvérsias da experiência escolar,
considerando a produção intelectual negra partilhada durante a disciplina “Teorias Sociológicas e suas
Controvérsias”, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília
(PPGSol/UnB), da qual participei como aluna especial em 2022.
Na Constituição Federal do Brasil de 1988, a educação como dever da família e do Estado trata a
responsabilidade do último sob a conformação escolar, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 205, Constituição
Federal, 1988). Esse dever constitucional acompanha grande parte das nossas trajetórias de vida,
obrigatoriamente dos quatro aos dezessete anos de idade, considerando o que determinou a Emenda
Constitucional nº 59, de 2009. Acredita-se que, juntamente com a ampliação progressiva da oferta do
ensino público gratuito que atingiu todas as camadas da população, estende-se na escola o tríplice
processo de discriminação social que fundou a sociedade brasileira: o racismo, o sexismo e o
preconceito de classe.
Primeiramente, o acesso à escola é diferenciado entre os setores público e privado, reforçando
desigualdades na oferta do serviço: ambientes físicos, alimentação, materiais didáticos, formação e
salário dos docentes e funcionários são profundamente diferentes conforme demonstram indicadores da
Educação.
Percorrendo as funções sociais da escola, ao tratarmos do “pleno desenvolvimento da pessoa” e
do “preparo para o exercício da cidadania”, observa-se nas diferentes relações da experiência escolar a
distinção entre negros e brancos, homens e mulheres, ricos e pobres. Parte-se de espaços sociais
distintos, estando o “desenvolvimento” vinculado ao acúmulo de conhecimento determinado
prioritariamente pelos fatos históricos dos povos brancos europeus e a produção intelectual de seus
homens. A herança colonizadora e que subalternizou a população negra e indígena em face do
enaltecimento da cultura euro-americana atravessa o ambiente escolar, o que é perceptível nos
currículos, na organização física dos estabelecimentos e salas de aula, nas hierarquias e priorização da
ordem, do poder e do controle (hooks, 2013).
A supressão da história e cultura afro-brasileira e indígena e suas contribuições nas áreas social,
econômica e política para a formação da sociedade brasileira é tão representativa que, em 2003 e em
2008, duas leis obrigaram a presença de tais conteúdos nas escolas da Educação Básica. Ainda assim
são constantemente denunciadas as ausências destes conhecimentos (Fonte: Agência Câmara de
Notícias, 2021).

274
O processo de “desenvolvimento desigual e combinado” (GONZALEZ, 2020) traz para a pessoa
negra uma formação complexa e difusa que, na maioria das vezes, é ocultada nas discriminações sociais
intrínsecas das experiências escolares. O mito da “democracia racial”, elaborado e perpetrado pela elite
branca e seus intelectuais e pelo Estado na constituição da República no Brasil, é outra face que mantém
institucionalmente a subalternização destas populações e suprime ou relativiza as responsabilidades do
Estado diante das ações de seus agentes e políticas públicas. A situação brasileira de racismo estrutural
é ainda mais mascarada quando comparada à realidade norte-americana, que implementou regimes de
segregação explicitamente institucionalizados (hooks, 2017).
No contexto acadêmico universitário, o panorama não parece ser muito diferente, como destacam
Bernardino-Costa e Borges (2021):
O que acontece com os(as) estudantes negros(as), indígenas e quilombolas
quando entram em universidades referenciadas por instituições euro-
americanas, em processo de inclusão cosmética da diversidade. São
rotulados(as) simplesmente de estudantes despreparados(as) e
atrasados(as) porque não dominam os códigos de uma universidade branca,
que se pensa como universal (BERNARDINO-COSTA; BORGES, 2021, p.
10).

A “inclusão cosmética da diversidade” garante, por um lado, a vaga destas populações como
estudantes, porém não garante sua permanência, como tampouco suas produções de conhecimento,
culturas e histórias. Assim, a universalização do ensino mantém em si a dominação vinculada à
“autoridade branca”, reproduzindo nas experiências formativas os mecanismos de manutenção das
opressões, dos privilégios e dos processos de dominação hegemônicos e racistas. Nas escolas, um
exemplo de “inclusão cosmética” pode ser percebido através do destaque dado à história e à cultura afro-
brasileira e indígena prioritariamente (e muitas vezes exclusivamente) em datas comemorativas.
O mundo do trabalho perpetua essa herança excludente e colonizadora. Lélia Gonzalez (2020)
explicita a manutenção e coexistência de formas produtivas anteriores que reforçam o monopólio de
determinados grupos sociais nos meios de produção capitalista e nos processos de acumulação do
capital, operando com essas contradições estruturais do sistema e mantendo a marginalidade dos
negros e em especial das mulheres negras. A ideia de “trabalhador livre” própria do capitalismo é utópica
na estrutura do Estado brasileiro (GONZALEZ, 2020).
Esse esforço do Estado em enunciar mudanças, mas manter à margem a presença social e a
contribuição dos povos que aqui foram escravizados e disfarçar a escolha estatal de subalternizá-los
“impõem ao todo desta sociedade uma visão alienada de si” (GONZALEZ, 2020, p. 212). Para enfrentar
esta condição, hooks (2017) traz importantes contribuições de Paulo Freire e dos estudos feministas,
expandindo-as com esse olhar potente em relação às dimensões étnico-raciais. Para a autora, a sala de
aula deve ser um espaço “multicultural e multiétnico” que mobiliza tanto o docente quanto as diferentes
vozes dos estudantes, constituindo o que chama de “novas epistemologias”: “qualquer pedagogia radical
tem que reconhecer a presença de todos”.
A perspectiva radical é ideia chave, pois vincula-se à necessidade de ruptura real e profunda que
sustente o impulso para as transformações das relações. Reconhecer os mecanismos presentes no
silenciamento das visões de mundo da população não branca e o racismo nas leituras de suas

275
experiências (BERNARDINO-COSTA; BORGES, 2021). Descolonizar o ensino escolar é desvelar as
camadas que o produzem e reproduzem socialmente, revelando seu projeto hegemônico e
paradigmático centrado no euroamericanismo, transgredindo-o com a profusão de diferentes vozes,
integrando o difuso e o diverso, os riscos e suas controvérsias, repensando seus pressupostos e as
relações culturais, de classe, gênero e raça. Nessa direção é possível constituir processos singulares de
formação dos sujeitos e cidadãos, em uma educação verdadeiramente plural, multicultural e radical.

PALAVRAS-CHAVE: escola; educação; teorias sociológicas; autores negros.

REFERÊNCIAS
BERNARDINO-COSTA, Joaze & BORGES, Antonádia. “Um projeto decolonial antirracista: ações
afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília”. Educação e Sociedade. Campinas, 42, 2021,
e253119.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.
GONZALEZ, Lélia. “Por um feminismo afro-latino-americano”. Org.: Flavia Rios & Márcia Lima. São
Paulo, Zahar, 2020.
hooks, bell. “Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade”. São Paulo, WMF Martins
Fontes, 2013.

276
O DESPERTAR PARA O AMOR PRÓPRIO E AUTOESTIMA DE CRIANÇAS PEQUENAS E
MULHERES NEGRAS DE UMA ESCOLA DA PERIFERIA DE SANTA MARIA- RS

Josiane Ramos Ilha Crispam


Professora de Educação Infantil negra antirracista. Mestranda em Políticas Públicas e Gestão Educacional da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). josiane.mestrandailha@gmail.com

Vanessa Medianeira da Silva Flôres


Professora de Educação Infantil. Doutoranda em Educação pelo programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) vanessaf.educ@gmail.com

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Sérgio Lopes do Município de Santa Maria, no interior
do Rio Grande do Sul, atende desde bebês, crianças pequenas e estudantes até o nono ano. A escola é
a única entre as oitenta escolas da rede municipal que possui a oferta concomitante de Educação Infantil
e Ensino Fundamental. Essa característica da instituição é importante, pois as interações propostas entre
as etapas são uma constante. O município de Santa Maria está localizado na região central do Rio
Grande do Sul e possui aproximadamente duzentos e oitenta e três mil habitantes.
O bairro na Renascença fica na região oeste, uma comunidade de periferia. Conforme Josiane
Martins Soares (2020, p. 51), “A Vila Renascença [...] possui mais de quarenta anos de existência. Seu
território ocupa um pequeno espaço com cinco ruas e possui em torno de menos de dois mil (2.000)
habitantes”. De acordo com essa peculiaridade da comunidade, a relação escola e família é de
proximidade e envolvimento. As propostas pedagógicas são planejadas buscando o envolvimento de
toda a comunidade escolar. Segundo expresso no Projeto Político Pedagógico (2018) “A concepção de
educação exige que a escola se abra ao seu entorno, que novos espaços de construção do
conhecimento sejam incorporados, que a maneira de ensinar seja dinâmica e transforme a realidade”.
Nesse sentido, a instituição enfatiza propostas curriculares que afirmem a identidade antirracista
e que valorizem o pertencimento étnico-racial da maioria das crianças e famílias atendidas no ambiente
escolar. Desta forma, apresentamos uma das propostas desenvolvidas no período de ensino remoto, que
se constituiu em um desafio para todas as professoras. A proposta foi desenvolvida com a turma de Pré-
escola multi- idade, formada por crianças de 4 a 6 anos, tendo como objetivo despertar a autoestima e o
amor próprio das crianças e mulheres negras envolvidas neste contexto escolar por meio da valorização
dos crespos. Através da contação de história, “Meu crespo é de rainha”, da autora bell hooks, realizada
em forma de vídeo pela professora e enviada às famílias através das mídias digitais.
Na história, a autora apresenta uma menininha negra que celebra seu lindo cabelo crespo dando
diferentes possibilidades que ele pode ser exibido: birotes, coquinhos, tranças, cortado bem curtinho ou
ainda livre e solto ao sabor do vento. A forma poética de hooks em sua obra, além de ser uma
homenagem ao cabelo afro, estimula as meninas negras à auto aceitação e a desenvolver o amor
próprio às suas características físicas, no caso, o cabelo.
A partir da narrativa do livro, as famílias da turma foram convidadas a identificar entre seus
familiares mulheres que possuíam cabelos crespos, encaracolados ou ondulados e assim oportunizaram

277
às crianças o registro e reconhecimento de diferentes tipos de cabelos através de um desenho destas
mulheres da família.
A proposta de identificação e autoestima das crianças e mulheres negras envolvidas no vídeo
apresentado à turma revelou principalmente à professora o papel importante de representatividade que
possui na comunidade escolar da EMEF Sérgio Lopes, passando a se reconhecer como professora
negra antirracista. Ainda que a sua infância tenha sido marcada por elásticos que deixavam seus crespos
puxados, esticados, amarrados e definidos como “cabelo ruim”, e na sua adolescência a professora da
turma passou por processos químicos de alisamento do seu crespo, para sentir-se pertencente ao seu
grupo social. Desta forma, ela desenvolveu uma negação em relação a seu pertencimento étnico-racial e
a todas as características herdadas geneticamente de sua família. Desenvolver esta proposta foi o marco
público para sua transformação e ressignificação pessoal.
Nesta obra, “Meu crespo é de rainha”, bell hooks renova em nós o sentimento de pertencimento
étnico-racial e dá visibilidade às mulheres negras. Acreditamos que se trouxermos desde a educação
infantil referências como estas para as crianças e famílias, experiências de não aceitação dos cabelos
crespos como a vivenciada por tantas mulheres negras e que causam tantas situações de preconceito
serão desconstruídas. Salientamos que propostas antirracistas são realizadas em todas as turmas na
referida escola e que convergem na busca por justiça social.
Consideramos importante trazer, a seguir, imagens das crianças da turma, da professora e de
algumas mulheres que apresentaram o orgulho de herdar cabelos crespos de rainhas negras ancestrais.
Destacamos que as imagens possuem autorização para serem exibidas em eventos e trabalhos
científicos.
Na turma da pré-escola antes da pandemia foi possível a professora observar que havia uma
menina chamada Maria Cecília, que destacava-se pelo carisma e espontaneidade em suas interações e
brincadeiras. Todo dia que chegava à sala, a professora admirava os crespos da menina que sempre
estavam envolvidos com laços ou fitas para enfeitá-los e ela adorava exibi-los, pois sua mãe cuidava-os
com carinho. Assim, a professora ao preparar uma proposta de atividade não presencial, devido à
pandemia ter nos direcionado ao ensino remoto, Maria Cecília foi convidada a participar de uma
apresentação do livro de bell hooks para a turma, pois desta forma poderia despertar a identidade nas
demais crianças negras da turma. A história em vídeo, que está disponível no endereço citado abaixo, foi
apresentada pela locução da professora e ao final Maria Cecília narra o carinho e cuidado que possui
com seu cabelo e junto de sua mãe emocionada ao proclamarem que os crespos delas são de rainhas.

278
Figuras 1 e 2 – Maria Cecília, protagonista do vídeo com sua mãe Aline . Fonte: vídeo disponível em
https://youtu.be/R0FwxJjOsF4, 2020.

Algumas mulheres importantes na vida da professora e de Maria Cecília também foram


convidadas a participar apresentando seus crespos através de fotos ou vídeos. Este foi um momento
considerado inesquecível para a convidada de maior idade: uma tia da professora de quase setenta
anos. Ela foi uma das cuidadoras do crespo da professora na infância e os amarrava por acreditar que
não eram “ bons”. Por muitos anos, acreditava que seu black power era um problema e não aceitava sua
negritude, tendo uma vida longa de diferentes químicas, progressivos, alisamentos e tinturas que
escondiam sua verdadeira identidade. A proposta foi uma desencadeadora de sentimentos, pois
recentemente, a tia da professora, já idosa, havia passado pelo processo de transição capilar e
aceitação, ao falar que seu crespo era de rainha lhe deixou muito emocionada.

Figura 3 – Iara Maria, tia da professora, que aprendeu a ser feliz e viver com seu crespo de diferentes maneiras.
Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 2020.

A proposta enviada para a turma como um convite de reconhecimento às rainhas crespas,


onduladas ou encaracoladas, levou as crianças a perceberem a diversidade na nossa comunidade
escolar e cada uma pode através de um desenho apresentar a rainha escolhida. A seguir,
apresentaremos alguns dos registros enviados para a professora demonstrando que o diálogo entre os
familiares foi relevante para a descoberta de mulheres com cabelo crespo.

279
O desenho realizado por Lara foi apresentado com colagem de papel crepom nos crespos da
rainha escolhida. Através de um vídeo, ela relatou não haver mulheres crespas mas a sua rainha
escolhida para representar era a professora. A menina Angélica homenageou uma tia: mulher negra de
força e coragem que cuidava da sobrinha desde que ela havia ficado órfã. Para realização da sua obra,
utilizou um pedaço de papelão que a permitiu fazer um quadro para expor em sua casa. Angelo Arthur
usava o seu cabelo com corte bem curto, portanto não o reconhecia como crespo, e sua mãe era dona
de um black power também curto, portanto representou através de sua arte a mãe e duas tias como
rainhas crespas.

Figura 4 – Lara representou a sua professora como sendo uma rainha. Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 2020.
Figura 5 – Angélica homenageando sua tia com um quadro. Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 2020.
Figura 6 – Angelo Arthur apresentou suas tias e mãe. Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 2020.

O desafio da construção de uma proposta no contexto de afirmação de uma identidade


antirracista corroborou com a importante transformação da vida pessoal e profissional da professora da
turma. Ao ser reconhecida por algumas crianças como uma rainha crespa, fez com que ela voltasse ao
tempo de infância no qual ser crespa lhe parecia um terrível pesadelo. Com os olhos puxados, devido ao
cabelo ser amarrado ou com um corte curto, fez com que na adolescência e parte da vida adulta alguns
profissionais a levassem a fazer uso de químicas para “domar” seus crespos.

Figura 7 – Professora aos cinco anos de idade. Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 1986.
Figura 8 – Professora com um dos penteados que deixavam seus olhos puxadinhos. Fonte: arquivo pessoal da
autora 1, 1989.
Figura 9 – Do início ao fim deste processo de desestruturação do seu crespo foram cerca de vinte anos. Fonte:
arquivo pessoal da autora 1, 2011.

280
Diante destas imagens é possível afirmar a importância das escolas defenderem e realizarem
uma educação antirracista que promova a identidade, representatividade e o reconhecimento positivo de
suas características como sendo próprias de cada um. Ao adentrar na comunidade escolar onde a
maioria das crianças são negras e por meio das leituras e formação continuada, promoveu a
transformação da professora da turma, que passou a aceitar-se sem alisamentos nos crespos que antes
lhe eram motivo de vergonha.

Figura 10 – Primeiro momento após autodeclaração. Fonte: arquivo pessoal da autora 1, 2018.

Nesta perspectiva, hooks (2017, p. 36) afirma:


Os professores que abraçam o desafio da autoatualização serão mais capazes de criar
práticas pedagógicas que envolvam os alunos, proporcionando-lhes maneiras de saber
que aumentem sua capacidade de viver profunda e plenamente.

Assim, como professoras de Educação Infantil que somos, acreditamos que nas turmas de bebês,
crianças pequenas e bem pequenas poderemos estimular mais cedo o amor próprio que é a base para
uma sociedade mais justa e igualitária.

PALAVRAS-CHAVE: mulheres; crianças; negras; autoestima; amor próprio.

REFERÊNCIAS
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo
Brandão Cipolla. 2.ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
HOOks, bell. Meu crespo é de rainha. Ilustração Chris Rachka. 1ª ed. - Editora Boitatá – Boitempo,
2018.
SOARES, Josiane Martins. Um estudo etnográfico da interface entre família e escola situado na
região oeste de Santa Maria. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Maria, Centro de
Ciências Sociais e Humanas, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, RS, p. 150, 2020.

281
A BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: CONTRIBUIÇÕES AO
DEBATE ANTIRRACISTA NAS ESCOLAS

Marcelo Marques de Almeida Filho


Doutorando em Sociologia (SOL/ICS/UnB). Professor. Membro associado do Fórum Universitário MERCOSUL
(FOMERCO) e da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos – Unidade Distrito Federal (REBEDH- DF+) e
membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB/CEAM) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas
Públicas, História e Educação das Relações Étnico-Raciais e de Gênero (GEPPHERG/FE) da UnB.
mma_filho@hotmail.com

Danielle Castro da Silva Lobato


Doutoranda em Ciências Sociais – Estudos Comparados sobre as Américas (ELA/ICS/UNB). Professora do curso
de Direito do Instituto de Ensino Superior do Planalto (IESPLAN). Ativista do Movimento Negro Unificado (MNU-DF).
Membra do Conselho Distrital de Promoção da Igualdade Racial (CODIPIR). Membra do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Políticas Públicas, História e Educação das Relações Étnico-Raciais e de Gênero (GEPPHERG/FE)
e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB/CEAM) da UnB. dani.castro.lobato@gmail.com

Introdução

A questão indígena se entrelaça em muitos pontos com a questão negro-africana, embora tenham
acontecido conforme contextos e situações distintas, originando os processos de
hierarquização/categorização étnico-raciais e a formação dos Estados americanos, mas, não somente,
oferecendo contribuições significativas à formação das identidades sociais e culturais nas Américas.
Este trabalho tem por intuito discutir como a incorporação da educação para as relações étnico-
raciais nas diretrizes e bases da educação brasileira tem potencial para contribuir à revisão histórica do
processo de caracterização, identificação, constituição e valoração das populações indígenas e negras
frente à formação do povo brasileiro.
Isto nos traz a seguinte indagação: até que ponto a educação para as relações étnico-raciais no
sistema educacional brasileiro impacta na transformação da concepção social sobre os povos negros e
indígenas no Brasil?
Isto nos leva à hipótese de que é através da educação que as mais importantes transformações
sociais podem acontecer, e, uma vez que estes temas sejam trabalhados com efetividade, tendem a
influenciar a mudança da concepção social dos alunos em formação e da sociedade, em escala mais
ampla, projeto que deve ser construído a médio e longo prazo. Contudo, isto esbarra em déficits da
formação docente e em questões internas das instituições escolares, além do persistente racismo
estrutural e institucional serem entraves às discussões.
O objetivo geral é analisar a potencialidade do ensino para as relações étnico-raciais como
mecanismo de efetivação de Direitos Humanos, a partir das diretrizes da BNCC. Os objetivos específicos
são: 1) compreender como a revisão histórica possibilita transformar a concepção dos/as alunos/as para
as relações étnico-raciais, e; 2) analisar a importância da educação para as relações étnico-raciais para
se avançar os debates sobre cidadania e direitos fundamentais das populações indígenas e negras no
Brasil.

282
O trabalho se justifica por se alinhar ao tema do Conversatório 7 e por ser tema de relevância
social, além de analisar uma política que impacta os processos de formação educacional e formação
cidadã, com potencial para efetivação e disseminação de direitos fundamentais.

Referencial Teórico

Como desdobramento da chegada de povos estrangeiros ao continente americano e da


coexistência entre estes povos, ocorreu progressivamente o violento processo de miscigenação. Nisto,
após sucessivas negativas e depreciação da “mestiçagem”, passou-se a debater a existência de uma
suposta cordialidade e democracia racial no Brasil, sobretudo a partir da obra de Freyre (LOBO;
SANTOS, 2018).
Contudo, formulações mais substanciais procuraram demonstrar o porquê desta abordagem ter
ignorado aspectos fundamentais da constituição da hierarquia racial no Brasil, como podemos observar
nos escritos de Ribeiro (1995) e Fernandes (1972), e outros/as, que desmistificaram as mazelas e
inconsistências da suposta democracia racial e cordialidade, haja vista que se estabeleceu um
sofisticado e permanente processo de violência, exclusão e desigualdades contra esta parcela da
população.
A BNCC (BRASIL, 2018) reforça a importância do entendimento sobre diversidade e constituição
das múltiplas identidades, enfatizando o processo de construção e formação da sociedade brasileira
pelas contraditórias ações da colonização europeia. Destaca-se, para tanto, a necessidade do estudo da
história dos povos originários da terra e dos povos africanos, basilares para a formação do povo
brasileiro. Isto atende ao previsto na Lei n. 10639/2003 e na Lei n. 11645/2008 (BRASIL, 2003; 2008),
que tornaram obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena na rede de ensino
nacional, modificando as diretrizes e bases da educação nacional, passando a questionar a interpretação
histórica pela ótica da colonização europeia, passando a incorporar análises sobre as culturas afro-
brasileira e indígena, as diferenças e entendimento sobre o “outro”, sobre as contradições sociais, as
violências, procurando alçar estes povos como construtores da própria história brasileira.
Em acordo com as competências específicas da BNCC, pretende-se com esta mudança no
ensino que os estudantes compreendam os processos de formação social do Brasil, apontando suas
relações intrínsecas com a questão racial no país. Implica ainda no estabelecimento de formas diversas
de violências, preconceito e injustiças sociais diversas, o que prejudica a conformação de um exercício
de cidadania plena, uma vez que os grupos conhecidos como “minorias” acabam tendo seus direitos
fundamentais negligenciados e, por vezes, negados.
Corroborando o que as Leis n. 10639/2003, n. 11645/2008 e a BNCC (BRASIL, 2003; 2008;
2018)65 apontam, o estudo da história afro-brasileira e indígena é indispensável na formação dos
conhecimentos sócio-históricos dos/as estudantes, pois, além de uma formação humanística, que

65 É importante frisar que, segundo a BNCC (BRASIL, 2018, p. 416-417), a valorização da história da África e das culturas
afro-brasileira e indígena (Lei nº 10.639/2003 e Lei nº 11.645/2008) ganha realce não apenas em razão do tema da
escravidão, mas, especialmente, por se levar em conta a história e os saberes produzidos por essas populações ao longo de
sua duração. Ao mesmo tempo, são objetos de conhecimento os processos de inclusão/exclusão dessas populações nas
recém-formadas nações do Brasil e do continente americano ao longo dos séculos XIX e XX.

283
permita entender e respeitar as diferenças e se posicionarem frente ao “outro” diferente, reconhecendo
as nuances e peculiaridades do processo de formação e da realidade do povo brasileiro, possibilitando-
lhes condições de se situar dentro do debate público de forma crítica, plural e a reivindicar processos de
inclusão e responsabilidade social, entendendo ainda como isto influencia a sociedade e suas vivências,
percebendo em si próprios/as as marcas e estrutura do processo colonial e da mistura forçada das raças.

PALAVRAS-CHAVE: BNCC; direitos humanos; educação para as relações étnico-raciais.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. Brasília: Casa Civil, 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 09 abr. 2022.
BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Casa Civil, 2008. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 09 abr. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base. Brasília:
MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 20 mar. 2022.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1972.
LOBO, Andréa Maria Carneiro; SANTOS, Euclélia Gonçalves. História da África e Cultura Afro-
Brasileira. Curitiba: IESDE Brasil, 2018.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: Evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.

284
ESQUIZOMATEMÁTICA: COMO SUBVERTER PROCESSOS DE DESSUBJETIVAÇÃO NO EDUCAR
MATEMATICAMENTE

Fabiana Leal Nascimento


Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
fabiana.nascimento@ifma.edu.br

Firmando o ponto de entrada: primeiros passos para experimentar o educar matematicamente em


encruzilhadas

Que pode uma pesquisa acadêmica quando se é firmado um ponto, o qual se dispõe a
movimentar as forças dos ancestrais africanos e dos afrobrasileiros, para dar seus primeiros passos
numa investigação sobre o educar matematicamente colonial e decolonial, o poder, as políticas públicas,
o apagamento de vozes, o epistemicídio e a subalternização de corpos? Nos cultos de umbanda, o início
dos trabalhos se dá por uma ritualística de marcar, invocar e conectar um poder de forma intencional e
de potência. Um ponto pode ser cantado, riscado ou firmado com vela, porém a forma de fazer esse
firmamento demanda a movimentação de forças da natureza, da mente, do corpo e do espírito para além
do ato de fala ou de canto. Um ponto é firmado quando há interação entre o sentimento, a fé, as energias
do Cosmos, a Terra e os Orixás de modo que se faça vibrar essas energias e não somente falar ou
entoar as canções.
Faço a escolha política e intencional de firmar meu ponto no educar matemático
afroperspectivadamente. Para tanto, trago as impressões que a conexão com os elementos naturais e
sensoriais que afetam e atravessam a pesquisadora em sala de aula. Crio um campo energético que
possibilita sentir meu corpo numa vibração das energias espirituais e da natureza.
Que pode se dar com uma professora de matemática que recusa o Olimpo ainda que tenha
desenvolvido habilidades com a formalização matemática: geometrias, álgebras, análises e outros
conteúdos que não são aplicados em quase nada na vida ordinária das pessoas? Que dá a pensar
quando a regente da disciplina de História da Matemática, num curso de Licenciatura em Matemática,
refuta a autoria de criação e desenvolvimento da matemática como campo conceitual e científico e
aposta no reconhecimento de outras matemáticas, de outros modos de produzir matemáticas
decoloniais?
Que passos podem ser dados por uma professora que não se (con)forma com o currículo oficial
definido por “corporações financeiras” (TARLAU; MOELLER, 2020) e por “intelectuais empresariais e
organizações do capital” os quais determinam o processo de decisões sobre as bases políticas e sociais,
para legitimar a configuração de uma educação que atende às demandas quanto à formação de mão-de-
obra nos moldes que o capitalismo solicita (MARTINS, GT-9, ANPED). Que encruzilhadas podem se abrir
quando a política pública de avaliação, seleção e distribuição de livros didáticos é questionada quanto a
seu desempenho de aparelho de Estado regulador, opressor, subalternizador, docilizador e epistemicida?

285
Que pode dar passagem quando uma mulher autodeclarada negra traz à discussão
questionamentos sobre o poder, a ideologia, a eugenia e política pública sobre o livro e seus Guias
Didáticos e Manuais Pedagógicos numa aula em uma Licenciatura em Matemática? Que novas terras
podem ser constituídas quando uma matemática hegemônica, heteronormativa, colonial é contestada
numa aula pois, “o colonialismo se constituiu também a partir de um caráter peculiar em relação às
palavras, de modo que não mais sirvam para designar, mas sim para encobrir” (RUFINO, 2017, p.14).
Que potências criativas podem mudar o estado de potência de vidas apagadas e silenciadas pelo
pensamento arborescente? Como pensar numa ancestralidade fortemente ligada à Terra, como raízes
profundas de um kuka, que é um baobá, de um gao, que é uma acácia africana, de um jequitibá, árvore
presente em diversos terreiros de umbanda no Brasil, e numa resistência epistêmica de negras e negros
frente a um pensamento arborescente que produz palavras de ordem num um regime de subjetivação.
Uma encruzilhada se dá entre um pensamento arborescente supremacista branco, portanto, se refere ao
poder e à disputa de poder entre brancos num certo educar matematicamente e o pensamento da
ancestralidade que se afirma no “equilíbrio entre o padrão normativo do kuka e a ousadia do gao permite
a continuidade dinâmica da vida comunitária, em conexão com as Forças Vitais que alimentam
incessantemente o ser em sua aventura neste e nos outros mundos” (LOPES, 2020, p. 78).
Um corpo que se forja enquanto professora e pesquisadora, em sala de aula e na academia, num
território, num terreiro, numa encruzilhada. Que pode desestabilizar o fazer docente e o processo de
pesquisar de um corpo historicamente subalternizado. Uma vida de lutas: estudantil e feminista e sindical
e étnica e decolonial e e e ... que atravessa a preparação das aulas e a sua regência. “É nesse sentido
que a luta contra o colonialismo deve ser um ato corporal, um ato afetivo, um ato de comprometimento
com a vida em sua diversidade e imanência” (RUFINO, 2017, p.14). Um corpo-território que percebe que
é “fundamental a educação olhar e trabalhar com a diversidade de histórias, culturas e corpos presentes.
Importante a educação se deter em corpos-territórios afro-brasileiros e seu saber ancestral” (MIRANDA,
2020).
Que corpo-território-professora-pesquisadora pode ser afirmado frente a uma ciência colonial que
vê os “problemas do ‘outro’, o negro, em contraposição ao humano universal, que é o branco
(LABORNE, 2014, p. 49, grifos do autor). “Como criar para si um corpo sem órgãos” (DELEUZE,
GUATTARI, 2012, p.11), numa ciência proeminentemente monogenista, quando seu corpo-território é
condenado à inferiorização, à indolência, à incivilidade e à morte (SCHWARCZ, 1993). Outra
encruzilhada se dá, uma ciência branca que decide qual epistemologia é digna de se perpetuar, de ser
reproduzida em livros e Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos e de existir reclama para si um corpo
sem órgãos frente a corpos que nunca foram reconhecidos como tal.
Uma professora que aposta em outra língua matemática, guaguejando dentro da língua
matemática oficialmente constituída. “Gaguejar é fácil, mas ser gago da própria linguagem é uma outra
coisa, que coloca em variação todos os elementos linguísticos, e mesmo os elementos não-linguísticos,
as variáveis de expressão e as variáveis de conteúdo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Gaguejar na
matemática, fazer variar os estigmas valorativos desde uma história maior erigida sobre regimes de
subjetivação e de agenciamentos maquínicos de corpos e de agenciamentos coletivos de enunciação.

286
Regimes de subjetivação em linhas molares são impostos e replicados nas políticas públicas e
nas diretrizes nacionais para educação, manifestando na produção de currículos e materiais didáticos “a
invisibilização e silenciamento do pensamento negro [que] têm consistido numa das formas mais eficazes
para a permanência e reprodução da alienação cultural e postergamento da emergência e florescimento
do pensamento crítico negro” (RATTZ, 2006, p.12, inserção nossa). Ainda que movimentos populares
reivindiquem o reconhecimento da sua contribuição cultural, intelectual, histórica, política e social e
tenham conquistado algum destaque de suas produções, percebemos o silenciamento e o apagamento
de povos tradicionais e de ancestralidades afro diaspóricas.
O sistema molar que sufoca a potência de vida de matemáticas afro diaspóricas nos livros e em
seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos põe a funcionar o “perigo de uma história única” (ADICHIE,
2019). Fazer variar as linhas molares que enquadram, sistematizam e grudam a vida em modos
despotencializados, determinados por modelos assujeitados ou pela expectativa ou pela falta, para
constituir fluxos esquizos e rizomáticos, apostando na fuga e no esgarçamento, sempre em devir, dando
passagem às linhas moleculares e de fuga no educar matematicamente e na produção dos corpos-
territórios.
Que existências são produzidas na afetação do molecular, micropolítico e pluriversalista
ao esgarçar ou por em movimento o molar, macropolítico e universalista? Que cartografia
dos devires, podem ser traçadas, desenhadas e vivenciadas em experimentações
sociopoéticas, com livros didáticos e professoras e professores, em espaços formativos?
Que outra relação com a “erudição curricular”, o olhar sensível para o desenho singular,
produzidos numa oficina com professoras e professores que ensinam Matemática em
espaços formativos, pode constituir no interior das relações curriculares? (NASCIMENTO,
2014, p. 29).

Apostamos no mapeamento e no acompanhamento das linhas molares, das linhas moleculares e


das linhas de fuga, estas construídas como forma de exercício de problematização rente às políticas e às
violências afirmadas, neste campo legitimado do conhecimento acadêmico, pela apreensão da vida, da
filosofia e da cosmovisão não centro europeia e norte americana, desde uma visita aos documentos
regulatórios do PNLD e seus embricamentos com as NDCEM, NEM e BNCC para propor “recontar as
histórias e culturas dos povos negros com o objetivo de descolonizar nossa maneira de ver nossa própria
identidade, nossa subjetividade e, também, a própria educação” (NASCIMENTO, 2020, p. 30).
Daí a relevância dessa pesquisa para a Educação Matemática e para a formação inicial e
continuada de professoras e professores que lecionam matemática cujo objetivo é desenvolver uma
esquizoanálise dos processos de des(re)territorialização das relações étnico raciais presentes em Guias
Didáticos e Manuais Pedagógicos dos livros de Matemática do Ensino Médio, no período de 2011 a 2021,
na constituição de ferramentas de apoio ao mapeamento das questões filosóficas da Educação
Matemática e das práticas sociais e da construção de um projeto político de libertação dos desejos e dos
corpos e da criação e de processos de dessubjetivação.
Ao mapear quais as produções de verdade foram ativadas naquelas conexões, nas relações, nas
construções, nos arranjos e nas alianças construídas para a decisão de qual orientação, qual
matemática, qual produção de conhecimento, qual filosofia é digna de estar presente nos Guias Didáticos
e Manuais Pedagógicos dos livros de Matemática do Ensino Médio, esta pesquisa produzirá impactos
acadêmicos, e especialmente para os cursos de Licenciatura em Matemática do Estado do Maranhão, no

287
âmbito das políticas de ações e de reparação com afro-brasileiros à medida em que investiga o
funcionamento do PNLD em relação ao ensino para as relações étnicos raciais e do cumprimento de Leis
e Normativas Federais para promoção da não violência e da valorização da diversidade cultural.

Primeira Encruzilhada: o educar matematicamente como reprodução de uma visão única das
coisas

Para reforçar os sentidos de uma cultura branca e eurocêntrica, a matemática é muitas vezes
utilizada como ferramenta de convencimento e de produção de subjetividades. A vida e suas complexas
relações são sintetizadas em tabelas, gráficos, funções e modelos cujas variáveis são determinadas para
assegurar os interesses de quem detém o poder. Uma captura e uma retenção do uno em nome de uma
matemática maior, na vida e na escola, que desconsidera o múltiplo, é imposta. Regimes de subjetivação
são prescritos e replicados nas políticas públicas, nas diretrizes nacionais para educação e manifestos
na produção de currículos e materiais didáticos.
Mesmo que movimentos populares reivindiquem o reconhecimento da sua contribuição cultural,
intelectual, histórica, política e social e tenham conquistado algum destaque para suas produções,
percebemos o silenciamento e o apagamento de povos tradicionais e de ancestralidades afro diaspóricas
nas publicações de livros tanto da academia quanto nos livros didáticos. Na academia, negras e negros,
pesquisadoras e pesquisadores fazem variar linhas moleculares na construção de fluxos esquizos,
rizomáticos, sempre em devir. Nas escolas da educação básica, professoras e professores tentam criar
linhas de fuga para produzir novas afetações para escapar do molar dado nos livros didáticos, seus
Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos, na busca por “olhar e trabalhar com a diversidade de histórias,
culturas e corpos presentes. Importante a educação se deter em corpos-territórios afro-brasileiros e seu
saber ancestral. E de se colocar no lugar da escuta de outras histórias, de múltiplas memórias”
(MIRANDA, 2020, p. 16).

Segunda Encruzilhada: o livro, seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos e a formação de um


corpo-território frente a um corpo sem órgãos

Que pode uma leitura de um livro e de seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos quando se
busca um significado? Que pode um livro e seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos na constituição
de uma escrita de uma “história única” (ADICHIE, 2019)? Que livro e que Guias Didáticos e Manuais
Pedagógicos podem ser dignos de compor os catálogos de escolha disponibilizados pelo Estado? Que
atravessamentos podem percorrer a avaliação de um livro e de seus Guias Didáticos e Manuais
Pedagógicos? Que intencionalidades podem permear a prática e a formação docente frente ao livro e
seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos? Que palavra de ordem à vida podem emitir um livro e
seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos operando como uma máquina de informação e
comunicação? Que possibilidades surgem no cruzo entre o livro de matemática e seus Guias
Pedagógicos e Manuais Didáticos com a educação para as relações étnico raciais?

288
Parafraseando Deleuze e Guattari “é que há muitas maneiras de escrever um livro e Guias
Didáticos e Manuais Pedagógicos”. Outrossim, “é que há muitas maneiras de se censurar um livro e
Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos”. E mais, “é que há muitas maneiras de se reafirmar um sistema
colonial em um livro e em seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos”. No lastro dessa discussão,
incorporamos a intervenção do Estado como mantenedor financeiro, determinador dos critérios de
avaliação e consolidador do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Pensar numa
lista de livros que atendem às diretrizes determinadas pelo Ministério da Educação (MEC) nos remete a
pensar que há uma lista de livros que são classificados como ineptos para o catálogo de livros aprovados
pelo MEC. Isso nos dá a pensar se essas obras não atenderam os requisitos listados para avaliação por
falta de elementos considerados como legítimos ou se há confluência com outras forças que questionam
a rigidez da estrutura colonial dada.
Pensar no Estado como regulador de livros que são dignos de participar do PNLD nos remete à
História Universal da Destruição dos Livros, a qual destaca que essa conduta foi praticada tanto por
homens ignorantes e cruéis, quanto por filósofos e intelectuais como Descartes, Platão e Heidegger ou
mesmo por pessoas que simplesmente se arrependeram daquilo que tinham escrito. Porém, há
concordância em relação à motivação da destruição dos livros como sendo uma tentativa de extinguir o
pensamento livre (BÁEZ, 2004). Tensionando essa discussão, questionamos a quem se destinam os
livros aprovados no PNLD? Seriam os critérios de avaliação uma tentativa de nacional de aplacar o
pensamento livre, as histórias múltiplas, em seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos, ou de
institucionalizar uma palavra de ordem? Que egressos da Educação Básica, esses livros, que se
enquadram nas diretrizes do Estado, pretendem formar? Quem são os autores dos critérios de avaliação
dos livros e seus Guias Didáticos e Manuais Pedagógicos que concorrem ao PNLD e a serviço de qual
Educação se propõem?

Firmando o ponto de saída: um fechamento momentâneo para abertura de outras possibilidades

Encaminho minha pesquisa a partir desses pressupostos para um ponto de saída. Num ponto de
saída cria-se a possibilidade de outra gira ser formada. Um ponto de saída é um fechamento
momentâneo que se firma para a possibilidades de outros caminhos. Há muitas giras que podem cruzar
os caminhos de um educar matematicamente, de um livro e de seus Guias Didáticos e Manuais
Pedagógicos, das políticas públicas para distribuição de livros e materiais didáticos, de vidas que podem
ser potencializadas e afirmadas interculturalmente.

REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Companhia das letras: São Paulo. 2019
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v.2. São Paulo: Editora 34, 2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 3, v.3. São Paulo: Editora 34, 2012.
LABORNE, A. A. de P. Branquitude e colonialidade do saber. Revista da ABPN • v. 6, n. 13 • mar. – jun.
2014 • p. 148-161. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/site/article/view/156. Acesso em maio 2022.

289
LOPES, N. 1942 - Filosofias africanas: uma introdução. 1 ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2020. recurso digital
NASCIMENTO, W. F. Entre apostas e heranças: contornos africanos e afrobrasileiros na educação e no
ensino de filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: NEFI, 2020. Disponível em: . Acesso em: 20 de novembro de
2020
MARTINS, A. S. “Todos pela educação”: o projeto educacional de empresários para o brasil século XXI –
UFJF GT-09: Trabalho e Educação
MIRANDA, Eduardo O. Corpo-território & Educação decolonial: Proposições afro- brasileiras na invenção
da docência. Salvador: EDUFBA, 2020.
RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Imprensa Oficial de São
Paulo: São Paulo, 2006.
RUFINO, L. Exu e a pedagogia das encruzilhadas / Luiz Rufino Rodrigues Júnior. – 2017. 231 f. Tese
(Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação.
SCHWARCZ, L. M. Uma História de “Diferenças e desigualdades”: As doutrinas raciais do século XIX. In:
SCHWARCZ, Lília Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
TARLAU, R.; MOELLER, K. O consenso por filantropia: Como uma fundação privada estabeleceu a
BNCC no Brasil. Currículo sem Fronteiras, v. 20, n. 2, p. 553- 603, maio/ago. 2020.

290
A LEI 11.645/2008: IMPLICAÇÕES PARA O CURRÍCULO

Aline Alves de Almeida


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília (FE-UnB). alinealmeidah2@gmail.com

Introdução

A partir da Constituição Federal de 1988, os povos indígenas do Brasil tiveram uma série de
demandas específicas atendidas, tendo a lei maior do país um capítulo de sua redação destinado a eles.
Tais conquistas são resultantes de intenso e longo processo de luta, pressão e organização dos
movimentos indígenas, sobretudo, desde a década de 1970, no enfrentamento ao discurso
assimilacionista e integracionista do Estado e da Igreja, na mobilização por seus direitos coletivos e
reafirmação de suas identidades étnicas. (LUCIANO, 2006).
As principais conquistas advindas da Constituição (BRASIL, 1988) foram o reconhecimento de
sua organização social, línguas, costumes, crenças e tradições, bem como o direito desses povos sobre
as terras que já ocupam, sendo da responsabilidade da União, a quem compete privativamente legislar
sobre populações indígenas, a demarcação e proteção dessas terras. Também fora assegurado às
comunidades o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Nesse processo histórico, destacam-se também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (BRASIL, 1996), em seu artigo 78, a oferta de educação escolar intercultural aos povos
indígenas com o objetivo de proporcionar às comunidades nativas a recuperação de suas memórias
históricas, a valorização de suas línguas, saberes e conhecimentos próprios, além de garantir a eles o
acesso ao conhecimento científico da sociedade nacional e demais comunidades.
Porém, também constituem uma das preocupações dos movimentos indígenas as imagens e
representações que circulam no imaginário da população brasileira a seu respeito. São imagens
genéricas, contraditórias, frutos do desconhecimento e do preconceito em relação a esses povos.
Tais imagens e representações permitem questionar e problematizar sobre o ensino da temática
indígena nas escolas, como o currículo aborda essa questão e que representações e imagens os livros
didáticos ajudam a formar sobre estes povos.
Em 2008, foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 10 de março, a Lei
11.645 (BRASIL, 2008). Essa lei alterou o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
– modificada anteriormente pela Lei 10.639 (BRASIL, 2003) que instituía o ensino obrigatório da cultura
afro-brasileira nas escolas – ao acrescentar a obrigatoriedade do ensino da cultura e história indígenas
nas escolas brasileiras de ensino fundamental e médio, públicas e privadas.
O conteúdo da lei surge com vista a preencher uma lacuna na história brasileira com relação à
falta de conhecimentos e informações a respeito desses povos, duramente massacrados e silenciados
ao longo de cinco séculos da história brasileira, em um processo de conscientização quanto à sua
importância e diversidade, de valorização de suas identidades étnico-culturais e para um ensino que leve

291
em conta as suas versões da história, que seja mais condizente com as suas realidades. Tais conteúdos
devem ser vistos no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas disciplinas de História, Literatura
e Arte.
Neste sentido, este artigo procura analisar qual a aplicabilidade da Lei 11.645/2008 nas
instituições de ensino e suas interfaces com o currículo escolar. Para tanto, foi realizada uma revisão de
caráter bibliográfico, com recorte temporal de 2016 a 2022, em bases de dados como Scielo e Portal de
Periódicos da Capes, de estudos que abordam o tema da Lei 11.645/2008, com foco no estudo das
culturas e histórias indígenas.

A prática pedagógica – ações pontuais e isoladas.

Estudo de Russo e Paladino (2016), que objetivou analisar o ensino da temática indígena nas
escolas municipais e estaduais do Rio de Janeiro, aponta que a temática indígena, de forma geral, é
tratada de maneira superficial, fragmentada e pontual, sem aprofundamento no dinamismo e
especificidades das culturas nativas. Nas práticas pedagógicas observadas, verificou-se que as
atividades realizadas não foram alvo de planejamento institucional, mas se caracterizaram como
iniciativas pontuais de alguns professores que se interessam pela temática.
Resultado semelhante aponta pesquisa de Isobe et al. (2017) que, ao entrevistar docentes da
educação básica da rede municipal de Minas Gerais sobre as atividades realizadas a respeito do tema,
verificou que estas são vinculadas ao Dia do “índio”, não sendo a questão trabalhada ao longo de todo o
ano letivo.
Neves (2020), ao analisar as atividades encontradas sobre o tema nos cadernos escolares de
crianças dos anos iniciais do ensino fundamental, pondera que as atividades apresentam informações
fragmentadas, contraditórias e generalizadas, ignorando a diversidade das mais de 300 etnias existentes
no território brasileiro.
Tal contexto encontrado nas pesquisas pode ser caracterizado como que F. Silva (2022, p. 101)
aponta como o currículo festivo: “caracteriza-se por ser modelado com base em ações isoladas ou
mesmo contínuas, mas desconexas de qualquer diretriz, projeto ou PPP e sem crítica política ou social a
respeito das temáticas”.

Livros didáticos – a permanência do olhar eurocêntrico

Em muitas escolas, principalmente as encontradas nos rincões do país, o livro didático se


constitui como uma das principais fontes de acesso ao conhecimento sistematizado. Dessa forma, seus
textos e imagens se constituem como forma de evidência história e contribuem para legitimar discursos.
No sentido de problematizar como a temática indígena é abordada nas coleções dos livros
didáticos de história do ensino fundamental e médio do país, estudos de Busolli e Laroque (2018), Schütz
(2017), Silva et al. (2017) apontam que a maioria das obras analisadas ainda carece de uma abordagem
comprometida que evite generalizações sobre a temática. As abordagens encontradas nos materiais são

292
bastante similares, pois as discussões remontam à presença indígena no período colonial, percebendo
ausência, na grande maioria das coleções didáticas, de retrato ou menção destes povos nos períodos
entre o Brasil colonial e a contemporaneidade. Dessa forma, os livros didáticos contribuem para
formação de uma visão fragmentária e estereotipada das sociedades indígenas, ao trazer a narrativa da
formação do Brasil a partir de relatos da chegada de cronistas, navegadores e colonizadores europeus
que chegaram ao continente americano. Esse viés eurocêntrico, contido nos livros de história, conferiu
aos outros povos, como os negros e indígenas, um papel subalterno, pautado no silenciamento de sua
importância como atores históricos na formação da sociedade brasileira.
Entretanto, Schütz (2017) aponta que, em relação às transformações positivas, há uma tendência
encontrada em alguns livros didáticos pesquisados, produzidos após a promulgação da Lei 11.645/2008,
em trazer a presença dos povos indígenas na contemporaneidade, ligados à questão da luta pelas terras
e pela territorialidade. O debate com relação à presença indígena no momento atual tem sido feito por
meio das questões da demarcação das terras indígenas e com relação aos conflitos com não-indígenas.

A formação inicial de professores - a invisibilidade da temática

É necessário que o conteúdo da Lei 11.645/2008 impacte também nos currículos de formação de
professores, pois estudos de Angelo (2019), Silva et al. (2021); Russo e Paladino (2016) apontam que as
disciplinas obrigatórias do currículo no curso de formação de professores de Pedagogia e História das
universidades pesquisadas não contemplam nenhuma discussão referente às temáticas indígenas, e que
algumas disciplinas eletivas (optativas) podem contemplar a discussão, mas dependem de oferta da
disciplina e do engajamento de professores que se interessam pela temática.
Segundo Grupioni (2004), em que pesem áreas como a Antropologia e a História terem
acumulado um vasto conhecimento sobre as sociedades nativas brasileiras, a discussão acadêmica
ainda não se reflete de forma qualitativa na formação inicial docente.
Portanto, é salutar considerar a formação de professores para o trabalho com a educação das
relações étnico-raciais, pois não adianta a obrigatoriedade de se estudar as histórias e culturas das
matrizes de formação do povo brasileiro nas escolas, se os seus docentes não são preparados para
trabalhar a temática em sala de aula.

Avanços e desafios da institucionalização da temática

Em que pese a ausência da discussão na formação inicial de professores, há de se considerar


avanços apontados por Angelo (2019), como no estado do Mato Grosso, onde a regulamentação da Lei
11.645/2008 aconteceu em 2013 por meio de instrução normativa, em que a oferta da educação das
relações étnico-raciais e sua inclusão nos projetos políticos pedagógicos das escolas do ensino básico é
obrigatória.
Já em Pernambuco, Rosa (2021) verificou a criação de diversas estratégias pela Secretaria de
Educação do Estado para colaborar com a implantação efetiva do ensino de história e culturas afro-

293
brasileira e indígena, como a promoção de cursos de formação continuada de professores para
promoção da educação das relações étnico-raciais.
Porém os estudos anteriormente mencionados também evidenciam como principais desafios a
falta de materiais didático-pedagógicos para se abordar a questão, a escassez de verbas e falta de
acompanhamento do processo educativo, o que prejudica sobremaneira a continuidade das ações
pedagógicas.

Educação intercultural – um caminho possível?

Neves (2020), Melo e Gomes Junior (2020), Costa (2020) e Souza (2019) apontam para
possibilidades de estabelecimento de um currículo intercultural nas escolas com a inserção dos
conhecimentos efetivos sobre as etnias indígenas, como estratégia didático-metodológica para que se
efetivem aprendizagens interculturais efetivas, sendo um caminho ao que preconiza a Lei 11.645/2008.
Tais estudos acima mencionados estão ancorados na perspectiva dos estudos decoloniais, do
multiculturalismo ou da interculturalidade crítica. Essas teorias, no campo dos estudos curriculares, estão
situadas no bojo das teorias pós-críticas. Conforme T. Silva (2022) essas vertentes contribuem no sentido
de ampliar a discussão para além das determinações de classe, como as dinâmicas de gênero, raça e
sexualidade, bem como questionam o que pode ser considerado conhecimento, de quem e para quem,
ou seja, ampliam as nossas bases sociais epistemológicas.
Nessa ótica, Catherine Walsh (2009, p.16) propõe a interculturalidade crítica como uma prática
educativa e uma ferramenta pedagógica, voltada para questionamento, intervenção e transformação da
realidade, numa perspectiva da decolonialidade, ou seja, na contestação de narrativas coloniais, que
legitimaram o poder, baseadas na hierarquização das raças a partir de “padrões de poder fundados na
exclusão, negação e subordinação e controle dentro do sistema/mundo capitalista.” Tal prática viria por
meio da descolonização do pensamento, ou seja construir, reconhecer outras formas de relações de
saber, ser, poder, distintas do pensamento eurocêntrico, no enfrentamento e transformação das
estruturas que posicionam grupos e saberes dentro de uma lógica moderna/colonial:
questiona continuamente a racialização, subalternização, inferiorização e seus padrões de
poder, visibiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e
criação de compreensões e condições que não só articular e fazem dialogar as diferenças
num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que - ao
mesmo tempo - alentam a criação de modos “outros” – de pensar, ser, estar, aprender,
ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras. (WALSH, 2009, p. 25)

Conforme aponta T. Silva (2022, p. 88), o multiculturalismo em uma perspectiva crítica representa
um importante “instrumento de luta política”, pois coloca em evidência e traz para o debate a diversidade
de culturas existentes, bem como aponta que as diferenças não podem ser entendidas fora das relações
de poder, que estão na base de produção dessas diferenças.

Considerações finais

294
O momento histórico pelo qual o Brasil atravessa tem sido marcado por um desmonte das
políticas públicas e sociais. Os povos indígenas no Brasil vivenciam a escalada da violência contra suas
comunidades e suas terras, motivada pelo discurso do governo federal de que os povos indígenas
atrapalham a economia do país e precisam ser integrados à sociedade, ameaçando seriamente as
conquistas advindas da Constituição Cidadã de 1988.
Dessa forma, urge a necessidade de se debater sobre a qualidade do ensino sobre a cultura e
histórias dos povos indígenas nas escolas do país, no sentido de se evitar o preconceito, os estereótipos
e visões fragmentadas sobre eles.
Os resultados obtidos evidenciam que as atividades realizadas nas escolas a respeito da temática
comumente são feitas de forma pontual e isolada, com enfoque no dia “do índio”.
A maioria dos livros didáticos analisados, mesmo após a promulgação da Lei 11.645/2008,
continua retratando os povos indígenas sob enfoque eurocêntrico, a partir da chegada dos colonizadores
europeus ao continente americano.
Sobre a formação inicial de professores, as pesquisas apontam que as disciplinas obrigatórias do
currículo de formação de professores de Pedagogia e História das universidades pesquisadas não
contemplam a discussão referente ao ensino da cultura e história indígenas, sendo apenas discutidas em
disciplinas optativas e do engajamento de professores interessados pela temática.
Entretanto cabe ressaltar iniciativas como as do estado do Mato Grosso, que caminham para
fortalecimento da inclusão da temática em âmbito institucional, uma vez que a sua inserção obrigatória
nos projetos pedagógicos das escolas de educação básica contribui para o fortalecimento do trabalho
coletivo, evitando que a realização de atividades sobre a temática ocorra por iniciativas pessoais e ou
isoladas.
Como visto, existe um longo caminho para que o conteúdo da Lei 11.645/2008 seja implementado
de forma qualificada nas escolas. Porém, enquanto a discussão não ocorrer no âmbito dos currículos de
formação de professores, teremos pouco avanços.

REFERÊNCIAS
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Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Disponível em:
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SCHÜTZ, K. R. O ensino de história indígena e o tempo presente: algumas demandas da lei 11.645/2008
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Vera Maria. (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43.

296
JOGOS E BRINCADEIRAS AFRICANAS: UMA PROPOSTA ANTIRRACISTA PARA A EDUCAÇÃO
INFANTIL E ANOS INICIAIS

Ana Tereza Ramos de Jesus Ferreira


Mulher, negra, professora, alfabetizadora e fruto da educação pública, acredito e defendo a educação de qualidade
para todos, pois só assim poderemos construir uma sociedade equânime. Sou professora da Secretaria de Estado
de Educação do Distrito Federal há 25 anos, atuando na educação infantil, anos iniciais e na educação especial.
Faço parte do grupo Dzeta Investigação em Educação Matemática - DIEM da Faculdade de Educação/UnB e estou
iniciando meu doutorando em psicologia na UnB com o objetivo de abordar brincadeiras lúdicas na perspectiva
antirracista. Tenho interesse por pesquisas na área de educação antirracista, aprendizagem por meio de jogos,
brinquedos e brincadeiras, alfabetização e letramento, formação docente, educação matemática, educação
especial, educação em e para os Direito Humanos e Educação Escolar Quilombola.
anaramosferreira75@gmail.com

Hélio Rodrigues dos Santos


Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE, da Universidade de Brasília – UnB
(2022). Especialista em Metodologia do ensino de Matemática e da Física pela Faculdade São Luís - FSL (2019).
Graduado em Licenciatura em Educação do Campo pela Universidade de Brasília - UnB (2019) e em Licenciatura
em Pedagogia pelo Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN (2017). Tem interesse nos temas:
Educação Escolar Quilombola; Formação de professores/as quilombolas; Diversidade e Educação Matemática com
foco na Etnomatemática. Atua no grupo de pesquisa Dzeta Investigações em Educação Matemática - DIEM.
rodrigueshelio75@gmail.com

Geraldo Eustáquio Moreira


Pós-Doutor em Educação pelo ProPEd (UERJ/2020); Doutor em Educação Matemática pela PUC/SP (2012),
Mestre em Educação – UCB (2005); Licenciado em Ciências Naturais (1996), Matemática (1999) e Pedagogia
(2013). Atualmente, é Professor da Universidade de Brasília - UnB, atuando na Faculdade de Educação e é
Professor/Pesquisador da Pós-Graduação, níveis Mestrado e Doutorado, dos Programas de Educação (PPGE,
Acadêmico e Profissional), onde desenvolve pesquisas assentadas na Educação, na Educação Matemática, na
Diversidade, Inclusão e Direitos Humanos. Chefe do Departamento de Métodos e Técnicas da FE/UnB e tutor do
Programa de Educação Tutorial do PET Educação da Fe/UnB. Tem feito pesquisa, ensino e extensão associados a
uma atuação profissional que busca consolidar abordagens construtivistas na formação de professores de
Matemática, sobretudo nas subáreas da Matemática, da Educação Matemática, da Educação Matemática Inclusiva,
na Educação em Direitos Humanos e da Cognição Matemática. Associado a estes aspectos, tem atuado pela
profissionalidade, trabalho e condições da docência de professores, epistemologias e etnociências. Focaliza, de
forma complementar e associada às questões de identidade e saberes, na formação para a docência, na
diversidade, diferença e Direitos Humanos. É líder de grupo de pesquisa homologando pela UnB e pelo CNPq.
geust2007@gmail.com

Vamos brincar?

Os estudos de Almeida (2021) revelam que a estrutura da nossa sociedade é extremamente


racista. Logo, todas as instituições que fazem parte dela também o são e, desta forma, não é raro
tomarmos conhecimento sobre casos de racismo em instituições escolares, uma vez que ela é uma
instituição social e reflete a sua estrutura. Entretanto, a mesma instituição que reproduz o racismo, pode
e deve ser responsável por combatê-lo, visto que “[...] se o racismo é inerente à ordem social, a única
forma de combate-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas” (ALMEIDA, 2021, p.
48).
Nessas considerações, o combate ao racismo, dentro da escola, não pode ficar restrito a ações
em torno do dia 20 de novembro, quando é comemorado o dia da consciência negra, o qual muitas vezes
só é trabalhado no espaço escolar por força da Lei 10.639 de 2003 (BRASIL, 2022) que torna obrigatório
o ensino da cultura africana nas escolas. Com isso não queremos desvalorizar essa conquista,

297
entretanto precisamos ir além, as reflexões sobre raça, respeito a diversidade, discriminação e
preconceito precisam acontecer no cotidiano de sala de aula.
Pensando nessas questões, este resumo propõe uma reflexão teórica sobre o uso de jogos
africanos como proposta de divulgação e desmistificação da cultura africana, bem como o trabalho
antirracista, ao propor o uso de jogos e brincadeiras africanas.

Eu vou, eu vou…

O trabalho em tela é de cunho qualitativo, com viés teórico-reflexivo e a teoria que usamos para
compreender a realidade é a Psicologia Histórico-Cultural. Utilizamos a produção de Almeida (2021)
como argumento de que é possível repensar a estrutura social e constituir uma sociedade
corresponsável pela formação sociopolítica dos estudantes.

Ubuntu - minha existência conectada à do outro

Pode se dizer que desde a infância as crianças negras são vítimas “pelos mais diversos tipos de
atitudes discriminatórias e inferiorizantes, esse quadro de agressões e negações de direitos é
aprofundado pelo racismo e outras práticas preconceituosas” (ARAUJO; SOARES, 2021, p.1). Estas
formas de ataque a essas crianças não são aleatórias, elas se baseiam no conjunto de padrões
eurocêntricos que desqualificam o sujeito negro, seus traços e pertencimentos étnicos.
Neste sentido, entendemos que os jogos africanos constroem uma ponte entre a desvalorização
do conhecimento étnico com a compreensão da existência desta organização cultural. Desta forma, ao
trazermos estas atividades para a sala de aula, não apenas estamos trabalhando os aspectos
curriculares, mas permitindo as diversas crianças e professores que desconhecem estes jogos, a
conhecerem e a inserirem em seus arsenais de lazer, ensino e diversão.
Os jogos e brincadeiras fazem parte da cultura de um povo e geralmente atravessam gerações e
são passados de pai para filhos ou entre colegas de brincadeiras e têm como único objetivo, por parte
dos brincantes, a diversão. Entretanto sabemos que ao brincar a criança impulsiona o desenvolvimento,
desenvolve a autonomia, o respeito as regras, a resolução de problemas, o desenvolvimento da
linguagem, além de prepará-la para a vida adulta (FERREIRA, 2016).
A articulação dessas ideias nos permite afirmar que por meio dos jogos e brincadeiras os alunos
podem se disponibilizar para aprenderem um pouco mais sobre a cultura africana, ao longo da atividade,
e paralelamente, perceber que as atividades propostas produzem os mesmos resultados que as
brincadeiras tipicamente brasileiras, ou seja, a diversão, desmistificando as tradições africanas que são
vistas de maneira preconceituosa e discriminatória, reforçando as práticas racistas e desumanizantes
que vêm sendo aplicadas desde o início da escravidão no Brasil (ALMEIDA, 2021).
Portanto, em meio às atividades lúdicas, é possível utilizar a brincadeira Terra-Mar. Esta
brincadeira é de origem africana, especificamente de Moçambique. Essa brincadeira consiste em tecer
“uma reta deve ser riscada no chão, onde um lado será a “Terra” e o outro “Mar”. No início todas as

298
crianças podem ficar no lado da terra. Ao ouvirem: “mar”, todos devem pular para o lado do mar. Ao
ouvirem: “terra”, pulam para o lado da terra” (OLIVEIRA; MENDES, 2021, p. 9), vence a brincadeira o
último integrante que permanecer.
Para enriquecer os nossos momentos, podemos utilizar o jogo Shisima, que tem origem no
Quênia, um país da África Oriental. Por ser um jogo simples de confeccionar “é muito praticado por
crianças dessa região. É de costume entre os quenianos fabricarem os seus tabuleiros desenhando-os
na terra ou areia e como peças utilizam pedras, tampinhas ou qualquer outro material que seja distinto ao
do adversário” (SILVA; VIANA, 2018, p. 6).

Figura 1 – “Jogo Shisima”. Fonte: Jogos africanos – a matemática na cultura africana, 2022

Este jogo, de lógica matemática, é praticado em duplas e tem por finalidade construir uma reta
com três peças alinhadas. De acordo com a língua tiriki, a palavra Shisima quer dizer “extensão de
água”. As peças são chamadas de imbalavali ou “pulgas-d’água”. “As pulgas- d’água movimentam-se tão
rapidamente na água que é difícil acompanhá-las com o olhar”, o que explica a velocidade e agilidade
dos movimentos (JOGOS AFRICANOS - A MATEMÁTICA NA CULTURA AFRICANA, 2022).
E por fim, sugerimos o jogo labirinto. Este jogo consiste em os participantes tirarem par ou ímpar,
aquele que vencer poderá avançar uma casa, vence aquele que chegar ao final do jogo. Estes jogos e
brincadeiras contribuem para a percepção espacial dos estudantes, conhecer a cultura africana e
promover a interação entre os participantes. E esse cenário é extremamente favorável para aprender que
o respeito ao outro é condição sine qua non para vivermos em paz.

PALAVRAS-CHAVE: jogos e brincadeiras africanas; antirracismo; educação infantil; anos iniciais.

REFERÊNCIAS
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ARAUJO, D. K. P; SOARES, F. R. Educação antirracista e o protagonismo infantil: tessituras cotidianas
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_EV151_MD1_SA106_ID8775_11082021091937.pdf. Acesso em 28 set. 2022.

299
BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 10 jan. 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 23 set. 2022.
FERREIRA, A. T. R. J. Trabalho pedagógico: o jogo e as brincadeiras como estratégias da ação docente.
In M. C. V. R. Tacca (Org.). In: Ação formativa docente e práticas pedagógicas na escola pp. 169-188.
Editora Alínea, 2016.
JOGOS AFRICANOS – A MATEMÁTICA NA CULTURA AFRICANA. Jogo Shisima, Portal Gelédes, 2022.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/jogos-africanos-a-%20matematica-na-cultura-africana/ Acesso
em: 05 out. 2022.
OLIVEIRA, G. R; MENDES, N. G. As brincadeiras na educação infantil: memória e ancestralidade. In: V
Congresso Nacional de Educação - V CONEDU. Anais [...]. 2021. Disponível em:
https://editorarealize.com.br/editora/anais/conedu/2021/TRABALHO_EV150_MD1_SA106_ID9272_011
12021200818.pdf. Acesso em: 28 set. 2022.
SILVA, P. A.V; VIANA, L. G. L. Aplicação do Shisima como ferramenta auxiliar no ensino da geometria
plana. In: V Congresso Nacional de Educação - V CONEDU. Anais [...]. 2018. Disponível em:
https://editorarealize.com.br/editora/anais/conedu/2018/TRABALHO_EV117_MD4_SA6_ID4829_23082
018175422.pdf. Acesso em: 28 set. 2022.

300
MOSTRA DE ARTE E CULTURA NA ESCOLA E SUAS IMPLICAÇÕES NO DEBATE ÉTNICO-RACIAL
COM ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL

Paulo César dos Santos


Professor de Educação Básica da SEEDF. Ator. Mestrando em Artes Cênicas pela Universidade de Brasíllia. Pós-
graduando em Saúde Mental. paulo.cesar1@edu.se.df.gov.br

Introdução

O objetivo do presente trabalho é discutir de que maneira as práticas pedagógicas nas artes
estão sendo desenvolvidas no ensino público e aperfeiçoadas num contexto decolonial para atender aos
estudantes dos anos finais do ensino fundamental do CED Gesner Teixeira do Gama, composto por
moradores da Região Administrativa II e adjacências.
O texto aborda ainda a realização de eventos temáticos culturais no âmbito escolar numa
perspectiva de formação de plateia com o intuito de evidenciar e valorizar a diversidade cultural.
Como argumento conclusivo aponta-se a necessidade da realização permanente de projetos e
eventos artísticos culturais que motivem os estudantes a manifestarem-se artisticamente e possibilitem
conhecerem e exercitarem diversas possibilidades de produção livre expressão artística de forma
consciente e libertária.

ATO I

Cena 1

O estudantes do 9º ano C (negros, pardos e brancos; faixa etária entre 13 e 15 anos) dirigem-se
ao salão de múltiplas funções da escola para assistirem a uma mostra de curta-metragens - objeto de
estudos para auxiliá-los na produção de filmes temáticos. O professor (pardo) faz as primeiras
explicações técnicas sobre as futuras produções, pede atenção e análise dos filmes por parte da turma e
solicita a uma estudante (negra) que apague a luz do salão para iniciar a reprodução da película. Neste
momento um dos estudantes (branco) grita: “- Gente, onde tá o Tony (negro) ?!! Cadê o Guilherme
(negro)?!!”. O estudante (branco) solta uma alta gargalhada que é seguida por vários outros estudantes
(brancos, pardos e negros). O professor (pardo) pede a estudante (negra) que acenda as luzes, identifica
o estudante (branco) que cometeu o ato, explica que não se trata de uma simples piada, rapidamente
fala sobre racismo recreativo e pede ao estudante (branco) que se apresente à coordenadora (branca)
da escola. O professor (pardo) solicita o comparecimento dos pais (brancos) do estudante (branco) à
escola e que o estudante (branco) retorne somente na presença dos responsáveis (brancos). No dia
seguinte o estudante (branco) retorna à escola sem a presença dos pais (brancos). Como se nada
tivesse ocorrido… Fim da cena.

301
Cena 2

A estudante Aline (negra) dirige-se ao professor (pardo) dizendo que adora os cabelos cacheados
dele e pergunta o que ele faz para mantê-los assim. O professor agradece e responde como trata os
cabelos. Apenas lavando e deixando-os soltos. Aline diz que gostaria muito de andar com os cabelos
soltos pela escola e pelas ruas. O professor diz: “-Ande, uai!”. Aline retruca: “-Eu não! Tenho vergonha.
Os meninos/as dizem que eu fico parecendo uma árvore”. Fim da cena.

Cena 3

Formação de pares para participar da quadrilha junina. Estudantes conversando. O estudante


Juan (negro, autista, estrábico) se aproxima e informa ao professor (pardo) que já tem um par escolhido
para participar dos ensaios da dança tradicional e que será a estudante Sara (branca) do 8C. Neste
momento alguns estudantes (brancos e pardos) que ouviram a fala de Juan riem e dizem: “-Véi se até
esse bicho aí tá namorando por que é que a gente não tá?”. Gargalhadas seguidas de chamamento de
atenção pelo professor. Fim da cena.

ATO 2

Em pleno exercício do magistério atuando com regência em turmas de anos finais do Ensino
Fundamental, a partir da provocação contida nas três cenas reais supracitadas e ainda diante do
acontecido revivendo a própria experiência quando estudante, mais uma vez pudemos constatar
coadunando com o que afirma o professor Adilson Moreira que o racismo pode assumir diversas formas
em diferentes lugares e em diferentes momentos históricos, e que por essa razão mais uma vez se faz
necessário um conjunto de ações pedagógicas de cunho antirracista em todo o âmbito escolar que
consiga abranger a comunidade em sua totalidade: pais, tutores, equipe gestora, equipe de apoio
admistrativo (seguranças, vigias, merendeiros, conservação etc.) e muito especialmente os/as
estudantes.
Remanescentes de diversas localidades da cidade do Gama-DF, de Santa Maria-DF e do entorno
(que compreende algumas cidades do Goiás), os estudantes que compõem o corpo discente do CED
Gesner Teixeira do Gama encontram-se numa faixa etária que vai dos 11 aos 16 anos de idade. Fase em
que estão em plena puberdade, constituição da sexualidade e em formação de caráter. A adolescência,
como é bem sabido e explicitado no MSD – Manual para a saúde, é o período de desenvolvimento
durante o qual a criança dependente evolui para a vida adulta independente. Esse período começa,
geralmente, por volta dos 10 anos e termina próximo dos 20 anos de idade. Durante a adolescência, a
criança passa por intensas mudanças físicas, intelectuais e emocionais. Está expandindo suas relações
com o mundo e descobrindo-se intelectualmente. Por essas razões considera-se salutar ter acesso a
uma aprendizagem que, além do campo cognitivo proporcionado pelos componentes curriculares

302
contemplado nas diretrizes educacionais vigentes, aborde também valores e conhecimentos que
contribuam para uma formação cidadã e igualitária.

ATO 3

É com foco nesta educação voltada para equanimidade e consciência cidadã que se propõe o
presente trabalho quando sugere a realização de projetos e eventos artísticos com ênfase na diversidade
e na ampliação do repertório cultural dos estudantes do CED Gesner Teixeira do Gama (DF) através da
Mostra de Arte e Cultura GT Cenas – Diversidade em Ação. Este projeto, que já vem acontecendo no
referido centro educacional, pretende atualizar e ampliar as ações voltadas para o combate ao racismo, à
homofobia, à xenofobia e outras formas de preconceito. Já inserido no Projeto Político-Pedagógico da
unidade escolar com o apoio da equipe gestora e tendo como protagonistas realizadores os próprios
estudantes (Figura.1 e Figura.2) sob a orientação e supervisão de um grupo de professores, a Mostra
reúne vários aspectos considerados relevantes pelo corpo docente e discente: planejamento,
organização, execução e avaliação realizada pelos educandos; participação efetiva dos professores na
programação de forma didática criativa; mobilização de toda escola no dia da realização; vinculação da
dedicação aos estudos como condição na participação do evento; ênfase em temas sociais; dentre
outros.
O formato do projeto, cujo tema principal é diversidade, assemelha-se a um programa de
variedades no qual vários quadros são apresentados por uma dupla ou trio de estudantes que dividem o
palco e vão chamando os artistas (estudantes, professores, servidores, pais) inscritos previamente que
são efusivamente recepcionados e apreciados pela plateia.
Dentre os quadros apresentados e que foram sugeridos pelos próprios estudantes temos:
1. Abertura – Feita por um dos estudantes que chama um representante da equipe gestora para
as palavras iniciais;
2. Visual Mente – Quadro em que um artista visual é anunciado para criar uma obra de arte
durante todo o evento e retorna ao final para assinar a sua obra;
3. Curta um filme – Mostra de filmes criados pelos estudantes como atividade de Arte;
4. Canta, canta, minha gente – Quadro musical ao vivo;
5. Vic Paranhos entrevista... – Quadro de entrevistas feito por uma estudante e seus convidados;
6. Ela dança, Eu danço! – Quadro de danças diversas;
7. Som de preto – Apresentação de um clipe musical com música de origem afro-brasileira;
8. GTeatrana – Gincana Cultural durante todo o evento;
9. Esquete em Cena – Cenas teatrais curtas sobre temas diversos;
10. Quintal do Quintana – Sarau de poesias diversas;
11. O próximo apresentador da mostra – Apresentação dos estudantes que irão conduzir a edição
seguinte da mostra;
12. Didática Mente – Quadro no qual um professor é desafiado a explicar em 3 minutos um
conteúdo para toda a plateia presente;

303
Além das apresentações de palco, são realizadas também exposições de diversos trabalhos
realizados pelos estudantes por todas as dependências da escola. Um festival de formas e cores.

Figura 1 – Equipe organizadora da Mostra GT Cenas Diversidade em Ação. Fonte: Pecê Sanvaz, 2022.

Figura 2 – Equipe organizadora da Mostra GT Cenas Diversidade em Ação. Fonte: Pecê Sanvaz, 2022.

Somente em uma sociedade que respeite suas diferenças é concebível se pensar em igualdade e
justiça. A educação tem papel essencial nesse aspecto. Educar os mais novos para um perspectiva de
um futuro melhor não faz mais sentido. O tempo é agora. Os jovens não são o futuro. São o presente que
se faz futuro a cada dia. O educador que não pesquisa, participa e torna concreto o debate sobre
igualdade e questões étnico-raciais está fora do seu tempo.
As manifestações artísticas apresentadas e muitas outras que aqui não foram contempladas,
quando estrategicamente selecionadas e bem direcionadas, a partir de um planejamento pensado em
função da aprendizagem do estudante, considerando os novos tempos, constituem significativas
possibilidades expressivas da arte e podem positivamente auxiliar na diversificação das ações

304
pedagógicas de modo a estimular o público jovem a expressar-se e tornar-se cada vez mais interessado,
espontâneo, criativo e consciente de sua cidadania.

PALAVRAS-CHAVE: diversidade; racismo; protagonismo; motivação; cidadania.

REFERÊNCIAS
MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
Manual MSD, Desenvolvimento do adolescente por Evan G. Graber; abril 2021. Disponível em:
https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/pediatria/crescimento-e-desenvolvimento/
desenvolvimento-do-adolescente

305
RELATO DE UMA DOCENTE: EDUCAR PARA RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO MÉDIO

Gabriela de Paula e Silva Muniz


Professora da SEEDF, Bacharel em artes plásticas pela Universidade de Brasília, licenciada em artes plásticas
pela Faculdade de Artes Dulcina de Morais, Pós-graduada em Atendimento Educacional Especializado em
Deficiências Múltiplas pela Faculdade Famart. gmuniz74@gmail.com

O Dia da Consciência Negra foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de
2011, como uma conquista dos movimentos negros na luta por visibilidade e reconhecimento às
reinvindicações de reparação aos danos causados por séculos de escravidão da população preta no
Brasil. É um espaço/tempo para que as questões históricas e contemporâneas sejam discutidas na
busca pela diminuição das desigualdades estruturais incrustadas na nossa formação como povo
brasileiro.
Entendendo que as reflexões sobre essas questões devem ser permanentes, o que é claro a
partir da obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na Educação
Básica, trazidas pelas Lei n° 12.639/2003, bem como, pela Lei n° 11.645/2008, a qual modifica a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. E mais, compreendendo que é preciso ter uma visão
histórica e crítica dos processos e caminhos que nos trouxeram até o ponto social em que nos
encontramos, é que parte a proposta de conduzir os estudantes por uma pesquisa que construa esse
entendimento e que permita que o Dia da Consciência Negra seja, de fato, dentro do calendário escolar,
um momento de celebrações sobre a consciência construída cotidianamente.
Foi feita uma sondagem inicial entre os estudantes sobre o que sabiam sobre a história da
escravidão no Brasil, as lutas pela libertação, os acontecimentos posteriores e as lutas atuais por
conquistas de direitos e reparação histórica. De um modo geral, souberam responder sobre fatos bem
pontuais como, por exemplo, o fato de ter havido escravidão, da libertação dos escravos e sobre haver
racismo no Brasil. Quando perguntados sobre a contribuição cultural dos povos africanos à cultura
brasileira, as respostas giraram em torno de questões já bastante exploradas como as heranças culturais
da capoeira, do samba, da culinária etc. Uma estudante citou as tranças nagôs, mas não soube dizer o
que é nagô. A unanimidade foi sobre sermos um país de população predominantemente preta. Em
seguida levantei a questão de que se isso é um fato censitário, termo que pode inclusive ser incluído em
discussões posteriores, resgatando sua utilização para critérios de exclusão racial pós libertação dos
escravizados, por que sabemos tão pouco sobre a história afro-brasileira?
A questão levantada sobre as tranças nagôs e o desconhecimento de quem eram os nagôs nos
fez partir para uma investigação sobre as rotas que trouxeram milhões de pessoas escravizadas, de
onde vieram, aonde chegaram, quem foram essas pessoas e a que grupos pertenciam, importante para
começar a perceber a grande diversidade cultural africana. A pesquisa inicial partiu então das rotas
transatlânticas que comercializavam escravos saindo da África em direção ao Brasil, sendo essas a Rota
da Guiné, a Rota da Mina, a Rota de Angola e a Rota de Moçambique, e os principais grupos étnicos
trazidos nas viagens, mais especificamente grupos populacionais Sudaneses (Nagôs), Guinemos-
sudaneses mulçumanos e Bantos.

306
Esta primeira etapa da pesquisa foi apresentada oralmente pelos estudantes com ajuda de
recursos visuais como cartazes e slides em PowerPoint preparados por eles próprios e entregues por
escrito para avaliação da qualidade das informações pesquisadas. As pesquisas foram feitas
exclusivamente em sites da internet e a quantidade e qualidade das informações foram bastante
precárias. Apesar da web ser reconhecida pela quantidade incontável de informações, os sites com
linguagem mais acessível aos estudantes acabam, de um modo geral, resumindo e sintetizando os
dados a um nível que dificulta a construção de pensamentos um pouco mais elaborados. Os materiais
que permitiriam o aprofundamento do nosso estudo são encontrados em publicações acadêmicas que
exigem uma leitura mais paciente e seletiva dos assuntos procurados. Uma bibliografia que abarcasse
esses assuntos de maneira clara, objetiva sem ser rasa e com uma linguagem atrativa para adolescentes
é algo que de fato faz falta no universo da escola que eu atuo e imagino que não seja diferente em outras
unidades escolares no Distrito Federal. Pretendo reelaborar a metodologia de pesquisa na web e orientar
os estudantes de maneira mais próxima, direcionando melhor os caminhos a serem percorridos. A
elaboração de materiais e recursos de aprendizagem específicos para esse trabalho são outras
possibilidades que estou estudando, mas que também são dificultadas pela falta de um espaço de
trabalho adequado, haja visto não termos na escola, no presente momento, salas-ambiente com
bancadas e mesas apropriadas para a construção de maquetes, pinturas e outros trabalhos de caráter
artístico e que provavelmente estimulariam o engajamento dos estudantes nas atividades propostas.
A atividade seguinte consistiu na apresentação do documentário A Rota do Escravo – A Alma da
Resistência, filme produzido pela UNESCO, e uma das obras que são objeto de estudo do Programa de
Avaliação Seriada (PAS), da Universidade de Brasília. O filme constrói narrativas a partir de relatos
históricos sobre a escravidão, da origem etimológica da palavra escravo até as lutas de resistência
contra a escravidão em toda a América. Em seguida fizemos uma roda de conversa sobre que
informações novas que o filme trouxe para eles. Muitos ficaram impressionados com as condições de
transporte dos escravizados dentro dos navios negreiros. Outros não tinham conhecimento da resistência
cotidiana de muitos negros à escravidão e da quantidade de revoltas e levantes ocorridos em toda a
América. Esse ponto da conversa serviu de mote para a continuidade do trabalho de pesquisa que é
exatamente sobre as lutas e os movimentos de resistência contra a escravidão em diversos períodos
históricos e seus protagonistas. Os temas escolhidos foram: os quilombos, a Revolta dos Malês, a Greve
Negra e a Revolta da Chibata. A proposição é que este trabalho seja apresentado por meio de produções
cênicas, poesias, música, pintura e produções audiovisuais.
A terceira parte desse projeto consistirá em tratar de assuntos contemporâneos da luta
antirracista por meio do estudo das narrativas visuais e cênicas de artistas negros brasileiros, fazendo
discussões, leituras de imagens e releituras dos trabalhos propostos, culminando em uma exposição dos
trabalhos produzidos durante o semestre no Dia da Consciência Negra.
Por fim, uma avaliação dos processos e resultados deve ser realizada para apontar as
dificuldades, os êxitos e as possibilidades de aprimoramento desse projeto para as turmas que serão
atendidas no ano subsequente.

307
PALAVRAS-CHAVE: educação; cultura; antirracista.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 12.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”.
BRASIL. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro- Brasileira e Indígena”.
BRASIL. Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência
Negra.

308
“TIA, EU SOU COR DE PELE!” : ASPECTOS PARA PENSAR A CONSTRUÇÃO DO
PERTENCIMENTO ÉTNICO-RACIAL

Lidiane Agostinho Ferreira


Pedagoga. Professora da SEEDF. Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana pela UFG e
mestranda em Educação pela UNICAMP. Membra do grupo GEPEDISC-Culturas infantis.
lidianeaferreira@gmail.com

O presente resumo refere-se à pesquisa de mestrado em andamento quem tem como tema a
educação antirracista no contexto da Educação Infantil. A pesquisa de campo, já iniciada, acontece com
duas turmas de pré-escolas públicas, na faixa etária de 04 a 06 anos na cidade de Ceilândia. Tem como
objetivo compreender a educação antirracista na pré-escola na perspectiva da criança frente à prática
pedagógica docente e de todo o contexto dentro das relações interpessoais na construção do
pertencimento étnico-racial, assim como analisar suas falas inéditas em relação à temática antirracista.
Torna-se imprescindível que os espaços infantis nas instituições educativas possam proporcionar
às crianças uma educação antirracista, e que elas sejam inseridas num contexto em que a diversidade e
o respeito façam parte do seu cotidiano dentro da sociedade, assim como o seu pertencimento racial seja
valorizado e construído de forma positiva. Outro fator importante de se destacar é a sensibilidade de
as/os profissionais docentes de ouvirem e enxergarem cada criança, produtora de culturas infantis, em
suas particularidades.
- Tia, eu matei uma borboleta. - Por que? - Porque ela era feia, era preta. Eu não gosto de
preto. - Mas sua mochila é preta. - Gosto porque ela é assim [mostra detalhe na cor
vermelha na mochila]. - Eu sou preta. Você gosta de mim? [...] - Eu não gosto de preto. Eu
sou preto? - O que você acha que é? - Tia, eu sou cor de pele. - E você gosta da minha
cor de pele? - Sim, e também igual da cor da bolsa da professora [marrom]. Mais escuro
eu não gosto! (Fragmento do caderno de campo. 23 de Setembro de 2022)

A criança acima teve a oportunidade de aumentar o seu diálogo, na medida em que a


pesquisadora demonstrou interesse em sua fala, pois foi ouvida e conseguiu se externalizar por meio de
uma “reprodução interpretativa” que segundo Corsaro (2009) “as crianças e suas infâncias são afetadas
pelas sociedades e culturas das quais são membros. ”
Destaca-se que o conjunto de ações desenvolvidas por docentes deve possibilitar e favorecer as
relações com a diversidade e que atitudes preconceituosas não sejam ignoradas em creches e pré-
escolas. Sabe-se que as crianças podem agir de acordo com o que lhe é apresentado, entretanto são
autênticas para expressar opiniões e buscar novas informações.
Para a construção efetiva dessa forma de educar é necessário também ouvir as crianças,
procurando entender os seus posicionamentos frente aos conflitos raciais presentes na
sociedade brasileira, pois nem sempre as ideias que nós docentes temos sobre a
percepção delas condiz realmente com seus posicionamentos frente a estas questões.
(SANTIAGO, 2014, p.29)

É possível que elas desde muito cedo construam uma visão positiva da diversidade tanto na
creche quanto na pré-escola. Finco e Oliveira afirmam que:
O espaço da educação infantil pode ser um espaço coletivo de educação para o respeito e
a valorização das diferenças, de uma educação que permita e favoreça a diversidade. As

309
diferenças enriquecem o ambiente coletivo das instituições de educação infantil e
contribuem para que as crianças tenham a possibilidade de construir uma visão positiva
sobre a diversidade de vida e contextos, bem como o respeito pelas diferenças
relacionadas às questões de gênero e raça, caso as profissionais inseridas nessas
instituições também possam construir um "novo olhar". (FINCO, 2011, p.78)

Desse modo, por mais que a Lei 10.639/03 não contemple a Educação Infantil, não se pode
ignorar a importância de um trabalho entre as/os docentes em que possa ser discutida uma educação
antirracista.
Não pode haver dúvida, portanto, quanto ao fato de que a previsão normativa de que a
Educação Infantil torne-se um ambiente de aprendizado de valorização da diversidade
racial é condição básica para a construção de uma política educacional igualitária e
pluralista (BRASIL, 2012, p.11)

Por essa razão, é imprescindível de que na prática da/do docente se promova a construção de
uma educação antirracista. De acordo com Souza (2017), o papel central da educação das relações
étnico-raciais é de visibilizar as diferenças, tornando a educação infantil um espaço privilegiado de
encontros de culturas, saberes, etnias e sujeitos/as, afirmando a Pedagogia da Infância para além da
lógica única do colonialismo. Uma contribuição inicial da/do docente é desmistificar o seu imaginário
social que se tem do continente africano, a busca de formação continuada para que dessa forma seja
possível construir uma visão descolonizada, assim como docentes possam proporcionar uma educação
antirracista ao organizar tempo, espaço e materiais.
Por essa razão, a presente pesquisa se trata de uma abordagem qualitativa, em que estão sendo
observadas, por meio de uma pesquisa etnográfica, as interações entre as crianças, entre elas e a
professora, e as brincadeiras. As crianças participarão de oficinas com atividades lúdicas para favorecer
um ambiente mais confortável e acolhedor adequado aos desejos e exigências das crianças. Essa
aproximação entre pesquisadora e as turmas objetivará a formação de um grupo focal entre as/os
pequenas/os. O mesmo poderá ser gravado por meio de vídeo para um registro mais fidedigno que
ajudará a analisar outras linguagens além das falas. As meninas e meninos serão livres para
protagonizarem suas opiniões a respeito da temática (antirracista) abordada no decorrer da dinâmica que
consistirá em: roda de conversa, literatura específica, artes, brincadeiras e outras atividades pertinentes
à ocasião.
As entrevistas serão realizadas também com as docentes a fim de analisar aspectos relacionados
à questão racial. Anseia-se encontrar elementos que possam colaborar para uma prática docente
antirracista assim como práticas ou falas contrárias possam ocorrer. Os registros estão sendo realizados
por meio de um diário de campo e recursos audiovisuais com a devida aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa (CAEE 57697722.6.0000.8142). Este trabalho se baseia nas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil e valorosas contribuições de pesquisadoras/es: Finco, Santiago, Corsaro entre
outras autoras e autores.

PALAVRAS-CHAVE: pré-escola; pertencimento étnico-racial; práticas docentes antirracistas; culturas


infantis

REFERÊNCIAS

310
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Educação Infantil e práticas
promotoras de igualdade racial. São Paulo: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades – CEERT: Instituto Avisa lá - Formação Continuada de Educadores, 2012.
CORSARO, William. (2009). Reprodução interpretativa e Cultura de pares. In Muller, F. & Carvalho,
A.M.A (orgs.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo:
Cortez.
FERREIRA,Lidiane Agostinho. Caderno de Campo. Ceilândia- DF : [s.I.], 2022.
FINCO, Daniela e OLIVEIRA, Fabiana de. A sociologia da pequena infância e a Diversidade de Gênero e
de Raças nas Instituições de Educação Infantil.In: FARIA, Ana Lúcia G. de e FINCO, Daniela (Org).
Sociologia da Infancia no Brasil. Campinas: Autores Associados,2011.p 55 -78.
SANTIAGO, Flávio. O meu cabelo é assim... igualzinho o da bruxa, todo armado: hierarquização e
racialização das crianças pequenininhas negras na educação infantil. 2014. 147 p. Dissertação.
(Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
SOUZA, Ellen. Gonzaga. Lima.; DIAS, Lucimar. Rosa.; SANTIAGO, Flavio. Educação infantil e
desigualdades raciais: tessituras para a construção de uma educação das/nas relações étnico-raciais
desde a creche. Humanidades & Inovação, Palmas, v. 4, n. 1, p. 46-55, 2017

311
PROPOSTAS PARA A LITERATURA NEGRA NO ENSINO BÁSICO: POR UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA, REFLEXIVA E PROPULSORA DE MUDANÇAS SOCIAIS

Dayse Rayane e Silva Muniz


Professora doutoranda. Orientadora pesquisadora do PIBIC, apoio UDF e FAPDF. dayse.muniz@udf.edu.br

Mylena Cristina Felix de Almeida


Graduanda. Discente pesquisadora do PIBIC, apoio UDF e FAPDF. myh_cristina@hotmail.com

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas


que o seu funcionamento suscita é uma civilização decadente.
Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas
mais cruciais é uma civilização enferma. Uma civilização que
trapaceia com os seus princípios é uma civilização moribunda.
Aimé Césaire, Discurso sobre o Colonialismo, 1955

Este conversatório pretende divulgar o projeto de pesquisa intitulado "Propostas para a Literatura
Negra no Ensino Básico: por uma educação antirracista, reflexiva e propulsora de mudanças sociais"
desenvolvido no Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) no curso de Letras Português e Inglês no
binômio de 2022 e 2023. O projeto busca produzir manuais para que professores(as) do ensino básico
possam explorar obras de escritores(as) negros(as) brasileiro(as) por meio de atividades lúdicas e
alinhadas às propostas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Visa-se o melhoramento do
letramento literário e racial do maior número possível de cidadãos, principalmente aqueles inseridos no
ambiente escolar da educação básica; neste primeiro momento, pretendemos produzir materiais para o
Ensino Fundamental II e o Ensino Médio, a serem divulgados em um site específico para a pesquisa.
Dentre os autores e autoras ora escolhidos(as) destacamos nomes como Maria Firmina dos Reis,
Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz, Itamar Vieira
Junior e Jeferson Tenório. A escolha deste escopo específico embasa-se no entendimento de que o
ensino da literatura negro-brasileira figura como um espaço contundente para o alcance da educação
como prática antirracista. Outrossim, a investigação de autores(as) negros(as) e temas raciais figura
como estratégia cardeal para a democratização do campo simbólico, a inclusão de mais sujeitos nos
espaços de poder e o melhoramento das relações econômicas e sociais estabelecidas na nação
brasileira. Tal perspectiva surge a partir de elucubrações de estudiosos como Eduardo de Assis Duarte,
que ratifica:
No arquivo da literatura brasileira construído pelos manuais canônicos, a presença do
negro mostra-se rarefeita e opaca, com poucos personagens, versos, cenas ou histórias
fixadas no repertório literário nacional e presentes na memória dos leitores. Sendo o Brasil
uma nação multiétnica de maioria afrodescendente, tal fato não deixa de intrigar e de
suscitar hipóteses em busca de seus contornos e motivações. E já de início se configura
de modo inequívoco um dado fundamental para esta reflexão: o fato de o negro estar
presente muito mais como tema do que como voz autoral. Uma evidência dessa
magnitude demanda que se investiguem suas causas e implicações. (DUARTE, 2014, p.
151)

Em consonância com a perspectiva que delineamos, o alargamento do campo simbólico (NOA,


2005) é articulado dentro da escola a partir da literatura negra, o que conversa com as propostas,

312
competências e habilidades presentes na BNCC. O documento reconhece que "a educação deve afirmar
valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana
e socialmente justa” (BRASIL, 2013, p. 8).
Inspiradas na lei nº 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares (BRASIL,
2003), reiteramos que o projeto surge de um lugar de incômodo acerca da invisibilidade da literatura
negro-brasileira no campo simbólico, e da fé de que, através do conhecimento de mais autores(as) e
obras que versem sobre questões de raça, seja possível alcançar mudanças que se iniciam através do
acesso a essas produções literárias com centralidade nos currículos escolares, não figurando apenas
como temáticas em dias comemorativos específicos.
As possibilidades de expansão e descolonização do currículo para torná-lo mais inclusivo são
infinitas. Thiago Henrique Mota analisa sobre o tema para afirmar que: “o ensino antirracista pauta-se na
educação para a liberdade e, sobretudo, na educação para a justiça e a felicidade” (MOTA, 2021, p.15).
Podemos salientar, portanto, que o projeto pretende visibilizar obras de escritores(as) negros(as) que
ensejem reflexões sobre raça dentro da sociedade brasileira. O material desenvolvido dentro desta
premissa e disponível no site deverá ter uma linguagem dialógica, acessível e lúdica, e será divulgado
ampla e gratuitamente, para que possa transformar a realidade de instituições de ensino de todo o país.
A urgência desta propagação reside no fato de que, apesar da promulgação da lei nº 10.639/2003 e das
denúncias quanto ao apagamento da intelectualidade do povo negro pelo Movimento Negro (GOMES,
2019), a literatura negro brasileira ainda é pouco explorada no ensino básico brasileiro.
Ao buscar selecionar e sistematizar obras de pessoas negras, além de confeccionar manuais
para que os(as) professores(as) do ensino básico possam ter acesso a mais informações e estratégias
pedagógicas, este projeto acredita poder impactar a comunidade escolar em vários níveis.
Um deles é a experiência de leitura literária dentro do ensino básico, uma vez que a divulgação
dos manuais, de modo gratuito e amplo, poderá ressignificar estratégias pedagógicas no ensino de
literatura em contextos distintos, impactando profundamente jovens leitores(as). Os desdobramentos
desta pesquisa podem, igualmente, se relacionar desde às dinâmicas de sala de aula, envolvendo
metodologias, temas e discussões, até às reflexões que buscam caminhar em prol de uma educação
antirracista, propiciando mudanças sociais significativas que se iniciam no espaço escolar.
Pretende-se que, munidos(as) de estratégias e atividades lúdicas e ativas, pensadas numa
perspectiva transdisciplinar, mais docentes se sintam impelidos(as) a trabalhar a literatura negro-
brasileira em sala de aula, seja como temática principal, seja através de projetos culturais que envolvam
a comunidade escolar como um todo. Com o intuito de exemplificar o nosso percurso teórico e
resultados, mostraremos no Conservatório 7 o modelo de manual para o ensino fundamental e as
aplicações que foram feitas na sua elaboração.
Para ilustrar nossas propostas, apresentaremos o site do projeto, produzido para que os
professores tenham um acesso mais rápido e fácil aos manuais, leituras, indicações, aplicações e
pesquisas que versam sobre a temática. É uma pesquisa ainda embrionária – iniciada em julho de 2022
–, mas que buscará trazer a literatura escrita por pessoas negras para a sala de aula, de modo a

313
melhorar o letramento literário e racial dos egressos da escola pública, principalmente. Esperamos que,
pela literatura negra, possamos mostrar o potencial transformador que reside no ouvir e no narrar.

PALAVRAS-CHAVE: lei nº 10.639; BNCC; literatura negro-brasileira; ensino antirracista.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Lei. n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm Acesso em: 13 out. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ Acesso em: 13 out. 2021.
DUARTE, Eduardo de Assis. "O Lugar do Negro na Literatura: Percorrendo o Cânone." In: BELMIRO,
Celia Agicalil. [et al]. (org.). Onde está a Literatura? Seus Espaços, seus Leitores, seus Textos, suas
Leituras. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2014, p. 151-168.
GOMES, Nilma Lino. "O Movimento Negro e a Intelectualidade Negra Descolonizando os Currículos". In:
BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson;
GROSFOGUEL, Ramón. (org.). Descolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019, p. 223 - 246.
MOTA, Thiago Henrique (Org.) Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às
práticas escolares [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
NOA, Francisco. “As falas das vozes desocultas: a literatura como restituição. In: GALVES, Charlotte;
GARMES, Helder; RIBEIRO, Fernando Rosa. (org). África-Brasil: caminhos da língua portuguesa.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

314
TEMPOS E ESPAÇOS PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: EXPERIÊNCIAS VIVIDAS E
COMPARTILHADAS NO CHÃO DA ESCOLA, EM SÃO SEBASTIÃO, DISTRITO FEDERAL

Técia Goulart de Souza

Pretendo compartilhar experiências vividas em uma escola de Ensino Fundamental e em outra


escola, de Ensino Médio, entre 2019 e 2022. As primeiras experiências aconteceram no CEF Miguel
Arcanjo, em São Sebastião, e as mais recentes no CED São Francisco, o Chicão como é,
carinhosamente, conhecido. Ambas as escolas localizadas em São Sebastião, Distrito Federal.
A idealização e construção de práticas pedagógicas antirracistas passam pela formação e
transformação de nós professores até chegarem no espaço comum aos/às estudantes e toda
comunidade escolar, quando há a possibilidade desta experiência. E sobre a trans(formação) e o “fazer-
se professor”, converso com o Dr. Elison Antônio Paim, mestre que ensina e compartilha como a prática
educativa pode e deve ser pensada por todo o percurso da caminhada educativa, seja na educação
básica ou na superior. Paim afirma que:
Para se compreender o que efetivamente acontece na Escola, faz-se necessário perceber
as marcas culturais da experiência, do vivido, do enraizamento, para compreendermos o
trabalho de um profissional, a história mais ampla que precisa ser desvelada. Marcas
culturais nas quais os sujeitos, atores e autores da cultura docente possam expressar o
fazer e saber ser professor, de forma a relacioná-lo com outros saberes e fazeres,
visualizando com mais nitidez as experiências. (PAIM, 2005, p. 163).

As propostas de trabalho construídas no CEF Miguel Arcanjo, entre 2018 e 2020, foram pensadas
e realizadas com a participação direta do educador e ativista Sherwin Morris, sujeito histórico presente e
atuante na pesquisa de mestrado sob o título “Educação para as Relações Étnico-Raciais no Centro de
Ensino Fundamental Miguel Arcanjo – São Sebastião – Distrito Federal: diálogos dentro e fora da
escola”, nascido na Guiana Inglesa e morador de São Sebastião desde 2002.
Em 2021 as oficinas antirracistas contaram com a participação direta de Margot Ribeiro, que
acrescentou às oficinas a proposta de um desfile de meninas e meninos negros e negras e o destaque à
estética negra sob uma perspectiva de positivação desta estética. Tanto Margot quanto Sherwin são
integrantes e responsáveis pelo Instituto Cultural Congo Nya, com sede na mesma região administrativa
– São Sebastião.
Os trabalhos com Sherwin e Margot seguem acontecendo, mas agora no CED São Francisco e
com atividades independentes, em função de nossas agendas.
Como professora de história, procuro me atentar aos recortes raciais, independente dos objetos
de estudo. Com o Novo Ensino Médio, temos uma disciplina chamada Projeto de Vida e a mesma se fez
presente na modulação da professora que vos fala.
O estímulo para a geração deste diálogo pedagógico com bell hooks e Djamila Ribeiro em Projeto
de Vida aconteceu na ocasião da minha notável falta de conexão com os/as estudantes das turmas da
nova disciplina. Bastaram dois encontros, planejados de acordo com as orientações, sugestões da
formação continuada da Secretaria de Educação, para que eu notasse que não dava pra seguir nos

315
enganando com a proposta de projetos de vida individualizados e vazios de sentido, no que se refere à
construção de uma sociedade mais justa.
“Tudo sobre o amor”, da escritora e educadora estadunidense bell hooks, nos estimulou a pensar
a construção de uma comunidade com base amorosa e com, o “Pequeno Manual Antirracista” da
escritora, professora e filósofa Djamila Ribeiro, nos propomos a entender o que é o racismo estrutural em
nosso país e suas consequências e pensamos sobre como colocar em prática estratégias antirracistas,
em nosso cotidiano, a começar pelo ambiente escolar.
Parece pouco, mas estas duas leituras podem render discussões e transformações sociais que,
se tratadas com cuidado, no tempo e espaço escolar e, para além dele, com os/as estudantes sabedores
de perspectivas historiográficas decoloniais, colhemos o fruto de uma comunidade escolar consciente de
suas reais necessidades e anseios.

REFERÊNCIAS
PAIM, Elison Antonio. Memórias e Experiências do Fazer-se Professor. Tese (Doutorado em
Educação), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo. Companhia das letras. 2019.
hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo. Ed. Elefante, 2021.

316
POR UMA DIDÁTICA RACIAL:
RELATOS DE EXPERIÊNCIA SOBRE (ANTIR)RACISMO NA ESCOLA

Luís Paulo Cruz Borges


Professor Adjunto no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (CAp-UERJ). borgesluispaulo@yahoo.com.br

Brena Carvalho Ferreira


Graduanda em Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista de ID no CAp-UERJ.
brenacarvalho123@gmail.com

Janine Magarão das Neves


Graduanda em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista de ID no CAp-UERJ.
janineneves14@gmail.com

Guilherme Silva Simões


Graduando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista de ID no CAp-UERJ.
silvasimoes07@gmail.com

Introdução

O presente relato de experiência integra o projeto de Iniciação à Docência (ID), em andamento,


Circularidade de saberes na formação docente: por uma didática racial, realizado junto às crianças
do 2º ano do Ensino Fundamental no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ). Criado em 2017, em meio à crise financeira do
Estado do Rio de Janeiro, o Projeto de ID objetiva em suas ações evidenciar questões raciais no âmbito
da escola de educação básica, sobretudo contribuindo para a formação docente capaz de pensar
didáticas/currículos a partir da luta antirracista efetivando a Lei 10.639/03, agora 11.645/08, sobre o
ensino da história das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos currículos das escolas de
educação básica em todo território nacional.
A experiência pedagógica em tela tem como objetivo narrar práticas de sala de aula pautadas
numa perspectiva antirracista de mundo. Dessa forma, compreende-se o conhecimento escolar
significado a partir dos subalternizados. Privilegia-se as narrativas negras como mote central das ações
pedagógicas. Como pressuposto teórico-metodológico, opera-se na esteira de uma pedagogia
decolonial, compreensão de mundo que emerge na América Latina para problematizar a relação
modernidade/colonialidade, partindo de um giro epistemológico de renovação crítica dos estudos e da
produção de conhecimento no cone sul global (QUIJANO, 1988).
Utiliza-se a pesquisa-ação em que produzimos sentidos à ação pedagógica cotidiana.
Trabalhamos a partir da ideia de ação-reflexão-ação para gerar um conhecimento na e sobre a prática.
Além da observação, também, emprega-se o diário de campo como forma de anotações das atividades,
escrita de relatórios e imagens. Destacamos que Iniciação à Docência (ID), segundo Fontoura (2007), é
um espaço-tempo fecundo para a formação docente porque nos possibilita, ainda na graduação, uma
bolsa remunerada, observações em sala de aula e acompanhamento com supervisão de docentes com
mais experiência.

317
Entre racismo e antirracismo na roda de conversa

A roda é um importante instrumento de diálogo, é espaço-tempo de partilhas, encontros,


aprendizagens; a roda é teoria-prática. Xirê, por exemplo, é uma palavra Iorubá que significa roda. É na
roda que se dança para evocar os Orixás. A roda pode ser, também, lugar do sagrado, da busca pela
ancestralidade. Nesse contexto, entendemos a roda como lugar de produção de conhecimento, dos
diversos conhecimentos existentes no mundo.
O conhecimento escolar põe em xeque o silenciamento das diversas formas de compreensão do
mundo ignoradas no modelo eurocêntrico de produção curricular. Conhecimento é, também, significação
curricular. Assim sendo, rodas no cotidiano escolar podem trazer à tona os discursos silenciados, que
nas vozes das crianças ganham sentidos de experiência curricular com visibilidade (AXER; SASSON,
2019).
Quando praticamos as rodas, atividades permanentes que realizamos em nossos cotidianos,
temos a oportunidade de produzirmos novos sentidos de educação, a partir do processo de interlocução
que estabelecemos com as crianças. Sentidos que partilham de uma reflexão decolonial envolvendo uma
oposição radical ao legado e produção contínua da colonialidade do poder, do saber e do ser. É um giro
epistêmico e humanístico que propõe o reconhecimento de todo humano como membro real de uma
mesma espécie, “superando a invisibilização e a visibilidade distorcida” (QUIJANO, 1988, p. 69).
Utilizamos a literatura como disparador provocativo de debates e reflexões. Dessa forma, lemos e
debatemos alguns livros pautados na dimensão racial: i) “Tem gente com fome”, de Solano Trindade; ii)
“Ubuntu, Mandiba”, de Regina Gonçalves; iii) “Kakopi, Kakopi!”, de Rogério Andrade Barbosa; iv) “A cor
de Coraline”, de Alexandre Rampazo; v) “Omo-Oba - histórias de princesa”, de Kiusam de Oliveira.
Também lemos um artigo da Revista Ciência Hoje para as Crianças (CHC) sobre “Colorismo, você sabe
o que é?”. Tudo isso foi permeado pelas vivências das crianças sobre práticas racistas, por exemplo
quando duas meninas brigam em sala de aula e a criança branca chama a negra de “macaca”. Ou
quando uma criança negra de pele clara chamou outra colega negra retinta de “macaca burra”. Tais
dimensões vividas desde a mais tenra infância. Então, foi preciso debater tais experiências... Chamar
cada criança da turma à reflexividade.

318
Figura 1 – “O que é racismo?” Fonte: Borges, 2022

Partindo das reflexões de Achile Mbembe (2014), é preciso compreender que o racismo
institucionalizado pelo mundo moderno gera e outorga uma forma única de identidade. Assim, a escola
pode ser entendida como um lócus de saber que contribui para o enfrentamento ou reinvenção de
sentidos culturais postos ao conhecimento escolar na modernidade. Conhecimentos selecionados que ao
serem ensinados põem em xeque o silenciamento de diversas formas de compreensão do mundo
silenciadas no modelo eurocêntrico de produção curricular.

Figura 2 – “Roda sobre Colorismo” Fonte: Borges, 2022

O binômio ensinar-aprender está imbricado nas relações propostas no campo da Educação. Tais
dimensões se coadunam compondo, também, as questões do próprio campo da Didática. Ensinar como
especificidade humana requer uma gama de exigências, tais como pesquisa, reflexão crítica, respeito

319
aos diversos saberes em sala de aula, das múltiplas possibilidades de transgredir, entre outras (hooks,
2013). Exigências estas postas, também, no cenário da formação e do trabalho docente. Ensinar, então,
se torna um desafio. E como relacionar ensino com as questões étnico-raciais? Como pensar uma
didática que não seja neutra? Como fazer emergir as vozes que habitam o cotidiano da escola?
A partir de uma perspectiva que não a monocultural e eurocêntrica, objetivamos pensar em uma
perspectiva intercultural que leve em conta os diversos matizes sociais e culturais postos em nossa
sociedade. A Lei 10.639/03, e agora a Lei 11.645/08, também são frutos dessa luta histórica de
movimentos a favor da inclusão da história de culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos
currículos da escola de Educação Básica. Segundo Roberto Borges (2008, p.48), a Lei 10.639 em muito
contribui e vem contribuindo para pensarmos nossas práticas educativas. O autor problematiza tais
contribuições ao afirmar:
Que contributos concretos a Lei 10.639/03 nos traz? Ao propor uma revisão em nossa
história, postura e modo de olhar, que têm sido eurocêntricos, salvo pouquíssimas
exceções, a referida Lei nos leva a questionar, por exemplo, onde foram parar os nomes
de homens e mulheres negros e negras, pretos e pretas, pardos e pardas, mestiços e
mestiças, afrodescendentes, enfim, que participaram ativamente da construção de nossa
história, da nossa cultura, de nossa identidade nação?

À guisa de conclusão

O presente trabalho objetivou narrar práticas vivenciadas cotidianamente na escola a partir de


uma perspectiva antirracista de mundo compreendendo o conhecimento escolar significado a partir dos
sujeitos que vivem/fazem a educação. Avançando na perspectiva decolonial, afirma-se a ideia de que o
conhecimento escolar pode ser “[...] associado à libertação e à descolonização da perspectiva
subalterna, como aconteceu com a emancipação durante o século XIX” (MIGNOLO, 2003, p.207). A
escola precisa ser repensada numa perspectiva a contrapelo, ou seja, por vozes silenciadas.
As crianças revelaram infâncias que estão, de acordo com Noguera e Alves (2020), em afro-
perspectiva, ou seja, que mostram possibilidades a partir dos seus olhares sobre o mundo nos fazendo
ver o que não podíamos. São infâncias diante do racismo que, com suas vozes e olhares, produzem um
conhecimento curricular pautado na luta antirracista. Tal luta é compreendida como ato de
reconhecimento e afirmação que trazem consigo um processo de descolonização (hooks, 2013).
Podemos pensar que as crianças vêm assumindo uma linguagem de identificação sobre o que é
racismo, por exemplo, ao chamar alguém de macaca. Além de denunciar casos de racismo presentes
dentro da instituição. As vozes das crianças do CAp-UERJ são lidas como potências que nos ensinam
mais e mais sobre um mundo possível problematizando questões de raça/cor e, dessa maneira,
produzindo uma didática racial sensível à realidade da escola. A prática pedagógica da roda foi espaço-
tempo de emergência de uma pedagogia engajada e antirracista (hooks, 2013).

PALAVRAS-CHAVE: didática; escola pública; educação antirracista.

REFERÊNCIAS

320
AXER, B. SASSON, C. A roda como experiência curricular na alfabetização. Revista Digital Formação em
Diálogo, Rio de Janeiro, vol. 2, n.01, p. 15-26, 2019.
BORGES, R. C. da S. Abolição, educação e antirracismo no contexto da Lei 10.639/03. Revista
Tecnologia & Cultura – Revista do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
(CEFET/ RJ), Rio de Janeiro, p.45-50, 2008.
QUIJANO, A. Modernidad, Identidad y Utopia en América Latina. Lima: Sociedad y Politica Ediciones,
1988.
FONTOURA, H. A. Iniciação à Docência: espaço fecundo de formação de professores. In: FONTOURA,
H. A. (org.). Diálogos em Formação de Professores: pesquisas e práticas. Niterói: Intertexto, 2007.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013.
MIGNOLO, W. D. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento
e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Souza. Conhecimento prudente para uma
decente: um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Editora Afrontamento, 2003. p.631-670.
MBEMBE, A. Entrevista concedia a Séverine Kodjo-Grandvaux (tradução livre). In: Jornal Motumba, p. 5-
7, 17 de Janeiro de 2014.
NOGUERA, R.; ALVES, L. Exú, a infância e o tempo: Zonas de Emergência de Infância (ZEI). Revista
Educação e Cultura Contemporânea, vol. 17, n. 48, p. 533-554, 2020.

321
CIRCUITO HERANÇA AFRICANA E SUSTENTABILIDADE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA NA
FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
(UERJ)

Florence Mendez Casariego


Professora Assistente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora da disciplina prática de
ensino II - Consórcio CEDERJ – EAD/UERJ. Doutoranda no Programa de pós-graduação em Meio Ambiente
(PPGMA) prof.florence.casariego@gmail.com

Fátima Teresa Braga Branquinho


Doutora em Ciências Sociais – Universidade Estadual de Campinas. Professora Associada na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. http://lattes.cnpq.br/9369838721608310. fatima.branquinho@uol.com.br

Este trabalho tem como objetivo principal discutir a saída de campo “Circuito Herança Africana -
sustentabilidade” realizada na disciplina “Fundamentos das ciências naturais para crianças, jovens e
adultos” com estudantes do curso de pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A
saída de campo foi realizada com duas turmas, totalizando 57 alunos e duas professoras, e teve duração
total de 4 horas com 6 pontos de visitação. O circuito foi guiado pelo Instituto de Pesquisa e Memória
Preto Novos (IPN) que fica localizado no centro do Rio de Janeiro. O IPN foi criado em 13 de maio de
2005 e realiza pesquisas, estudos, investigações e a preservação do patrimônio material e imaterial
africano e afro-brasileiro, cuja conservação e proteção é de interesse público, com ênfase no sítio
histórico e arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos. A saída de campo realizada tem a finalidade de
valorizar a memória e identidade cultural dos diversos povos negros em Diáspora e discutir o
apagamento histórico, o qual entendemos como realizado de forma intencional, que vem ocorrendo
nestes locais, apesar de toda uma conjuntura política que atualmente ocorre em contraponto a essa
proposta de resistência.
As ações continuadas de investigações arqueológicas e pesquisas que são realizadas pelo
Instituto abrangem a manutenção do acervo e atividades educativas que geram conhecimento,
promovem a reflexão sobre a escravidão e suas seqüelas para os princípios de igualdade racial no
Brasil. O projeto Circuito de Herança Africana promovido pelo IPN foi idealizado e implementado a partir
de 2016, com o forte propósito de promover e fortalecer a educação patrimonial de seus participantes,
sobretudo dos educadores e estudantes da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo do trajeto percorrido no
circuito, tivemos como objetivos propor reflexões a partir da história do Cemitério dos Pretos Novos para
compreender a sua importância como sítio arqueológico e para construir coletivamente políticas de
valorização da memória e proteção deste patrimônio cultural, tanto pela herança africana quanto o
desenvolvimento do Rio de Janeiro e do Brasil enquanto nação. O autor norte-americano, uma das
referências dos estudos sobre raça e educação no país do Norte, Carter G. Woodson (2021) ressalta a
grande importância de apoio adequado no sistema escolar na educação do negro e a contextualização
dos acontecimentos em seu cenário histórico:
Como chegamos ao estado atual das coisas pode ser entendido apenas por meio da
análise das forças efetivas no desenvolvimento da educação do Negro, uma vez que esta
foi sistematicamente empreendida imediatamente depois da emancipação. Simplesmente
apontar os defeitos como estes se apresentam hoje será de pouco benefício para as

322
gerações presentes e futuras. Essas coisas devem ser vistas em seu cenário histórico. As
condições de hoje foram determinadas pelo que aconteceu no passado, e em um estudo
cuidadoso dessa história podemos ver mais claramente o grande teatro de eventos em
que o Negro desempenhou um papel. Podemos, então, entender melhor qual tem sido seu
papel e quão bem este lhe caiu. (WOODSON, 2021, p. 18)

A partir da saída de campo realizada juntamente com o IPN é possível contribuir com a
historiografia, arqueologia e com outras questões ligadas à escravização do povo negro, assim como os
seus desdobramentos e marcos históricos. A partir de atividades práticas e das saídas de campo é
possível promover competências diferentes da aula expositiva, no que se refere ao aprendizado do
aluno, pois envolvem outras ferramentas pedagógicas, metodologias e práticas de ensino, além do
necessário espaço para que este se pronuncie e aponte contradições entre o senso comum e o que está
exposto no trajeto no momento em que ocorre. Ao longo do trabalho busco problematizar a pluralidade
do conceito de atividade prática que, por sua vez, pode ser um debate, uma aula de campo ou qualquer
prática em que o aluno esteja participando ativamente. No caso de uma saída de campo, direcionamos o
olhar do aluno para observação dos objetos, obras de arte, símbolos de resistência, textos, imagens,
entre outros. A autora Fernanda Bassolli (2014) discute a grande abrangência de significados das
atividades práticas e destaca que Hodson (1994) define estas atividades práticas como sendo qualquer
trabalho em que os alunos estejam ativos e não passivos, como, por exemplo, debate em grupo,
resolução de problemas, desenhos, pinturas, colagens, construção de maquetes, jogos didáticos,
atividades interativas com uso de computadores, saídas de campo ou simplesmente atividades de
encenação e teatro. Bassolli (2014) afirma que ser ativo não representa estar sempre envolvendo os
sentidos na busca pelo conhecimento, mas estar ativamente em contato com esse conhecimento, seja
na forma de pensamento, de hipóteses ou mesmo revendo certezas.
Antes da saída de campo são ministradas aulas que abordam temas sociocientíficos no ensino de
ciências e a relação entre Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente (CTS/CTSA), com professores
convidados e temática pertinente à denúncia e ao enfrentamento ao racismo ou nomes expoentes de
ações locais, periféricos ou não, que tragam uma intersecção de perspectivas, propiciando aos alunos a
percepção da relação entre conhecimento científico e as situações de sua vivência através de outras
experiências. Através do ensino com orientação CTS é possível enfatizar a importância do ato de
aprender e de saber usar o conhecimento científico. A educação científica apresenta propósitos que vêm
se modificando conforme o contexto sócio-histórico em que estamos inseridos. Uma grande quantidade
desses propósitos é coincidente com o movimento CTS, que tem seu surgimento em meio a um contexto
de crítica ao modelo desenvolvimentista, adquirindo um caráter reflexivo sobre o papel da ciência na
sociedade (SANTOS; AULER, 2011). É importante ressaltar os diferentes focos que o movimento CTS
adquire em sua trajetória histórica e pode ser recontextualizado de acordo com as demandas atuais da
educação científica, para que esta esteja comprometida com a formação da cidadania para uma
sociedade justa e igualitária (SANTOS; AULER, 2011).
A partir deste trabalho busco compartilhar práticas de ensino que contribuam para fazer pesquisa
no campo educacional de forma democrática, colaborativa, coletiva, autoral e especialmente antirracista,
que valorizem os espaços formativos, educativos, espaços não-formais de ensino e salas de aula. A
partir da discussão dos resultados e percepções após a saída de campo é possível traçar caminhos que

323
nos ajudam a compreender e refletir sobre como realizar e confeccionar atividades educativas que
tenham caráter transformador, que sejam democráticas, críticas e significativas. Acredito que tais
atividades que abordam questões sociocientíficas e investem na relação CTSA são capazes de promover
processos educativos e socioambientais que colaboram para uma educação em direitos humanos, para o
pleno exercício da cidadania, uma justiça social com equidade com o olhar na dimensão racial,
participação colaborativa consciente e alfabetização científica tecnológica (ACT) dos estudantes e futuros
professores. Dessa forma é possível também promover diálogos entre saberes tradicionais, populares e
os saberes científicos, local e global, antigo-atual, buscando conexões e aproximações entre as suas
experiências de vida – alunos de uma universidade pública em que a política de cotas foi pioneira no
Brasil, muitos negros, pardos, miscigenados mas com uma formação social com a visão tradicional do
branco - conquistador - europeu - salvador – e, dentro dessa proposta, expomos parte da história
brasileira para que reflitam e ressoem para com suas pesquisas e trabalhos docentes futuros. “O que um
conjunto de conhecimentos ressoa no outro?” (BRANQUINHO; DA SILVA SANTOS, 2007).

Figura 1 – “Escultura Mercedes Batista” Fonte: Casariego, 2022

Figura 2 – “Pedra do sal” Fonte: Casariego, 2022

PALAVRAS-CHAVE: educação; antirracismo; atividades práticas.

324
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
AULER, Décio. & DELIZOICOV, Demétrio. Educação CTS: Articulação entre Pressupostos do Educador
Paulo Freire e Referenciais Ligados ao Movimento Cts. Las relaciones CTS en la Edcacion Científica. P.
1-7, 2006.
BASSOLI, Fernanda. Atividades práticas e o ensino-aprendizagem de ciência (s): mitos, tendências e
distorções. Ciência & Educação (Bauru), v. 20, p. 579-593, 2014.
BRANQUINHO, Fátima Teresa Braga; DA SILVA SANTOS, Jacqueline. Antropologia da ciência, educação
ambiental e Agenda 21 local. Educação & Realidade, v. 32, n. 1, p. 109-122, 2007.
SANTOS, Wildson Luiz Pereira dos; AULER, Décio. CTS e educação científica: desafios, tendências e
resultados de pesquisa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 99-134, 2011.
WOODSON, Carter G. A Deseducação do Negro. São Paulo: Medu Neter, 2018. 179 p.

325
UM OLHAR MATEMÁTICO, CRÍTICO E CULTURAL SOBRE A ARTE VISUAL AFRO-BRASILEIRA

Ramaira Jacira Fagundes Ramos


Mestranda no Mestrado Profissional em Práticas da Educação Básica. Ra.maira@hotmail.com

Christine Sertã Costa


Doutora em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ). Professora titular do departamento de Matemática do
Colégio Pedro II atuando na educação básica e no Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica
(MPPEB/CPII). Professora do departamento de Matemática da PUC-Rio atuando na graduação e no Profmat PUC-
Rio. Coordenadora do Profmat PUC-Rio. csertacosta@gmail.com

Para que uma Educação seja libertadora é necessário, entre outras coisas, que os alunos se
entendam como ser social e compreendam as relações de poder que influenciam a sociedade. A
matemática e as artes são importantes formas de expressão da sociedade e trabalhar a interface desses
dois domínios pode possibilitar um ensino voltado para o diálogo entre o acadêmico e o social. Com o
propósito de promover essa educação libertadora no ensino básico, fundamentada em uma
aprendizagem significativa, surgiu o objetivo principal dessa pesquisa: investigar em que medida a
análise matemática sobre obras de artes visuais afro-brasileiras contribui para a construção de um
ensino crítico. Vale ressaltar que o presente trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento no
Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica do Colégio Pedro II.
As artes visuais e a matemática estão intrinsecamente ligadas desde os primórdios dos tempos,
quando surgiram os primeiros símbolos para registar os acontecimentos. Porém, por várias questões de
cunho social, político e econômico, o ensino delas foi sendo desvinculado e ganhando caminhos diversos
na escola básica ao longo dos anos. Enquanto o ensino de matemática se tornou cada vez mais
abstrato, o de artes passou a ser ligado prioritariamente a questões estéticas. No entanto, o ensino da
matemática focado em abstrações e desconexo de outras áreas de conhecimento tende a afastar os
jovens da aprendizagem da matemática. Aliar os saberes envolvidos nas artes e na matemática pode ser
um importante fator para retomar a ideia de uma matemática visual, crítica e repleta de significados.
Filho (2017) retrata um contexto histórico onde a matemática e as artes surgiram juntas. Mostra
que os símbolos presentes na matemática eram os mesmos das produções artísticas e isso ocasionou,
durantes muitos anos, que o estudo dessas duas áreas do conhecimento fosse atrelado. Ainda de acordo
com o referido autor, houve um período na história quando uma parte significativa do conteúdo
matemático era ensinado nos cursos de artes.
Com o decorrer dos anos, a matemática foi se tornando mais abstrata e ganhando um caráter
pragmático. Seu ensino perdeu, aos poucos, o caráter visual e, consequentemente, foi se afastando do
ensino de artes. Os cursos de artes também se afastaram da matemática, focando mais na parte estética
desta área de conhecimento. Além disso “por razões sociais, políticas e econômicas, a Arte ocupou em
grande parte, um lugar de menor destaque em relação a Matemática e as Ciências em geral” (FILHO
2017, p. 149). Assim, duas áreas tão afins são gradativamente separadas e, atualmente, em muitas
escolas, uma está colocada em um pedestal, sendo rotulada como uma das matérias mais importantes
do currículo escolar, enquanto a outra ganha a função de disciplina de recreação ou ilustração.

326
Filho (2017) também destaca que, apesar do afastamento histórico comentado anteriormente, o
ensino de matemática e artes tendem a se aproximar novamente, uma vez que documentos oficiais,
como os Parâmetros Nacionais Curriculares (1997), indicam a importância de relacionar a matemática
com outras áreas do conhecimento, e explicitamente sugerem que sejam feitas correlações entre a
matemática e manifestações artísticas diversas.
A arte e matemática têm, entre outras interseções, a linguagem visual em comum. Em alguns
casos, quando um artista cria uma obra ele deseja comunicar uma mensagem que leva em consideração
um contexto histórico, social e político em que ele ou o mundo ao seu redor está inserido. De acordo com
Pereira (2014) “A Arte cria sentindo para ler o cotidiano, apresenta maneiras de superar o comum, e
aprofundar nas ideias sobre o convívio social” (PEREIRA 2014, p.21). Da mesma forma, a matemática
também é uma linguagem que descreve e explica diversas situações reais e, igualmente, tem uma
dimensão histórica, política, social e crítica. Nesta pesquisa buscaremos trabalhar a interface matemática
e artes entendo ambas como uma linguagem com dimensões política e social.
Para além do citado anteriormente, neste estudo, o diálogo entre essas disciplinas é uma
possibilidade de levar a cultura afro-brasileira para a sala de aula. Uma vez que trazer a temática para as
aulas é uma urgência, visto que desde 2003 a lei 10.639 que estabelece a inserção no currículo de
assuntos da cultura negra brasileira em todas as disciplinas foi promulgada e pouco se avança nesse
sentido, especialmente nas aulas de matemática. De acordo com Reis e Giraldo (2020), entre os motivos
para a não execução da lei está a ideia de que “a matemática é uma ciência neutra e politicamente
isenta, atrelada a concepção de que professores(as) que ensinam matemática devem lidar com o saber
de forma hermética, desconectada da realidade sociocultural.” (REIS E GIRALDO 2020, p.30)
Contrariando essa ideia da matemática desconexa da realidade e sem um caráter humanístico,
Skovsmose (2001) salienta que, para atingir uma educação matemática democrática, o educador deve,
ao selecionar os temas que serão abordados na sala de aula, levar também em consideração “As
funções do assunto: que possíveis funções sociais poderiam ter o assunto?” (SKOVSMOSE, 2001, p. 18)
Como parte da pesquisa será desenvolvida uma oficina onde levaremos obras de artes visuais da
arte afro-brasileira com o intuito de que os alunos possam refletir a respeito do contexto histórico e social
daquela obra e explorar conteúdos matemáticos presentes nelas. Espera-se que tal pesquisa possa
contribuir para a ampliação da discussão a respeito do trabalho da interface matemática e artes na sala
de aula, e se tornar uma opção viável para a levar a cultura afro-brasileira para as aulas de matemática.

REFERÊNCIAS
Brasil. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em:
http://planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm#:~:text=L10639&text=LEI%20No
%2010.639%2C%20DE%209%20DE%20JANEIRO%20DE%202003.&text=Altera%20a%20Lei
%20no,%22%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias . Acesso em: 30 abr.
2022.
FILHO, Dirceu Zaleski Matemática e Arte. Autêntica, 2017.

327
PEREIRA, Katia Helena. Como usar artes visuais na sala de aula. Contexto, 2014.
REIS; Washington Santos do; GIRALDO, Victor Augusto. A Educação Matemática na Encruzilhada: Lei n°
10.639/2003 e a insurgência decolonial. IN: COPENE 2020 Educação para as relações étnico-raciais. IX,
2020, Curitiba. Anais eletrônico. Disponível em https://www.copene2020.abpn.org.br/site/anais#W.
Acesso em 5 maio 2022.
SKOVSMOSE Ole. Educação Matemática Crítica: a questão da democracia. Papirus, 2001.

328
POR UM ENSINO DE CIÊNCIAS ANTIRRACISTA: DOCUMENTOS EMBASADORES E AÇÕES

Ana Júlia Vicari


Formada em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e estudante de
Artes Visuais na mesma instituição. Atuou como professora de Biologia em cursinho popular da cidade de Porto
Alegre. ana.juvicari@gmail.com

Sabe-se que o ensino brasileiro é permeado por questões raciais e muitas vezes tem o racismo
incutido no meio educacional, seja de forma literal e explícita, ou mais subjetiva. Busquei na memória e
refiz meu percurso na Educação Básica, passado em escolas de uma cidade do interior do Rio Grande
do Sul, esta, culturalmente embranquecida devido às históricas políticas de extermínio negro e
introdução de imigrantes europeus (NASCIMENTO, 1978). Pude notar, agora na adultez com recobrada
consciência racial, que eu e minha história não estávamos no que era ensinado. Assim, como era algo
que faltava para mim, a ausência de uma perspectiva positiva da negritude para meus colegas brancos
facilitava a reprodução de episódios em que as minhas características físicas, a pele escura, o cabelo
mais volumoso, fossem usados como xingamento ou eram motivo de chacota. Ainda me causa
desconforto lembrar de alguns episódios em que sentia não ter um adulto para me apoiar ou de
professores que apenas se silenciavam.
O quanto essas experiências podem afetar a formação da personalidade e o crescimento de
quem as vive é muito singular. Da pessoa negra, que se retrai ou se enraivece, e da pessoa branca, que
se sente superior e no direito de proferir tais palavras sem nem ter a chance de questionar o quão são
erradas. Em “Tornar-se Negro”, de Neusa Santos Souza (1983), li o quanto essas experiências
particulares que passei são, na realidade, comuns à maioria das crianças negras do Brasil. Desde não se
identificar com mais ninguém da sala (por ser a única negra) até na necessidade de, inconscientemente,
querer superar a negritude se exigindo e tentando ser a melhor em todas as outras coisas, nas provas,
nos esportes, como forma de camuflar a condição de ser negra.
As experiências de racismo que não são combatidas e tratadas com a devida importância que
deveriam ter, junto à forma como as temáticas referentes a negritude, em geral, eram e são tratadas em
sala de aula, se pautando na escravidão, de acordo com Dussel (1974, apud VERRANGIA, 2015) fazem
com que o sistema educacional e escolar acabe por marginalizar traços culturais ameríndios e africanos,
inferiorizando-os e colocando conhecimentos, valores e referências estéticas de matriz europeia como
modelo e padrão único de cultura e humanidade.
Como forma de embate a toda retirada de identidade, de direitos, de supressão de
conhecimentos e invisibilidade, negras e negros sempre se organizaram, desde os quilombos até
estarem formando outros movimentos de mobilização racial negra, criando dezenas de grupos no
território brasileiro na busca por seus direitos e pela manutenção de suas culturas (DOMINGUES, 2007),
como a imprensa negra, a Frente Negra Brasileira (FNB) e o Teatro Experimental do Negro.
Após a instauração da Ditadura Militar, a reorganização política da luta antirracista aconteceu
apenas no final da década de 1970, que suprimiu movimentos e discussões, com a fundação do
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) em junho de 1978, depois

329
Movimento Negro Unificado (MNU), no bojo do ascenso dos movimentos populares, sindical e estudantil
(DOMINGUES, 2007).
O Movimento Negro66 concebia a educação como um meio de transformação e elevação da
população negra (CONCEIÇÃO, 2019), sendo um dos alicerces da luta negra contra o racismo. Um
exemplo significativo foi a presença da luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos
currículos escolares, no Programa de Ação do MNU de 1982 (DOMINGUES, 2007).
Mais de uma década após, em 1999, a reivindicação do Programa de Ação do MNU foi
transformada na Lei 10.639, sancionada somente em 2003, tornando obrigatório o ensino de História e
Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Básica brasileira. Um dos fundamentos desta lei foi o
Parecer CNE/CP 03/2004, que estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
A existência de uma lei não garante a sua aplicabilidade e, por mais importante que tenha sido
este passo, é preciso encontrar maneiras de fazer valer o que está dito nas Diretrizes. Um documento
que poderia ser aliado nesse sentido é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), já que, de acordo
com o Artigo 210 da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), esta prevê conteúdos
mínimos para a elaboração dos currículos da atual Educação Básica Brasileira, que possam assegurar
uma formação básica comum respeitando os valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
Ao analisar pontos que concernem mais especificamente aos anos finais da área de Ciências da
Natureza da BNCC em sua versão mais recente, de 2018, nota-se uma ênfase nos aspectos conceituais,
que acaba refletindo em uma visão que não condiz com as discussões atuais do campo da Educação em
Ciências. Observando então a prevalência dos marcadores de busca, raça, etnia, negro (a), africano e
racismo, vê-se que é quase inexistente, só ocorrendo a palavra “africana” em um ponto do documento,
quando se refere à costa do continente africano, apresentando-se da seguinte forma no documento:
“(EF07CI16) Justificar o formato das costas brasileira e africana com base na teoria da deriva dos
continentes.” (BRASIL, 2018). Assim, questiona-se o que é indicado como relevante e quais propostas
que visam tornar o ensino de Ciências com condições de desenvolver um senso crítico e com
ferramentas que possibilitem ver e pensar sobre o mundo e os fenômenos que nos cercam.
Uma educação antirracista é essencial, visto que abordar questões étnico-raciais vem a ser um
projeto amplo para que haja uma mudança na sociedade. Por educação antirracista entendo que seja um
intrincado de ações que devem ser realizadas e internalizadas por quem as propõe como prática.
Abordar de forma positiva a África, não limitar a temática sobre negritude à escravidão, trazer uma visão
afrocentrada sobre o continente que foi berço de tantas descobertas e grandezas, associar cientistas
negras e negros a conteúdos de ciências, não falar sobre raça e racismo apenas em datas
representativas. A ausência de abordagem explícita de temática étnico-racial na BNCC é um ponto falho
quando se pensa no avanço do embate ao racismo estrutural que se vive; essa ausência evoca a
invisibilidade, além de não cumprir de todo a legislação e as instruções das DCNERER, revelando o

66 Cabe diferenciar o Movimento Negro Unificado (MNU) de Movimento Negro (MN). Conforme Gomes (2017), “entende-se
como a junção de diversas organizações ou pessoas que lutam contra o racismo e que tem como objetivo superar esse
terrível fato dentro da sociedade”, indicando que MNU, se insere no MN como uma das organizações que lutam contra o
racismo.

330
racismo presente na Base. É necessário que todo o sistema de ensino mantenha um olhar mais
cuidadoso às instruções do parecer, que não são específicas a um componente curricular, para serem
orientadoras de ações para diferentes finalidades.

PALAVRAS-CHAVE: antirracismo; ciências da natureza; negritude.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm .
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
CONCEIÇÃO, Manoel Vitorino. O Movimento Negro se africanizou. In: 30º SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA, 2019, Recife. Anais ANPUH. Recife: Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil, 2019.
DOMINGUES, Petronio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Rio de
Janeiro, v. 12, p. 100-122, 2007.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: RJ, Vozes, 2017.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 1.
ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro. 2. ed. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1983.
VERRANGIA, Douglas. Educação científica e diversidade étnico-racial: o ensino e a pesquisa em
foco. Interacções, [S.l.], v. 10, n. 31, 2015.

331
ENSINO DE ARTE, INICIAÇÃO CIENTÍFICA E POÉTICAS AUTOBIOGRÁFICAS: UMA EXPERIÊNCIA
DE PESQUISA-AÇÃO NA EDUCAÇÃO BÁSICA - CONTRIBUIÇÕES PARA UMA SOCIEDADE
ANTIRRACISTA

Gislaine Maria Barbosa Antunes


Professora de Arte e co-orientadora da Iniciação Científica na E.E. Geraldo Bittencourt, mestranda no Programa de
Mestrado Profissional em Artes - EBA-UFMG.

Nicolle Estanislau Moreira Alves Rezende


Professora de História e orientadora da Iniciação Científica na E.E. Geraldo Bittencourt.

Iniciação Científica/ UBUNTU-NUPEAAs (Núcleo Pesquisa e Estudos Africanos e Afro-brasileiros) - E.E. Geraldo
Bittencourt
Estudantes pesquisadoras/pesquisadores do núcleo de pesquisa: Ana Carolina Avelino, Ana Clara da Silva
Guimarães, Débora De Souza Procópio, Esther Cristina do Carmo Bazilio, Giovanna Gabriella De Souza, Laurah de
Oliveira Melo, Maicon Vinicius de Oliveira Bravos, Maria Eduarda Gomes De Lima, Natania Aparecida Magalhães
De Souza, Pablo Samuel Saldanha da Silva, Pâmela Rodrigues Passos, Thais Cristina De Araújo Dias.

Resumo

A presente pesquisa tem como objetivo geral produzir material audiovisual, didático e/ou acadêmico
antirracista, a partir das “narrativas de si” e das reflexões desencadeadas a partir do corpo e das mídias
digitais (aplicativos, redes sociais etc.) provenientes da juventude periférica pertencente ao núcleo de
pesquisa na educação básica (ICEB)/Núcleo de Pesquisa e Estudos Africanos e Afrobrasileiro e da
Diáspora (UBUNTU - NUPEAAs). No intuito de problematizar, criticamente, as aspirações e pirações
(momentos em que perdem a razão, o prumo) desta juventude pesquisadora do núcleo de pesquisa da
E.E. Geraldo Bittencourt - onde está sendo desenvolvido o projeto - nos valemos de atividades artísticas,
acadêmicas assim como àquelas próprias da pesquisa, a fim de dialogar poéticas autobiográficas e
linguagem cinematográfica, de forma a produzir, analisar e problematizar narrativas racistas e
antirracistas experienciadas pelos atores deste núcleo (docentes e discentes), dialogando espaços,
tempos, processos e atravessamentos em seus percursos formativos na Educação Básica, buscando
construir ações antirracistas com foco nas "narrativas de si”, entendidas também como poéticas
autobiográficas.

Introdução

Esta pesquisa busca compreender como nós, juventudes periféricas (entre 12 e 18 anos), em
especial a preta/parda, da E. E. Geraldo Bittencourt (Conselheiro Lafaiete - MG), em conjunto com o
componente curricular Arte, na Educação Básica, podemos construir e/ou criar ações antirracistas no
território escolar, de modo que estas busquem refletir nossas aspirações e pirações, fazendo com que
nós, jovens, nos sintamos realmente pertencentes, amparados e integrados a este espaço.
A partir dos desdobramentos ocorridos durante o desenvolvimento do projeto de iniciação
científica no Ensino Médio (2017-2018), também ligado ao ICEB da SEE-MG, intitulado: “Som, ritmo,

332
corpo e ritual; a música negra como veículo de impressão e expressão na (re)construção da
ancestralidade” – cuja orientação foi realizada pela atual co-orientadora deste projeto (mestranda do
Prof-Artes-EBA-UFMG), percebemos que ao colocar corpo, expressão e ancestralidade em evidência
tocamos em pontos que entrecruzam as subjetividades.
Nesse sentido, o aprofundamento de questões voltadas para uma ética que privilegia a
convivência respeitosa junto às diferenças colocou em evidência a urgente demanda de ações
antirracistas em nosso espaço escolar. Embora as ações construídas e realizadas durante a vigência
daquela pesquisa (2017-2018) tenham priorizado práticas que estivessem em concordância com as
novas demandas que ali se apresentavam, elas não deram conta de estabelecer elos mais
fundamentados e estruturados, frente à iminência do racismo e seus mecanismos em nosso território
escolar e entre nós, enquanto atores sociais.
Ao aprofundar nosso olhar ante o problema de pesquisa aqui levantado, percebemos a
importância de se observar as plataformas propagadoras de informações, as mídias digitais. Assim,
compreendemos que delas emana poder influenciador sobre os indivíduos, por meio da operação de
imagens de controle (BUENO, 2020).
Assim nasceu o presente projeto de pesquisa em parceria com o projeto de pesquisa do
programa de Mestrado Profissional em Artes ao qual a nossa co-orientadora está vinculada, buscando
entender as juventudes periféricas e seus fenômenos humanos (anseios, subjetividades, desejos,
pirações e aspirações) seja enquanto coletivo, seja na perspectiva das singularidades impressas em nós,
por meio do corpo e das mídias digitais. Publicizar e entender nossas narrativas urgentes parece nos
aproximar da reflexão, ação e colaboração para a construção de currículos mais inclusivos e antirracistas
em que não apenas docentes tenham o poder de elencar aquilo que lhes pareça necessário à condução
docente, mas que as juventudes possam reverberar suas vozes e colaborar ativamente nesse construto
social, uma vez que somos parte fundante dele.
O Trabalho de Conclusão desta pesquisa consistirá na elaboração de relatos e/ou reflexões das
vivências, no formato dissertativo, bem como na produção dos curtas metragens criados e produzidos
por nós. Pretendemos também disponibilizar as produções para as e os estudantes da escola, em
formato de Cine Clube e Roda de conversa. Informamos também que o projeto de pesquisa vinculado ao
Prof-Artes, no qual consta um Mapeamento Corporal (formulário online), elaborado pela co-orientadora e
respondido por nós, como parte de nossa auto-pesquisa, já foi aprovado no COEP (Comitê de Ética) da
UFMG sob o número CAAE: 55853822.8.0000.5149.

Atual estágio da pesquisa

1. Material e metodologia

1.1. Participação e público-alvo

333
Inicialmente, foram convidadas(os) a participar da pesquisa 12 estudantes da E. E. Geraldo
Bittencourt da cidade de Conselheiro Lafaiete - MG, pertencentes ao Núcleo de Pesquisas e Estudos
Africanos, Afro-Brasileiros e da Diáspora – Ubuntu/Nupeaas, vinculado à Iniciação Científica na
Educação Básica (ICEB) da SEE-MG. Tais estudantes possuem entre 14 e 18 anos de idade e estão
matriculadas(os) na modalidade regular do 9º ano fundamental II (anos finais) e do 1º ao 2º ano do
ensino médio.
No decorrer da pesquisa até aqui, outubro de 2022, foram acolhidas(os) mais 11 estudantes,
estendendo-se, portanto, o corpo de pesquisa para uma média de 23 participantes. Esta quantidade é
móvel pois parte destas/destes jovens se enquadram como flutuantes [11] (que não frequentam de forma
contínua), e a outra como assíduas(os) [12], pois participam da pesquisa de forma plena, fazendo parte,
oficialmente, do núcleo de pesquisa.
Portanto, o grupo de pesquisa foi ampliado, abrangendo também estudantes de 7º e 8º anos do
fundamental (com idades entre 12 e 14 anos). A ampliação do grupo de pesquisa se deve ao fato de que
na medida em que os processos de pesquisa foram acontecendo, outras(os) estudantes do ensino
fundamental, por curiosidade ou convite de outras(os), pediram para assistir/participar das atividades
propostas.

1.2. A abordagem

Para compreendermos quais são as nossas atuais aspirações, desejos e anseios, nós,
estudantes, pretas(os)/ pardas(os) e/ou periféricas(os) da escola E. E. Geraldo Bittencourt (Conselheiro
Lafaiete - MG), perpassamos um caminho baseado em 4 etapas, delineadas pela nossa co-orientadora,
a seguir: sondagem, sensibilização, reflexão e ação.

2. Processos e relatos

Para os processos metodológicos, utilizamos como base os conceitos apontados por Antônio
Carlos Gil (2002) no que tange ao delineamento da pesquisa. Como ferramentas procedimentais nos
valemos das técnicas de estudo de caso e pesquisa-ação.
A análise de plataformas digitais de informações tornou-se fundante para este estudo, por
entender que possuem grande influenciador nos indivíduos por meio da operação de imagens de
controle (BUENO, 2020), reverberando, assim, temáticas e situações do interesse de classes dominantes
que buscam operar de forma a conservar e perpetuar padrões de dominação e violência em seus
subjugados. Ao final da pesquisa, os dados serão apresentados aos estudantes por meio de debates e
da exibição das produções dos curta-metragens.
Alguns dos processos realizados neste pesquisa-ação foram: Rodas de Conversa; Ateliês de
Contação; Leitura Coletiva; Teatralização de Relatos; Colagem; Mapeamento Corporal (formulário); Visita
Técnica a Inhotim; Pesquisa no feed de sugestões do instagram; Escrita de Relatos; Exercícios Fílmicos;
Elaboração de Roteiro; Criação e Gravação dos Curtas.

334
PALAVRAS-CHAVE: juventudes periféricas; aspirações; antirracista; narrativas de si; mídias digitais.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial, 2019.
XONGANI, Ana. Saiba o que é interseccionalidade | Conversas Gostosinhas | Ana Paula Xongani -
Publicado no Canal “Todecacho”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ZT3rQpvvSY.
Acesso em: 05 jun. 2022.
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações
empresariais e no poder público". 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
doi:10.11606/T.47.2019.tde-18062019-181514. Acesso em: 05 jan. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
BUENO, Winnie - Imagens de Controle: um Conceito do Pensamento de Patricia Hill Collins. Capa
comum, Ed. Zouk, 2020 - 1ª edição.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto.
Educação e Pesquisa [online]. 2006, v. 32, n. 2 [Acessado 6 Fevereiro 2022] , pp. 359-371. Disponível
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https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000200011 .
FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de
educação básica, dentro e “fora” da escola/ Adriana Fresquet. – 1ª Ed.; 1. reimp. – Belo Horizonte:
Autêntica, 2017. – (Coleção Alteridade e Criação, 2).
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. - 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
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335
PATRICIA HILL COLLINS explica pensamento feminista negro. #1 imagens de controle [legendado]. [S.l.:
s.n.], 2019. 1 vídeo (8 min 23 seg). Publicado pelo canal TV Boitempo. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=XVdbyhuAJEs. Acesso em: 16 jan. 2022.
OSTETTO, L. E.; KOLB-BERNARDES, R. Modos de falar de si: a dimensão estética nas narrativas
autobiográficas. Pro-Posições, Campinas, SP, v. 26, n. 1, p. 161–178, 2015. Disponível em:
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2022.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista - 1ªEd. 2019.

336
IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: INFÂNCIA, ESCOLA, FAMÍLIA E SUBJETIVIDADE

Ildete Batista do Carmo


Mulher negra africana nascida na diáspora, mestra em educação pela UnB, professora da educação básica da
SEEDF, integrante do coletivo Geninhas UFG, contadora de histórias
ildetebdocarmo@gmail.com

Este trabalho é referente à produção final da dissertação intitulada: “Identidade Étnico-racial,


Infância, Escola, Família e Subjetividade” que teve como foco principal a articulação teórica entre
estudos da identidade étnico-racial, infâncias, e Teoria da Subjetividade desenvolvida por González Rey
(2017), que numa perspectiva de uma psicologia cultural-histórica propôs compreender a dimensão
subjetiva de fenômenos sociais complexos para a constituição da psique. Avançamos na compreensão
do racismo na sua dimensão subjetiva, histórica e culturalmente constituída na subjetividade social
brasileira, na história singularizada da pessoa e nos diversos contextos de suas vidas.
A pesquisa teve como objetivo compreender configurações subjetivas constituintes da identidade
étnico-racial de uma criança negra. Nessa perspectiva, considerando sua história de vida e relações
estabelecidas no contexto inter-relacional familiar e escolar.
Inicialmente a discussão teórica do trabalho apontou minha trajetória de vida, como criança negra
que vivenciou histórias de racismo no espaço escolar, como, também, a experiência de ser uma mulher/
militante e professora negra no magistério público referenciando “meu lugar de fala” com a potência que
o conceito “status de outsiders within” cunhado por Collins (2016) proporcionou na minha trajetória de
vida. No exercício discursivo da dissertação realizamos aproximações teóricas com autores como Hall
(2003, 2018), Silva (2018), Munanga (2008), Amaral (2013), que compreendem que o conceito identidade
é um processo em construção. Quanto aos conceitos de infâncias e suas culturas infantis referenciamos
nossa discussão sobre as lentes teóricas para com os autores como Conh (2005), Carbonari (2010), Flor
do Nascimento (2018) que nos apresenta como alguns os povos africanos (Bantus e Iorubás) concebem
as crianças e suas infâncias com agência, que participam integralmente na vida da comunidade, que são
protagonistas e compreendidas não “como um vir a ser” como continuidade de um povo. Os estudos de
Cavalleiro (2006), Bento (2011) apontam que as crianças desde muito pequenas vão hierarquizando e
subjetivando as diferenças raciais.
Assim, todo esse arcabouço teórico foi “sendo bordado” em articulação e aproximação com a
Teoria da Subjetividade de González Rey (2017) e Epistemologia Qualitativa e Metodologia construtivo-
interpretativa. Para González Rey (2012a), a subjetividade se organiza sobre a unidade de sistemas
simbólicos e emocionais que se expressam de maneira diferenciada na história singular de instâncias
sociais, instituições e sujeitos individuais com contextos sociais e culturais multidimensionais
(GONZÁLEZ REY, 2012a, p. 137).
Desse modo, a Epistemologia Qualitativa e Metodologia construtivo-interpretativa apresenta-se
como nova reflexão metodológica que compreende a dimensão histórica, cultural e subjetiva dos
fenômenos humanos, assumindo assim a possiblidade de investigar os processos subjetivos humanos,
tanto individuais quanto sociais, pela via da singularidade. O autor propõe três princípios que sustentam

337
a Epistemologia Qualitativa, que são: a legitimação do singular na produção do conhecimento; o caráter
construtivo-interpretativo do conhecimento, que implica compreender o conhecimento como produção; e
a comunicação dialógica como recursos centrais e fios condutores do processo de pesquisa.
Nessa perspectiva, configurada como um estudo de caso, a pesquisa foi realizada numa escola
pública da Região Administrativa do Distrito Federal com uma estudante com 8 anos de idade do
segundo ano do ensino fundamental. A produção das informações ocorreu por meio de instrumentos
favorecedores da expressão subjetiva da participante: dinâmicas conversacionais, sessões de rodas de
conversas, histórias seguidas de desenhos, jogos dramáticos e de faz-de-conta, além de lives produzidas
pela própria criança.
Nesta perspectiva, a construção interpretativa permitiu visibilizar que as configurações subjetivas
que emergem em cada nova experiência vivida por Arabela vão se organizando de diferentes modos nos
diferentes espaços de atuação da criança.
Nesse sentido, no espaço social da escola a questão racial aparece a todo o momento, a
recorrência com que o racismo é vivido no contexto inter-relacional escolar se desdobrou para Arabela
como baixa autoestima, silenciamento como expressão de sofrimento emocional gerados em vivências
de ofensas racistas, vergonha, sentimentos contraditórios em relação a sua identidade étnica, negação
de sua estética negra, atitudes de subordinação nas relações racializadas com as amigas brancas,
conflitos com sua autoimagem, contradições de sentimentos em relação à melhor amiga branca,
sentimento de incômodo e constrangimento por sentir-se avaliada e exposta pelo outro social.
O estudo apontou que Arabela tem no espaço relacional familiar vivências que favorecem
processos de subjetivação que emergem configurados como sentimento de pertença étnico-racial,
valorização da cultura negra, valorização da estética negra, alta autoestima, referências externas
positivas de beleza e de posição social do negro, referência de ter bonecas negras, ter acesso a um
repertório musical como Funk e Hip Hop.
Portanto o que marca este estudo é a compreensão sobre o valor que a qualidade das relações
tanto dentro do espaço social da escola e da família representa para a organização subjetiva da
identidade étnica-racial de Arabela.
Outra proposição que levantamos é que escola tem atuado como um espaço de omissão,
silenciamento ante as situações de racismo, que é compreendido pelos profissionais como situação
pontual e individual e ou “brincadeiras de crianças”, portanto não há um trabalho efetivo e de
problematização do racismo e de positivação da diversidade étnica. O que nos aponta que ainda há um
longo caminho de para efetivação da lei 10.639/03, tanto no espaço escolar como nas instituições de
ensino superior.

PALAVRAS-CHAVE: identidade racial; infância; escola; família; subjetividade.

REFERÊNCIAS
AMARAL, A. C. A infância pequena e a construção da identidade étnico-racial na educação infantil. 2013.
243 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.

338
BENTO, M. A. S. A identidade racial em crianças pequenas. In: ______. (org.). Educação Infantil,
igualdade e diversidade: aspectos políticos, jurídicos e conceituais: São Paulo: Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades - CEERT, 2011. p. 90-117
CARBONARI, P. C. Sujeito de direitos humanos: questões abertas e em construção. In: GOGOY, R. M.
Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária
UFPB, 2010. p. 169-186.
COHN, C. Antropologia da criança. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
COLLINS, P. H. Aprendendo outsider within a significação sociológica pensamento feminista negro.
Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016.
FLOR DO NASCIMENTO, W. Temporalidade, memória e ancestralidade: enrendamento africanos entre
infância e formação. In: RODRIGUES, A. C.; BERLE, S.; KOHAN, W. O. (org.). Filosofia e educação em
errância: inventar escola, infância do pensar. Rio de Janeiro:Nefi, 2018. p. 583-594.
GONZÁLEZ REY, L. F. O social na psicologia e a psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
GONZÁLEZ REY, L. F.; MITJÁNS MARTINEZ, A. Subjetividade: teoria, epistemologia e método.
Campinas, SP: Alínea, 2017.
HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. (Org. e Trad.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Cortez, 2018. p. 103133.
MUNANGA, K. Redescutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

339
NOVAS CONTAÇÕES DE MUNDO ATRAVÉS DE NARRATIVAS MÍTICAS IORUBÁS EM PRÁTICAS
DOCENTES TRANSDISCIPLINARES NO ENSINO FUNDAMENTAL

Daniele Rodrigues Moreira


Professora de História da SME-RJ, Pós Graduada em Teologia pela PUC-RIO e aluna do MPPEB (Mestrado
Profissional em Educação Básica) - Colégio Pedro II. dani_danirodrigues@yahoo.com.br

Introdução

A pesquisa em andamento discute questões acerca da prática docente transdisciplinar voltada


para a abordagem das relações étnico-racias, a partir da inserção de narrativas míticas da cultura iorubá
no ensino. Quase vinte anos após a promulgação da Lei 10 639/03, a presença da cultura africana e
afrobrasileira ainda acontece de forma tímida em nossas salas de aulas. Podemos apontar diversos
motivos para o entrave na aplicação da legislação. No entanto, o trabalho se ocupa em destacar
potencialidades no uso destas narrativas, ao atravessar diferentes componentes curriculares para a
elaboração de um produto educacional passível de ser utilizado nesses diferentes contextos do processo
de ensino/aprendizagem. O uso dos Itans67, em sala de aula, abre possilbilidade de novas contações
de mundo, à medida que partimos destes novos referenciais narrativos para o ensino.

As narrativas míticas iorubás como ferramenta para uma prática docente decolonial

Certo dia, um rapazinho indisciplinado com alguns cordões escondidos por debaixo da camisa,
por um instante, deixa-os amostra. Diante de um comentário, ”- são guias?”, ”- oxum?”, ele arregala seus
grandes olhos de jabuticaba e, no mesmo instante, seus ombros assumem uma postura relaxada e os
grandes olhos encontram na pergunta um sorriso acolhedor. Desde aquele dia, o menino dos olhos de
jabuticaba ocupa o primeiro assento na fila próxima à mesa do professor.
O evento citado aqui é apenas um, dentre tantos que envolvem questões referentes à cultura de
matriz afrobrasileira no cotidiano escolar. Esses alunos estão nas salas de aulas e precisam que sua
cultura seja levada em conta. É crucial questionar práticas hegemônicas que silenciam determinados
grupos, ao não contemplarem seus valores e marcas identitárias. E também promover ações no âmbito
educacional que valorizem a diversidade étnico-racial.
Diante deste contexto de colonialidade, é relevante perceber esses alunos como sujeitos
históricos e produtores de conhecimento, e nos atentarmos para demandas sociais que emergem em
nossa comunidade escolar. Chamamos nesta pesquisa de novas contações de mundo os diferentes
modos de ver, interpretar e contar o mundo, a partir de novas referências narrativas no ensino. Para isto,
a pesquisa se ocupa em responder se o uso de narrativas míticas iorubás como recurso didático
transdisciplinar contribui para uma prática docente decolonial nos anos finais do Ensino Fundamental.

67 Itãns são relatos míticos do panteão africano, histórias passadas de geração em geração.

340
É importante democratizarmos currículos e práticas para uma educação que atenda de fato a
pluralidade étinco-racial das escolas. Para tanto, necessita-se de docentes fomados para esse desafio.
Acontece que o docente formado antes e nos primeiros anos da lei 10.639/03. não teve formação para
relações étnico-raciais. Alguns buscam esses saberes após a criação da lei. Alguns se constituem no
contexto das lutas emancipatórias, ainda que sem a formação para educação étnico-racial na academia,
experenciam as lutas no seu cotidiano. Outros ainda permanecem à parte do movimento afirmativo.
Essa alteridade deve também ser levada em conta, para compreendermos o papel de cada
docente no projeto, a partir de seus diferentes lugares de fala. Esse panorama permite fundamentar a
hipótese de que é possível contribuir para a decolonialidade, nos currículos escolares, a partir do uso da
mitologia iorubá.
Debruçaremos sobre os conceitos de decolonialidade (WALSH, 2007), e de
transdiciplinaridade (FAZENDA, 2008) para embasar nossas análise. Nesta pesquisa pensamos
deolonialidade como uma proposta de educação que constitua novas condições culturais, de
pensamento e produção de conhecimento no contexto escolar. Um pensar que desacredite a
inferioridade da cultura e religiosidade do negro, no contexto escolar, e que repercurta no acadêmico e
na sociedade em geral. Para alcançar as propostas, buscamos na transdisciplinaridade a valorização do
conhecimento através de um mesmo tema que atravesse e ultrapasse diferentes disciplinas.
Ao recorrer à mitologia iorubá, contemplam-se os valores civilizatórios afrobrasileiros, ou
afrossaberes, que foram apresentados à educação pela ativista Azoilda Loretto da Trindade por meio do
projeto A Cor da Cultura. Civilizatório, neste caso, não está relacionadao ao viés civilizador do
colonialismo, mas apresenta esses afrossaberes como conjunto de conhecimentos e características
culturais de um grupo que teve sua civilidade negada por grupos hegemônicos, que monopolizam para si
o conceito de civilização, como se não existisse em outros contextos, que não o europeu.
Em geral o ensino para as relações étnico-raciais fica restrito à disciplina de História. Portanto,
pretende-se fazer uma intervenção na realidade de docentes de uma turma de nono ano de uma escola
municipal da cidade do Rio de Janeiro. Tratamos aqui de uma pesquisa de natureza qualitativa, com
características de pesquisa-ação, que visa analisar as ações docentes vinculadas ao uso das narrativas
míticas iorubás. E verificar resultados da aplicação do produto educacional afrorreferenciado, produzido
pelo grupo de professores.
Espera-se, com o grupo de docentes envolvidos na pesquisa, apresentar estas narrativas como
constituintes de uma cultura potente em produção de saberes. Possibilitar que nossas crianças a partir
de Omolu constituam saberes sobre saúde, estética e corporeidade, ou que encontrem em Oxum a
geografia do continente africano no estudo de sua hidrografia e a ciência possível nas narrativas de
Oxumarê.
A colonização se fez de várias formas, logo entendemos que a colonialidade também se mantém
de diversas formas. A ideia de raça perpassa todo o processo colonizador, como algo civilizador, no
entanto é relevante compreender raça em um contexto de ressignificação possibilitado pelo Movimento
Negro e ressignificá-lo, também, em um contexto de educação para as relações étnico-raciais. Entender
raça, com um “significado político e identitário” (GOMES, 2011, p.2), como algo que é estrutural e

341
também estruturante, nos permite compreender como o preconceito em relação à religiosidade de matriz
africana constitui um racismo religioso.

Considerações finais

Democratizar o acesso à educação no sentindo de fazer parte de processos formativos não


implica numa educação de fato democrática. Mesmo diante de conquistas legais, a colonialidade dos
espaços de produção de saberes é ainda uma realidade. Diante deste contexto, faz-se necessário buscar
novos aportes metodológicos e práticas que possibilitem uma pedagogia decolonial. Esperamos que
estas ações inspirem outros professores ao combate à discriminação, preconceito racial, cultural e
religioso, partindo de uma educação que tenha referenciais outros, que não apenas o europeu. E a partir
deste projeto, pode-se pensar em um posterior que aborde a mitologia indígena.

PALAVRAS-CHAVE: raça; decolonialidade; transdisciplinaridade; afrossaberes; iorubá.

REFERÊNCIAS
FAZENDA, I.C.A. INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES. Ideação, [s,L], v,10, n.1 p.93-104
https://e-revista.unioeste.br/index.php/ideacao/article/view/4146 Acesso em: 4 nov. 2022
GOMES. Nilma Lino. Educação, relações étnico-raciais e a Lei 10 639/03. Portal Géledes: Instituto da
Mulher Negra, 2011. https://www.google.com/amp/s/www.geledes.org.br/educacao-relacoes-etnico-
raciais-e-lei-10-63903-2/%3famp=1 Acesso em: 4 nov. 2022
WALSH, Catherine. Interculturalidad Crítica/Pedagogia decolonial. In: Memórias del Seminário
Internacional "Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad", Bogotá: Universidad
Pedagógica Nacional 17-19 abr. 2007.

342
NEGRITUDE E O PROTAGONISMO JUVENIL

Marcello Lucas de Araújo Brito

Ato de Resistência

“Ato de resistência” (2021), espetáculo de drama da Cia de Teatro Elefante Branco (Brasília-DF),
resulta do engajamento dos estudantes com as atividades artísticas na escola. Apoiados na necessidade
da luta diária contra as práticas de racismo e levando em conta a importância de haver uma sociedade
que combata o racismo nos 365 dias do ano, a realização da peça-campanha pode ser concretizada.
Partindo da pedagogia do teatro para o tratamento de questões sociais sérias e importantes, um
mergulho nas culturas africana, afro-brasileira e brasileira se tornou indispensável. Valendo-se do
protagonismo juvenil como um pilar para uma educação contextualizada e pautada no respeito às
diferenças, a criação de uma peça que visasse à visibilidade e representatividade negras tornou-se um
dos objetivos desta realização.

Foto 1 – Elenco principal de Ato de resistência fazendo preparação corporal para o ensaio do espetáculo no
Auditório do CEMEB (Centro de Ensino Médio Elefante Branco).

Na busca por ir além do Dia da Consciência Negra no mês de novembro, chegamos à conclusão
de que a criação de um argumento que privilegie pautas sociais indispensáveis e que leve em conta as
situações de violência sofridas rotineiramente no Brasil se faz emergencial. Assim, a tratativa com a
realidade da escravidão e seus impactos na sociedade contemporânea, além do genocídio negro que
ocorre hoje, somada à ideia de que a ancestralidade negra é negligenciada em diversas versões da
história do Brasil, seja pela romantização ou pela ignorância, fomos levados à crer que a criação da
peça-campanha agiria de forma a promover uma reflexão no ambiente escolar.

343
Fotos 2 e 3 – Atores são fotografados para a identidade visual do espetáculo.

Iniciando-se pela criação de um argumento pautado na denuncia e na evidenciação do racismo


estrutural, o arco dramático da peça mesclou-se com imagens e conteúdos de poéticas contemporâneas
e lirismo. Assim, os adolescentes apreciadores do espetáculo, na plateia, poderiam ter, na escola,
momentos de reflexão sobre práticas – veladas ou não – que são nocivas no que tange à igualdade e ao
respeito às diferenças. Pensando, ainda, na herança histórica do povo preto, foi realizada a pesquisa
sobre termos, verbetes e vocabulários, nomes de personagens, estilos de dança, incluindo elementos
culturais que foram, com o passar do tempo, invisibilizados ou demonizados.

344
Fotos 4 e 5 – Elenco de Ato de resistência fazendo os ensaios gerais do espetáculo. Nesta etapa, diversos foram
os debates realizados com as turmas envolvidas com a produção, no que tange à representatividade negra e à
importância do fazer teatral na escola que preconize a luta de classes e minorias na sociedade contemporânea.

Corroborando com a ideia de que o teatro pode instruir a comunidade no que se refere à elevação
do senso crítico, a abordagem de casos de repercussão internacional, como os de Marielle Franco e
George Floyd, trouxe, para o roteiro da peça, um contraste entre o século XXI e a escravização. Ao longo
das cenas, as personagens, que apresentam-se como negros escravizados, projetam no futuro a
liberdade e a libertação. No entanto, mesmo com o passar do tempo, vemos existir, na sociedade
contemporânea, violência contra o povo preto.

345
Fotos 6, 7, 8, 9 e 10 – Peças de divulgação do espetáculo representadas pelos protagonistas. O material
fotográfico de Ato de resistência levou em conta a representatividade dos corpos negros, sua ancestralidade e
divindades, cujas referências foram se perdendo ao longo da história do Brasil. Há, também, a tentativa artística de
mesclar elementos da intervenção fotográfica com a arte digital, representada pela pintura aplicada sobre as
fotografias.

Um aspecto de relevância cultural que as temporadas do espetáculo trouxeram para a


comunidade escolar diz respeito ao colorismo e à promoção de um debate que os conduza a reconhecer
sua própria fenotipia, reconhecendo-se negro, compreendendo as raízes ancestrais, ainda que sua cor
de pele não seja retinta. Considera-se, com a concretização desse projeto, que a visibilidade dos
estudantes negros promoveu um empoderamento e, portanto, o fortalecimento da autoestima positiva, da
sensação de pertencimento e da percepção de representatividade.

346
Fotos 11 e 12 – Atrizes de Ato de resistência em cena na temporada do espetáculo. Apoiadas na trilha sonora
contemporânea dos álbuns das bandas “Baco Exu do Blues” e “Tuyo”, que difundem a música preta
contemporânea, as cenas da peça estiveram repletas de momentos de denúncia política e lirismo, intercalando
cenas de reivindicação e poesia.

“Ato de resistência” é uma peça-campanha multicultural. Traz, em seu texto, cenas de teatro e
dança, além de uma emblemática cena de Slam no fechamento do espetáculo. A produção de uma peça
que relaciona uma temática social indispensável e a ficção entremeada de números de teatro, dança e
poesia, resultou numa experiência estética de grande valia aos estudantes do CEMEB, sejam os alunos-
atores, sejam os alunos-apreciadores, haja vista que o espetáculo foi encenado em duas versões. A
primeira, realizada na rampa de acesso da escola, ainda com o uso de máscaras pela restrição imposta
pelos protocolos de cuidados com a COVID-19, e a segunda, já no auditório da escola, flexibilizados os
protocolos, sem o uso das máscaras.

Foto 13 – Cartaz da peça Ato de resistência (2021), cujo conceito integra a representatividade negra, a fotografia e
a arte digital. A peça foi realizada em duas temporadas, gerando um público de mais de 2000 pessoas.

347
Foto 14 – Elenco de Ato de resistência e a plateia debatendo sobre as questões sociais tratadas na peça, ao final
do espetáculo. Por meio das cenas dramáticas e do reconhecimento das situações não fictícias retratadas e para
além da catarse, parte dos espectadores sentiram-se tocados pelos temas retratados na peça, haja vista que a
maioria se identifica direta ou indiretamente com as histórias apresentadas no espetáculo.

Aproveitando o impacto social do teatro e a pertinência das práticas antirracistas, a peça


oportunizou que os estudantes negros, sejam atores, bailarinos, artistas visuais ou assistentes de
produção, experienciassem o lugar de fala, além de participarem ativamente de um processo criativo que
os levassem a ter a oportunidade de apresentarem-se à comunidade escolar de forma a gerar o debate
sobre as consequências do racismo estrutural e da negação do racismo. Por fim, percebe-se que a
interação entre negros e não negros, tanto no processo criativo quanto no acesso à audiência, conduziu
a comunidade escolar à mudança de hábitos e ao policiamento quanto às mais variadas formas de
desrespeito ao povo negro.

Foto 15 – Equipe técnica e artística do espetáculo: bailarinos, atores, produção e o professor Marcello (centro).

348
Foto 16 – A bandeira do Brasil ensanguentada, hasteada por mãos negras, tornou-se uma das mais emblemáticas
cenas do espetáculo. Neste momento, uma voz em off invade o espaço e traz um texto que evidencia o genocídio
negro que ocorre em nosso país, trazendo à tona a necessidade de uma mudança social que diz respeito a todos. A
iluminação em vermelho gera um momento dramático e estético, no qual a percepção sensorial da plateia é
provocada.

Foto 17 – Equipe Ato de resistência celebra com um abraço a concretização do trabalho. Após anos em
distanciamento social, a peça-campanha foi o primeiro contato dos estudantes com o Teatro nesta realidade pós-
pandemia. A possibilidade de evidenciar o racismo estrutural e a luta por igualdade social trouxe, à comunidade
escolar, a indagação sobre o que é preciso mudar para que a sociedade seja justa, igualitária e livre de toda e
qualquer violência.

PALAVRAS-CHAVE: educação; africanidade; teatro-educação; negritude.

349
EDUCAÇÃO PARTICIPATIVA E ANTIRRACISTA COMO INSTRUMENTO DE DESCONSTRUÇÃO DAS
PERMANENTES ESTRATÉGIAS, AS QUAIS OPORTUNIZAM A MANUTENÇÃO DA SELETIVIDADE
PENAL

Cinara Matoso Machado da Silva


Professora da Rede Municipal de Curitiba, graduanda em Direito FESP/PR, Pós-graduanda em Direito Penal e
Criminologia/CEI/Introcrim, Especialista em Educação Física Escolar UFPR, Mestranda em Direitos Humanos e
Políticas Públicas PUC/PR. ci.matoso@hotmail.com

Mirian Célia Castellain Guebert


Doutora em Educação. mirian.castellain@pucpr.br

Tema específico

A educação participativa e antirracista enquanto ferramenta de desconstrução da seletividade


penal.

Problema da pesquisa

O índice de encarceramento no Brasil está se aproximando de 1 milhão de pessoas, estando o


Brasil em 3° lugar no ranking de encarceramento. A seletividade penal é explícita, “além da precariedade
do sistema carcerário, as políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam, geralmente, contra
a população negra e pobre. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos” (CAMARA DOS
DEPUTADOS/COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS, 2018).

Introdução

A proposta deste estudo é a de demonstrar a relação do final da escravidão, em 1888, com a


construção de diversas estratégias, as quais são utilizadas de diversas maneiras, se utilizando do
sistema penal e da educação, e que este fato está ligado com a questão da maioria da população
encarcerada ser negra. Observa-se que o sistema penal é composto por 3 esferas, compreendendo
assim as seguintes instituições: policial, judiciária, penitenciária, onde estas, de acordo com regras
jurídicas pertinentes, aplicam o direito penal (BATISTA, 2011, p.25).
Surgem algumas inquietações após enxergar de fato o racismo, o qual sempre esteve presente
na sociedade de maneira geral, mas que se passava de forma invisível. Porém, foi quando me senti
pertencente à causa que passei a enxergá-lo. Após realizar a leitura sobre a educação eugenista,
ocorreu um intenso disparador das conexões entre racismo, direito e educação.
Além disso, com as práticas desenvolvidas na escola através de uma educação participativa,
onde o aluno é visto como protagonista no processo educacional, cada vez mais se fortalece a ideia de
que educação e direito caminham juntos e que, conforme se organizam, trazem reflexos na construção
da sociedade.

350
Em seguida, o interesse pelo Direito Penal aponta para mais uma relação, onde comecei a
compreender o quanto é preciso encontrar uma alternativa, para desconstruir o racismo estrutural, que
ocasiona grandes injustiças, onde uma delas é o encarceramento majoritário da população negra.
A proposta de uma educação participativa, com o objetivo de auxiliar na construção de indivíduos
críticos, que possam questionar o sistema, quando este lhe “ferir”. Em conjunto, a proposta de uma
educação antirracista, que objetiva trazer um outro olhar de pertencimento de fato do negro à sociedade.
A possibilidade de desconstruir o racismo estrutural, através de processos pedagógicos, que auxiliem no
que diz respeito à exclusão do negro na sociedade. A escola atuando como instrumento do “bem”, sendo
que esta já foi utilizada como instrumento para incentivar o movimento eugênico, que é aquele que
considera a supremacia da raça branca.
Ressalta-se que o Brasil está, no momento, no 3° lugar de país que mais encarcera e, conforme
será elucidado através da bibliografia, encarcera de forma seletiva. É fato, também, que após o indivíduo
ser preso, dificilmente este terá condições de ter a sua vida restabelecida, por diversos fatores.
Portanto, a ideia deste estudo é a de demonstrar que é necessário intervir, no sentido da
prevenção, através de uma educação antirracista, atuando com a finalidade de trazer um novo olhar à
população negra. Através da educação participativa, verificar que é possível refletir e exigir a construção
de uma sociedade melhor para todos!
Demonstrando que é preciso para a construção de uma sociedade mais justa enfrentar o racismo,
desconstruindo estas ideias que estão enraizadas nas estruturas da sociedade.

Estratégias utilizadas pós-abolição

A abolição no Brasil acontece no ano de 1888. Lembrando que o Brasil foi o último país das
Américas a finalizar, de maneira formal, o processo de tráfico de pessoas negras em 1850, e a
escravidão em 1888 (CNJ, 2020). É fato que o país “nos três séculos como colônia de Portugal, foi
sinônimo de açúcar, e este por sua vez, era sinal de escravidão”. (GOMES, 2019, p.313).
A resistência para aceitar o final da escravidão, a qual era fundamental na economia, na
organização política e social da sociedade brasileira, foi bastante intensa. A mão de obra escrava foi
utilizada primeiramente com os engenhos de cana de açúcar, depois nas minas de ouro, e em seguida
com o café, (BRITO, 2020, informação verbal) 68. Além disso, vale a pena lembrar que “a produção de
açúcar no Brasil era um empreendimento internacional, que envolvia capitais, e equipamentos de
diversos países”. (GOMES, 2019, p.322). Ressalta Mattos (2016, p.186) que:
Após a abolição da escravidão, os negros africanos e seus descendentes tiveram de
enfrentar o problema do ingresso no mercado de trabalho livre. Nessa mesma época, o
governo republicano (representante dos interesses dos grandes cafeicultores) promoveu
uma campanha de branqueamento da população, visando a europeização do Brasil e a
eliminação da herança biológica e cultural africana.

Destaca-se que, após a abolição ser concedida de maneira formal, não houve nenhuma ação
efetiva que pudesse reparar, inserir ou criar oportunidades de acesso à educação para a população

68 BRITO, Luciana. Democracia e República: Arroz e Feijão. Aula 2. Curso de Introdução as ciências políticas. IREE, 2020.
(informação verbal).

351
negra, muito pelo contrário, foi proibida por bastante tempo. É também por estes motivos que a questão
racial está atrelada às questões de desigualdades sociais, as quais foram surgindo com a organização
da sociedade brasileira. Além disso, é notável que este processo histórico ainda repercute nas
desigualdades sociais, nos índices de criminalização, encarceramento e homicídios da população negra
no país (CNJ, 2020).
Outra afirmação é que foi “a grande pressão exercida por escravos fugitivos e rebeldes, apoiados
pelos abolicionistas, sem dúvida nenhuma que influenciou o governo a promover a abolição da
escravidão”. (MATTOS, 2016, p.150). A questão é, será que de fato o Brasil se convenceu do final da
escravidão, ou somente se utiliza de novas estratégias. Sobre a abolição, destaca Laurentino Gomes
(2021) que:
O abolicionismo foi também a primeira grande campanha popular a usar técnicas
modernas de propaganda de massa com fins políticos. Seus líderes tinham consciência
de que não bastava a defesa de princípios morais e valores cristãos para convencer a
opinião pública, cuja prosperidade dependia até então do trabalho cativo. A participação
feminina foi intensa. (GOMES, 2021).

Já no ano de 1890 é promulgado o Código Penal Republicano, que expressava no capítulo XIII as
punições para vadios e capoeiras, onde previa-se que aqueles que andavam pelas ruas, sem trabalho ou
residência comprovada, iriam para a cadeia. A capoeira criminalizada no artigo 402 do Código Penal de
1890, após dois anos da abolição, significava, de certo modo, a pretensão de que “determinado povo”
atendesse às “exigências de cultura”, as quais o direito protege, de acordo com interesse da época e da
sociedade (BATISTA, 2020, p.112). Ressalta-se que o público-alvo do código era o ex-escravizado
(PINHO, 2021, informação verbal)69. De acordo com o Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890, trazia
expresso no seu artigo 399 o seguinte texto:
OS VADIOS E CAPOEIRAS-Art.399. Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer
mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em
que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou
manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes: Pena de prisão cellular por 15 a
30 dias. (BRASIL, 1890)

Destaca-se que se organiza neste período um forte controle com aparato legal, onde o código
criminalizava a vadiagem e a capoeira, e qualquer atitude malcriada poderia ser punida. Um aparato
policial que tinha o objetivo de punir os libertos, através de um grande processo de racialização. (BRITO,
2020, informação verbal)70.
A organização de uma “política para os inassimiláveis há muito tempo na história: aos escravos
nas senzalas, aos leprosos nos hospitais, loucos no hospício e pobres na cadeia”. (BAUMAN apud,
SANTOS, 2021). Destaca Gomes (1958, p.41), que “a organização social do país, a racionalização dos
interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe, que os matizou
com os pigmentos de seus preconceitos”.
Neste sentido destaca Hassemer (p.32, 2016) que, “as raízes da dureza do direito penal, se
justifica pela cabeça e pelos corações das pessoas”. Destaca-se ainda a “existência de instrumentos

69 PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Introdução ao Garantismo. Aula 8. Pós-Graduação. Intocrim/CEI. Curitiba, EAD. 2021.
(informação verbal).
70 BRITO, Luciana. Democracia e República: Arroz e Feijão. Aula 2. Curso de Introdução as ciências políticas. IREE, 2020.
(informação verbal).

352
racistas do positivismo”. (CUNHA, 1973, apud, BATISTA, 2018). Vale a pena lembrar do fato de que “o
vento punitivo soprou da América para a Europa e de lá para as velhas colônias”. (WACQUANT, 2008,
apud, BATISTA, 2018)
No ano de 1911, o Brasil participou da Convenção Universal das Raças, quando através de João
Batista de Lacerda, a pedido do Presidente da época, Hermes da Fonseca, leva o quadro “A Redenção
de Cã”, ao evento. O país, neste momento, assume o compromisso, perante as demais nações, com o
progresso, sendo que o caminho seria através de uma política de embranquecimento que seria instalada
no país. O quadro simboliza a alusão da gênese (a ideia da criação), onde se enfatizava o discurso de
que Cam, filho de Noé, tinha sido castigado, trazendo no corpo a marca do pecado original, a cor negra.
A figura da mulher mais nova e de pele mais clara, a qual teve um filho com um homem branco, trazendo
no colo a criança de pele branca, que simbolizava a finalidade do Brasil (SANTOS, 2021, informação
verbal)71. O italiano Jorge Benci, que desempenhou várias funções no Colégio da Ordem da Bahia,
afirmava que a chamada “maldição de Cam”, tratava-se da maldição de Noé lançada sobre Canaã, o
qual era primogênito do seu filho Cam, que transformava todos os africanos, de acordo com a tradição
neste perfil bíblico, possibilitando então, a classificação de candidatos naturais ao cativeiro (BENCI,
apud, GOMES, 2019, p. 341).
Organizava-se um caminhar no sentido, da “eliminação da influência africana na nação brasileira,
era visto como condição do progresso nacional”. (STEPAN, 2005, apud, MOREIRA, 2019). Neste
período, pós abolição, o projeto era excluir o negro da sociedade brasileira, inclusive proibindo sua
entrada no país, com a finalidade de buscar a pureza da raça branca, pois era considerado ser
fundamental para a evolução étnica brasileira (MATTOS, 2016).
O discurso eugenista já se organizava no século XIX, através de Joseph Gobineau, que
assessorava o Império brasileiro. O objetivo deste discurso, na virada do século XX, era o de transformar
o ex-escravizado brasileiro em objeto de ciência. Desenvolvia-se a ideia de um criminoso nato, que
ganhou forças com o pensamento de Césare Lombroso, autor do livro “O homem delinquente”, escrito
em 1876, (BATISTA, 2018). É fato que “o ideal de branqueamento teve grande aceitação na
intelectualidade brasileira e nas políticas de Estado nas primeiras décadas do século XX”. (SCHUCMAN
2020, p.108). Sobre este assunto ressalta ainda Batista (2018, p.74) que:
As interações concretas, a linguagem, os signos e símbolos apontariam para as
construções sociais que produzem significados e definições. A etnometodologia trouxe,
nessa linha, contribuições para novas aproximações da realidade social, através de
processos de construção social de significados e de identidades.

No dia 16 de julho de 1934, é promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do


Brasil, na qual destacava o texto constitucional que a educação deveria atuar como instrumento de
promoção para a educação eugênica. No artigo 138 da Constituição de 1934 estava escrito que:
“Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: estimular a educação
eugênica”. (BRASIL, 1934).
As consequências deste processo de eugenia refletem na sociedade ainda nos dias de hoje. A
existência da “suspeição policial se fundamenta na imputação de estereótipos negativos aos negros, a
71 SANTOS, Ynãe Lopes dos. Democracia e República. Aula 6.2. Curso de Introdução as ciências políticas. IREE, 2020.
(informação verbal).

353
qual os torna as principais vítimas da arbitrariedade da polícia nas ruas, dos seguranças nas lojas,
bancos e supermercados”. (GUIMARÃES 1999, apud SCHUCMAN, 2020). Sobre isso Barata (2000,
apud SANTOS, 2018) escreve que:
O significado político do controle social realizado pelo Direito Penal e pelo Sistema de
Justiça Criminal aparece nas funções reais desse setor do Direito - encobertas pelas
funções declaradas do discurso oficial: a criminalização primária realizada pelo Direito
Penal (definição legal de crimes e de penas) e a criminalização secundária realizada pelo
Sistema de Justiça Criminal constituído pela polícia, justiça e prisão (aplicação e execução
de penas criminais) garantem a existência e a reprodução da realizada social desigual das
sociedades contemporâneas.

As construções sociais produzem significados e definições, que são construídas através da


linguagem, dos signos, dos símbolos, e identidades (MEAD, 1934, apud, BATISTA, 2011), no sentido de
um “sistema penal que atua elegendo candidatos a criminalização”. (ALMEIDA, 2001, p.7). De maneira
que “o “bom candidato”, é escolhido a partir de um estereótipo”. (ZAFFARONI, 1998, apud ALMEIDA,
2001). É fato que, “como o racismo aberto se tornou inviável, seu substituto é aparentemente mais
meritocrático”. (SOUZA, 2018, p. 47).
Diversos críticos destacam no sentido dos inúmeros erros do Direito Penal terem causa na
seletividade e na ineficácia do sistema. Além disso, a criminologia crítica considera ser um erro originário
do direito penal o fato deste afirmar uma situação igualitária a todos, mas, em contrapartida, conviver
com uma gritante desigualdade entre as pessoas, o que possibilita que estas tenham maior ou menor
chance de serem etiquetadas como criminosas (MENDES, 2017).
No que se refere à formação do Direito penal brasileiro, é preciso citar Nelson Hungria, o qual tem
papel estrutural no que tange à estrutura da teoria do delito e do Direito penal, tanto na parte geral,
quanto na especial. Nelson Hungria teve influências de várias linhas, em especial as do penalismo
alemão e italiano, pelo fato de ele falar alemão e ter acesso às obras, num momento em que isso era
raro. (LEITE, 2021, informação verbal)72. As alterações colocadas na vida nacional caminham junto com
o nazifascismo vindo da Alemanha e da Itália para o continente latino-americano, principalmente para a
América do Sul (DOTTI, 2020).
Diversas situações nacionais ocasionaram a participação de Nelson Hungria na elaboração do
Código Penal de 1940. Vale lembrar que Alcântara Machado debatia fortemente sobre o projeto, pois
este tinha um anteprojeto ao de Hungria, entretanto em função do protagonismo que o segundo assume
com o General Góis, em 1937, praticamente o projeto do primeiro é “atropelado” (LEITE, 2021,
informação verbal)72. Nelson Hungria era extremamente hábil em naturalizar decisões político-
dogmáticas. Alcântara Machado estava com o anteprojeto do Código Penal Brasileiro pronto em 1938,
entretanto este projeto foi submetido a revisão por 2 anos, em uma comissão na qual estava presente
Nelson Hungria e ausente o autor do projeto, que era Alcântara Machado, o qual destacou,
posteriormente, ter obtido acesso às informações somente após a conclusão do projeto, tendo sido
enviado ao Ministro da Justiça da época (DOTTI, 2020).

72 LEITE, Alaor. Direito Penal Brasileiro. Aula 07. Pós-Graduação. Introcrim/CEI. Curitiba, EAD. 2021. (informação verbal)

354
Vale a pena lembrar que, “o Código Penal foi publicado pelo Dec.-Lei 2.848, de 7 de dezembro de
1940, quando o Congresso Nacional ainda permanecia em recesso decretado pela ditadura Vargas em
10.11.1937”. (DOTTI, 2020).
O Código Penal de 1940 não fazia distinção entre erro de tipo e erro de proibição, onde o artigo
16 expressava que a ignorância da lei não escusa. Por certo, admitindo uma noção de presunção
absoluta de que o cidadão conhece o direito. Hungria alegava que admitira relevância de erros de direito
no direito penal brasileiro, significaria um bill de indenidade para gente inculta dos morros. Aníbal Bruno
contestava fortemente, afirmando que é justamente pela existência desta gente chamada por Hungria de
“inculta dos morros”, é que precisa-se ter relevância desse erro de direito, em observância ao princípio
da justiça (LEITE, 2021, informação verbal)73.
Em relação ao que tange o Código de Processo Penal (CPP), se aborda sobre a existência de um
erro histórico derivado de Karl Binding (a ideia da pretensão punitiva), a qual vem acontecendo com
pouca reflexão. O processo penal trazendo para si as bases do Código de Processo Civil (CPC), ou seja,
colocando o Ministério Público (MP) como um certo “credor” da pena. De certa maneira, o MP agindo em
relação ao “bem jurídico”, de maneira análoga ao que acontece no CPC quando este trata do credor.
(LOPES, 2016). A ideia de que “no processo penal, o Ministério Público exerce uma pretensão acusatória
(ius ut procedatur), ou seja, o poder de proceder contra alguém quando exista a fumaça da prática de um
crime (fumus commissi delicti)”. (LOPES, 2016, p.45).
A organização de um sistema penal, com regra geral de garantia, que se fundamenta na
retribuição e ressocialização, onde no Brasil e na Argentina costumam associar as duas
fundamentações. Neste sentido, se destaca um discurso policial no caminho da moralidade, e um
discurso penitenciário no sentido de tratamento (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2020). Sobre sistema penal,
destaca Santos (2021, apud, Lola, 1977) que:
Ao cravar seu estilete no conceito engelsiano de Estado, definindo-o como uma
organização surgida para a proteção da burguesia nascente; ao demonstrar as
vinculações entre o interesse empresarial e os procedimentos e aparatos do Estado,
incluindo todas as instituições repressivas e, muito em especial, a lei penal, como
instrumento justificador da violência econômica; ao considerar a polícia e seus órgãos
associados, tribunais, órgãos fiscais e cárceres, como uma força militar interior a serviço
dos interesses da classe dominante, se desmistifica a significação supostamente natural
das definições legais, produto de um suposto consenso coletivo, de uma presumida
consciência social. Se a lei é um ato político, a conduta desviante, para usar a palavra que
nos permite mais facilmente comunicar a ideia, é também um ato político. E todos os
prisioneiros são, em essência, prisioneiros políticos. Assim se despoja de sua roupagem
solene toda a criminologia positivista e funcionalista, e se deixa nu o papel propiciador
desta disciplina e de seus cientistas, investigadores e docentes.

Outrossim, é a Lei de Segurança Nacional de 1983 que faz parte do corpo do penalismo
brasileiro, e que jamais o abandona. Este tema de segurança nacional é tratado desde a construção do
Código Penal no período do Estado Novo, passa pela ditadura militar com o Código de 1969, em seguida
na reforma de 1984, depois na Constituição Federal de 1988. Sendo que esta lei trata de garantir ao
próprio Estado o direito de punir adversários políticos, guardando, assim, os resquícios da ditadura militar
(LEITE, 2021, informação verbal)73. Neste sentido questiona Batista (2020, p.56), com as seguintes
reflexões:

73 LEITE, Alaor. Direito Penal Brasileiro. Aula 07. Pós-Graduação. Introcrim/CEI. Curitiba, EAD. 2021. (informação verbal)

355
Entretanto, pode o estudioso do direito penal brasileiro do século XIX ignorar o direito
penal doméstico, o grande sócio oculto – e majoritário – do direito penal comum no
controle terrorífico da escravaria? Quais as verdadeiras normas processuais da ditadura
militar durante nossos “anos de chumbo”: aquelas que constavam no Código de Processo
Penal Militar e de dispositivos da Lei de Segurança Nacional, entre outras que nunca
puderam ser lidas em nenhuma biblioteca, mas permitiram a tortura a morte e a ocultação
do cadáver de indiciados?” Zaffaroni, (1986, apud, 2020), destaca para “a face ilegal do
sistema penal.

Por fim, abordar-se a brevemente sobre a Lei 11340/2006 (conhecida como lei de drogas). O
dispositivo criminal incidindo em detrimento do médico, e ainda permitindo que “o “perfil social” do
acusado apresente uma eficácia discursiva com a função de distinguir quem é ou não o “criminoso”
(CAMPOS 2015, apud JESUS, 2016, p.31). A lei de drogas reforçando a seletividade penal, pois
determina condições sociais e pessoais, deve ser levada em consideração quando se define o delito,
74
conforme expressa o artigo 28, §2º (JESUS, 2016, p.31/32). Sobre esse assunto escreve Lopes (2016,
p.614) que:
No que se refere à “conduta social” e “personalidade do agente”, a situação é igualmente
problemática. Como já explicamos em outras ocasiões, ambos os critérios são abertos,
indeterminados e refletem um superado direito penal do autor. O que é uma conduta
social adequada? São os juízes capazes e estão legitimados a fazer um juízo dessa
natureza? Quais os parâmetros utilizáveis? Como refutar esse (des)valor? Sob o
argumento de “conduta social” inadequada ou desajustada, não estariam sendo feitas
graves discriminações a partir da classe social, da conduta sexual ou mesmo praticando
um velado racismo? Daí por que é inadmissível um juízo de desvalor a partir de critérios
tão vagos e indeterminados.

A taxa de aprisionamento no país, de 2006 a 2014, aumentou 339%, por tráfico de drogas no
país, onde passou de 31 mil para 138 mil, de acordo com dados do DEPEN (CARDOSO, 2018). Sobre
as leis penais, destaca Paschukanis (1976, apud, Batista, 2018) entendê-las como “falsa consciência e
fetichismo do capitalismo”.
Uma pesquisa realizada em 2013 pela Fiocruz, a qual traçou um perfil do uso e dos usuários de
crack no Brasil, trouxe os seguintes dados: de cada 10 usuários de crack 8 são negros, sendo que 80%
destes não chegaram ao ensino médio. Além disso, 40% dos usuários fazem parte da população em
situação de rua, onde 49% já passou pelo sistema prisional (CNJ, 2020).
A lei de drogas é um tipo penal aberto, e para ser aplicada necessita de uma portaria da Anvisa,
vinda do Poder Executivo (de forma arbitrária), por se tratar de uma norma penal em branco,
contrariando o Princípio da Legalidade, portanto, é inconstitucional (JUAREZ TAVARES, 2021,
informação verbal)75. Outrossim, se ressalta que formular tipos penais abertos, genéricos, é politicamente
perigoso. Não é por acaso que países, quando estiveram em momento de repressão e controle, optaram
pelo caminho da perseguição judicial de inimigos do governo (BATISTA, 2020, p.76). Sobre o assunto,
ainda destaca Batista (2011, p.109) que:
A teoria da pena generalizante e esquemática, que tenha a pretensão de aprender, com
os mesmos instrumentos, por exemplo as práticas punitivas do escravismo colonial
brasileiro, cujos pontos cardeais estavam na preservação utilitária do criminoso.

74 § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância
apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta
e aos antecedentes do agente.
75 TAVARES, Juarez. Críticas a Teoria do delito. Aula 02. Pós-Graduação. Introcrim/CEI. Curitiba, EAD. 2021. (informação
verbal).

356
A questão das drogas é um problema de saúde pública seríssimo, que precisa ser tratado no
sentido de investigar aqueles que procuram por este caminho, abordando causas e consequências. De
certa maneira, o que o Estado não trata preventivamente, e mais em específico falando dos direitos
sociais, previstos no artigo 6° da Constituição Federal, será tratado mais na frente pelo Direito Penal.
Portanto, é de suma importância o estudo deste tema, o qual nos parece estar conecto com
outras áreas, as quais tangem e influenciam fortemente na organização da sociedade. Ressalta Karam
(2021, p.4) que “a excepcionalidade da atuação do sistema penal é de sua própria essência, regendo-se
a lógica da pena pela seletividade, que permite a individualização do criminoso e sua consequente e útil
demonização”. É fato que, “o direito tanto pode ser fonte de poder, diferenciação e exclusão, quanto pode
assumir o papel de luta contra o poder, a diferenciação e a exclusão”. (SANTOS, 2011, apud,
CARDOSO, 2018)
No dia 11 de agosto de 2021, declarou sobre o tema deste trabalho o Professor Juarez Cirino dos
Santos que a Seletividade Penal está atrelada à organização da sociedade capitalista, que por sua vez é
racista e sexista, que é preciso enfrentar todas estas questões. Considerou ainda, o Professor Juarez C.
dos Santos, que o presente estudo se propõe a dar um início para a desconstrução da seletividade penal
e que, em função do perfil supracitado da sociedade, é um caminho bastante dificultoso (informação via
telefone)76.
A ciência já comprovou a ausência de diferenças genéticas entre grupos étnicos e raciais, sendo
estes negros, brancos, amarelos e indígenas. No entanto, se construiu a ideia de raça, a qual vem se
mantendo na continuidade de símbolos distintos na imaginação da sociedade, de maneira que possibilita
a organização de uma diferença hierárquica dos grupos raciais, partindo desta ideia fictícia de raça
(SCHWARCZ, 1993, apud, CNJ, 2020).
Em função desta ideia de seletividade de raças, surge a lógica imputada em especial aos jovens
negros, os quais são submetidos às abordagens policiais, pois frequentemente associa-se a imagem de
negros a ilegalidade, marginalidade e crime, de maneira que se permite mesclar racismo e criminalização
da pobreza (CNJ, 2020).
Além disso, é por este motivo supracitado que os jovens negros são adotados como criminosos
potenciais, ou seja, um elemento suspeito num sentido de simbolizarem uma “conduta suspeita”, são
abordados de maneira mais violenta, sendo agredidos e até mortos por agentes da segurança pública.
Um tratamento desproporcional perante a outros grupos raciais (CNJ, 2020). Sobre este assunto,
destaca-se relatório da Câmara dos Deputados de 2015, o qual trouxe o seguinte apontamento:
A seletividade racial, o racial profiling, evidencia-se pela reiteração de práticas
discriminatórias contra um indivíduo ou a coletividade de um determinado grupo étnico,
religioso, ou que possua outras características distintas, comumente praticados pelo
Estado, por intermédio dos seus agentes. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2015, apud,
CNJ, 2020)

Não se pode esquecer que o Brasil tem origens ancestrais negras, africanas e indígenas, estando
longe de ser um país de origem europeia, onde é notável para qualquer cidadão inteligente que a cultura
social da nossa história reconhece que o país tem suas origens na cultura negra e indígena, sendo que

76 SANTOS, Juarez Cirino dos. Informação via telefone. 11/08/2021.

357
estes fatos deveriam ser fontes de grande respeito, considerando que o Brasil se torna imenso com o
trabalho dos povos originários (SILVA, 2018). Destaca-se ainda que “um país que não valoriza as suas
origens é um país desprovido de comprometimentos futuros com sua sociedade” (SILVA, 2018, p. 126).

Estratégias pouco discutidas

O Brasil é um Estado Democrático de Direito e possui uma Constituição classificada como cidadã.
No entanto, possui um dispositivo constitucional que prevê a suspensão dos direitos políticos de toda
uma população. A Corte Europeia de Direitos Humanos albergou, através de um movimento
internacional, o reconhecimento do direito de voto do preso. Entendeu a corte que, dar voz ao preso,
trata-se de fazer o reconhecimento da importância de cidadania de todos e não somente de alguns
(FERRARINI, 2021).
Vale a pena lembrar que o problema da humanidade supérflua, e como tal encarada, em função
do totalitarismo e da privação da cidadania, ensejada juridicamente, criou as condições para o genocídio,
de modo que foram levados, por falta de algum espaço no mundo, aos campos de concentração
(LAFER, 1941).
Portanto, o direito ao voto representa um não calar a uma determinada população, que conforme
já demonstrado neste estudo, tem perfil de pobres, pretos e com baixa escolaridade. Neste sentido,
destaca Ferrarini (2021, p.28) que “a relação de privação de direitos é consequência da violação de um
dever de cidadania”.
Em todas as constituições brasileiras é encontrada a suspensão dos direitos políticos das
pessoas condenadas criminalmente, com a única exceção que é a Constituição Política do Império
(1824) (FERRARINI, 2021).
No entanto, o assunto já foi colocado em pauta por alguns políticos, porém sem que fosse
possível seguir adiante, em função de variados obstáculos que surgiram como justificativa para o não
prosseguimento. Além disso, poucos estudos no Brasil sobre o problema e as consequências desta
perda de direito são refletidas.
Os impactos da suspensão do direito de voto em outros países incidem de forma muito grave
sobre um perfil de pessoas, de modo que, frequentemente, oportunizam a manutenção e ampliação da
justiça criminal, a qual está inserida num contexto racista e discriminatório. No caso brasileiro, temos a
ausência de pesquisas que apontem para o efeito da suspensão dos direitos de voto aos apenados
(FERRARINI, 2021).
É necessário que lembremos das permanentes estratégias que aconteceram na história
brasileira, realizando um recorte histórico a partir da abolição em 1888. Observando que todas elas têm
um ponto em comum, ou seja, a exclusão de um determinado perfil de cidadão da sociedade. Destaca
Ferrarini (2021, p.189) que “as possíveis origens históricas do instituto da perda de direitos políticos
revelam que, sempre foi tal medida utilizada como forma de excluir determinados indivíduos do grupo
daqueles considerados cidadãos”.

358
No que se refere à reinserção social, pode-se dizer que a possibilidade de voto aos apenados
oportunizaria que, ao menos algumas agências políticas, começassem a olhar para a situação dos
mesmos e, como consequência, traria reflexos às famílias e comunidades. É de suma importância
compreender que retirar o direito de voto de determinado grupo, como bem enfatizam as Cortes
Estrangeiras e Internacionais, é sinônimo de como se compreende a própria cidadania de um país
(FERRARINI, 2021).
Portanto, é necessário que urgentemente comecemos a refletir e a buscar por instrumentos que
possam não só questionar sobre a questão supracitada, como também intervir de alguma maneira, para
que seja possível construir uma sociedade mais igualitária e justa para todos.

A suspensão de segurança e os impactos (negativos) para a garantia de direitos fundamentais à


população carcerária

Quando Direitos Fundamentais são relativizados é sinalizador importante de que o caminho pode
não estar em consonância com o da Constituição Federal de 1988, eis que no seu artigo 1°, aonde não
por acaso se destacam os Princípios Fundamentais na construção de uma sociedade melhor para todos.
O Instrumento da Suspensão de Segurança vem frequentemente demonstrando a efetivação de
decisões proferidas pelo Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, a pedido do chefe do Poder
Executivo do mesmo Estado, no mínimo que nos devem levar a uma certa inquietação, no sentido de
tentar uma melhor compreensão dos motivos destas estarem acontecendo.
São exemplos históricos no mundo, inclusive de chefes do Poder Executivo, que contornam o
Poder Judiciário, se recusando a aceitar a decisão do Juiz, como por exemplo: Lincoln que se negou a
aceitar a decisão da Suprema Corte, rejeitando a sua suspensão de mandatos de habeas corpus, no
momento que usa desta prerrogativa de perdão presidencial.
Alexander Hamilton expressou no artigo 74 da obra “O federalista” que, em função da extensão
do poder de indulto, deveria sinalizar escrupulosidade e cautela, e que nas mãos de um presidente sem
escrúpulos ou cautela a remissão pode ser utilizada com a finalidade de proteção de governo contra
freios judiciais. E que, mesmo sendo constitucional, este tipo de ação fragiliza a independência do Poder
Judiciário (LEVITSKY; ZYBLAT, 2018). Ressalta-se que as informações do que acontecem nos países
“cultos” sempre chegaram as elites culturais brasileiras, de modo que se transplanta para o nosso solo,
antes mesmo da germinação de outros mais bem adubados (GOMES, 1958).
Os problemas do sistema prisional no Brasil são marcados por problemas estruturais graves, que
são fortalecidos por responsabilidades de ordem difusa e pela ausência de articulação nacional que se
fundamentem em evidências e boas práticas, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça. O
Supremo Tribunal de Justiça (STF), em 2015, se manifestou por meio da ADPF 347 reconhecendo que
são precárias as condições de encarceramento no Brasil, portanto denominando como “estado de coisas
inconstitucionais” (CNJ, 2020).
A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 1°, ressalta a relevância dos Princípios
Fundamentais, norteando não somente a carta magna, mas dando a base para todo o Ordenamento

359
Jurídico, sendo mais especificamente o objeto deste estudo o inciso III, o Princípio da Dignidade
Humana. De acordo com Eneida Desiree Salgado, “na República deve caber todos os ideais de vida boa
que não sejam contrários à Constituição Federal de 1988”. Além disso, a Professora supracitada destaca
a importância de que somos todos responsáveis em fiscalizar se aquele, que escolhemos para exercer
tal poder, está agindo dentro dos limites constitucionais, tomando decisões de acordo com o interesse
público, justificando as suas razões de acordo com a Constituição Federal” (SALGADO, 2020)77.
Percebe-se durante esta pesquisa que, com grande frequência, os direitos fundamentais vêm
sendo relativizados nas decisões tomadas pelos presidentes do Tribunal de Justiça de São Paulo. Além
disso, as tomadas de decisões dos presidentes do Tribunal de São Paulo pacificaram o entendimento de
que deveriam suspender os efeitos das decisões que causassem embaraços ao adequado exercício das
funções da Administração, apontando a lesividade ao interesse público das decisões que implicavam
aportes financeiros sem a devida previsão orçamentária, os presidentes afastaram das unidades de
privação de liberdade superlotadas e/ou em condições insalubres as oportunidades de saneamento que
as decisões de primeira instância, questionadas pela pessoa política implicada, buscaram garantir
(CARDOSO, 2018).
Diante do que foi exposto, entende-se da relevância de realizar um enfrentamento a estas
estratégias, que permitem a manutenção de injustiças construídas historicamente e que facilmente
passam a ser naturalizadas.

Processo educacional como instrumento de desconstrução das estratégias que permitem a


seletividade penal

A proposta deste estudo é demonstrar que a educação pode ser uma possibilidade de caminhar
para a desconstrução da seletividade penal, através de modelos educacionais que possam atuar com o
objetivo de formar indivíduos críticos e de desconstruir o racismo estrutural. Sobre esse assunto, destaca
Almeida (2020, p.41) que:
O racismo pode ter a sua forma alterada pela ação ou omissão dos poderes institucionais
– Estado, escola etc. Que podem tanto modificar a atuação dos mecanismos
discriminatórios, como também estabelecer novos significados para a raça.

A Finlândia é um grande exemplo a ser observado, o país tinha uma economia de característica
agrária, sendo que surgem os primeiros quilômetros de rodovia em 1960. Ressalta-se que a Finlândia foi
transformada com um conjunto de políticas educacionais e sociais que criaram um dos mais célebres
modelos de excelência em educação pública do mundo. Sobre este assunto, destacam educadores
internacionais que estudam o paradoxal modelo finlandês, em busca da resposta milagrosa, e concluem
que a educação pública de alta qualidade não é o resultado apenas de políticas educacionais, mas
também de políticas sociais (LABORATÓRIO DE DEMOGRAFIA E ESTUDOS POPULACIONAIS, 2018).
Sobre a educação na Finlândia o site Tantas Folhas, (2021), trouxe o seguinte destaque:
A ideia de que o amplo acesso a uma educação de boa qualidade é profundamente
enraizado na justiça social e política é algo que os idealizadores do sistema educacional
finlandês compartilham com o pedagogo brasileiro Paulo Freire. (TANTAS FOLHAS, 2021)

77 SALGADO, Eneida Desiree. Informação verbal.

360
Outrossim, é que hoje a Finlândia tem inclusive modelos de prisões “abertas”, onde os próprios
presos ficam com as chaves das celas. No entanto, não foi sempre assim. Há décadas atrás, o país tinha
um dos maiores índices de encarceramento, quando nos anos de 1960 pesquisadores dos países
nórdicos iniciaram estudos,do quanto a punição de fato reduzia o número de crimes, chegando à
conclusão de que não reduz (GLOBAL VOICES, 2018).
Afirma-se que o processo educacional é instrumento de modificação, sustentação e apropriação
de determinados discursos. A educação pode servir como instrumento de acesso a conhecimentos, mas
também pode ser limitadora, quando determina o que se pode ou não pode acessar.
Destaca a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 3°, inciso IV, como objetivo fundamental,
quando expressa sobre a importância da promoção para o bem de todos, com a ausência de
preconceitos de raça, sexo, idade ou qualquer outro tipo de discriminação. Além disso, define como
responsabilidade do Estado garantir, através da Educação, igualdade de direitos para todos. Enquanto
portadores de singularidades, as mesmas devem ser levadas em consideração na construção do
currículo e na organização do ambiente escolar. De modo que, se não atentar-se a estas questões, será
muito difícil desenvolver uma educação antirracista (PORTAL GELEDÉS, 2019). Sobre este assunto,
destacam ainda Coelho e Gama (s/ano) que:
Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no
planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e
igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. O silêncio sobre o
racismo, o preconceito e a discriminação raciais nas diversas instituições educacionais
contribui para que as diferenças de fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas
como desigualdades naturais. Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros
como sinônimos de seres inferiores. O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só
impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes brilhantes nas
escolas brasileiras, tanto de alunos negros quanto de brancos, como também nos
embrutece ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos seres realmente livres
(SECAD, 2005, apud, COELHO E GAMA s/ano).

No dia 11 de agosto de 2021, o Dr. Rafael Oswaldo Machado Moura, membro do Ministério
Público do Paraná, que atua como Promotor de Justiça Entrância Final, Seção Judiciária 068, na
Comarca de Curitiba, na Promotoria CAOPPJ-de Proteção aos Direitos Humanos, declarou à autora do
presente estudo que a educação antirracista é urgente, necessária e inadiável no combate ao racismo.
Sendo dever da sociedade e do Poder público, através de práticas pedagógicas, caminhar no sentido da
desconstrução deste inconsciente coletivo que permite associar negros a práticas criminosas,
consequentemente como alvo do sistema de Justiça criminal, considerou o Promotor ainda não visualizar
outro caminho a ser seguido, a fim de resolver essas injustiças (MOURA, 2021)78.
A escola é espaço em que podem ser desconstruídos estereótipos, preconceitos e atitudes
discriminatórias, porque reúne instrumentos de caráter pedagógico que oportunizam esta possibilidade,
partindo de reflexões de profissionais que fazem parte do ambiente escolar. Este corpo escolar pode sim
trabalhar no sentido de eliminar as dificuldades que ocorrem às populações afrodescendentes, as quais
dificultam a vida e criam obstáculos no que se diz respeito à cidadania. Através da apresentação

78 Depoimento enviado por e-mail do Dr. Rafael Moura. Promotor no CAOP-Direitos Humanos no Paraná.11/08/2021.

361
afirmativa da História e da cultura dessas populações, sendo colocadas como possibilidade de
desconstrução do racismo estrutural (BRASIL ESCOLA, apud, ROCHA, 2008).

PALAVRAS-CHAVE: racismo; educação; estratégias; seletividade penal.

REFERÊNCIAS
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%C3%A7%C3%A3o+para+o+bem+de+todos%2C+sem+que+haja+preconceitos+de+ra%C3%A7a
%2C+sexo%2C+cor%2C+idade%2C+ou+qualquer+outra+forma+de+discrimina%C3%A7%C3%A3o
%2C+incumbindo+ao+Estado%2C+garantir+por+meio+da+Educa%C3%A7%C3%A3o
%2C+direitos+iguais+a+todos%2C+e+de+cada+um+de+forma+enquanto+cidad%C3%A3o
%2C+pessoa+e+profissional.+Sendo+que%2C+enquanto+portadores+de+singularidades
%2C+estas+devem+ser+observadas+na+forma%C3%A7%C3%A3o+do+curr
%C3%Adculo+e+na+organiza%C3%A7%C3%A3o+do+ambiente+escolar%2C+caso+contr%C3%A1rio
%2C+dificilmente+ser%C3%A1+poss%C3%Advel+colocar+em+pr%C3%A1tica+uma+educa
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9cd4ba147688c2dc1f8163b74c2a&eat=%5Bereid%3D"ac879cd4ba147688c2dc1f
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WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Tradução André Telles. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

364
ANÁLISE DOS PROJETOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS DAS ESCOLAS CLASSES DA
ESTRUTURAL: OBSERVAR A EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

Giovanna Viana Dias


Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade de Brasília (UnB) - Campus Darcy Ribeiro,
giovannaviana702@gmail.com

Introdução

A presente pesquisa teve como objetivo analisar e ponderar os Projetos Político-Pedagógicos


(PPP’s) de 2021 das escolas Classe 01 da Vila Estrutural (EC-01) e Classe 02 da Vila Estrutural (EC-02)
e analisar como o debate sobre a educação antirracista aparece (ou é contemplado) nos PPPs. De
acordo com os dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD/DF-2018), uma das
cidades com maior população de pessoas negras se encontra no Scia-Estrutural (76,6%). Por esse
motivo a região administrativa foi escolhida para a análise dos PPPs.
O estudo se baseia no artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
introduzido pela lei 11.645/08. As respostas obtidas evidenciaram que a educação antirracista é
trabalhada no PPP’s, porém não de uma forma abrangente e penetrante, em vários pontos é
generalizada. Dessa forma, é imprescindível que os PPP’s não sejam vistos somente como um
documento burocrático, todavia, como uma ferramenta na luta contra o racismo .

Metodologia

O trabalho é uma pesquisa qualitativa documental. De acordo com Giacon, Fontes e Grazzia
(2017), a análise documental é material investigativo que propicia o estudo do processo de evolução de
conceitos, conhecimentos, comportamentos e práticas.
A pesquisa teve como base o artigo número 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), introduzido pela lei 11.645/08, a qual torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-
brasileira e indígena no currículo das escolas públicas e particulares. Ademais, esse trabalho também se
baseia nos autores Cavalleiro (2001) e Silva (2005). Dessa maneira, de acordo com Araújo (2021), os
projetos político-pedagógicos analisados estão organizados em três partes: 1) marco situacional; 2)
marco conceitual; 3) marco operacional.

Resultados

Os projetos político-pedagógicos das Escolas Classe 01 da Vila Estrutural (EC-01) e 02 (EC-02)


de 2021, sob o aspecto das palavras-chaves como: “direitos humanos”; “identidade”; “diversidade”;
“cultura” “história afro-brasileira”; “discriminação ”; “racismo”, evidenciam que as instituições reconhecem
o papel fundamental da escola na formação do sujeito bem como a valorização do indivíduo, dessa

365
forma, deixam o ambiente agradável para as crianças serem o que são. Cavalleiro (2001) pontua “uma
educação antirracista prevê necessariamente um cotidiano escolar que respeite, não apenas em
discurso, porém também em pratica as diferenças raciais”.
À luz da lei 11.645/08 e da LDB, o PPP da escola (EC-01) menciona o Dia da Consciência Negra.
O PPP também traz um projeto com o título “Direito Humano e valorização do indivíduo (Semana dos
Valores)", que discute a temática racial entrelaçada ao debate sobre direitos humanos, porém não tem
muito detalhamento sobre como exatamente a escola pretende trabalhar. No caso da escola (EC-02), o
PPP tem implementado o projeto “Educação para as relações étnico-raciais”, o qual busca oportunizar a
leitura de 6 livros com temáticas afro-brasileiras e indígenas que serão trabalhados durante todo o
semestre com maior ênfase no mês de novembro em função do mês da Consciência Negra.
Ao estudar as relações étnico-raciais na educação, o aluno tem a oportunidade de se informar e
fortalecer a necessidade de reconhecer e prestigiar diferentes culturas. A literatura diversificada na
escola é importante para a formação social do aluno. Quando você trabalha diferentes culturas,
personagens e histórias em sala de aula, você abre a oportunidade do estudante se reconhecer, e estará
ajudando no processo de formação da identidade racial do aluno.
Autora Silva (2005) explica que o livro didático é uma das grandes ferramentas usadas pelos
professores para suprir as dificuldades pedagógicas, pois existem alunos que terão apenas acesso a
esses livros. Então é importante ter a desconstrução da discriminação pedagógica nesses materiais.
Dessa maneira, se o livro didático é a ferramenta mais usada pela a escola, a instituição deve ficar atenta
a quais conteúdos e abordagens estão presentes.
Desse modo, embora as escolas mencionem e tenham alguns projetos a respeito da educação
antirracista ainda é algo muito superficial, pois em um PPP não está clara a temática e no outro os livros
usados para desenvolver o tema não estão atualizados.

Conclusão

Em síntese, uma das finalidades da educação, de acordo com o artigo 2° da LDB (lei 9394/96), é:
“(...) o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.” (BRASIL,1996). Portanto, se a escola é também o lugar de formação de sujeitos, é
imprescindível um olhar atento sobre o porquê de as escolas trabalharem assuntos tão pertinentes de
forma rasa.

PALAVRAS-CHAVE: educação antirracista; projeto político-pedagógico; escola; racismo. LDB.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Jaciara Cristina Pereira de Souza de. Educação antirracista e projeto político pedagógico
escolar: um olhar para as escolas públicas de Ensino Fundamental da Cidade Estrutural/DF. 2021.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei federal n.9394/96
de 26 de dezembro de 1996

366
BRASIL. Parecer CNE/CP N. 03/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. 2003. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.
CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na Educação: repensando nossa escola. Ano: 2001.
Editora: Selo Negro.
DISTRITO FEDERAL Codeplan. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – PDAD. 2018.
DISTRITO FEDERAL. Projeto Político-pedagógico. Escola Classe N° 01 da Estrutural – DF. 2021.
DISTRITO FEDERAL. Projeto Político-pedagógico. Escola Classe N° 02 da Estrutural – DF. 2021.
GIACON, Fabiana P.; FONTES, Ketilin M.; GRAZZIA, Antonio R. Metodologia científica e gestão de
projetos (Série eixos). Editora Saraiva, 2017

367
ASPECTOS DA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL E DECOLONIZADORA NO MUSEU HISTÓRICO E
PEDAGÓGICO DE ARARAQUARA - SP

Breno de Oliveira Conde


Mestrando do Programa de Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - FCLAr- Unesp
Araraquara. Especialização em “África e suas diásporas” pela Unifesp -2022. breno.conde@unesp.br

O presente texto é parte integrante de uma pesquisa de mestrado em andamento, que busca
compreender os movimentos da memória/contramemória, pensamento colonial/decolonial em suas
dimensões políticas e de poder que envolvem o Museu Histórico e Pedagógico “Voluntários da Pátria" de
Araraquara - São Paulo e a relação com a educação étnico-racial. Para auxiliar no trabalho de análise
deste objeto, utilizar-se-á um referencial teórico que abarca a obra de Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva, em especial o texto “Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil” (2007), onde a autora
defende que a educação das relações étnico-raciais deve formar cidadãos participativos e
comprometidos com a equidade de direitos e uma agenda antiracista, conscientes da pluralidade étnica e
social brasileira.
Além disso, no que diz respeito à missão e ao papel educativo dos museus, utilizar-se-á o
trabalho de Mário Chagas, em especial o texto “Memória e poder: dois movimentos” (2002) onde o
sociólogo e museólogo analisa o surgimento dos museus modernos transformados em instituições
públicas que deveriam promover narrativas, histórias e novas memórias que seriam instrumento para a
afirmação da ordem burguesa e dos valores nacionais definidos pelos novos donos do poder. A memória
nos museus deveria promover de maneira pedagógica os símbolos da Nação em torno de um cidadão
disciplinado, patriótico e consciente da história nacional. O que nos leva a pensar que a memória no
museu nunca foi um fato natural, mas antes de tudo um ato político, construída socialmente a partir de
um recorte ou seleção executada por aqueles que detêm o poder. Em outras palavras, os museus são
instituições políticas que projetam ideias e estão longe de serem ingênuos ou neutros depósitos de
objetos.
O Museu Histórico e Pedagógico “Voluntários da Pátria" de Araraquara - São Paulo não seria um
caso isolado, de forma que em nossa análise corroboramos com a tese de que foi, desde o seu
surgimento, o espaço de institucionalização da memória por uma historiografia oficial e conservadora
(SIMÕES, 2018) que privilegiou os mitos fundadores da nação brasileira por meio de fatos históricos
belicosos e “heróicos” protagonizados pelas lideranças locais, militares ou imperiais. Ainda que as
representações da memória do MHPVP se relacionem com a herança do pensamento colonial, que é o
caso da maioria dos museus brasileiros surgidos no século XX (CHAGAS, 2017; SANTOS, 2004),
lançaremos questionamentos acerca das memórias e histórias negras que foram esquecidas ou
supostamente reconhecidas na coleção expográfica do referido museu.
Descreveremos as transformações motivadas pelos movimentos sociais da década de 1970 que
atingiram os pilares da museologia, dentre outras ciências humanas (ZUBARAN, 2014). Neste contexto
histórico-cultural, o papel educativo dos museus – que até então só celebravam a memória do poder – foi

368
contestado e, com a redemocratização do país na década de 1980, os museus no Brasil foram o alvo de
questionamentos sobre o modo de operação das memórias representadas e também das esquecidas
(CHAGAS, 2002). Neste momento histórico, uma ação nos chama a atenção nesta pesquisa: algumas
obras de “Mestre Jorge”, artista afrodiaspórico araraquarense, são inseridas no MHPVP em uma
exposição permanente denominada de arte popular e folclórica. Mestre Jorge é Jorge Brandão Coutinho,
nascido em Araraquara no ano de 1932. Em sua biografia, conta-se que tentou se inscrever na Escola de
Belas Artes, pois tinha aptidão ao desenho, mas teve a sua matrícula recusada com a justificativa oficial
de possuir insuficiente grau de escolaridade. O fato é que não havia alunos pretos no instituto e a
decisão negativa configura um caso – não isolado – de racismo na década de 1950. Artista autodidata,
Mestre Jorge dedicou-se posteriormente à escultura em madeira e produziu centenas de obras das quais
destacamos “O Coreto”, “O Forró”, “Pretos-velhos”, “A mulher amamentando”, “A dança indígena
antropofágica”, “A Umbigada”, “O Sapateiro”, “O ferreiro”, “O lenhador”, “Os retirantes”, “O indígena” e
“Movimento dos Sem Terra”, dentre muitas outras. Em todas as suas obras os personagens apresentam
traços da negritude e essa foi uma forma do artista registrar o seu tempo e a sua perspectiva,
eternizando os personagens da vida social e a história de homens e mulheres pretas através de seus
ofícios, lazeres e manifestações culturais.
Buscaremos compreender os sentidos despertados pelas obras de Mestre Jorge e se as
memórias e perspectivas afrodiaspóricas – até então silenciadas no museu – são suficientes para alterar
a missão tradicional do Museu Histórico e Pedagógico de Araraquara. Para responder essas questões,
utilizaremos a metodologia da História Oral e a entrevista com professores da rede pública municipal. A
partir das respostas dos entrevistados problematizaremos as questões sociais, educativas, patrimoniais e
étnico-raciais suscitadas pelas obras de Mestre Jorge e se uma nova rede de poder e memória – uma
espécie de contramemória (CHAGAS, 2017) – se constrói com a permanência das obras do artista
afrodiaspórico no museu.
Partimos do pressuposto que os museus brasileiros em sua relação com o poder mantiveram
estruturas simbólicas – por meio de expografias e coleções etnográficas – que naturalizam as
desigualdades sociais e étnico-raciais, de modo a enaltecer unicamente as contribuições da elite branca
e apagar ou ocultar a presença das populações indígenas e afrodiaspóricas em suas contribuições
materiais e tecnológicas, artísticas e culturais, de conhecimento e pensamentos. Deste modo a
sociedade plural brasileira não se encontra representada na maioria dos museus brasileiros. Em outras
palavras, o museu é um lugar de memória excludente e racista, de violência epistemológica. No entanto,
o silêncio sobre as experiências e os saberes negros e indígenas pode ser rompido se houver uma
educação patrimonial com a perspectiva decolonizadora nos museus, que não represente o “outro” como
o “exótico” e “diferente”, mas como o produtor e sujeito de suas próprias representações (ZUBARAN,
2014), com direito à memória, sendo reconhecidos como patrimônios culturais da nação heterogênea
brasileira. Temos como hipótese que as obras e a biografia de Mestre Jorge no MHPVP possuem as
potencialidades pedagógicas de representar as memórias e histórias negras e que, se contextualizadas e
difundidas entre os alunos, podem se tornar uma referência preta da cidade de Araraquara.

369
PALAVRAS-CHAVE: educação; decolonidade; identidade.

REFERÊNCIAS
CHAGAS, Mário. Memória e poder: dois movimentos. Cadernos de sociomuseologia, v. 19, n. 19, 2002.
CHAGAS, Mário. Museus e Patrimônios: por uma poética e uma política decolonial. Revista do
patrimônio histórico e artístico nacional, v. 35, p. 121-137, 2017.
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SIMÕES, Débora de Souza. Memórias marginalizadas: O Caso da Coleção de Arte Popular no Museu
Histórico e Pedagógico “Voluntários da Pátria”. Tese (Mestrado em Ciências Sociais) - Faculdade de
Ciências e Letras- Campus Araraquara, Universidade Estadual Paulista, 2018.
ZUBARAN, Maria Angélica; MACHADO, Lisandra Maria Rodrigues. Que memórias e histórias negras se
ensinam nos museus? Do esquecimento ao reconhecimento. Linguagens, Educação e Sociedade, n. 30,
p. 4-20, 2014.

370
MEDIAÇÃO DA LEITURA ANTIRRACISTA EM BIBLIOTECAS ESCOLARES

Adriana Costa de Miranda


Doutora em Educação pela UCB, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal.

Viviane Lopes Barros Villodres Dias


Especialista em Educação em Língua Portuguesa pela UnB, professora da rede pública de ensino do Distrito
Federal.

Introdução

Neste resumo expandido apresenta-se o trabalho educacional de mediação cultural para a


promoção de uma educação antirracista realizado pelas professoras que atuam nas bibliotecas do
Centro de Ensino Fundamental 04 de Brasília (CEF 04 de Brasília) e do Centro de Ensino Fundamental
Athos Bulcão (CEFAB), escolas que atendem estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental na Asa
Sul e no Cruzeiro Novo, respectivamente.
Tal trabalho se apoia no item 4.7 do quarto objetivo do milênio da Organização das Nações
Unidas (PNUD, 2015), Educação de Qualidade, que orienta que, até 2030, se possa
garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessários para
promover [...] direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e
não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da
cultura para o desenvolvimento sustentável.

Ele também se apoia no Currículo em Movimento da Educação Básica do Distrito Federal (GDF,
2018, p. 9) que solicita “promover as aprendizagens mediadas pelo pleno domínio da leitura, da escrita e
do cálculo e a formação de atitudes e valores, permitindo vivências de diversos letramentos”.
Nesse sentido, é um trabalho que busca, entre outros, não só enfrentar o racismo nas escolas,
mas, sobretudo, prevenir tal violência por meio da formação cidadã dos estudantes, da valorização da
diversidade humana e cultural.

Mediação da leitura nas bibliotecas

Nas bibliotecas do CEFAB e do CEF 04 os espaços foram organizados visando ao acolhimento


físico e humano dos estudantes. Naqueles espaços, o foco principal é colaborar com a formação leitora
dos estudantes, pois, além de ser prazerosa, a leitura é importante para o desenvolvimento cognitivo
humano, uma vez que: amplia o conhecimento, aprimora o vocabulário, ajuda na construção textual,
dinamiza o raciocínio, estimula o senso crítico, favorece a interpretação, instiga a imaginação e a
criatividade.
Segundo Rebelo (2018, p. 103), para o leitor, a literatura é “uma forma simbólica de experiência
humana”, sendo que a leitura literária associada a objetos culturais contempla linguagens distintas que
colaboram com o processo de ensino-aprendizagem, com a socialização dos estudantes e com a
elaboração de suas questões individuais, pois “os objetos culturais possuem uma função educativa e

371
terapêutica na medida em que são destinados à constituição psíquica do sujeito e seus impasses”
(BRASIL et al., 2015, p. 205).
Cientes desses benefícios cognitivos e terapêuticos da leitura literária e dos objetos culturais para
os estudantes, bem como para a sua formação cidadã, as professoras mediadoras da leitura nas
bibliotecas em foco, entre outros, realizam exposições temáticas como o Abril Indígena e o novembro da
Consciência Negra.

Organização do trabalho

O trabalho de mediação da leitura nas bibliotecas do CEF 04 de Brasília e do CEFAB foi realizado
virtualmente de março de 2020 até julho de 2021, período em que as aulas presenciais foram suspensas
na rede pública de ensino do Distrito Federal em razão da pandemia do coronavírus, e continuou sendo
realizado desde 2021 até o momento presencialmente.
Em 2020 e 2021, as professoras autoras desse resumo trabalharam juntas no CEF 04 de Brasília.
Em 2022, a primeira autora foi remanejada para o CEFAB, mas elas continuaram a trabalhar juntas por
meio de uma parceria literária feita e apoiada pelas gestoras das escolas citadas.
Virtualmente o trabalho educacional foi desenvolvido na Sala de Leitura Virtual Cora Coralina do
CEF 04 de Brasília e voltado para a promoção da educação antirracista ao longo do ano letivo de 2020 e
no primeiro semestre de 2021.
Esse trabalho foi realizado por meio da organização da informação, de publicações de
atividades e da realização de clubes de leitura onde questões étnico-raciais puderam ser
abordadas. [...] Assim, oportunizou-se aos estudantes a reflexão e o desenvolvimento
crítico em relação à sociedade racista em que vivemos (MIRANDA; DIAS, 2021, p. 103) .

Presencialmente, foi realizada exposição no mês de novembro de 2021 sobre a Consciência


Negra e, no período letivo de 2022, as professoras atuantes nas duas bibliotecas realizaram publicações
nos perfis das redes sociais (Instagram) de suas respectivas unidades escolares sobre o Abril Indígena.
Produziram uma série de “posts” relativos a alguns escritores indígenas (biografia resumida), além de
divulgarem as atividades realizadas pelos professores atuantes nas salas de aula.
Ainda sobre o Abril Indígena, a Biblioteca do CEFAB realizou uma exposição com o material da
Mostra 'Yawalapiti – Entre tempos' do fotógrafo francês Olivier Boëls, exibiu vídeos e fez uma exposição
de literatura indígena em seu espaço. A biblioteca do CEF 04 de Brasília confeccionou um mural sobre o
tema, além de reproduzir vídeos em seu espaço sobre os autores retratados na rede social Instagram da
escola.
Sobre as atividades do Mês da Consciência Negra para este período letivo de 2022, as duas
bibliotecas decidiram realizar planejamentos semelhantes como uma exposição com livros de autoras e
autores negros, fomentando assim a curiosidade e a reflexão nos estudantes, que terão acesso ao
acervo que foi cuidadosamente curado pelas professoras atuantes nas respectivas bibliotecas. Essa
exposição contará com uma abertura especial, com atividades desenvolvidas pelos próprios estudantes.
Além das exposições de seu acervo, as bibliotecas também pretendem exibir vídeos e receber os
estudantes para dialogar sobre os objetos culturais apresentados.

372
Resultados e conclusão

Este trabalho mostra que a promoção de uma educação antirracista pode ser trabalhada,
construída por meio de atividades educacionais temáticas organizadas em bibliotecas escolares a partir
de metodologias educacionais que propiciem a reflexão-ação dos estudantes. Mostra ainda e
fundamentalmente a importância da constituição de espaços de fala para estudantes, meninos e
meninas, nas escolas para que se possa desconstruir uma cultura de violência e construir uma cultura de
direitos humanos onde a igualdade entre os estudantes e a valorização da diversidade étnico-racial seja
uma realidade nos contextos sociais onde eles vivem e atuam.

PALAVRAS-CHAVE: educação antirracista; mediação da leitura; biblioteca escolar.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Katia Cristina Tarouquella Rodrigues; ALMEIDA, Sandra Francesca Conte de; AMPARO, Deise
Matos do e PEREIRA, Adriana Matos Rodrigues. Adolescência, violência e objetos culturais: uma
intervenção entre o educativo e o terapêutico no espaço escolar. Estilos clin. [online]. 2015, vol.20, n.2,
pp. 205-225. ISSN 1415-7128. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i2p205-225.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Currículo em movimento da educação básica - Ensino
Fundamental. Anos Iniciais - Anos finais. Brasília: Secretaria de Educação, 2018. 2a Edição.
MIRANDA, Adriana Costa de e DIAS, Viviane Lopes Barros Villodres. A sala de leitura escolar como
espaço de mediação para a promoção de uma educação antirracista (páginas 103 a 112) in Cadernos
RCC#24, volume 8, número 1, março 2021.
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Cartilha sobre os objetivos de
desenvolvimento sustentável. Brasília: PNUD, 2015.
REBELO, Teresa. Dispositivos de mediação cultural nos espaços educativos e socioculturais com
adolescentes vulneráveis (páginas 99 a 114) in Proteção à infância e à adolescência: intervenções
clínicas, educativas e socioculturais / Katia Tarouquella Brasil, Sandra Francesca Conte de Almeida,
Didier Drieu, Organizadores -- Brasília: Cátedra Unesco de Juventude, Educação e Sociedade ;
Universidade Católica de Brasília, 2018.

373
A COLEÇÃO “HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA” E A DESCOLONIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Marcelo Felício Martins Pinto


Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professor de História da educação
básica pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. marcelofeliciomartins@hotmail.com

Rosana Areal de Carvalho


Professora associada da Universidade Federal de Ouro Preto, atuando na Graduação e na Pós-graduação em
Educação. rosanaareal@ufop.edu.br

Desde o fim da década de 1940, a historiografia africana vem se renovando. Os historiadores


africanos desenvolveram categorias específicas de análise para investigar a história do continente,
contribuindo de forma ostensiva para a constituição de uma ótica autóctone. Desejavam, assim, romper
com as perspectivas eurocêntricas e racistas que, em grande parte, estigmatizavam o continente
africano, considerando-o primitivo, a-histórico. Importante lembrarmos que essas transformações
historiográficas se desenvolviam concomitantemente aos processos de independência das nações
africanas, que se libertavam do jugo europeu.
Nesse contexto, nasceu a coleção intitulada “História Geral da África” (HGA), construída ao longo
da segunda metade do século XX, formada por oito volumes extensos. Financiada pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a HGA contou com as contribuições de
centenas de especialistas – historiadores, arqueólogos, antropólogos, linguistas, africanos e não-
africanos –, e possuiu o intuito de constituir-se na condição de uma obra de referência sobre o tema,
produzindo e sistematizando um conhecimento científico sobre a África. É necessário compreendermos a
importância desta coleção para a percepção do africano como sujeito de sua própria história,
contribuindo para uma espécie de “tomada de consciência”.
Traduzida para o português em 2010 por especialistas da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCAR), a “História Geral da África” se constitui como um elemento importante para subsidiar o
debate e a implementação da Lei 10.639/2003, que trata sobre o ensino de História da África e da cultura
afro-brasileira na educação básica. Se antes o grande problema enfrentado pelos professores era o
desconhecimento sobre a temática, a partir da publicação e da maior divulgação da HGA em língua
portuguesa, o conhecimento histórico sobre o continente africano se tornou mais acessível. No entanto, a
extensão e a complexidade da coleção poderiam ser consideradas obstáculos, o que impulsionou a
formação das “Sínteses da Coleção História Geral da África” (2013), também pela UFSCAR, que
condensam as principais discussões presentes na obra original. Outro produto importante a ser
mencionado desse projeto é a “História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na Educação Infantil” (2014) ,
manual direcionado aos professores da Educação Infantil.
Assim, neste trabalho, temos o objetivo de compreender os principais elementos teórico-
metodológicos presentes na coleção “História Geral da África” (2010), analisando as perspectivas
historiográficas africanas que fundamentaram a construção da obra, como forma de apreender aqueles
movimentos diretamente ligados à História e à Historiografia da Educação. Ademais, almejamos entender
o contexto no qual aconteceram as transformações na historiografia africana, sobretudo no que diz

374
respeito à escrita da HGA, ao mesmo tempo em que visamos refletir sobre o alcance dessa coleção no
Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Coleção História Geral da África; educação; descolonização; ensino antirracista.

FONTES
BRASIL; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil.
Brasília: MEC/SECADI, UFSCar, 2014. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000227009. Acesso em: 20 jul. 2020.
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África:
Metodologia e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/. Acesso em: 10 jul. 2019.
KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África: Metodologia
e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/. Acesso em: 10 jul. 2019.
NEAB/UFSCAR. Nota dos tradutores. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África: Metodologia
e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/. Acesso em: 10 jul. 2019.
OGOT, Bethwell Allan. Apresentação do Projeto. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África:
Metodologia e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/. Acesso em: 10 jul. 2019.
SILVÉRIO, Valter Roberto. Apresentação. In: SILVÉRIO, Valter Roberto (org.). Síntese da Coleção
História Geral da África: Pré-História ao século XVI. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCAR, 2013. Disponível
em: https://unesco.bibliomondo.com/ark:/48223/pf0000227007?posInSet=4&queryId=N-
3f2fa233-444b-4e87-a5c4-0277499c4be4 . Acesso em: 6 ago. 2019.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral da África
(UNESCO). 2012. 208 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09012013-165600/pt-br.php . Acesso em: 10 de
jun. 2019.

375
FONSECA, Marcus Vinícius. A população negra no ensino e na pesquisa em história da educação no
Brasil. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (orgs.). A História da
Educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016.
GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem
Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-
content/uploads/2012/11/curr%C3%ADculo-e-rela%C3%A7%C3%B5es-raciais-nilma-lino-gomes.pdf.
Acesso em: 20 out. 2019.
GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação &
Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744, jul./ set. 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302012000300005&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso
em: 20 ago. 2020.
MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde,
Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.
PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. O ensino e a pesquisa sobre a África no Brasil e a Lei 10.639. In:
Los estudios afroamericanos y africanos en América Latina: herencia, presencia y visiones del outro.
Buenos Aires: CLACSO, 2008. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/coediciones/20100823034037/15nun.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa; e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Edições Almedina, 2009.
SOARES, Felipe Paiva. Polifonia conceitual: a resistência na História Geral da África (UNESCO). 2014.
170 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. Disponível
em: https://appdesenv.uff.br/riuff/handle/1/565. Acesso em: 12 nov. 2019.

376
A FORMAÇÃO INICIAL: ESPAÇO-TEMPO PARA O LETRAMENTO RACIAL

Andreia dos Santos Gomes Vieira


Professora de Educação Infantil (SEEDF), Doutoranda em Educação (UnB), Mestra em Educação (UnB).
Especialista em Gestão Educacional (UnB). Especialista em Docência na Educação Infantil (UnB). Pós-graduanda
em Políticas Públicas, Infância, Juventude e Diversidade (UnB). Pedagoga (JK) .

Este escrito constitui um recorte do trabalho realizado na disciplina Políticas Socioeducativas na


Especialização em Políticas Públicas, Infância, Juventude e Diversidade - UNB. Seu objetivo é refletir
sobre a necessidade de que a disciplina Educação para as relações étnico-raciais torne-se obrigatória
nos cursos de Pedagogia, como ação afirmativa adotada pelo Estado, visando a garantia de direitos das
crianças.
A temática da ERER, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (2013), visa construir
relações raciais e sociais sadias, suscitar aprendizagens entre brancos e negros para a construção de
uma sociedade justa. O documento chama atenção para o papel preponderante de professoras e
professores no conjunto de ações que visam “desfazer mentalidade racista e discriminadora secular,
superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais, desalienando processos
pedagógicos” (BRASIL, 2013, p. 501). É preciso entender, desde muito cedo, como a imposição social e
cultural eurocêntrica naturalizada em nosso país moldou, segregou, impactou e ainda impacta as
relações em nossa sociedade e reverbera no microcosmo da escola.
Pesquisas sobre a temática racial na Educação Infantil, como a de Cavalheiro (2000) e outras
mais como as de Oliveira (2017), Santos (2018) e Rego (2019), expõem situações oriundas da relação
professor(a)-criança, chamando atenção para a necessidade de ampliação de conhecimentos que
balizem efetivamente a ação docente.
Corroborando os estudos, entendemos que a falta de letramento racial, tanto para a ação
pedagógica em prol da ERER quanto para a percepção e intervenção em casos de discriminação e
racismo no cotidiano escolar, pode contribuir para a manutenção de práticas discriminatórias. Isso nos
instiga a considerar a importância do estudo da ERER na formação inicial e argumentar em favor de
torná-la disciplina obrigatória no curso de Pedagogia, como política de afirmação na construção de uma
educação antirracista.
O artigo 26-A da LDB, por meio da Lei nº 10.639/2003, declara que nos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira. Consideramos que a ampliação da obrigatoriedade para o curso de Pedagogia poderia
ser uma ação afirmativa viável, uma vez que a criança que inicia seu processo escolar na creche tem um
percurso de cerca de 10 anos de escolarização com professoras e professores pedagogos.
É notório que o trabalho pelo fim das desigualdades sociais e raciais não é exclusivo das
unidades escolares, porém a escola tem parcela considerável na formação dos indivíduos. Os
investimentos na escola e na qualidade da formação docente e das crianças podem contribuir para
ampliar possibilidades pessoais e sociais e também para a superação de vulnerabilidades às quais as
crianças estão expostas, devendo ser incentivados já na primeira etapa da educação básica.

377
A escola das infâncias é um dos primeiros espaços coletivos em que as crianças se relacionam
com outros adultos e crianças, ampliando e intensificando suas relações sociais e culturais. Tomar
consciência das diferenças entre as pessoas é algo que as crianças já percebem na pré-escola, todavia
a questão em voga deve ser problematizada a partir dos significados destas diferenças nas relações que
começam a ser estabelecidas entre as crianças e os adultos e as crianças e seus pares, como elucida
Cavalleiro (2000).
Em uma sociedade historicamente construída em meio a relações étnico-raciais baseadas em
preconceitos, desigualdades e estereótipos depreciativos em relação à população negra e
supervalorização de superioridade dos brancos, o “silêncio do professor, no que se refere à diversidade
ética e as suas diferenças, facilita o desenvolvimento do preconceito e a ocorrência de discriminação no
espaço escolar.” (CAVALLEIRO, 2000, p. 13).
Ao questionar se a educação, enquanto processo de humanização, tem sido edificante, Gomes
(2017) aponta para as diferentes formas de existir no mundo e para a necessidade de se educar para a
diversidade mesmo em uma sociedade marcada pelo colonialismo e outras formas de opressão.
Projetos, currículo e políticas educacionais precisam reconhecer conhecimentos e saberes construídos
pelos grupos não hegemônicos, vislumbrando a educação como um projeto emancipador possível. Para
tanto, aponta a autora, é preciso uma mudança radical, avançando em um pensamento pedagógico
como um permanente confronto contra-hegemônico, em que se incorporam múltiplas dimensões
formadoras e conhecimento dos diferentes agentes sociais em prol de uma pedagogia da diversidade.
As razões para a incorporação do racismo institucional são complexas, porém há de se
vislumbrar mudanças nas condições sociais para a população negra a partir do investimento nas
instituições e na produção de saberes que se desenvolvam em uma perspectiva crítica e que se
transformem em práticas. A formação sólida e ampla é fundamental para que professores e professoras
lidem com as questões étnico-raciais que emergem no cotidiano, criando estratégias educativas para
reeducá-las, como proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (2013), como, também, pode se
configurar em uma possibilidade para que o docente ou a docente se torne agente formador em seu
espaço de atuação profissional, compartilhando e suscitando em seus pares a necessidade do trabalho
para a ERER em numa perspectiva de formação continuada.
Compreendemos que a garantia do direito à educação perpassa pela elaboração e execução de
políticas públicas com o objetivo de promover atendimento educacional de qualidade, assim não
podemos desconsiderar a questão racial, que é um componente importante no processo da constituição
de identidade das crianças. É tardia a necessidade de desaprender questões postas e naturalizadas em
nossa sociedade e ressignificar as relações, desmistificando argumentos arraigados historicamente,
investindo e fortalecendo as práticas educativas por meio da formação docente.
Acreditamos que é competência da escola das infâncias discutir e construir conhecimento crítico
sobre temáticas que fazem parte do complexo processo de formação humana. Nossa defesa é que a
formação inicial de professoras e professores se torne um espaço-tempo para o letramento racial.

PALAVRAS-CHAVE: educação para as relações étnico-raciais; formação docente;. educação Infantil.

378
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". BRASIL. Ministério da Educação.
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação. Secretaria de
Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e
discriminação na Educação Infantil. São Paulo: Contexto, 2000.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
OLIVEIRA, Waldete Tristão Farias. Diversidade étnico-racial no currículo da educação infantil: o estudo
das práticas educativas de uma EMEI da cidade de São Paulo. Tese (Doutorado) - Universidade de São
Paulo, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. 2017.
REGO, Thabyta Lopes. Relações étnico-raciais na educação infantil na RME/Goiânia: das políticas
públicas educacionais às concepções e relatos docentes. 2019. 231 f. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.
SANTOS, Aretusa. Educação das relações étnico-raciais na creche: o espaço-ambiente em foco. 2018.
232 f. Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

379
PRETAS ACADÊMICAS: TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS NO PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Viviane Oliveira de Jesus


Mestranda em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB).
Coordenadora Pedagógica da rede pública no município de Dias D’Ávila-Bahia, membro do grupo de pesquisa
Educação e Desigualdades. vivianneoj@yahoo.com.br

A escolha da temática que pretende ser estudada nesta pesquisa, que se encontra em
andamento, nasce ao perceber que no campo da educação, na pós-graduação, existem produções sobre
raça e gênero, contudo, estudos que interseccionam raça e gênero, embora sejam muito necessários,
ainda são incipientes. Barreto (2015, p. 42) destacou que “na literatura sobre desigualdade racial e
políticas de ação afirmativa no ensino superior, poucos estudos têm tratado das disparidades entre
negros e brancos, homens e mulheres”. O objeto da pesquisa é a trajetória das mulheres negras no
mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB, tendo em vista que a presença de estudantes
negras na academia é pequena comparada à quantidade de mulheres brancas, retrato das injustiças e
desigualdades existentes na sociedade em que as mulheres negras fazem parte de dados estatísticos
que representam a maioria das que não chegam ao ápice, nos resultados de todas as áreas sociais,
sejam boas condições de saúde, moradia, emprego e educação.
Diante do contexto relatado, e por existir uma carência nos estudos sobre mulheres negras na
pós-graduação, a pesquisa se volta para o seguinte questionamento: Como se deu a trajetória de
mulheres negras para o ingresso e durante a realização do mestrado em Educação do Programa de Pós-
Graduação Educação e Contemporaneidade da UNEB?
Do ponto de vista metodológico com base nos objetivos levantados, a pesquisa será conduzida
através de uma abordagem autobiográfica que, segundo Amado e Ferreira (2014, p. 169): “Os estudos
(auto)biográficos consistem num tipo de investigação que visa captar, através de um relato ou narrativa,
a interpretação que determinada pessoa faz do seu percurso de vida, com a respectiva diversidade de
experiências.”
As sujeitas da pesquisa serão as discentes mulheres negras, pedagogas e que ingressaram no
período de 2001 a 2021 na linha Processos civilizatórios: Educação, memória e pluralidade cultural no
mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade da UNEB. A
partir do levantamento dessas informações, o método a ser utilizado será a escrevivência. “A
escrevivência das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla
condição, que a sociedade teima em querer inferiorizar, mulher e negra.” (EVARISTO; 2005, p 6).
Ser mulher e negra no Brasil é lidar diariamente com o racismo, porque o fato de algumas
pessoas verem o negro e em especial aqueles que vivem na Bahia como preguiçosos e não ver que a
falta de oportunidades é o que leva a maioria não estar em profissões de destaques como no espaço
acadêmico, e isto é uma manifestação de racismo estrutural que de acordo com Almeida (2019), trata-se
de um componente econômico e político da sociedade, isto é, uma manifestação da social reproduzida
através das desigualdades da sociedade que afeta aos negros. “O racismo é um fenômeno presente em

380
diversas sociedades contemporâneas, latente na cultura, nas instituições e no cotidiano das relações
entre seres humanos.” (MUNANGA, 2017, p. 33). Pensar num país em que a maioria da população não
está refletida em espaços de poder é evidenciar como o racismo está impregnado nesta sociedade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo. Editora Pólen Livros, 2019. AMADO, João. Manual de
Investigação Qualitativa em Educação 3ª edição. Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra
University Press, 2017.
BARRETO, Paula Cristina da Silva. Gênero, raça, desigualdades e políticas de ação afirmativa no ensino
superior. Rev. Bras. Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 39-64, 2015.
EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: Uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza
Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane, (orgs). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora.
João Pessoa: Ed. Idéia, 2005.
MUNANGA, Kabengele. As ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, Noemi Moritz; ABUD,
Cristiane Curi; SILVA, Maria Lúcia (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise.
1ª. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2017, p. 33-44.
SILVA, Petronília. Beatriz Gonçalves. “Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas: situando-nos
enquanto mulheres negras”. Cad. Cedes, v.19, n. 45, p.7-23, 1998. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ccedes/a/G65THBDPMpVZpxsZMTw5H6K/abstract/?lang=pt. Acesso em: 18 jun.
2020.
Universidade do Estado da Bahia. Conselho Universitário. RESOLUÇÃO N.º 196/2002, de 18 de julho de
2002. Estabelece e aprova o sistema de quotas para população afrodescendente, oriunda de escolas
públicas, no preenchimento de vagas relativas aos cursos de graduação e pós- graduação e dá outras
providências. Salvador: Conselho Universitário, 2002. Disponível em: https://portal.uneb.br/proaf/wp-
content/uploads/sites/65/2019/03/Resolu%C3%A7%C3%A3o-n_-196_2002-_COTAS-UNEB.pdf . Acesso
em 08 jun. 2021.

381
NOTAS SOBRE A CAPOEIRA (AFROBRASILIDADE E QUESTÕES RACIAIS) EM
TEXTOS/DOCUMENTOS CURRICULARES OFICIAIS (1998-2017)

Giulia Cristina Schroder Bernardo

Resumo

Este texto apresenta os resultados de uma investigação bibliográfica e documental, que incursiona pela
apreensão das concepções de Capoeira presentes nos textos/documentos curriculares nacionais
prescritos para as etapas dos ensinos fundamental e médio no período de 1998 a 2017. Para as análises
pretendidas, estamos ancoradas nas perspectivas críticas do currículo além dos estudos decoloniais e
relações étnico-raciais na educação. Nosso objetivo reside, de um lado, na contribuição para revisões
necessárias, da sociedade brasileira ocidental escolarizada, das formas de fazer e pensar a educação, o
currículo e suas relações com a cultura e, de outro, para além de para defender a presença da Capoeira
no currículo da educação básica, recuperar alguns dos sentidos presentes na sua inclusão no currículo
nacional, a fim de compreender os possíveis porquês, “comos” e implicações desse fato.

Neste estudo, refletimos sobre as mentalidades predatórias que nos constituem enquanto
humanidade e que nos trouxeram até o limiar do colapso paradigmático e civilizatório que estamos
enfrentando, arriscando uma tradução de expressões da tradição oral de matriz africana para o âmbito
da eurocêntrica cultura escrita dos ambientes acadêmicos banhados no racismo institucional e na
violência epistêmica.
Para fazer a crítica a um olhar pretensamente ingênuo, a-histórico, reducionista e biologizante da
Capoeira, pretendemos discuti-la no território curricular, entendendo o currículo como objeto pautado no
embate entre as forças antagônicas interessadas no projeto de (escolarização da) sociedade, o qual é
atravessado por uma pretensa neutralidade que corrobora a suposta universalidade da cosmovisão
brancocêntrica.
Objetivamos contribuir para revisões necessárias, da sociedade brasileira ocidental escolarizada,
das formas de fazer e pensar a educação, o currículo e suas relações com a cultura. A par disso, a
perspectiva de humanização, capaz de desconstruir a mentalidade necropolítica, o racismo, e a
colonialidade do saber e do poder.
Será a Capoeira um jogo, uma dança ou uma luta? Será esporte, arte, folclore, cultura?
Educação? Como defini-la? Eis aí a grande questão cuja resposta dificilmente será encontrada. Capoeira
é uma força cultural dinâmica, “camaleônica”, ou como disse Mestre Pastinha, um universo cujo fim é
inconcebível ao mais sábio dos mestres.
Para Almir das Areias (1983, p. 121) contempla “a história de um povo, de uma raça, de uma
cultura, e acima de tudo a expressão e manifestação de sensações e sentimentos do espírito humano.

382
Por isso, e porque os elementos que compõem a capoeira são tantos, é que ela será sempre uma fonte
inesgotável de descobertas."
Desde a escravidão, dos movimentos de quilombos, das guerras étnicas, dos jogos de
sobrevivência no contexto da marginalização do povo negro e das ditaduras cívico-militares, até a
presente mundialização da Capoeira, frequentemente se encontra, no esforço pela sua definição, um
grande desafio,
[...] na época da escravidão, era ela uma das armas para o escravo livrar-se do
sofrimento. Após a abolição, uma das armas para os negros e a população marginalizada
conseguirem seu sustento. Quando foi liberada pelo governo de Getúlio Vargas, passou a
ser uma das formas de expressão e manifestação do povo. Após sua aceitação e
instituição pelo sistema, uma profissão para o capoeirista. (AREIAS, 1983 p. 121- 122).

Este foco no ensino e na aprendizagem da capoeira, nos limites de nossa análise, concretiza o
interesse nos textos/documentos curriculares, de um lado, como retrato de uma espécie de debate entre
capoeira-educação, assentada nas bases filosóficas africanas perpassadas pela dimensão política, em
sua abrangência conceitual, por meio de uma concepção emancipatória, antirracista e contra-
hegemônica. De outro, por compreensões de ensino e de aprendizagem, tornados dispositivos teóricos e
metodológicos próprios de uma concepção de Capoeira, em sua dimensão integral, organizada em
projetos de formação identitária e desenvolvimento humano.
Ambos, solicitando uma adaptação da prática aos diversos, diferentes e desiguais públicos e
faixas etárias, que por meio da Capoeira acessam a história intercultural das culturas negras e latinas no
Brasil em tensão colonial diaspórica, para que tenham acesso às possibilidades de auto-libertação das
novas amarras do imaginário social, da complexificada subalternização, e das veladas
escravidões/servidões contemporâneas.
A Capoeira, apreendida no quadro de resistência cultural, decorrente da diáspora africana no
Brasil, constrói-se como dinâmica educativa complexa e plural, ao englobar a dimensão ritualística a
partir da circularidade, da corporalidade, da oralidade e da ancestralidade. Tais processos encontram-se
imaginariamente aproximados da vivência, na aprendizagem comunitária.
No tocante à educação, a partir das leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, tornou-se obrigatório o
ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nas escolas públicas do país. Enquanto o
“giro epistêmico” não ocorre na estrutura disciplinar das escolas, a prática da Capoeira nelas já começa a
se inserir historicamente, por meio da política educacional. Como tem sido pensada a implementação da
Capoeira nas escolas e como esta tem sido traduzida para os documentos curriculares nacionais? Que
concepções de Capoeira se expressam nessas leituras e quais as implicações disso para seu
entendimento?
Nos debruçamos sobre os textos/documentos curriculares, partindo da hipótese de que a
reinterpretação e a reescrita de narrativas sobre a Capoeira e os povos que a praticam se dão como
tentativa de resposta às discussões das relações étnico-raciais, mas, sem o alcance do debate do
racismo institucional.
Foram analisados, qualitativamente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), as Diretrizes
Curriculares Nacionais (2013) e a Base Nacional Comum Curricular (2017), aqui tomados como
dispositivos centrados no poder e no controle, cujas ações (discursos) interferem na disposição das

383
relações sociais, prescrevendo, ordenando, normalizando as formas e os conteúdos de como essas
relações devem ocorrer, ou serem estabelecidas e/ou mantidas.
Com isto, de um lado, são interpretados como objetos atuantes na manutenção da hegemonia
eurocentrada dos saberes legitimados historicamente pela colonialidade do poder e do saber. De outro,
imersos em críticas acerca da ausência dos fundamentos oriundos dos fluxos diaspóricos de resistência
contra-hegemônica, que serviriam para interpretar as manifestações socioculturais e geopolíticas, que
instauram uma lógica antagônica ao paradigma da modernidade colonial.
Tomamos o conjunto de textos/documentos curriculares já informados para tentarmos comprovar,
ou refutar, nossa hipótese. Nos PCN, a Capoeira, é encerrada nos limites da genérica “cultura corporal”,
inserida na área da educação física, na categoria esporte, na subcategoria luta, aproximada da dimensão
da dança e da manifestação popular.
Nos Parâmetros de Arte, História e Geografia, e de Pluralidade Cultural, curiosamente, não há
sequer uma menção à palavra Capoeira. Já nos PCN de Educação Física há doze menções, das quais
apenas uma refere-se a Capoeira propriamente como uma das “lutas” presentes no componente
curricular de educação física.
Já nas Diretrizes Curriculares Nacionais há apenas duas menções à palavra Capoeira, ambas
nas Diretrizes para a Educação Quilombola, representando o raro momento no qual a Capoeira é
localizada no âmbito da herança africana desenvolvida nos espaços de resistência à escravatura, mas
não sendo apresentada na forma de prescrição, ou seja, como componente curricular. Nota-se que o
termo Capoeira está ausente nas Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
No texto da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio não há sequer uma menção à
palavra Capoeira em todo o texto e, no Ensino Fundamental, é genericamente incluída na definição de
arte marcial.
A estrutura disciplinar do currículo nacional incapacita a contemplação da multidimensionalidade
da Capoeira, esvaziando seu significado independentemente das disciplinas nas quais ela esteja
inserida. Encontra-se encerrada nos limites da linguagem da “educação física”, delimitada no âmbito do
“esporte”, e recortada na categoria “luta”, que na realidade são apenas um de seus aspectos.
Por que motivos ocultar e/ou negar os fundamentos históricos, políticos, filosóficos, linguísticos,
artísticos e epistemológicos desta prática cultural, considerando que, ainda, estamos sob o jugo das
hegemonias que sustentam as relações contemporâneas de colonização do imaginário social e a
manutenção das relações de produção e reprodução da sociedade de classes racializada?

PALAVRAS-CHAVE: capoeira; currículo; relações étnico-raciais.

REFERÊNCIAS
AREIAS, A. das. O que é Capoeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

384
DECOLONIALIDADE, DIDÁTICA DA HISTÓRIA E HISTÓRIA AFRO- BRASILEIRA

Márcia Santos Severino


Mestranda do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Goiás, professora de
História e Filosofia da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal.

O Brasil é um país no qual a disciplina História no espaço escolar e no espaço acadêmico, por
meio dos intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a partir do século XIX, assume
um caráter de criação de uma identidade nacional integradora no seio do império com uma visão acerca
da colonização como empreendimento civilizatório. Nessa perspectiva, as populações originárias e os
povos escravizados vindos da África seriam integrados à nação por meio, entre outras formas, da
miscigenação que implicava na diluição e esquecimento das culturas desses povos.
O corolário dessa visão foi a disseminação de uma visão racista no seio da sociedade brasileira
que hoje se traduz no racismo estrutural e ambiental. Mesmo após o processo de independência, a
colonialidade79 se fazia presente na sociedade brasileira, sendo a monarquia constitucional a principal
difusora dela por meio, entre outras formas, da disciplina de História nas escolas brasileiras, difundindo
uma visão político-ideológica acerca do país.
Na perspectiva que será aqui apontada, qual seja, a da Educação Histórica com o prisma da
decolonialidade, serão discutidas propostas já implementadas e formas de superação da colonialidade
no ensino de história. Para tanto serão analisados artigos da coluna Nossas Histórias do site Geledes,
articulada e publicada semanalmente pela Rede de Historiadores e Historiadoras negros em
colaboração com a plataforma Cultne. A coluna apresenta desde 2020 perspectivas afrocentradas
acerca da história do povo negro brasileiro desde a escravidão até os dias atuais, resgatando a cultura,
as formas de saber e as tradições longamente apagadas historicamente dos povos em diáspora no
Brasil.
Primeiramente, é necessário que entendamos que o apagamento compulsório e deliberado das
tradições dos povos originários ou em diáspora no Brasil possui consequências que atuam socialmente
no país. Um dos principais corolários é o afetamento da cognição da sociedade de uma forma geral.
[...] Confundir o fato biológico da mestiçagem brasileira (a miscigenação) e o fato
transcultural dos povos envolvidos nessa miscigenação com o processo de identificação e
de identidade, cuja essência é fundamentalmente político-ideológica, é cometer um erro
epistemológico notável (MUNANGA, 2010, p. 453).

A desidentificação com sua cultura que a colonialidade impôs ao povo escravizado, aos povos
originários e a seus descendentes, bem como a identificação com um Estado e um conceito de povo
engendrado por ele que integrava para apagar, trouxe consequências na episteme e na psique desse
país que precisou ser inventado para ser então “independente”. No campo da episteme há a perpetuação
ao longo de dois séculos de um profundo desconhecimento da História e das ricas relações sociais e
culturais desses povos. O Brasil hoje não possui memória e sua consciência histórica está voltada não

79 Colonialidade aqui é entendida como uma continuidade do colonialismo. Mesmo nas sociedades onde foi conquistada a
independência persistiu uma ideologia colonial que afeta até hoje a construção de mundo dessas sociedades.

385
para a busca de sentido dentro de uma sociedade com profundas desigualdades, mas para a
perpetuação do racismo e da desigualdade.
Diante de tal quadro é preciso decolonizar a episteme brasileira e um espaço privilegiado para
tanto é a educação básica. Com os surgimento de leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 obtivemos
avanços formais na letra da lei, mas precisamos, enquanto educadores negros, nos apropriarmos de
novas formas de pensar e ensinar a disciplina História no espaço escolar. No que concerne a tal tarefa,
analisaremos três artigos da coluna Nossas Histórias a luz da perspectiva da Educação Histórica e os
estudos realizados nesse campo.
É importante situarmos que a Educação Histórica é um campo de pesquisa que desde o início
dos anos 2000 tem pensado o ensino de história e suas bases. No Brasil temos a professora Maria
Auxiliadora Schmidt, que criou uma metodologia de trabalho para a disciplina história em sala de aula.
Essa metodologia chama-se Aula Histórica e foi implementada em escolas no Paraná. A aula Histórica
tem como central a busca da competência de geração de sentido através da narrativa histórica e possui
importantes etapas que se entrelaçam durante a aula: 1) Investigar as carências de orientação e os
interesses dos alunos (problemas do presente); 2) Selecionar conceitos substantivos e de segunda
ordem; 3) Exploração metodológica de fontes primárias e secundárias; 4) Estimular a comunicação
histórica dos jovens e crianças por meio da narrativa que envolva relação com o presente; 5)
Metacognição (aferição do aprendizado sobre o aprendizado) (SCHMIDT, 2019). Partindo-se da
perspectiva da Educação Histórica, os artigos supracitados serão analisados na comunicação com vistas
a sugerir novas formas de pensar o ensino de história e, mais especificamente, da história afro-brasileira.
A comunicação é fruto da pesquisa da autora, que visa entender novas epistemologias de ensino
para a Didática da História em consonância com os conhecimentos existentes desde antes do processo
de escravidão e colonização de culturas que passaram pelo processo de espistemicídio decorrente da
colonização e da colonialidade. Ao mesmo tempo, é fruto de angústias da práxis da autora como docente
da disciplina de História.

PALAVRAS-CHAVE: decolonialidade; didática da história; história afro-brasileira; episteme.

REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. El turno de la didáctica de la historia: contribuciones para un debate.
Historia y Espacio, vol. 15, nº 53. Cali, Colombia. Julio - Diciembre 2019.

386
RACISMO RELIGIOSO NA ESCOLA: ARTICULAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES DE PRÁTICAS
ANTIRRACISTAS

Christiane Corrêa de Oliveira


Mestranda em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB).
Advogada, Professora da Rede Pública da Educação Básica do Estado da Bahia, membro do grupo de estudo e
pesquisa Direito e Africanidades (CEPAIA/UNEB) e do grupo de pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade na
Educação Básica (DIVERSO). christianecorreadeoliveira@gmail.com

Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios


Doutorado e Pós-doutorado em Educação. Professora Titular Plena da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Professora Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do
Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). Líder do Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade na Educação
Básica (DIVERSO). Co-coordenadora da Rede FORMAD - Formação de Professores: Narrativas e Experiências.
jhanrios1@yahoo.com.br

A experiência é algo que nos atravessa e nos transforma, conversar sobre as experiências
pedagógicas possibilita nos tornarmos diferentes do que temos sido e potencializa os nossos saberes e
fazeres. Trazendo o saber pedagógico dos docentes para a centralidade da pesquisa, lançaremos mão
do dispositivo de pesquisa, dispositivo escutatório e dispositivo formativo: a conversa. Em perspectiva
decolonial que gravita em torno do sujeito histórico, lugar social e pertencimento, com enfoque no caráter
formativo das experiências pedagógicas construídas no cotidiano escolar, Racismo religioso na escola:
experiências pedagógicas na educação básica é título do projeto de pesquisa qualitativa com base
epistemológica hermenêutica, por meio do qual buscamos ação pedagógica ao invés de atos e
silenciamentos diante de racismo na escola.
A pesquisa em andamento nasce da necessidade de transformação, intervenção, ação e
recriação de condições radicalmente distintas das condições atuais de sociedade, humanidade,
conhecimento e vida. Nasce da visualização da possibilidade de provocar coletivamente deslocamentos
necessários do olhar, pensar e agir; emerge da necessidade de desconstrução das marcas do processo
colonial no campo da educação. Atua a partir da insurgência, na ruptura de imaginar e buscar construir
um mundo diferente, dialoga com uma perspectiva georreferencial do conhecimento compreendida como
as epistemologias do Sul e visa maneiras não apenas de resistência, mas de re-existência que apontam
para a decolonização do ser, do saber, do poder e cosmogônica.
Partindo de uma perspectiva freiriana, dialógica, circular, intenta-se conversar com docentes, em
um movimento constitutivo do processo de reflexão na ação, horizontalmente, falar e escutar narrativas
do fazer cotidiano na Educação Básica. Utilizando a conversa como dispositivo de produção de dados,
criando um espaço coletivo de formação entre pares, temos como objeto de estudo o racismo religioso
no ambiente escolar. Nos colocaremos a partir de experiências construídas no cotidiano, de práticas
educativas realizadas no seio da profissão docente, para refletirmos como processamos, como/se nos
mobiliza, como/se somos afetados e o que fazemos diante do objeto estudado. Um processo reflexivo
para sair do piloto automático, para reformular e também para que as vozes dos docentes possam ser
pronunciadas e façam eco. Pensar o campo da formação em uma dimensão ontológica coletiva, como

387
uma trama que nos coloca a pensar no sentido da nossa docência, como estou sendo professora e em
que medida sou agente de transformação da realidade social.
A experiência é concebida como acontecimento que se produz de forma singular. É também
abertura ao vivido, ao saber-com, à produção da diferença, da heterogeneidade e da ruptura com as
racionalidades técnicas e colonizadoras, convocando os sujeitos da experiência a (trans)formação,
tornando-se conceito central da pesquisa-formação. (RIOS, 2022, p.27)
Os sujeitos da pesquisa são docentes da Educação Básica de escolas públicas, o lócus é Nazaré,
cidade do recôncavo baiano, território de identidade de ascendência predominantemente africana. A forte
influência dessas raízes é corroborada com quantidade significativa de terreiros de candomblé, casas de
umbanda, dentre outros centros de religiões de matrizes africanas nesse território; fato que desemboca
no ambiente escolar.
O que tem sido chamado de preconceito, discriminação, bullying, sofrido pelos estudantes
adeptos dessas religiões são manifestações do racismo religioso. Como o histórico racista em nosso
país continua e tudo o que seja marcado racialmente continua sendo perseguido, “o que incomoda nas
‘religiões de matrizes africanas’ são exatamente o caráter de que elas mantêm elementos africanos em
sua constituição; e não apenas em rituais, mas no modo de organizar a vida, a política, a família, a
economia etc.” (FLOR DO NASCIMENTO apud FLOR DO NASCIMENTO, 2017, p. 54). “Projetar a
dinâmica do racismo às expressões africanas e indígenas presentes ‘nessas religiões’”, figura-se como
racismo religioso.
O racismo religioso é uma vertente da continuação da mentalidade racista brasileira que agride
“tudo que tenha heranças africanas de resistência, levando pessoas e instituições a desrespeitarem os
territórios, crenças, práticas e saberes que se mantêm em torno dos terreiros” (FLOR DO NASCIMENTO,
2017, p. 55). Haja vista o preconceito, desrespeito e violência que atingem as comunidades de terreiro
serem motivados pelo racismo, há insuficiência ou inadequação da ideia de intolerância religiosa e seu
enfrentamento.
O racismo pode ser definido como crenças na existência de raças superiores e inferiores. Dessa
forma é passada a ideia de que, por questões de pele e outros traços físicos, um grupo humano é
considerado superior ao outro. Ao direcionar os argumentos racistas para as religiões, tem-se o racismo
religioso, através do qual se discrimina uma religião. (LIMA, 2012 apud FLOR DO NASCIMENTO, 2017,
p. 55).
A religiosidade está em uma dimensão da subjetividade que extrapola possibilidades analíticas.
Um sentimento oceânico que é elemento constituidor do próprio sentido da vida de muitas pessoas. Para
além de espaços onde se praticam rituais religiosos, amalgama-se a complexidade da vida social e da
herança cultural dos povos africanos trazida para o Brasil e mantida viva nas casas religiosas de matriz
africana. A observação que motiva o estudo em andamento emerge de ações acompanhadas de ódio e
violência recorrentes, praticadas contra crianças e jovens estudantes negras e negros, cuja religião é
demonizada, satanizada por atos racistas. Destarte, não há que se falar em intolerância, mas sim em
racismo religioso.

388
Em um giro decolonial, com o objetivo geral de compreender as experiências pedagógicas de
docentes da Educação Básica ante o racismo religioso no ambiente escolar, levanta-se a questão
norteadora: de que forma docentes da Educação Básica lidam com racismo religioso no ambiente
escolar? Através de rodas de conversa com docentes da Educação básica de escolas públicas do
recôncavo da Bahia, propõe-se contextualizar as categorias raça, racismo e racismo religioso; dialogar
acerca das experiências pedagógicas dos sujeitos da pesquisa; desvelar como os docentes percebem a
própria formação para a educação das relações étnico-raciais; analisar como esse processo dialógico
constitui-se em formação docente, haja vista a construção de uma perspectiva formativa entre os
docentes com fulcro nas suas experiências pedagógicas narradas e refletidas a fim de atuação
pedagógica profícua na abordagem do tema.

PALAVRAS-CHAVE: experiências pedagógicas; formação docente; racismo religioso.

REFERÊNCIAS
FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos
tradicionais de matrizes africanas. Brasília: Revista Eixo. Vol. 6, n. 2 (Especial), pp.51-6, nov 2017.
RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas: por
outros movimentos insubmissos da formação docente na Educação Básica. Coleção Documentação
Narrativa de Experiências Pedagógicas. Vol. 1. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022.

389
EDUCAÇÃO PARA O MERCADO DE TRABALHO DE MENINOS POBRES E ÓRFÃOS ACOLHIDOS
ENTRE 1818 E 1850 NA CASA PIA COLÉGIO DE ÓRFÃOS DE SÃO JOAQUIM NA BAHIA

Rejane Pereira Correia


Autora mestranda em Educação e Contemporaneidades/UNEB-BA; Atualmente desempenha a função de
professora da disciplina História da Rede Estadual de Ensino da Bahia – SEC/BA.

Gilmário Moreira Brito


Coautor licenciado em História na UCSAL (1981), Especialista em Educação de base na América Latina, FACED,
UFBA, OEA (1984), Mestre em História do Brasil (1997) e Doutor em História Social (2001) pela PUC-SP. Tem
experiência em História e Educação com ênfase nos seguintes temas: Instituições e Culturas escolares, Memórias
e Histórias: da Educação, de livros e impressos didáticos, da imprensa, de intelectuais e da Cultura Afro-Brasileira.

A intenção é apresentar o andamento desta pesquisa que tem como tema central compreender a
história, o processo do acolhimento e educação de meninos pobres e órfãos pela Casa Pia Colégio de
Órfãos de São Joaquim na Bahia, conhecida como Casa Pia, criada em Salvador no ano de 1799.
Salvador, nos finais do século XVIII e no início do XIX, tinha um importante comércio (MATTOSO, 1979,
p. 177). Período de intensas transformações sociais, econômicas, culturais e políticas, entretanto, o
crescimento ocorrera em consonância com o empobrecimento de sua população em uma sociedade
ainda escravagista. Os estudos de Fraga Filho também apontam que essas transformações e o
empobrecimento populacional trouxeram impacto negativo no número de crianças e “jovens”
considerados “moleques e vadios” (aqueles que praticavam pequenos furtos, delitos e arruaças nas
ruas), e torna-se uma preocupação tanto das autoridades e comerciantes locais, situação que também
provocou o sentimento de comoção no irmão leigo catarinense Joaquim Francisco do Livramento em
1796, quando visitara a cidade e, no mesmo ano, na busca para tentar solucionar passou a solicitar
doações e apoio para fundar um orfanato que abrigasse essas crianças e jovens, mas apenas pessoas
do sexo masculino (MATTA, 1996, p. 16). Esse é o contexto histórico e social em que a Casa Pia foi
fundada em Salvador, quatro anos depois do empenho pessoal deste religioso franciscano, que
encontrou eco entre os comerciantes, senhores de engenhos da região e nas autoridades políticas da
época, pois viam a criação da instituição asilar como uma estratégia de controle e ordenamento dos
corpos e dos trabalhos urbanos. De acordo com o Estatuto da Casa Pia, aprovado pela Mesa
Administrativa em 1828, a instituição teria como o principal objetivo de atuação acolher e formar, através
de uma educação moralizante, as crianças e jovens pobres e órfãos livres que tinham como principal
destino encaminhamento para o mundo do trabalho em Salvador e região. Apesar do cenário de
prosperidade econômica na Bahia, entre os anos de 1787 e 1821 havia, também, os seus contrastes,
pois quase 90% da população vivia no “limiar da pobreza” (MATTOSO, 1979, p. 177). Expressões de
“grande penúria” são reveladas pelos documentos da época em Salvador, que mostram o crescente
número de crianças e recém-nascidos que eram abandonados diariamente nas instituições religiosas,
principalmente nos períodos de intensas crises ao longo da primeira metade do século XIX. Os relatos
dos viajantes estrangeiros do período também revelam espanto e horror diante das condições de
“penúria” da população, como foi o caso de James Prior que, em 1813, ao desembarcar na região da
Cidade Baixa, equiparou as pessoas que encontrou nas ruas a “pobres e esquálidos objetos” (FRAGA,

390
1994, p. 58). Já Anna Bittencourt, em 1850, recorda suas memórias dos tempos que esteve na Bahia
com um pesar, pois eram “ruas tortuosas frequentadas por moleques esfarrapados ou sujos, negros
maltrapilhos, enfim gente de ínfima plebe” (FRAGA, 1994, p. 70). Desde o início do século XIX, a
educação das camadas pobres e livres, principalmente destinada aos “desvalidos da sorte” e órfãos,
estava apoiada num assistencialismo religioso e tinha como função primordial a formação de artificies
para o exercício de atividades manuais, principalmente na zona urbana de Salvador. O marco temporal
inicia-se em 1818 – quando a Casa Pia se organiza para ser instalada em numa nova sede graças às
ações do Conde da Palma, então Governador Geral da Bahia, que consegue de D. João VI, príncipe
regente, a doação do imóvel abandonado dos jesuítas, quando da expulsão deste grupo pelo Marquês
de Pombal em 1759 – e finda em 1850, quando, segundo os estudos de Mattoso (1979, p. 158), encerra-
se a construção do Estado Nacional Brasileiro. Nesse contexto, o problema de pesquisa que se explicita
é como a Casa Pia orientava as práticas educativas para o “mundo do trabalho” no processo educativo
dos meninos pobres acolhidos em Salvador entre 1818 e 1850. A relevância acadêmica e social dessa
proposta é alargar o conhecimento sobre instituições educacionais do tipo asilar, cuja principal proposta
era a formação de pessoas para o mundo do trabalho, visto que tinham a função de controle e
ordenamento das atividades laborais no ambiente urbano e, também, buscavam medidas eficazes para
diminuir o número de crianças e jovens que “perambulavam pelas ruas” de Salvador. O enquadramento
dessa proposta com a Linha de Pesquisa 1 – Processos Civilizatórios: Educação, Memória e Pluralidade
Cultural – relaciona-se com as possibilidades de analisar e aprofundar as ações educacionais voltadas
para o mundo do trabalho, desenvolvidas pela Casa Pia durante a primeira metade do século XIX, a
partir de algumas inquietações da contemporaneidade relativas à juventude periférica da capital baiana,
que tem como desafio conciliar a formação escolar e o exercício do trabalho, além de trabalhar com a
dimensão da memória e o histórico-social dessa importante instituição. As contribuições da pesquisa
para a área da Educação estão relacionadas e vão na direção das reflexões enriquecedoras sobre a
educação pública voltada para o mundo do trabalho, incluindo sua relação com crianças e jovens
oriundos de camadas sociais mais vulneráveis e os processos educativos formais sob a ótica de
significados para a historiografia do campo educacional. Para tanto, o objetivo geral dessa pesquisa é
compreender os significados das práticas educativas orientadas para meninos pobres acolhidos pela
Casa Pia Colégio de Órfãos de São Joaquim entre 1818 e 1850, e os específicos: a) discutir em
documentos da Casa Pia valores e práticas educativas conduzidas por mestres artesãos para alunos
pobres acolhidos entre 1818 e 1850; b) compreender o processo histórico da educação na Bahia e no
Brasil no contexto entre 1818 e 1850; c) discutir os significados das práticas educativas orientadas para
meninos pobres acolhidos na Casa Pia de Órfãos de São Joaquim entre 1818 e 1850.

REFERÊNCIAS
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CERTEAU, Michel de,Luce GIARD, Pierre MAYOL. A invenção do cotidiano II: Morar, cozinhar. Trad.
Ephraim F.Alves, Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1996.

391
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Carlos. (Org.) Educação da infância brasileira (1875-1983). Campinas: Autores Associados, 2001.
THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa I:A árvore da liberdade. SP: Paz e Terra;
1987
THOMPSON. Tempo, disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial. In: Costumes em Comum. SP: Cia
das Letras;1997.
VEIGA, Cynthia Greive. Cultura material escolar no século XIX em Minas Gerais. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 1, 2000. Rio de Janeiro. CD-Rom.

392
ENRAIZANDO O SER: O CABELO COMO INSTRUMENTO DE CONSCIENTIZAÇÃO RACIAL NA
LITERATURA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA

Rebeca Flor
Mestranda em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília e professora da Secretaria de Educação
do Distrito Federal. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-0043-121X. CV Lattes:
https://lattes.cnpq.br/0057693495762898. rebecaflor@gmail.com

No Brasil, temos uma lei prestes a completar duas décadas (10.639/03), que prevê a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, com vistas a resgatar a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. A lei prevê ainda que
esses conteúdos devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
educação artística e de literatura e história brasileiras 80. Entendemos, dessa forma, que não nos falta
respaldo legal para contestar, nas salas de aula, os discursos engendrados por um projeto eurocêntrico
que desvalida subjetividades e perpetua, inclusive nos materiais didáticos, representações
estereotipadas, estigmatizadas e subalternizadas da população afro-brasileira. Assim, pensando no
modo como o racismo se manifesta cotidianamente no Brasil, torna-se necessário nos atermos à
necessidade tanto das leis que estabelecem punições penais contra o mesmo, quanto das leis que
preveem uma educação crítica antirracista, capaz de questionar os padrões hegemônicos que ainda nos
mantêm presos às cruéis dinâmicas coloniais.
Portanto, ao considerar que o racismo não é biológico e sim discursivo (KILOMBA, 2019, p.130),
a ideia deste trabalho é apresentar novos discursos sobre a negritude, a partir de uma curadoria de obras
literárias antirracistas que abordam a conscientização de raça por meio do cabelo afro, reconhecendo-o
como um importante instrumento de letramento racial e luta contra a opressão estética eurocentrada.
Nesse sentido, a opção foi apresentar uma obra destinada a cada etapa da Educação Básica. O que de
modo algum impede que elas sejam, com o devido planejamento pedagógico, apresentadas em etapas
distintas das sugeridas neste trabalho.

Educação infantil

Começaremos com o livro Betina (2009), da autora Nilma Lino Gomes. Voltado ao público infantil
e com ilustrações de Denise Nascimento, a narrativa aborda a importância do cabelo como ícone
identitário na formação da subjetividade e autoestima da personagem principal desde sua infância até a
sua vida adulta. Nesse percurso, a nutrição afetiva que recebe da avó impacta diretamente no modo
como Betina forma e fortalece sua subjetividade. É nos momentos em que a avó cuida de seu cabelo,
destrançando, lavando, secando e lhe dando novos penteados, que a menina vai construindo sua
autoestima; mediada pelas alegres conversas, cantorias e contações de histórias que compartilham.

80 BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 8 out. 2022.

393
A autora faz questão de ressaltar como a validação da autoimagem de Betina se estende do
privado ao social, pois ao sair de casa com o novo penteado todos comentam sobre o cheiro e a beleza
dos cabelos da menina. Na escola, no entanto, alguns discordam dessa validação, mas Betina consegue
mediar a situação, de “forma enérgica” e bem resolvida, ofertando a possibilidade de terem também
esses colegas os cabelos trançados por sua avó. Essa oferta revela, implicitamente, a necessidade que
a menina identifica de que esses colegas sejam nutridos pelo afeto ancestral que emana das mãos de
sua avó, tornando-se eles mesmos, quem sabe, mais afetuosos. Já aos colegas que se mostram
interessados, Betina repassa os conhecimentos que tem sobre os penteados afros com muito orgulho e
destreza.
Em dado momento da história, esses conhecimentos serão ampliados, uma vez que, antes de se
juntar aos ancestrais, a avó da menina lhe ensina a arte de trançar os cabelos com o intuito de que ela
ajude as pessoas a se sentirem bem, a gostarem de si, e serem felizes como são, com seu cabelo e sua
aparência. Já adulta, Betina dá continuidade a esse ciclo de conhecimentos ancestrais, abrindo um salão
de beleza especializado em cabelos crespos e cumprindo a promessa feita à avó.
Como podemos ver, a obra apresenta muitas possibilidades para um trabalho de educação
antirracista: a relação das meninas e das mulheres negras com seu cabelo, a representação de uma
criança negra com família funcional e afetuosa, a importância de reverenciar nossa ancestralidade e os
conhecimentos dela advindos, o cabelo como forma de celebração dessa ancestralidade e,
principalmente, o compromisso com o respeito à diferença, que é um dos passos fundamentais rumo à
desestruturação do racismo.

Ensino Fundamental

Para esta etapa de ensino, temos os “escurecimentos necessários” da autora Cristiane Sobral,
que propõe em sua obra um movimento de insubmissão e libertação que acompanhamos especialmente
nos poemas de Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz (2016). O próprio poema que dá título à
obra deixa evidente essa proposta
Só por hoje
Vou deixar o meu cabelo em paz Durante
24 horas serei capaz
De tirar
Os óculos escuros modelo europeu que eu uso
Enfrentar a claridade
Só por hoje
(SOBRAL, 2016, p. 19)

Nesse poema, Sobral elabora um jogo semântico que nos permite reconhecer como a libertação
estética do corpo negro e, especificamente de seu cabelo, passa pelo abandono da perspectiva
eurocêntrica sobre sua autoimagem. Assim, retirando-se “os óculos modelo europeu” da vista e do verso,
temos o termo “escuros” representando as negras e os negros, que agora podem passar por um
processo de autoconhecimento, livres das desumanizantes lentes eurocêntricas.
O autoconhecimento, por sua vez, os possibilita “enfrentar a claridade”, ou seja, a branquitude e
seus padrões hegemônicos de beleza, negando-os e propondo, a partir da estética negra, um outro

394
posicionamento identitário. Essa proposta fica evidente na última estrofe do poema “Só por hoje /
Desafiar a claridade / Com os escurecimentos necessários”.
Após o descarte das lentes europeias, torna-se possível ver-se pela “Retina negra”, título de outro
poema da obra
Sou preta fujona
Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas
Que tenta me descolorir com seus feixes de luz
(SOBRAL, 2016, p. 23)

Na transição do poema “Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz” para o poema “Retina
negra”, a proposta inicial de olhar-se verdadeiramente por apenas 24 horas se consolida, e torna-se
diária. É possível perceber como já há uma compreensão mais adensada das estratégias do sistema
hegemônico para “massacrar”, “iludir” e “descolorir” o corpo negro. E, nesse caso, um enfretamento mais
incisivo a essas investidas também se estabelece
Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema Invado a
cena

Sou preta fujona


Defendo um escurecimento necessário Enfio
o pé na porta da casa grande Tiro qualquer
racista do armário

E entro.
(SOBRAL, 2016, p. 19)

Segundo Lorde (2019, p. 58), o “avanço de mulheres negras que se definem sob suas próprias
condições [...] é um comprovante vital na guerra pela libertação dos negros”, pois, ainda segundo a
autora, é evidente que, se mulheres e homens negros não se definirem, serão definidos pelos outros,
para proveito deles e prejuízo da população negra. Nesse sentido, autodefinição e letramento racial,
principalmente por meio do empoderamento da estética capilar negra, mostram-se, como expressa o eu-
lírico de “Retina negra”, as ferramentas adequadas para enfrentar e desestruturar a casa grande e suas
representações depreciativas. O que confirma a máxima de Lorde (2019, p.137) de que não serão as
ferramentas do senhor que derrubarão a casa grande, portanto, esse engendramento de si faz-se
necessário antes de enfrentá-la, pois “é do conhecimento das condições autênticas de nossa vida que
81
devemos extrair a força para vivermos e as razões para agirmos” (BEAUVOIR, apud LORDE, 2019,
p.139).
Dessa forma, a busca por autodefinição a partir de outras representações da negritude segue
como temática em muitos poemas de Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz (2016). “Tridente, o
meu pente”, “Espelhos tortos”, “Espelhos negros”, “Preto no preto”, “Fetiche”, “Amuleto da sorte”,
“Carapinha bandeira”, “Luzeiros” e “Black no preto” são exemplos de poemas em que o cabelo crespo
figura como protagonista na busca por ancestralidade, identidade e liberdade.

81 Em francês: “C’est dans la connaissance des conditions authentiques de notre vie qu’il nous faut puiser la force de vivre et
des raisons d’agir”. Trecho do livro The Ethics of Ambiguity, de 1947. (N.E.)

395
Portanto, para além da fruição que o contato com o texto literário proporciona, o trabalho com
esses poemas em sala de aula mostra-se importante por permitir um processo de desconstrução das
representações depreciativas vigentes sobre o corpo negro desde o período colonial. Nesse sentido,
apresentar o cabelo afro como um instrumento político de autodefinição e conscientização racial, não só
possibilita o rompimento com um padrão de beleza branco e eurocentrado, mas também ressignifica as
relações identitárias, munindo-as de autoestima e potência transformadora.

Ensino Médio

O diálogo sugerido para o Ensino Médio é com a obra Ás de espadas (2021), de Faridah Àbíké-
Íyímídé, que aborda temas como racismo, discriminação de classe, sexismo e homofobia. Suas
personagens principais, Chiamaka e Devon, estão no Ensino Médio e estudam em uma escola de elite
chamada Academia Niveus. Lá, eles são os únicos alunos negros e terão que lidar, cada um a seu modo,
com toda a brancura que os calcina (FANON, 2020, p. 129).
A narrativa acompanha, alternado os capítulos entre os pontos de vista de Chiamaka e Devon, o
processo de conscientização de ambos a respeito de si e da estrutura racista na qual estão inseridos.
Essa estrutura é representada no enredo pela escola Niveus, cujo próprio nome significa “branco”, em
latim.
Resistente, a princípio, em acreditar na dimensão que o racismo tem em sua vida, a personagem
Chiamaka se encontra em um momento de negação da própria negritude. Para fugir da representação
depreciativa que a branquitude projeta sobre seu corpo, a adolescente, filha de pai italiano e mãe
nigeriana, passa por um violento processo de branqueamento que inclui, principalmente, a negação de
seu cabelo crespo
Eu cresci nesse mundo.
Um no qual meu cabelo foi tocado, puxado, feito de piada, apontado, banido em livros de
regras escolares. Então o alisei em obediência, para ter certeza de que não me
examinariam ou acariciariam como se fosse algum tipo de bicho de estimação.
Consegui notas boas para parecer esperta, porque parte de mim sempre se sente burra
perto deles. Consegui o respeito, agi apropriadamente, achei que estava indo bem.
(ÀBÍKÉ-ÍYÍMÍDÉ, 2021, p. 269)

Em sua obra Pele negra, máscaras brancas (2020), Fanon discorre sobre o fato dos negros
quererem demonstrar aos brancos, custe o que custar, a riqueza do seu pensamento e o poderio
equiparável de sua mente. Nesse sentido, o autor ainda conclui: “para o negro existe apenas um destino.
E ele é branco.” Assim, o trecho em questão deixa evidente a crença de Chiamaka de que se seguisse
todas as regras de branqueamento que lhe fossem impostas (das estéticas às intelectuais) ela estaria
fora do espectro do racismo. Entretanto, durante seu processo de conscientização racial, a adolescente
reconhece seu equívoco
Não importa o que eu faça, não importa o quanto alise os cachos que crescem no meu
couro cabeludo, eu sempre serei a outra para eles. Não sou boa o bastante para esse
lugar que tentei chamar de lar durante a minha vida inteira. E posso “consertar” o crespo
do meu cabelo, mas não a aspereza de todo esse sistema que odeia a mim e a Devon e
todas as pessoas que se parecem com a gente. (ÀBÍKÉ-ÍYÍMÍDÉ, 2021, p. 269)

396
A partir dessa constatação, a adolescente se sente pronta para passar por um processo de
redefinição do seu ser. Assim como na história de Betina, o fortalecimento da sua subjetividade se dá a
partir do contato com suas raízes ancestrais, representadas na história pela figura de sua mãe. Será
essa mãe que a sentará entre suas pernas e trançará seus cabelos enquanto a munirá da afetividade
necessária para realizar a travessia identitária para a negritude. Dessas mãos surgirá o penteado
ancestral que fará Chiamaka, enfim, encontrar-se consigo mesma
No reflexo está uma garota que parece comigo, só que diferente. A minha eu normal tem
o cabelo alisado, um rosto cheio de maquiagem durante cinco dias da semana e a
aparência de eterna confiança. Agora, eu me encaro como sempre faço, confusa com o
que o meu cabelo pode fazer. Ele pode ficar nesse estilo e me mudar completamente.
Não sou mais Chi, mas Chiamaka, a filha de uma mãe nigeriana que ama o próprio
cabelo, na minha cabeça mais do que tudo. (ÀBÍKÉ-ÍYÍMÍDÉ, 2021, p. 217)

O direito e a responsabilidade de se definir revelam a Chiamaka a noção de quem são seus


aliados na luta contra o racismo (LORDE, 2019, p. 57). Inicia-se assim uma parceria com Devon, que
além da necessidade de letramento racial compartilhada com a adolescente, também precisa lidar com a
aceitação de sua homossexualidade. Morador de uma comunidade pobre extremamente machista,
Devon encontra no amigo Terrell as respostas e afeto de que precisa para também passar por um
processo de afirmação da sua identidade.
As falas de Terrell durante a narrativa remetem às políticas de silenciamento da negritude pelo
discurso dominante brancocentrado. Como não é aluno de Niveus, Terrell não está sob o jugo desse
discurso e, portanto, sente-se apto a questioná-lo, ensinando a Devon como também fazê-lo. Assim,
Devon passa a entender como opera o sistema opressor sobre seu corpo, reparando, inclusive, que os
garotos do seu bairro usam “tranças ou amarrações nos cabelos”, dois estilos que ele se vê
impossibilitado de usar em Niveus. O próprio Terrell, seu vizinho de bairro, varia o penteado entre cachos
crespos e o uso de dreads médios e curtos com as laterais raspadas. Dessa forma, o cabelo de Terrell
aponta para um pertencimento identitário que o autoriza a tensionar os discursos da branquitude levados
até ele por Devon, nas palavras de Kilomba (2019, p. 127)
Nesse contexto, cabelo tornou-se o instrumento mais importante da consciência política
entre africanas/os da diáspora. Dreadlocks, rasta, cabelos crespos ou “black” e
penteados africanos transmitem uma mensagem política de fortalecimento racial e um
protesto contra a opressão racial. [...] Em outras palavras, eles revelam como
negociamos políticas de identidade e racismo.

Portanto, em Ás de espadas (2021), o cabelo afro figura mais uma vez como o instrumento de
pertencimento e subjetivação que não só redefine os padrões dominantes de beleza, mas também
politiza as ações da negritude diante da opressão discursiva brancocentrada. Assim como nas demais
obras sugeridas, ele concretiza independência e descolonização em relação às normas brancas,
evidenciando a relação entre consciência racial e descolonização do corpo negro (KILOMBA, 2019, p.
128).

Conclusão

397
Segundo pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da
Universidade de Brasília, faltam em nossa literatura mulheres e homens negros tanto na posição de
autores (apenas 2%) como na de personagens (apenas 6%)82. Diante desses dados, fica evidente que a
opção por levar autoras e personagens negras para a sala de aula é um gesto de desobediência e
insurgência contra um sistema hegemônico opressor que continua colonizando, inclusive, na literatura.
Dessa forma, ao sugerir obras de três escritoras negras, este trabalho mostrou como é possível,
necessário e urgente trabalhar na Educação Básica uma literatura antirracista que desautorize o discurso
eurocêntrico de branqueamento, construindo representações positivas e empoderadas da negritude,
mediadas, principalmente, pela valorização estética do cabelo afro. Nesse sentido, à medida que a
literatura se reafirma como espaço de sensibilização para a diferença, a sala de aula, ao acolher esse
discurso humanizador, potencializa sua capacidade de desmantelar as estruturas opressivas e
transformar a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: racismo; cabelo; literatura; educação básica.

REFERÊNCIAS
ÀBÍKÉ-ÍYÍMÍDÉ, Faridah. Ás de espadas [livro eletrônico]. Tradução de Jim Anotsu. – Cotia, SP:
Plataforma 21, 2021.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 8 out. 2022.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e Raquel
Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
GOMES, Nilma Lino. Betina. Ilustrações de Denise Nascimento. Belo Horizonte: Mazza, 2009.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess
Oliveira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Cobogó, 2019 [2008].
LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. – 1. ed. – Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.
MASSUELA, Amanda. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro. Revista Cult, edição 231, 5 de
fev. de 2018. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-
brasileiro/ . Acesso em: 8 out. 2022.
SOBRAL, Cristiane. Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz. Brasília: Ed. Teixeira, 2014.

82 MASSUELA, Amanda. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro. Revista Cult, edição 231, 5 de fev. de 2018.
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/. Acesso em: 8 out.
2022.

398
O AFROFUTURISMO: UM MOVIMENTO DECOLONIAL E ANTIRRACISTA PARA A EDUCAÇÃO EM
ARTES VISUAIS NO NOVO ENSINO MÉDIO (NEM)

Shirley Fiuza Dias


Mestranda na área de concentração Arte, Imagem e Cultura na Linha de Pesquisa em Educação em Artes Visuais -
PPGAV/UnB. Especialista em Arte, Educação.

Introdução

Essa investigação partiu da experiência e necessidade surgida na minha prática docente, diante
de inquietações dentro da Educação Básica, na uma busca por narrativas que não fossem apenas
eurocêntricas e baseadas em uma trajetória ocidentalizada e hegemônica no campo das Artes Visuais,
que se distanciassem do “perigo da história única” (ADICHIE, 2019). Desde a minha formação como
bacharel e licenciada em Artes Visuais, já colocava em minhas pesquisas pictóricas e participação em
projeto de extensão na graduação REDE (Rede Brasileira de Ensino Superior para Povos Indígenas), os
povos originários. Ao iniciar meu trajeto como professora, buscava contemplar a diversidade por uma
perspectiva feminista que ainda não era interseccional no princípio, mas timidamente com abordagens
que de maneira transversal abordassem a temática racial, de gênero e classe por meio do audiovisual.
Esse trabalho se realizava em espaços definidos, considerados lacunas no preenchimento de carga
horária nas escolas, como o ordinário Projeto Disciplinar (PD), que a grosso modo se organiza a partir de
uma sobra de carga horária que precisa ser cursada para completar a grade curricular do estudante.
No entanto, o fato de abordar essas questões de maneira mais fluida nesses espaços
disciplinares, que não de Artes, meu lugar de enunciação, não queria dizer que me eximia de apontar tais
temáticas no exercício das aulas de artes. Entendia que no momento da aula de Artes deveria priorizar
os movimentos artísticos europeus, como se esses fossem a base formativa da história da arte (no
singular, para consolidar a unicidade) e aplicação da compreensão dos elementos básicos da linguagem
visual. Até certa altura estava presa a essa abordagem epistêmica, e “rompia” brevemente essa tradição
ao trabalhar a arte contemporânea com suas múltiplas linguagens e materialidade.
Tais prioridades me mostram hoje, a partir da pesquisa decolonial encaminhada pela produção
teórica do Grupo Modernidade/Colonialidade, que minhas escolhas mesmo contemplando outras culturas
estavam presas à colonialidade do saber. Segundo Catherine Walsh (2008, p.137, tradução nossa), essa
colonialidade descarta a existência e viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e outros
conhecimentos que não sejam dos homens brancos, europeus ou europeizados. Isso se explica a partir
da reflexão de um legado curricular epistêmico cíclico, que universaliza os saberes e cosmovisões, em
que para Walsh (2008) é evidente no sistema educativo desde a escola até a universidade, onde se
eleva o conhecimento e a ciência europeias como o marco científico-acadêmico-intelectual. Ainda, para
completar o raciocínio, a autora contribui com a definição do modelo de Estado-nação, que nos ajuda a
compreender a profundidade dos aparatos da colonialidade do saber:
También se evidencia en el mismo modelo eurocentrista de Estado-nación, modelo
foráneo que define a partir de una sola lógica y modo de conocer – la que Maldonado-

399
Torres (2007) denomina «razón colonial» – y bajo conceptos impuestos y poco afines con
la realidad y pluralidad diversas sudamericanas (Walsh, 2008, p.137)

Situando a Educação em Artes Visuais junto ao antirracismo

Ao localizarmos a “História da Arte” (ressalte-se arte no singular como uma crítica), motivo de
grande parte dos conteúdos curriculares, onde em sua dominância possui movimentos artísticos surgidos
no ocidente como protagonistas dos circuitos artísticos e museais, podemos entender então produções
“outras”, orientais, africanas e de culturas não hegemônicas, como sujeitas a generalizações e
homogeneizações ocupando um espaço marginal na história do ensino das artes visuais, logo nos
currículos e livros didáticos. A título de reflexão, podemos pensar as Artes Visuais como uma
nomenclatura mais abrangente, que assim contempla outras múltiplas formas de manifestações culturais
e artísticas.
Diante desses fatores, um anseio me surgiu diante do incômodo com o “limitante” retrato do
sofrimento, ao se trabalhar, por exemplo, a Missão Artística Francesa no Brasil, pelas obras de Jean-
Baptiste Debret (Fig.1), Rugendas. Posteriormente, após a República instaurada, a pintura de Modesto
Brocos “A redenção de Cam” (Fig.2), que apresenta a tese racista do branqueamento, a qual foi
problematizada na 2° etapa do Programa de Avaliação Seriada (PAS), um estereótipo da representação
negra no imaginário brasileiro.

Figura 1 – “Uma Senhora Brasileira em seu Lar”, 1823. Jean-Baptiste Debret. Litografia aquarelada à mão. Fonte:
reprodução fotográfica de autoria desconhecida. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra62092/uma-senhora-brasileira-em-seu-lar

400
Figura 2 – “"A Redenção de Cam", 1895, de Modesto Brocos. Fonte: https://www.edusp.com.br/mais/a-tela-a-
redencao-de-cam-e-a-tese-do-branqueamento-no-brasil/

Diante dessa experiência, aliada à fala da filósofa Djamila Ribeiro – também parte do
subprobrama PAS –, na apresentação do TED Talks intitulada “precisamos romper os silêncios”, a leitura
de seu livro “pequeno manual antirracista”, a música de Bia Ferreira “Cota não é esmola” e a constante
busca por trazer a valorização da representação artística negra e afro-diaspórica, bem como contemplar
a produção cultural decolonial compreendendo o racismo estrutural, institucional e epistêmico, me
conectou a passadas e futuras formações com o propósito de praticar uma educação antirracista. Outro
fator determinante que se constituiu a partir da pesquisa narrativa, foi estar em uma comunidade escolar
de público predominantemente negro, periférico, com um projeto político pedagógico consciente da
educação para as relações étnico-raciais, diversidade e enaltecimento da cultura.
O PAS, o letramento para a diversidade, os Eixos Transversais como formação continuada pela
Escola de Aperfeiçoamento (EAPE) da Secretaria de Educação do DF, foram um farol para a chegada à
educação antirracista, para a educação decolonial, além de buscas ao que pesquisadoras e intelectuais
negras discutiam. Esses fatores foram fundamentais ao desenvolvimento das minhas inquietações para
desenvolvimento como educadora e a construção do meu projeto de pesquisa do mestrado.
A denominação “limitante”, anteriormente apontada em referência às pinturas históricas de
representação do corpo negro fadado ao lugar de “escravo”, não se trata de uma negação aos fatos
históricos que precisamos explorar enquanto construção das aprendizagens críticas, que reflitam a
desigualdade e o racismo, tanto como o papel documental, exoticizante das representações artísticas do
passado escravista e colonial do Brasil. Mas sim, pelo esteriótipo edificado pelo olhar estrangeiro e
ocidental.
Costa e Sardelish realizaram um mapeamento sobre o ensino de Arte antirracista na produção
acadêmica e pós graduação brasileira em Artes, e concluíram que a discussão sobre o ensino de Arte
antirracista está presente nos programas de pós-graduação da Área de Artes, porém ainda de modo
muito acanhado mesmo após a abertura proporcionada pela Lei n°10.639/2003. O que me chama a
atenção nessa pesquisa, após suas inúmeras constatações valiosas ao enfrentamento ao racismo,

401
quando as autoras revelam que são “pesquisas animadas pela narrativa dos processos de formação e
das experiências educativas impregnadas pelo preconceito e discriminação”, e que mesmo com boas
intenções ainda têm presente o traço de “pedagogização folclórica”. (COSTA; SARDELISH, 2022, p.14).
Tratar da abordagem iconográfica da história do Brasil e da formação étnica/racial e cultural do
povo brasileiro pela matriz cultural africana é ver de maneira significativa o predomínio das cenas da dor
da escravidão, da negra “mulata deusa do meu samba”, como problematiza Gonzalez (1984, p.228),
estereotipada na arte moderna brasileira, ou do mestiço que reflete o mito da democracia racial. Essas
foram referências dominantes nos livros didáticos, no campo das artes e história, como parte simbólica
da identidade negra, que não deve ser absoluta, e precisa progredir. Tal como a menção da negritude por
ocasião dentro das escolas no momento do 13 de maio (Dia da Abolição da escravatura no Brasil/Lei
Áurea) com viés colonialista, ou apenas no dia ou mês da Consciência Negra, reproduzindo momentos
singulares e mitificados para a construção destas questões raciais e históricas dentro da cultura escolar
na Educação Básica.

O Afrofuturismo, resistência e prospecção de futuro negro

Para subverter essa narrativa e a construção coletiva do conhecimento, a trajetória pedagógica


seria evidenciar o protagonismo, a representatividade negra para a contemporaneidade e a ideia de um
futuro otimista. A juventude precisa dessa vivência no espaço escolar, seja por meio do consumo e
criação do cinema, cultura Pop, empreendedorismo negro e ocupação visível dos espaços de poder
consolidados. Tal perspectiva evidencia a construção Afrofuturista e amplifica também a crítica à
branquitude, enquanto mantenedora de seu “pacto narcisístico”, quando silencia, invisibiliza ou
permanece inerte diante das urgências do combate ao racismo e suas formas de violência na sociedade.
(BENTO, 2002, p.7). Eu como pessoa branca, na leitura do escopo racial brasileiro, me reconheço nesse
lugar de privilégio e preciso consolidar essa luta.

Figura 3 – Retrato de Sun Ra, referência de vaguarda no Afrofuturismo em 1970. Fonte:


https://flypaper.soundfly.com/hustle/10-things-sun-ra-can-teach-us-about-band-leadership/.

402
Figura 4 – Ellen Oléria, cantora representante do movimento Afrofuturista Brasileiro. Fonte:
https://buzzfeed.com.br/post/9-expoentes-do-movimento-afrofuturista-no-brasil

A busca por outras narrativas, para além do que o legado da escravização trouxe, em busca de
engendrar a conscientização social, de classe, interseccionada à raça e gênero, pelo reconhecimento da
dívida histórica trabalhada em sala de aula, se construiu a urgência de pensar sobre o que seria mais
próximo daquilo que eu considerava que o público escolar como negritude carecia, enquanto
representação, construção e reconhecimento de identidade e coletividade positiva. Tais percalços
trouxeram à tona o exercício da pedagogia crítica, que, segundo a denominação de Camozzato, é uma
“pedagogia atenta aos artefatos da cultura, quando investiga para denunciar as formas de ideologia e
dominação presentes nos discursos e nas representações que as produzem”. (CAMOZZATO;
CARVALHO; ANDRADE, 2016, p.28).
Dentre as pesquisas desenvolvidas para o tema Afrofuturismo, cabe ressaltar a abordagem da
pesquisadora Kênia Freitas e do pesquisador José Messias amparados pela perspectiva do cinema.
Dentro de seus escritos no artigo “O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo
- as distopias do presente”, há o contraponto dos termos acima como dicotomia e lugar das distopias
narrativas negras – a partir do cinema, da música e da literatura na contemporaneidade. Os autores
também apresentam conceituações diversas feitas por diferentes teóricos do Afrofuturismo, agregando
perspectivas notáveis, e exemplificam:
A diáspora negra extraterrestre dentro de nossos próprios mundos induziu o surgimento
de um duplo trauma: o da escravidão (no passado) e o da perseguição, especialmente da
violência estatal (no presente). Nesse sentido, acessar o universo narrativo das obras
afrofuturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a da criação artística
que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população
negra como uma ficção absurda do cotidiano: uma distopia do presente. (FREITAS;
MESSIAS, 2018 p.9).

Artistas contemporâneos como Rosana Paulino, Paulo Nazareth, Moisés Patrício, Jaime Lauriano,
Grada Kilomba, trabalham questões transgressoras, pós-coloniais e descolonizadoras em suas
temáticas, mas a falta de representatividade negra nos espaços artísticos, midiáticos e nos espaços de
poder como um todo me levou a pesquisar sobre as identidades negras na contemporaneidade, o que
incluiu o que se dizia no cyberespaço das redes sociais pelos artistas negros, cinema negro,

403
movimentos negros, por intelectuais negros, a juventude e a militância negra até chegar ao termo
“afrofuturismo”. Desenvolver o olhar sensível – estético, a percepção, a criatividade e a reflexão sobre
possíveis identidades, seus valores e os conhecimentos construídos, são competências importantes a
serem consideradas. Para isso personalidades negras, sobretudo artistas negros(as) de diversas
nacionalidades, protagonizarão os elementos que constituirão a proposta, consolidando uma narrativa
afrocêntrica e polifônica.
O afrofuturismo é um movimento cultural, literário, artístico de múltiplas linguagens. Por ser uma
temática multifacetada, com várias possibilidades em referências transdiscipinares, contribui para um
olhar não compartimentado dos saberes e dos objetivos de aprendizagem. Pontuar o empoderamento
negro e preconizar as expressões artísticas por um viés antirracista é uma importante direção para o
emprego de uma educação para as relações étnico-raciais. Uma pedagogia decolonizadora, que
questiona a colonialidade do ser, do saber, das cosmovisões, do poder dominante, que possibilita
transgredir apagamentos da língua, das crenças religiosas, das danças, da culinária, dos territórios e cria
possibilidades de vida para populações negras.

PALAVRAS-CHAVE: educação em Artes; educação decolonial; antirracista; Afrofuturismo, NEM;

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda. O perigo da história única. Palestra: TED global. 2019. Disponível em:
https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?
language=pt. Acesso em: 04 mar. 2022.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações
empresariais e no poder público. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de
Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. 2002.
CAMOZZATO, Viviane; CARVALHO, Rodrigo; ANDRADE, Paula. Pedagogias Culturais: a arte de
produzir modos de viver na contemporaneidade. Curitiba: Appris, 2016.
COSTA, Natália; SARDELICH, Maria. Ensino de arte antirracista: o que se fala na pós-graduação
brasileira e artes. Revista da Fundarte, n°50, 2022.
FREITAS, Kênia; MESSIAS José. O futuro será negro ou não será – Afrofuturismo versus
Afropessimismo – as distopias do presente. Revista Argentina de la Asociación de Estudios de Cine y
Audiovisual, n° 17, 2018 Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/view/18706. Acesso em 15 jul. 2021.
GONZALEZ, Lélia; Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs,
1984, p. 223-244.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-
epistémicas de refundar el Estado.

404
PRODUÇÃO LITERÁRIA NA ESCOLA: UM ENSINO ANTIRRACISTA E FEMINISTA

Daniela Barbosa da Fontoura


Professora de Língua Portuguesa dos Anos Finais da Rede Municipal de Santa Maria/RS desde 2018, formada em
Letras/Português pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e especializada em Literatura Brasileira pela
Universidade Franciscana (UFN). daniela.barbosa@prof.santamaria.ra.gov.br

Vanessa Medianeira da Silva Flôres


Professora de Educação Infantil da Rede Pública Municipal de Santa Maria/RS desde 2009, Doutoranda em
Educação pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
vanessaf.educ@gmail.com

O presente resumo tem como objetivo relatar e refletir sobre o trabalho pedagógico construído de
2018 até o momento pela disciplina de Língua Portuguesa nos Anos Finais da Escola Municipal de
Ensino Fundamental Sérgio Lopes, localizada na Vila Renascença, região oeste da cidade de Santa
Maria, Rio Grande do Sul, local onde muitas famílias vivem em situação de vulnerabilidade social. A
referida instituição atende desde berçário I até o nono ano e as interações entre estudantes constituem a
práxis pedagógica.
Segundo o Projeto Político Pedagógico da Instituição (PPP 2018, p. 5), "a escola fundamenta-se
como um espaço feminista, antirracista, que fomenta a autonomia e autoria de estudantes e de docentes,
com concepções e respeito aos diferentes tipos de famílias e com projetos que partam dos estudantes".
Neste sentido a comunidade do entorno e as famílias sentem-se parte integrante da escola, e esta se
torna um centro de referência e acolhimento para as famílias, orientando-as na busca de seus direitos e
encaminhamentos para a rede de apoio do município.
No ano de 2018, concretizou-se a revitalização da sala de leitura, paralelo a isso, a equipe
diretiva, juntamente com professoras e professores, iniciou a formulação do PPP da escola, voltado para
os ideais antirracistas e feministas, de acordo com a opção pedagógica e política da instituição (PPP, p.
22) “partimos da premissa de que nossa escola se torne ferramenta para discutir e lutar contra a
discriminação de gênero e étnico-racial dentro e fora do ambiente escolar, sendo um espaço democrático
que possibilite uma educação emancipadora". Desta forma, a partir de uma educação decolonial,
possibilitamos discussões dentro da escola que fundamentam a práxis pedagógica antirracista.
Assim, seguindo a ideia de que práticas de letramento são "indissoluvelmente ligadas às
estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à
leitura e a escrita em diferentes contextos" (STREET, 1993, apud ROJO, 2009, p.99). Iniciamos o
trabalho realizado na disciplina de Língua Portuguesa, nos Anos Finais do Ensino Fundamental, a qual
possuía naquele momento 50 estudantes, priorizando a Leitura e Produção. Consideramos o contexto
em que elas e eles estavam inseridas e inseridos, para que pudessem se apropriar primeiramente da
Literatura, pois “o texto literário ostenta a capacidade de reconfigurar a atividade humana e oferecer
instrumentos para compreendê-la” (COLOMER, 2007, p. 27). As estudantes e os estudantes conheceram
as obras de escritoras negras e escritores negros, textos biográficos de escritoras, cientistas, filósofas,
esportistas etc. Produziram textos de diversos gêneros, tais como: crônica, contos, mini-contos, poesia,

405
haicais, charges, história em quadrinhos, entre outros, como o seguinte poema, de autoria da estudante
Hemily Domingues, na época no 6º ano, hoje no 9º:

Figura 1 – "Poema sobre as mulheres". Fonte: Acervo Pessoal da autora 1, 2019.

Deste modo, oferecemos instrumentos para que as e os estudantes se apropriem da cultura


escrita e da literatura, para que elas e eles compreendessem sua própria identidade social, como sujeitos
que são, ao contrário de tentar apagar sua autonomia com a imposição da identidade do outro.
Consideramos importante destacar que a sala de leitura da escola possui o nome de Carolina
Maria de Jesus, homenagem à escritora brasileira negra, moradora também de uma comunidade em
situação de extrema vulnerabilidade, e na Semana Arte e Literatura da escola, no final de 2018, foram
apresentadas, à comunidade escolar suas produções.
A Semana de Arte e Literatura da EMEF Sérgio Lopes acontece desde 2016. Além de ser um
evento para divulgar à comunidade as produções dos e das estudantes, também recebe escritores e
escritoras santa-marienses. Estes promovem oficinas de escrita criativa, palestras sobre escrita e as
mais diversas manifestações artísticas.

Figura 2 – "Semana de Arte e Literatura da escola” (à esquerda, Vinícius Brum e à direita, Márcio Grings –
Palestrantes). Fonte: Acervo Pessoal da autora 1, 2018.

406
O poeta Márcio Grings ao visitar a escola pela primeira vez, durante a Semana Literária da
Escola, deparou-se com a produção dos Haicais de estudantes do 6º ao 9º ano que estavam escritos em
um tapete na entrada do salão em que aconteceu a Semana de Arte e Literatura. O poeta à época
relatou “Fiquei surpreso com o material desses jovens, que além de revelarem afinidade com o formato,
não apenas brincavam com rimas ou estruturas poéticas - havia naquelas linhas um significativo retrato
de suas realidades”. Com isso, foi alcançado o verdadeiro objetivo do trabalho de leitura e produção
realizado, não só na disciplina de Língua Portuguesa, como também por todo o trabalho notoriamente
integrado dos profissionais da escola, desde a Educação Infantil até as outras disciplinas dos Anos
Finais.

Figura 3 – “Haicai de Ana Claudia Quevedo”. Fonte: Livro Oficina de Pardais, 2019.

Após a participação do poeta na Semana de Arte e Literatura e a partir da potencialidade que ele
identificou nas produções das e dos estudantes, o mesmo retornou à escola e propôs um projeto de
escrita. Ao longo dos anos de 2018 e 2019, os e as estudantes participaram de concursos literários e o
trabalho culminou com um livro de Haicais, Oficina de Pardais, com 88 páginas, produto de uma oficina
de escrita, ministrada pelo poeta local Márcio Grings. As oficinas e a publicação do livro foram
financiadas pelo Fundo do Estado de Cultura (FAC) e tiveram apoio da Prefeitura Municipal de Santa
Maria. O projeto "Oficina de Pardais" iniciou com atividades ministradas de abril a agosto de 2019, no
espaço da sala de leitura da escola.
Participaram desse projeto 13 estudantes dos Anos Finais: Ana Cláudia Quevedo, Brenda
Bittencourte, Brenda Yasmin, Darlene Santos, Eduarda Lemes, Érica Pillar, Eva Daniele, Guilherme
Pinheiro, Gustavo Marinho, Gustavo Proença, Laura Rodrigues, Nicole Nunes, Raiane Lamach. As
atividades de todo o projeto foram supervisionadas pela professora de Língua Portuguesa.

407
Figura 4 – “Livro Oficina de Pardais”. Fonte: Acervo pessoal da autora 1, 2019.

As produções dos haicais das e dos estudantes demonstram a educação antirracista e feminista
da escola como podemos verificar nos haicais:

Figura 5 - "Haicai de Gustavo Proença". Fonte: Livro Oficina de Pardais, 2019.

O livro foi lançado na Feira Literária de Santa Maria em 2019 (FLISM), as e os estudantes fizeram
uma sessão de autógrafos na Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria (CESMA), onde aconteceu a
feira e onde escritores e escritoras locais e de outras regiões do país também participaram. Elas e eles
viveram a ansiedade antes do lançamento, ensaiaram autógrafos e dedicatórias, foram surpreendidos
com a presença de um grande número de pessoas que lotaram o hall do auditório. Com certeza, uma
noite em que elas e eles protagonizaram um dos mais importantes eventos literários da cidade, sob o
olhar orgulhoso de familiares, professoras e professores.

408
Figura 6 – Lançamento do Livro e Sessão de Autógrafos (Da esquerda para a direita, atrás: Márcio Grings, Ana
Cláudia Quevedo, Darlene Santos, Brenda Bittencourt, Eduarda Lemes, Laura Rodrigues, Daniela Barbosa, Brenda
Yasmin, Enéas Tavares. Da esquerda para direita, à frente: Guilherme Pinheiro, Raiane Lamach, Gustavo Marinho e
Nicole Nunes). Fonte: Acervo pessoal da autora 1, 2019.

A sala de leitura tornou-se um espaço para além da busca de informação, um lugar de formação
de leitoras e leitores, escritoras e escritores dominantes de sua própria linguagem, cultura e contexto,
capazes também de construir conhecimento, como requer a própria função social da literatura, de
reconfigurar e compreender a sua atividade humana.

PALAVRAS-CHAVE: antirracismo; educação; autoria; feminismo.

REFERÊNCIAS
COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
QUEVEDO, A. C. et al. Oficina de Pardais: Haicai. Santa Maria: Memorabilia, 2019.

409
Conversatório 8

410
Todos/as os/as participantes do conversatório 8 foram estudantes indígenas que narraram suas
experiências como estudantes dentro da universidade, dando ênfase aos desafios e possibilidades
enfrentados no meio acadêmico. Todas as apresentações destacaram a força ancestral, a trajetória
dos/as avôs e avós, pais e mães, familiares e toda comunidade como protagonistas no processo de
escolarização e formação acadêmica dos/as estudantes.
Alcineide Piratapuya ressaltou em sua narrativa a importância da trajetória de luta da sua avó
como mobilização para entrar na universidade, e disse que a força de cada mulher indígena vem de
dentro. Enfatizou que seu saber é guiado ancestralmente e com a sua formação pretende ajudar e atuar
na política pública. Os maiores desafios para ela dentro da universidade são o preconceito, racismo e
machismo enfrentados dia a dia. Ela também fez um destaque, que foi unânime em todas as narrativas,
que a oralidade, a tradição da educação por meio da oralidade ainda não são aceitas e validadas na
universidade. Portanto, destacou uma preocupação dos/as indígenas ocuparem cada vez mais os
espaços acadêmicos para que a academia comece a valorizar e respeitar a cultura e vivências
indígenas.
Oziel Ticuna trouxe uma fala emocionante ao destacar a trajetória do seu pai como seu herói.
Toda a sua amorosidade, companheirismo e coragem partiram dos ensinamentos do seu pai e só foi pela
força do seu pai que hoje Oziel conseguiu estar na universidade. Oziel foi criado sem ir à escola, tudo
que aprendeu foi com seus pais, fazendo artesanatos, cocar e trabalhando na roça. Ele se inspirou e tem
muito orgulho do seu pai que era tudo, arquiteto por natureza, habilidoso com os instrumentos musicais,
com o manuseio da terra e com a pesca. Seu pai não está mais presente nesse plano fisicamente, mas
segue dando forças para o Oziel enfrentar sua trajetória acadêmica, os desafios com a língua portuguesa
e todo a violência sofrida dentro da universidade.
Manuele Tuyuka começou sua fala dizendo que seu pai e sua mãe são professores da escola da
vida. Dentro da universidade ela disse que faz parte do coletivo e o coletivo faz parte dela, pois a cultura
indígena é o coletivo, quando ela chega na universidade ela representa toda sua comunidade e seu
território. Disse que para enfrentar os desafios da vida acadêmica o projeto Tecendo Saberes, em
parceria com o GPDES, ajudou muito, inclusive a se reconhecer na sua narrativa. Ela disse que aprender
o português, falar o português e ocupar a universidade é uma oportunidade de lutar pelos direitos
indígenas. O grande desafio é a caminhada solitária que a academia convida a trilhar, portanto o diálogo
com os outros estudantes indígenas é o que fortalece. A Maloca é muito mais que um espaço físico, é o
território indígena dentro da universidade, local onde articula e encaminha as demandas. A lógica de ser
e pensar indígena é coletiva, o que desafia a disputa de egos e individualidade da universidade.
Ademar Umutina conta toda a trajetória de luta do seu povo para dizer a importância de ele
ocupar o espaço da universidade. Disse que seu povo teve o primeiro contato externo em 1911, houve
muita mortandade pelas doenças virais. A força e tradição de saudar do povo Umutina não era conhecida
pelo branco, o que fez com eles também matassem seu povo. Ele disse que os líderes são os mais
velhos e que a cultura é viva, dinâmica, e seu pai foi sua inspiração porque ele nunca deu mole.

411
Aprendeu a ser perseverante com o seu povo, perdeu seu pai em 2016, mas ele deixou um recado que
não era para desistir e desanimar.
Diana Tapeba ressaltou que estar na Universidade de Brasília é representar o seu povo. Ela não
teve oportunidade de estudar em escolas indígenas e ela reafirma sua identidade quando entra na
universidade, porque dentro da comunidade não existe distinção e preconceito. Ela disse que o
preconceito existe fora da aldeia; ela foi questionada muitas vezes se ela tinha certeza que era indígena.
Destacou a importância da oralidade e a força dos anciãos e troncos velhos da comunidade e disse que
as raízes são as memórias que eles carregam. A narrativa decolonial é uma forma de vencer a barreira
da exclusão e de combate ao preconceito.
Mirim Ju Guarani começou a sua narrativa agradecendo a todas que fazem parte dessa história,
disse que a escrita da vida é vida coletiva, sobre eles, o povo guarani. Seu pai é caipira, cuida da roça, e
ele é uma mistura, e isso já enraíza o preconceito por ele ser descendente. Ele disse que a história do
seu povo é feita da força do grande espírito. A forma de falar sobre os indígenas não sendo indígena
ganha força na universidade. Ele disse que sua trajetória é guiada pelos espíritos e ele parou em Brasília
pela força dos espíritos.
Maria das Graças Atikum disse que a universidade bebe dos conhecimentos indígenas e por isso
a importância da presença indígena na universidade. Destaca que a trajetória dos povos sempre foi de
luta. O espaço de conquista de um conversatório em um evento que proporciona o encontro de
estudantes indígenas é um espaço de resistência. Na universidade tem preconceito, estranhamento, os
indígenas são a representação da “diversidade cultural” e, portanto, eles são resistência, porque antes
outros resistiram também.
O conversatório 8 foi potente, forte e energizante; logo no início contou com a permissão dos
encantados por meio de uma roda de cantos e danças, com a presença da força dos maracás. A força
dos encantados foi destaque em todas as falas, a espiritualidade, a ancestralidade são o que sustentam
a permanência desses estudantes na universidade. A memória dos povos indígenas faz com que eles
não esqueçam as suas histórias e a importância de fazer parte da universidade. O sentimento foi de que
a universidade ainda precisa reconhecer a cultura indígena e valorizá-la. Uma sugestão foi que o próprio
Narrativas, em sua próxima edição, aceite a participação de apresentações não só por resumo escrito,
mas por meio da oralidade, porque muitos estudantes não participaram do conversatório pelas
dificuldades na escrita. Por fim todos os presentes participaram, se abraçaram, se emocionaram, se
aqueceram e agradeceram à mãe terra por proporcionar esse grande encontro.

412
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Memórias interculturais: identidade, história e tempo entre os tapebas


Diana Sales Ferreira Tapeba 414
de Caucaia, Ceará

Manuele Pimentel Serra Vivências de uma indígena Rio negrina na Universidade de Brasília 418

A trajetória de um Umutina no caminhar do conhecimento e ouvindo


Ademar Calomezore Teodoro seus ancestrais: reflete a saúde indígena, Covid-19 e o impacto em sua 421
aldeia

Saory Txhèska Araújo Ferraz Redes de cuidados tradicionais das mulheres indígenas Fulni-ô 423

Oziel João Filho A trajetória do meu herói Oziel João 426

A importância das práticas da Vó Lucinda Piratapuya para a minha


Alcineide Neira 432
construção de conhecimento no meio acadêmico

A universidade bebe dos nossos conhecimentos, portanto nosso lugar


Maria das Graças da Silva 438
também é aqui

Jeniffer Benedito de Oliveira Identidade e pertencimento de estudantes indígenas na UnB: AAIUnB


Pêgo uma visão do espaço coletivo e orgânico de luta, resistência e 443
Núbia Batista da Silva permanência dos estudantes indígenas

Mirim Ju Yan Guarani Narrativa de um estudante indígena 446

413
MEMÓRIAS INTERCULTURAIS: IDENTIDADE, HISTÓRIA E TEMPO ENTRE OS TAPEBAS DE
CAUCAIA, CEARÁ

Diana Sales Ferreira Tapeba


Discente do Departamento de História da UnB, ganhadora do prêmio em destaque de Artes e Ciências Humanas no
Projeto de Iniciação Científica de 2020/2021. dianasales903@gmail.com

Introdução: “Os Tapebas estão vivos e lutam pela demarcação de suas terras’’: em busca de
outras histórias

A frase que trazemos como título desta introdução consiste numa fala recorrente de Dona
Raimundinha, que nos lembrava a todo momento qual era a sua expectativa em relação à pesquisa.
Como estudante indígena, a experiência me permitiu reconhecer raízes profundas, a partir dos relatos
dos "troncos velhos" da nossa comunidade, considerados grandes bibliotecas vivas de conhecimento e
sabedoria. Acreditamos que muitas vezes não encontramos estas referências de passado em fontes
escritas, mas com o auxílio da oralidade exercitamos um olhar crítico a respeito de como contar e
escrever a nossa própria história.
Este texto é resultado do Projeto de Iniciação Científica "História Indígena e Outras
Epistemologias: uma análise das narrativas do Povo Tapeba a partir de ativadores de memórias", no qual
realizamos um projeto de história oral em formato híbrido: parte da equipe em formato presencial e outra
parte remotamente. O trabalho realizado nos permitiu refletir como fontes documentais podem ser
apropriadas pelas próprias comunidades, e a pesquisa ajudou a pensar como o Povo Tapeba lê as
representações construídas por outros sobre a sua própria história. As fontes documentais, tanto escritas
quanto orais, se tornaram mote e ganharam centralidade no trabalho, proporcionando no decorrer da
pesquisa o uso de fontes históricas como ativadoras de memória.
Decidimos utilizar os ativadores de memória com o intuito de conhecer ainda mais as raízes
profundas da minha comunidade, que se constitui da união de quatro etnias: Potiguara, Tremembé, Cariri
e Jucás. As discussões realizadas e a análise de fontes possibilitaram reflexões sobre como os povos
indígenas do nordeste, em particular o povo Tapeba, estão representados nos documentos e na
historiografia brasileira. Buscamos compreender quais foram as rupturas e continuidades da história do
povo Tapeba e, a partir de relatos orais da comunidade, refletir sobre as suas concepções de história,
memória e identidade. A pesquisa de fontes históricas foi realizada no Repositório Armazém Memória,
orientou os roteiros de entrevistas realizadas com Dona Raimundinha, liderança Tapeba e nossa
interlocutora na pesquisa, o que nos possibilitou acessar uma história complexa.
Foi a partir da escuta das formas de Dona Raimundinha Tapeba contar histórias e acionar modos
de conhecer que comecei a elaborar metáforas que dizem sobre mim, sobre o meu povo Tapeba e sobre
esta nossa interlocutora. Ela nos traz chaves para compreender o que podemos reconhecer como raízes
profundas, estas que interconectam os troncos-velhos (nossos mais velhos, como Dona Raimundinha)
com as plantas (que somos nós, estes das novas gerações). Para compreendermos estas raízes

414
profundas no solo da historiografia indígena, devemos perceber que é também uma história repleta de
pedras (violência, silenciamento, preconceito). Entretanto, temos que levar em consideração que este
solo nunca foi infértil, ao contrário disso, foi semeado se analisarmos a fertilidade que os povos
originários semeiam ao longo de sua história, através de sua cultura, memória e oralidade. Outra questão
a ser analisada é o fato de haver uma diversidade de solos (histórias) e árvores (pessoas) em diferentes
contextos da historiografia, o que nos possibilita escrever uma nova história crítica e descolonial a partir
do olhar dos povos indígenas, que narram a sua história por meio da oralidade e da escrita. Por fim,
temos diversas plantas fundamentais (comunidade) que reúnem diversas raízes fecundas (memória e
identidade) neste solo (história) que gera uma floresta (povo) riquíssima em seus aspectos culturais e
sociais.
A partir destas metáforas, construo um percurso que visa colocar em diálogo estes modos de
conhecer as formas historiográficas da história indígena que aprendo na universidade. Portanto, para
contextualizar a complexidade das raízes do Povo Tapeba, temos que analisar determinados recortes
mais convencionais à pesquisa histórica: I) do século XIX, o chamado "desaparecimento" de indígenas
no Nordeste e origem do povo Tapeba; II) das décadas de 1950 e 1960, com o suposto "surgimento" do
Povo Tapeba e III) década de 1980 e 1990, o período de reconhecimento do Povo Tapeba. Ao final,
esperamos conseguir demonstrar como estas fontes em diálogo se complementam e delineiam uma
proposta narrativa de historiografia, reconhecida pelo povo Tapeba.

Metodologia

A oralidade é uma dimensão primordial para a forma de produção de conhecimentos


(epistemologia) da história indígena. Dentro da pesquisa de História Oral podemos trabalhar com três
tipos de gênero: tradição oral, história oral temática e história oral de vida (FREITAS, 2006;
EVANGELISTA, 2011). Tendo como seu combustível principal a memória individual e coletiva do
indivíduo, que para alguns historiadores tradicionais os relatos orais são tidos como fontes subjetivas, por
se desenvolverem a partir da memória. Todavia, na História Oral o entrevistado é considerado um agente
histórico, permitindo criar novas fontes a partir da reconstrução de um passado recente (FREITAS, 2006).

415
Figura 1 - Exemplo de um Ativador de memória, referência ao Diário do Nordeste, 20 de maio de 1997. Fonte:
Repositório do Armazém Memória.

Metodologicamente, acionamos as etapas convencionais ao campo da história oral: a elaboração


de um projeto, a identificação de interlocutores(as), a elaboração de roteiros prévios, o agendamento e
realização das entrevistas, seguidos de transcrição, textualização e transcriação dos relatos orais
(MEIHY; ALONSO, 2020). Entretanto, experimentamos uma inovação nos procedimentos para a
realização das entrevistas: o uso de fontes documentais como ativadoras de memória, utilizando este
recurso para desenvolver os temas durante as entrevistas. Em um primeiro momento, realizamos uma
busca por fontes documentais diversas, a partir de topônimos da região de Caucaia, mapeando-as entre
aquelas disponíveis para consulta no repositório Armazém Memória e na hemeroteca da Biblioteca
Nacional. Nestes acervos localizamos fontes textuais e imagéticas, além de relatos orais. A partir destas
referências, construímos um projeto de história oral e roteiros específicos para a realização das
entrevistas.

Resultados

O uso de ativadores de memórias foi muito bem sucedido, permitindo evidenciar "modos de
conhecer" próprios ao povo Tapeba, que podem ser reconhecidos na pesquisa acadêmica como outras
epistemologias relativas às concepções de identidade, memória e tempo. Tais concepções evidenciam o
protagonismo destes sujeitos nas formas de construir as suas próprias narrativas. A partir das entrevistas
realizadas com Dona Raimundinha, pudemos problematizar a identidade intercultural Tapeba, quando ela
nos conta sobre a sua origem Tremembé, que tem as suas raízes ramificadas nos Tapeba e constituiu
filhos "Tapemembé". Em seus relatos percebemos que a memória se torna uma catalisadora importante
na construção da história, sendo esta compartilhada e relembrada entre as gerações. Ao falar da história
e do tempo, Dona Raimundinha conta que escrevia um diário pessoal, mas este foi suspenso enquanto
as suas memórias "se tornaram tristes", porque a história precisa de flores para ser grafada.

416
Conclusão e discussão

Após a realização das entrevistas, realizamos uma pesquisa de campo e oficinas em escolas
indígenas do território: uma delas com o uso de fontes textuais, no Ensino Médio, e outra, de Ensino
Fundamental Anos Iniciais, em que trabalhamos com relatos de Dona Raimundinha. O mapeamento de
fontes históricas permitiu compreender rupturas e continuidades da história do Povo Tapeba e estas
estimularam novas narrativas por parte da comunidade, refletindo sobre as suas concepções de história,
memória e identidade, a partir de representações destas raízes profundas reconhecidas nos relatos dos
“troncos velhos" da comunidade. Estes, considerados como bibliotecas vivas de conhecimento e
sabedoria, ao interagirem com fontes documentais produzidas por "outros" e, por vezes, desconhecidos
da própria comunidade, ativam memórias e enunciam outros registros discursivos para escrever a
história Tapeba.

PALAVRAS-CHAVE: história oral; ativadores de memória; história indígena; memória; Tapeba.

REFERÊNCIAS
EVANGELISTA, M. B. Entre a expressão e a intenção: possibilidades de construção narrativa através da
transcriação em história oral. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo,
julho 2011 p 1- 9.
FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. – São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; ALONSO, Leandro Seawright. Memórias e narrativas: história oral
aplicada. Editora Contexto, 2020.

417
VIVÊNCIAS DE UMA INDÍGENA RIO NEGRINA NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Manuele Pimentel Serra


Graduanda em Direito na Universidade de Brasília, indígena do povo Tuyuka. Amazonense. tuyuka.mp@gmail.com

O que me motivou a participar do Narrativas foi entender a importância de compartilhar com


outros parentes nossas vivências dentro de uma universidade como a Universidade de Brasília (UnB),
pois nos fortalece de alguma forma, percebe-se os relatos como manual de sobrevivência dentro desse
território que ainda é um território desconhecido para muitos indígenas, corroborado pelo contexto
histórico das políticas de acesso à educação, visto que a educação intercultural incluída na carta magna
de 1988, resultado de muita luta, que dedica um capítulo específico aos indígenas, é praticamente
recente e por isso tornar isso em realidade para os povos indígenas ainda continua sendo um desafio,
pauta de luta para gerações hodiernas, sobretudo pelo acesso e permanência no ensino superior.
A minha inspiração para escrever cada palavra desta narrativa está, primeiro, em nossos
ancestrais que lutaram pelo reconhecimento do Estado, a autonomia de viver conforme seus usos e
costumes, destarte pela educação intercultural e, por fim, cada parente que me atravessou de alguma
forma a partir da narrativa de sua trajetória acadêmica, com os quais aprendi e pude conseguir alguns
atalhos.
A minha trajetória na Universidade de Brasília iniciou em 2019, quando ingressei na graduação
em Direito. Ao pisar em Brasília, me senti totalmente perdida, deslocada, o que não era somente uma
sensação, mas uma realidade; eu estava em um lugar desconhecido a inevitáveis quilômetros longe de
minha terra, mas carregava comigo a força e coragem de meus pais, meus professores de escola e de
vida, que me apresentaram desde cedo o caminho da educação, me encorajaram a me aventurar nesse
universo do conhecimento ocidental, para que eu pudesse ter a capacidade de escolher qualquer área de
conhecimento que eu quisesse escolher como profissão.
Quando ingressei na UnB não sabia de sua grandiosidade como instituição e que, em razão
disso, vinha junto dela um combo de desafios, a única certeza que eu tinha era que finalmente havia
conseguido aprovação na área que eu tanto sonhei em cursar. Direito é um sonho de infância, motivo
pelo qual me dispus a enfrentar o medo e correr o risco de tentar, mas posso dizer que fazer parte do
corpo discente da UnB me trouxe muitas experiências, tanto positivas quanto negativas. Contudo, todas
de aprendizagem e crescimento.
Ao chegar aqui, logo percebi pela primeira vez que eu me sentia e era diferente de outros colegas
de curso, que aqui me chamavam de indígena de forma acentuada, o que não era comum para mim.
Descobri também que a minha forma de viver a minha cultura era diferente deles, é como se para eles eu
tivesse vindo de um submundo, saído de uma lenda, mas por outro lado tentei compreendê-los, pois de
fato a consciência da plurietnicidade brasileira é subestimada por não indígenas na maioria das vezes,
pois a sociedade brasileira desconhece a realidade dos povos indígenas e seu contexto histórico.
Até pisar em Brasília, nunca precisei me preocupar com estereótipo indígena e com questões de
racismo e preconceito, mas esses questionamentos me fizeram me aproximar do movimento estudantil

418
indígena, me levando a conhecer outros parentes, etnias e culturas diferentes. No entanto percebi que
tínhamos em comum as mesmas preocupações, aflições e lutas, a saudade de casa, dos sabores das
comidas típicas de nossa comunidade, da saudade de conversar na língua materna, de enfrentar
dificuldades financeiras e da solidão acadêmica. Descobri que compartilhar essas dores amenizava um
pouco a dor de sobreviver nesse espaço acadêmico. Motivo pelo qual comecei a me aproximar mais do
coletivo indígena da UnB na metade do meu curso, mas acredito que foi crucial para minha permanência
na universidade.
Cumpre ressaltar que no retorno pós pandemia, com o semestre totalmente presencial, cheguei à
UnB já com intuito de me envolver mais no movimento do coletivo indígena, devido também a
experiência de um estágio durante a pandemia, cuja área de atuação era questões socioambientais
voltadas especialmente a projetos de incentivo sustentável às associações das comunidades indígenas
da região do Rio Negro e, entre outras atividades, ao me deparar com processos de cunho jurídico,
especificamente as Ações Civis Públicas (ACPs), percebi que os profissionais, juízes e advogados dos
casos, por não conhecerem a realidade das comunidades ribeirinhas e indígenas, não levavam em conta
nas suas desenvolturas processuais as peculiaridades e especificidades locais, se limitavam ao
conhecimento técnico, e isso me fez refletir da importância de adentrarmos nas academias de ensino,
pois necessitamos com urgência de profissionais indígenas atuando para defender os interesses de suas
comunidades de base, sejam eles na comunidade ou da comunidade.
Participar do projeto Tecendo Saberes (figura 1), realizado na Maloca - Centro convivência
Multicultural dos Povos Indígenas da UnB, foi fundamental nesse sentido, pois através dele pude me
aproximar mais de outros estudantes indígenas, e conhecer temáticas decoloniais que me desafiaram a
enxergar as minhas dificuldades de outra forma, me encorajando a somar na luta em prol das políticas de
questões indígenas, pela educação intercultural, principalmente pela nossa permanência na
universidade, e entender a importância da educação escolar indígena. É por isso que precisamos buscar
e lutar por mais espaços como esse dentro da universidade.
O povo Tuyuka, do qual faço parte, é detentor de projeto muito interessante referente à educação
escolar indígena, ela trouxe metodologias voltadas para realidade da comunidade indígena, por exemplo,
a etnomática, que traz conhecimento e materiais metodológicos indígenas, permitindo a coadunação de
dois conhecimentos. A possibilidade de construir essa interculturalidade dentro das universidades é
complexa, de modo que antes de pensarmos na interculturalidade dentro desses espaços, primeiro
precisamos nos preocupar com a nossa moradia, alimentação e formas de nos comunicarmos com
colegas não indígenas.
Todavia, a presença indígena na universidade significa a totalidade da presença de nossos
territórios em nós, seja através do que comemos e falamos. Ser Sarõ 83, que carrega sangue tuyuka e
tukano na veia, é ter a consciência da responsabilidade de manter esses conhecimentos vivos em mim e,
considerando o curso que estou fazendo, é saber que o acesso ao ensino superior hoje é pautado na
importância de adquirir conhecimento ocidental a fim de somar na luta contra os retrocessos e pela
manutenção dos direitos conquistados na redemocratização do Estado.

83 Nome indígena da autora.

419
Estamos atrás de conhecimento, mas sobretudo para lutar pelos nossos direitos, é um
mecanismo de luta pela nossa existência, pelo direito de preservar os conhecimentos ancestrais, esse é
um dos principais motivos de estarmos inseridos na universidade, pela manutenção desses
conhecimentos, porque somos o resultado de luta de parentes que estiveram presentes na UnB antes de
nós, bem como pela luta de nossos ancestrais. A nossa resistência hoje é externalizada além da tinta do
jenipapo e urucum marcando território na universidade enquanto corpo território, contamos com a tinta da
caneta, para falarmos de nós e por nós mesmos, assim demarcando também territórios acadêmicos.
A UnB além de ser um lugar acolhedor para estudar é território estratégico para articular políticas
inerentes a questões estudantis indígenas do ensino superior. A Maloca carrega um significado muito
importante e fundamental nesse aspecto pois se materializa como território indígena dentro da
universidade, reverberando a potência do movimento dos acadêmicos indígenas no enfrentamento aos
desafios de permanência nas universidades.

Figura 1 – Projeto Tecendo Saberes - GPDES e AAIUnB na Maloca UnB. Fonte: Oziel, 2022

PALAVRAS-CHAVE: estudantes indígenas; ensino superior; Universidade de Brasília.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Jéssica Gillian. O lugar dos estudantes indígenas na UnB (2004-2021). Brasília. 2021.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

420
A TRAJETÓRIA DE UM UMUTINA NO CAMINHAR DO CONHECIMENTO E OUVINDO SEUS
ANCESTRAIS: REFLETE A SAÚDE INDÍGENA, COVID-19 E O IMPACTO EM SUA ALDEIA

Ademar Calomezore Teodoro


Pertence ao Povo a Balatiponé Umutina, do estado de Mato Grosso. Graduando do curso de Ciência Política pela
Universidade de Brasília, membro da Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília-AAIUNB.
ademarcalomezore99@gmail.com

Chego na Universidade trazendo como referência as palavras do meu pai em meu coração e na
mente, meu grande incentivador para os estudos. Vivemos situações difíceis. Tive que sair da aldeia.
Nesse sair encontrei pessoas não indígenas que me auxiliaram também. Estando na UnB, no curso de
Ciência Política, me deparo com esse período pandêmico. Quero poder falar de mim, do meu Povo e
desse espaço que eu e outros parentes ocupamos, com a nossa força Ancestral. Bem como escreve
Joelson:
Porque uma coisa é você ter um lote de 10 hectares de terra, outra é você viver em um
território com matas, lajedos, rios, lagos, etc. Quando pensamos em território, não
estamos falando de um quadrado ou de demarcação com determinado aspecto. Estamos
falando de um lugar cheio de símbolos de pertencimento alicerçados na abundância da
vida. (FERREIRA, 2021, 43).

Compreendendo que é necessário obter e socializar as informações que nos vêm, também na
Universidade, no sentido de possibilitar o entendimento da causa em sua origem, das dificuldades que se
perpetuam há séculos dentro do contexto indígena, mostrar nossa história de luta é fundamental.
Estamos resistindo há 522 anos nessa terra chamada Brasil, e a amamos. Busco entender os projetos
políticos das instâncias governamentais e torná-los acessíveis aos meus parentes, para que eles, de
posse desse conhecimento, possam opinar e ser agentes transformadores da realidade. Colocar o nosso
olhar sobre tudo que nos vem. Sobre o mundo que vivemos. Esse é o meu papel, de, além de traduzir as
leis e os projetos para o meu povo, trazer suas contribuições, nossas contribuições. Ser um agente ponte
de saberes e fazeres. Ao extrair as informações, é importante atentar sobre os projetos políticos e como
o governo atua diante desses acontecimentos, que acaba prejudicando de forma direta a vida desses
povos, causando danos, tanto material como também espiritual.
Vou destacar a demarcação das terras indígenas no Brasil, pois nossa relação com a terra é
sagrada, e possui um valor espiritual, e não como fator de produção e comércio para obter capital
financeiro. A discussão em torno da demarcação das terras indígenas não é um problema recente,
porém, sempre houve descaso por parte das autoridades brasileiras em reconhecer esse direito, direito
este que está petrificado neste solo, muito antes da chegada dos portugueses. A importância de
apresentar este relato se ampara em seus fundamentos, contendo elementos, conteúdos indispensáveis
para a compreensão dos problemas que afetam as comunidades indígenas. Por exemplo, a pandemia da
covid 19, por ocorrer recentemente, trouxe um agravamento muito maior nos últimos anos, sendo
inesperado e impactante para essas diversidades. Por conta da ausência do governo em demarcar as
terras indígenas em processo já declarado, a tendência de melhoras nos atendimentos era algo
considerado impossível, sendo que várias etnias indígenas ainda não têm seus territórios demarcados,

421
ficando expostas à vulnerabilidade. A relação entre a demarcação das terras e o impacto da pandemia da
covid 19 não se dissocia por conta do período que se apresenta, a questão da terra é desde a invasão do
Brasil, o vírus é mais uns dos problemas que os povos indígenas enfrentam ao longo dos tempos.
A pandemia tornou-se uma epidemia dentro das terras indígenas que, apesar de se encontrarem
em pleno século XXI, ainda se deparam em estado de vulnerabilidade socioeconômica, política e
biológica. De acordo com a SESAI (2020) (Secretaria Especial de Saúde Indígena), estes apresentam
descomunais fragilidades em relação a sua saúde, principalmente com as viroses, em especial as
infecções respiratórias, tal como a Covid 19; tendo em vista que as doenças respiratórias são as
principais causas de morte de crianças indígenas nos dias de hoje (FARIAS et al., 2019).
Esse processo pandêmico, registro que nos fez reativar nossos valores, sobretudo no que diz
respeito à solidariedade. Essencialmente, os hábitos e cultura indígena foram essenciais para o
autocuidado dentro de nossas comunidades. O entendimento da medicina tradicional, por exemplo, foi
primordial para que estes povos indígenas que pudessem minimamente enfrentar o vírus tampouco
conhecido pela sociedade em geral, conforme afirmam Baniwa, Tuxá & Terena (2020).
A pandemia da Covid-19 causada pelo novo coronavírus desenhou um cenário inesperado
não só no campo epidêmico-biológico, como também no que concerne às políticas sociais
de cuidados, prevenção e atenção à saúde dos povos indígenas. Colocou-nos o desafio
de compreender seus múltiplos desdobramentos considerando seus impactos
econômicos, culturais, históricos e políticos nos cotidianos das comunidades indígenas. A
experiência pandêmica em curso no mundo afeta diretamente os nossos hábitos, formas
de convivência, padrões culturais e valores morais (BANIWA; TUXÁ; TERENA, 2020, p.
7).

PALAVRAS-CHAVE: território; demarcação; pandemia; universidade; saúde indígena.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Plano de Contingência Nacional
para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas: versão preliminar.
Brasília: Sesai, 2020.
FARIAS, Y. N. et al. Iniquidades étnico-raciais nas hospitalizações por causas evitáveis em menores de
cinco anos no Brasil, 2009-2014. Cadernos de Saúde Pública, 35, supl. 3: e00001019, 2019.
FERREIRA, Joelson e Erahsto Felício. Por terra e território: Caminhos da Revolução dos Povos no
Brasil; prefácio de TünyCwe Wazahi Tremembé (Rosa Tremembé. Desing Editorial Arataca(BA): Teia dos
Povos, 2021. 178p
LIMA, F.(2018). “Bio-necropolítica: diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe.” Arquivos Brasileiros
de Psicologia 70:20-33.

422
REDES DE CUIDADOS TRADICIONAIS DAS MULHERES INDÍGENAS FULNI-Ô

Saory Txhèska Araújo Ferraz

Introdução

Esta pesquisa busca fomentar e incentivar as práticas da medicina tradicional (Remédio do mato)
para com as mulheres indígenas Fulni-ô, resistentes e residentes no interior do nordeste há mais de 522
anos de colonização. Juntando o saber tradicional com o cientifico, mostrando a importância e
necessidade do contato com a terra, para o cultivo de plantas e ervas medicinais (Remédio do mato).
Dessa forma, busco fortalecimento e valorização da medicina tradicional indígena, revitalizando saberes
passados de geração em geração.
Trazendo ferramentas e estudos de artigos que comprovam e salientam a eficácia de tratamentos
realizados com remédios do mato, sendo seguro e trazendo menos malefícios à saúde que o remédio
encontrado na farmácia. Constando também a problemática e carência de políticas públicas que validem
e normalizem essas práticas. Povo Fulni-ô: A aldeia indígena fulni-ô-PE, conta, aproximadamente, com
6.000 indígenas. A comunidade, mesmo com seu histórico de ataques vindos dos não-indígenas, pelos
portugueses colonizadores, coronéis e jagunços, conseguiu preservar a sua cultura, a língua materna
(Yaathe), as danças tradicionais e o ritual do Ouricuri, que realizam em sigilo.
O nome Fulni-ô significa “Indígenas da beira do rio” na nossa lingua materna. Sendo a junção de
5 etnias que rondavam e povoavam de Pernambuco a Alagoas, eles eram os Fowklasá, os Fôla, os
Brobadás, os Tapuyas e os Carnijós. Esses cinco povos, além de serem indigenas de respectivas aldeias
diferentes, eles tinham coisas “em comum”: a língua que predominava, o YAATHÊ, e o ritual do ouricuri, o
qual era o motivo que reunia essas cincos etnias em tempos do Ouricuri às margens do rio Ipanema. Ao
passar dos tempos, as perseguições contra essas etnias foram se intensificando. A forma encontrada
para resistirem ao genocídio de suas respectivas populações foi a junção e fixação dessas 5 etnias em
uma só com o nome de FULNI-Ô, encontrados nos dias de hoje próximos à cidade de Águas Belas–PE.

Saúde indígena

No contexto da Saúde indígena incluindo políticas públicas, em 1999 foi criado o SasiSUS
(Subsistema de Atenção à Saúde Indígena), que garante o atendimento dos povos indígenas dentro de
suas terras. Já os DSEI’s – Distritos Sanitários Especiais Indígenas – são distribuídos pelo Brasil de
forma a atender as populações étnicas vicinais, independente das fronteiras municipais/estaduais. Muitas
vezes, um mesmo DSEI atende povos de origens diferentes, como é o caso de Pernambuco, por
exemplo. São ao todo 34 DSEIs que desenvolvem ações de atenção primária e saneamento básico,
onde se localizam em terras indígenas as Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) e o Pólo-Base,
envolvendo equipes multiprofissionais de atendimento; e fora das terras indígenas, em áreas urbanas, as

423
referências SUS de complexidade média e alta e a CASAI (Casa de Saúde Indígena), local onde ficam
indígenas que realizam longos tratamentos de saúde e que ainda não receberam alta médica para voltar
às aldeias.
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) visa “garantir aos povos
indígenas o acesso à atenção integral à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do Sistema
Único de Saúde, contemplando a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política [...],
reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito desses povos à sua cultura” (Brasil, 2002, p.13).
Para o Plano Nacional de Saúde, entre 2020-2023, a imunização é uma das ações que mais têm
impactos para proteger a saúde e reduzir a morbidade infantil indígena. A atenção pré-natal é outra ação
prioritária para diminuir riscos de desenvolvimento do recém-nascido e riscos à gestante, bem como
ações de segurança alimentar e saúde odontológica.

Importância do saber geracional (em relação aos conhecimentos medicinais tradicionais)

A pesquisa de campo consistiu na implementação da oratória de mulheres indígenas residentes


da comunidade e detentoras dos saberes tradicionais. Sendo fruto dessas anciãs, busquei trazer de
forma simplificada na elaboração desse artigo científico, as razões, motivos e relações dessas mulheres
praticarem os cultivos e redes de cuidados com plantas medicinais. Selecionei junto com essas mulheres
6 plantas medicinais encontradas na nossa caatinga, com o nome cientifico e seus nomes de origem no
nosso idioma (Yaathê): Aroeira (Myracondruon urundeuva allemão), Thsaykya Catingueira (Poincianella
pyramidalis), Xyxyá Imburana de cheiro (Amburana cearensis), Setxia Juazeiro (Ziziphus joazeiro Mat.),
Lookhea Pinhão bravo (Jatropha mollissima Phol Baill), Thôya Piranha (Guapira laxa Netto Furian) e
Txhleka txhidjo khetkya tsôa.
É de suma importância reconhecer e incentivar esses saberes. Falando-se de promoção e
atuação em saúde e redes de cuidados para os povos indígenas, o problema se inicia aqui. O
questionamento de fazer o plano e práticas de saúde indígena se torna tão mandatório por causa que,
além dos reconhecimentos dos saberes tradicionais, é fundamental reconhecer que esses saberes são
plurais e que se modificam (ou não) conforme cada etnia. E é por isso que reconhecer esses saberes
enquanto plurais, no sentido ontológico e morfológico da palavra, é passo essencial para essa promoção
de redes e práticas de cuidados. Saberes esses que são ensinados de acordo com cada família, e existe
o tempo certo para adquirir os manuseios corretos com cada erva, onde encontrá-la, como prepará-la, e
em qual ocasião usá-la. Como no ritual do Ouricuri, na preparação existe uma cosmologia espiritual
secreta a qual só as fulni-ô podem possuir. Minha irmã mais velha costumava ter problemas com unha
encravada; minha vó Brasilina, fazia um remédio do mato para ela, eu era pequena e muito curiosa,
ficava questionando minha vó, querendo descobrir o que ela usava para confeccionar o milagroso
remédio do mato. Ela me falou: “que cada estação tem um tempo, e precisamos ter paciência, não
adianta colocar a carroça na frente do boi.” No tempo eu não compreendia, mas hoje sei perfeitamente o
que ela queria dizer; eu não tinha maturidade nenhuma para possuir aquele conhecimento, só tinha
curiosidade momentânea.

424
As plantas que nós selecionamos são especiais, vou deixar aqui para que elas são usadas.
Thsaykya (aroeira) é uma planta muito importante para as mulheres indígenas fulni-ô, muito utilizada
como cicatrizante, tanto interno como externo. Para inflamação no útero, é só fazer um banho de assento
com o molho da casca. Xyxyá (Caatingueira): a água da casca do caule é utilizada para o tratamento de
diarreia e dores de barriga, com a flor da caatingueira se usa no tratamento de doenças de próstata.
Setxia (Imburana de cheiro): torram a semente dessa planta, trituram (“pisam”, como elas falam) e
colocam em um cachimbo (A xanduca); é usado para curar dores de dentes. Após colocar a casca de
molho, pode-se usar para tratar tosse e rouquidão. Lookhea (Juazeiro): o chá da folha é usado para
tratar gripe; com a casca do caule pode-se fazer uma boa limpeza nos dentes. Thôyá (Pião bravo): na
aldeia, o látex dessa planta é usado para cicatrizar cortes e ferimentos abertos. Txhleka txhidjo khetkya
tsôa (Piranha): árvore possui flores muito pequenas; da casca do caule pode ser feito um molho que
serve para expelir o resto da placenta do corpo da mãe (utilizado como banho de assento).
Concluímos que essas plantas precisam ser destacadas e guardadas para que esses saberes
não se acabem, pois foram e são de bastante utilidade na comunidade. Devemos preservar e repassar
esses saberes, de gerações em gerações.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª
edição. Brasília: Ministério da Saúde / Fundação Nacional de Saúde, 2002. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em: 29 set. 2022
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. A maior violência contra os povos indígenas é a
destruição de seus territórios, aponta relatório do Cimi. 24 set. 2019. Disponível em:
https://cimi.org.br/2019/09/a-maior-violencia-contra-os-povos-indigenas-e-a-apropriacao-e-destruicao-de-
seus-territorios-aponta-relatorio-do-cimi/. Acesso em 29 set. 2022
GUIMARÃES, Silvia. Escritos de uma desigualdade em saúde. In: TEIXEIRA, Carla Costa; VALLE,
Carlos Guilherme; NEVES, Rita de Cássia (org.) Saúde, mediações e mediadores. Brasília: ABA
Publicações; Natal: EDUFRN, 2017.
MUNDO EDUCAÇÃO. População indígena no Brasil. Disponível em:
https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/a-populacao-indigena-no-brasil.htm#:~:text=Segundo
%20dados%20publicados%20pela%20Funai,e%201.000.000%20no%20interior. Acesso em: 29 set. 2022
SOILO, Andressa Nunes. Do evolucionismo clássico ao particularismo histórico na antropologia:
principais ideias. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 1, p. 251-261, jan./jun. 2014.
Oralidade: Necy Fowklasa, Amazonir, Brasilina.

425
A TRAJETÓRIA DO MEU HERÓI OZIEL JOÃO

Oziel João Filho


Estudante indígena da Universidade de Brasília, do povo indígena Ticuna, cursando sexto semestre do curso de
administração.

Introdução

Hoje a vida segue para podermos aprender diversas coisas sobre as nossas famílias, nossas
antigas tradições, realidades, histórias recentes e vividas. Muitas vezes fazemos aquilo que a vida nos
oferece, levamos uma vida simples, honesta e tranquila. Seguindo passo a passo da nossa trajetória de
vida, alguns sofrem mais e outros sofrem menos. Somos o que somos, cada história começa com muito
amor, com muita força, com muitas oportunidades e com muitas perdas doloridas. Elas nos mostram
como somos mais fortes diante da sociedade, da população e familiares. Nossas famílias são nossas
guias, com eles continuamos sorrindo, nos alegramos nos melhores momentos, vibramos para vida,
estudamos e aprendemos com eles sobre a educação, vida e respeito. Os pais são nossos professores,
educadores, ensinadores e apoiadores, com eles descobrimos bastantes coisas desde muito cedo,
somos instruídos a viver com grande alegria e responsabilidade. Assumimos os riscos e vivemos a
esperança. Somos considerados a esperança e futuras lideranças das nossas comunidades. Cada ser
humano no mundo, na vida, tem seu herói preferido e específico, porém, o meu me inspira com muito
amor, coragem e se torna um dos melhores exemplos da minha vida. Sua trajetória conta com a luz que
me iluminou até aqui; claro, no céu ele pode ter maior orgulho de mim.
Hoje conto a trajetória do meu herói Oziel João, baseado na história verídica e vivida. Sr. João é
uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci na minha vida, como filho, aluno, amigo e
companheiro. Somos conectados, ligados na vida, juntos vivemos desde o surgimento da minha
existência dentro da família João. Acima de tudo esse conto trará muitas emoções, alegrias, conquistas e
muitas experiências vividas. Não é qualquer narrativa, mas sim aquela que permanece na sua história,
aquela que fica na sua cabeça para o resto da sua vida, digamos a melhor versão da sua trajetória.
Para conhecermos melhor a história, vou apresentar para você Oziel João. É meu pai, casado
com a minha mãe Betina Isaque João; os dois tiveram seis filhos, ambos são casados há 36 anos.
Morador da Comunidade Indígena Vila Betânia-Mecürane, clã de mutum, pertence aos povos indígenas
Ticuna do Município de Santo Antônio do Iça – Amazonas. Sr. João é filho do senhor Antônio João e
Dona Elizia Adão João; ambos são grandes lideranças indígenas desde a fundação da comunidade
indígena Mecürane em 1962. Para mais, trouxe e abordo 4 pontos principais que serão divididos em
assuntos: Meu Herói, Liderança, Arquiteto e Morte. Todos os assuntos narrados são verídicos e de fato
reais.

Meu herói

426
Sou Oziel João Filho, quarto filho do sr. Oziel João e Dona Betina Isaque João. Clã de mutum,
nome indígena YAGACÜ, que significa o mutum que canta distante. Tenho 29 anos. Atualmente, moro
em Brasília, cursando curso de Administração na Universidade de Brasília, desde o segundo semestre de
2019. Mas eu nasci na comunidade indígena Vila Betânia Mecürane. O meu pai me chama de Oziel e me
deu esse nome porque o meu nome significa Força de Deus, um nome de um guerreiro que luta e que
defende seu legítimo povo e familiares. O meu herói me ensinou a ter mais força, garra e mais respeito
por natureza e por todo os seres viventes. Ele me ensinou a lutar, a saber lidar com a vida. Ele me deu a
oportunidade de conviver e viver dentro da comunidade onde há mais de 5 mil habitantes indígenas
Ticuna. Me ensinou a respeitar cada rosto, pessoas e cores. Um verdadeiro pai, amigo e um melhor
conselheiro. Sabe, ele é aquela pessoa que você nunca quer esquecer, aquele que te faz feliz, cada vez
que ele contava sobre a sua trajetória, ele se emocionava mais, vibrando de muita alegria. A figura
abaixo representa a força, a conexão e a amizade que temos. Ela demostra o carinho, admiração e
respeito. É uma marca inspiradora e registrada nos melhores momentos.

Figura 1 – O meu Herói. Fonte: Oziel Ticuna, 2021


Quando eu era criança, ele me ensinava a estudar sobre os saberes tradicionais, assim como
pescar, caçar, fazer artes e artesanatos. Eu sou um bom menino, aprendia mais rápido, de vez em
quando chorava, porque queria aprender. Sou muito apegado a ele, todas as vezes que ele saía para
qualquer lugar, corria e dizia para ele: eu vou com você seja onde for. Tem dia que ele levava e outros
dias não levava. Mas para mim é uma aprendizagem muito rica, sua trajetória como pai, amigo me
inspirou de alguma forma para viver a minha história e construir a minha vida acadêmica. Hoje vivo com
a arte de amar a natureza, a vida e a família. Ele me chamava de meu guerreiro e eu o chamava de meu
herói. Porque eu queria ser como ele. O meu pai é o homem mais inteligente e mais corajoso que existe
na face na terra. Não tem medo, quando ele quer algo, ele consegue. Ele não tinha formação, não
cursou em nenhum ensino básico, mas tem a sua habilidade, ele não teve oportunidade de estudar,
porque não teve a oportunidade de cursar ensino fundamental e médio. Porque, na época dele, não tinha
escola e era difícil se tornar aluno.

427
A comunidade era muito pequena, mas, hoje em dia, já tem mais de 5 mil habitantes. Mesmo
assim, ele já nasceu com dom e habilidades. É muito talentoso: canta, dança e toca instrumento. Ao lado
dele, me sinto o filho mais feliz do mundo. Com ele me sentia mais seguro, mais protegido e mais
persistente. Hoje carrego comigo a energia positiva e o pensamento agradável. Ele me concedeu
usufruir todos os conhecimentos dele, me permitiu viver a minha vida, seguindo o exemplo dele; agora
cabe a mim fazer aquilo que é certo e verdadeiro de proteger a minha família e defender os meus
parentes indígenas Ticuna. Buscando conhecimento, valorização cultural e tradição. Por mais difícil que
seja a vida acadêmica, mais vantagem tenho de desafiar.
Quando chorava, ele dizia “vai lá, é a hora de você aprender a lutar, a desafiar e vencer as
dificuldades, porque você é o meu orgulho”. Eu aceitava o conselho dele, fazia tudo que ele mandava
fazer, estudava e fazia todos os meus deveres de casa e da escola. Única coisa que ele queria que eu
fizesse era estudar e ficar em casa cuidando daquilo que é nosso. Por isso, hoje cheguei aqui na
Universidade de Brasília (UnB), estudando e aprendendo sobre a vida profissional. Sabe, ele é um
orgulho para mim, ele me motivou a estudar e construir a minha vida, respeitando sempre a tradição, as
pessoas e as comunidades. Mantendo o foco de me tornar um grande homem, aprendi a suportar dores
e aprendi a permanecer firme. Uma vez, ele me disse “quando você aprender a viver a vida, você vai
passar por muitas coisas e não esqueça de superar cada obstáculo”, “o mundo é feito para os fortes e
não para os fracos”. Quando ouvia cada conselho me sentia mais poderoso e confiante.
Cada palavra e cada frase dadas por ele me guiou até aqui na UnB. Ele cuidou de mim todos os
dias; me mandou para estudar fora da comunidade por um tempo; fiquei 3 anos fora estudando e
cursando curso de administração na instituição privada; por causa dele aprendi a falar português. Por
causa dele me tornei essa pessoa que eu sou na atualidade. Sem o meu herói, eu não seria ninguém. O
meu herói investiu em mim, a estudar 3 anos fora da comunidade, porque ele já imaginando que eu
chegaria muito longe e que eu sou capaz de fazer aquilo que a vida me ofereceu. O meu herói é meu
maior tesouro. Entendi agora que posso escrever essa história, compartilhando com todas as pessoas
que merecem ouvir, porque os nossos pais são os nossos verdadeiros heróis, eles existem, eles não são
os personagens, mas, sim, são os verdadeiros heróis e guerreiros do mundo. Viver e conviver com ele é
um dos presentes mais incríveis que eu já ganhei nos meus 28 anos, desde 1993 a 2021; aprendi que
posso aquilo que ele podia, de entender o sentindo da vida, viver feliz, amar a família e defender aquilo
que nos pertence. Escrever é essencial na minha vida, ele me ensinou a ler e ser alfabetizado. Ele
contava de como ele pode sobreviver na floresta, durante a caça, a pesca e a busca de alimentos. Por
isso, existir para resistir é importante e uma das lendas que carrego na minha vidaa acadêmica. O meu
pai, ele é o melhor pai que existe e muito importante para a minha vida.

Liderança indígenas

Oziel João é líder indígena Ticuna, nasceu na comunidade indígena Vila Betânia Mecürane, no
dia 21 de outubro de 1967. É considerado uma das lideranças e membro mais respeitado pela população
da comunidade Mecürane, se tornou jovem mais valorizado na sua época. Trabalhou como cacique há 1

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ano na própria comunidade. Atuou como membro da Igreja Batista Regular na função de diácono há 2
anos. Atou como vigia da própria igreja há 1 ano, atuou com segurança na comunidade há 1 ano.
Por mais, Oziel João também trabalha como arquiteto da comunidade, fazendo a história e
deixando a sua marca. Ele é conhecido por causa do seu belíssimo trabalho de construção de casas das
pessoas. É um empreendedor e ao mesmo tempo inovador. Seu trabalho é mais procurado por todos os
tempos. Além disso, Oziel também é um caçador e um pescador profissional. Quando ele pesca e caça
vem com vários tipos de peixes e aves. A comunidade inteira comprava com ele. Além de ser um homem
lindo, ele é considerado um dos homens mais sinceros e simpáticos da comunidade, por causa da sua
beleza, alegria, simplicidade e respeito.
As pessoas conseguiam ter amizades com ele, se apegam mais rápido possível. Todo domingo
de manhã ele comprava vários tipos de frutas, convidava seus amigos para lotar casa e tomar café da
manhã com todos. Durante o almoço e jantar se repetia a mesma coisa. Ele é muito amável com a sua
família, com seu sogro e sogra. Ele é mais compreensível com todo mundo, principalmente com os seus
irmãos e irmãs. Oziel também é conhecido por causa da sua arte, artesanato e obras primas feitos na
mão, assim como: canoa, casa, remo, flecha e arcos. Ele passava algumas semanas na floresta fazendo
canoa, até que a canoa ficava pronta e voltava para a comunidade. Todas as atividades se repetiam.
Oziel também tem habilidades de dançar, cantar e tocar sanfona. É um homem talentoso e de muitas
criatividades. Atuou como primeiro cacique dentro da comunidade por um período, trabalhou também na
construção da igreja e casa de reunião. Sua personalidade é de admirar: persistente, líder e focado no
objetivo. Seu modo de pensar é positivamente alto e harmonioso.

Figura 2 – Líder. Fonte: Oziel Ticuna, 2021


É um líder organizador, planejador e bem resolvido financeiramente. Nunca teve problema com as
pessoas e nem com os demais familiares. Teve muitos amigos, companheiros e colegas. Seus hobbies:
jogar vôlei, jogar futsal e futebol de campo. Todos os dias ele gosta de trabalhar, faz aquilo que é
necessário para ele e para toda família. Oziel é o homem mais honesto do mundo, é aquele que faz falta,
amigável, agradável, feliz e extremante importante. Com a sua alegria conquistou a comunidade,
motivando os seus filhos a estudarem e entrarem na faculdade.
Desde a sua infância, seguiu o conselho do seu pai Antônio e da Dona Elizia, seguindo a tradição
familiar, mantendo a língua Ticuna e os clãs. Quando ele era uma criança não teve oportunidade de
estudar e nem teve chance de entrar em uma escola pública. Porque na comunidade que ele morava não
existia a educação infantil e nem ensino fundamental. Porém, ele é ensinado pelo seu pai, sr. Antônio,

429
aprendeu e focou mais nos conhecimentos tradicionais. Hoje seu nome é herdado por mim. Com muito
orgulho carrego comigo a harmonia, o amor, o respeito e a simplicidade de viver a vida. A fonte da vida é
o bem que fazemos na vida.

Arquiteto

Oziel João é o arquiteto mais conhecido da história dentro da comunidade Vila Betânia. Mesmo
sem ter estudado na graduação ou quaisquer universidades, conseguiu a aprender construir casas
bonitas de madeira; com a suas habilidades deixa as pessoas das comunidades mais felizes, ajudou
mais moradores da comunidade e os demais ribeirinhos. O conhecimento do Oziel é de alto nível,
conseguiu progredir demais, ofereceu um trabalho exemplar, por isso, é considerado meu herói. A
trajetória dele me inspirou a seguir em frente com a cabeça erguida. Quando olho para trás, vejo que ele
já fez mais de milhões coisas por mim; quando estudava em Manaus, ele pagava os meus estudos em
instituições públicas e para me tornar a pessoa que eu sou hoje em dia. É ele um profissional completo,
não precisava cursar em uma escola, mas conseguiu adquirir conhecimento com os seus pais. Mesmo
sem ter estudado nas escolas públicas, conseguiu nos dar a vida que temos hoje. Por mais difícil seja
para ele, nunca desistiu de nós.

Morte

Oziel João faleceu no dia 21 de maio de ano 2021, com 52 anos de idade. Motivo da sua morte:
anemia, falta de sangue. Antes de falecer, conseguiu aproveitar a vida junto com a família, amigos e com
os filhos. O meu herói, durante a sua trajetória de vida, é o homem mais feliz do mundo, cada dia
conseguiu alcançar tudo que ele podia. Realizou seu sonho de ser vô, se tornou o melhor vovô do mundo
para toda família. Hoje ele tem mais de 17 netos. Sua morte abalou a comunidade indígena Vila Betânia,
ninguém se conformava com a sua partida, não esperávamos a sua morte. Na realidade ninguém espera
a morte, cada um de nós tem um objetivo a alcançar. Chegará o nosso dia de partir desse mundo, de
viver a vida no outro mundo. Não há como negar e ignorar esse tipo de coisa, existimos mas uma hora
vamos ter que partir desse mundo.
O meu herói faleceu em Manaus, no Hospital Lúcio, às 20h da noite. Quando recebi a notícia o
meu mundo caiu, não existia nada para mim, fiquei tão triste, chorei e derramei mais de milhões de litros
de lágrimas. Lágrimas de amor, saudades e respeitos. Sentimento de não aceitar a morte e não estar
preparado para viver sem pai e sem amigo. Naquele momento não sabia o que fazer, não tinha ideia do
que ia fazer na minha vida. Quase desisti da faculdade por causa dele, porque não aguentava a sua
perda. Era um momento de destruição, desânimo e perda. A minha mãe era pior, chorou demais, foi
totalmente destruída e acabada. Imagina perder um amor da sua vida, não aceitaria a sua morte. Eu,
como filho, me coloco no lugar dela, eu sei o que é dor e perda. Não para comparar, porque quando uma
vida se for, não haverá outra igual. É uma única vida que temos aqui na terra.

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Figura 3 – Morte. Fonte: Oziel Ticuna, 2021
A figura 3 representa o último adeus. A sua partida é mais dolosa. Mais triste e mais respeitado.
Acredito que cada um vai morrer um dia, os nossos entes queridos terão tempo de permanecer e partir
alguns dias. Não estamos preparados para isso, mas temos que aceitar a vida. Viver é lindo demais,
partir é triste demais. Eu simplesmente acredito na força do espírito. Acredito muito que o meu pai se
tornou o meu maior protetor. Que cada dia ele esteja comigo em qualquer lugar que eu for. Durante o seu
enterro cada família, amigos e parentes se despediam. A sua partida abalou a comunidade, a população
se reunia para se despedir do seu corpo, choro por todo lado, lágrimas e grito de despedidas.
A população dizia “grande líder se foi, um vencedor e grande homem, viva a sua história e sua
eterna lembrança”, seu caixão é rodeado por mais de mil pessoas. Eu estava no meio, chorando e
prometendo levar a vida, seguindo a vida na Universidade de Brasília. Porque quando ele estava vivo me
dizia “filho termina a sua faculdade, eu quero que você seja um homem formado, mantendo sempre a
nossa tradição, disciplinas e regras da nossa família, assim que se formar, volte e cuide da sua mãe”.
Levo isso comigo até hoje. Cumprindo a missão de estar aqui na UnB, fazendo aquilo que eu gosto,
acreditando na história do meu pai. Admiro demais o meu pai, da forma como ele vive a vida, da forma
como ele dá amor para todos nós. Hoje ele me inspirou demais, sua trajetória de vida, me deu a força de
permanecer vivo aqui na cidade, me adaptando e aprendendo. Desistir não faz parte da história do meu
pai, mas, sim, acreditar, motivar e conquistar aquilo que queremos na nossa vida, seja qual for a área
que escolhemos, devemos saber a usufruir cada oportunidade e a chances que a vida nos oferece. Por
fim, acredite na força do bem, lembre-se os melhores heróis do mundo sempre estão perto da gente, são
os nossos verdadeiros guerreiros, amigos e companheiros. São aqueles que nuca vão te abandonar.
Esta é a trajetória do meu herói Oziel João. A vida é curta, devemos aproveitar cada minuto, amarmos a
nossa família, respeitar os nossos pais, acima de tudo honrar seus ensinamentos e disciplinas. Melhor
entender que os nossos melhores exemplos sempre estarão presentes ao nosso lado. Eles são nossos
guerreiros, devemos ser gratos por tudo e pela sua existência. Merecemos entender o sentido da vida,
porque é necessário confiar na força do bem. O meu maior conselho para você é nunca desistir da vida,
principalmente, acompanhar a família seja onde for. Oziel João é o homem presente na nossa vida, como
pai, amigo e companheiro. Com ele aprendi a ter visão como administrador. Com ele consigo enxergar o
meu futuro. Amar é essencial, respeitar a diversidade é extremante importante. Por fim, viva a vida.

PALAVRAS-CHAVE: Meu Herói, Liderança, Arquiteto, Morte.

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A IMPORTÂNCIA DAS PRÁTICAS DA VÓ LUCINDA PIRATAPUYA PARA A MINHA CONSTRUÇÃO
DE CONHECIMENTO NO MEIO ACADÊMICO

Alcineide Neira
Graduanda em Relações Internacionais-IREL/UnB. alcineidepiratapuya.unb@gmail.com

Nos anos 1930, na comunidade/aldeia Japiim Rio Papuri, afluente do rio Uaupés, nasceu Lucinda
Correia (holipahkó) do povo Piratapuya/Waíkana, filha de Higino Correia (do povo Piratapuya) e Joana
Oliveira (do povo Tariana), e também o Adriano Correia (do povo Piratapuya).
A primeira etapa da penetração salesiana no noroeste amazônico foi concluída com a
implantação da missão de São Gabriel da Cachoeira, em 1916 (COSTA, 2012). Após a escolha do local,
o Pe. Giovanni Marchesi Leopoldino e Nicolau prometeram ajuda aos salesianos e, cumprindo com o
trato, se mobilizaram e com o leigo Giovanni Colombo se fixaram em Iauaretê, a partir de 1928. Os
caciques os Tariana para trabalhar na construção da nova missão (COSTA, 2012). Com a chegada dos
religiosos também vieram algumas doenças como tuberculose, que na época, para os indígenas, esses
tipos de doença eram desconhecidos. Para os tipos de tratamentos, eles faziam com as plantas
medicinais e benzimentos de acordo com a sua cultura.
Nesse meio tempo chega ao mundo a minha avó Lucinda Correia e o seu irmão Adriano. E com
essas mudanças, as doenças dizimaram grande parte das famílias, como da comunidade de Japiim e
inclusive da família Correia. No entanto, dessa família a única que se salvou foi a minha vó Lucinda. Da
comunidade toda só restaram duas famílias, que se salvaram dessa enfermidade que destroçou esse
povoado.
Com isso não puderam passar sua sabedoria, sua linhagem de clã foi interrompida por essas
mazelas trazidas que eram ditas como civilização. Dessa maneira, as religiosas que na época residiam
por lá deslocaram-se até a comunidade e ajudaram no que precisavam e levaram a minha avó, que na
época tinha por volta de 6 ou 7 anos de idade. Desde essa época ela foi criada no convento aos
cuidados das religiosas, até sua vida adulta. Como optou por não seguir a vida religiosa, foi dada sua
mão ao Joaquim Moreira, que na época trabalhava como ajudante de carpinteiro na missão salesiana.
Por mais que os salesianos tivessem chegado depois dos indígenas nativos, que sempre
estiveram ao redor daquela região do povoado de Iauaretê, foram eles que predominaram nas terras.
Que inclusive quando o meu avô se casou, eles deram uma parte da terra que hoje em dia a comunidade
chama São Domingos Sávio.
Desde o seu casamento ele morou e construiu a família. E como a minha avó não teve o
conhecimento prévio, por motivo de ter perdido os pais cedo, o conhecimento do cuidado no parto e
durante pós-parto ela obteve com as demais anciãs. Mas na época os partos eram feitos fora de casa e
só com a mãe, sem ajuda de ninguém.
Os partos ocorriam fora de casa, pois segundo a tradição não poderiam ocorrer dentro de casa,
pois era vista como agourar. Era nesse sentido que os anciãos diziam de o parto acontecer fora de casa,

432
como no meio do mato, e não era para avisar quando vinham as contrações, pois se falasse as
contrações paravam e o parto demoraria.
Durante o processo do parto o preparo do ambiente é essencial, como cavar o buraco para
enterrar a placenta e colocar folhas em volta para colocar o recém-nascido, ascender e assoprar o
cigarro preparado para a chegada do bebê. Todo esse ritual de benzimento é a forma de proteger do
mundo externo, ou seja, proteger das doenças e de seres espirituais que possam fazer mal ao bebê e a
sua mãe.
Só depois do nascimento que a mãe e o recém-nascido voltam para a casa, e o pai vê o seu
bebê. A partir disso que, dependendo se for menino ou menina, dão o nome de benzimento, dependendo
da linhagem do seu clã, assim preparam todo ritual de benzimento.
Logo no pós-parto tem um processo a seguir, como no primeiro banho da mãe, que só deve
tomar o banho antes de ser benzida, do caminho onde houve parto até o rio. Quem acompanha
geralmente é a mãe, com a queima de breu no qual foi benzido.
Assim ao longo de sua vida a minha vó Lucinda, por mais que tenha perdido a sua mãe
precocemente, aprendeu e adquiriu os conhecimentos por necessidade, e teve seus filhos com todo o
cuidado e preparo do nascimento. O seu conhecimento foi tão vital que ela mesma fez os partos de suas
filhas, ela fez 17 partos, inclusive só dela foram 10 partos.
O mais complexo dos partos foi o quarto parto que ela fez da minha mãe, o qual foi o meu
nascimento, que foi um parto pélvico, e por mais que ela tivesse uma boa experiência, foi das coisas que
ela teve que passar a confiança para a minha mãe. E com todo esforço, mas durante o processo houve
lesões na clavícula direita, mas mesmo assim conseguiu terminar o parto. Essa é a importância do
conhecimento/sabedoria dos nossos anciãos nas nossas comunidades.
O resguardo é entendido aqui como todo cuidado na vida da pessoa e dos seus familiares,
envolve saber o que comer, o que usar, como se pintar, cortar o cabelo, se pode trabalhar,
pescar, correr a corrida de tora, ir para a roça, fazer sexo, tomar banho junto e o quê
cantar. Envolve também cuidados em fases importantes da vida como, por exemplo, no
momento de parir, menstruar, que devem ser mantidos pela pessoa-mulher, seu
companheiro, seus filhos e seus pais. Então é um cuidado familiar que precisa de todos da
família para acontecer. (KRAHÔ, 2017).

Com todos esses cuidados/saberes que a minha avó tinha me trouxe a vida, e com isso ela pôde
passar toda essa sabedoria para minha mãe. E hoje em dia a minha mãe, sempre que alguma mulher
precisar de sua ajuda, ela tenta fazer o que foi passado a ela.
Como isso faz diferença no parto, pois depois de 2 anos do meu nascimento minha mãe deu à luz
mais uma menina, porém a minha vó chegou depois do parto, e era parto pélvico, e infelizmente a bebê
faleceu. Essa é a diferença quanto se tem uma pessoa na família ou na comunidade ter conhecimento e
sabedoria para poder orientar.
E, ao longo do tempo, vão se perdendo as sabedorias que poderiam muito bem ser passadas às
demais mulheres. Mas com o passar do tempo, as novas gerações deixam de dar importância a tais
conhecimentos das nossas queridas bibliotecas, que hoje em dia não estão mais vivas entre nós. Essas
práticas são vistas como ultrapassadas, porém os bebês vêm da mesma naturalidade como vinham a
séculos e séculos passados.

433
Todo o cuidado é preciso para o bem viver, das mulheres e dos crescimentos dos seus filhos, pois
muitas vezes muitas mulheres não sabem porque os seus filhos vivem doentes. Pois, para nós do povo
Piratapuya/Waíkana, todos esses cuidados, como comer, o resguardo, banhar, trabalhar, sexo etc., tudo
é interligado para que tenha uma vida, ou seja, o seu bem-estar.
Com toda a trajetória de como a minha avó viveu, isso não fez com que ela deixasse de buscar
conhecimento/sabedoria. Em nossas comunidades/aldeias é isso, apesar de que foram tirados os
costumes com a chegada dos religiosos, estamos buscando um meio de fortalecer os conhecimentos
dos nossos avós, avôs. Para que não sejam esquecidos, as práticas tradicionais que salvaram muitas
pessoas e ainda iriam salvar se resgatarmos essas vivências.
A partir disso que começa a minha trajetória, de querer conhecer o mundo e de como é
importante a questão do saber, ou seja do conhecimento, da aprendizagem. Desde que eu me entendo
por gente, sempre questionei o porquê das coisas, sejam elas o que for e principalmente dos saberes
tradicionais, em especial dos benzimentos. Hoje em dia uma das pessoas bem próximas que têm esses
conhecimentos é o meu pai; e claro a pessoa que passou foi a minha avó paterna. Então sempre tive
essa conexão dos saberes espirituais e práticas tradicionais na minha família.
E, com isso, o meu sonho sempre foi de buscar conhecimento fora da comunidade/aldeia.
Durante o ensino médio, sempre pensava em como eu entraria em uma faculdade, como isso de alguma
forma contribuiria com a minha comunidade.
Sair da comunidade, é claro, era forma de ajudar meus pais financeiramente. Pois, com o
aumento da população local, não tínhamos muita caça e nem peixe para a subsistência das famílias. E
como a minha comunidade fica na fronteira, de vez em quando tinha mulheres de militares precisando de
alguém para ajudar com coisas de casa e ou para ajudar a cuidar de seus filhos. Então aos 12 anos
comecei a ajudar cuidando de uma criança, para poder ajudar meus pais. E na época a troca de trabalho
era por um prato de comida.
Mesmo estudando, pela parte da manhã ia fazer esse trabalho e à tarde ia para a escola. Por
meio desses desafios, terminei o ensino médio em 2009, com 17 anos. E logo comecei a correr atrás de
vestibulares. Mesmo assim, meus pais falaram: porque estava fazendo isso se eles não tinham
condições financeiras. Vi que era um sonho distante, fora da minha realidade. E então resolvi ter uma
experiência religiosa, acreditava que com isso poderia ajudar a comunidade de alguma forma. Fiquei um
ano e vi que não era para mim. Sempre questionava as coisas, tinha coisas que não faziam sentido,
então resolvi sair.
E por algum tempo fiquei no município, para poder trabalhar e assim ajudar a minha família.
Nesse meio tempo da minha estadia na cidade, recebi uma notícia que até hoje em dia faz eu querer
continuar superando os desafios. A notícia do falecimento do meu irmão; em menos de uma semana de
enfermidade, perdi o meu irmão. Como de costume, quando tem alguém doente recorremos a nossas
plantas medicinais e benzimentos. Mas isso não quer dizer que não queremos a atenção do Estado. Ao
longo da semana meus pais fizeram o que estava ao alcance deles, mas tiveram que pedir ajuda da
médica do exército. Porém esse socorro foi negado, simplesmente porque o meu irmão não era filho de

434
militar, pois segundo meus pais ela foi a trabalho do exército e cuidaria apenas dos entes dos militares. A
partir desse fato, vieram novamente os meus questionamentos de como funcionava o “SISTEMA”.
Nesse meio tempo construí uma família, tenho um filho, mas por motivos que muitas mulheres
sofrem nos dias de hoje, não consegui seguir em frente com o relacionamento. Mesmo assim continuei
fazendo provas do ENEM e, em 2017, passei em duas universidades, porém não pude ir por conta da
família e de questões financeiras. Mesmo assim, fiz um curso técnico em secretariado escolar no Instituto
Federal do Amazonas (IFAM), em 2017, e concluí em 2018.
E finalmente, em 2019, fiz inscrição do vestibular indígena da UnB. Me esforcei tanto que
estudava no meu trabalho. Na época trabalhava em uma Organização indígena sem fins lucrativos. Fiz a
prova que ocorreu no município onde morava, em São Gabriel da Cachoeira-Amazonas. E em julho de
2019 chegamos em Brasília. E tive que deixar meu filho, para que pudesse correr atrás desse sonho de
conhecimentos fora da comunidade. Sabia que seria desafiador, pois era a primeira vez que saía do meu
estado. O clima e os costumes eram diferentes, e com muita saudade do meu filho e dos meus pais. Foi
e é muito doloroso estar longe deles, mas tive que fazer a dor como a minha força.
E logo nas primeiras aulas não consegui fazer amizade, pois soube que o curso que tinha
escolhido era um dos cursos da elite, Relações Internacionais. Todos da sala tinham um conhecido, e
nos trabalhos de grupo e dupla eles chamavam os conhecidos e eu fazia e faço sozinha.
E, como não estava acostumada a correr em uma faculdade, tive que me esforçar dez vezes mais
que meus colegas de sala. No dia de domingo resolvi ir à universidade para fazer um trabalho, pois não
tinha um computador onde morava, e isso fez com que eu saísse de casa. Chegando lá, estava sozinha
andando e me deparei com uma mulher branca, que cuspiu em mim. Naquele momento, só queria ir
embora dessa cidade e abraçar os meus pais e filho.
Por mais que parecesse difícil, eu não desisti, e no término do meu primeiro semestre, a caminho
da minha comunidade, recebi um convite para fazer parte de uma diretoria para coordenar uma escrita
de artigo, que é parte de um projeto de extensão vinculado ao Instituto de Relações Internacionais-
IREL/UnB. Foi um dos primeiros passos e uma experiência incrível que tive dentro da academia, e que
abordava as questões e história da Organização Internacional do Trabalho Histórico-OITH. Fiz parte da
diretoria e para mim foi desafiador, pois ainda não tinha escrito, ou seja, era o meu primeiro artigo
acadêmico. E mais uma conquista de nossos estudantes indígenas, pois eu fui a primeira estudante
indígena em um comitê de Simulação das Nações Unidas para Secundaristas-SiNUS
Na era das mídias sociais, todos já testemunharam o quão rápido as notícias vão e vêm, e
novos grupos e identidade se deixam o anonimato e demandam o reconhecimento. As
comunidades indígenas completam grande porcentagem dos povos originários da América
Latina, em especial do Brasil. Os povos abriram caminhos para o surgimento de uma
miríade de individualidades e aspectos culturais, sem os quais o mundo que conhecemos
seria menos plural. Na tarde de domingo (28), nós da UNIC tivemos a oportunidade de
conversar com Alcineide Moreira Cordeiro que faz parte da comunidade Piratapuya do
estado do Amazonas. Alcineide entrou para a história da SiNUS ao figurar como primeira
diretora indígena do projeto. Abordei acerca de assuntos como sua experiência dirigindo a
OITH e exposição a essa oportunidade de tão intenso intercâmbio cultural. (CIRUS, 2020).

Quando saímos das nossas comunidades sabemos que sofreremos algum ato de preconceito e
racismo. O grande desafio é que não sabemos como e quando sofreremos isso. Isso foi uma das coisas
que me fizeram não desistir dessa minha luta por conhecimento, por uma educação melhor e entender

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que o espaço que frequento é meu por direito. Estar no curso de Relações Internacionais para uma
estudante indígena é desafiador. Porque para poder estar nesse mundo tenho de seguir a normas que
muitas das vezes não condizem com a minha vivência. Mas esses desafios são superados a cada
semestre que passa, pois muitos deles que são vividos dentro da sala de aula, como por exemplo de
algum professor que não presta atenção na sua fala por simplesmente você ser indígena. Ainda acontece
muito, e são desafios que buscamos superar por meio de diálogo com os demais estudantes. Mas, para
mim, todos esses traumas que sofri devem ser cuidados com acompanhamentos de nossos pajés, pois
com essas situações as nossas energias espirituais ficam desconectadas do nosso corpo. Então o corpo
e o espírito estão interligados, para obter o conhecimento.
Apesar de tudo, estamos em busca constante por uma equidade melhor dentro da faculdade. Em
2021, com a empatia da professora Cristina Yumie Aoki Inoue, começamos um projeto piloto de aulas de
inglês, que no começo eram voltadas apenas para os alunos de relações internacionais. Em 2022, o
projeto foi institucionalizado, vinculado ao Instituto de Relações Internacionais-IREL/UnB, assim podendo
atender os demais alunos indígenas dos demais cursos, como Direito, Psicologia, Saúde Coletiva etc. Foi
uma conquista não só minha, mas também de todos os estudantes indígenas. Nas aulas poderiam ser
tratados não apenas os normativos da língua inglesa, mas também um espaço de trocas de
conhecimento com os professores voluntários do projeto, do qual faço parte como coordenadora
administrativa.
De 22 a 29 de julho de 2022, participei da 16ª Legislatura da Simulação do Projeto Politeia, como
Parlamentar, na qual pude vivenciar uma simulação que é voltada para as práticas do processo
legislativo.
Portanto, todas essas práticas de conhecimento que os nossos antepassados tiveram, a nossa
vinda à academia é uma forma de concretizar, resgatar, guardar e conscientizar a população que sempre
estivemos de acordo com os nossos costumes, crenças e nossas ideologias, e que estamos para somar
com a universidade.
Mostrar o quanto é importante a nossa presença na universidade e como é importante estar na
construção e formação da sociedade, junto com os conhecimentos e práticas dos nossos anciões.
[…] esse cuidado de que o mundo está em constante mudança, mas que nem sempre
isso significa que os povos vão abdicar de suas origens, culturas e religiões. Ou seja, que
eles têm direito a uma vida digna e ao respeito por parte do Estado. [...] e os saberes
ancestrais, e sua importância para o bem comum da sociedade. (CIRUS, 2020)

Assim com a pluralidade de povos indígenas preservaremos as diferenças culturais por meio das
quais foi construída a nação brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: práticas culturais; saberes; desafios; estudantes indígenas.

REFERÊNCIAS
CIRUS, Lorena. Povos que sonham, Culturas que resistem. Revista Sinus. 2020.

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COSTA, Mauro Gomes da. Os povos indígenas e as Missões Salesianas do Amazonas: as disputas de
poder, as estratégias civilizatórias e a autodeterminação indígena. Texto do Artigo, Tellus, ano 14, n. 26,
jan./jun. 2014.
KRAHÔ,Creusa Prumkwyj.Wato ne hômpu ne Kãmpa:Convivo, vejo e ouço a vida Mehi (Mãkraré).
Dissertação (Mestrato em Sutentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2017.

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A UNIVERSIDADE BEBE DOS NOSSOS CONHECIMENTOS, PORTANTO NOSSO LUGAR TAMBÉM
É AQUI

Maria das Graças da Silva


Graduada em História pela Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central (FACHUSC), 2015. Especialização
em História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena – UNINTER/2020. Mestranda pelo programa de Pós-Graduação em
História Social – UFC. Integrante do grupo de estudos Caldeirão: confluências anticoloniais.

Introdução

Observamos nos últimos tempos uma grande disputa por espaço, sobretudo no campo
educacional universitário. Essas insurgências são importantes porque tratam de ações endossadas pelos
diversos sujeitos, a saber: indígenas, negros, quilombolas, LGBTQIA+, dentre outros grupos que em sua
plenitude veem nesses ambientes um lugar de luta e empoderamento.
O presente artigo objetiva apresentar uma breve reflexão do encontro dos estudantes indígenas
com a universidade, além de apresentar a minha trajetória autobiográfica. Sabemos que o ambiente de
construção do conhecimento e da escrita às vezes assusta, e a chegada nesses espaços muitas vezes é
regada de estranhamentos e preconceitos, ‘’fruto das práticas coloniais’’ (BULHÕES, 2013), porque ele
foi construído pela elite para invisibilizar os pensares coletivos. As escolas foram criadas como critério de
obediência e alienação, por muito tempo vivenciamos um modelo de educação rotulada dentro de um
processo colonial e eurocêntrico onde se nega todo direito, para que a gente deixe de ser quem a gente
de fato é. A partir daí a sociedade vai fortalecendo os estereótipos e muitas pessoas vão pensar que
somos frutos de uma mera invenção, entretanto nós povos originários e tradicionais devemos seguir na
contramão desse sistema imposto e transformar os espaços educacionais em espaços de resistências.
Oliveira (1999), “ressalta que, ao invés de desaparecerem, os sujeitos se fortalecem politicamente,
exercendo considerável influência na sociedade”.
As estratégias coloniais não conseguiram extinguir os povos nativos que atualmente vêm se
destacando como sujeitos autônomos donos de suas realizações. Para Graúna (2013), reconhecer a
propriedade intelectual indígena implica respeitar as várias faces de sua manifestação. Dessa maneira,
pensar a universidade ocupada por estes sujeitos que por muito tempo foram inferiorizados, é pensar na
pluralidade e na interculturalidade de corpos e de saberes oriundos dos seus territórios e das suas
ancestralidades. Nesse sentido, ao adentrarmos esses espaços de disputa do ser, do poder e do
conhecimento possamos, a partir do chão dos nossos territórios, desobedecer ao sistema, desconstruir
os estereótipos que foram impostos aos nossos antepassados e hoje nos atravessam profundamente.

Experiência, Enfrentamento e Resistência

Lembro-me que quando adentrei na faculdade em 2012, ao me identificar enquanto indígena,


fiquei perplexa, porque em pleno século XXI boa parte da sociedade não consegue tratar dos assuntos
indígenas com seriedade e de acordo com as suas vivências.

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Quando me apresentei, deu pra perceber pelos olhares que ficaram procurando as características
de um indígena que viveu lá em 1500 na época da invasão. Mas nós indígenas do Nordeste passamos
por um processo colonial muito árduo de dizimação, perseguições e mortes, mesmo assim, todas essas
atrocidades não foram suficientes para causar nossa extinção. Hoje nos mantemos de pé, firmes e fortes
dentro e fora dos nossos territórios de origem. No cenário atual as universidades bebem dos nossos
conhecimentos. É notável que nós, povos contra colonizadores, somos sujeitos de uma oralidade
potente, a oralidade é uma coletividade, nós somos um corpo cheio de memória. Para Delgado (2006,
p.135), ‘’a memória é uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente’’.
Nesse sentido é nossa missão ressignificarmos esses corpos dentro e fora dos nossos territórios, onde a
gente for, a gente carrega nossa ancestralidade, nossos hábitos, costumes, crenças e tradições, a
sabedoria dos nossos mais velhos e da nossa comunidade. Como enfatiza Santos,
[...] nós, povos contra colonizadores, temos demonstrado em muitos momentos da história
a nossa capacidade de compreender e até de conviver com a complexidade das questões
que esses processos tem nos apresentado. Por exemplo: as sucessivas ressignificações
das nossas identidades em meio aos mais perversos contextos de racismo, discriminação
e estigmas; a readaptação dos nossos modos de vida em territórios retalhados,
descaracterizados e degradados; a interlocução das nossas linguagens orais com a
linguagem escrita dos colonizadores (SANTOS, 2015, p. 97).

Todo esse processo contribui para a redução do preconceito e o racismo contra esses sujeitos,
potencializa a construção do conhecimento a partir das várias cosmologias, ressignifica suas narrativas
com vista nas confluências e no seu protagonismo, fortalece a identidade étnica e ainda valoriza a
presença indígena na universidade.

Aqui chegou foi Atikum no romper da madrugada…

O povo Atikum é um grupo de indígenas que vivem no interior do estado de Pernambuco na


região Nordeste. Esses sujeitos habitam há séculos a Serra do Umã e suas proximidades. Essa etnia
está localizada no Sertão central, de Itaparica e do São Francisco, num contexto geográfico entre serras,
a saber: a Serra Grande também conhecida como Serra das Crioulas e a Serra Umã.
Sou Maria das Graças da Silva, popularmente conhecida como Graça Atikum. Minha etnia de
pertença é o meu povo indígena Atikum – Umã, município de Salgueiro – Pernambuco. Salgueiro é a
principal cidade da região do sertão central pernambucano.
Nasci e me criei numa comunidade por nome de Mulungu que fica no II Distrito de Conceição das
Crioulas. Segundo nossos mais velhos, na região onde está inserida a aldeia existiam muitos pés dessa
árvore, seu caule era utilizado na fabricação de gamelas (utensílio doméstico), sendo útil também na
medicina tradicional.
Eu amo a terra onde eu nasci
Pois tudo que consegui
Eu agradeço a ela... Obrigada ô mãe terra!
Foi nela que eu nasci e me criei
Uma guerreira eu me tornei
Pra defender a terra. Obrigada ô mãe terra!
Na veia corre o sangue
Dos meus antepassados

439
Que morreram fuzilados
Pra defender a terra... Obrigada ô mãe terra!
(Toante Atikum escrito por Jaime Atikum, 2013)

Hoje resido com a minha família na Aldeia Garrote Morto, ambas vizinhas que se separam
apenas por um córrego, localizadas no II Distrito de Conceição das Crioulas. Sou uma das filhas mais
novas de um casal de agricultores (cinco homens e sete mulheres), com a ajuda da força encantada e do
pai do ar serei a primeira mestra da família. Como para todas as pessoas de uma pequena comunidade,
as coisas são sempre mais difíceis, principalmente relacionadas ao estudo.
Carrego dentro de mim um desejo de vários mais velhos que não conseguiram estudar por muitos
motivos, as condições eram precárias e precisavam trabalhar para sustentar a família. Estudei as séries
iniciais na minha comunidade e terminei o ensino médio na cidade de Salgueiro, porque o ensino que se
apresentava naquele momento era somente até a 8° série, hoje o atual 9° ano do Ensino Básico do
Fundamental II. Depois de terminar o Ensino Médio, ingressei no vestibular onde conquistei uma vaga
para licenciatura em História pela Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central (FACHUSC) que
fica em Salgueiro – PE. Neste curso consegui me formar em 2015.
Em 2020, terminei a minha especialização em História e Cultura Afrobrasileira e Indígena pelo
Centro Universitário Internacional (UNINTER) que fica em Curitiba. Em 2021, passei na seleção de
mestrado da Universidade Federal do Ceará (UFC) pelo processo de Políticas de Ações Afirmativas onde
hoje sou estudante do curso de Pós-Graduação em História Social. Por meio desse curso me tornei
membra do grupo de estudos “Caldeirão: confluências anticoloniais”. Ao assumir esse protagonismo da
indígena universitária, posso afirmar que a conquista dessa vaga não é minha, e sim do meu povo
Atikum, estou aqui pelos meus ancestrais que já tombaram e por todas (os) que permanecem aqui nesse
plano terrestre. Nesse espaço acadêmico enfrentamos vários desafios, como: dificuldades financeiras,
deslocamentos das comunidades de origem até a universidade, mas a parte mais preocupante são os
tipos de preconceitos e racismos sofridos pelos estudantes, a dificuldade do ingresso com as poucas
vagas oferecidas e principalmente o desafio de conseguir permanecer nestes espaços.
Diante disso, faz-se necessário a presença de nós indígenas na academia, como afirma a parenta
indígena Joênia Wapichana (2007, p.55)
A universidade também existe lá nas comunidades. Mas o que é a universidade? É o
universo de conhecimentos. E se esse universo de conhecimentos existe ali nas
comunidades, ele precisa ser valorizado – levar esse universo de conhecimentos
indígenas para as universidades é também contribuir para a construção de um país
melhor.

Joênia ressalta a importância desse conhecimento e compreende que tanto o convívio nas
aldeias como nos outros espaços de saber influenciam na construção de metas de acordo com as
nossas realidades com foco nas principais dificuldades.
Ocupo alguns lugares de destaque na minha comunidade que permitem diálogos outros. Sou
indígena professora da rede pública estadual de ensino, como voluntária fui indicada pelas pessoas do
meu povo para ocupar a função de liderança tradicional, conselheira indígena de saúde local e ativista do
movimento de juventude Kyrimbaus, que na língua tupi significa corajoso. Ao falar do grupo Kyrimbaus,
ressalto que foi nele que aprendi mais sobre o movimento, nos diálogos do coletivo de jovens com a forte

440
presença dos mais velhos posso observar que são múltiplos pensares, sobretudo para o fortalecimento
da nossa cultura indígena e o fortalecimento da nossa identidade, considero nossos mais velhos como o
oxigênio na busca por maiores conquistas. Sobre essa questão de fortalecimento identitário por meio da
cultura, enfatiza Baniwá,
As culturas indígenas são concretas, como concretos são os que dão a vida a elas. Os
índios conservam suas línguas, suas experiências e sua relação com a natureza e com a
sociedade. Eles mantêm a tradição oral e os rituais como manifestação artística e maneira
de vinculação com a natureza e o sobrenatural. Mantém o papel socializador e educador
da família, aplicam os sábios conhecimentos milenares e praticam o respeito à natureza.
Com isso, as culturas indígenas seguem manifestando sua personalidade coletiva e de
alteridade, seja no trabalho ou na festa, e por isso são democráticas e populares.
(BANIWÁ, P. 50, 2006).

Durante seis anos, atuei como membra da diretoria executiva (conselheira fiscal e vice-
presidenta) da Associação Indígena dos Produtores Agrícolas do Poço da Pedra (AIPAPP), a primeira de
Pernambuco. Todos esses espaços foram e são para mim um grande fortalecimento, pois sei que na
hora que o meu povo precisar estarei preparada para transmitir os conhecimentos que aprendi durante
toda essa trajetória.

REFERÊNCIAS
BULHÕES, L. Ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas entrecruzadas:
paradigma da contribuição, pedagogia do evento e emancipações na educação básica. Revista da
ABPN, v. 10, ed. esp., p. 22-38, maio 2018. (Caderno Temático: História e Cultura Africana e Afro-
brasileira – Lei 10.639/03 na escola).
BULHÕES, L. Imagens de Angola, imagens da memória: cinemas, marcas e descobertas (tempos das
lutas coloniais, tempos das lutas anticoloniais). 2013. 333 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
CRUZ, F. Indígenas antropólogos e o espetáculo da alteridade. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as
Américas, v. 11, n. 2, p. 93- 108, 2017.
DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 135p.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2013.
LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no
Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade; LACED/ Museu Nacional, 2006.
OLIVEIRA, Assis da Costa; RANGEL, Lucia Helena (org.) Juventudes Indígenas: estudos
interdisciplinares, saberes interculturais: conexões entre Brasil e México. 1. Ed. Rio de Janeiro: E –
PAPERS, 2017.
PACHECO DE OLIVEIRA, João. Uma etnologia dos „índios misturados‟: situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. In: PACHECO DE OLIVEIRA, João (org.). A viagem da volta:
etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste Indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1999.
SILVA, Edson Hely. Índios do nordeste: Por uma história socioambiental regional. Cadernos de Ceas,
Salvador/Recife, n.240, p.117-136, jan./abr., 2017/ISSN 2447-861x.

441
WAPICHANA, Joênia. Ação afirmativa e direitos culturais diferenciados – as demandas indígenas pelo
ensino superior. In: LIMA, Antonio C. de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs.). Tecendo redes
antirracistas II [recurso eletrônico]: contracolonização e soberania intelectual / Leandro Santos Bulhões
de Jesus, Miguel de Barros e Renísia Cristina Garcia Filice (organizadores). - Fortaleza: Imprensa
Universitária, 2020. 2.242 KB. : il. ; PDF. (Estudos da Pós-Graduação).

442
IDENTIDADE E PERTENCIMENTO DE ESTUDANTES INDÍGENAS NA UNB: AAIUNB UMA VISÃO DO
ESPAÇO COLETIVO E ORGÂNICO DE LUTA, RESISTÊNCIA E PERMANÊNCIA DOS ESTUDANTES
INDÍGENAS

Jeniffer Benedito de Oliveira Pêgo


Pertence ao Povo Tupiniquim do Espírito Santo, Graduanda do Curso de Ciências Políticas pela Universidade de
Brasília, foi Presidenta da Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília-AAIUNB. Atualmente
compõe a equipe de coordenação da Associação. jenifferoliveira@gmail.com

Núbia Batista da Silva


Nubiã Tupinambá, pertencente ao Povo Tupinambá de Olivença, Ilhéus, Ba. Pedagoga, Educadora e professora da
Educação Escolar Indígena, mestra e doutoranda em Linguística pela Universidade de Brasília, membro da
Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília- AAIUNB, do Conselho Indígena do Distrito
Federal. nubiatupy@gmail.com

Em meio às tantas dificuldades enfrentadas por nós estudantes indígenas, e respeitando e


honrando nossa diversidade étnica, nós nos unimos e promovemos eventos de resistências e
reivindicações tendo como chão base o respeito à diferença para além dos Povos Originários que
representamos na UnB, criamos Associação dos Acadêmicos Indígenas da UnB-AAIUnB. Nesse espaço
étnico, político, pedagógico e solidário, elegemos nossas pautas, sempre tendo presentes, conscientes e
firmes as nossas situações de direitos diferenciados vividas no espaço acadêmico.
Nesse processo de resistência e de luta, conquistamos a construção do espaço de convivência e
apoio denominado Maloca, solicitado em 2011 e concluído em janeiro de 2016. Buscamos viver o
anticolonialismo no espaço Maloca, pois aqui acolhemos indígenas e não indígenas, com seus saberes e
fazeres próprios de suas culturas milenares. Nele nos reunimos, como coletivo em que cada um, com
seus instrumentos e conhecimentos, seus modos de ser e de existir, doa com a generosidade da
semente lançada na terra.
O indígena ocupa este espaço para firmar sua raiz, sua cultura ancestral, seus rituais com os
novos instrumentos que propiciam sua existência na universidade. E o não indígena pode ocupar a
Maloca no reconhecimento dos seus conhecimentos, mas, sobretudo, agregando o componente da
diversidade aos seus saberes, de modo a aprimorar uma postura de tear/tecer coletivamente novos
modos de pensar, ser e sentir. A Maloca é o espaço da UnB onde acontece a união, em um movimento
dinâmico, como, por exemplo, o ritual do Porancim que é um lugar, espaço de dança sagrado do meu
Povo Tupinambá.
Outro aspecto fundamental a ser explorado nesta pesquisa será a identificação/ co-construção de
comunidades reais e imaginadas presentes nas narrativas dos Parentes e dos demais participantes,
alunos/as e professores/as dos cursos que têm estudantes indígenas matriculados; bem como nos
discursos da reitoria em seu papel administrativo e outros gestores, como diretores de institutos,
coordenadores da Maloca, de programas de pós-graduação etc., especialmente no que refere à ideia
que se tem da universidade como pertencimento x a ideia que se tem das aldeias com o mesmo sentido
de pertencimento.

443
Nosso coletivo é composto por um comitê gestor que elabora os princípios, a realização e a
divulgação dos resultados do vestibular específico para os Indígenas. A cada ano percebe-se o
crescimento e a divulgação do vestibular na UnB. São vários debates na escrita da proposta e dos
requisitos para construção e realização de vestibular específico. A princípio, imaginávamos que uma vez
a Universidade adotando essa modalidade de vestibular específico, todos os institutos da UnB estariam
empenhados e conscientes dessa ação em prol da diversidade. Mas, não funciona assim. Então, nossa
ação no coletivo, junto à coordenação da Maloca, é de enviar o nosso pleito para os departamentos de
graduação e pós-graduação de colocar em suas pautas ordinárias de discussões o nosso pedido. Essa
realidade só mudou esse ano, com a aprovação da gestão superior que nos garantiu estarmos juntos na
construção de uma política de acesso e de permanência dos estudantes indígenas em todos os cursos
da UnB. As vagas dependem de cada departamento, que dentro da universidade tem sua autonomia. O
coletivo provoca uma alteração na sua pauta discursiva dentro da Universidade. E nessa hora é que
nosso discurso se traduz como contra hegemônico, ou seja, é opositivo em relação aos que dominam,
seja em relação à maioria, ou pelo poder que exercem. Segundo as autoras Vivianes:
o próprio discurso apresenta-se como uma esfera da hegemonia, sendo que a hegemonia
de um grupo é dependente, em parte, de sua capacidade de gerar práticas discursivas e
ordem de discurso que a sustentem. A ação social é vista como constrangida pelas
permanências relativas de práticas sociais – as sustentam ou as transformam, dependendo
das circunstâncias sociais e da articulação entre práticas e momentos de práticas. A
articulação entre os momentos das práticas assegura que a hegemonia seja um estado de
relativa permanência de articulações dos elementos sociais (RESENDE e RAMALHO, 2006,
p.168).

Por meio da Associação nós conquistamos o espaço Maloca – que é o Espaço de convivência
Indígena Multicultural da UnB, composta por uma equipe de profissionais multidisciplinar:
Do ponto de vista material, o espaço Maloca é considerado como um espaço de múltiplos e
diversos etnoconhecimentos. Ele é uma adaptação da arquitetura utilizada pelos Povos
indígenas, construído em formato de círculo; ao centro existe uma abertura no teto para
entrada da luz do Sol e para a caída da chuva, em formato de arena. Ao redor, na parte
térrea, tem sala de reunião, banheiros, uma secretaria. Na parte superior, têm salas de
estudos e de informática e banheiros. O espaço possui um elevador. A cobertura é feita de
borra de piaçava e madeira. Nas laterais, há painéis com fotografias e histórias dos Povos
de quase todos os estudantes indígenas que fizeram parte da construção da Maloca
(SILVA, 2017, p. 44).

É importante dizer que a Maloca é mais que um espaço físico. Ela materializa as nossas
aspirações, nossos sonhos e esperanças, é o nosso ponto de encontro da diversidade. A Maloca traz a
força de pertencimento à Universidade de Brasília; nela, a nossa marca cultural identitária é firmada.
Nela e para além dela, nossa produção de conhecimento ancestral é vivida, como quando fazemos
nossa pintura de jenipapo, urucum, argila; quando realizamos nosso Porancim, que convoca a relação
interétnica entre os diferentes ao toque do maracá, com nossa pisada firme, ritmada na nossa mãe terra.
Na Maloca, nosso sagrado é vivido por nós e por quem é convidado a estar conosco. Geralmente, todos
que chegam à Maloca na hora de nossos rituais, são nossos convidados. Temos a prática de incluir os
diferentes. A nossa convivência traz a força ancestral para a superação da falta de uma política de
identidade, em que o reconhecimento da diversidade indígena na Universidade tem a compreensão das
reais necessidades para nossa permanência. Na Maloca criamos cotidianamente uma política de
identidade que reconhece as diferenças e as potencializa.

444
No chão da Universidade tem terra adubada pela busca de uma relação de convivência com a
diversidade, no respeito às diferenças, para o encontro e troca de saberes. Precisamos aprimorar,
aprofundar nas trocas e não desistirmos diante das dificuldades. Esse adubo, fomos nós que o fizemos,
quando nos reunimos e buscamos trazer nossa vivência para a Universidade através das nossas
diversas lutas. Quando realizamos, o Parancim/Toré e nos pintamos com urucum, jenipapo, argila
colorida, puba. Quando tocamos o nosso Maracá e usamos nosso cocar, fumamos o nosso cachimbo,
usamos as nossas ervas, que já são cultivadas com muito amor na Maloca. Por que escrevo sobre esse
nosso fazer? Porque é a partir dele que encontramos força e união nos propósitos. É no nosso fazer
diário na UnB que indígenas e não indígenas vão ao encontro dos sagrados saberes e modos de ser, em
rituais que nos anunciam e transformam nossas vidas. Mas, também trato aqui do adubo pertencente ao
não indígena que sabe acolher nossa luta. Esse doutoramento e tantos outros processos de formação
em diferentes cursos de graduação e de pós-graduação, os eventos citados aqui, tudo isso, são também
nossos adubos. E o que acontece com o adubo na natureza? Ele é mistura em forma de doação. As
ervas, as vidas se dão de novas maneiras e, assim, não deixam de existir jamais, não desaparecem. A
vida, sob esta ótica, se torna unidade combustível que a fonte criadora/criativa aproveita. E esta unidade
promove energia que movimenta a nova vida que nasce. Essas minhas palavras são, tão apenas, para
dizer que nossas identidades, quando vivenciadas em coletividade, em uma constelação de respeito e
inclusão, nos colocam, a nós todos, com os pés na terra, onde formamos vivências múltiplas que são, na
verdade, adubo. Mas, digo, adubo que soma para vida nova. Acredito que a expressão do adubo seja
parte do propósito da Universidade, que é de fazer ciência geradora de vidas. Se pensarmos e agirmos
assim, saberemos que o caminho para decolonização será todo aquele que promove e restaura vidas,
em que a fonte criadora cósmica nos sintoniza com toda a natureza a nosso dispor, ou seja, o caminho a
percorrer para o porvir será o do entendimento anticolonialista na prática. Por fim, pretendemos trazer um
percurso coletivo da presença, vozes e identidade indígena na UnB.

PALAVRAS-CHAVE: identidade; indígena; diversidade; pertencimento; permanência.

REFERÊNCIAS
RESENDE, V.M & V. RAMALHO. Análise de Discurso Crítica. 2. ed. 2ª reimpressão. São Paulo. SP:
Contexto, 2014 [2006].
SILVA, Núbia Batista da, Identidades, vozes e presenças indígenas na Universidade de Brasília sob
a ótica da Análise de Discurso Crítica. Dissertação (Mestrado - Mestrado em Linguística).
Universidade de Brasília, 2017

445
NARRATIVA DE UM ESTUDANTE INDÍGENA

Mirim Ju Yan Guarani


Pertence ao povo Guarani, estudante de graduação no curso de Geografia da Universidade de Brasília, membro da
AAIUnB.

As narrativas surgem da necessidade de um diálogo. Não de uma conversa rápida, sem escuta,
mas em se reunir ao redor de uma fogueira e se ouvir as histórias antigas contadas pelos anciões e
anciãs. O momento em que você se põe em silêncio e abre os aprendizados de um mundo que ainda
não conheceu, embora tenha em seu íntimo a presença da consciência que sabe que já viveu tudo isso.
É nas histórias em que os povos indígenas estão a compartilhar nas universidades e em todo o mundo a
lembrança de um mundo que embora esquecido continua vivo e presente na evolução da humanidade. E
é vivido culturalmente, não apenas em teoria ou ideologia.
Por isso a necessidade de dar um momento de fala/escrita para os povos indígenas e se dar um
momento de escuta/leitura de cada experiência vivida que servem não apenas para entreter, mas para se
aprender ensinamentos que estão contidos somente na natureza e nos povos que vivem nela. Assim, as
experiências autobiográficas trazem a possibilidade deste diálogo de modo íntimo, natural, passado de
pessoa para pessoa, e não na formalidade da máquina que processa e traduz somente em números, que
ganha em quantidade e perde em qualidade.
A experiência de cada um até chegar no momento atual é importante de ser considerada. Os
aprendizados que trazem consigo complementam o que se aprende nas universidades, que em muitas
vezes se aparentam contrários, mas existe possibilidade de equilíbrio. O aprendizado de um novo
conhecimento não precisa resultar no esquecimento dos aprendizados anteriores. O único caminho para
o aprendizado é aprender, e não negar o que não se conhece nem se vive.
Então, a possibilidade de apresentar um trabalho autobiográfico, trazendo nossos conhecimentos
tradicionais e culturais, é o que buscamos na universidade. Não queremos deixar de aprender, nem que
a sociedade brasileira e científica negue nossos conhecimentos, nossas vidas. É pela fenomenologia das
nossas experiências que podemos passar ensinamentos vitais para a humanidade, que sem eles vai se
destruir a si mesma, seu próprio mundo, ou entendimento dele. Pois existe um mundo maior ao qual
esse mundo humano foi construído, e uma verdade que orienta qualquer possibilidade de vida: que sem
seu devido respeito o processo de aprendizado se torna superficial e a evolução humana é retida,
apenas no processamento e reprodução viciosa repetindo a si mesma a chave que fecha o cadeado do
verdadeiro aprendizado e missão de cada espírito na Terra que é a evolução da consciência espiritual. É
sobre isso que quero conversar, que queremos, sobre os modos e descaminhos em que estão
conduzindo política, econômica e socialmente o curso do tempo para a autodestruição ética, cultural e
espiritual.
Pois autobiografia não é apenas contar o que vivi, o que ocorreu em algum passado até o
presente individualmente, mas a possibilidade de um diálogo a partir da primeira pessoa - como também
do plural - o mundo que vivemos através também do nosso entendimento geral de mundo. É com a

446
ciência entendendo que seu conhecimento atual não condiz com a totalidade do que é o mundo o único
ponto de partida para qualquer diálogo. E é a partir daqui em que começamos.
Com a experiência cultural em comunhão com a Terra e toda sua natureza, com respeito a toda
forma de vida e compreendimento de que todo ecossistema é um organismo maior vivo e interligado, que
se dará a tão necessária renovação da ciência e da sociedade e a possibilidade de um aprendizado da
consciência. E é sobre a reflexão dessa consciência que se darão as seguintes páginas, que não podem
ser resumidas em quadros gerais, pois para o entendimento do todo só a partir de todas suas partes,
sendo preciso o diálogo aberto para novos aprendizados.

447
Conversatório 9

448
Os trabalhos apresentados versam para além de temas que retratam silenciamentos epistémicos,
apagamento identitário, intervenções ambientais agressivas, produção de um empoderamento, narrativas
de vidas, memórias identitárias, financiamento da educação escolar quilombola, bio-produção, turismo
pedagógico.
Segundo as conversas que se deram pelo advento das apresentações, os participantes
manifestaram posições que notabilizaram avanços pessoais, mas há alguns entraves institucionais. As
manifestações do grupo foram de perceber que os pontos tocados nas apresentações e nas conversas
mostraram que a educação quilombola é uma possibilidade intelectual e uma ação colonial/anticolonial.
Os trabalhos mostraram uma infinidade de situações e condições estabelecidas espalhadas nos
diversos lugares no Brasil, grandes preocupações que vão desde aspectos educativos até espaços de
vida e vivências. As apresentações sinalizaram a existência de sistemas agressores humanos,
ambientais, históricos, em situações de exploração capital e subalternização da vida e da dignidade
quilombola.
O conversatório consolida que as ações de debates são indícios de outras ações práticas, no
sentido de efetivar posições que ocupam lugares de fala, que corporificam a identidade dos territórios
quilombolas.
Assim, Fabiana Vencezlau escreveu um cordel sobre o Conversatório que apresenta as falas das
e dos participantes, a partir de seus sentir-pensamentos quilombolas endossados pelos sentir-
pensamentos das/dos integrantes do encontro, que, em sua maioria, eram quilombolas e
aquilombadas/os.

Sobre educação quilombola


Tivemos a apresentar
A educação na EJA
E os mais velhos a ensinar
É a ação griô
Ancestralidade a valorizar

Falamos sobre artesanato


E também sustentabilidade
Território Quilombola
Sinônimo de liberdade
Memórias de toda uma gente
Onde de forma insurgente
Mostram a realidade

Tanta história de luta


Que a Geomara contou
Intolerância religiosa
Daqueles que pregam o amor
Mas teve também vitória
Forjada na resistência
Dum povo que pela insistência
Não esquece suas memórias

A Lourdes e sua equipe

449
Fez decolonialidade
Levando os estudantes
Pra ver a realidade
De uma comunidade quilombola
Conhecendo a sua história
Mudando mentalidades

A comunidade Kalunga
Também esteve presente
E na sua narrativa
Falava pra toda gente
Do quilombola na universidade
Onde sempre esteve ausente

Joyce veio apresentar


Fazendo sustentabilidade
Com a construção das biojoias
De acordo com a realidade

Taciara vem trazer


A CONAQ em movimento
Nossa representatividade
Que luta a todo momento
Resistir pra existir
Nosso lema todo tempo

Bruno vem para fechar


A apresentação virtual
Fala de desconstrução
Para combater o mal
Do preconceito e racismo
Por meio da educação

O Gilberto acrescentou
O turismo Pedagógico
Pra conhecer o quilombo
Como um meio metodológico
Gera renda e conhecimento
Visibilizar é o propósito

A Marta também traz


Quilombo e educação
Fortalecendo o território
E fazendo ressignificação

Quem disse que não pode falar?


De matemática e sustentabilidade?
O Juami veio mostrar
A nós essa realidade
De lá do povo Kalunga
Onde é sua ancestralidade

A Fabiana Vencezlau
Trouxe a Pedagogia Crioula
Do quilombo Conceição
E sua gente lutadora
Que venceu a opressão
Por meio da educação

450
De fato, transformadora

Depois de tanto falar


Gratidão pela atenção
A vocês do Narrativas
Parabenizo a organização
Ocupar e resistir
Para fazer revolução

O brilhantismo dos ouvintes


Que a nós se juntaram
Suas contribuições potentes
Que aos trabalhos se somaram
A nossa monitora
Não podemos esquecer
A todos e a cada um
Queremos agradecer

Depois de tanto falar


Gratidão pela atenção
Do III narrativas
Parabenizo a organização
Ocupar e resistir
Para fazer revolução!!!

451
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Mirtes Aparecida dos Santos


Raízes do sapê: Biblioteca Quilombola “Yayá Luzia dos
Flávia dos Santos 453
Santos” Comunidade Quilombola do Angelim II - ES
Renata Rodrigues da Costa

Educação escolar quilombola: uma análise sobre a cartilha


Geomara Pereira Moreno Nascimento 457
“Fôjo, sua história está aqui!”

Lourdes Oliveira Gomes


Lívia Sofia Corrêa Rosa
Educação de jovens e adultos (EJA) em território quilombola:
Dayane Machado Leão 461
uma perspectiva ambiental
Rita de Cassia Barbosa de Oliveira
Ricardo Morais de Miranda

Gilberto Silva de Borba Ação Griô no quilombo Vargem Grande 465

Narrativas de vida dos estudantes quilombolas Kalunga do


Lucivânia Rodrigues da Silva 469
curso Educação do campo na UFT/ campus de Arraias-TO

Joyce Assunção Rodrigues


Maria Victória Santos Mali
Maria Clara Miranda Rodrigues Ferreira Artesanato e sustentabilidade: biojoias para geração de renda
470
Eline Lima da Silva em território quilombola
Lourdes Gomes Oliveira5 Ricardo
Morais de Miranda

Refletindo os caminhos da educação como contribuição para


Marta de Assis Souza Ribeiro
ressignificar o território quilombola da Tapera, localizado no 474
Luciano Costa Santos
município de Mata de São João - BA

Tarciara Raquel dos Santos Castro


João Marinho da Rocha
Lutas por direitos: o I Encontro das Comunidades Quilombolas
Alice Conceição Pedreno 477
do Estado do Amazonas
Hayná Andrade
Lyvistom Cortez Macedo

Educação escolar quilombola: narrativas e saberes na


Bruno Rodrigues Severino 481
construção do currículo escolar em Armação dos Búzios - RJ

A Educação Matemática na busca comum pelo


Juami Antonio de Aquino desenvolvimento sustentável na Comunidade Quilombola 485
Kalunga Vão do Moleque (Maiadinha)

Fabiana Vencezlau Educação para a transgressão: por uma pedagogia outra para
491
Karina Fátima dos Santos a transformação e a liberdade

452
RAÍZES DO SAPÊ: BIBLIOTECA QUILOMBOLA “YAYÁ LUZIA DOS SANTOS” COMUNIDADE
QUILOMBOLA DO ANGELIM II - ES

Mirtes Aparecida dos Santos


Quilombola do Angelim II, Professora, Advogada e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais - PPGSD-UFF.
mirtes.@id.uff.br

Flávia dos Santos


Liderança Quilombola da Comunidade do Angelim II, Administradora e Graduanda em Educação do Campo - UFES.
flaviasantosangelim@gmail.com

Renata Rodrigues da Costa


Pesquisadora, Historiadora, Mestre em Ciências Sociais - UFES. renatacostaraizes82@gmail.com

A Biblioteca Quilombola "Yayá Luzia do Santos" é um Território do Saber que pretende reunir a
memória tradicional da Comunidade Quilombola do Angelim II, da oralidade à escrita. Os saberes de
nossos mais velhos são a nossa mais valiosa fonte de conhecimento, pois a memória dos nossos
ancestrais é uma biblioteca viva e riquíssima.
A presente proposta do ponto de memória visa reafirmar a importância do legado das lutas dos
povos quilombolas do Sapê do Norte do Espírito Santo, suas tradições, práticas e saberes ancestrais,
inspirando e educando as novas gerações por meio do acesso a estes saberes aliado ao incentivo à
leitura.
A homenageada é a matriarca quilombola Yayá Luzia dos Santos, que muito nos ensinou e nos
ensina com sua trajetória de vida, coragem e lutas ao longo dos seus 84 anos resistindo em constantes
conflitos para conquista e manutenção do nosso território, para que pudéssemos hoje viver nas terras
dos nossos ancestrais.
A proposta prevê a ampliação da Biblioteca Quilombola “Luzia dos Santos”, localizada na zona
rural na região norte do estado do Espírito Santo, no município de Conceição da Barra, que fica numa
casa da Associação Comunitária com espaço destinado para manter a Biblioteca Quilombola aberta ao
público em geral e promover o acesso de toda a comunidade quilombola do Angelim II aos livros e à
memória.
As comunidades quilombolas são agrupamentos da população negra que, a partir da sua
organização social e política, reconhecem e são reconhecidos a partir de sua origem étnica como
comunidade de remanescentes de quilombo no Brasil. Os saberes e fazeres da população negra que se
autodefine e se reconhece como quilombola em distintos lugares do Brasil reabilitam o legado da
população negra na construção do nosso país.
Os saberes e fazeres tradicionais das comunidades quilombolas são um modo importante de
afirmação da nossa intelectualidade no mundo, e dentro deste campo o incentivo à leitura tem especial
valor, já que é por meio dos livros que conhecemos as mais diversas formas de produção de
conhecimento e compreendemos como as culturas tradicionais historicamente se mantêm vivas, são
passados de geração em geração, hábitos, valores e manifestações culturais.

453
Portanto, nossa proposta inclui três linhas que estruturam a base da biblioteca: garantia do
acesso a livros físicos a uma população majoritariamente negra rural; fortalecimento de um espaço
comunitário autogerido pela Associação da Comunidade de Angelim II; e servir como espaço de
formação e educação quilombola por meio da memória ancestral das lideranças do quilombo, além da
realização de ações por meio de encontros de saberes e fazeres ancestrais e intercâmbios com outras
comunidades e bibliotecas, a serem realizadas em modo presencial e/ou remoto face ao impacto da
pandemia da COVID-19 e as novas tecnologias existentes. Nosso propósito é superar a ausência de
espaços dedicados à leitura na nossa cidade e assegurar para nossa comunidade, que fica na zona
rural, o acesso à leitura a partir de livros físicos em um acervo organizado e selecionado pela
comunidade com o apoio de educadores e moradores locais.
A Biblioteca Quilombola “Luzia dos Santos” nasce do desejo da Associação da Comunidade
Quilombola do Angelim II de transmitir os saberes ancestrais da comunidade, suas histórias e memórias
que foram narradas e registradas nos livros. Nossas histórias têm sido contadas por várias gerações por
meio da oralidade e a ela queremos unir a promoção do incentivo à leitura de livros físicos.
Os saberes e fazeres de nossas comunidades compõem um acervo precioso da produção de
conhecimentos e as bases civilizatórias dos povos quilombolas podem e devem ser a principal base da
Educação Quilombola, como o Mestre Quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015, p.41) destacou:
As manifestações culturais dos povos afro-pindorâmicos pagãos politeístas são
organizadas geralmente em estruturas circulares com participantes de ambos os sexos,
de diversas faixas etárias e número ilimitado de participantes. As atividades são
organizadas por fundamentos e princípios filosóficos comunitários que são verdadeiros
ensinamentos de vida.

Destacamos ainda que a não existência de escolas ou bibliotecas próximas da comunidade é o


principal problema para acesso à leitura e aos livros. Localizada na zona rural do interior do estado do
Espírito Santo, na comunidade não há escola próxima, livrarias, ou bibliotecas para acesso público aos
livros. Assim, pretende-se promover o acesso e a circulação de obras literárias como mais uma
potencialidade a ser incluída no cotidiano e na vida dos moradores da Comunidade Quilombola de
Angelim II.
Em um campo da pesquisa do Instituto Pró-livro intitulada “Retratos da leitura no Brasil”, que está
em sua 5ª edição e foi realizada de outubro de 2019 a janeiro de 2020 em todos os estados do Brasil,
destaca-se que o público não leitor abarcado pela amostra nunca foi presenteado com livros nem na
infância e nem a adolescência. Consideramos esse dado ao pensar no desafio que temos de ter livros
físicos em uma comunidade negra, distante do acesso à escola, localizada no interior do Brasil.
As comunidades quilombolas de Sapê do Norte distribuem-se majoritariamente nas áreas rurais
dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, no norte do Espírito Santo (ES). De acordo com
Ferreira (2011), estão organizadas, territorialmente, em sítios familiares e por meio destes mantêm laços
de compadrio e parentesco, constituem redes de trocas, solidariedade, vínculos religiosos etc.

454
Pesquisas como a de Oliveira e Silva (2020) 84 indicam que existiram muitos quilombos ao longo
dos vales dos rios Cricaré e Itaúnas, na região norte do ES, no século XIX. Atualmente existem cerca de
30 comunidades que se definem como tais na localidade de Sapê do Norte – região coberta por grandes
extensões de plantas nativas, como capoeiras, sapezal e entrecortada por rios e lagoas.
Os desafios para o acesso a direitos das comunidades quilombolas do Sapê do Norte do ES
ultrapassam as necessidades básicas apresentadas em suas vozes e reivindicadas na manifestação
cultural do Baile do Congo de São Benedito do Ticumbi de Conceição da Barra - ES.
Hoje, o povo lá do Norte passa fome, Os grandes culpados são vocês, Que a grande
floresta plantaram de cana-de-açúcar e eucalipto. O povo da terra vocês expulsaram!
Vocês vão morrer de fome, vão come erva daninha. De raiz de cana-de-açúcar e nem de
eucalipto Não dá pra fazer farinha, E tampouco dá pra criar gado, porco nem muito menos
galinha. (SCHIFFLER, 2018)

A memória mais antiga das comunidades quilombolas remete-se ao regime de escravidão,


quando os ancestrais africanos chegaram ao Porto de São Mateus como escravos para trabalhar nas
grandes fazendas produtoras de farinha de mandioca, memória contada e recontada pela nossa
ancestral .
Yayá Luzia dos Santos, Matriarca da Comunidade Quilombola do Angelim II, na janela da casa
principal da comunidade, onde viveu até os últimos dias de sua vida:

Figura 1 – Yayá Luzia dos Santos. Fonte: Arquivo da comunidade do Angelim II, 2003

Porém, a trajetória dos nossos povos, como diz o Mestre Quilombola Antônio Bispo dos Santos
(2015, p. 38):
[…] transpõe qualquer texto científico ou literário. Ela é visível e palpável materialmente e
pode ser sentida imaterialmente, tanto quando olhamos para o passado e fazemos

84 O artigo citado foi escrito pelos Pesquisadores Doutores Osvaldo Martins de Oliveira e Sandro José da Silva, sendo
intitulado: A pandemia da COVID-19 em quilombos no estado do Espírito Santo: uma avaliação preliminar. O livro
Pandemia e Território pode ser encontrado e baixado no link:
http://www.aba.abant.org.br/files/20200901_5f4e9a9024e0f.pdf.

455
referência aos nossos ancestrais, como hoje quando visitamos as comunidades da
atualidade e dialogamos com as suas organizações e manifestações culturais.

PALAVRAS-CHAVE: quilombo; memória; biblioteca; tradição.

REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Osvaldo Martins de; SILVA, Sandro José da. A pandemia da COVID-19 em quilombos no
estado do Espírito Santo: uma avaliação preliminar. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; MARIN,
Rosa Elizabeth Acevedo; MELO, Eriki Aleixo de (org.). São Luís: UEMA Edições/ PNCSA, 2020.
Disponível em: http://www.aba.abant.org.br/files/20200901_5f4e9a9024e0f.pdf
SANTOS, Antônio Bispo. Quilombos, Modos e Significados. Editora COMEPI, Teresina/PI, 2007.
SCHIFFLER, Michele Freire. Cultura popular quilombola: o Baile de Congo de São Benedito de
Conceição da Barra / Michele Freire Schiffler, Jonas dos Santos Balbino, Aline Meireles do Nascimento –
São Carlos: RiMa Editora, 2018.

456
EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: UMA ANÁLISE SOBRE A CARTILHA “FÔJO, SUA HISTÓRIA
ESTÁ AQUI!”

Geomara Pereira Moreno Nascimento


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia.
Mestra no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da
Bahia. geomoreno7@hotmail.com

Introdução

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a cartilha intitulada: “Fôjo, sua história está aqui!”, de
maneira a identificar elementos que contribuam para a execução das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ). A cartilha resulta do Produto Educacional (PE) da
minha pesquisa de mestrado em Ensino e Relações Étnico-Racias pela Universidade Federal do Sul da
Bahia - UFSB, em 2020.
O material produzido, conforme apresentação do PE, tem por objetivo preservar a memória,
história e cultura da Comunidade Quilombola do Fôjo em Itacaré-BA, e tem a pretensão de servir de
material de apoio para auxiliar as professoras da Escola São Roque II, localizada na Comunidade
Quilombola do Fôjo, a contar a história do quilombo para fazê-la conhecida desde a infância dos/as
remanescentes de quilombolas.
A cartilha foi construída e fundamentada por meio da Lei nº 10.639, promulgada em 9 de janeiro
de 2003, pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. A referida legislação institui a
obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de
ensino, público e particular nos níveis fundamental e médio. Vale salientar que a Lei nº 11.645/08,
sancionada pelo Presidente Luíz Inácio Lula da Silva e pelo Ministro da Educação Fernando Haddad,
alterou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede
de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Como também nas DCNEEQ, na medida em que priorizam a pedagogia própria, respeito à
especificidade étnico-racial e cultural da comunidade pesquisada, e quando disponibilizam para o corpo
docente da escola e para a Secretaria de Educação do Município mais uma alternativa de material
pedagógico para auxiliar no Projeto Político-Pedagógico (PPP) das escolas quilombolas e naquelas
escolas que recebem alunos quilombolas fora de suas comunidades de origem.
Assim sendo, o PE foi construído na perspectiva de contribuir para a aplicabilidade do estudo da
história e cultura afro-brasileira na Escola São Roque II. A escola é multisseriada, tendo educação infantil
e fundamental I. A questão foi suscitada na medida em que se constata a negação da EEQ no espaço
educacional, a partir de um seguimento religioso por parte das professoras que ali lecionam, de maneira
a encontrar estratégias que pudessem oferecer possibilidades diversas de ensino-aprendizagem sobre a
sua história e cultura.

457
Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, para tanto os procedimentos metodológicos
utilizados serão: levantamento bibliográfico e documental, a partir da dissertação de mestrado e da
cartilha “Fôjo, sua história está aqui!”, de Nascimento (2021), e de dispositivos jurídicos que versam
sobre a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

Análise sobre a cartilha “Fôjo, sua história está aqui!”

Neste primeiro momento, considero importante pontuar alguns dos fatores identificados na
pesquisa de mestrado que levou à elaboração deste PE. Dessa forma, os dados apresentados decorrem
de resultados da dissertação.
Conforme constatado por Nascimento (2021, p. 87)], [...]“todo o quadro de funcionários/as da
escola e a maioria dos pais da comunidade escolar exercia a fé protestante e que, por esse motivo, a
EEQ não é aplicada”. Desse modo, pode-se inferir, que neste caso, a opção religiosa constitui-se um
risco para a afirmação da identidade étnica da comunidade, já que são impostos o silenciamento e o
apagamento da própria história no espaço escolar, ocasionando, de certo modo, a sua descontinuidade
histórica. Outro ponto importante para se refletir, conforme Nascimento (2021):
A professora continuou a relatar que recebeu material didático do Ministério da Educação
que versava sobre a história e cultura da África; porém, enquanto professoras, elas o
analisaram e consideraram impróprio para ser aplicado em uma escola que está em uma
comunidade quilombola monoteísta (NASCIMENTO, 2021, p.88).

Observa-se a partir desse relato uma dicotomia, na medida em que, a história dos quilombos no
período colonial é permeada por movimentos de lutas e resistências com objetivo de reconstrução das
suas identidades e vidas, enquanto na atualidade, especificamente no Quilombo do Fôjo, identifica-se um
movimento contrário, o apagamento da própria história, promovido por quem deveria protegê-la.
Vale sublinhar que há indícios de epistemicídios pois, conforme Nascimento (2021, p.88),
“Questionada sobre onde estavam os livros, a professora respondeu: ‘as histórias eram feias, iriam
assustar as crianças [...] não sei onde estão os livros, sumiram’.”
Esses foram alguns dados, coletados durante o percurso da pesquisa, que impulsionaram a
construção de um material pedagógico que apresentasse para essa comunidade escolar elementos que
estão preconizados nas DCNEEQ e que estão presentes no cotidiano da comunidade.
Dessa maneira, usou-se como parâmetro Brasil (2012, p. 8), Art. 14 da DCN: “A Educação
Escolar Quilombola deve ser acompanhada pela prática constante de produção e publicação de
materiais didáticos e de apoio pedagógico específicos nas diversas áreas de conhecimento, mediante
ações colaborativas entre os sistemas de ensino.” Nessa perspectiva, o PE foi elaborado de forma
colaborativa no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da UFSB, para servir
como um material de apoio pedagógico.
A cartilha é estruturada a partir da realidade local do quilombo, considerando seus modos de vida,
que estão em consonância com as DCNEEQ, e respeitando a crença da comunidade. O objetivo é
apresentar, a partir da realidade local, os elementos constitutivos para a promoção da EEQ. Conforme
Nascimento (2021):

458
O produto foi produzido em formato de gibi, com ilustrações e linguagem de fácil
compreensão, destinado para as crianças da Escola do Fôjo. A narrativa do produto
aborda as questões relacionadas à origem da palavra quilombo e o que são, cita o
quilombo do Palmares, discorre sobre o processo de titulação e certificação e também
conta a história de constituição do Quilombo do Fôjo, pontua a localização do quilombo e
a sua caracterização e o processo de autorreconhecimento. A cartilha foi elaborada
considerando os aspectos econômicos, opção religiosa e organização social da
comunidade (NASCIMENTO, 2021, p.91).

O escrito conta a história fictícia de quatro (4) crianças moradoras do Quilombo do Fôjo, Maria,
João, Ruth e Marcos, que um dia resolvem conversar sobre a história dos quilombos. Inicia-se o diálogo
com a origem do nome quilombo e termina-se com o autorreconhecimento das suas identidades. A
personagem Maria inicia a história a partir do que ouve em casa dos mais velhos. Nesse caso, a
oralidade e a memória assumem um papel importante, pois apresentam possibilidades de aprendizagens
por meio da transmissão das histórias dos mais velhos para os mais novos, possibilitando a continuidade
histórica do quilombo.

Figura 1 – capa da cartilha “Fôjo sua história está aqui!”. Fonte: Quipá editora, 2021

A obra apresenta várias possiblidades de aplicabilidade e fortalecimento de uma identidade


coletiva, que pode ser utilizada a partir das metodologias integrativas, como: contação de histórias;
elaboração de aula extramuros, que possibilite a aprendizagem no território quilombola, através da
história do Rio de Contas, que foi a porta de entrada de Alfredo Gomes 85 ao Fôjo, e também o
reconhecimento dos arranjos produtivos da comunidade; a questão cultural pode ser inserida através das
peças teatrais; dentre outras possibilidades. De modo a desenvolver um sentimento de pertencimento da
constituição da sua história.

Considerações finais

Concluímos este estudo “Educação Escolar Quilombola: uma análise sobre a cartilha ‘Fôjo, sua
história está aqui!’’’, que teve como objetivo tecer uma análise sobre o PE e identificar elementos que

85 O quilombo foi formado entre as décadas de 1880 e 1890, após a chegada de Alfredo Gomes, que havia fugido do processo
escravicionista, orientado pelo rio de Contas. Os documentos retratam que não se sabe com exatidão o ponto de partida da
fuga, quando guiado pelas águas, se foi sentido Itacaré-Fôjo ou Ubaitaba-Fôjo. Não se tem registros da época de nascimento
e de falecimento de Alfredo Gomes, acredita-se que ele tenha nascido no Brasil, já como escravizado, por volta de 1860 e
1870 (NASCIMENTO, 2021, p. 78).

459
contribuam para execução das DCNEEQ. Dessa maneira, foram constatados elementos significativos
que fomentam, contribuem e a caracteriza enquanto um material pedagógico, pois atendem aos
princípios de uma EEQ de qualidade conforme sugerido pelas DCN (2004), e por considerar os
fundamentos instituídos nas DCNEEQ (2012) quando apontam as atividades festivas, econômicas,
políticas e sociais do cotidiano quilombola.
Vale sublinhar que o único fundamento que não foi destacado no material PE foi a festividade, por
considerar que trata-se de um quilombo que segue a religião pentecostal. Desse modo, é possível refletir
sobre as novas formas de quilombos contemporâneos que professam uma fé, que, de certo modo,
demonizam as práticas que estão intrínsecas em sua essência, anulando todos os outros fundamentos
que fazem parte da EEQ.
O material produzido tentou apresentar à comunidade escolar que a fé professada não pode
impedir o ensino de uma EEQ, mesmo porque ela está inserida nos modos de vida da comunidade - em
sua realidade. Vale salientar que o PE foi acolhido pela Secretaria Municipal de Educação de Itacaré
como um PE e foi incluso no PPP da escola.

PALAVRAS-CHAVE: educação escolar quilombola; Fôjo, sua história está aqui!; identidade.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 08, de 20 de
novembro de 2012. Parecer CNE/CEB nº 16 de 2012. Define diretrizes curriculares nacionais para
educação escolar quilombola na educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 nov. 2012.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino
a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial
da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 22 jun. 2004.
NASCIMENTO, Geomara Pereira Moreno. Fôjo, sua história está aqui. Iguatu, CE: Quipá Editora,
2022. Disponível em: https://quipaeditora.com.br/fojo-historia. Acesso em: 01 out. 2022.
NASCIMENTO, Geomara Pereira Moreno. Remanescentes do quilombo do fôjo, Itacaré bar:
identidade étnica, conflitos e acesso as políticas públicas de inclusão produtiva. 2021. Dissertação
(Mestrado programa de pós-graduação em ensino e relações étnico-raciais). Universidade Federal do Sul
da Bahia. Itabuna. 2021. Disponível em:
file:///C:/Users/HPSEPLAN/Desktop/Memorial_Final_de_Geomara_final_com_ficha_catalogrfica_.pdf.
Acesso em: 01 out. 2022.
QUIPÁ EDITORA. capa da cartilha: Fôjo, sua história está aqui, 2021. Disponível em:
https://quipaeditora.com.br/fojo-historia. Acesso em: 01 out. 2022.

460
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) EM TERRITÓRIO QUILOMBOLA: UMA PERSPECTIVA
AMBIENTAL

Lourdes Oliveira Gomes


Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/ ENSP - FIOCRUZ-RJ.
lourdes.gomes@ifpa.edu.br

Lívia Sofia Corrêa Rosa


Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Pará / Campus Ananindeua.

Dayane Machado Leão


Discente do Curso Técnico Integrado em Meio Ambiente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Pará / Campus Ananindeua

Rita de Cassia Barbosa de Oliveira


Pedagoga Quilombola

Ricardo Morais de Miranda


Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Pará / Campus Ananindeua

Introdução

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é apresentada como modalidade da educação básica


direcionada a jovens e adultos que não frequentaram ou não concluíram a educação básica (BRASIL,
2000). Considerando o contexto da dívida histórica e social referente a nossa herança colonial,
percebemos, através dos indicadores sociais, que a realidade socioeconômica do povo negro apresenta
pior nível de educação, saúde, renda e habitação. Quando trazemos esse recorte de etnia/raça para
dentro das comunidades quilombolas, percebemos que esta realidade se aproxima daquela vivenciada
pela população negra geral do país (ARAÚJO et al., 2010).
Abdias Nascimento (2019) explica que mesmo com todas as evidências históricas proclamando o
protagonismo do povo negro na construção do Brasil, este nunca foi e ainda hoje não é tratado de
maneira igualitária ao seguimento minoritário dos brancos. E foi desta desigualdade que emergiu a
necessidade do negro de defender sua sobrevivência e de assegurar a sua existência de ser, os
quilombos são resultados do esforço do escravizado em resgatar sua liberdade e dignidade.
Beatriz Nascimento (2021) afirma que os quilombos eram espaços que ameaçavam o sistema
escravista, pois representavam um sistema social alternativo àquele apresentado pelo sistema da
colônia. Atualmente, os quilombos são definidos como comunidades tradicionais que são originárias de
descendentes de escravos negros que possuem uma relação direta com a terra (ZANK; ÁVILA;
HANAZAKI, 2016).
É a relação com a terra e com outros recursos naturais que torna o território quilombola um
espaço repleto de riqueza social e cultural, e que promove a necessidade de um diálogo que reconheça
e valorize os conhecimentos tradicionais junto ao saber científico de maneira que ambos se
compreendam.

461
Nesse contexto, a educação ambiental crítica tem por objetivo a construção de valores e atitudes
que contribuam à formação de um sujeito ecológico, de maneira que este possa identificar, problematizar
e agir (CARVALHO, 2004).
A busca incessante da superação das relações sociais vigentes, pautadas na colonialidade do
poder, constitui um dos objetivos da educação ambiental em territórios quilombolas (THIAGO, 2011). Por
considerar as reflexões supracitadas, o estudo justificou-se pela necessidade de mitigar as iniquidades
sociais vivenciadas pela população quilombola, trazendo a possibilidade de contribuir à condução do
processo de ensino-aprendizagem que reconheça protagonismo dos alunos dentro e fora do quilombo.
Assim, tem-se por objetivo identificar problemas e potencialidades enunciados pelas vozes dos próprios
alunos quilombolas considerando a perspectiva da preservação ambiental que permeia o território
quilombola de Abacatal - Ananindeua/PA, bem como propor possíveis soluções aos problemas
identificados.

Caminho Metodológico

O estudo segue a natureza descritiva sob a perspectiva da abordagem qualitativa, partindo dos
enunciados de Carlos Rodrigues Brandão (2007). O autor afirma que a evocação qualitativa nos permite
ir além dos métodos e técnicas de pesquisa, nos auxiliando a confiar em nós mesmos, nos permitindo
falar, ouvir, conviver e compartilhar mais do que dados. Neste processo, utilizamos a metodologia
problematizadora com o Arco de Maguerez como caminho metodológico à pesquisa.

Figura 1 – Roda de Conversa. Fonte própria, 2021

Assim, foram realizadas duas rodas de conversa com os alunos quilombolas da EJA, com o
intuito de conhecermos a realidade vivenciada por eles. A partir disso foram estabelecidos os pontos-
chave, onde os pesquisadores refletiram sobre o problema tentando compreendê-lo melhor. Em seguida,
realizou-se estudos teóricos. Neste momento, inicia-se também a construção compartilhada de hipóteses
que podem solucionar os problemas observados. Durante todo o processo de pesquisa fomos auxiliados
pela professora responsável pela turma.

462
A pesquisa foi realizada em uma escola dentro de uma comunidade quilombola de Abacatal,
localizada na região metropolitana de Belém - PA. Os participantes da pesquisa foram os alunos
regularmente matriculados na EJA, e para manter o anonimato foram utilizados códigos alfanuméricos.

Resultados

Participaram das rodas de conversas um total de nove alunos. Durante os diálogos, foram
evidenciados temas relacionados a educação ambiental e o contexto de vida dentro do território, tais
como: “Faz pouco tempo que comecei a EJA, mas eu queria fazer atividades do cuidado a mata, queria
que quando tirassem uma árvore se plantasse duas, porque eu sei que é daqui que vivemos, daqui que
comemos” (Q-9). No que se refere à identificação de problemas ambientais, emergiu a situação de um
aterro próximo ao quilombo, como um dos problemas ambientais enfrentados. Assim: “A professora fala
com gente disso, mas eu vejo mesmo que cheiro ruim do lixão, e é o nosso maior problema, porque
incomoda, esse lixão também contamina os igarapés e rios e a gente não consegue mais pescar como
antigamente” (Q-3). “Esse lixão só prejudica a nossa saúde, a gente respira o ar poluído, e ainda vai
chegar à contaminação das águas, eu não me preocupo por mim, mas pelos meus filhos e netos” (Q-9).
Quanto às potencialidades, o contato direto com a natureza é evidenciado como a melhor condição que
eles vivenciam no contexto ambiental: “A calmaria de se viver na comunidade, até na hora de vir pra
escola, de sentar lá fora e pegar vento no intervalo, o silêncio, o contato direto com a natureza” (Q-2). O
viver a natureza do território, bem como os benefícios que ela traz às comunidades é um triunfo que os
quilombolas utilizam em sua resistência. Nessa conjuntura, entendemos que a EJA do território
pesquisado é construída por uma prática educativa dialógica, que se baseia na condição concreta de
existência do povo (FREIRE, 2015).

Considerações

Os alunos quilombolas da EJA trazem consigo uma compreensão única sobre os problemas e
potencialidades relacionados às questões de preservação ambiental do território de Abacatal,
experienciadas pelo processo educativo vivenciado na escola.

PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos; quilombola; meio ambiente.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, E.M. et al. Desigualdades em saúde e raça/cor da pele: revisão da literatura do Brasil e dos
Estados Unidos (1996-2005). Saúde Coletiva, v.7, n. 40, p. 116-121, 2010.
BRANDÃO, C.R. Reflexões sobre como fazer trabalho de campo. Sociedade e cultura, v. 10, n. 1, p.11-
27, jan./jun. 2007.
BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Parecer 11/2000.
Brasília, 2000.

463
CARVALHO, I. C. M. de. Educação Ambiental Crítica: Nomes e Endereçamentos da Educação. In:
Layrargues, P. P. (coord.). Identidades da Educação Brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente,
2004.
FREIRE, P. Pedagogia da autônima: saberes necessários à prática educativa. Rio de janeiro: Paz e
Terra, 2015.
NASCIMENTO, A. O quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista. 3 ed. Rio de janeiro:
Perspectiva, 2019.
NASCIMENTO, B. Uma história feita por mãos negras. Rio de janeiro: Zahar, 2021.
THIAGO, F. A comunidade quilombola do cedro, mineirosgo: etnobotânica e educação ambiental.
2011.109f. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) – Universidade do Estado do Mato Grosso,
Cárceres, 2011.
ZANK, S.; ÁVILA, J.V.C.; HANAZAKI, N. Compreendendo a relação entre saúde do ambiente e saúde
humana em comunidades Quilombolas de Santa Catarina. Rev. Bras. Pl. Med., Campinas, v.18, n.1,
p.157-167, 2016.

464
AÇÃO GRIÔ NO QUILOMBO VARGEM GRANDE

Gilberto Silva de Borba


Mestre em Ensino, Colégio Pedro II, Doutorando em Meio Ambiente – UERJ. gilbertosborba@gmail.com

Nossa participação consiste em apontar como a prática do Turismo Pedagógico, mediante a


intencionalidade dos quilombolas, torna-se uma ferramenta de aproximação e parceria com grupos
interessados em apoiar as demandas da população local. O bairro Vargem Grande, na cidade do Rio de
Janeiro/RJ, possui características relacionadas à pratica de pequenos agricultores, tanto imigrantes
portugueses quanto do campesinato negro – esses já certificados com a auto-declaração de quilombolas
via Fundação Palmares. Esse quilombo se localiza no Parque Estadual da Pedra Branca, e na
autogestão associativa de famílias remanescentes produziram um modelo de visitação que atrai diversos
públicos, desde escolas públicas e privadas (de onde advêm recursos financeiros e propõe-se educar os
jovens) a políticos, pesquisadores, empreendedores, para possíveis parcerias.
Enquanto morador do território do quilombo – apesar de não nativo, portanto não oriundo das
famílias remanescentes que resistiram aos séculos de opressão e investidas do Estado brasileiro sob
diversas formas: cobrança pelas terras, criação do Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), onde foi
estabelecida unidade de conservação, inicialmente excludente à presença humana enquanto parte do
ecossistema natural da área, Jogos Olímpicos no Brasil e o uso dos caminhos tradicionais para
implantação de modal rodoviário, todo um arcabouço sócioeconômico e político de um racismo estrutural
e estruturante brasileiro (ALMEIDA, 2019).
Evidenciando o caráter restritivo das unidades de proteção integral e da própria política de
conservação do Estado, relativo ao PEPB, pós-criação do SNUC, esse instrumento legislativo é utilizado
frequentemente para reafirmar a inexistência de direitos daqueles que residem dentro do Parque. Essa
pressão, contudo, teve como resposta a organização das comunidades locais nos fóruns participativos
da unidade de conservação, fazendo-se presentes quilombolas, agricultores e outros moradores,
buscando ocupar seu espaço de participação e garantir sua representatividade e seu direito de
permanência naquele local (FERNADEZ, 2016).
Todos os cenários apresentados são, ao mesmo tempo que pertencentes à história local,
compartilhados por todos e a solução precisa ser coletiva. A dinâmica social, as tensões geradas em
cima do território, podem gerar um modelo organizativo de combate, mas podem também gerar uma
aceitação por assimilação irremediável (MOURA, 2020). Para quaisquer que sejam o caminho a ser
tomado e os resultados desses conflitos, voltamos para uma constatação inicial em que falamos de
urbanização, turismo e meio ambiente: o quilombo fala! E é neste ponto que a Ação Griô acontece.
Assumindo o quilombo e todo o estigma que este lugar carrega conforme a visão de Clóvis Moura
(2020), como palco de luta e resistência, espaço formativo e identitário; sítio de ações de um grupo
que tem empreendido esforços e traçado caminhos para desnaturalizar práticas racistas, descortinar
a colonialidade e, sobretudo, evidenciar diferentes possibilidades de construir identidades a partir
de suas relações na construção do processo histórico. Entendendo que as práticas da comunidade
precisam ser reconhecidas não de forma folclórica e pitoresca como são apresentadas comumente, mas

465
de forma social, cultural e produtora de uma “construção outra” de conhecimentos e saberes.
Conforme o proeminente professor Milton Santos (2018), entendido aqui que as estruturas sociais e
econômicas dos quilombos, e sua interação com a sociedade envolvente, como o espaço em que estão
envolvidas, na correlação entre seus partícipes e as necessidades geradas e atendidas por esses
agrupamentos humanos.
Esse intercâmbio com os arredores, os contatos e o modelo estruturado são, historicamente,
fatos e conseqüências lidas como inevitáveis, e a Ação Griô usa das bases do Turismo de Base
Comunitária (TBC) traduzido como Turismo Pedagógico para desenvolver estratégias políticas de
reconhecimento e proteção para sua vulnerabilidade enquanto população local, com baixa renda e sem
representação formal nos espaço de poder do Estado e no empresariado. O quilombo Vargem Grande
possui parceria com diversas instituições de ensino, com propostas de cursos, formações, apresentações
e serviços. A apresentação envolve moradores contando a história das trilhas realizadas na formação das
famílias, nos usos de plantas medicinais e na relação religiosa com os símbolos da natureza.
As parcerias são trazidas via redes sociais, indicações trabalhadas como parte da ajuda solicitada
e isso atrai desde movimentos de educação popular, visando o atendimento a crianças, jovens e adultos,
quanto a educação básica formal, com o ensino médio técnico e seus alunos com a construção de
trabalhos de atuação na comunidade. O ensino superior se faz presente com o chamamento a cursos de
extensão, além de estudos de casos sob diversos vieses em trabalhos acadêmicos de matizes
diferentes. Políticos locais, empresariado que entenda e respeite as demandas dos moradores e
trabalhadores locais são colocados como parte do grupo, para sensibilização e um desvelamento de
conceitos pré-concebidos que, nesses encontros, são recebidos com sinceras surpresas.
Uma das linhas de parceria é com o Colégio Federal Pedro II e prevê a participação de alunos do
Ensino Médio Técnico com desenvolvimento prático de seus aprendizados teóricos em um ambiente
vivo, dinâmico, com possibilidades concretas de atuação. Já ocorre a atuação de grupo de professores
acionando cotização para a infraestrutura, e diálogo aberto com as lideranças comunitárias para ações
pontuais. O programa de Pós Graduação em Educação Profissional e Tecnológica está presente com o
desenvolvimento de pesquisa, com o apoio do PROPGPEC para análise e apoio dos trabalhos
desenvolvidos. Com a Universidade Federal do Rio de Janeiro - UNIRIO, a proposta da parceria envolve
a participação em curso de extensão apresentando a experiência local, além de apoio e suporte para o
desenvolvimento de ações relacionadas ao turismo local, pretendido como de Base Comunitária.
Além das instituições formais, o quilombo fez parceria com movimentos sociais, como a Rede
Emancipa de Educação Popular. A ação de parceria é através de atendimento para crianças da
comunidade ao longo da semana, tanto apoiando aos familiares para que possam desenvolver seus
labores profissionais quanto para reforço pedagógico do ensino formal. Com os familiares, encontros aos
finais de semana para discussões que afligem a comunidade, debatendo sobre racismo, violência de
gênero, ações de segurança policial. São ações de longo prazo, sem previsão de interrupção, inclusive
com possibilidades de desdobramentos em Educação de Jovens e Adultos (EJA) e outras ações.
Justifica-se esse estudo de caso como um modelo de autogestão trazida a esse contexto via
Turismo, como sendo a própria fala dos quilombolas locais e a forma que esses sujeitos conseguiram

466
posicionar sua força e experiência. Portanto, sendo respeitados, ressignificado seu lugar e posicionados
no mundo com diversos apoios institucionais e de pessoas interessadas de forma voluntária, conseguem
diminuir uma aculturação provocada pelo crescimento urbano no bairro em que se encontram e validam
suas memórias ancestrais também através dos outros, aonde encontram respaldo contra forças
antagônicas que buscam apropriar-se dos saberes, da materialidade e, por fim, dos corpos negros
trabalhadores.

Figura 1 – Sandro e Maria Lúcia Mesquita. Fonte: Gilberto Borba, 2021

Figura 2 – Sandro Mesquita, palestra em escola. Fonte: Gilberto Borba, 2021

PALAVRAS-CHAVE: turismo; autogestão; Quilombo Vargem Grande.

REFERÊNCIAS

467
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
FERNANDEZ, Annelise Caetano Fraga. O sertão virou parque: natureza, cultura e processos de
patrimonialização. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 57, p. 129-148, 2016.
MOURA, Clóvis: Quilombos: resistência ao escravismo. 1ed. São Paulo: Editora Expressão Popular,
2020
SANTOS, Milton. O espaço dividido: Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos.
2ªed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

468
NARRATIVAS DE VIDA DOS ESTUDANTES QUILOMBOLAS KALUNGA DO CURSO EDUCAÇÃO DO
CAMPO NA UFT / CAMPUS DE ARRAIAS-TO

Lucivânia Rodrigues da Silva


Mestranda em Letras pela UFT, Campus de Porto Nacional-TO. lucivaniaueg@hotmail.com

Resumo

Esta pesquisa apresenta as narrativas de vida de estudantes do curso Educação do Campo na


Universidade Federal do Tocantins, explicitamente no campus de Arraias. É importante salientar que os
estudantes vivem em sua comunidade, denominada Mimoso, próximo a cidade de Arraias-TO. Durante
os meses de julho e dezembro deslocam-se de suas residências para estudarem no curso Educação do
Campo em formato pedagogia da alternância. Mediante a aplicação de questionário estruturado, foram
entrevistadas 20 estudantes de sexo feminino e masculino dessa comunidade quilombola. A partir das
entrevistas, observou-se que as comunidades estavam formadas por maior percentual de estudantes
quilombolas do gênero feminino, na faixa etária adulta entre 20 a 42 anos. Muitas famílias apresentaram
renda de até um salário mínimo, valor possibilitado também pela ação do Programa Bolsa Família, que
complementa a renda dessas famílias. Os resultados deste trabalho revelaram que, apesar de ter
melhorado o acesso das comunidades quilombolas às escolas, muitas famílias são de baixa renda e para
se manterem recebem uma ajuda de bolsa universitária para continuarem estudando e se aperfeiçoando.
Diante das considerações acima, as informações aqui apresentadas podem contribuir para a
implementação de políticas públicas direcionadas para as comunidades quilombolas do Tocantins.

469
ARTESANATO E SUSTENTABILIDADE: BIOJOIAS PARA GERAÇÃO DE RENDA EM TERRITÓRIO
QUILOMBOLA

Joyce Assunção Rodrigues


Discente do Curso Técnico Integrado em Meio ambiente-IFPA. joyce02212425@gmail.com

Maria Victória Santos Mali


Discente do Curso Técnico Integrado em Meio ambiente-IFPA. viih90929@gmail.com

Maria Clara Miranda Rodrigues Ferreira


Discente do Curso Técnico Integrado em Meio ambiente-IFPA. claramirands2020@gmail.com

Eline Lima da Silva


Discente do Curso Técnico Integrado em Meio ambiente-IFPA. elines336@gmail.com

Lourdes Gomes Oliveira


Docente EBBT-IFPA / Doutora em Saúde Pública. lourdes.gomes@ifpa.edu.br

Ricardo Morais de Miranda


Docente EBBT-IFPA / Doutor em Química. ricardo.miranda@ifpa.edu.br

Introdução

O Artesanato compreende toda a produção resultante da transformação de matérias-primas, com


predominância manual, por indivíduo que detenha o domínio integral de uma ou mais técnicas, aliando
criatividade, habilidade e valor cultural, pois possui valor simbólico e identidade cultural (BRASIL, 2012).
Schierholt, Romero e Lopes (2020) definem biojoias como adornos artesanais de cunho étnico e
tradicional produzidos a partir de matéria-prima vegetal, assim tendo uma visibilidade cultural muito
grande nas comunidades onde elas se fazem presentes. A confecção de biojoias, por povos e
comunidades tradicionais, constitui-se uma forma de manifestação da cultura popular e de sua
capacidade criativa, apresentando atualmente em muitas regiões do país importância econômica,
geração de trabalho, renda e inclusão social (CAMPOS; HAMADA, 2014).
As mulheres quilombolas da comunidade Abacatal, localizada na região metropolitana de Belém-
PA, relatam dificuldades no acesso ao mercado de trabalho, pois estas sofrem com o racismo estrutural
presente na sociedade brasileira. Por esta razão, faz-se relevante conhecer a realidade que envolve as
atividades de geração de renda realizadas por estas mulheres, com o intuito de construir junto com elas
novas oportunidades de ganho que valorizem seus saberes tradicionais, bem como os produtos naturais
advindos do próprio território.
Assim, este estudo tem por objetivo compreender o conhecimento das mulheres quilombolas
sobre a matéria-prima presente na localidade e a produção de biojoias com este material, identificando
as especificidades desses materiais e articulando novas propostas de produção e geração de renda às
moradoras da comunidade.

Metodologia

470
Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, do tipo pesquisa-ação. Em um
primeiro momento, realizamos uma aproximação com as mulheres da comunidade e consolidamos uma
parceria com elas afim de reconhecer a biodiversidade disponível no território, catalogar as sementes
produzidas através da flora local, além de compreender os anseios e necessidades de implementação da
pesquisa proposta. Em seguida conduzimos a realização de entrevistas semiestruturadas com mulheres
que já trabalham com a produção de artesanatos. Após o reconhecimento das necessidades da
comunidade, bem como dos recursos naturais disponíveis, se aplicou a proposta de ação da pesquisa,
afim de capacitar as participantes do estudo. Isto se deu por meio das oficinas para produção de biojoias
que possam ser comercializadas contribuindo com a geração de renda. Ressaltamos que as mulheres da
comunidade foram as protagonistas de todo esse processo.

Resultados e Discussão

Com o estudo desenvolvido nesta pesquisa verificou-se que as sementes utilizadas na produção
das biojoias são: açaí, jarina, paxiuba, patauá, olho de boi, lágrima de nossa senhora e tento.
Identificaram-se como fonte de aquisição de matéria-prima natural locais de venda de sementes já
beneficiadas que passaram por um tratamento, mas mantiveram a naturalidade e autenticidade do
material. As sementes são vendidas em pequenas e grandes quantidades, também comercializadas por
unidade. Há também a venda dessa matéria-prima natural em meios digitais. Outra fonte de aquisição
dos recursos é o território quilombola do Abacatal. Neste local há artesões de biojoias, com produção em
baixa escala, e existem árvores com sementes potenciais para o uso na confecção de peças. Articulou-
se com lideranças femininas da comunidade a disponibilização de algumas sementes, afim de possibilitar
estudo sobre o beneficiamento das sementes para maior entendimento sobre as produções.
O processo de beneficiamento dessas sementes propicia oportunidade de geração de renda para
o local, aliada à produção de biojoias como atividade empreendedora sustentável, possível alternativa
para muitos que estão fora do mercado de trabalho, assim como uma possível complementação de
renda familiar (TAVERNARD; LISBOA, 2011). A partir da seleção dos modelos de biojoias foram
confeccionados diversos modelos de peças, como mostra a Figura 1.

Figura 1 - Biojoias produzidas no decorrer da pesquisa. Fonte: Autores da pesquisa, 2022.

471
A primeira oficina foi realizada na II MOSTRA GPMEPI-Grupo de Pesquisa Multidisciplinar,
Ensino, Pesquisa e Inovação: Maratonando Ciência, no IFPA, Campus Ananindeua, no dia 26 de maio de
2022, na qual 5 ministrantes bolsistas foram instrutores. Neste momento, houve a participação de 20
pessoas, entre elas discentes do IFPA e mulheres da comunidade quilombola do Abacatal. Durante a
atividade foi ensinada a produção de 5 modelos de biojoias e, no final, obteve-se como resultado, além
da exposição da proposta do projeto e das peças, a produção das biojoias realizada pelos discentes e
mulheres inscritas, gerando certificação de participação ao final do evento.
No dia 13 de junho de 2022, a extensão do projeto de pesquisa foi levada e apresentada em
forma de oficina, ofertada às mulheres residentes da comunidade quilombola do Abacatal, com o intuito
de promover a produção de peças, realizar a exposição de biojoias, apresentar a proposta do projeto, e
materiais utilizados.
A realização dessa oficina de produção de biojoias foi de extrema importância e expressou
relevância, visto que essa atividade artesanal e o possível trabalho de beneficiamento das sementes que
foram repassados a esses moradores despertam o incentivo ao empreendedorismo sustentável,
podendo representar a essa comunidade uma fonte de renda a partir da realização de produção das
peças e comercialização.
No decorrer da pesquisa, criaram-se páginas em mídias sociais, um site com a catalogação das
sementes, exposição das biojoias produzidas e a proposta e ações já executadas no projeto, criou-se
também o Instagram, viabilizando a exposição de fotos de peças produzidas. As duas plataformas usam
o nome Flora Arte.

PALAVRAS-CHAVE: artesanato; biojoias; mulher quilombola.

REFERÊNCIAS
BRASIL, República Federativa. Base Conceitual Do Artesanato Brasileiro. Programa do Artesanato
Brasileiro (PAB), Brasília, 2012.
CAMPOS, Jéssica de Araújo; HAMADA, Márcia Orie de Sousa. Levantamento das Sementes Florestais
Utilizadas na Confecção de Artesanato no Município de Altamira, Pará. Goiânia: Enciclopédia Biosfera, v.
IO, n. 18, p. 2099, 2014.
MENEZES, Paula Roberta Viana de, MULLER, Regina Celi Sarkis, ALVES, Cláudio Nahum, Biojóias —
Transformando Ideias em Negócio Sustentável. Vol. 03, NO 12, 85-93, 2017.
PÓVOA, Isabel Cristina Fracasso; SILVA, Newton Soares; SILVA, Maria Regina de Aquino.
Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável. X Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e VI
Encontro Latino Americano de Pós-Graduação. São José dos Campos: Revista Univap, v. 13, n. 24,
2006.
TAVERNARD, Sidney Rivero; LISBOA, Teresinha Covas. Desenvolvimento sustentável e
empreendedorismo: o beneficiamento e comercialização de sementes da Amazônia no município de
Porto Velho, RO. Disponível em: https://www.aedb.br/. Acesso em: 11 ago. 2022.

472
SCHIERHOLT, Anelise; ROMERO, Fanny; LOPES, José. Biojóias, biodiversidade e redes de
Sustentabilidade na Amazônia. Porto alegre: Editora da UFRGS,2020.

473
REFLETINDO OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO COMO CONTRIBUIÇÃO PARA RESSIGNIFICAR O
TERRITÓRIO QUILOMBOLA DA TAPERA, LOCALIZADO NO MUNICÍPIO DE MATA DE SÃO JOÃO -
BA

Marta de Assis Souza Ribeiro


Licenciada em Serviço Social (UCSAL), Mestranda em Educação e Contemporaneidade (UNEB), Especialista em
educação Ambiental (UFBA), Especialista em Gestão da Política de Educação Ambiental (UVA).
martasouza26@hotmail.com

Luciano Costa Santos


Doutor em Filosofia (PUCRS), pós-doutorado em Filosofia Moral e Política pela Universidade Autónoma
Metropolitana do México, sob orientação do filósofo Enrique Dussel, Professor Titular (UNEB).
lucostasantos1@gmail.com

Introdução

A experiência mencionada neste resumo reflete algumas ponderações acerca da importância da


educação quilombola no processo de reconhecimento do território quilombola localizando na Tapera,
região litorânea do município de Mata de São João – Bahia.
Trata-se de uma ação que envolve moradores e moradoras da localidade, em parceria com o
Instituto de Reforma Agrária (INCRA), revelando o cotidiano do Quilombo da Tapera como um território
dilemático, que envolve um conjunto de tensões, contradições e exteriorização da memória cultural e
ancestral.
Por ser um espaço dialético, o cotidiano também revela sujeitos com diversas possibilidades,
incluindo inovação resistência, emancipação e transformação da realidade.
Um processo que possibilitou refletir a proposta de educação quilombola, num contexto mais
amplo de educação. Objetivando contribuir com as discussões sobre a história, a memória e a
ancestralidade que impelem a resistência e a luta pelo direito a regularização fundiária desse território,
bem como com as discussões sobre a necessidade da mudança de paradigmas, na perspectiva de uma
prática educativa que efetivamente contribua com o atendimento das reivindicações dessa população.
A educação quilombola aqui é apontada como uma prática coletiva e intencional de
transformação da realidade, situando a expropriação do território do Quilombo Tatuapara num contexto
histórico que reflete as contradições do modo de produção capitalista.
Nesse sentido, discutir a possibilidade de realizar um processo educativo, voltado para uma
comunidade remanescente de quilombo que reivindica o direito de posse do seu território, implica na
compreensão de que a educação quilombola é uma prática social que propõe mudança nas ações
pedagógicas, para que possam gerar a possibilidade de novas formas de organização, de pensamentos,
atitudes, participação e apreensão de conhecimentos.
Esse processo possibilitou refletir o trabalho realizado pelos moradores e moradoras do Quilombo
da Tatuapara, em parceria com o INCRA, em um contexto de reivindicações, no qual parte da
comunidade exige a regularização do território do Quilombo Tatuapara, nos termos do Decreto 4.887 de
20 de novembro de 2003.

474
Isto levou a comunidade da Tapera a se organizar, institucionalizar-se através da Associação
Quilombo de Tatuapara e convocar o INCRA para iniciar o trabalho, nos termos do novo marco legal.
É importante ressaltar que essa concepção de análise da realidade no contexto de regularização
fundiária da comunidade da Tapera só foi possível devido aos avanços dos últimos anos, sendo que a
Constituição de 1988, no art. 68, dispõe sobre o direito de propriedade das terras para as comunidades
quilombolas, estabelecendo diretrizes para a garantia desse direito, bem como a criação de políticas
públicas voltadas à educação escolar quilombola.
Nos termos da Lei 9.394/1996 e da Resolução 8/2012 do Conselho Nacional de Educação, o
direito de acesso a uma educação escolar quilombola de qualidade, bem como a criação de políticas
públicas que viabilizem a preservação da cultura e identidade das comunidades remanescentes de
quilombos.
O que possibilita um referencial para a criação de metodologias participativas e dialógicas que
viabilizem garantir às famílias e comunidades remanescentes de quilombos ações de mobilização,
sensibilização e instrumentalização que sejam suficientes no enfrentamento e encaminhamento das
questões relacionadas à garantia do direito de permanência em seus territórios.

Metodologia

Trata-se de uma proposta de cunho qualitativo, desenvolvida a partir de referenciais teóricos,


observação direta dos fatos, levantamento de dados, interação com os sujeitos da pesquisa, análise e
interpretação dos dados coletados, através das seguintes técnicas: entrevista, observação participante,
fichas e cartazes.
Quanto aos dispositivos metodológicos, observa-se as seguintes etapas: tema gerador,
tematização do conteúdo, círculo de cultura (problematização) e mostra de vídeo. São os instrumentos
para coleta de dados: questionário, câmera fotográfica, gravador e diário de campo.
Categorias-chave:
• Alteridade Popular (Enrique Dussel) - povos quilombolas e excluídos tomam a palavra e entram
em ação como sujeito coletivo; alteridade de culturas periféricas que guardam a sua exterioridade
face ao sistema dominante; ao ganhar força, essa exterioridade revela oportunidade para
libertação ético-política e diálogo intercultural;
• Ancestralidade (Eduardo Oliveira e Lélia Gonzalez) - Parte de sujeitos coletivos que produzem
conhecimento; quebra paradigmas de formações filosóficas eurocêntricas; a população negra
realiza relações de conflito e negociação para sobreviver e imprimir o seu código; América Latina
como construção eurocêntrica.
• Educação Libertadora (Paulo Freire) - emerge de um contexto histórico de dominação e opressão;
nasce do grito do oprimido por libertação; visa estimular as pessoas a pensarem nas contradições
inerentes à forma de organização social, no desenvolvimento das potencialidades humanas, bem
como na criação de espaços onde a prática da educação se relacione com teoria e contexto
político em tempo integral, como horizonte de libertação.

475
PALAVRAS-CHAVE: educação quilombola; mudança de paradigma; participação; mobilização social.

REFERÊNCIAS
Brasil. Decreto n. 4887, de 20 de novembro de 2003, Brasília, DF: Presidência da República, 2003.
BRASIL. Ministério de Reforma Agrária. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. INCRA e
os desafios para regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília, DF:
Ministério de Reforma Agrária, 2002.
DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da
libertação. Dossiê: Decolonialidade e perspectiva Negra, Brasília, vol. 31, nº 1, p 51- 73, janeiro, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
_____. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: movimentos sociais urbanos, minorias
éticas e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência e saúde
coletiva, Rio de Janeiro, V. 17, n. 3, p. 621-626, Mar. 2012. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232012000300007&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 21 set. 2022.
OLIVEIRA, Eduardo D. Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação
brasileira. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2007.
ZAGO, Luis Henrique. O método dialético e a análise do real. Kriterion, Belo Horizonte, V. 54, n. 127, p.
109-124, Jun. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
512X2013000100006. Acesso em: 21 set. 2022.

476
LUTAS POR DIREITOS: O I ENCONTRO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DO
AMAZONAS

Tarciara Raquel dos Santos Castro


Licenciada em Geografia (UEA). Especialização em Educação Infantil e Ensino Fundamental (FACULDADE
KURIOS). Acadêmica do 5º período do curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Centro
de Estudos Superiores de Parintins-CESP. Bolsista de Extensão. Progex. Voluntária do Progex 2020/2021 e
Bolsista Progex 2022-2023. Integra o coletivo Nacional de educação escolar quilombola da CONAQ e a CONAQ no
Amazonas. Núcleo de Estudos Afro-brasileiros-NEAB/UEA. Oriunda da comunidade quilombola de Santa Tereza do
Matupiri, Rio Andirá. tarcycastromk@gmail.com / trdsc.ped20@uea.edu.br

João Marinho da Rocha


Professor Adjunto no curso de História da Universidade do Estado do Amazonas, Centro de Estudos Superiores de
Parintins, UEA/CESP. Grupo de Estudos Históricos do Amazonas-GEHA; Núcleo de Estudos Afro-brasileiros-
NEAB/UEA; Bolsista, projeto de produtividade acadêmica institucional, Portaria nº 108/2021 - GR/UEA, 2021-2023.
jmdrocha@uea.edu.br / jmrocha.hist@hotmail.com
Alice Conceição Pedreno
Acadêmica do 5º período do curso de Geografia da Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Centro de Estudos
Superiores de Parintins-CESP. Bolsista de Extensão. Progex 2020-2021 e 2022-2023. Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros-NEAB/UEA. Oriunda da comunidade quilombola de Santa Tereza do Matupiri, Rio Andirá.
acp.geo@uea.edu.br

Hayná Andrade
Acadêmica do 5º período do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Centro de Estudos
Superiores de Parintins-CESP. Bolsista do projeto Paic/Fapeam 2022-2023. Voluntária do Progex 2022-2023.
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros-NEAB/UEA. Oriunda da comunidade indígena Guaranatuba do povo Sateré-
Maué, Rio Andirá. hra.his20@uea.edu.br

Lyvistom Cortez Macedo


Acadêmico do 5° período Licenciatura em História. UEA/CESIT. lcm.hst19@uea.edu.br

Entre 16 e 17 de setembro de 2022, ocorreu I Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas


do Amazonas, sob temática Quilombos do Amazonas Nenhum Direito a Menos! no Sagrado Coração de
Jesus do Lago de Serpa, Itacoatiara (fig. 01). Com objetivo de formar a Coordenação Estadual Conaq
Amazonas, com ressalva ao Regimento Interno do Movimento Quilombola do Estado do Amazonas, cuja
finalidade é fortalecer a identidade ética, luta pela implementação das políticas públicas e regularização
fundiária dos territórios Quilombolas do estado do Amazonas. Estiveram presentes as comunidades de
Barreirinha, Novo Airão, Itacoatiara, e quilombo Urbano Barranco de São Benedito, Manaus-AM (fig. 01),
além da Coordenação Nacional de Articulação das comunidades (CONAQ), o Instituto Socioambiental
(ISA), o Fórum Permanente de Afrodescendentes do Amazonas (FOPAAM) (fig. 02).

477
Figura 02: I Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do estado do Amazonas. Fonte: Coordenação
Estadual Conaq Amazonas, 2022.

Os quilombos do município de Barreirinha-AM, foram representados pela comunidade quilombola


Santa Tereza do Matupiri por: senhor João Xisto de Castro Neto, presidente da Federação das
Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha (FOQMB), a senhora Maria Amélia dos Santos
Castro, vice presidente da FOQMB, o senhor Claudemir de Souza Alves, secretário da FOQMB, a
senhora Tarciara Raquel dos Santos Castro, membro do Coletivo de Mulheres da CONAQ. O quilombo
de São Pedro foi representado pelo senhor Francisco José da Silva, comunitário e ex-agente comunitário
de saúde (ACS). O quilombo de Ituquara foi representado pela senhora Lucenilza Leite Ferreira. O
quilombo de Trindade foi representado pela professora Elcinete Dias Silva. O quilombo de Boa Fé foi
representado pelo senhor Sebastião Douglas dos Santos de Castro. E a comunidade de São Paulo do
Açu foi representada pela Senhora Kiara Silva. Estes estão situada à margem direita do Rio Andirá. As
senhoras Edcleuza e Marley da Silva Frazão representam as comunidades de Vila Carneiro, São João de
Urucurituba e Monte Horebe. Estas duas últimas comunidades (São do Açu, São João de Urucurituba,
Vila Carneiro e Monte Horebe) estão em processo de reconhecimento.

478
O quilombo de Tambor foi representado pelo senhor Sebastião Ferreira de Almeida (Ba). O
quilombo de Sagrado Coração de Jesus (Serpa-Itacoatiara) contou com a participação do presidente da
comunidade, Ernando Soares Macêdo, além de Valcimar Negreiros da Silva, professor Claudemilson
Nonato Santos de Oliveira e os demais comunitários. O quilombo Urbano Barranco de São Benedito
(Manaus- AM) foi representado pela senhora Keilah Maria da Silva Fonseca e pelo senhor Cassius da
Silva Fonseca.
O parceiro desse encontro como FOPAAM foi representado pela professora Arlete Anchieta. Outra
parceria firmada foi o ISA, representado por Juliana Radler. E Kátia Penha foi representante da CONAQ,
esta que também é a coordenadora desse movimento.
O I Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Amazonas foi um momento
histórico para as comunidades quilombolas do Amazonas, que mesmo com as opressões sociais, de
conflito agrário, educacional, de saúde e outros, têm lutado e resistido a tamanha desigualdade social.
Sabendo desse valor que os movimentos sociais possuem, a CONAQ, os quilombos do Amazonas e
seus parceiros criam estratégias de fortalecimento, para resistir na busca de visibilidade no país.
O movimento negro contemporâneo no Brasil constitui-se de inúmeras entidades, dentre
as quais estão os movimentos quilombolas. Nessas conexões produzem e constituem-se
como instrumentos de lutas contra as desigualdades e por inclusões sociais. Sempre em
constantes diálogos com os contextos políticos, sociais, culturais e científicos das décadas
finais do século XX. (ROCHA, 2019, p. 46)

Os movimentos sociais têm marcado significativamente o movimento quilombola, visto que a


CONAQ se torna referência, um dos movimentos de quilombo para quilombo, que tem contribuído com
as lutas e resistência do povo quilombola no país. Assim, esse encontro estadual ficou como marco
histórico para as comunidades quilombolas do Amazonas, em que se discutiu sobre educação, saúde,
meio ambiente, mulheres quilombolas, juventude, regularização fundiária. Então, para formalização do
movimento quilombola no Amazonas, foi criada e Coordenação Estadual Conaq Amazonas, que
articulará em prol da população quilombola amazonense. Esta coordenação ficou composta por 2
membros de cada quilombo (presidente e suplente), totalizando 20 membros. Dentro dessa coordenação
foi criada a coordenação executiva, que irá articular dentro a coordenação geral.
Com organização em nível estadual, as lutas e resistência tornam-se mais fortes e facilitam as
articulações dentro do estado e município, na busca de uma educação que de fato exerça o direito
quilombola, valorizando a cultura, os saberes, a historicidade etc. do quilombola. Conforme o Art. 14, a
Educação Escolar Quilombola:
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem assegurar, por meio de
ações cooperativas, a aquisição e distribuição de livros, obras de referência, literatura
infantil e juvenil, materiais didático-pedagógicos e de apoio pedagógico que valorizem e
respeitem a história e a cultura local das comunidades quilombolas. (BRASIL, 2012, p. 8)

Assim, também, essa coordenação junto aos quilombos lutará: por uma assistência de saúde que
atenda todos os territórios quilombolas; pela regularização fundiária; pela preservação do meio ambiente;
das lutas das mulheres contra os diversos tipos de violência; pelas políticas voltadas aos jovens e
LGBTQIA+, enfim, lutará e resistirá a todos os tipos de desigualdade social. Portanto, o movimento
quilombola no Amazonas ganha força e entende que a união e diálogo entre os quilombos fortalece a
identidade quilombola e a visibilidade por seus direitos.

479
PALAVRAS-CHAVE: movimento quilombola; direito; luta e resistência.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmera de Educação Básica.
RESOLUÇÃO Nº 8, de 20 de novembro de 2012. Diário Oficial da União. Brasília, 21 de novembro de
2012, Seção 1, p. 26.
ROCHA, João Marinho da. Das Sementes aos Troncos: História e Memórias do movimento quilombola
do Rio Andirá, Tese defendida no Programa Sociedade e Cultura na Amazônia, UFAM, Manaus, 2019.

480
EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: NARRATIVAS E SABERES NA CONSTRUÇÃO DO
CURRÍCULO ESCOLAR EM ARMAÇÃO DOS BÚZIOS - RJ

Bruno Rodrigues Severino


Professor da rede municipal em Armação dos Búzios. Especialista em Planejamento Urbano e Ambiental pela
FERLAGOS- Faculdade da Região dos Lagos. Licenciado em Geografia pela FERLAGOS. Coordenador de
Pluralidade Cultural da Secretaria Municipal de Educação Ciência e Tecnologia em Armação dos Búzios.
Quilombola da Fazenda Espirito Santo, em Cabo Frio, RJ. brunorseve@gmail.com

Uma educação crítica relacionada às discussões étnico-raciais e quilombolas implica refletir sobre
a compreensão dos processos históricos, um reposicionamento das relações de poder, visando a
valorização das populações afrodescendentes nos territórios e nas escolas. Como quilombola de uma
das diversas comunidades da região, ex-aluno de escolas locais, professor de geografia e atuando na
Secretaria de Educação de Armação dos Búzios com projetos educacionais, vivencio, além das agruras e
alegrias da educação em geral, os desafios de implementação de ações de combate ao racismo, de
valorização da cultura afrodescendente e um novo: a construção de uma educação escolar quilombola.
As comunidades remanescentes de quilombo durante séculos estiveram “invisíveis”, significava
uma forma de se proteger das ameaças de uma sociedade escravista. Na região do atual município de
Armação dos Búzios, os relatos sobre a chegada dos primeiros africanos remontam ao período da pesca
das baleias, no século XVIII. Mais tarde, com a ilegalidade do tráfico intercontinental, a região da
Fazenda Campos Novos e as novas propriedades surgidas em seu território foram base de apoio ao
tráfico clandestino, sendo de grande interesse dos traficantes devido ao isolamento de uma vasta e
acidentada área litorânea, com excelentes pontos de desembarque. A presença de grandes propriedades
agrícolas fornecedoras de produtos indispensáveis ao tráfico e de rios que facilitavam o escoamento da
produção do interior também eram características facilitadoras. Nesse momento, cresceu
exponencialmente o número de afrodescendentes na região. Todavia, por ora, vale reforçar a indiscutível
participação na constituição social/cultural local das populações quilombolas, e as recentes mudanças
em relação à percepção de seu legado, de seu protagonismo, de seus saberes e modos de vida.
No atual contexto, as comunidades quilombolas locais; Rasa e Baia Formosa, lutam para
permanecer em seus territórios. Os mesmos foram reconhecidos, entretanto anseiam a certificação pela
Fundação Palmares. Buscam o reconhecimento de direitos, a valorização de sua cultura, além de
empreenderem constantemente ações antirracistas. Contudo, após 134 anos da abolição da escravatura,
acreditamos que, para reforçar intenções de fortalecimento identitário, a implementação de currículos
escolares específicos quilombolas configure em avanços nesta engrenagem da transformação social.
A elaboração de um currículo quilombola depende de inúmeras manifestações e contribuições do
movimento negro, das lideranças quilombolas, de pesquisadores e órgãos da educação. Percebe-se
ainda a carência em dados sobre este tipo de educação, e a necessidade de ampliar as discussões
públicas com este objetivo. Entretanto, algumas ações em curso valem ser mencionadas na positivação
deste caminho que aos poucos vai se estruturando.

481
Antes de tudo, ressalta-se que a educação escolar que pretendemos compreende a população
negra/quilombola como protagonista da sua própria história. Procuramos, neste sentido, alinhar a
tradição oral, valorizando as referências culturais, as narrativas cotidianas que passam dos mais antigos
para os remanescentes mais jovens, preservando, assim, uma memória histórica coletiva. Do mesmo
modo, resistir pelas tradições e costume à sociedade globalizada sob outras referências culturais
hegemônicas.
O município de Armação dos Búzios, através de representantes do Conselho Municipal de
Promoção da Igualdade Racial, em 2014, instituiu Dia Municipal do Quilombola. Esse passo foi
fundamental para que as escolas da rede e, mais ainda, as escolas em territórios quilombolas
procurassem efetivar ações educacionais que valorizassem a cultura e a história afrodescendente local.
Este processo de construção vem sendo realizado pelos docentes da rede, especificamente do
ensino fundamental. O resgate da cultura quilombola e a aproximação com as famílias locais, nas
aprendizagens trabalhadas por meio das diferentes linguagens como a música, a dança, o teatro, as
contações de histórias, a capoeira, brincadeiras cooperativas e atividades de arte e reciclagem,
contribuindo com o desenvolvimento da coordenação motora e a ampliação de vocabulário e repertório
histórico provenientes da comunidade. Este processo culminou na recente premiação da Escola
Municipal Quilombola Profª Lydia Sherman, em setembro de 2022, com 6º Prêmio Territórios Tomie
Ohtake, que tem como base os princípios da educação integrada, considerando os processos de
aprendizagem e os vínculos com os estudantes, as famílias, as comunidades e os territórios.

Figura 1 - Escola Municipal Professora Lydia Sherman recebe o 6º Prêmio Territórios Tomie Ohtake. Fonte:
https://buzios.rj.gov.br/escola-municipal-professora-lydia-sherman-e-selecionada-para-receber-o-6o-
premio-territorios-tomie-ohtake/ Acesso em: 28 set. 2022

Outro ponto importante a ser ressaltado é o trabalho circuito da “Rota Escravocrata”, também lei
municipal, no qual educandos têm a oportunidade de conhecer e vivenciar parte de uma história de
sofrimento, mas também de tradições afrodescendentes.

482
Figura 2 - Aula de campo na Fazenda Campos Novos. 2º Distrito de Cabo Frio-RJ. Escola Municipal Quilombola
Profª Lydia Sherman

Ademais, além da visitação à Fazenda Campos Novos, uma construção jesuítica do século XVII –
localizada no município vizinho de Cabo Frio – realizamos palestras e seminários acerca da abolição da
escravatura e da consciência negra, promovemos intercâmbios culturais entre quilombos,
implementamos o Projeto “Degusta Creche” e Projeto de “Trilhas Ambientais com Piquenique
Quilombola”, entre outras ações, fortalecendo uma equipe pedagógica que se alinha à EEQ e vislumbra
a construção de um currículo quilombola.
Compartilhar estas e outras experiências, além aprofundar a edificação da educação escolar
quilombola, a construção de um currículo dessa natureza, constituem-se os objetivos desta
comunicação. Cientes da existência de um longo percurso a realizar, também temos avanços que devem
ser valorizados em direção a uma maior pluralidade cultural com a inserção de elementos antes
invisibilizados pela dinâmica social e as relações de poder. Avancemos!

PALAVRAS-CHAVE: Armação dos Búzios; Educação Escolar Quilombola; educação antirracista.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília. 2004.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1996
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica-
Resolução Nº 8, de 20 de novembro de 2012.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a colônia. São Paulo : Difel, 1966.

483
_______. Da Monarquia a República. 6. ed. São Paulo: Unesp, 1999
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana - Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004.
GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas Estratégias de Atuação.
In: MUNANGA, Kabengele. (org.). Superando o Racismo na Escola. 2ª Ed. rev. Brasília: SECAD, 2005.
p.143-154.

484
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA BUSCA COMUM PELO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA KALUNGA VÃO DO MOLEQUE (MAIADINHA)

Juami Antonio de Aquino


Mestrando em Sustentabilidade juntos a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) pela UnB. Possui Licenciatura
em Matemática pela Universidade Federal do Tocantins. juamiaquino@gmail.com

Introdução

O educador, professor que ensina matemática, tem o papel de importante na vida das pessoas
nas mais diversas sociedades, contudo esse educador contém um potencial para a construção de futuros
sustentáveis que ainda não foi plenamente aproveitado, especialmente no contexto da Comunidade
Quilombola Kalunga Vão do Moleque.
Que papel o professor de Matemática, educador matemático, da Comunidade Quilombola
Kalunga Vão do Moleque precisa assumir para promover a busca de mudanças nos estilos de vida das
pessoas e na construção de um futuro sustentável nessa referida comunidade? Apresento um pouco da
minha história para, na sequência, apresentar o objetivo da pesquisa que pretendo desenvolver junto ao
programa de Pós-Graduação Profissional em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília
(UnB). Apresento resumidamente, em algumas páginas, as histórias por mim já vividas desde o tempo de
criança até os momentos atuais, momentos que construíram e constituem o que sou hoje, ou seja,
contribuíram com a minha formação acadêmica e fizeram com que eu me preocupasse com o processo
de ensino-aprendizagem da Matemática que busca promover a sensibilização dos alunos com o seu
entorno. Esse modo de perceber a Matemática é objeto de estudo na área da Educação Matemática.
Sempre morei em minha Comunidade remanescente Quilombola Kalunga Vão do Moleque-
Cavalcante-GO, porém meu nascimento foi em Campos Belos-GO no ano de 1996, cidade que fica a
139km da minha residência. Sobre minha trajetória escolar, cursei do 1º ao 7º ano do Ensino
Fundamental na Escola Municipal Maiadinha e Escola Estadual Calunga I (Sede Maiadinha).
No 1º ano o meu professor foi o senhor Antônio Rodrigues. Com este professor, comecei a dar os
meus primeiros passos e aprender a Matemática escolar. Aprendi Matemática começando a contar
números em maiores quantidades de forma oral, contar objetos e escrever, por meio do método da
decoração. Para realizar operações de soma era utilizada a contagem nos dedos e quando envolvia as
quatro operações era trabalhado com os “rabiscos na folha de papel ou no chão” 86 com nome chamado
"pauzinho''.
No 2º ano do ensino fundamental tive como professora a senhora Florentina dos Santos Rosa,
que é moradora da própria comunidade. Ela ensinava Matemática com o quadro e giz, com as
participações dos alunos para ler e reproduzir escrita numérica, somar, multiplicar, subtrair e dividir e ao
realizarem a contagem oral.

86 A Educação Matemática na busca comum pelo desenvolvimento sustentável na Comunidade Quilombola Kalunga Vão do
Moleque (Maiadinha), juamiaquino@gmail.com. Universidade de Brasília - UnB.

485
No 3º ano, o meu professor foi o senhor José Cabral de Araujo. Nesse ano escolar o ensino de
matemática se resumiu em usar o conhecimento obtido nos anos escolares anteriores, aprendi a armar
contas, explorar mais cálculos mentais e fazer ditados de questões para avaliar a escrita matemática. O
recurso didático utilizado era o quadro e giz. O professor ministrava suas aulas utilizando exemplos
envolvendo o cotidiano, por exemplo: quantidades de animais, pessoas, árvores e outros.
No 4º ano, o ensino de matemática foi ministrado pelo professor Albino dos Santos, morador da
nossa comunidade. O que foi mais cobrado nesse ano escolar foi saber a tabuada e cálculo mental
envolvendo multiplicação. Esse professor sempre usava o quadro e giz, copiava e explicava para os
alunos fazerem as atividades exigidas.
Nos três anos escolares, 5º, 6º e 7º ano, as aulas de Matemática eram ministradas pelo professor
José Cabral de Araújo. O ensinamento era através de repassar o conteúdo dos livros didáticos para os
alunos, utilizando como recurso didático o quadro.
No ano de 2010, por falta de professores em minha comunidade, me matriculei na Escola
Estadual Agrícola David Aires França-Arraias-TO, que hoje tem o nome de Escola Estadual Girassol de
Tempo Integral Agrícola David Aires França, conhecida como Escola Agrícola. Nessa escola estudei do 8º
ano do Ensino Fundamental à 3ª série do Ensino Médio.
Assim que concluí o ensino médio, tinha em mente cursar o ensino superior, mas, antes de
ingressar na universidade, trabalhei por dois anos como professor na Escola Estadual Calunga IV
(Comunidade São Pedro) - Monte Alegre-GO. Nestes dois anos trabalhei nos anos finais do Ensino
Fundamental, 6º ao 9º ano, com as disciplinas de Matemática, Educação Física, Ciências e Artes. Esse
tempo de serviço nessa comunidade, como professor, me serviu para pensar em um curso específico
que pudesse estudar e atuar. E com todas essas expectativas criadas, o meu interesse foi estudar
Matemática. Por ter feito a prova do ENEM, consegui ser aprovado pelo Sisu/cotas no curso de
Licenciatura em Matemática-UFT-Arraias-TO, curso que concluí no ano letivo de 2020.
Em todos esses anos escolares por mim vividos, os professores de Matemática não
apresentaram durante suas aulas nenhuma informação que fizesse com que nós, alunos, voltássemos o
olhar para o nosso entorno de um modo que pudéssemos trabalhar a Matemática com “um enfoque
ligado a situações mais imediatas” (D’AMBROSIO, 2010, p. 31), pois “a Matemática que se ensina hoje
nas escolas é morta” (D’AMBROSIO, 2010, p. 31).
Toda essa ausência fez com que eu me preocupasse com o futuro do meio em que vivo,
principalmente agora que estou licenciado para atuar como professor. Na minha opinião, o professor é
um dos responsáveis pela preparação do futuro. Logo, preciso dessa formação e informação para atuar
como educador matemático em minha comunidade, pois, de acordo com D’Ambrosio (2010), hoje a
Matemática está passando por uma grande transformação, ela está sendo
[...] muito afetada pela diversidade cultural. [...] Poderíamos dizer que a matemática é o
estilo de pensamento dos dias de hoje, a linguagem adequada para expressar as
reflexões sobre a natureza e as maneiras de explicação. Isso tem naturalmente
importantes raízes e implicações filosóficas.[...] O mais importante é destacar que toda
essa matemática é acessível até o nível primário (D’AMBROSIO, 2010, p. 58-59)

Outro motivo que me levou a pensar em desenvolver esta pesquisa foi o motivo de eu pertencer à
Comunidade tradicional remanescente Quilombola Kalunga Vão do Moleque-Cavalcante-GO.

486
Comunidade que se adaptou ao ambiente e criou mecanismos para a sobrevivência de todo o seu povo,
e hoje de uma sensibilização para sua permanência e preservação do ambiente em que foi instalada.
Por eu pertencer a essa comunidade e ter residência fixa na mesma, percebi um esvaziamento
nos trabalhos realizados pelos quilombolas, as plantações da roça vêm diminuindo e consequentemente
houve um aumento no consumo de produtos da zona urbana. Esse fato pode ter ocorrido devido à
ausência do conhecimento passado de pais para filhos e fez com que a quilombolas deixassem de
produzir certos alimentos na sua própria terra. Percebi também que com o desenvolvimento do
transporte facilitou a locomoção de pessoas de um lugar para outro e isso tem provocado mudança no
ambiente da comunidade.
Diante dessas situações apresentadas, ou seja, a partir de minhas vivências, escolhi como objeto
de estudo a Educação Matemática desenvolvida na Comunidade Quilombola Kalunga Vão do Moleque
(Maiadinha) pensada como alternativa de construção de um futuro sustentável para ser pesquisada por
mim no Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT), pela
UnB.
O objetivo geral da pesquisa é avaliar as manifestações matemáticas existentes na comunidade
quilombola que contribuem e constituem o desenvolvimento sustentável na Comunidade Quilombola
Kalunga Vão do Moleque para promoção da saúde, preservação da cultura e do meio ambiente local.

A educação matemática

No primeiro momento a ideia é apresentar e conceituar a Educação Matemática e, para que isso
se torne possível, me apoio em Fiorentini e Lorenzato (2009), que afirmam “[...] que a Educação
Matemática é uma área do conhecimento das Ciências Sociais ou Humanas, que estuda o ensino e a
aprendizagem da Matemática (FIORENTINI; LORENZATO, 2009, p. 5).” Neste sentido, a Matemática,
vista através das lentes da Educação Matemática, não se limita apenas à aplicação de conteúdo, como
um fim em si mesma, mas a Matemática se torna um meio, um instrumento importante para a formação
intelectual e social do aluno.
Para obter uma educação matemática é necessário ter uma boa ligação entre teoria e prática no
desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem. Com isso o autor D'Ambrosio (2010) destaca
que “Entre teoria e prática persiste uma relação dialética que leva o indivíduo a partir para a prática
equipado com uma teoria e a praticar de acordo com essa teoria até atingir os resultados desejados”
(D'AMBROSIO, 2010, p. 79). D'Ambrosio (2013) vê a disciplina de Matemática
[...] como uma estratégia desenvolvida pela espécie humana ao longo de sua história para
explicar, para entender, para manejar e conviver com a realidade sensível, perceptível, e
com o seu imaginário, naturalmente dentro de um contexto natural e cultural.
(D’AMBROSIO, 2013, p. 7).

É importante observar que é nesse processo que entra o professor, o educador matemático, pois
este concebe “[...] a matemática como um meio ou instrumento importante à formação intelectual e social
de crianças, jovens e adultos e também de professor de matemática do ensino fundamental e médio e,

487
por isso, tenta promover uma educação pela matemática [...] tende a colocar a matemática a serviço da
educação” (FIORENTINI; LORENZATO, 2009, p. 3).
E a função do professor é ensinar, construindo uma relação com as atividades dos alunos que é a
aprendizagem. Tal relação construída garante a unidade didática entre ensino e aprendizagem.
Do docente espera-se que seja capaz de ações educativas não apenas de cunho
conceitual, mas também voltadas para as implicações éticas, valores morais e
compromissos sociais. Compreendo que essa diversidade de atribuições requer uma
intensificação do diálogo, da solidariedade e da tolerância, inclusive no interior das salas
de aulas. (MORAES, 2014, p. 10)

E a função do professor é ensinar, construindo uma relação com as atividades dos alunos que é a
aprendizagem. “A condução do processo de ensino requer uma compreensão clara e segura do processo
de aprendizagem: em que consiste, como as pessoas aprendem, quais as condições externas e internas
que influenciam” (LIBÂNEO, 2013, p. 87).
E sobre como proceder em sala de aula, “[...] o ensino deve ser dinâmico e variado e o professor
deve estar sempre atualizado com informações” (LIBÂNEO, 2013, p. 115). Para esse autor, o professor
precisa “[...] conhecer melhor as características dos seus alunos, dominar técnicas didáticas e
metodologias. Com isto, cada tarefa didática será uma tarefa de pensamento para os alunos” (LIBÂNEO,
2013, p. 115). Segundo essa linha de pensamento, a educação escolar pensada para comunidades
tradicionais quilombolas
[...] foi pensada para os povos negros, a partir de elementos de suas identidades, raízes
ancestrais, recuperando e valorizando saberes tradicionais, e sua implementação é
acompanhada por consulta prévia do poder público às comunidades, suas organizações e
lideranças, considerando os aspectos normativos institucionais e burocráticos que
sustentam as políticas públicas. A regulamentação da Educação Escolar Quilombola no
sistema educacional brasileiro iniciou, de forma mais consistente, com as orientações
contidas nas Diretrizes Curriculares Gerais da Educação Básica, de modo a garantir a
especificidade de vivências, acúmulos patrimoniais, realidades e histórias das
comunidades quilombolas do país (BRASIL, 2020, p. 03).

Considerando as palavras dos autores Santos e Silva (2016), cita-se que é importante
Trazer a possibilidade de promover uma reflexão aos profissionais dessa área sobre como
proceder com o ensino em um grupo culturalmente diferenciado como é o caso das
comunidades quilombolas, especialmente no que se refere aos proveitos que o professor
pode ter ao lidar com a vivência do aluno em seu grupo no momento da aula (SANTOS;
SILVA, 2016, p. 974).

Para esses autores, os professores que ensinam em um grupo com culturas diferentes têm que
refletir sobre as metodologias de ensino aplicadas dentro desses espaços. Os professores podem
trabalhar na sala de aula com os conhecimentos adquiridos na vivência dos estudantes. Observando
tudo o que passa primeiramente na comunidade, podemos perceber que os conhecimentos dos
conceitos da matemática podem ser ensinados na escola interagindo nas culturas locais. Então percebe-
se que os autores pensaram na “[...] Motivação que o aluno pode ter ao perceber que o seu contexto
cultural está sendo levado em conta nas aulas de Matemática através do reconhecimento da importância
dos saberes que ele possui”. (SANTOS; SILVA, 2016, p. 974).
Com isso podemos focar na etnomatemática, que procura valorizar a matemática tendo como
base o estudo dos diferentes grupos étnico-culturais. Os conceitos construídos pelo aluno no seu

488
ambiente podem se constituir em ponto de partida para o ensino das aplicações dos conceitos básicos
da matemática e como estão sendo ensinados na escola.
A Etnomatemática se encarrega de dar maior valorização ao saber oriundo das vivências
de cada grupo, ou seja, ao conhecimento matemático, decorrente das experiências diárias
dos alunos, que é carregado de significado para os mesmos. (SANTOS; SILVA, 2016, p.
979).

Então baseado na etnomatemática, a forma de aplicar os conceitos básicos matemáticos nas


escolas da comunidade remanescente Kalunga é analisanda, compreendendo e respeitando tradições
culturais da região. Por isso o método de ensino para aprendizagem dos alunos não deve fugir tanto da
realidade quilombola. Primeiramente, é importante relembrar que a educação muda o mundo. De acordo
com essa observação, a educação matemática na sustentabilidade irá promover mudanças nos estilos
de vida das pessoas da comunidade à qual eu pertenço.

Sustentabilidade

Para entender sobre o que é sustentabilidade, Boff afirma que “Sustentabilidade é um modo de
ser e de viver que exige alinhar as práticas humanas às potencialidades limitadas de cada bioma e às
necessidades das presentes e das futuras gerações” (BOFF, 2016, p.17).
Devemos sempre agir de maneira correta no que fazemos no presente e pensar também nos
futuros sobreviventes, alinhando nossas práticas sobre a busca da nossa necessidade para o sustento.
Segundo Nascimento (2012, p.52), “[...] os seus indícios alertaram os seres humanos de que
estamos em uma nave comum, e que problemas ambientais não estão restritos a territórios limitados
[...]”. Então os sinais alertaram os seres humanos que os problemas são para todos e visíveis sem
território com limitações.
Sustentabilidade é basicamente a sociedade atual retirar do planeta os recursos naturais que
necessitam para sobreviver e desenvolver, mas de uma forma que não acabe com esses recursos, e
assim permitir que estes recursos se tornem disponíveis para as gerações futuras. Com isso, conclui-se
que o desenvolvimento sustentável é a estratégia de crescimento que garante os recursos naturais para
os nossos descendentes. E que a sustentabilidade é o produto final de um desejado estilo de
sobrevivência. Sobretudo a educação matemática contribui para uma educação quilombola sustentável.

REFERÊNCIAS
BOFF, L. Sustentabilidade: o que é: o que não é. 5. ed. revista e ampliada - Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2016.
BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 3/2021, aprovado em 13 de maio de 2021 – Reexame do Parecer
CNE/CEB nº 8, de 10 de dezembro de 2020, que tratou das Diretrizes Nacionais Operacionais para a
garantia da Qualidade das Escolas Quilombolas.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Educação matemática: Da teoria à prática. 19° Ed., Campinas: Papirus, 2010.
______. O programa Etnomatemática: Uma síntese. Canoas: Acta Scientiae, jan./jun.2008.
______. Elo entre as tradições e modernidade. 3. Ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009.

489
FREITAS, F. de; GALVÃO, C.. O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional
de professores. Ciências & Cognição; Ano 04, vol. 12, 2007. Disponível em:
http://www.cienciasecognicao.org/. Acesso em: jun. 2013.
FIORENTINI, Dário; LORENZATO, Sérgio. Investigação em educação matemática: Percursos teóricos
e metodológicos. Campinas: Autores associados, 2009.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2013.
MORAES, Mariuce Campos de. Sentidos Subjetivos de Sustentabilidade e sua docência para
professores em formação. Tese (Doutorado) - Programa De Pós-graduação em Educação em Ciências
e Matemática-Rede Amazônica de Educação em Ciências E Matemática, Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, 2014.
MOURA, Glória. Proposta Pedagógica Educação Quilombola. Salto para o Futuro, Rio de Janeiro, p.
03-09, jun. 2007. ISSN 1518-3157.
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Trajetória da sustentabilidade: do ambiental ao social, do social ao
econômico. estudos avançados 26 (74) p. (51- 64), 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ea/a/yJnRYLWXSwyxqggqDWy8gct/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 16 set.
2021.
SANTOS, Jailson; SILVA, Jonson. A Influência da Cultura Local no Processo de Ensino e
Aprendizagem de Matemática numa Comunidade Quilombola. Bolema, Rio Claro (SP), v. 30, n. 56, p.
972 - 991, dez. 2016. ISSN 1980-4415.

490
EDUCAÇÃO PARA A TRANSGRESSÃO: POR UMA PEDAGOGIA OUTRA PARA A
TRANSFORMAÇÃO E A LIBERDADE

Fabiana Vencezlau
Mestranda pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). fabianavencezlau@gmail.com

Karina Fátima dos Santos


Mestranda pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Democracia possível se arquitetada em cima
de exclusões, dentre elas, o racismo. kakah5@yahoo.com.br

Esta escrita versará sobre os ensinamentos da escritora e professora estadunidense bell hooks a
partir da leitura do livro “Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade” atrelada à
educação quilombola com a Pedagogia Crioula, onde a vivência dessa pedagogia se entrelaça com os
ensinamentos da bell. O viés da discussão se dará através de uma posição decolonial, bem como o olhar
partindo do século XXI. Logo na introdução, hooks já informa: “Para os negros, o lecionar – o educar –
era fundamentalmente político, pois tinha raízes na luta antirracista.” (2017, p. 10). Dessa forma, ainda
hoje a educação precisa ser antirracista, promover a reflexão e a ação por meio de políticas públicas que
são necessárias para uma pequena reparação histórica causada pela dureza e crueldade da escravidão.
A escola e a família devem caminhar na mesma direção nessa luta que é de todos e não só do
movimento negro ou do movimento quilombola. hooks, no entanto, teve uma base familiar que destinava
somente à escola a tarefa de “edificação da raça”, como mencionado pela escritora. hooks enfatiza:
“Minha casa era o lugar onde eu era obrigada a me conformar à noção de outra pessoa acerca de quem
e o que eu deveria ser. A escola era o lugar onde eu podia esquecer essa noção e me reinventar através
de ideias.” (2017, p. 11). O contexto era diferente do brasileiro. hooks nasceu no sul dos Estados Unidos
e dentro do regime do apartheid. Ou seja, houve a separação total para posteriormente ocorrer a
integração racial que não foi bem recebida por nenhum dos lados, mas que se fez necessária na
construção de uma sociedade democrática e livre visto que bell hooks, mais tarde, tornou-se também
professora universitária e diz que as suas práticas pedagógicas nasceram da integração entre as
pedagogias anticolonialistas, por meio da crítica e da luta feminista, sendo que as três estabelecem uma
conversa entre si. Além disso, hooks também defende um ensinar que seja respeitoso, que proteja as
almas dos alunos, sendo isso essencial para criar condições necessárias para um aprendizado efetivo e
íntimo. Porém, muitos professores sentem medo e reagem de forma hostil à educação libertadora que
está diretamente relacionada ao vir a saber. Para nós, povo negro e quilombola, saber nosso passado,
nossas origens é de extrema urgência, pois assim teremos novas histórias, novos pontos de vista e,
consequentemente, transformaremos o futuro por meio da luta e da educação antirracista. hooks ao
mencionar as novas escolas dessegregadas diz “Não estávamos mais no centro, mas à margem, e isso
doía.” e ainda “Nós é que tínhamos de viajar para fazer a dessegregação uma realidade. Tínhamos de
renunciar ao que conhecíamos e entrar em um mundo que parecia frio e estranho.” (2017, p. 38). Em
outras palavras, para que realmente haja uma mudança social é fundamental que os projetos e as ações
venham tanto dos brancos quanto dos negros. As proposições são uma via de mão dupla.

491
Nos primeiros capítulos do livro, a pensadora expõe: “A escola dos brancos era dessegregada;
mas, nas salas de aula, na cantina e na maioria dos espaços sociais, prevalecia o apartheid.” (2017, p.
38). Percebe-se algo semelhante ainda hoje em dia aqui no Brasil, não só nas escolas mas também nos
restaurantes, nas lojas, nos parques, nos espaços públicos como um todo. Há espaços e situações em
que os negros e quilombolas não são vistos, ou melhor, quistos. É proposital, o nosso sistema, desde a
primeira constituição, desenhou um país branco onde nós não tivéssemos vez ou voz. A partir disso, há
questionamentos, há preconceitos, há racismos que são fortalecidos; a base do país se construiu em
cima da exploração dos negros. Lembremos que fomos o último país a abolir a escravidão, só isso já diz
muito. Os sistemas de dominação não mudaram desde 1500, eles só trocaram de nome: sexismo,
exploração de classe, imperialismo e racismo.
Aos olhos dos sonhadores ou desinformados, todos os negros suportaram a escravidão sem lutar,
sem se rebelar, sem dançar, sem rezar, sem levantar a voz. Contudo, houve sim os que fizeram o seu
papel político, os que criaram os quilombos, os que fugiram, os que planejaram um futuro diferente, os
que nunca desistiram, e é por eles que hoje a causa antirracista deve e precisa continuar, eles não
desistiram, não cabe a nós agora nos entregarmos. Fácil não foi e nem será, não há romantismo no
sofrimento, na dor. Um caminho viável é o da informação, da educação, por isso a educação precisa
transgredir. Esse caminho pode e deve subverter o silenciamento imposto. Onde se vê ausência, pode-
se ver potência. Resistência.
A desumanização causada pelo racismo precisa fazer ainda mais parte do debate público. Há
quem negue que ainda haja racismo, porém isso é uma forma de boicotar uma tentativa de mudança do
sistema, pois há uma hierarquização da cidadania, do direito de ir e vir e de fazer ouvir.
Inacreditavelmente, há aqueles que acreditam em uma inferioridade congênita, sendo que na realidade o
que de fato existe é uma desparelha relação social que é injusta e desigual provocada diretamente pela
diferença da cor de pele, ou seja, o racismo. Não é permitido esquecer que o sexismo e o racismo
construíram sociedades modernas. Todos os estigmas são desumanizadores, mas os que se referem aos
negros, quilombolas e às mulheres são históricos e duros. Fazer balançar os alicerces que os sustentam
só é possível com muito conhecimento de mundo e perceber que sexismo, racismo e democracia são
inconciliáveis. Além disso, é inevitável olhar essas questões de frente para dessa forma conseguir agir e
modificar, transformar a sociedade.
Pós-escravidão, não houve políticas que amparassem os ex-escravizados, pelo contrário terras
foram cedidas a colônias alemãs, o emprego, a terra, a vida foi destinada aos brancos europeus. Negar
uma fonte de renda limita a existência, negar os direitos básicos é ajudar a promover e fortalecer o
racismo sistêmico. Os negros daquela época não tinham diretos, não eram considerados humanos, os
estigmas desumanizam e combatê-los humaniza. Sendo assim, quando o movimento negro e o
movimento quilombola reivindicam políticas públicas, elas são de natureza reparatória e compensatória,
levando em consideração tudo que nos foi e ainda é negado. Nesse viés, hooks enfatiza: “Está claro que
uma das principais razões por que não sofremos uma revolução de valores é que a cultura de dominação
necessariamente promove os vícios da mentira e da negação.” (2017, p. 44).

492
O coletivo e o espírito da força ancestral fizeram com que o povo negro resistisse para conseguir
existir. Conforme enfatiza hooks no capítulo “Abraçar a mudança: “ A falta de disposição de abordar o
ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência de raça, do sexo e da classe social tem
suas raízes [...] no medo de que a sala de aula se torne incontrolável, que as emoções e paixões não
sejam mais represadas.” (2017, p. 55). É preciso usar a educação a favor de uma compreensão de si
enquanto sujeito, enquanto pertencente a um grupo social e que tem sonhos e direitos. bell ainda
acrescenta que podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, sendo essa a base de uma
educação em artes liberais. Olhar a educação com uma visão crítica e reflexiva faz parte dessa
transformação, essa mudança deve ser feita de dentro para fora e não o inverso. Os educadores têm o
poder e são eles que devem propor análise e não alguém de fora, como comumente acontece.
Outro ponto importante na educação antirracista é entender que ela também é política, não há
nenhuma politicamente neutra. É preciso reconhecer que é a história negativa que molda e informa as
interações contemporâneas, por isso é essencial um diálogo franco e significativo entre todos, brancos e
negros e quilombolas. Sabe-se que por vezes o compromisso com essa pedagogia engajada é cansativo
ao espírito, porém, toma-se fôlego e segue-se a jornada, é um ativismo político.
Combater o racismo é estratégico para qualquer plano ou sonho que o Brasil queira ser, é
fundamental proteger o conjunto; há uma geração indo embora pela violência generalizada em que a
polícia só enxerga a pele negra. A ressalva é que a pele é a mesma, o preconceito é cultural. Cabe a
todos, mas como o ponto da nossa discussão é a educação, cabe às famílias, aos educadores, às
escolas e instituições de ensino propiciar ambiente de conhecimento de quebra de estereótipos.

REFERÊNCIA
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade; tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

493
Conversatório 10

494
Partimos da reflexão acerca das pesquisas-vida construídas pelo Grupo de Pesquisa da UnB
GECRIA – Educação Crítica e Autoria Criativa (PPGL/UnB CNPq) ao longo dos últimos anos. Seguimos
diálogos transdisciplinares e indisciplinares, no bojo dos estudos linguísticos/discursivos decoloniais e da
educação, ancorados em práticas (auto)etnográficas discursivas e críticas, envolvendo a agenda de
pesquisa sobre processos de escrita autoral, leitura crítica e de autoria criativa. Partimos da concepção
de autoria criativa como um modo protagonista e crítico de ação consciente do sujeito escritor. Partimos
dos debates sobre (i) agência, sob o viés dos estudos críticos de discurso (BAZERMAN, 2006;
POSSENTI, 2002; ARCHER, 2003); (ii) escrita criativa autoral (DIAS; COROA; LIMA, 2018) e (iii)
protagonismo dos textos (MAGALHÃES, 2017), e contribuições da pedagogia engajada e crítica
(FREIRE, 1987, 1991, 1999; GIROUX, 1995; hooks, 2013 e outras/os).
Nossa contribuição para as comunidades científica e geral é promover reflexões discursivas,
emoções e impulsos identitário-discursivos que levem a uma prática libertadora e transformadora do ser
escritor/a e do ser humano em sua vida social.
Ancoradas nessas bases, no dia 06 de dezembro de 2022, numa terça-feira, reunimos um grupo
de pessoas dispostas à partilha de pesquisas que vão ao encontro da transformação social e do bem
comum.
Ocorrido no dia 06 de dezembro de 20213, o nosso conversatório contou a contribuição de
diversas pesquisadoras, desde o ensino médio até a pós-graduação. A coordenação decidiu por bem
dividi-lo em duas sessões, em razão do número de participantes inscritas. Algumas apresentações se
deram de forma remota.
Inicialmente, propusemos aos presentes que, ao longo das apresentações, fossem
confeccionados textos e/ou colagens analógicas inspiradas pelas falas das apresentadoras. Foi latente a
potência criativa construída coletivamente. Após o término, realizamos uma pequena exposição dos
trabalhos na área aberta do evento, junto à ADUnB.
As redes discursivas e sociais tecidas no decorrer do evento e, mais precisamente, durante os
conversatórios, trouxeram à tona teias de pesquisas comprometidas para com a transformação social,
tão urgente nesses tempos difíceis.

495
496
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Hanna Saphira Rodrigues de Oliveira


Ana Carolina Rezende Penha
Escrita criativa na escola: autoria e estilo 499
Graziele Aparecida da Silva
Orientadora: Juliana de Freitas Dias

Narrativas solidárias: escrita de si em nós - Outras maneiras de


Edilan Kelma Nascimento Sousa 500
abordar o luto por meio da escrita criativa curativa

O jogo entre autor e leitor na obra juvenil Clarice do autor Roger


Júlia Esther Queiroz Pereira 503
Mello

Camila Lino
Gabriele Leal
Ações da biblioteca escolar com leitura e escrita de poesia 506
Laiane Trindade
Simone Marques

Escrita criativa e autoria: metodologias ativas - A reescrita de


Ana Clara Silva Oliveira 509
textos e a construção da autoria criativa

O rio da vida: cursos e percursos de professoras em formação


Vânia dos Reis Sousa continuada - autoria, identidade e protagonismo em 512
transformação

Sistema de cotas raciais: a transposição da linha abissal -


Gissele Alves 515
possibilidades e constrangimentos

Narrar o conhecimento para tocar a vida: a narrativa na escrita


Sostenes Lima 520
acadêmica

Elzahrã Mohamed Radwan Omar


Mater-nar a nossa escrita? 522
Osman

Meu mundo al revés: reflexões a partir da sociologia da imagem


Inah Miranda Rios Serra 525
de Silvia Cusicanqui

Letras livres na cena socioeducativa: sentidos atribuídos às


José Nildo de Souza
autorias criativas nas práticas e saberes de jovens em conflito 528
Paulo Sérgio de Andrade Bareicha
com a lei

Os ecos de nossas vozes: letramentos críticos reflexivos como


Camila Moreira Ramos 533
prática discursivo-identitária de (re)existência

A construção da autoria em contextos de inclusão de alunas


Kaio de Sousa Ribeiro 536
surdas na universidade

497
Atauan Soares de Queiroz
Agenciamentos sociodiscursivos 539
Juliana de Freitas Dias

Cicatrizes da leitura da “Palavramundo”: um relato


Mateus de Morais Torres Ferreira 542
autoetnográfico

Barbara dos Santos Catar imagens, habitar o tempo: rastros coletivos 544

Lisianne Lima Nós, mulheres-mães, também estudamos 546

Letícia Gottardi
Karielly Moreira Entrelaces em pesquisa e formação: quem somos ‘eu’? 552
Barbra Sabota

Núbia Batista da Silva- Nubiã Escrevendo com o Maracá: uma visão cosmológica da minha
556
Tupinambá dissertação de mestrado

Narrativas autobiográficas de trabalhadores terceirizados de uma


Juliana Azevedo Pacheco 558
instituição de ensino tecnológica

Edinéia Alves Cruz O que há debaixo dos calos de minhas mãos? 561

Djonatan Kaic Ribeiro de Souza Comunidade de mudanças em pesquisa e crítica social 564

O despertar da escrita criativa autoral de professores durante um


Mariane da Silva Soares 568
curso do Gecria

Microrresistências cotidianas: colagem e escrita criativa como


Paula Gomes 571
formas insurgentemente poéticas de habitar o mundo

498
ESCRITA CRIATIVA NA ESCOLA: AUTORIA E ESTILO

Hanna Saphira Rodrigues de Oliveira

Ana Carolina Rezende Penha

Graziele Aparecida da Silva

Orientadora: Juliana de Freitas Dias

Essa pesquisa se constitui de vivências (auto)etnográficas no Centro de Ensino Médio 01 do


Gama, Distrito Federal. Traz elementos reflexivos e constitutivos de novas identidades, enquanto alunas
e sujeitos críticos, a partir de uma nova relação com a autoria de textos (escritos e orais). A pesquisa teve
como base o diálogo com Paulo Freire, tomando a palavramundo como uma palavra inaugural
instauradora dessa autoria, bem como com a metodologia/teoria propostas pelo Grupo de Pesquisa da
UnB - GECRIA (UnB/CNPq). Desta forma, a fim de abranger uma visão mais ampla dessa jornada de
construção textual crítica, apresentaremos o diário de bordo como um gênero discursivo autoral que foi
construído durante a experiência (auto)etnográfica dentro da escola e da UnB. Assumimos uma
perspectiva decolonial que nos ajudou a compreender aspectos de construções de autoria, de identidade
e de estilo a partir de vivências engajadas em comunidades de aprendizagem (bell hooks).

499
NARRATIVAS SOLIDÁRIAS: ESCRITA DE SI EM NÓS
OUTRAS MANEIRAS DE ABORDAR O LUTO POR MEIO DA ESCRITA CRIATIVA CURATIVA

Edilan Kelma Nascimento Sousa


Doutoranda em Linguística pela Universidade de Brasília - UnB, na área Linguagem e Sociedade. Mestre em
linguística pela Universidade de Brasília - UnB, na área de concentração Linguagem e Sociedade (2017). Integrante
do grupo de pesquisa em Educação Crítica e Autoria Criativa (GECRIA). Especialista em Revisão de Texto pelo
Centro Universitário de Brasília - Uniceub e em Português Jurídico pela Faculdade Processus. Professora de
Escrita criativa e servidora da Justiça Eleitoral. edilankelma@gmail.com

Este estudo nasce a partir da minha experiência ao vivenciar o luto dentro do contexto da minha
pesquisa em tempos de pandemia. A pandemia que atravessara a minha tese, atravessa, também, a vida
da pesquisadora. Nesse sentido, a autoetnografia como caminho metodológico já escolhido em função
da minha experiência na escrita criativa ganha um novo aporte: a experiência do luto. Ver transformado
meu campo de pesquisa num campo de guerra, metáfora para quem vivencia o luto no contexto
pandêmico em uma vivência intensa de escrita criativa autoral, vida de campo da pesquisa, me fez
continuamente desde o pré-luto, fase da descoberta da doença até o seu último dia no hospital, refletir
sobre a relação luto-linguagem, luto-narrativa, luto-escrita. Escrevi poesia no caos. Estava em minhas
escritas no campo da reflexão percorrendo os vagões internos para tentar primeiro entender-me. Assim,
os colaboradores de uma das estações da pesquisa, que chegaram nesse atravessar da pandemia da
Covid-19, foram marcados pela dor do luto. Em resposta ao luto solitário, criamos uma comunidade de
escrita criativa e curativa para práticas de narrativas solidárias: escritas de si em nós. A comunidade de
escrita criativa e curativa é uma das comunidades de escrita criativa do GECRIA (Grupo de pesquisa em
Educação crítica e autoria criativa). Todas as comunidades criadas a partir do referido grupo de pesquisa
se inspiram nas comunidades de aprendizagem de bell hooks (2013; 2021) considerando, também, os
estudos da pedagogia crítica (FREIRE, 1975; 1986) com ênfase na pedagogia da escrita (BARZERMAN,
2006) e na metodologia de escrita criativa autoral (DIAS at al, 2021), fruto de estudos de pesquisadores
do GECRIA.
As reflexões de bell hooks (2003) para as comunidades vão além de uma pedagogia libertadora,
abarcam, também, a relevância do ato de partilhar narrativas pessoais. Nesta comunidade do luto,
criamos um espaço de aconchego e amparo, com o objetivo de trabalhar esse lugar da linguagem que
muitas vezes foi perdido. O que dizer? O que falar? Como dar forma ao sem forma? Como colocar-se em
cena no espaço do ‘sem palavras’ e recolher as cinzas das nossas próprias histórias e ressignificá-las
numa outra escala de cor. Comunidades que abraçam histórias sem poder de enunciação, mas que
ganham vida quando escritas num espaço criativo e curativo; isso porque a solidariedade está nos
encontros narrativos e o que afeta o outro afeta a mim também. O que se pretende com este grupo de
participantes é problematizar outras maneiras de abordar o luto por meio da escrita, criando esse espaço
de pertencimento, que leve em consideração a dor, de forma leve e, por que não dizer, criativa,
observando como eu mesma e minhas práticas de escrita emergem e surgem nessas comunidades.

500
É importante dizer que minha vivência como aluna de grupos, de oficinas e de ateliês de escrita
criativa oferecidos por profissionais das mais diversas áreas de outros países e do Brasil, as leituras
reflexivas de autores que escrevem sobre escrita criativa, autoria e práticas de textos na escola e minha
experiência como professora de escrita criativa constituem ferramentas importantes para esse processo
de construção e condução das comunidades de escrita criativa autoral. Assim, conduzir esta comunidade
do luto em um momento delicado para esta pesquisadora só foi possível em função dessa experiência
com a escrita criativa, com outras comunidades nas quais o lugar da cura se fez presente para outros
colaboradores e, também, para esta pesquisadora.
Os participantes desta comunidade embarcaram pelos trilhos do meu campo autoetnográfico.
Nasceram com o meu vivenciar o luto nesse contexto pandêmico. Assim, todos os colaboradores desta
comunidade foram marcados pela dor do luto. Em resposta ao luto solitário, criamos uma comunidade de
escrita criativa e curativa para práticas de narrativas solidárias: escritas de si em nós. Nesse espaço de
aconchego e amparo, espera-se trabalhar esse lugar da linguagem que muitas vezes foi perdido com o
luto. O que dizer? O que falar? Como dar forma ao sem forma? Como colocar-se em cena no espaço do
‘sem palavras’ e recolher as cinzas das nossas próprias histórias e ressignificá-las numa outra escala de
cor. Comunidades que abraçam histórias sem poder de enunciação, mas que ganham vida quando
escritas num espaço curativo; isso porque a solidariedade está nos encontros narrativos e o que afeta o
outro afeta a mim também.
Nas dores compartilhadas, cria-se um vínculo coletivo, fortalecendo os laços, resgatando os
registros em forma de abraço. Um luto solidário é um lutar juntos para encontrar palavras a ressignificar a
parte que nos falta nos conectando ao outro. Embarcaremos na estação solidária, andaremos nos trilhos
do afeto, no vagão do amparo, porque o luto não precisa ser solitário.
O que se pretende com este grupo de participantes é problematizar outras maneiras de abordar o
luto por meio da escrita, criando esse espaço de pertencimento, que leve em consideração a dor, de
forma leve e, por que não dizer, criativa, observando como eu mesma e minhas práticas de escrita
emergem e surgem nessas comunidades. É importante, então, dizer que essas práticas de escritas
dentro desse contexto permitem-me colocar este campo da pesquisa como autoetnografia, uma vez que
não sou estranha ao grupo pesquisado, mas colaboradora também, portanto, familiar. E é justamente
essa aproximação que faz com que os colaboradores da pesquisa se sintam à vontade.
Aqui, evoco o que diz hooks (2013) sobre as reflexões de uma pedagogia libertadora. Para a
autora, uma prática simples, como a de incluir a experiência pessoal, pode ser mais construtiva e
desafiadora que o simples ato de mudar o “currículo”. É a autora que, também, fala sobre a importância
do ato de partilhar narrativas pessoais. (HOOKS, 2013, p.198).

Urgência da expressão: a estilística do luto

Esta seção nasceu da necessidade de um lugar de fala para quem vivencia o luto. Um ambiente
de compreensão, solidariedade, amparo e sem julgamento do sentir e do agir dos enlutados. A estilística
do luto surge, então, no campo das ex(pressões) arraigadas na alma do ser humano, em um momento

501
de grande confronto com uma das certezas da vida: a morte. A morte de alguém com quem nutrimos os
laços afetivos mais íntimos e com os quais o rompimento arranca-nos, entre as muitas coisas, a própria
linguagem. Por quê? É um esforço na busca por entender o incompreensível. Na travessia do luto –
tempo indefinido – o que alguém pode expressar? O que uma pessoa no luto (quer) dizer?
As palavras estão expressas na fragilidade do corpo, no grito da alma por socorro, no silêncio
expressivo da dor, na angústia solitária incompreendida pelo outro. As palavras estão na alma e nos
atravessam o corpo. Elas dizem muito com ou sem palavras. A estilística do luto é atravessada,
principalmente, pelas metáforas que se constroem e (re) constroem na tentativa de definir o que se
sente. Vale destacar a reflexão sobre a linguagem trazida por Guiraud (1970), para quem “a linguagem é
algo mais que um objeto suscetível de ser examinado, analisado e considerado em suas partes: constitui
a expressão de uma vontade.” (GUIRAUD,1970, p. 58).
As metáforas são recursos estilísticos poderosos, usadas não apenas por poetas e escritores,
posto que se fazem presentes no dia a dia nos diversos campos do viver. Segundo Sardinha (2007), as
metáforas “funcionam na nossa mente, como forma de estruturar nosso pensamento... são um modo
simples de expressar um rico conteúdo de ideias, que não poderia ser bem expresso sem elas.”
(SARDINHA, 2007, p. 14). Aqui poderíamos contemplar o uso recorrente da metáfora no processo
criador que se intensifica em quem vivencia o luto.

PALAVRAS-CHAVE: luto; comunidade de escrita; escrita curativa; autoria; autoetnografia.

REFERÊNCIAS
BARZERMAN, Charles. Gênero, agência e escrita. Orgs. DIONÍZIO, Angela Paiva; Trad. Judith
Chambliss. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2006
DIAS, J. F. (Org). No espelho da linguagem: diálogos criativos e afetivos para o futuro. São Paulo:
Pimenta Cultural, 2021.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S.A., 1975.
______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
GUIRAUD, P. A Estilística. Trad. Miguel Maillet. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013.
SARDINHA, T. B. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

502
O JOGO ENTRE AUTOR E LEITOR NA OBRA JUVENIL CLARICE DO AUTOR ROGER MELLO

Júlia Esther Queiroz Pereira


Graduada em Licenciatura em Letras-Português pela Universidade de Brasília. Juliahesterhellen@gmail.com

Introdução

Além de ler uma obra e apreciá-la, é interessante procurar saber quais são as intenções ditas que
estão além das páginas, além do que é visível. A Epistemologia do Romance foca no serio ludere, um
jogo realizado por duas perspectivas, o leitor pesquisador e o autor que escreveu a obra. Segundo Ana
Paula Caixeta e Maria Veralice Barroso (2019), o leitor-pesquisador é perverso e não se satisfaz com as
impressões iniciais da obra e a composição do autor não é livre de intencionalidades. O problema de
pesquisa deste trabalho procura responder às seguintes questões: como a Epistemologia do Romance
pode ser um meio de pesquisa na literatura infantojuvenil? De que forma o serio ludere, ou seja, o jogo
entre leitor e escritor, faz-se presente na linguagem, temática e elementos lúdicos do livro Clarice (2018)
para gerar atração? A estética empregada nessa composição de literatura juvenil do autor Roger Mello é
repetida no seu conjunto de obra?
Essa investigação objetiva, de modo geral, identificar quais recursos utilizados por esse livro
praticam o serio ludere, que é objeto de interesse da Epistemologia do Romance; mais especificamente,
buscamos compreender como esse jogo ocorre na linguagem, que precisa ser adequada ao público a
que se destina. Também é fundamental saber o jogo presente na temática e se ela traz experiências,
reflexões e ensinamentos referentes aos jovens e, ademais, verificar o serio ludere dos elementos
lúdicos, capazes de aproximar os adolescentes de seus conteúdos, favorecendo a fruição literária e o
desenvolvimento do prazer de ler.
Analisar os recursos utilizados na obra Clarice (2018), para estabelecer o jogo entre autor e leitor,
é importante a fim de que se entenda os meios utilizados pelo escritor para atrair a atenção dos
adolescentes à sua composição. Assim, esse trabalho poderá contribuir com educadores preocupados
com o processo de leitura desenvolvido pelos seus educandos, assim como com pesquisadores e
escritores, já que essa pesquisa pode trazer os métodos utilizados para se escrever literatura juvenil,
sendo gerais desse tipo de literatura ou subjetivos do autor.

Referencial Teórico

Como referencial teórico, tomamos obras que discutem a linguagem, a temática e os elementos
lúdicos referentes à literatura juvenil, além das que se referem à Epistemologia do Romance, tendo como
autores: Lígia Cademartori (2010), Cecília Meireles (1979), Regina Zilberman (2004), Lúcia Maria Barros
(2019), Maria Veralice Barroso (2019), Sara Lelis de Oliveira (2019), Ana Paula Caixeta (2019), entre
outros. Além disso, esse artigo buscou trazer uma pequena biografia do autor Roger Mello (2018),
principalmente sobre os trabalhos já realizados por ele, para que se pudesse identificar a relação entre

503
vida do autor, obra e conjunto de obra. Depois, foi analisado o livro Clarice (2018), mediante a
investigação das intencionalidades do autor.

Metodologia

Segundo Antonio Carlos Gil (2009), uma pesquisa exploratória tem como finalidade gerar uma
familiaridade com o problema, objetivando torná-lo mais explícito ou formar hipóteses. Nesse sentido,
esse artigo foi desenvolvido com base em pesquisa exploratória, a fim de proporcionar a familiarização
com o livro literário Clarice (2018), escrito pelo autor Roger Mello, tendo como meta identificar a forma
como o jogo, o serio ludere, defendido pela Epistemologia do Romance, faz-se presente nessa obra por
intermédio das características consideradas relevantes para esse tipo de composição, como a
linguagem, a temática e os elementos lúdicos.

Resultados

Esse trabalho preocupou-se em discutir sobre a obra juvenil Clarice (2018) de Roger Mello,
possibilitando descobrir quais recursos foram utilizados por esse autor para gerar o serio ludere, tendo
como foco a linguagem, a temática e os elementos lúdicos, a fim de saber como esses aspectos
interagem com o público jovem. Concluiu-se que a linguagem precisa ser adaptada ao entendimento de
seus leitores ao mesmo tempo em que traz o contexto histórico e cultural a que a obra se refere. A
temática necessitaria trazer novas experiências aos adolescentes, ensiná-los a lidar com suas emoções
e mostrar características do governo o qual o Brasil vivenciou, dessa forma buscando entender o
funcionamento da obra como instrumento de denúncia. E o elemento lúdico traria uma interação maior
entre o leitor e a obra, imagens capazes de terem sua própria narrativa, não se esquecendo que o lúdico
também está presente na interação entre leitor e autor.

Considerações finais

Esse estudo foi importante, pois trouxe reflexos aos pesquisadores de uma metodologia para
compor uma literatura juvenil, mesmo sendo algo específico do autor. Embora a obra tenha sido contada
por meio da visão de um adulto, pode-se pensar que ela tem influências de como a capital é vista pela
juventude, já que o autor foca nesse público, ainda, o livro pode trazer a visão adolescente a respeito do
regime militar vivenciado por todo o Brasil, pois Mello (2018) diz ter crescido nesse período. Clarice
(2018) valoriza a arquitetura brasiliense, o que é possível ver nos desenhos dos prédios e nas
referências de Burle Marx, dessa forma, ela é recomendável para os professores que queiram incentivar
os alunos a descobrirem mais sobre a nossa capital e também sobre o regime militar. Mediante essa
pesquisa, é possível deduzir o quanto a literatura juvenil é complexa, principalmente por ter que se
preocupar com os três aspectos já mencionados aqui para construir uma boa composição.

504
Em relação aos resultados, o livro em questão apresentou uma linguagem mais coloquial e
questionou situações da existência humana. A temática se concentrou na ditadura militar experienciada
em Brasília pela garota Clarice, nas suas aventuras, nas suas ausências, nos seus questionamentos e
em descrições dessa cidade, além dos alívios inseridos pelo escritor para seu público juvenil. Os
elementos lúdicos trouxeram uma narrativa por meio das figuras e geraram a interação entre autor e
leitor.
Portanto, observa-se que Clarice (2018) pratica o jogo epistemológico por intermédio de diversos
recursos aqui já citados e atende ao público juvenil por ter esses aspectos adaptados a essa faixa etária.
Ele se importa em não só ser um livro educativo e histórico, mas que também busca atrair seus leitores,
dessa maneira, incentivando essa prática.

PALAVRAS-CHAVE: literatura juvenil; serio ludere; linguagem; temática; elementos lúdicos.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Fernando; BARROS, Lúcia Maria. Literatura infantil e temas difíceis: mediação e recepção.
Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 105, p. 77-92, maio/ago. 2019.
BARROSO, Maria Veralice, Wilton; CAIXETA, Ana Paula. Verbetes da Epistemologia do Romance
(Volume 1). Brasília: Verbena Editora, 2019.
_____; CAIXETA, Ana Paula. Verbetes da Epistemologia do Romance (Volume 2). São Paulo: Pontes,
2021.
_____; BARROSO, Wilton. Estudos Epistemológicos do Romance. Brasília: Verbena Editora, 2018.
CADERMATORI, Lígia. O que é literatura infantil. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2010.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 2ª ed. São Paulo: Summus, 1979.
MELLO, Roger. Roger Mello: para devolver à criança a criatividade livre. [Entrevista concedida a]
Jaqueline Conte. Plural, Curitiba, 13 ago. 2019.
_____. Clarice. 1ª ed. São Paulo: Global, 2018.
_____. Confira a íntegra da entrevista com o escritor brasiliense Roger Mello. Correio Braziliense,
Brasília, 26 out. 2009.
ROGER Mello. Companhia das Letras. Disponível em:
https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=01129 Acesso em: 10 maio 2021.
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva,
2005.

505
AÇÕES DA BIBLIOTECA ESCOLAR COM LEITURA E ESCRITA DE POESIA

Camila Lino
Orientadora Educacional/SEEDF. Pós-graduação orientação, gestão, psicopedagogia, educação inclusiva.
camila.lino@edu.se.df.gov.br

Gabrielle Leal
Professora Língua Estrangeira/SEEDF. Graduada Letra/Inglês. Pós-graduação revisão e traduçao.
gabriellelealferreira@gmail.com

Laiane Trindade
Professora Língua Portuguesa/SEEDF. Graduação Letras Português. Pós-graduação revisão de texto.
laiane320@gmail.com

Simone Marques
Analista Políticas Públicas Gestão/SEEDF. Pedagogia. Psicólogia, Pós-graduação Contação de História.
psique.marque@gmail.com

Introdução

Por ser o principal papel da biblioteca escolar desenvolver ações de incentivo à prática de leitura
de textos literários dos mais variados gêneros, este trabalho pretende refletir sobre a importância da
valorização destes momentos no contexto escolar e fora dele também, com ênfase na linguagem poética
presente na leitura e escrita de poemas.
No decorrer dos atendimentos e atividades realizadas com foco no incentivo e desenvolvimento
da prática de leituras literárias na biblioteca escolar da Unidade de Ensino pública de Ceilândia - DF,
observou-se que muitos estudantes ainda não acessam os livros literários disponíveis na biblioteca da
escola. Buscou-se então realizar o curso do PMI - Programa Mulheres Inspiradoras ofertado pela
EAPE/SEEDF, no ano letivo de 2020, que a partir daí proporcionou suporte teórico e pedagógico para
iniciarmos as primeiras atividades práticas da biblioteca, por meio das orientações sobre Pedagogia de
Projeto com ações envolvendo leituras literárias e escrita autoral a partir dos recursos poéticos dos textos
selecionados e utilizados na mediação de leitura.
As obras do acervo do PMI contempladas em todas as escolas que realizam o curso
possibilitaram a realização de importantes atividades. Por meio dos poemas escolhidos objetivou-se
proporcionar momentos de reflexão sobre questões do cotidiano dos nossos estudantes consideradas
importantes e fundamentais como: afetividade, autoconhecimento, desigualdades e violência social e de
gênero, racismo, dentre outros.
Durante e após a realização do curso do PMI no ano letivo de 2020, as ações da biblioteca
escolar passaram a contar também com importantes propostas desenvolvidas nas oficinas do
GECRIA/UNB, denominadas Autoria Criativa, coordenadas pela professora e pesquisadora/doutora
Juliana Dias. Estas grandiosas parcerias nos proporcionaram valiosas possibilidades às propostas e
atividades voltadas para leitura e escrita autoral com foco na linguagem poética.
Por ser o ambiente escolar um espaço privilegiado de encontro e ampliação das relações sociais
de convivência entre os estudantes, assim como o fortalecimento de vínculos de pertencimento, a

506
necessidade de se sentir aceito e reconhecido em grupos por afinidades de convivência. Sendo
constantes neste espaço ocorrências de uma linguagem agressiva e até violenta em situações entre os
estudantes, entre estudantes e professores, vice-versa. Diante das dificuldades apresentadas pelos
adolescentes e jovens em expressar sentimentos e emoções assertivas sobre si mesmos, em suas
relações com o outro, no contexto familiar, consideramos importantes as ações de leitura e escrita com
foco na linguagem poética que promovam reflexões, espaço de fala, questionamentos sobre a própria
história de vida dos estudantes e seus contextos sociais, conforme destacam Alburquerque (2020), por
meio da sua proposta prática da pedagogia de projeto crítica, e Dias (2021), com as grandiosas e
transgressoras propostas apresentadas nas oficinas de autoria criativa.

Descrição da Experiência

Na primeira ação de 2020 e também de conclusão do curso do PMI, parceria com a professora de
PD/Língua Portuguesa, a biblioteca escolar sugeriu que os estudantes de 8º/9º anos pesquisassem a
história das escritoras: Cristiane Sobral, Conceição Evaristo, Cora Coralina, Maria Carolina de Jesus e
escolhessem algum poemas ou textos.
Outra atividade ainda em andamento a partir da proposta de leitura de poesia de cordel,
desenvolvida pelos estudantes das turmas de 7º Ano, orientados pela professora PD/Língua Portuguesa,
resulta na produção da escrita “Escrita Autoral” dos estudantes, onde todos produziram textos inspirados
nesta literatura. A realização desta atividade nos proporcionou o contato com estudos e pesquisas do
GECRIA/PMI a partir propostas das professoras Dias (2020, 2021) e Albuquerque (2020). Cada atividade
lida pelos estudantes traz muito dos seus sentimentos, afetos, vínculos familiares, dores, sonhos e outros
temas.

Referencial Teórico

Conforme apontado por Dias (2021) e Albuquerque (2020) e apresentado na base teórica do
curso do PMI - Mulheres Inspiradoras, é de grande importância colocar à disposição dos nossos
estudantes leituras que proporcionem uma reflexão sobre valorização do protagonismo do sujeito, a
questão da desigualdade de gênero, racismo, leitura crítica do nosso contexto sócio histórico cultural,
como elementos potenciais para a construção do projeto de vida, conquistas pessoais, culturais e
autonomia dos nossos estudantes.

Resultados e Discussão

Avaliou-se como muito positiva a boa receptividade dos estudantes às atividades propostas.
Estudantes realizaram a pesquisa e se colocaram à disposição para ler a biografia das autoras e as
poesias. Relataram sobre a experiência de participar do projeto: “conhecer a história escritoras valoriza a
força das mulheres. Elas escrevem muito bem” (Nicole/9B).

507
Conforme proposta do PMI (Albuquerque, 2020), considera-se de extrema importância colocar à
disposição dos estudantes leituras que proporcionem reflexão e consciência crítica sobre desigualdade
social, violência, gênero, racismo, dentre outros temas. É responsabilidade da escola propor, estimular e
executar ações com ênfase nos projetos de leitura e escrita com foco na linguagem poética e que
estimulem e valorizem aspectos da afetividade, protagonismo, de forma a despertar nos estudantes o
autocuidado, crítica ao contexto sócio histórico cultural, como elementos potenciais para a construção e
importantes conquistas para o equilíbrio sócio emocional, não só do estudante, mas também de todos os
profissionais e familiares envolvidos na comunidade escolar.

Considerações Finais

As ações práticas e teóricas desenvolvidas com este projeto de leitura e escrita podem contribuir
com a valorização e surgimento de importantes habilidades, tanto para nós profissionais da educação
quanto para nossos estudantes, seus familiares, assim como os demais membros da comunidade
escolar. Evidenciamos uma pequena experiência e vivência com a leitura e escrita de poesia que nos
proporcionou oportunidade de percebermos na prática pequenos resultados dos pressupostos
teóricos/práticos analisados e relatados tanto pelas pesquisadoras do PMI/SEDF (ALBUQUERQUE,
2020) quanto nas oficinas do GECRIA/Autoria Criativa (DIAS, 2021) conforme presenciamos em nosso
contexto escolar.
Neste sentido, a valorização da linguagem poética como recurso de recuperação e fortalecimento
da nossa humanização pode contribuir para o resgate do protagonismo e autonomia, tanto dos
estudantes quanto dos profissionais. Temos imenso potencial e espaço para evoluirmos e, assim,
fazermos muitos mais por nós mesmos, por nossos estudantes e por nossa comunidade escolar.

PALAVRAS-CHAVE: biblioteca escolar; poesia; leitura e escrita; PMI/GECRIA.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Gina V. Pontes. Programa Mulheres Inspiradoras e Identidade Docente: um estudo
sobre pedagogia transgressiva de projeto na Perspectiva da Análise do Discurso Crítica. Dissertação de
Mestrado. UNB, Brasília, 2020.
DIAS, J.F, & BACH, J. 2021, p 15-41. O amor, o ritual e o espírito. No Espelho da linguagem: diálogos
criativos e afetos para o futuro. Juliana de Freitas dias. Org. São Paulo: Pimenta Cultural, 2021. 312 p

508
ESCRITA CRIATIVA E AUTORIA: METODOLOGIAS ATIVAS
A REESCRITA DE TEXTOS E A CONSTRUÇÃO DA AUTORIA CRIATIVA

Ana Clara Silva Oliveira


Graduanda de Letras Tradução - Inglês (Bacharel) na Universidade de Brasília; Pesquisadora do grupo de pesquisa
GECRIA - Educação Crítica e Autoria Criativa. oliveiranaclara.s@gmail.com

Introdução

A escrita vem primeiro, com tudo que lhe dá direito, sem medir, sem medo, o que Dias (2021)
chama de gesto do impulso. Depois entra o diagnóstico desapegado, o gesto da intuição, que, conduzido
por certas práticas, facilita um segundo olhar para o texto e, consequentemente, o reescrever. Essa
pesquisa, movida por esses fundamentos e construída e orientada pelo trabalho de campo do GECRIA
(Grupo de Pesquisa Educação Crítica e Autoria Criativa - UnB/CNPq) tem como objetivo explorar os
efeitos da reescrita na formação do sujeito-autor e seu uso como ferramenta de escrita.

Metodologia

A disciplina de “Oficina e Produção de Textos”, ministrada pela Profa. Dra. Juliana de Freitas Dias
gerou os dados essenciais para a realização desta pesquisa. Foram coletados diários de bordo e textos
autorais escritos por graduandos/as, suas primeiras versões e reescritas e, em um primeiro momento,
feita uma análise auto-etnográfica, introduzida por um texto autoral e mediada pelos principais
questionamentos da pesquisa: por que escrevo, por que não escrevo e por que reescrevo. A
segunda parte é desenvolvida por meio da discussão de fundamentos teóricos sobre autoria e estilística,
que dialogam com as experiências de escrita dos/as alunos/as de OPT, culminando na leitura cuidadosa
e comparativa de reescritas e suas respectivas primeiras versões a fim de tomar nota das principais
mudanças.

Relato auto-etnográfico

Dona Gramática e a colcha de retalhos


Na colcha de retalhos da minha escrita, eu viajo ao passado. Ali no canto de tecidos desbotados
estão os textos nunca relidos. Os pontos muito apertados, feitos de linha-padrão, e fiados por uma
senhora mal-humorada, Dona Gramática Normativa, condenaram minhas palavras a um terrível e eterno
destino: a fixidez. Todos os retalhos eram previamente escolhidos, medidos e organizados. A colcha nem
existia, mas aquela velha já sabia como ia ficar. Eu preferia passar frio a deixar o pano feio ganhar
comprimento. Ficava dias sem escrever, e ela ficava dias sem costurar. Uma situação, no entanto, me
obrigou a reconsiderar. Aonde eu ia, só via colchas iguais. Diziam ser elas as cobertas do futuro, calor
garantido. Eu me rendi a minha carcereira e lhe entreguei meus textos. Minha prisão, porém, nada tinha

509
de perpétua. Da janelinha do meu futuro, me despedi da avó dos meus pesadelos. As maldições dela,
descobri, ficavam mais fracas aqui, nesses retalhos coloridos, onde as palavras são bordadas quase
magicamente. É a Jovem Autoria quem vai tecendo. Ela nunca toma o cuidado de arrematar os pontos.
Prefere alinhavar: testa esse ou aquele retalho, uma linha fina ou uma linha grossa. E começa a urdir e
logo vai desfazendo, para começar tudo de novo. Essa mocinha, muito diferente de sua predecessora,
trabalha sem rotina. Às vezes, pega uma folga demorada e esquece de avisar. Com as agulhas paradas,
volta a velhinha para me cutucar: “Vale nada a menina! Vamos logo trabalhar!”. Mas é impossível me
zangar com a Autoria. Criança de tudo, volta para os meus braços como se nunca tivesse ido,
carregando no peito todos os tipos de estampas, brilhantes e escuras, floridas e listradas. Como a
velhinha, mesmo de escanteio, está sempre dando pitaco, Jovem Autoria volta e meia cose umas ideias
dela com sua própria linha. E a colcha de retalhos da minha escrita cresce.

Análise de reescritas

Texto 1 (Márcia Maria)

Primeira versão Reescrita

Mariana estava limpando a casa, guardando roupas, Mariana estava limpando a casa. Entrou no quarto da
passando pano para tirar a poeira. Entrou no quarto da sua filha. Parou. Ela sempre entrava para arrumar,
sua filha. Parou. Ela sempre entrava para arrumar, para tirar coisas e guardar de novo, mas naquele dia
para tirar coisas e guardar de novo, mas naquele dia algo chamou sua atenção. O urso de pelúcia, Alfredo,
algo chamou a atenção. O urso de pelúcia, Alfredo, estava em cima da cama. “Como você veio parar
estava em cima da cama. “Como você veio parar aqui?”. Mariana sentou-se na cama segurando o
aqui?”. Mariana sentou-se na cama segurando o ursinho. Abraçou forte, sentia o cheiro da sua filha. O
ursinho. Abraçou forte, sentia o cheiro da sua filha. De perfume do passado, de repente, fez com que
repente, naqueles poucos segundos que mais naqueles poucos segundos, que mais pareciam uma
pareciam uma viagem eterna, a consciência da vida e viagem eterna, a consciência da vida e da existência a
da existência a atingiu. atingissem.

Acima vemos um bom exemplo da utilização do corte de palavras. Quando realizamos um


exercício de escrita, o importante é escrever sem parar, preocupando-se menos com a forma, a escolha
de palavras, os tempos verbais, e mais em colocar no papel tudo que vier à cabeça. É uma prática que
liberta a autoria criativa e se chama escrita espontânea, parte do princípio proposto por Noemi Jaffe 87 de
que são as palavras que guiam as ideias e não o contrário.
Na reescrita, ao cortar conjunções, artigos, palavras repetidas, entramos no processo de esculpir
um texto, de arredondar suas bordas e lixar sua superfície. Para reescrever, precisamos nos atentar para
cada frase, cada trecho, cada palavra. A leitura atenta é parceira neste trabalho e a consciência estilística
nos ajuda a guiar os cortes e os acréscimos.

87 Noemi Jaffe é escritora e coordenadora do espaço cultural Escrevedeira (https://escrevedeira.com.br/).

510
Note a reescrita do início do trecho, a frase longa substituída por frases curtas. A pontuação
implica certa rotina, costume. “Mariana estava limpando a casa. Entrou no quarto de sua filha. Parou”.
Nos vem à mente a imagem inquestionável de uma mulher realizando esse trabalho corriqueiro. Como se
estivéssemos na cena, situados deiticamente através das frases curtas. O corte ainda ressalta uma
característica própria de Márcia, se inserindo em seu estilo, e dos autores de crônicas que se valem de
situações do dia a dia em sua escrita.

Resultados

Ao final desta pesquisa, é possível identificar marcas de autoria e estilo próprios que se deram
pela reescrita de textos e perceber a reescrita como ferramenta indispensável da escrita. A análise em
formato de tabela de trechos autorais selecionados, divididos em primeira versão e reescrita, possibilitou
uma visão ampla de onde e como o texto muda quando se aplica uma técnica de reescrita — como, por
exemplo, o corte de palavras — e o que essa mudança revela sobre a autoria do/a escritor/a.

Discussão/Conclusão

Ademais de cumprir seus objetivos, apresentando uma argumentação valiosa sobre formação
autoral e estilo, essa pesquisa contribui para favorecer o reconhecimento das metodologias de reescrita
e incentivar seu uso como ferramenta para todos, seja estudante universitário, seja autor de romance,
em todo lugar, nos laboratórios de escrita criativa, como também no ambiente acadêmico.

PALAVRAS-CHAVE: reescrita; escrita criativa; autoria; estilística.

REFERÊNCIAS
DIAS, Juliana de Freitas (org.). Autoria Criativa: por uma pedagogia da escrita criativa. 1. ed. São
Paulo: Pontes Editores, 2021.

511
O RIO DA VIDA: CURSOS E PERCURSOS DE PROFESSORAS EM FORMAÇÃO CONTINUADA –
AUTORIA, IDENTIDADE E PROTAGONISMO EM TRANSFORMAÇÃO

Vânia dos Reis Sousa


Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Graduada em Letras pela
Universidade Católica de Brasília (UCB) e mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB).
van619@gmail.com

Introdução

Pesquisar é buscar respostas ou rumos para seguirmos o curso. Isso me motiva a seguir, com um
olhar atento, a respeito daquilo que me cerca. A mudança social se dá a partir de diferentes aspectos e a
maneira como “produzimos” e, principalmente, partilhamos nossos discursos/aprendizagens representa o
nosso modo de ser/estar no mundo. Optei por vivências que poderiam servir para que outras pessoas
também (re)pensassem o seu fazer pedagógico. A prática em sala de aula, muitas vezes, é solitária e
não somos instigadas88 a partilhar o que fazemos. Freire (2019) nos diz que há que se aprender
ensinando.
Fairclough (2001) nos apresenta as fissuras sociais existentes, a partir da maneira que operam a
ideologia e a hegemonia, e como podemos tomar consciência da maneira que somos “modelados”
socialmente e de que modo podemos subverter, questionar e reelaborar a forma como as ações destes
discursos são percebidas por nós.
Sou parte daquilo que pesquiso, não há a neutralidade, visto que, nos campos dos estudos da
educação, da linguagem e sob a ótica da (auto)etnografia, temos que afinar a nossa prática ao que
estudamos e acreditamos. Não há como teorizar comunidades de aprendizagem (HOOKS, 2020, 2021)
sem viver numa. Busco ser uma professora-pesquisadora transformadora (GIROUX, 1997) de teorias
distantes para dialogar com a minha realidade.

Transdisciplinaridade – pensando em alguns conceitos

A Educação, dentro do contexto neoliberal imposto, é colocada como um produto a ser vendido
ou a servir interesses das classes que se colocam como dominantes – hegemonicamente, é esse
discurso que dita os rumos a serem seguidos.
Dentro da ADC, os textos são tidos como elementos que ultrapassam os conceitos de simples
causa/efeito, os quais geralmente apresentamos, demonstrando poderes causais (FAIRCLOUGH, 2003),
além de os textos se apresentarem como agentes (MAGALHÃES, 2017), num país em que marcas dos
lugares de onde viemos podem nos levar a uma condição de subjugado.
Não há como ignorar o diálogo entre educação e a criação de comunidades de aprendizagem
quando se fala de práticas de escrita em escolas, como nos diz Freire (2019), “não há docência sem

88 Opto pelo uso do feminino para demarcar o lugar de onde falo: a Educação é feita por mulheres, principalmente a Educação
Básica brasileira, e o uso do masculino mascara a realidade de descaso com que somos tratadas.

512
discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem
à condição de objeto um do outro” (p.25) – ou seja – não é possível aprender sem a existência de um
processo dialógico, em que os participantes são também agentes de seus processos.
Nesta mesma perspectiva, hooks (2019) também nos alerta que a “pedagogia engajada não
busca simplesmente fortalecer e capacitar os alunos”(p.35), mas também se apresentará como “um local
de crescimento para o professor, que será fortalecido e capacitado por esse processo” (p.35). Em diálogo
com a percepção da escola como um lugar de autoatualização, termo cunhado por hooks, evoco o
conceito do/a professor/a como intelectual transformador/a, de Giroux (1997), pois somos mais que
simples executores dos currículos escolares – devemos “estar ativamente envolvidos na produção de
materiais curriculares adequados aos contextos culturais e sociais em quais ensinam” (p.160).
As práticas sociais – dentro do contexto escolar – nos convidam a pensar em formas que nos
levem a “ver as coisas, de vivenciar a história que construímos. [...] somos levados a interagir em nossas
práticas sociais também como novos sujeitos e cidadãos” (DIAS; COROA; LIMA, 2018, p. 30). Esses
sujeitos-cidadãos89, que encontramos em nossas salas, não “recebem” o conhecimento como algo já
acabado e inquestionável: tanto professoras/es quanto estudantes são levados a questionar e a repensar
suas verdades, além de se colocarem como esse elemento de modificação social – mesmo que esta
aconteça do âmbito de “suas vidas”.
Educar criticamente é construir uma “atitude em relação ao mundo” (GIROUX, 1997, p.123). Esta
atitude está intimamente ligada ao pensar o mundo sob outras óticas e pontos de vista, um olhar
“prismado”: que não seja tomado de um ponto de vista “único”, mas um que se abra e se desdobre, para
que possamos construir outras visões.

A pesquisa dentro deste rio

Optei por um recorte analítico que evidencia as possibilidades de encontro com a


escrita/leitura/escuta/fala/partilha de professoras que partilharam suas vivências e experiências com a
escrita criativa a partir do Programa Mulheres Inspiradoras (PMI) e do Grupo de Pesquisa Educação
Crítica e Autoria Criativa (GECRIA).
Além das professoras, tive contato com três estudantes que vivenciam comunidades de escrita
dentro do GECRIA. No decorrer das análises, pude perceber que o nível de envolvimento, descobertas e
aberturas encontradas estão inter-relacionadas às formações que participam.
Partindo deste ponto, encontrei no curso da pesquisa-rio elementos que me fazem acreditar, cada
vez mais, num processo de Educação em que a Liberdade, o Protagonismo e a Autoria despontam como
elementos a serem valorizados e lapidados.

Buscando caminho para o mar – algumas considerações

89 Usarei o masculino, nesse caso, apenas pela dificuldade de, no uso da língua portuguesa, “feminilizar”, transpor para o
feminino, o generalizante masculino da palavra sujeito.

513
Espero que este estudo/pesquisa possa colaborar para o fortalecimento das práticas relacionadas
à escrita criativa e à formação de comunidades de aprendizagem. A partir destes dois elementos, espero
que a produção de texto deixe de ser um privilégio e passe a ser uma prática abraçada por todas/os.
Muitas vezes se prioriza o ensino da estrutura da língua em detrimento da sua aplicabilidade oral e
escrita em práticas sociais.
Ao falar da formação continuada, o fiz por entender que é um processo que devemos nos
envolver – a autoatualização é, mais que engajar-se pedagogicamente, buscar uma Educação que “cure
seu espírito desinformado e ignorante” (HOOKS, 2020, p.32-33) e que leve ao “conhecimento
significativo” (p.33). É embrenhar-se por esse rio.
Pesquisar sobre a formação continuada é tentar devolver o que recebi. É buscar reverenciar as
professoras que pesquisam, leem, refletem, buscam seus pares para o diálogo e nunca estão satisfeitas
com o que “sabem”. De certa forma, tem sido este o meu motor propulsor!

REFERÊNCIAS
DIAS, J. COROA, M.L e LIMA, S. Criar, resistir e transgredir: Pedagogia Crítica de projetos e
práticas de insurgências na Educação e nos Estudos da Linguagem. Dossiê temático: Cadernos
Linguagem e Sociedade, 2018, pp29 - 48. (versão impressa)
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coord. trad. Izabel Magalhães. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001 (2008 – reimpressão).
____. Analysing discourse. Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 58ª ed. São Paulo:
Paz & Terra, 2019.
GIROUX, H. Professores como intelectuais – Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem.
Trad. D. Bueno. Porto Alegre: Artes Médica, 1997.
HOOKS, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Cipolla.
2ª ed.(2017). São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2020.
____. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. Trad. Kenia Cardoso. São Paulo:
Elefante, 2021.
____. Escrever além da raça: teoria e prática. Trad. Jess Oliveira. São Paulo: Elefante, 2022.
MAGALHÃES, I. Protagonismo da linguagem: textos como agentes. RBLA, Belo Horizonte, v. 17, n.
4, p. 575-598, 2017

514
SISTEMA DE COTAS SOCIAIS: A TRANSPOSIÇÃO DA LINHA ABISSAL – POSSIBILIDADES E
CONSTRANGIMENTOS

Gissele Alves
Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília/UnB e mestre em Linguística também pela Universidade de
Brasília/UnB. Especialista em Leitura e Produção de Textos pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e
licenciada em Letras Português-Inglês e suas respectivas literaturas também pela UNIVALI. Docente do Instituto
Federal de Brasília/IFB, membro do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade do Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília –NELIS/CEAM/UnB e dos grupos de pesquisas: GECRIA-
“Educação Crítica e Autoria Criativa” PPGL/UnB e Linguagem e Práticas Sociais CSSB/IFB e sócia da Associação
Latinoamericana de Estudos do Discurso/ALED. Pesquisadora em Estudos Críticos do Discurso, Estudos Críticos
do Letramento e Sociologia da Educação e da Juventude com foco em construções identificacionais,
representações discursivas, práticas acadêmicas, discursos do letramento, desigualdade social, educação superior
e juventudes. gialves.unb@gmail.com

Com esta proposta de conversatório tenho por intento partilhar alguns pontos, laços e nós do
processo de tecitura da minha tese de doutoramento. Assim, assinalo que o foco do trabalho são
representações discursivas e construções identificacionais relacionadas à política educacional que
disciplina o sistema de cotas para ingresso nos institutos e nas universidades federais. Instituída pela
Lei nº 12.711/2012, e ampliada pela Lei 13.409/2016, a política garante que as instituições federais de
ensino superior reservem a partir de 2016, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Diante disso, firmei como objetivo precípuo da pesquisa desvelar discursos que naturalizam a
desigualdade social e reforçam suas fronteiras como também discursos de resistência às barreiras e
aos constrangimentos de acesso aos bens simbólicos e materiais, sobretudo, à universidade pública no
Brasil.
Para tanto, embaso-me no referencial teórico-metodológico dos Estudos Discursivos Críticos e
dos Novos Estudos do Letramento com base em autores como Dias (2011, 2015), Fairclough (1992,
2003) e de Chouliaraki e Fairclough (1999), Resende (2009, 2019), Ramalho e Resende (2011), Rios
(2009, 2010) e Street (1995) colocado em diálogo com constructos das Ciências Sociais Críticas,
nomeadamente, da Sociologia da Juventude e da Educação, tecendo discussões, entre outras questões,
sobre identificação e diferenciação, representação discursiva, desigualdade, interseccionalidade,
educação, pensamento pós-abissal de autores como Bhaskar (1986), Bourdieu (1983, 1987), Ferreira
(2017), Firmino da Costa (2012), Giddens (2000), Lahire (2001, 2004, 2006), Lopes (1996, 2002,2015),
Pais (1993, 1999, 2005), Sousa Santos (2008, 2011).
Para o processo da pesquisa pautei-me pela perspectiva da Pesquisa Qualitativa, à luz de
Cameron et al. (1992) e de Denzin e Lincoln (2006) e assumi a constituição dos corpora de duas
naturezas, a saber, a pesquisa documental e a pesquisa etnográfica crítica e reflexiva. Assim, quanto à
pesquisa documental, debrucei-me sobre a compilação, mapeamento, tratamento e análise de (i) dados
estatísticos dos Microdados do Censo da Educação Superior - INEP – dos anos de 2012 e 2017
(abrangendo um ano antes e um ano depois do cumprimento da regra da Lei das Cotas) para traçar um
conjunto de retratos, os Retratos da realidade da Educação Superior e das Juventudes sob a lente

515
da interseccionalidade, e, assim, compor a análise da conjuntura da tese e (ii) textos midiáticos que
atualizam representações sobre o sistema de cotas sociais, veiculados na Internet no segundo semestre
de 2012, espaço-tempo da aprovação da lei. No tocante à pesquisa de cunho etnográfico crítico e
reflexivo, engajei-me (i) na realização de entrevistas (des)centradas, segundo proposição de minha
autoria, com professoras/es e gestoras/es da Universidade de Brasília e (ii) na elaboração e realização
de um curso de extensão, “Fazendo mais que gênero?”- (Re)pensando o Mundo e (Re)escrevendo a
História, para o qual propus um conjunto de “estratégias de geração de dados desencaixadas”,
conforme Alves (2018). Assim, a proposta do curso, voltado para estudantes universitárias/os, orientava-
se/orienta-se a não só captar silêncios e discursos em textos das/os estudantes, mas também a
favorecer a consciência linguística crítica sobre as práticas acadêmicas e discursos do letramento
implicados a fim de potencializar percursos, projetos e a agência juvenil.
Destarte, dada a exigência do fazer-pesquisa crítica e reflexiva, o exercício de costuras e/ou de
rupturas realizado – nos retratos das juventudes, na análise interdiscursiva tecida sobre os discursos
atualizados e articulados em textos midiáticos e em textos das/os jovens estudantes e professoras/es
universitárias/os – orientara-se por desofuscar fronteiras e barreiras discursivamente construídas sobre e
naquela realidade, mas também lançar luz a perspectivas contestatórias, a possibilidades de práticas e
letramentos de resistência a potencializar e engendrar transposição do enredo complexo que constitui
a linha abissal, o problema social parcialmente discursivo de que se ocupa esta tese.
Então, nessa empreitada analítica, dediquei-me a “desfiar” a linha abissal – segundo
recontextualização conceitual que proponho na e para a tecitura da tese com base no constructo de
Sousa Santos (2010) – em algumas de suas facetas e dimensões à luz dos olhares partilhados comigo
no campo. Assim, representações discursivas e construções identificacionais realizadas pelas/os
participantes da pesquisa assinalam para o funcionamento da linha abissal como poderosa perspectiva
ideológica que sustenta o “domínio do impensável”, de que fala Sousa Santos (2010), a serviço da
manutenção das restrições de acesso, logo, do estado de coisas. Para isso opera em diferentes
dimensões cujos efeitos alcançam as disposições – os modos de “sentir, pensar e agir”, conceituação
que articulo e operacionalizo, com base em Bourdieu (2004 [1987]), Lahire (2001, 2004) e Lopes (2015)
–, a que estão implicados os sistemas de crenças, desejos e valores – , as construções identificacionais
implicadas por “origem, percursos e projeto”, segundo Lopes (2015), e a implicá-los.
Diante disso, considerando o quadro de desigualdades que assola o país, ainda que os retratos
das juventudes traçados demonstrem que o sistema de cotas vem democratizando o acesso à
universidade pública, historicamente restrito a uma pequena parcela, o que vem provocando novos
contornos e promovendo já rupturas, é preciso discutir e promover permanência e êxito na universidade.
Para tanto, a universidade precisa ampliar o movimento necessário à construção do interconhecimento,
como propõe Sousa Santos (2010), o que passa necessariamente, assim, sinto e penso, pela
reconfiguração das práticas e pelo fomento de letramentos de resistência. Permanência e êxito é uma
responsabilidade a exigir que a universidade tenha olhos e ouvidos atentos às presenças que se
pronunciam no campo e às diferenças que significam e que as cruzam, sobretudo, daquelas/es que
outrora estavam no lado de fora do campo.

516
PALAVRAS-CHAVE: juventudes; sistema de cotas; ensino superior; linha abissal; letramentos de
resistência.

REFERÊNCIAS
ALVES, G. Carta de algum lugar do futuro: narrativas de cunho biográfico: Estratégia de geração de
dados – uma proposta “desencaixada” e reflexiva. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v.
19, n 3, p. 145-163, 2018.
BHASKAR, R. Scientific realism and human emancipation. London: Verso, 1986.
BOURDIEU. P. A “juventude” é apenas uma palavra. In: BOURDIEU. P. Questões de sociologia. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1983. Disponível em:
http://www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/a-juventude-e-apenas-uma-
palavra-bourdieu.pdf Acesso em: 23 jun. 2018.
BOURDIEU. P. Coisas ditas. Tradução Cássia Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo:
Brasiliense, 2004 [1987].
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União:
seção 1, Brasília, DF, p. 1, 30 ago. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm Acesso em: 16 out. 2015.
BRASIL. Lei 13.409, de 28 de dezembro de 2016. Altera a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, para
dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e
superior das instituições federais de ensino. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 3, 29 dez.
2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13409.htm. Acesso
em: 3 mar. 2017.
CAMERON, D. et al. Researching Language Issues of Power and Method. London: Routledge, 1992.
CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity. Rethinking critical discourse
analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.
COSTA, A. F. da. Desigualdades Sociais Contemporâneas. Lisboa: Mundos Sociais, 2012.
DENZIN, N; LINCOLN, Y. O planejamento da pesquisa qualitativa. Tradução Sandra Regina Netz.
Porto Alegre: Artmed, 2006.
DIAS. J..F. Analistas de discurso e sua prática teórico e metodológica. Cadernos de Linguagem e
Sociedade, v. 12, p. 213-246, 2011.
DIAS, J. F. A linguagem do Parto: discurso, corpo, identidade. Campinas: Pontes, 2015.
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517
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INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Sinopse
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518
NARRAR O CONHECIMENTO PARA TOCAR A VIDA: A NARRATIVA NA ESCRITA ACADÊMICA

Sostenes Lima
Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Docente do curso de Letras e do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias (PPG-IELT), da Universidade Estadual de Goiás
(UEG). sostenes.lima@ueg.br

A palavra é fundamentalmente um ato; é um ato de ser, de fazer e de relacionar. É um ato que


fundamenta a existência; é um ato que fundamenta a coexistência e sociabilidade. Enfim, é um ato que
fundamenta a vida. Penso não ser exagero dizer que a palavra é primeiro ato do ser, o ato fundante, ou
seja, aquele que dá origem todos os outros, aquele que funda a nossa existência como ser, como
pessoa, como cidadão.
Nesse Simpósio, vamos propor uma reflexão, um diálogo, sobre a palavra como um ato de
criação e transformação do mundo. Vamos refletir sobre quatro eixos básicos da palavra:
a) a potência da palavra
b) a política da palavra
c) a vida da palavra
d) a educação palavra
Esses quatro eixos podem desdobrados em quatro questionamentos:
a) Que tipo de coisas podemos fazer no mundo com as palavras?
b) Que tipo de sociabilidade e relações podemos construir com as palavras?
c) Que tipo de vida podemos promover com as palavras?
d) Que tipo de formação podemos realizar com as palavras?
Comecemos com o primeiro questionamento. O podemos fazer no mundo com as palavras? Qual
é a potência da palavra? A resposta mais imediata para esse questionamento poderia ser simplesmente
“tudo”. Pode-se fazer tudo com a palavra. Embora seja simples dizer que se pode fazer tudo com a
palavra, essa premissa comporta alguma complexidade e contradições.
No contexto que estamos vivendo hoje no Brasil, não podemos simplesmente dizer que se pode
fazer comida com as palavras. Vivemos uma situação grave e inaceitável de fome no Brasil. Em torno de
30 milhões de pessoas estão passando fome. E não podemos simplesmente dizer que essas pessoas
podem comer palavras. É certo que, com a palavra, podemos resolver crises complexas, mas não de
forma direta e imediata.
Portanto, quando propomos uma reflexão sobre a potência da palavra, precisamos ter a
sensibilidade de partir de um contexto material, levando em conta a corporeidade de cada pessoa,
considerando de forma sensível suas condições de existência física.
Com a palavra se pode fazer tudo, mas não sem os instrumentos de mediação social e política.
Com palavra se faz alimento, mas não sem a política, mas não sem a ética, mas não sem a vida, mas
não sem a educação. Por isso, uma discussão sobre a potência da palavra requer uma discussão sobre
a política da palavra. Isto é, para compreendermos bem o que se faz com as palavras, é necessário
compreendermos o tipo de sociedade e de relações que construímos com as palavras. É por meio da

519
política da palavra que podemos fazer alimento com as palavras. É por meio da política da palavra que
podemos construir equidade e justiça social com as palavras.
A potência da palavra não se encerra na ação política. A palavra não cria apenas o ser político.
Nem tudo que fazemos com as palavras pertence ao domínio da política. Há muitas coisas que fazemos
com as palavras que escapam ao domínio da política. Por isso, propomos também uma discussão sobre
a potência da palavra no campo da vida, do afeto, da estética. Segundo Rubem Alves, “podemos fazer
amor com as palavras”. Mas também podemos fazer ódio. Podemos fazer paz com a palavra, mas
também podemos fazer violência. Podemos fazer a vida com a palavra, mas também podemos fazer a
morte.
Atualmente, estamos vendo o quanto a vida pode ser ameaçada pela palavra. Como dito, o ódio,
a violência e a morte podem se transformar na primeira potência da palavra. Não podemos permitir que a
palavra seja sequestrada pela morte. Fazendo um paralelo com o conceito de necropolítica de Achille
Mbembe, não podemos permitir a manutenção desse estado de necrodiscurso ou necropalavra que se
abateu sobre nós. Em última instância, a morte é a interrupção plena da palavra.
Invocando o pensamento revolucionário do nosso Paulo Freire, eu diria que a primeira função da
palavra é a de promover a vida, promover o amor. A professora Juliana Dias abordará essa questão com
profundidade daqui a pouco.
É difícil dizer em qual dimensão a potência da palavra é mais efetiva, se na dimensão política ou
se na dimensão da vida. O fato é que não existe política fora da palavra e não existe vida fora da palavra.
Como a potência da palavra está associada às várias dimensões da nossa existência, tanto como
seres humanos como seres da natureza, precisamos também pensar sobre a relação da palavra com a
formação, com a educação. Por que precisamos pensar sobre educação quando falamos sobre potência
da palavra? Ora, porque só podemos promover justiça e equidade com as palavras quando tomamos
consciência de toda a potência da palavra.

PALAVRAS-CHAVE: narrativa; escrita acadêmica; análise da narrativa.

REFERÊNCIAS
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2021.

520
MATER-NAR A NOSSA ESCRITA?90

Elzahrã Mohamed Radwan Omar Osman


Doutoranda em Filosofia pela Universidade de Brasília e Pesquisadora-Tecnologista do INEP/MEC.
assaddaka@gmail.com.

Tampouco se trata de se apropriar dos instrumentos deles, dos


seus conceitos, dos seus lugares, nem de querer ocupar sua
posição de domínio. Saber que há um risco de identificação não
implica sucumbirmos a ele. Deixemos aos inquietos, à angústia
masculina e à sua relação obsessiva com o domínio do
funcionamento das coisas, o saber “como funciona” a fim de que
“funcione”. Não se apoderar para interiorizar, ou para manipular,
mas para atravessar de um salto, e “voar”. Cixous (2022, p. 67)

Sempre que leio esse excerto de Cixous, escolhido para abrir o presente tópico, rio de suas
palavras. Rio do riso da medusa, da ironia com que a autora alinha a episteme moderna a uma
necessidade própria do corpo masculino. Rio e me pergunto porque isso nunca deixa de ter graça – deve
ser porque o riso deflagra outro modo de compreender a realidade. Não sei se foi isso que sobrou às
tramas da escrita feminina, rir com o corpo, rir sendo irônica e, por vezes, mobilizando também o cinismo
como um modo de não ser capturada pela seriedade das “ciências”. É necessário então rirmos da
ontoepisteme moderna, não apenas imaginar outros modos de existência no mundo, mas, sabendo do
ridículo das teses da razão colonial, despachar o que já vai tarde.
E, no entanto, nem tudo tem graça. Ocorreu-me que, quando ainda existiam livrarias 91 em
Brasília, por entre as prateleiras de filosofia, encontrei o livro de Carla Rodrigues (2013) sobre o feminino
em Jacques Derrida. Impressiona-me uma mulher filósofa às voltas com o feminino na obra do filósofo
francês. Disse-lhe em pensamento que não deveria ter se dado ao trabalho – o que Derrida teria
aportado que outras feministas não poderiam tê-lo feito? Ainda mais me impressiona uma mulher filósofa
com um livro publicado. Isso foi em 2018 e ainda me assombravam mulheres filósofas pensando e
publicando.
Sim, o cenário da filosofia feminista e produzida pelo gênero feminino no Brasil tem se alterado
rapidamente; colóquios, seminários, concursos, uma profusão de eventos e publicações – estamos todas
às voltas com o tempo perdido. Por que não fizemos nada em nossas outras tantas primaveras, ou será
tão somente que eu cheguei tarde a essa primavera, e a primavera feminista na filosofia brasileira tardou
junto comigo?
Na contracapa do livro de Rodrigues (2013), encontro a seguinte citação de Jacques Derrida:
É impossível para mim ter um filósofo como mãe. Minha mãe não poderia ser uma filósofa.
Um filósofo não poderia ser minha mãe, e isso é muito importante e quer dizer muitas
coisas. Quer dizer que a figura de um filósofo, para mim, e foi por isso que desconstruí a
filosofia, é sempre uma figura masculina. Toda a desconstrução do falogocentrismo é a
desconstrução de toda a ligação da filosofia, desde sempre, a uma figura masculina e
paternal. O filósofo é um pai, não uma mãe. Um filósofo que fosse minha mãe seria um

90 O presente resumo faz parte da pesquisa de doutoramento.


91 Quando comecei a escrever intuitivamente o que seria este capítulo, ainda em 2021, não havia mais livrarias em Brasília,
mesmo antes da pandemia de Covid-19. Hoje, no ano de 2022, novas livrarias foram abertas: a Livraria da Travessa acaba
de ser inaugurada onde era a Livraria Cultura, e na Asa Norte temos hoje a Livraria Circulares.

521
filósofo pós-desconstrutivo. Minha mãe, como filósofa, deveria ser minha neta, por
exemplo. Uma mulher filósofa que reafirmaria a desconstrução, uma mulher que pense.
Uma mãe pensante92 (grifo meu).

Na impossibilidade de maior assombro, estatelo-me frente a essa citação. Imagino minha


ascendência – eu não imaginaria minha mãe uma filósofa? Penso no meu filho e sei exatamente o que
seria não imaginar ter uma mãe filósofa. Imagino-me como uma autoridade falha, tenho precedência,
estou há mais tempo no mundo, sei que tenho algo a dizer à minha descendência, mas talvez isso não
venha a ter relevância alguma. Não estou imbuída do nome do pai, nem da força de lei de que fala
Derrida.
Lembro-me que é disso que se trata pensar-com – o dar com glissantiano – mulheres filósofas, as
medievais e as contemporâneas: estamos em busca de uma ascendência que não dependa apenas da
desconstrução, que – dito de outro modo – não dependa de que a metafísica seja quebrada a partir de
dentro, e que uma teoria da representação dê conta da voz da subalterna e de seu direito à opacidade:
que não dependa da legitimidade de um filósofo pós-desconstrutivo à espera de que sua neta possa ser
filósofa e, quiçá, também mãe.
“É impossível para mim ter um filósofo como mãe”. Eu não precisaria ter lido o resto do excerto.
Eu já o adivinho todo. Um texto filosófico que deveria me apresentar algo racional e imparcial sobre
alguma realidade do mundo, no entanto, me conduz àquela sensação de dissociação cognitiva que vez
ou outra experimentamos. Sensorialmente, cosmopercebo o que Derrida está me dizendo, mas a mente
teima em tentar fechar a Gestalt de forma lógica. Um filósofo-mãe é impossível; Ótimo! É aí que
inscreveremos a palavra “fim” (Cixous, 2022).
Será que Sarah Ahmed (2015), quando discorre sobre os afetos, tem algo a dizer sobre a dor?
“Dororidade”, como dirá Vilma Piedade (2017) – estamos irmanadas pela dor. Isso me causa dor. Tento
compreendê-la e sei que se trata menos de um orgulho por ser entre tão poucas filósofas, e mais por ter,
de repente, desaparecido. De novo e diferentemente. Eu já me sabia ausente para o mundo, mas agora
também o sei para meu filho – enquanto reconheço a minha ausência para minha mãe e a dela para
comigo. Pois uma mãe que pensa, uma filha que pensa, uma neta que pensa não seriam a inscrição na
categoria maior do humanismo? Não é a partir de onde a existência possui um fundamento?
Em uma nova oficina, outra ainda sobre “mulheres que escrevem”, chega-me uma pequena joia.
Raros textos te olham reluzindo o grande segredo ao cindirem qualquer coisa de egoico, ricocheteando-o
de volta para o universo. Chama-se “Bordado e costura do texto”, de Tamara Kamenszain (2000). Nesse
texto, a autora apresenta a escritura das mulheres no corpo de seus filhos por meio da tradição oral –
seja por meio das conversas ao pé do fogão, seja por toda ordem de conhecimento denegado (a prática
não discursiva, a experimentação, o artesanato), e ainda assim herdado, pelas vias que não a do texto
escrito.
Ela começa seu curto texto com o seguinte parágrafo:
Se a escrita e o silêncio reconhecem um ao outro nesse caminho que os separa da fala, a
mulher, silenciosa por tradição, está próxima da escrita. Silenciosa porque seu acesso à
fala nasceu no cochicho e no sussurro, para desandar o microfônico mundo das verdades

92 Uma vez, uma amiga do mestrado me contou o que um querido professor nosso lhe disse sobre sua maternidade: que agora,
ao invés de trocar ideias, ela trocaria fraldas.

522
altissonantes. Tão calada e lateral foi sempre sua relação com a marcialidade dos
discursos estabelecidos, que os homens, paradoxalmente, qualificaram a mulher como
“muito conversadeira”. E conversa não seria outra coisa que essa emaranhada mescla de
níveis discursivos cujo dizer, como objeto, é o nada. Sussurrante conversa de mulheres foi
criando uma cadeia inquebrantável de sabedoria por transmissão oral que nunca foi
reunida em livros (Kamenszain, 2000, p.2).

Reabilitar a importância das mães na vida dos grandes escritores é menos o intento do texto do
que bordar o tecido da escritura falogocêntrica, sabê-lo pelo avesso, por meio dos “discursos menores”,
cotidianos e plasmadores. O sintoma, diz a autora, foi “habitar seus filhos” (Kamenszain, 2000, p. 3).
Habitamo-los, pois, existindo de diversas outras formas: pensando, contando, confabulando,
maquinando, experimentando, tecendo e “desandando o microfônico mundo das verdades altissonantes”
(Kamenszain, 2000, p.1).
“Sinto, logo posso ser livre”, dirá Audre Lorde (2019). E, com isso, a poetisa pensa a destilação da
experiência: “nomeamos o que não temos, para sermos capazes de pensar”. E seguiremos nomeando e
renomeando, como dirá Carla Rodrigues (2013), uma vez que a busca de sentido não finda e pode ser
cada vez mais alargada. Pode inclusive ser substituída pelo irrompimento do real. Portadoras de uma
“dupla consciência”, na acepção de W.E.Dubois, sabendo-nos outrificadas, ou ainda a partir de um
“privilégio subalterno”, como dirá Patricia Hill Collins – é disso que se trata, neste texto, um fazer
filosófico feminista.
Esse foi um breve resumo sobre uma discussão mais ampla sobre saberes des-colonizados,
memória e a produção de textos narrativos e acadêmicos a partir da autoescrita, e que, bem, vem
informando a escrita da tese de doutoramento em filosofia.

PALAVRAS-CHAVE: autoescrita; memória; narrativa espectral; escrita feminista.

REFERÊNCIAS
AHMED, Sara. La política cultural de las emociones. México: Universidad Nacional Autónoma de México,
2015.
CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
KAMENSZAIN, Tamara. Bordado e costura do texto: Historias de amor (y otros ensayos sobre poesía).
Buenos Aires: Paidós, 2000.
LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. Rio de Janeiro: Nós Editora, 2017.
RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade (sobre ética e
política em Jacques Derrida). Rio de Janeiro: Nau, 2013.

523
MEU MUNDO AL REVÉS: REFLEXÕES A PARTIR DA SOCIOLOGIA DA IMAGEM DE SILVIA
CUSICANQUI

Inah Miranda Rios Serra


Aluna de graduação do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
membra do GEPAC (Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação) e aluna de iniciação científica
pelo programa UNESP Presente em Educação Escolar Indígena e Interculturalidade. inah.rios@unesp.br

Das desrepensações, das imagens, dos anseios e da teia intercultural

Ao ingressar no curso de Ciências Biológicas, na UNESP de Ilha Solteira, jamais imaginei os


caminhos e reflexões que vivenciaria dentro das vastas formas de se conceber, conhecer e analisar o
mundo. A licenciatura me permitiu abranger a mirada para além de um anseio individual. Em março deste
ano tive a oportunidade de cursar, como aluna especial da graduação, uma disciplina do Programa de
Pós-Graduação em Educação Para a Ciência (PPGEdC) de Bauru - SP, chamada Educação Intercultural
e Estudos Decoloniais/Pós-coloniais e ministrada pelos Prof. Dr. Harryson Junio Lessa Gonçalves e Prof.
Dr. Antônio Hilário Aguilera Urquiza. Uma das avaliações da disciplina consistia em escrever, em grupo,
um artigo sobre algum/a autor/a pós-colonial, meu grupo escolheu a socióloga Silvia Rivera Cusicanqui.
Com isso, trago aqui o relato de algumas reflexões que pude tecer a partir da experiência deste trabalho,
dessa disciplina e dos escritos de Cusicanqui.
Silvia é uma mulher boliviana de ascendência aymara e européia, socióloga e militante. Através
da sociologia da imagem, traz uma metodologia interessante para análise da historicidade. Nesse
processo de problematização visual e sua relação com a palavra e com a oralidade, ela resgata
características implícitas dos processos de colonização. “É evidente que, em uma situação colonial, o
‘não dito’ é o que mais significa; as palavras encobrem mais do que revelam, e a linguagem simbólica
toma cena” (CUSICANQUI, 2021, p. 19).
Silvia tece sua teoria, principalmente, a partir da obra de Waman Poma de Ayala, que entre 1612
e 1615 elaborou uma carta destinada à coroa espanhola com mais de mil páginas e cerca de trezentas
imagens, intitulada “Nueva Coronica y Buen Gobierno”, denunciando as mazelas da colonização dos
povos andinos. Nesta carta, repleta de simbologias, descrições e análises, Waman fala sobre o conceito
de ordem e desordem a partir da defesa da ordem cosmológica dos povos indígenas. Ele descreve a
ordem do tempo, das ruas, do espaço, da relação do homem com o trabalho e com a natureza e as
relações ritualísticas desses povos. E como que se instaura a desordem na terra e no povo usurpado
pela colonização.
Para mim, que sempre tive um apelo estético a cores, formas e composições, ter contato com a
sociologia da imagem me aguçou a percepção de como a comunicação extrapola os sentidos e constrói,
de diferentes formas, nosso subjetivo. Ao me perceber como um ser colonizado, começo o processo de
de(s)colonização. Pensando e desrepensando meu ser e estar no mundo, me vejo como sujeita ativa no
processo de construção da minha realidade. Ao me perceber como um ser colonizado, me revolto, me

524
entristeço, me questiono. Minha revolta é então minha energia de nadar contra a maré. Nesse sentido,
refletir sobre de que formas meu subjetivo colonizado e minha realidade histórica e material colonizada
são construídos, é também refletir de que formas saímos, individual, mas principalmente coletivamente,
dessa condição. Para além dos muros da academia, a de(s)colonização deve ser um prática
revolucionária. Com Paulo Freire (1987) tive contato com o conceito de práxis, e com Silvia, o de práxis
de(s)colonizadora, a teoria enraizada, como ela mesma propõe. Com isso, me pergunto como eu, uma
jovem latina de 24 anos, vivenciando o sucateamento das universidades, a disseminação de fake news,
o genocídio indígena, crises climáticas e o ataque contra a ciência, a educação e as diversidades,
bombardeada pelos efeitos da modernidade e muitos anseios de um futuro melhor, posso me
de(s)colonizar? Para além de uma resposta superficial que eu possa dar nessas linhas, acredito que me
farei essa pergunta o resto da vida.
Na tentativa de materializar minha revolta em forma de imagem, trago aqui uma colagem
analógica que fiz, junto com dois amigos arteiros (como eles mesmo se denominam), para o trabalho da
disciplina e a partir da reflexões que eu e meu querido amigo e companheiro da disciplina, pedagogo e
mestre em educação Jhemerson Silva, tivemos sobre os escritos de Cusicanqui.

Imagem 1 – Trabalho visual intitulado “Desrepensando imaginários”. Fonte: Inah Miranda Rios Serra, Arthur
Barbieri e Otávio Uzumaki, 2022.

Mirar el mundo al revés. Questionar tudo que vejo. A imagem é um trabalho visual que reflete e
propõe desrepensar o mundo. A imagem de um homem negro com as mãos atadas simboliza a violência

525
que esses corpos sofrem dentro dos sistemas coloniais. De sua cabeça emerge uma figura triangular
composta de imagens de estátuas pré-colombianas, simbolizando a cosmovisão desses povos. A
montanha vermelha é o sangue derramado justificado por um ideal de desenvolvimento hegemônico. As
linhas são o tempo, a historicidade. O fundo quadriculado, o método cartesiano, a visão “neutra” da
ciência. As letras embaralhadas são, na verdade, três palavras: colonialidade, capitalismo e patriarcado.
Mas também podem representar o epistemicídio, a negação da história, e o que é dito entre linhas. O
excesso da cor branca e preta é a visão binária e dicotômica das sociedades ocidentais. Podemos
conceber a colagem analógica como uma arte antropofágica, que literalmente deglute de diversas outras
imagens para construir uma própria, acho que isso é o que mais me fascina nesse tipo de arte.
Em linhas gerais, Silvia me convida a tecer um fio em uma teia intercultural, mudando minha
perspectiva para coisas que, num primeiro momento, podem parecer supérfluas ou “naturais”. Ao refletir
sobre as diferentes formas de interpretar o mundo, o percebo como uma teia. Uma teia complexa, rica e
pulsante. Tecer um fio nessa teia é tecer práticas interculturais, ser sujeito histórico sentipensante que,
coletivamente, tece nossa utopia concreta de um mundo onde as alteridades não são usurpadas.

PALAVRAS-CHAVE: sociologia da imagem; Silvia Rivera Cusicanqui; Mundo al Revés.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, OU OS FIOS AQUI MENCIONADOS


CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch'ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos
descolonizadores. São Paulo: N-1 Edições, 2021.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

526
LETRAS LIVRES NA CENA SOCIOEDUCATIVA: SENTIDOS ATRIBUÍDOS ÀS AUTORIAS CRIATIVAS
NAS PRÁTICAS E SABERES DE JOVENS EM CONFLITO COM A LEI

José Nildo de Souza


Professor da socioeducação, mestre em Artes, ProfArtes - UnB

Paulo Sérgio de Andrade Bareicha


Professor do Mestrado Profissional em Artes, ProfArtes - UnB

Projeto e prática socioeducativa docente. Tese de mestrado em artes cênicas/Profartes (UnB) –


2020. Inicia-se na Unidade de Internação Socioeducativa de Santa Maria/DF (UISM) como “narrativas
teatralizadas de jovens em conflito com a lei”. Hoje, no formato de uma campanha de fomento à leitura,
como letras livres na socioeducação, desenvolve-se na Unidade de Internação Socioeducativa de
Brazlândia (UIBRA). A atividade introdutória do projeto “letras livres na socioeducação”, mala da leitura,
foi sugerida pelo Supervisor do NUEN (Núcleo de Ensino/UIBRA), professor de português, Fábio
Damasceno, visando o empréstimo de livros, pois não existia biblioteca nas dependências da UIBRA.

Figura 1 – Letras livres na socioeducação. Mala da leitura com carrinho literário e tapete de histórias voadoras.
Momento das autorias criativas com os socioeducandos. Fonte: o autor, 2022.

Desde o inicio do ano letivo de 2022, o professor José Nildo de Souza, atuando na biblioteca, leva
a mala de leitura, diariamente, aos socioeducandos em sala de aula. Com a aquisição do carrinho
literário junto à escola vinculante (Centro Educacional Vendinha/CED - Gestão do Diretor Edmundo), o
professor pôde disponibilizar outros recursos para a referida atividade: um tapete é estendido no chão da
sala de aula com instrumentos musicais, oportunizando assim acolhimento para o momento da leitura.
Os socioeducandos chamam esse momento de “tapete de histórias voadoras”, pois elas vão e voltam.
Os livros são dispostos neste tapete e o professor oferece os livros aos socioeducandos.
Concede empréstimo por meio de uma ficha literária, com título da obra, autor e dia de devolução onde
cada socioeducando assina. Desta forma, levam os livros para os módulos onde cumprem a medida de
internação socioeducativa. Como estímulo à leitura, o professor ainda lê poesias, canta, compõe músicas
e propõe montagens cênicas a partir de autorias criativas dos socioeducandos. Na inauguração da
biblioteca da UIBRA, o servidor Washington Freitas do CED Vendinha foi homenageado. Assim, a

527
Biblioteca passou a chamar-se “Biblioteca Washington Freitas/Espaço Cultural UIBRA”. Trata-se de uma
deferência em função da relevante contribuição do servidor à comunidade escolar. Seu sonho era
construir uma biblioteca para os jovens da cidade. Porém, Washington Freitas veio a óbito vitimado pela
Covid. Neste local, o professor dinamiza as atividades de leitura, tornando a biblioteca um espaço
cultural com ações pedagógicas para o fomento da leitura, tais como: encontros das autorias criativas
dos socioeducandos; exposições do acervo literário e artístico; encenações coreografadas de músicas e
canções; estudos de discursos temáticos; diálogos poéticos; produção de cartazes; aulas didáticas e
pesquisa dos demais professores do NUEN.

Figura 2 – Cena de superação. Direção: Julia Fagundes. Criação e Concepção: José Nildo de Souza. Fonte: o
autor, 2022.

Durante as atividades teatrais, o professor atuante na biblioteca é acompanhado pela especialista


socioeducativa em artes cênicas Julia Fagundes, que desenvolve a oficina de consciência corporal na
biblioteca com os socioeducandos. Nas montagens cênicas o professor integra-se ao elenco dos
socioeducandos como ator, e a especialista Julia Fagundes dirige o espetáculo cênico-coreográfico. Todo
o conjunto da obra cênico-narrativa é criação coletiva. Neste processo atores são narradores e, em outro
momento, narradores são atores. Compõem-se, portanto, quadros cenográficos a partir de canções e de
textos poéticos. Acrescenta-se às encenações teatrais da biblioteca uma metodologia multilinguística
com elementos das artes cênicas, da literatura, da dança e da música. É a partir desses elementos
linguísticos que se constroem os enredos dramáticos ou os discursos cênicos dos socioeducandos.

528
Figura 3 – Cena de enfrentamento. Direção: Julia Fagundes. Criação e Concepção: José Nildo de Souza. Fonte: o
autor, 2022.

A cena é coreográfica porque sublinha a musicalidade que acompanha a encenação. A


corporeidade da musica é teatralizada pelos socioeducandos potencializando sentidos em sua
mensagem e atribuindo significados à dramaticidade, pois não se tem uma sublimação do movimento,
mas um vigor físico à sua expressividade. O movimento cênico aliado à coreografia e ao ritmo musical
adquire assim potencialidade dramática.

Figura 4 – Narrativas cênicas na socioeducação. Autorias criativas. Oficina de teatro. Direção: Julia Fagundes.
Criação e Concepção: José Nildo de Souza. Fonte: o autor, 2022.

A vigilância e a segurança dos socioeducandos conta com o Agente Socioeducativo André


(responsável pelo NUEN). A organização da Biblioteca iniciou-se na Gestão da Agente-Socioeducativa
Claudia, que disponibilizou a sala que, antes, era reservada aos agentes-voluntários, servidores da
SEJUS que exerciam atividades de segurança e plantão na UIBRA. Com a chegada do professor José
Nildo de Souza, atuante na biblioteca e autor desse projeto, o mesmo iniciou a montagem das estantes e
a organização dos livros que eram doados com a participação da supervisão do NUEN (Profº Fábio
Damasceno, Profº Wesley, Profº Leonardo e a equipe docente da UIBRA). Neste período, o professor

529
concebeu a primeira atividade da biblioteca chamada “monitoria literária”, na qual, semanalmente, de
dois a três socioeducandos auxiliavam na organização das estantes e classificação dos títulos literários.
Esta atividade contribuiu significativamente para a construção de um sentido de pertencimento entre os
socioeducandos e os livros, refletindo, assim, em suas autorias criativas poéticas, bem como nos estudos
discursivos temáticos que produziam nas encenações.

Figura 5 – Letras livres na socioeducação. Atividades: mala da leitura, carrinho literário, tapete de histórias, leitura
na rede e café com leitura. Criação e concepção: José Nildo de Souza. Fonte: o autor, 2022.

Recentemente, o professor atuante na biblioteca concebeu mais duas atividades: o “café com
leitura”, momento em que serve café aos socioeducandos e, entre eles, são compartilhados trechos
temáticos narrativos que foram lidos e, desta partilha, surgem discursos poetizados ou declamados; a
atividade “leitura na rede” veio de uma ideia que o professor teve de oportunizar a fruição e o
acolhimento dos socioeducandos para a leitura. Instalou, com outro socioeducando, uma rede na sala de
leitura.

Figura 6 – Letras livres na socioeducação. Autorias criativas: café com leitura e leitura na rede. Criação e
concepção: José Nildo de Souza. Fonte: o autor, 2022.

Combinou junto à turma que um de cada vez, com os outros ao redor, deitaria na rede e iria ler
um livro de seu interesse. Os demais escutavam e depois opinavam sobre a narrativa lida. Depois de se
revezarem na rede, passaram a se motivar pela leitura de novos livros. Esta atividade possibilita
momentos de descontração e interação entre os socioeducandos, quando fluíam autorias criativas no

530
formato de narrativas cênicas, frases-palavras potentes para construção de discursos poéticos e
musicalidades rimadas – momento de reflexão e audição de músicas –, tornando a biblioteca um
ambiente de escuta e de sensibilização, humanizando-se, assim, na socioeducação.

531
OS ECOS DE NOSSAS VOZES: LETRAMENTOS CRÍTICOS REFLEXIVOS COMO PRÁTICA
DISCURSIVO-IDENTITÁRIA DE (RE)EXISTÊNCIA

Camila Moreira Ramos


Revisora de textos e servidora no Superior Tribunal de Justiça. Doutoranda e Mestra em Linguística na
Unviersidade de Brasília. Pós-graduada em Revisão de textos e graduada em Letras – Português. Integrante do
GECRIA – Grupo de Estudos em Autoria Criativa. camillaramos@yahoo.com.br

A educação é um dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal do Brasil


(BRASIL, 1988). Segundo esses documentos oficiais e norteadores das políticas públicas do país, todas
as pessoas são detentoras de uma educação digna e igualitária. No entanto, a realidade ainda evidencia
um ensino baseado em um modelo colonial e excludente enraizado na educação básica e no ensino
superior.
Em relação ao ensino superior, muito já se avançou de modo a disponibilizá-lo a comunidades
distantes das grandes metrópoles, as quais possuem uma menor oferta de instituições de ensino e
diversas outras dificuldades que incluem gastos e percalços para frequentar faculdade nos grandes
centros. Uma dessas conquistas é a Universidade Aberta do Brasil - UAB (BRASIL, 2006), programa
nacional que busca “expandir e interiorizar” o ensino superior, na modalidade de educação a distância, e
que tem como um de seus objetivos “reduzir as desigualdades de oferta de ensino superior entre as
diferentes regiões do país”.
Todavia, a formação superior ainda é pautada no ensino tradicional colonial, o qual se baseia na
repetição de metodologias acríticas que não incluem o aluno nesse processo de formação, perpetuando
o modelo bancário já denunciado por Paulo Freire há décadas. Como sabemos, um dos pressupostos do
sistema colonial é a manutenção da opressão e da sua estrutura, suprimindo todos os demais, visto que
o objetivo dos opressores é “preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a
manutenção de sua falsa generosidade” (FREIRE, 2013, p. 83). No entanto, considerando os estudos
decoloniais e críticos, a educação pode ser essencial para a libertação dessas amarras, caso estimule
nas/os alunas/os o desenvolvimento de uma consciência genuína sobre o funcionamento da sociedade e
de seus mecanismos ideológicos.
Nesse sentido, diversos profissionais e estudiosos da área da educação, e de outras áreas em
conjunto, já ressaltam a importância da educação como forma de libertação. Entre eles, e de forma
reconhecidamente relevante, está Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, o qual considera que
uma ação libertadora possibilita e estimula o oprimido à consciência crítica sobre a sua real situação de
oprimido. Freire (2013, p. 81) completa: “Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais
ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos
depósitos recebidos”.
Nessa mesma perspectiva, bell hooks enfatiza a importância de uma pedagogia engajada, a qual
“necessariamente valoriza a expressão do aluno”. Para a autora, não há como separar o aluno de seu
contexto social e cultural e o resultado será mais efetivo “[…] quando os alunos e professores encaram

532
uns aos outros como seres humanos ‘integrais’, buscando não somente o conhecimento que está nos
livros, mas também o conhecimento acerca de como viver no mundo” (hooks, 2017, p. 27).
Assim, partindo do meu lugar de fala – licenciada em Letras Português pela UAB/UnB e, hoje,
doutoranda em linguística na Universidade de Brasília –, busco, por meio desta tese, investigar como
práticas de letramentos críticos reflexivos podem contribuir para “o amadurecimento do sentir crítico”
discursivo (BORGES, 2017, p. 9), “no qual desenvolvemos a criticidade postulada e provida pelo
letramento crítico não somente pelo pensar racionalmente sobre as questões que envolvem as relações
humanas, mas principalmente por nos colocarmos disponíveis emocionalmente para sentir as angústias
do outro”.
Para a autora (2017, p. 9), o trabalho com letramentos críticos sobre questões interseccionais é o
“desenvolvimento deste sentir, moldado pela criticidade e reflexividade, o que irá nos permitir a lidar com
as diferenças com apreço e respeito”, de modo a alcançar, de fato, um potencial transformado no mundo
“rumo a uma sociedade mais justa e, portanto, livre”.
Para isso, me engajo em uma pesquisa qualitativa de cunho (auto)etnográfico crítico a fim de
investigar como práticas de letramentos críticos reflexivos situados no contexto da UAB
reverberaram na transformação identitária das participantes do ponto de vista pessoal, social
(estudantes acadêmicas e futuras professoras) e de agente de mudança.
Com foco discursivo, utilizarei como referenciais teórico-metodológicos os Estudos Críticos do
Discurso, sobretudo a Análise de Discurso Crítica (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999;
FAIRCLOUGH, 2001, 2003), em diálogo com a Teoria Social do Letramento, com as perspectivas
decoloniais e com as pesquisas de escrita autoral e criativa realizadas no âmbito do Grupo de
Estudos Autoria Criativa (GECRIA-UnB/CNPq).
Para isso, dividirei a pesquisa em duas etapas: na primeira, farei uma pesquisa bibliográfica
acerca do referido repertório teórico, conjuntural e metodológico; na segunda gerarei os dados, por meio
de textos autorais escritos pelas participantes em uma comunidade de aprendizagem do GECRIA nos
anos de 2020 e 2021 e de entrevistas com essas estudantes no ano de 2022. Os dados gerados serão
analisados com base no repertório teórico da ADC e nos diálogos transdisciplinares com os estudos do
Letramento, das perspectivas decoloniais e das pesquisas sobre autoria criativa, realizadas no Grupo de
Estudos Autoria Criativa.
Portanto, com esse arcabouço teórico-metodológico e partindo de uma perspectiva discursivo-
crítica, compreendo que o discurso constrói o social (FAIRCLOUGH, 2001), visto que não só reflete e
representa a sociedade, mas também a significa, a constrói e a modifica. Assim, um dos efeitos
constitutivos do discurso pode ser visto na criação e na manutenção de identidades pessoais, sociais e
de agente de mudança a partir do trabalho com letramentos críticos reflexivos como prática discursiva e
identitária de (re)existência.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso Crítica; prática discursiva; identidades; letramentos críticos


reflexivos.

533
REFERÊNCIAS
BORGES, Thais Regina Santos. Pelo amadurecimento de um “sentir crítico”: entendendo a
socioconstrução de identidade de uma professora negra e seus atravessamentos interseccionais.
VEREDAS ONLINE – ATEMÁTICA – 2/2017 – PPG LINGUÍSTICA/UFJF – JUIZ DE FORA, 2017.
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 31 ago. 2022.
______. Congresso Nacional. Decreto n. 5.800, de 8 de junho de 2006. Dispõe sobre o Sistema
Universidade Aberta do Brasil – UAB. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/decreto/d5800.htm. Acesso em: 31 ago. 2022.
CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking Critical Discourse Analisys.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Trad. Izabel Magalhães. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.
______. Analysing discourse. Textual analysis for social research. London and New York: Longman,
2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 54. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2017.

534
A CONSTRUÇÃO DA AUTORIA EM CONTEXTOS DE INCLUSÃO DE ALUNAS SURDAS NA
UNIVERSIDADE

Kaio de Sousa Ribeiro


Graduando de Letras Inglês (Licenciatura) na Universidade de Brasília (UnB); Pesquisador do grupo de pesquisa
GECRIA — Educação Crítica e Autoria Criativa. kaiodsribeiro@icloud.com / k4iodsribeiro@gmail.com

Introdução

É fatídico que pessoas surdas enfrentam diversos desafios no seu dia a dia. No ambiente escolar,
os estudantes portadores da surdez lidam não apenas com o silenciamento em massa — em diferentes
contextos e sentidos —, mas também com vários obstáculos que os traumatizam e, consequentemente,
os limitam. A partir disso, este estudo busca utilizar técnicas de escrita criativa para desbloquear essas
identidades reprimidas e verificar se essa prática pode auxiliar na escrita do português perante a norma
culta, afinal muitos surdos aprenderam o português escrito como segunda língua (L2) e esse fator
influencia diretamente na produção texto-gramatical dos membros da comunidade surda.

Metodologia

Fundamentado em pressupostos teóricos da escrita criativa e do ensino de português escrito


como L2 para surdos, este trabalho se constituiu a partir de oficinas/encontros online de cunho criativo-
textual para duas alunas surdas da Universidade de Brasília. Nesses encontros semanais, as alunas
foram apresentadas a técnicas de desbloqueio e reescrita textual, assim como também receberam apoio
na realização de tarefas acadêmicas. Dito isso, ao todo houve cinco encontros com as discentes e,
partindo deles, alguns fatores foram analisados para a realização desta pesquisa, sendo eles: (i) o
processo de criação da autoria em contextos de inclusão de alunos surdos; (ii) o impacto e os efeitos
discursivos das oficinas de escrita criativa na vida acadêmica das participantes do projeto; (iii) a
percepção de melhora ou piora na produção escrita das graduandas; e (iv) a necessidade do incentivo à
produção textual crítico-criativa de alunos surdos da Universidade de Brasília.
Faz-se necessário ressaltar que as metodologias utilizadas partem do trabalho com a produção
escrita de textos por meio de três passos que sustentam o desenvolvimento da autoria, sendo eles: (i)
desbloqueio/impulso, que foca em escritas espontâneas (escrever sem parar) e em exercícios de
restrição — por exemplo, a obrigatoriedade de inserir palavras ditadas pelo/a professor/a, ou exercícios
de exclusão como escrever sem pronomes ou conjunções (DIAS, 2021, p. 30-31) —, que permitem a
fluidez e a libertação da voz autoral; (ii) intuição, que explora a reescrita estilística; a consciência autoral
a partir de cortes e leitura atenta; exercícios de filtros narrativos; em resumo, o trabalho com a
linguagem; e (iii) pulsação, que caracteriza o ápice da criatividade e da autoria, em que há a fusão da
identidade pessoa-autor/a, na qual ambos são apenas um e se entendem como protagonistas de suas
palavras e, logo, de suas vidas (DIAS, 2021, p. 30-32). Esses passos são baseados nos estudos de

535
Raimundo Carreiro, professor de escrita criativa e precursor dessa área no Brasil, no seio de uma
recontextualização feita pelas pesquisas do grupo de pesquisa GECRIA - Educação Crítica e Autoria
Criativa (UnB/CNPq).
Nesse sentido, este projeto teve interesse explícito em desbloquear a escrita e o desenvolvimento
de uma nova consciência linguística/estilística sobre os textos, abrindo espaço para que novas
identidades escritoras (autoria) se manifestem nos textos. Através de exercícios criados pelos
pesquisadores do GECRIA, foi possível trabalhar os textos ancorados em práticas discursivas de
autoreconhecimento e autoidentificação, além de possibilitar a criação de novas práticas pedagógicas
que incentivaram o pensamento crítico.

Resultados

Nesta seção, apresento análises da coleta de dados feita no decorrer das oficinas por meio de um
diário de bordo pessoal e por meio de entrevistas com as participantes. Além de esperar uma mudança
significativa no português escrito das participantes, também era prioridade desta pesquisa compreender
os efeitos de uma tutoria de escrita criativa — guiada por um tutor ouvinte — em jovens com deficiência
auditiva. Em outras palavras, busquei saber quais eram os receios das participantes, quais suas críticas
à tutoria, o que elas sentiam, o que necessitavam etc.
Para trazer este relato, preparei um questionário acompanhado de uma solicitação de
consentimento das participantes para compor este texto e, com o objetivo de preservar suas identidades,
não mencionarei seus nomes.
Infelizmente, apenas uma das participantes concordou em realizar um encontro gravado. Nesta
experiência, a primeira pergunta realizada foi sobre o impacto das oficinas em sua vida pessoal e
acadêmica — se foram positivas ou negativas e de que forma se deu—, sobre a qual ela respondeu que
carregava várias inseguranças consigo — fator que também se mostrou presente no decorrer dos
encontros. Por ter aprendido o português escrito como segunda língua, a estudante mostrava-se
preocupada com a capacidade de outras pessoas, especialmente ouvintes, em compreendê-la.
Perguntas como “você entende o português do surdo?” ecoaram nas tutorias constantemente.
Felizmente, apesar dessas inseguranças, à medida que os encontros foram avançando, as
participantes se mostraram mais confortáveis para brincar com as palavras e se aventurar nas dinâmicas
propostas. Ao ponto que, ao serem questionadas, destacaram a dinâmica de revisitar memórias
passadas e descrever uma mão como as suas favoritas. Em outras palavras, as oficinas impactaram as
participantes de forma positiva e efetiva, afinal, ao analisar o “antes e depois” de seus textos, foi
percebida uma aproximação à norma culta e uma fluidez autoral.
Por fim, perguntei às participantes quais críticas elas tinham ao projeto e o que poderia ser
mudado, caso novas edições da tutoria fossem abertas. Em consenso, ambas as participantes
recomendaram que o tutor e a professora da disciplina aprendessem a falar Libras e que abrissem vagas
para mais surdos. Outros pontos mencionados incluem: trazer mais dinâmica com imagens, incentivar

536
uma maior interação entre surdos e ouvintes, desenvolver mais projetos de escrita criativa, porém, em
parceria com projetos desenvolvidos por/para surdos etc.

Conclusão

Em suma, o projeto não apenas conseguiu cumprir seus objetivos, mas também abriu demanda
para que seja repetido. Afinal, membros da comunidade surda também possuem o potencial autoral-
criativo inato a todos os atores sociais, porém eles estão sujeitos a maiores desincentivos acadêmicos —
seja por capacitismo ou qualquer outro fator. Por fim, entende-se que a arte escrita é uma das maneiras
de emancipar identidades reprimidas e deve ser oferecida a todos indivíduos de forma adequada — não
de maneira exclusiva a ouvintes ou a surdos, mas de maneiras que também incluam e conectem os dois
grupos.

PALAVRAS-CHAVE: inclusão; escrita criativa; português como segunda língua; ensino de surdos.

537
AGENCIAMENTOS SOCIODISCURSIVOS

Atauan Soares de Queiroz


Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal da
Bahia (IFBA), campus Barreiras. Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/3923805819866846. atauansoares@gmail.com

Juliana de Freitas Dias


Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora do Programa de Pós-graduação em
Linguística da Universidade de Brasília (PPGL/UnB). Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/2619929161240727.
ju.freitas.d@gmail.com

Palavras iniciais

Neste trabalho93, partimos da premissa de que o exame analítico de eventos discursivos


específicos, de práticas sociais e de textos pode contribuir para compreendermos melhor os modos como
as pessoas agem e pensam sobre elas mesmas, sobre as próprias ações e as ações dos outros e como
se (des)identificam com processos e relações sociais. Buscamos refletir teoricamente sobre o problema
da agência em escala individual, abordando o fenômeno das conversações internas (ARCHER, 1996,
2004), sem perder de vista a dimensão coletiva desse processo reflexivo e sociodiscursivo, bem como os
modos pelos quais as estruturas sociais mais amplas como gênero, raça e classe moldam as
possibilidades para diferentes tipos de agência.
No âmbito dos estudos críticos do discurso, o reconhecimento da agência como elemento
ontológico parte em princípio da ideia de que o sujeito constrói e é construído por processos discursivos
e sociais a partir da sua natureza de ator ideológico (PEDRO, 1997). Em outras palavras, a “agência
conduz a elaboração estrutural e cultural, ao passo que é elaborada no processo” (ARCHER, 2004, p.
258). O sujeito é certamente constrangido e limitado pelas estruturas sociais e econômicas e pelos
sistemas culturais, mas tem poderes causais potenciais e propriedades emergentes que podem ser
atualizados nas práticas sociais para reproduzir o status quo e/ou gerar (micro)transformações. Segundo
Fairclough (2003, p. 121), as pessoas são sempre “capazes de agir criativamente no sentido de realizar
suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias a que são expostas e de reestruturar as
práticas e as estruturas posicionadoras”.
Para Van Leeuwen (1997), a agência é um conceito sociológico muito caro para a Análise de
Discurso Crítica (ADC), uma vez que este campo de conhecimento interdisciplinar busca desenvolver
explanações críticas acerca de problemas sociodiscursivos com vistas à superação dos bloqueios que
limitam a emancipação humana. De acordo com o autor, estudos clássicos em ADC buscaram explicar
como atores sociais são representados no discurso, se agentes ou pacientes, no entanto é preciso
considerar que o papel do agente pode ser realizado de outros modos. Nem sempre a agência
sociológica é realizada pela agência linguística ou pelo papel gramatical do agente, pois não existe uma
co-referência precisa entre as categorias sociológicas e linguísticas, “e se a análise crítica do discurso,
ao investigar por exemplo a representação da agência, se restringir demasiado a operações ou

93 O trabalho completo encontra-se disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/36415/31920

538
categorias linguísticas específicas, muitos exemplos relevantes de agência poderão ser ignorados” (VAN
LEEUWEN, 1997, p. 170).
Com o intuito de desenvolver o conceito de agência em perspectiva sociodiscursiva, propomos
neste trabalho a noção de agenciamento, ancorando-nos nos pressupostos teóricos e ontológicos da
abordagem morfogenética (ARCHER, 1995, 1996, 2003, 2004). Para perceber como agenciamentos
emergem e se intensificam nas práticas sociais, consideramos as experiências formativas de estudantes
do EM no âmbito de uma ação sociopedagógica situada, o Programa Mulheres Inspiradoras (PMI). As
análises textualmente orientadas dos relatos escritos dos/as estudantes acerca das experiências
formativas construídas no PMI nos revelam diferentes processos sociodiscursivos de agenciamento.

Conclusões

As ressonâncias das práticas discursivo-identitárias nos processos sociodiscursivos de


agenciamento ocorrem de formas distintas para cada pessoa, uma vez que dependem da abertura
individual para que aconteçam movimentos de reelaboração identitária e subjetiva. A reflexividade dos/as
estudantes se intensifica e produz agenciamento ao reformular crenças, valores, ideias, discursos e
ideologias, que impactam nas interações sociais, no âmbito da instituição escolar e da família.
Ao incentivar a promoção de conversações internas que concorrem para a metarreflexividade, por
meio das práticas discursivo-identitárias no contexto escolar, o PMI colabora para a emergência e
intensificação de (i) agenciamentos epistêmicos, que descondicionam, desnaturalizam e
desessencializam sistemas de conhecimento, valores e crenças regidos por verdades hegemônicas; (ii)
agenciamentos políticos, que estimulam a agência engajada e a construção de comunidades de
aprendizado para a convivência cidadã; e (iii) agenciamentos identitários, que possibilitam a
reelaboração biográfica metarreflexiva e o autorreconhecimento.
Os processos sociodiscursivos de agenciamentos se retroalimentam e se alteram mutuamente,
de modo imbricado, intensificando a agência engajada. O agenciamento epistêmico se mostrou como o
mais incipiente dos três. Agenciamentos políticos e identitários, sobretudo identitários, foram sinalizados
com constância pelas estudantes do sexo feminino, em discursos articulados nos registros escritos
constantes em diário de bordo e em relatos orais na roda de conversa.
Estudantes do sexo feminino revelaram que as experiências formativas no PMI contribuíram para
novos modos de ser e de se relacionar socialmente com os/as colegas na escola e com a família, com
posturas mais agentivas e críticas. A reelaboração reflexiva das estudantes se encaminha para um
movimento metarreflexivo e para a agência engajada, uma vez que elas relatam preocupação não
apenas com o bem estar pessoal, mas, na lógica do bem viver, com o de outras pessoas, principalmente
mulheres próximas.
O enfoque na construção sociodiscursiva das masculinidades também é uma dimensão
imprescindível para potencializar as ações do PMI. “Quando homens estão presentes somente como
uma categoria de fundo em um discurso de políticas sobre mulheres, é difícil levantar questões sobre os
interesses, problemas ou a diversidade de homens e meninos” (CONNELL, 2016, p. 95). Reconhecemos

539
que trazer “problemas dos homens para dentro de um arcabouço existente de política para as mulheres
pode enfraquecer a autoridade que as mulheres já conquistaram nessa área política”. Como os homens
ainda detêm “maior controle da autoridade institucional e de bens”, sua inclusão “pode minar, ao invés de
ajudar, o esforço em prol da igualdade de gênero (CONNELL, 2016, p. 96).
No entanto, não se pode perder de vista o “caráter relacional do gênero”. Faz-se mister construir
estratégias pedagógicas para envolver e engajar o público masculino no debate sobre gênero com vistas
à construção do bem viver. Certamente, as formas de intervenção no contexto escolar “não podem
abandonar as mulheres, mas serão mais eficientes à medida que considerarem a pluralidade e a
contingência dos sujeitos envolvidos” (LOURO, 2014, p. 162).

REFERÊNCIAS
ARCHER, M. The reflexive imperative in late modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
____. Being human: the problem of agency. United Kingdom: Cambridge University Press, 2004.
____. Structure, agency and the internal conversation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
____. Culture and Agency: the place of culture in social theory. Cambridge: Cambridge University Press,
1996 [1988].
____. Realist Social Theory: the morphogenetic approach. Cambridge: Cambridge University Press,
1995.
CONNELL, R. Gênero em termos reais. Tradução de M. Moschkovich. São Paulo: nVersos, 2016.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coordenadora de tradução: Izabel Magalhães. 2.ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 2016 [1992].
____. Analysing Discourse: textual analisys for social research. London: Routledge, 2003.
Sophia Zanotto. Campinas (SP): Mercado de Letras, 2002.
LOURO, G. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16.ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.
PEDRO, E. (Org.). Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa:
Editorial Caminho, 1997.
VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E. (Org.) Análise Crítica do Discurso:
uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997. pp. 169-222.

540
CICATRIZES DA LEITURA DA “PALAVRAMUNDO”: UM RELATO AUTOETNOGRÁFICO

Mateus de Morais Torres Ferreira

Esse trabalho se constitui de um relato autoetnográfico sobre a minha relação com a minha
autoria, a partir de um convite que foi feito de uma escrita de texto em diálogo com Paulo Freire, tomando
a palavramundo como uma palavra inaugural instauradora dessa autoria. Desta forma, a fim de abranger
uma visão mais ampla dessa jornada de construção literária, passarei pela minha infância, adolescência
e por meu “eu” adulto, buscando sob uma perspectiva decolonial compreender os aspectos de
construções de autoria, de identidade e de estilo a partir da interioridade do autor.
A autoetnografia é um gênero de escrita e pesquisa que apresenta múltiplos níveis de consciência
no qual o cultural e o pessoal se conectam. Por conseguinte, ao descrever experiências sociais e
culturais compreendem-se experiências mais amplas que são desveladas e sustentadas por um
acolhimento da subjetividade do pesquisador. Posto que tal trabalho trata de experiências e não de
dados, rejeitam-se quaisquer conclusões uma vez que tal relato é constituído de forma processual,
relacional e mutável.
Ler é um ato de prazer e dor. Assim como a escrita. A leitura da palavramundo não seria diferente,
é um movimento constante que nos destrói e reconstrói, formando o que chamamos de vida. E, ao longo
do meu texto, vou buscar esse movimento também; não espere uma linearidade, pois o movimento da
memória é pendular.
A minha leitura da palavramundo começou em um lugar distante que, ironicamente, não aparece
nos mapas, então, é como se fosse um cantinho à parte do mundo. Uma rua de terra, salpicada dos dois
lados por 35 casas, que são preenchidas por 132 moradores. Esse é o Calumbí dos Flores. Meu
povoado escondido nos confins do Maranhão.
Foi lá, em uma casinha de barro que, aos três anos, por conta própria resolvi subir a grande
ladeira atrás de uns meninos fardados até chegar a uma construção esburacada, com uma cerca de
arame e madeira podre que eles chamavam de escola. E eu me apaixonei por aquilo. Lembro até hoje de
quando li minha primeira palavra e da sensação prazerosa que isso me deu. Ok que a primeira palavra
que li foi CD. Mas foi uma grande descoberta para mim, quando peguei a capa com o disco e vi aquelas
duas letras ali e em um click eu entendi o que significava. Letras formavam palavras. Foi como descobrir
um superpoder. Era uma palavra pequena, sim, mas quando vi na estante um DVD, eu vi que os meus
poderes estavam aumentando.
Aprendi e vivi muitas histórias entre as paredes daquela escola. Mas, para mim, os maiores
aprendizados se deram fora dela.
Eu tinha um cachorrinho; vira-lata, de pelo dourado. Como sou o irmão mais velho de duas irmãs
mais novas posso afirmar que aquele cão foi meu primeiro companheiro. E foi com ele que aprendi algo
muito difícil; Pingo me ensinou a dor da perda e a desolação da morte. Anos depois, um outro cachorro,
dessa vez não meu, me ensinou, com suas enormes presas enfiadas na batata da minha perna, o que

541
era o pânico. Foi uma lição que não ficou só marcada na minha perna em forma de cicatriz, mas também
no meu psicológico, e é essa última marca que me faz dar a volta na rua sempre que vejo um cachorro.
Na minha escola não havia livros, pelo menos não literários. Tínhamos que ficar felizes por pelo
menos termos os didáticos mesmo. E logo que meus poderes de juntar letras e construir palavras
estavam mais fortes, veio aquela sede irrefreável por histórias. Então, lá se vai eu pegar o livro de
português e buscar me saciar com os textos e fragmentos de textos que apareciam antes dos exercícios.
Terminava o livro de um ano e pegava o de outro, mas isso não bastava…
É nesse momento que uma figura importante entra em ação. Um senhor de cabelos e barba
brancos que morava na frente da minha casa: seu Veri. Eu já havia me mudado para o topo da ladeira e
estava morando agora em frente à escola. Seu Veri era um velho doido por cantorias, repentes e cordéis
e, ao ver que eu gostava muito de ler, chegou até mim com um livrinho de poemas. Sua vista fadigada e
até a baixa alfabetização não permitiam mais que ele entendesse o emaranhado de letras. Estava
perdendo seu poder. Mas ele ainda tinha algo muito importante: interesse. Queria que eu lesse para ele.
E lendo aqueles poemas, eu me apaixonei.
Enquanto eu lia, ia vendo como o encadeamento daquelas palavras provocava certas reações no
velho. “Ele gosta mesmo”, pensei. E quando ele começou a fazer elogios exagerados, pensei também
“Ah, isso é tão simples de fazer”, e foi aí que comecei a escrever meus primeiros poemas. Passei a lê-los
para seu Veri, que ficou impressionado. “Tu puxou pro teu tio”, ele disse. Fiquei surpreso e chocado ao
descobrir que o autor dos poemas que lia era um tio meu. Esse foi o início do meu sonho de ser escritor.
E foi quando eu descobri que os meus poderes tinham dimensões inimagináveis.
Naquele lugar, aprendi o que era machismo, na verdade, eu vi o que era, mas só entendi depois.
Ainda não existia no meu arsenal essa palavra. Mas aprendi outras semelhantes. Com os homens da
minha família, aprendi o que era o vício. Com meu pai, o que era a violência. Nas cicatrizes de minhas
costas, a dor. No rosto, o choro; meu, dela, delas. Foi dentro da mesma casa que aprendi o que é o
amor, que também aprendi o que é o ódio, a raiva, o rancor.
Observando aquelas pessoas vi o que era uma vida sem expectativa de crescimento. E entendi o
quanto o costume é cruel. O quanto uma rotina pode obscurecer o horizonte. Para eles, aquela vida
estava boa. Você planta o que come, depois colhe e planta de novo. No meio disso, vai vivendo. E eu
não queria apenas aquela lição. Queria aprender mais, conhecer mais. Já havia lido aquele livro nos
olhos daquelas pessoas, e não gostei do final. Escreveria um diferente para mim. E foi aos treze anos
que deixei minha família lá e viajei sozinho para a cidade grande e distante; Brasília.
Aqui entendi que a minha leitura ainda era pouca. Que o meu sonho ainda estava distante. Mas,
assim como todo superherói precisa treinar pra ficar forte, eu sabia que o caminho era este; precisava
praticar muito para expandir meus poderes. Conheci muitas outras palavras por aqui: bandido, assalto,
bullying. Mas também: biblioteca, booktuber, futuro. A leitura da palavramundo vai além da leitura de uma
palavra ou de duas, é um grande livro que nunca se esgota e que pode ser lido em qualquer lugar, seja
um que sequer aparece no mapa, seja a capital do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: autoetnografia; palavramundo; autoria criativa.

542
CATAR IMAGENS, HABITAR O TEMPO: RASTROS COLETIVOS

Barbara dos Santos


Professora de Artes na Prefeitura de Limeira (SP), aluna regular do Mestrado Profissional em Artes – PROFARTES,
Instituto de Artes – UNESP, Campus de São Paulo. b.santos01@unesp.br

O poeta Manoel de Barros (1916-2014) nos convoca a olhar o espaço, mas que espaço é este
que olhamos? Rastros, fissuras, pegadas, sutilezas, marcas, labirinto... o que está nos entrelugares do
corpo e da Arte e que nos constitui para compreendermos as coisas com mais clareza e coesão. O
chamado de Barros nos aponta para um caminho que não tem volta, enxergar para olhar, olhar para ver,
ver para transformar e transformar para criar. Assim este projeto se constitui como uma possibilidade de
compreender a aula de Arte pelo viés da criação autêntica, autoral e que revela caraterísticas e
singularidades que se fazem presentes em cada estudante que se nutre pela Arte. Dessa forma, o
objetivo da pesquisa é entender como a escola opera com as imagens ou como os alunos podem
construir outras imagens, que passam pelo alcance da visão, mas que também moram em lugares
escondidos, como nos sonhos, nas fantasias, no inconsciente. Que imagens os alunos carregam numa
aula de Arte? Para compreender esta ideia, apostamos na pista ‘catadores’, proposta por Fernando
Hernández (2007) na abordagem dos estudos da cultura visual. Para ele, catadores podem ser, ao
mesmo tempo, metáfora e proposta, na medida em que a ideia de catar também se refere a se
aproximar, ver de perto, analisar.
[...] os catadores atuais não somente recolhem amostras e fragmentos da cultura visual de
todos os lugares e contextos para colecioná-los e “lê-los”, como para criar narrativas
paralelas, complementares e alternativas para transformar os fragmentos em novos
relatos [...] (HERNÁNDEZ, 2007, p. 18-19)

Quais são os agenciamentos que as imagens enunciam no espaço escolar? Que silêncios ela
reverbera? Provoca perfurações? Desequilibra? Que territorialidades as imagens habitam? Como criar
linhas de força para pensar o plano de imanência que se coloca diante da professora e dos participantes,
para a construção e produção de outras subjetividades? Diante da processualidade do ambiente ao
redor, discursos vão se materializando para pensar quais práticas artísticas fazem sentido, hoje, e que
dão vazão aos ecos e na multiplicidade de vozes que perduram nas paredes, nas frestas, nos cantos.
[...] a imagem poética não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes
o inverso: com a explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa de ecos e já não
vemos em que profundezas esses ecos vão repercutir e morrer. Em sua novidade, em sua
atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio [...] (BACHELARD,
2008, p. 2)

O espaço/tempo da pesquisa pretende acompanhar a aula de Arte de dois grupos de estudantes


de 5º ano do ensino fundamental. A aposta da pesquisadora/professora destes alunos é observar como
eles operam com as imagens, de que forma a realidade pulsante/conflituosa/arbitrária aparece em suas
criações artísticas e reverbera nas experiências estéticas. Para isso, iremos nos direcionar para a
cartografia, a partir do pensamento de Gilles Deleuze (1925-1995), Félix Guattari (1930-1992) e das
pistas do método da cartografia, alinhavado por Virgínia Kastrup e seus pesquisadores. Este caminho
metodológico nos parece interessante para adentrar nas poéticas e nas criações dos estudantes,

543
mediados pela natureza e seu entorno. Serão propostas oficinas/momentos em que os estudantes serão
convidados a pensar com/pelas imagens, abrindo novas fissuras, rastros, caminhos, pegadas. A
pesquisadora/professora também será convidada pelos estudantes e convocada pela pesquisa a criar,
junto aos estudantes, abrindo possibilidades e dobraduras no rizoma “aula de arte”. Que materiais
expressivos utilizar? Quais suportes? Qual tempo e que poéticas?
Rachar o chão para ver as fissuras. Olhar para cima para ver o andar das nuvens e quais
desenhos elas formam. Sentir o cheiro e absorver aromas. Movimentar a língua e ouvir estalos. Escutar
os órgãos do corpo conversarem. Estas são algumas apostas que temos para pensar a aula de Arte
pelas imagens. Como registrar isso tudo? Fotografando, colando, pintando, recortando? São muitas as
possibilidades. A pesquisadora e os estudantes em agenciamento. Há uma aposta a ser feita. Há
discursos outros para estão vindo à tona. A água está quase tomando corpo, mas quer transbordar, quer
correr. As imagens dão vazão a tudo isso. Esta é a aposta inicial. Há um plano molecular coletivo e é
preciso movimentá-lo.
Linha substantiva, frágil, torta e fina. Sintonia pronta para se quebrar e se dobrar e torcer e
verter sobre si mesma, tal qual um verso que decide quando movimenta um lugar. A prosa
vai em linha reta, bate na margem e retrocede. E mesmo assim, caminha em
vaivémvaivém sem fim. E mesmo assim, quando algo existe, existe porque resiste, insiste,
não desiste. Exige um quase, um vão, por um triz. (DERDYK, 2011, p. 83)

Portanto, a presente pesquisa convida/convoca/sussurra como uma abertura à criação. Uma


criação potente que não procura representação, mas quer ser plena, vívida, autêntica e presente. Criar e
(re) criar, habitar outros espaços, circundar, agir. O convite à criação é também uma possibilidade de
pensar poéticas com diferentes materialidades e compor percursos/trajetórias que mostrem alguns sinais
do pensar criativo dos alunos. Apostamos, assim, na criação artística que produz dobras, rachaduras,
marcas, vestígios e que são potências em devir, que emergem em ebulição, na aula de Arte, no
acontecimento, na presença dos corpos no espaço e criam ressonâncias, ecos, máquinas, criam
multiplicidades.

PALAVRAS-CHAVE: ensino de Arte; experiência estética; fotografia; processos de criação,


agenciamento.

REFERÊNCIAS
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BARROS, M. Ensaios fotográficos. São Paulo: Leya, 2010.
DERDIK, E. Linhas de costura. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011.
HERNANDEZ, F. Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educacional. São
Paulo: Mediação, 2007.
PASSOS, E., KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e
produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020.

544
NÓS, MULHERES-MÃES, TAMBÉM ESTUDAMOS

Lisianne Lima

Resumo

Este artigo faz reflexão sobre maternidade e estudos, a partir das vivências de mulheres-mães
participantes do grupo de estudos intitulado “Mãe Também Estuda”, o qual se propõe a realizar leituras
de livros por capítulo, e em horário flexível a fim de atender as demandas da mães, negras e não negras,
trabalhadoras e desempregadas, com um ou mais filhos, casadas ou solteiras, que compartilham o
interesse de estudar sobre temáticas relacionadas ao Serviço Social e afins. Trata-se também de espaço
de acolhimento e troca de ideias.
Assim, compartilho as vivências, desafios e expectativas do grupo de estudos “Mãe Também
Estuda”.

Introdução

O objetivo deste artigo é refletir sobre maternidade e leituras nesta sociedade patriarcal e
machista que atribui às mulheres responsabilidades domésticas e a educação das crias. Por outro lado,
ao genitor é dado o privilégio de abdicar das responsabilidades parentais e não ser julgado ou cobrado
pela sociedade, afinal é disseminada a ideia de que “pai ajuda”. Pai não ajuda, pai não pode apenas
gestar e amamentar no seio, porém as demais necessidades da criança podem ser atendidas igualmente
pelos seus genitores ou pais afetivos.
Nosso grupo virtual é uma estratégia de enfrentamento às opressões sofridas pelas mulheres-
mãe e por isso defendemos que MÃE TAMBÉM ESTUDA.
Do diálogo entre duas mulheres que estavam desanimadas pela falta de acolhimento dos
espaços educativos para com as mulheres-mães, resolvemos criar nosso grupo de estudos que atende
as necessidades de mulheres, mães, estudantes, trabalhadoras e desempregadas.
Assim, no dia 09 de setembro de 2020, ocorreu o primeiro encontro virtual com a participação de
seis mulheres-mães, sendo quatro moradoras em Goiás e duas na Bahia. Escolhemos o livro “Serviço
Social na Justiça de Família”. Depois, o segundo, “A Dimensão técnico-operativa no Serviço Social:
Desafios Contemporâneos” e, o terceiro, “Código de Ética do/a Assistente Social: Comentado”.
Convido-te a conhecer nosso grupo que há um ano colabora para mulheres-mães estudarem,
trocarem afetos e fortalecimento durante a pandemia causada pela Covid-19. Nas leituras encontramos
afagos, conhecimento e esperança. Compartilhar com você este trabalho significa que nossa rede de
apoio se ampliou. E vamos estudar…

Grupo de estudos “Mãe Também Estuda”

545
Mulheres-mães na luta por transformações sociais, a nós são destinadas a obrigação pela
educação e criação dos seres humanos desta sociedade de bases patriarcais e machista. Eu sou apenas
mãe? Ou a maternidade é uma parte da minha vida? Assim, como escolher trabalhar, passear, namorar,
estudar e tantas outras questões inerentes à vida? Mulheres-mães não podem ser reduzidas a educar
seus (suas) filhos (filhas) ou às responsabilidades domésticas. Nós precisamos existir! A maternidade
não nos define, somos mais que mães, nós existimos! Nomear o nosso grupo de estudos virtual por "Mãe
Também Estuda" é com o objetivo de possibilitar às mães o acesso às leituras, acolhimento, troca de
saberes e horário flexível.
Quanta alegria de compartilhar a experiência de mulheres-mães, maioria pretas, brancas,
residentes em Goiás, Bahia e Santa Catarina que se reuniram para realizar leituras diversas,
especialmente em matéria de Serviço Social, por se tratar de mulheres-mães graduandas em Serviço
Social ou assistentes sociais.
Em setembro de 2020, duas mulheres-mães dialogavam sobre os desafios da maternidade e os
estudos, por exemplo, como estudar com a criança gritando e pedindo atenção? É possível elaborar
textos e pausar para trocar a fralda do bebê? Que evento tem espaço infantil para que as mulheres-mães
possam participar com seu (sua) filho (filha)?
Então surgiu a ideia de resistir à exclusão imposta por nossa sociedade, que dificulta a presença
de mulheres-mães nos espaços educativos devido à falta de flexibilidade e acolhimento. Assim, em meio
à pandemia causada pela Covid-19, surgiu o grupo de estudo virtual “Mãe Também Estuda”, formado por
seis participantes que compartilhavam de necessidades semelhantes, ou seja, estudar, trocar ideias e ser
mãe. Como afirma Chimamanda (p. 14, 2019) “Seja uma pessoa completa. A maternidade é uma dádiva
maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade”.
Convidamos as mulheres-mães, escolhemos o livro e selecionamos a plataforma google meet
para nossos encontros, iniciados às 21h até às 22h, quinzenalmente, com leituras e reflexões por
capítulos. A estrutura dos encontros é o acolhimento inicial com apresentação artística (músicas, vídeos
ou poemas), troca de saberes sobre o capítulo lido e os comunicados finais. E, no dia seguinte,
postagem do resumo das discussões no grupo virtual (whatsapp).
O primeiro livro escolhido foi “Serviço Social na Justiça da Família: demandas contemporâneas
do exercício profissional”. No início do primeiro encontro, uma mulher-mãe falou sobre as dificuldades de
lidar com os filhos adolescentes. Logo em seguida, outra participante a recomendou procurar um
hebiatra. E pensamos coletivamente: o que é um (a) hebiatra? E descobrimos que trata-se de uma
especialidade médica focada em adolescentes. Aquele momento expressava que o nosso grupo não é
apenas de leituras e reflexões teóricas, é também, rede de apoio, de curiosidades, acolhimento e
resistência.
Seguimos com a leitura do capítulo I, no tocante ao silenciamento teórico na área sociojurídica,
naturezas processuais, paternidade e maternidade socioafetiva, relações homoafetivas no judiciário. Já
no capítulo II, a imediaticidade no fazer profissional, concepção de usuário cidadão e a defesa dos
direitos humanos e sociais; definição de interdição; diferenças entre perito social e assistente técnico;

546
Serviço Social nas escolas; limites e possibilidades no atendimento com crianças e adolescentes no
campo sociojurídico. E o capítulo III, reflexões sobre a constituição federal de 1988; as irregularidades da
“adoção a brasileira”; patriarcado, sexismo e machismo; compartilhamos vivências na graduação, no
Centro de Atenção Psicossocial e na Vara de Família e Sucessões. Neste momento, a esperança e a
coragem estavam presentes nas nossas narrativas, pois a cada capítulo lido confirmamos que Mãe
Também Estuda. Não podemos deixar de mencionar que duas mães desistiram de permanecer no grupo
devido à sobrecarga de atividades e à incompatibilidade com os horários dos encontros virtuais. Isso
reforça o quanto ainda precisamos desromantizar a maternidade. Não nascemos mães, nos tornamos
com a chegada da cria, seja biológica ou afetiva, e precisamos nos adaptar à nova configuração familiar,
às responsabilidades, rotinas, orientações, entre outras questões que englobam a maternagem ao longo
da vida.
No capítulo IV conversamos sobre as configurações familiares, análise do filme “Eu, Tu, Eles”,
história do divórcio no Brasil, pátrio poder e poder familiar, definições e vivências relacionadas à
multiparentalidade.
Conseguimos! Atingimos o último capítulo. Analisamos as atribuições dos peritos técnicos,
alienação parental, gênero, maternidade e o excesso de demandas destinadas socialmente às mulheres
e críticas à escassez de produção acadêmica relacionada ao Serviço Social e ao campo sociojurídico.
Entusiasmadas, compartilhamos as considerações finais do primeiro livro no grupo “Mãe Também
Estuda”. Concluir o primeiro livro nos impulsionou a continuar com nossos encontros virtuais, superar o
cansaço, o choro das crianças, as demandas domésticas, por nós e para nós.

E as leituras continuam…

Em janeiro de 2021, seguimos para o nosso segundo livro “A Dimensão técnico-operativa no


Serviço Social: Desafios Contemporâneos”, por Cláudia Mônica dos Santos, Sheila Backx e Yolanda
Guerra.
Organizamos o cronograma para leitura do novo livro, que é oriundo de simpósio ocorrido em
2009, com a temática Dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa; políticas sociais
e seus desafios, bem como reflexão sobre a frase: “na prática a teoria é outra”. Compartilhamos relatos
de casos de violência contra crianças e adolescentes, a importância dos profissionais (assistentes
sociais) produzirem mais textos acadêmicos.
Lembramos da vontade de escrever um livro sobre maternidades e educação e buscamos os
caminhos para concretização deste sonho coletivo. Leitoras e escritoras, mas será que mãe também
pode escrever? Acreditamos que sim, com ousadia e coragem, imaginamos a capa do nosso livro, os
capítulos e até os autógrafos e dedicatórias. Nós também precisamos sonhar.
Retornando às leituras, debatemos sobre dimensões: técnico-metodológica / ético-política /
técnico operativa, modo de ser da profissão, diversos espaços ocupacionais e a necessidade de
conhecer e aplicar as Dimensões, dificuldades vivenciadas na área de saúde no tocante às atribuições e

547
competências profissionais, conservadorismo, instrumentos e técnicas, consenso e dissenso sobre os
instrumentos técnicos.
Discutimos também sobre “A dimensão Técnico operativa do exercício profissional”, abordamos
questões históricas, estruturais e conjunturais, desafio da autoimagem da profissão, divisão sociotécnica
do trabalho, instrumentalidade, resolutividade, heterogeneidade, espontaneidade, imediaticidade,
superficialidade extensiva e a prática irrefletida. Conhecemos os fundamentos para desvelar e submeter
à crítica o senso comum, políticas sociais, e contradição capital x trabalho.
Promovemos um bate papo sobre Ecofeminismos, ministrado por Natália Chaves dos Santos,
estudante de Direito.
De acordo com Alicia Puleo, é a corrente do feminismo que se propõe abordar nossa relação com
a natureza desde a perspectiva de gênero, propondo uma redefinição do ser humano e da natureza, de
forma que nos entendamos humildemente como parte desta e não como superiores e dominadores dela.
Compreendemos o contexto histórico, a relação mulher e natureza, política sexual da carne, devastação
ambiental e suas consequências na vida da mulher. Foram sugeridas mudanças de hábitos alimentares e
uso de eco absorventes. Este evento foi potente para as mulheres-mães, pois ampliamos nossos
saberes e diversificamos o nosso grupo com a inclusão de outras temáticas.
Hoje, estamos no terceiro livro “Código de ética do/a Assistente Social: comentado”, autoria de
Maria Lucia Silva Barroco e Terra Sylvia Helena. Realizamos a leitura e comentários dos artigos do
código de ética da profissão a cada encontro virtual.

Nosso primeiro ano…

A caminhada continua e celebramos nosso primeiro ano de grupo de estudos “Mãe Também
Estuda!” Experimentamos o poder transformador das leituras, a força da coletividade, a remarcação de
alguns encontros e as perdas provocadas pela pandemia. Resistimos! Com poesias, músicas,
convidadas, filhos (as), reafirmamos: Mãe Também Estuda!
Incentivamos você a ser rede de apoio pois queremos educar em conjunto, ter alguém para
compartilhar a angústia de não ter buscado a criança na escola no horário programado, ter para quem
contar os sonhos incluindo ou não a maternidade, ouvir “estou com você”, chorar, ser vulnerável, romper
com a perfeição e a culpa. Nós somos mulheres-mães, com forças e fraquezas, expectativas e
frustrações, coragem e medo, tristezas e alegrias. A maternidade não totaliza quem somos ou o que
fazemos, existimos antes de sermos mãe, somos mulheres.
Compartilhamos poema escrito por Ana Vitória Alves de Freitas, filha de uma mulher-mãe
participante do grupo.

Grupo Mãe Também Estuda


Mãe que estuda e de seus filhos cuida
Que linda ousadia a sua.
Ainda não conheci a maternidade,

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Não sei o que é ser árvore,
Mas sei o que é ser fruto
E dessa parte, darei testemunho:
Admiro muito minha mãe,
Sua dedicação aos estudos,
A paciência, o carinho para comigo.
Entre livros e choros,
Ser mãe e estudante
É um privilégio duplo
Que traz desafios em dobro.
Experiência sem comparação!
Transforma a vida dos filhos
E acompanha por meio dos livros
Um mundo em eterna transformação.
Parabéns, mães que também estudam!
Que venha mais um ano de luta
Que sempre haja mais amor para partilhar
E não falte a ousadia que iniciou essa aventura!
Este poema traduz nossas dificuldades no decorrer de um ano que optamos por estudar à noite e
acompanhadas das crias, por acreditar que é possível plantar sementes do saber e apreciá-las
florescendo.

Considerações Finais

A maternidade não pode definir a mulher, as crias não são título exclusivo da mãe, a
responsabilidade é coletiva, ou seja, genitores, família extensa e sociedade.
Somos mulheres, somos mães e somos resistência! Nós trabalhamos, estudamos, passeamos,
namoramos, nós existimos!
Por fim, nosso grupo é constituído por cinco mulheres-mães, sendo uma moradora da Bahia, três
em Goiás e outra em Santa Catarina. Compartilhamos nossa experiência e esperamos que seja um
incentivo para que outras mulheres-mães criem suas estratégias para enfrentar as opressões sociais. A
luz das palavras de Thaiz Leão: “eu não sou guerreira”, nós acreditamos no amor que transforma
conforme bell hooks nos ensina “Quando amamos é possível enxergar o passado com outros olhos; é
possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura”.

REREFÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi.Sejamos todos feministas. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
BARROCO, Maria Lucia Silva, TERRA, Sylvia Helena. Código de Ética do/a Assistente Social:
Comentado. Conselho Federal de Serviço Social – CFESS. Ed. Cortez

549
EVARISTO, Conceição. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo
Horizonte, Fundação Municipal de Cultura, n. 23, nov. 2008.
GOUVEIA, Thaiz Leão. O exército de uma mulher só, Caxias do Sul, RS: Belas Letras,2009.
HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Revista Estudos feministas. nº 2/95. Vol.3. 1995.
SANTOS, Cláudia Mônica dos; BACKX, Sheila; GUERRA, Yolanda (Org.). A dimensão técnico-
operativa no Serviço Social: desafios contemporâneos. Juiz de Fora: UFJF, 2012.
VILARINHO, Tais. Mãe fora da caixa. São Paulo: Buzz Editora,2017.

550
ENTRELACES EM PESQUISA E FORMAÇÃO: QUEM SOMOS ‘EU’?

Letícia Gottardi
Mestranda no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias (PPG-IELT) da
Universidade Estadual de Goiás (UEG), graduada em Licenciatura em Letras Português/Inglês pela mesma
instituição. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Membro do Grupo
de Estudos INTEGRA e do Grupo de Pesquisa Perspectivas Críticas em Educação Linguística, Letramentos e
Discurso (UEG/CNPq). l.gottardi@hotmail.com

Karielly Moreira
Mestre em Educação, Linguagem e Tecnologias (PPG-IELT) da Universidade Estadual de Goiás (UEG), licenciada
em Letras Português/Inglês pela mesma instituição. Membro do Grupo de Estudos INTEGRA e do Grupo de
Pesquisa Perspectivas Críticas em Educação Linguística, Letramentos e Discurso (UEG/CNPq). Professora de
inglês da SEDUC (contrato temporário). karyelly.moreira@ueg.br

Barbra Sabota
Doutora em Letras e Linguística. Professora, orientadora e pesquisadora no Programa de Pós-graduação
Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias (PPG-IELT) da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e
no curso de Letras da UnUCSEH - Nelson de Abreu Jr. Coordenadora do Grupo de estudos INTEGRA e Vice-líder
do grupo de Pesquisa Perspectivas Críticas em Educação Linguística, Letramentos e Discurso cadastrado no
CNPq. barbra.sabota@ueg.br

Esta proposta consiste em juntar três ‘eus’ em um texto, mas à guisa de seguir a ideia da
multiplicidade do uno, discutida em Deleuze e Guattari (1995) e respeitando o devir de cada uma –
Letícia, Karyelly e Barbra – que se entrelaça na escritura deste texto, bem como de cada leitora que se
junte a nós, utilizo a primeira pessoa do singular para marcar o entrelace proposto. Sim, eu sei que
costumeiramente fazemos isso por meio do nós, mas isso já está tão naturalizado na academia que o
plural não permite refletir sobre o que de fato é este ‘nós’. Assim, em busca de entender como nos
tornamos pesquisadoras e como nossos ‘eus’ se constituem, sigo usando o singular. Marco também o
feminino ao longo do texto para escapar da norma patriarcal que me faz sentir contemplada pelo
masculino generalizante. Aqui não! Aqui sou livre para falar de mim, de minha corpa, de denunciar o
cistema que silencia e apaga vozes femininas. O objetivo é refletir sobre atravessamentos
sofridos/sentidos por mulheres na academia entrelaçando as corpas de quem faz a pesquisa, quem
orienta a pesquisa e possíveis reverberações sobre este processo. Vamos juntas!
Enquanto preparo este resumo, [Letícia] estou gerando uma dissertação no PPG-IELT. Estes
textos paridos durante o processo me convocam a fazer este movimento praxiológico entre teorias e
vivências que, por sua vez, se desdobram em sensações corpóreas que muitas vezes “não cabem” no
texto científico, no registro acadêmico. O texto escrito para “não surtar” fica fora do registro sobre o fazer
pesquisa, logo, em uma tentativa de denunciar algumas violências coloniais sobre minha corpa, trago
aqui um desabafo dessa vivência ao estar mestranda.

Não tô fluindo de novo. E, agora... pensando de novo na porra de relação doentia que criei com meu
corpo. Saber que sou um corpo me trava, pq o que eu vejo espelho não gosto, não gosta das curvas
mal conheço meu contorno. Quando a primeira estria surgiu e chorei como se aquilo fosse marcar pra
sempre. E marcou. Falei, olha mãe uma estria, olha que horror! E ela, como sempre num silêncio de
ignorar a violência que eu sofria ali. Parece que ela me ensinou. Do mesmo dia que enquanto eu

551
tomava banho e lavava minha vulva percebi que havia uma forma que eu não conhecia ali, pensei na
hora que tinha uma doença! Isso deve ser uma verruga e com certeza peguei porque fiz alguma coisa
errada, nunca havia tido qualquer relação sexual antes, acho que tinha uns 15 anos. E chamei
novamente minha mãe, logo que ela é enfermeira e vai saber o que fazer. E ai... chamo, deito, mostro
o caroço, que naquela altura parecia um câncer maligno. Minha mãe preocupada com a reação que eu
estava tendo, olha, examina e fala tá tudo normal, para de frescura, troca de roupa e vem jantar. Esse
foi o primeiro contato que tive com meu clitóris. Fechei as pernas, me troquei e numa confusão de
sentidos percebi que não tinha nada, oras... minha mãe disse que tava tudo bem. A ficha caiu anos
depois que o nódulo, maligno, era eu. Sou um corpo. Tô escrevendo porque não cabe aqui horror que
sinto pelo meu corpo, castraram meu olhar, castraram o tesão que eu deveria ter, castraram meu
prazer corporal, castraram meu desejo. Colocaram no lugar uma busca esquizofrênica pra eu não
querer ser, mas pra querer ter um corpo e que esse corpo nem deveria ser meu, é pra ele. Tudo o que
faço tem que ser pra ele. Me sinto presa num emaranhado simbólico de ser/estar. É como uma
marionete feita pra ser fodida e tenta sair da narrativa pra ver. A consciência de estar aqui é um inferno,
mas a ignorância é o abismo. Hoje tenho 29 anos e percebo que vivo a mentira contada de quem eu
deveria ser, entre performers e performances a minha identidade ainda é estrangeira dos meus
sentidos. Eu não sei quem sou, não sei o que fazer. A angústia anda ferindo dia a dia a carne que a
muito já não sente, me ensinaram a não ser eu e hoje não sei quem sou. O significado da existência
pra mim é um borrão cinza. Sei que tem algo por trás, mas não dá pra entender. Tô sem aparato
psíquico para dar conta disso agora. Só queria sumir. DESPARECER. Mas, não vai acontecer, porque
essa são as escolhas postas pelo cistema, ou se adequa ou some. Pra mulher, ela vai sumir. Ela some
quando é dissidência.

Por muito tempo fiquei em silêncio, mesmo nos momentos em que eram necessárias reflexões e
ações. Neste entrelace em que me enredo com Letícia, logo acima, e Barbra, a seguir, me pergunto
como pude aprender com pessoas tão diferentes de mim a ser mais eu. Nesse contexto, o processo do
mestrado foi significativo, oportunizando meu desenvolvimento e minhas construções, desconstruções e
reconstruções, sendo assim, um processo que corroborou com reflexões acerca das minhas perspectivas
como pessoa, professora, mulher negra e, sobretudo, pesquisadora.

A escolha de analisar um curso remoto, em tempos de pandemia, partiu das reflexões como
pesquisadora e docente de professores/as em formação, em valorizar o trabalho docente em um
contexto inédito, outrossim, visando contribuições relevantes do objeto de estudo e seus
desdobramentos para a Educação Linguística. Neste estudo (MOREIRA, 2022), tive acesso a diários
dialogados trocados entre as alunas e a professora Barbra e ao me dedicar a olhar o trabalho dela,
pude perceber em pontos de convergência e divergência em nossas praxiologias. No estudo percebi
que na aula de inglês era possível fomentar oportunidades de autorreflexão de modo a discutir e
compreender o seu “lugar” no mundo, acolhendo, promovendo a agência discente, proporcionando
reflexões, construções e desconstruções através das práticas de letramentos. Dentre as alunas, estava
Jess e rizomatizar suas escolhas me emocionou. Passei a repensar minhas ações; observei-me,

552
refletindo sobre meu lugar de fala, minhas vivências e experiências, percepções na ancestralidade e no
coletivo. Questões envolvendo o preconceito, sobretudo os direcionados à mulher negra me passaram
a me inquietar. Fatos que eu normalizava, agora me angustiam, como quando percebo estereótipos
expostos sobre cabelos crespos e/ou encaracolados, taxados de “ruins”, ou piadas tidas como “apenas
brincadeira”, ou avaliadas como “mimimi” por quem não sente na pele a dor de ter de reivindicar
respeito e direito à representatividade.
Enquanto construía a dissertação, percebia como a aluna Jess se constituía pesquisadora e se
percebia uma mulher negra, também eu, Karyelly me permiti olhar para contornos de minha corpa que
estavam apagados. Meu cabelo, minha pele eram embranquecidos pelo silêncio minha escrita. Ao ler
pensadoras negras como hooks (2000) e Ribeiro (2020) – problematizando sobre racismo, feminismo
negro e superação da marginalização da população negra – para mostrar em minha dissertação modos
de promover o letramento antirracista foi que me permiti soltar minha voz negra, ecoando gritos de
libertação.

E como me sinto em meio a tudo isso? Como orientadora, [Barbra] me sinto desafiada a
acompanhar essas mulheres em suas angústias e tentar interromper o ciclo de violência acadêmica
sofrida, em maior ou menor grau, por todas nós. A academia não nos quer aqui, portanto seguir
pesquisando é um exercício diário de resistência e transgressão.

Sou mãe de adolescente, acompanho crises existenciais e dúvidas sobre o futuro. Sou mãe de menino,
acompanho sua formação para que não se torne machista. Também sou esposa, dona de casa. Tenho
plantas e pets. Sou filha única, de mãe solo, sou ouvido e apoio sempre que necessário. Meu tempo é
corrido em meio a tantas coisas que me demandam atenção, ainda assim, para descontrair, faço
crochê. Amo ler e ouvir músicas, gosto muito de cinema... contudo, nem me lembro da última coisa que
fiz por mim. Tem coisas que amo e que me privo porque não cabem na agenda da semana... ou ao
menos no que me sobra dela. É que sou professora. De inglês. De Processos Pedagógicos e
Tecnologias Digitais. Sou pesquisadora. Orientadora de TC. De Iniciação científica. De mestrado.
Escrevo artigos e capítulos de livro. Planejo aulas. Reviso textos. Discuto ideias.
De algum modo isso tudo vive em mim em um caos harmonioso que me mantém alerta para
interromper violências, para defender a democracia e a justiça social, sim, pois também sou cidadã –
sou eleitora – e sonho esperançando freireanamente com um mundo melhor.
Como conciliar agendas e fazer tudo caber em minhas pautas acadêmicas, cidadãs e maternas?
Atuando para que as vozes não sejam silenciadas e que nossas corpas estejam integradas aos nossos
estudos, pois assim, marcamos nosso espaço e ocupamos o que é nosso por direito. Nem sempre dá
tempo para tudo! Mas para quem dá? Sigo priorizando o que me faz pulsar.

Estes entrelaces permitem argumentar sobre a conexão entre Educação linguística crítica e a
decolonialidade. Para Menezes de Souza (2021), devo me posicionar de forma crítica e reflexiva perante
as questões políticas e sociais, observando como as relações de poder se estabelecem a fim de
identificarmos, interrogarmos e interrompermos a colonialidade. Empreender esforços decoloniais na
construção de oportunidades outras de educação linguística crítica implica em me comprometer como

553
pesquisadora a agir. Agência esta que advém do modo como interajo com os estudos, com o que me
torno a partir deste movimento, como me vejo ao final de cada escrita. Para além, implica em me ver na
outra e a partir deste olhar desenvolver uma empatia ativista que me faz perceber que por aqui somos
vários ‘eus’.

REFERÊNCIAS
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: rizoma. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1, p. 11-37,
1995.
hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2000.
MENEZES DE SOUZA, L.M. Foreword. In: BOCK, Z.; STROUD, C (Eds.) Reclaiming Voice: Languages
and Decoloniality in Higher Education: reclaiming voices from the south. London, 2021.
MOREIRA, K. Praxiologias de educação linguística em tempos de pandemia: (des) construções e
ressignificações no projeto “English Mentoring”. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de
Goiás, Mestrado Interdisciplinar em Educação Linguagem e Tecnologias. Anápolis, GO: [s.n.], 2022.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2020.

554
ESCREVENDO COM O MARACÁ: UMA VISÃO COSMOLÓGICA DA MINHA DISSERTAÇÃO DE
MESTRADO

Núbia Batista da Silva- Nubiã Tupinambá.


Filha, neta, bisneta, tataraneta de Tupinambá da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, da região de Ilhéus, no Sul
da Bahia. Casada, tem uma filha. Doutoranda em Linguística pela Universidade de Brasília, membro da Associação
dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília-AAIUNB e do Conselho Indígena do Distrito Federal-CIDF.
Educadora, Pedagoga, Professora da Modalidade de Educação Escolar Indígena e Língua Tupinambá.
nubiatupy@gmail.com

Defendida em 2017, pelo PPGL/UnB, na minha dissertação de Mestrado pude investigar os


processos sociais e discursivos da presença de estudantes indígenas na Universidade de Brasília-UnB,
nos quais estou incluída, cujo título é “Identidades, vozes e presenças indígenas na UnB: sob a ótica da
Análise do Discurso Crítica”. Apresento, neste trabalho, um estudo fundamentado na Análise de Discurso
Crítica em que uso como metodologia epistêmica o diálogo com meu povo Tupinambá e meus parentes,
tendo como chão desse território a cosmovisão Tupi-guarani. E trato, entre outros aspectos, a narrativas
dos meus parentes referentes à discrepância entre a política de acesso dos estudantes indígenas à UnB
(desde 2004) e a política efetiva, com suas lacunas, voltada para a permanência desses alunos na
universidade.
Nas narrativas dos meus parentes fica evidente que o compromisso com o povo faz parte de uma
série de discursos motivadores que são mais marcantes, que dão origem à busca pelo ingresso no
ensino superior na UnB. Esse compromisso tem sua raiz na cosmovisão da existência da cada povo,
uma visão espiritual e de engajamento na luta por direitos constitucionais e direitos humanos. O fato de
escolherem a Universidade de Brasília tem a ver com o fato de o vestibular ser específico.
Esta pesquisa trata, portanto, de possibilidades, aberturas e diálogo em torno dessa
questão discursiva e social e também de constrangimentos, limitações e tensões acerca do
tema. O problema de pesquisa traz à tona os discursos dos indígenas sobre a invisibilidade
da presença de estudantes indígenas na graduação e na pós-graduação, somada a várias
formas de discriminações vividas nos espaços acadêmicos, que vão desde o
desconhecimento, até a não aceitação dessa presença na Universidade, especialmente no
que se refere a uma parcela da comunidade, passando pela falta de acesso aos benefícios
de incentivo à pesquisa, até o fato da desistência por parte dos estudantes de seus cursos.
Desse modo, é necessário compreender questões relativas às identidades, às vozes e às
presenças dos indígenas ingressos na UnB através do vestibular específico para os cursos
de graduação e processos seletivos específicos nos cursos de pós-graduação regulares.
(SILVA, 2017, p20)

Evidencio, nesta pesquisa qualitativa de base etnográfica crítica, a interação que se dará na
compreensão do processo de construção de troca de saberes e conhecimentos que se percebe no
percurso, e que são tecidas em redes sociais, políticas e econômicas, no contraponto da hegemonia
estabelecida pelos não indígenas. As análises realizadas apontam para passos possíveis nas práticas
discursivas e sociais das vivências acadêmicas, tendo uma consciência linguística crítica como uma
ponte capaz de estabelecer a troca, como diz o Mestre da Esperança:
[…] diálogo é uma exigência existencial. E, se é um encontro que se solidariza o refletir e
o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não
pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tão pouco

555
tornar-se simples troca, das ideias a serem consumidas pelos permutantes”. (FREIRE,
1987, p. 45)

Utilizar o maracá para escrever, como o título desse trabalho, exige, na verdade reescrever minha
dissertação. Mas essa reescrita estará diretamente ligada com a visão espiritual que nós, povos
originários, temos da vida. É colocar, desde o seu início, que a sua construção se deu primeiramente no
plano espiritual e, dessa forma, a nossa capacidade de resistência e insistir na permanência é além das
luas e embates físicos. Durante as narrativas, essa presença espiritual era marcada. Então, o maracá é
não só a materialização de um instrumento espiritual, ele move as forças espirituais que nos dão a vida.
É também dizer que esses passos dados por nós, povos originários no universo acadêmico, são
legitimados e assistidos pelos planos espirituais. Por isso é que:
Apresento nesta seção essa cosmovisão e o diálogo com os dados gerados para a
pesquisa, estabelecendo uma relação sobre as construções e conflitos de identidades dos
estudantes indígenas na universidade a partir desse foco, dessa lente, dessa mistura e
desse encontro de saberes. Essa também é uma forma que encontrei de, a partir da ótica
da transdisciplinaridade da ADC, transpor os limites até então tão distantes e fixos entre os
saberes dos povos tradicionais dessa terra e os saberes ocidentalizados de base colonial
que circulam de forma tão ‘arejada’, em detrimento do nosso ‘sufocamento’ dentro na esfera
da academia. (SILVA, 2017, p. 96)

PALAVRAS-CHAVE: cosmovisão discurso; identidades; vozes e presenças indígenas.

REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11ª Edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1987. P107.
SILVA, Núbia Batista. Identidades, vozes e presenças indígenas na Universidade de Brasília: sob a
ótica da Análise do Discurso Crítica. Dissertação de mestrado em linguista pela Universidade de
Brasília, 2017. P119
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Coleção para
um novo censo comum. 3ª Edição. São Paulo: Cortez, 2010.

556
NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE TRABALHADORES TERCEIRIZADOS DE UMA INSTITUIÇÃO
DE ENSINO TECNOLÓGICA

Juliana Azevedo Pacheco


Mestranda em Educação Tecnológica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.
Coordenadora do Programa de Extensão “A escrita de si”. julianapacheco@cefetmg.br

Este trabalho deriva-se da minha dissertação de mestrado, que tem como premissa analisar as
narrativas autobiográficas publicadas no livro “Narrativas de vida dos trabalhadores terceirizados do
Cefet-Mg”. Tal livro é o resultado do primeiro ano do Programa de Extensão “A escrita de si como
instrumento de visibilidade para os trabalhadores terceirizados do Cefet – MG”. O Programa A Escrita de
Si constitui-se como uma iniciativa filiada às concepções de educação como prática da liberdade (hooks,
2017) e centra-se em narrativas de vida como parte de práticas de letramento crítico para os
trabalhadores. No Programa, essas pessoas vivenciam um ambiente onde o aprendizado formal vem
atrelado a debates que proporcionam pensar sobre a própria realidade, sobre o trabalho e sobre as
relações sociais, em uma articulação entre a leitura da palavra e a leitura do mundo (PACHECO;
CESTARI; CLAUDINO, 2020).
Como metodologia de análise utilizarei a pesquisa autobiográfica. Tal tipo de pesquisa tem sido
amplamente utilizado em processos de formação docente e, no caso deste trabalho, o foco são os
sujeitos que tiveram seus processos formativos interrompidos. A pesquisa autobiográfica oportuniza aos
sujeitos (re)construírem sua trajetória pessoal de vida, atribuindo sentidos e buscando compreender o
que foi formador. Pesquisas na Educação, que têm como eixo central as narrativas de vida, possibilitam
acessar as informações relevantes a partir das perspectivas dos sujeitos e, assim, evidenciam os
sentidos que eles atribuem para suas vivências.
Apresento abaixo os trechos que citam o programa Escrita de Si, relacionando-os às
possibilidades de reeinscrição da existência em um novo projeto de vida

Trabalhadora Relatos

Depois de tantos anos longe da escola, através do projeto “A escrita de si”, tive a
oportunidade de terminar o Ensino Fundamental, conciliando os estudos com o
Claudete Da Silva trabalho. Sou grata por tudo e espero ir mais longe, concluir o Ensino Médio e me
formar fiscal de vigilância sanitária. Este é o meu sonho: levantar, com muito orgulho,
um canudo com o meu diploma!

Quando eu fiquei sabendo do projeto “A escrita de si”, fiquei muito feliz. Eu tinha
Cláudia Aparecida Dos certeza de que algo ia ser acrescentado na minha vida, como está acontecendo.
Santos Então, a cada vez que eu saio da aula e que retorno para minha casa, vou com meu
coração cheio. Eu tenho aprendido muito!

Ediléia Oliveira Pinto Continuo estudando. Participo do projeto “A escrita de si”, promovido pelo CEFET-MG,

557
e fiz a prova do Encceja, para concluir o Ensino Fundamental.

Elizabeth Das Graças Penso em estudar mais e aprender tudo o que deixei para trás. Antes só sabia assinar
Coelho o nome. Eu quero aprender agora, com essa oportunidade do projeto “A escrita de si”.

Joelita Francisca Da No começo, eu não queria participar das aulas do projeto “A escrita de si”. Mas fui e
Cruz gostei. Voltei a estudar. Agora estou na EJA à noite, no primeiro ciclo.

Eu acredito que o programa “A escrita de si” é um incentivo, uma semente que vai
germinando no coração de cada um, que se sente acolhido, se sente reconhecido,
Julimar Rodrigues Dos como se alguém estivesse olhando por todos nós, preocupados com o nosso
Santos crescimento, com o nosso aprendizado. Trabalho no CEFET-MG há oito anos: esse
curso melhorou o ambiente. Os funcionários achavam que o CEFET-MG não os via, e,
quando o curso veio, todos se sentiram envolvidos, foi como um afago, um carinho.

O programa “A escrita de si” tem incentivado a todos nós. Por causa desse projeto,
Lidiana Marques
estou tendo interesse em fazer alguns cursos, como o de cuidador de idoso e o de
Aniceto
segurança.

Estou feliz de ter voltado a estudar, essa oportunidade, oferecida pelo programa “A
Onofre Lopes Da Costa
escrita de si”, que não tive no passado, quero agarrá-la de braços abertos.

Quanto ao projeto “A escrita de si”, o acho maravilhoso, eu admiro muito a equipe e


acho que a gente não está correspondendo tanto à dedicação que a equipe tem com
Patrícia Isabel Oliveira
a gente. O projeto tem ajudado a despertar meu interesse pela leitura, tem me
Niles
ajudado a procurar ouvir mais e falar menos. Agradeço a todos por se interessarem
em nos ensinar.

É ótimo aprender tudo o que tinha esquecido, até fiz o Encceja, meu Deus! Achei que
Vânia Antunes eu estava apostando muito, mas, no final, deu certo, passei e fiquei feliz, muito feliz,
agora é continuar.

Quando entrei aqui no CEFET, fiquei sabendo do projeto “A escrita de si”, a princípio
fiquei curiosa em saber, conhecer o curso. Quando comecei, gostei muito, minha
Vera Lúcia Dos Reis
vontade de voltar a estudar foi ficando mais forte, meus sonhos e objetivos de
adolescência, que estavam adormecidos, se reacenderam.

Agradeço essa oportunidade a todos os colaboradores do projeto “A escrita de si”.


Vera Lucia Lopes Dos
Porque é muito triste não saber escrever, marcar com o dedo, porque, na minha
Santos
turma, tinha gente que não sabia nem escrever o nome.

Dentre os trechos selecionados destaco expressões recorrentes como “grata”, “agradeço”,


“gratificante”, “vontade”, “oportunidade”, “interesse” e “feliz”. Adiante analiso os sentidos que podem ser
atribuídos a elas.

558
Entendemos que ao possibilitar o retorno destes sujeitos à sala de aula e os deslocarmos,
momentaneamente, do lugar de trabalhadores para o lugar de estudantes, somos tidos como aqueles
que merecem ser agradecidos por oferecer essa oportunidade.
Não se trata de um heroísmo de servidores públicos bem-intencionados, mas sim de uma ação
pautada em um outro olhar sobre o papel da escola, elaborada por cidadãos que possuem acessos
facilitados pela posição que ocupam. Nesse sentido, a recorrência do termo oportunidade faz sentido ao
entender que foi negada a esses alunos a possibilidade de permanecer estudando, mesmo atuando por
anos em uma instituição de ensino.
A fala de Julimar, encarregado da empresa terceirizada e que tem o papel de chefe desses
trabalhadores, exemplifica essa falta de oportunidade ao afirmar que, em oito anos de instituição, é a
primeira vez que estão sendo vistos. É possível concluir por essa fala que por anos eles foram invisíveis
diante das ações promovidas pela escola. Ao serem contemplados por um projeto exclusivo, contínuo e
que tem a educação como proposta, foi possível despertar neles o sentimento de valorização, essencial
no processo de empoderamento de si.
Podemos observar, também, que foram recorrentes a vontade e o interesse em prosseguir com
os estudos após iniciarem no projeto, num movimento que para alguns extrapolou o espaço do Escrita
de Si. Ao informarem que fizeram a prova do Encceja, que se matricularam na EJA, que terminaram o
ensino fundamental, que estão interessadas em outros cursos ou até mesmo que querem continuar
estudando, podemos compreender que o projeto proporcionou possibilidades de reeinscrição da
existência em um novo projeto de vida.
Concluo esse resumo refletindo sobre como a articulação da educação não formal com a
educação formal é capaz de viabilizar mudanças expressivas na educação e na sociedade como um
todo. Finalizo citando Paulo Freire (1967): são as circunstâncias históricas que separam aqueles que
sabem e aqueles que não sabem, da mesma maneira que separam a elite do povo, e essa conjuntura
não só pode como deve ser modificada.

PALAVRAS-CHAVE: narrativas autobiográficas; trabalhadores terceirizados; visibilidade.

REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
CESTARI, Mariana; PACHECO, Juliana; CLAUDINO, Emilly. A escrita de si: uma proposta de educação
antirracista. Anais do IX COPENE, 2021.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
PACHECO, Juliana; NUNES, Nelson (org). Narrativas de vida dos trabalhadores terceirizados do
CEFET-MG. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2020.

559
O QUE HÁ DEBAIXO DOS CALOS DE MINHAS MÃOS?

Edinéia Alves Cruz


Mestra em Administração, especialista em Supervisão Escolar, graduada em Pedagogia, Letras e Artes Visuais.
Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Supervisora pedagógica da Escola Parque da
Natureza de Brazlândia - EPNBraz. Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Educação, Cultura & Arte –
Labeca (UnB/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Educação Crítica e Autoria Criativa (UnB/CNPq) – GECRIA. Aprecia
aprender sobre pedagogias engajadas, autoria criativa, análise do discurso crítica, educação do campo, gestão
educacional. edineia.alves.cruz13@gmail.com

Reconheço-me afetada pelo processo de saber-me. Curiosa de nascença, sou professora em


exercício desde os meus 18 anos e, por paixão, desde os três ou quarto. Ainda não sei muita coisa da
vida, mas venho me educando para desconfiar das normalidades cotidianas. Assim, vou nutrindo a
consciência com que me escrevo, leio e reescrevo, no mundo e com o mundo.
Tentando persistentemente não ser mais do mesmo enquanto professora, decidi adotar como
princípio de vida ser aprendiz de todas as pessoas, contextos e circunstâncias com que puder ter
contato. E a vida tem sido generosa comigo. De espanto a encanto, sigo aprendendo. O que nem
comecei a aprender foi a silenciar as inquietações que as relações de poder naturalizadas no cotidiano
me provocam desde que minha memória alcança. Apenas em 2020, como cursista do Programa
Mulheres Inspiradoras (SEEDF), imersa numa proposta educativa decolonial, crítica e insurgente, fui
despertada para o entendimento disso.
A consciência, nesse sentido, foi tomando corpo com o engajamento na Educação do Campo.
Não só inserção, engajamento viabilizado pelos diálogos no Programa Escola da Terra
(UnB/MEC/SEEDF) e pelo acolhimento no Laboratório Interdisciplinar de Educação, Cultura & Arte -
LABECA (UnB/CNPq). Nessa trajetória intensa de reconhecer-me, integrar o Grupo de Pesquisa
Educação Crítica e Autoria Criativa – GECRIA (UnB/CNPq), mostrou-me que a minha escrita, que
sempre me abraçou com todo o meu excesso de sentir e se fez bússola em tentativas incessantes de me
situar no mundo, é meu par de asas. De lá para cá, a cada voz colonizadora que insinua que gente preta
com cheiro ancestral de terra nas mãos como eu só tem lugar nas margens da sociedade, há uma voz
macia que me sussurra por dentro: –Você pode voar! Coragem!
Assim, decidi acolher-me como sujeito em perene transformação em minha história de vida e
aprendi a respeitá-la de fato. Fui tomada pela necessidade de me olhar de dentro para fora, para me
enxergar como corpo negro atravessado por uma sociedade sustentada em bases de racionalidade
colonizadora, desanuviar meus olhares em direção ao aprender, ao agir e ao sentir e me atrever a imergir
na escrita de mim, na universidade, por meio da pesquisa do cotidiano no contexto que me tem como
agente de transformação, integrando comunidades de mudanças em construção, como propõem Dias e
Ribeiro (2021).
A Figura 1, a seguir, é uma colagem que criei recentemente, refletindo sobre quem sou eu no
mundo. Ela ilustra esse processo de conscientização, permeado de inquietações e sentidos ancestrais.

560
Figura 1 – “Fragmentos Eu Mundo”. Fonte: Autoria própria, 2022.

Ainda que eu tenha passado apenas uma parte da infância na roça, sendo neta, filha e sobrinha
de pessoas que têm os significados de suas existências enraizados no trabalho de cultivo da terra, tenho
com ela uma relação de intimidade e reverência que me sustenta em trajetórias pessoais e profissionais.
Tendo sangue tingido de descendências africanas, indígenas e europeias. Compreendo a cada dia o que
carrego genética e historicamente de cada raiz. Por isso, reforço cotidianamente a defesa da
circularidade das relações, para que todas as pessoas possam ver seus pares e serem vistas por eles,
por inteiro em pé de igualdade, na perspectiva das humanidades e do direito de exercê-las.
Nesse sentido, compreendo a Educação do Campo como postura necessária à transformação da
sociedade por meio da valorização de pessoas que são comumente postas à margem dela,
condicionadas à subserviência silenciosa e à naturalização da opressão. Defendo essa Educação porque
sei que minha ancestralidade sonhou com ela, enquanto regou muitos lucros na terra com seu suor, sem
poder usufruir deles de forma justa. Desejo viver o tempo em que ninguém mais passe a vida como
refém da necessidade de subsistência da família.

561
Tateando minha identidade, então, pelo lado de dentro, venho conhecendo os calos que se
formaram em minhas mãos, no processo de tornar-me quem sou nas interações com as pessoas que, de
alguma forma, vêm me atravessando com seus modos de ser gente. Percebendo-me objetificada num
padrão bem aceito de atuação profissional, no universo neoliberal, quebrei, com o coração sorrindo, a
promessa feita após o mestrado, de encerrar a vida acadêmica. Decidi procurar fomento para outros
processos de conscientização, lançando-me em voo na direção do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília.
Com a necessidade de saber-me um pouco mais a cada dia, anseio imergir numa pesquisa-vida
etnográfica crítica de doutoramento, na linha de pesquisa Linguagem e Ensino, com o título “Análise do
Discurso Crítica e Educação do Campo: o que há debaixo dos calos de nossas mãos?” Dessa forma,
acalentada pela desconfiança de que minhas palavras não são só minhas e de que meus sonhos
também não são só meus, aceito, entusiasmada, o desafio trazido por Giroux (1997), inspirado nos
ensinamentos de Paulo Freire, de me reassumir professora pesquisadora, construtora de
(auto)conhecimento em comunhão e comunidade com meus pares, exercitando escritas insurgentes,
inclusive, de nós.
Há, ainda, um atravessamento que merece ser considerado nestes encaminhamentos, que têm
mais de abertura do que de conclusão: passei tantos anos da minha vida escrevendo para outras
pessoas assinarem, sendo convencida de que aquilo era suficiente, de que aquele era meu lugar, que
estou, ao longo do processo de seleção para o doutorado, aprendendo a ser mais gentil comigo e a
acreditar no potencial de minhas inquietações e autoria, como agente de uma educação emancipadora.
Isso sinaliza que a Universidade também é lugar de cura.

PALAVRAS-CHAVE: trajetória; conscientização; identidade; educação crítica; escrita de si.

REFERÊNCIAS
DIAS, Juliana de Freitas e RIBEIRO, Djonatan Kaic (2021). “Comunidades de mudanças: abraçando
mudanças de sentir, pensar e agir em pesquisa social”, in: DIAS, Juliana de Freitas (org.) No espelho da
linguagem: diálogos criativos e afetivos para o futuro. São Paulo: Pimenta Cultural, pp. 83-118.
GIROUX, Henry A. (1988[1997]). Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem. Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas.

562
COMUNIDADE DE MUDANÇAS EM PESQUISA E CRÍTICA SOCIAL

Djonatan Kaic Ribeiro de Souza


Professor do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília e Doutorando em Política Social
(PPGPS/UnB). kaicribe@gmail.com

O objetivo dessa comunicação é apresentar o histórico de desenvolvimento do projeto


“Comunidades de Mudanças”. Esse projeto é uma articulação elaborada entre eu, o sujeito que narra
essa história, e a professora Juliana de Freitas Dias 94. Esse projeto se faz “em torno das pesquisas
sociais em humanidades, a partir de novas formas de pensar, de agir e de sentir nos percursos
acadêmicos decoloniais” (RIBEIRO; DIAS, 2021, p. 84). “Comunidade de Mudanças” é um constructo
teórico-prático, de cariz decolonial, que visa pensar, sentir e agir em pesquisa e critica social, visando
superar posições binárias e dicotimicas sobre sujeito-objeto e oprimido-opressor.
O ponto de vista que nos interessa nessa abordagem parte de uma perspectiva ontológica
de base humanista-universalista: (i) no movimento decolonialista das teorias educacionais
de bell hooks (2013), Lugones ( 2014), Anzaldúa (2005 [1987]), Santos (2010) e de Paulo
Freire (2012 [1968]); (ii) nos saberes construídos coletivamente por docentes
pesquisadoras/es sociais críticas/os em sua atuação e reflexão no Programa Mulheres
Inspiradoras, uma política pública da Secretaria de Educação do Distrito Federal, com
foco transformacional em torno de questões interseccionais de raça-classe-gênero nas
escolas (Albuquerque, 2020; Queiroz e Dias, 2019; Dias, 2020); (iii) nas ideias das
pesquisadoras e docentes da Universidade de Brasília, Viviane Vieira e Juliana Dias
(2016), materializadas em um ensaio sobre novas perspectivas ontológicas e
epistemológicas para os estudos críticos de discurso como a filosofia perene (Guenon,
Trad. 2010) e a Antroposofia (Steiner, 2000 [1918] e 2004 [1886]); e, por fim, (iv) nos
diálogos propostos por pensadores indígenas brasileiros e latino americanos (Krenak,
2020; Kopenawa e Albert, 2015, Acosta, 2016) sobre a filosofia do bem viver e pela
africana Sobonfu Somé (2007) sobre o espírito da intimidade (RIBEIRO, DIAS, 2021,
p.84).

Esse projeto não visa ser um “grupo de pesquisa”, mas sim uma forma de fazer pesquisa e reunir
pesquisadores, em torno de comunidades de mudanças. Esse projeto é fruto de uma gama de
inquientações, oriundas de como nos reunir com nossas singularidades em comunidades? Uma
comunidade só se formará com todos pensando igual? Como agir, quando alguma “demanda” nos
atravessa em comunidade? Aqui a preocupação era central para pensar: como grupos compostos por
homens e mulheres, negros e brancos, pobres e ricos, conseguiriam conviver e confluir em
“comunidade”?
Esse projeto, começou em 2019 com a roda de conversa “Espiritualidade, Amor e relações
sociais”, na Semana Universitária (UnB). Essa conversa, entendia espiritualdiade como um conjunto
simbólico de forças extra-fisicas que nos auxiliam, a transcedência. O amor foi evocado como uma chave
teórico-política de transformação. Não um sentimento neutro ou romantizado. Mas uma prática, insipirado
principalmente na “Carta da Cadeia de Birmingham” de Martin Luther King; e marcado pelas prosas
dos amigos espirituais da Fraternidade Txai – Umbanda Universalista Franscicana. Aqui

94 Professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB e coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação Crítica
e Autoria Criativa (GECRIACNPq/PPGL-UnB).

563
evocamos a possibilidade de pensar as relações sociais por uma matriz amorosa e
compromissada com a transformação social.
Em 2020, começamos, avançamos, inspirados nas experiências do Grupo Gecria/UnB, Grupo de
Pesquisa Educação Crítica e Autoria Criativa, e nas inquietações junto ao desenvolvimento da minha
tese de doutoramento, questões referentes aos aspectos metodológicos, epistêmicos e ontológicos da
pesquisa social95. Assim, começamos a reflexão sobre como pensar em práticas de pesquisas que sejam
decolonais? Aqui, falamos não só da teoria, mas a própria “metodologia” da pesquisa social. Na Semana
Universitária de 2020, realizamos uma roda de conversa virtual, intitulada 96 “Abraçando mudanças de
pensar e agir: roda reflexiva sobre pesquisa social97”, na qual tive o prazer de dividir o espaço junto a
Gina Albuquerque98, a qual trouxe a história do Projeto Mulheres Inspiradoras 99. Nesse texto, chegamos
a algumas categorias bastante importante para nós: comunidades de mudanças, pós-conflito e
sensibilidade epistêmica.
Chegar a esses conceitos foi um processo teórico-prático, de sintetizar e dar significado aos
conflitos que vivíamos nos pleitos das nossas pesquisas e convívio com as relações de poder e
desigualdades, presentes não somente nos “objetos de pesquisa”, mas no próprio ato de fazer e viver a
pesquisa em forma de comunidades.
O pós-conflito exige um passo corajoso de “um verdadeiro reconhecimento das diferenças
[e do poder] – determinadas pela classe social, pela raça, pela prática [orientação sexual],
pela nacionalidade e por aí afora” (hooks, 2013, p. 20). É uma prática humana que
reconhece a necessidade das agendas críticas, mas que transpassa suas fronteiras e se
esforça na prática libertária da superação do poder como dominação, produzindo a
alteridade frente aos sistemas de opressão e de suas elaborações cotidianas da
socialização das diferenças. Exige-se um esforço coletivo de “mudar não só nossos
paradigmas, mas também o modo como pensamos, escrevemos e falamos” (hooks, 2013,
p.22). É uma forma de lidar com o conflito sem medo, de forma a “encontrar meios de usá-
lo como catalisador para uma nova maneira de pensar, para o crescimento” (hooks, 2013,
p.154) (RIBEIRO, DIAS, 2021, p.95-96).

Afinal, como construir comunidades sem encarar os desafios da colonialidade, atravessando nossas
formas de exteriorização no mundo. Uma comunidade de mudanças não pode fugir do compromisso de
transformação das pedagogias coloniais de subsunção da convivência, pela pedagogia da opressão.
Uma comunidade de mudança que expresse o pós-conflito deve fazer um esforço
consciente de arrancar aquele ‘pedaço de opressor’ que está plantado profundamente em
cada uma de nós (COLLINS, 2015, p. 15 e 39) e construir uma nova visão engendrada e
imbricada sobre opressões e indivíduos sociais (RIBEIRO, DIAS, 2021, p.104).

Isso, também, precisa se expressar no trato com nossos “objetos de pesquisa”. Por isso, como
forma de desconstrução da lógica sujeito-objeto, que opera, em muitos momentos, a lógica colonial do

95 O estudo defende que a heterossexualidade se organiza nas relações sociais, a partir da lógica do estranhamento. Categoria
desenvolvida por Georg Lukács.
96 Essa atividade aconteceu em forma remota, devido à Pandemia da Covid-19.
97 https://www.youtube.com/watch?v=3OWkUetQ3K0&t=5676s – “DEX | 23/09 - Quarta: “Abraçando mudanças de pensar e
agir: roda reflexiva sobre pesquisa social”.
98 Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal e Mestre em Linguística pela UnB.
99 “O Projeto Mulheres Inspiradoras abre espaço para a ancestralidade que cada aluno carrega quando propõe a escrita das
biografias das mulheres da comunidade acadêmica, com base na seguinte questão: ‘Quem é(foi) a mulher inspiradora em
sua vida?’. Ao nos prendermos em um viés científico que deixou de lado a primazia do que não é material, do que não é
palpável pelos sentidos físicos, do que não é quantificável, abrimos mão desses saberes profundamente conectados às
humanidades; abrimos mão dos saberes ligados à criatividade, à ancestralidade e ao poder dos rituais coletivos”
(ALBUQUERQUE, 2018, p. 8).

564
oppressor-oprimido, apostamos na sensibilidade enquanto epistemologia para superação das
relações de poder.
Sensibilidade tem a ver com os sentidos humanos presentes em nossa materialidade.
Como nos ensina hooks (2013, p. 85) a teoria pode ser um lugar de cura a depender da
direção que damos a ela. Pode ser tanto curativa, libertadora e revolucionária quanto,
mesquinha, aprisionadora e dolorosa. O “processo de teorização” deve vir com a busca
pela “libertação”. Por isso é preciso romper com uma teoria/metodologias
instrumentalizadoras e avançarmos para uma teoria sensível (RIBEIRO, DIAS, 2021, p.
107).

A sensibilidade epistêmica é romper com a pretensa neutralidade cientifíca, do neopositivismo, do


masculinismo, da branquitude. É romper com a compreensão de que pesquisar é entrar em contato com
a realidade e suas veias abertas, pulsando.
A sensibilidade é uma aposta na quebra nas relações de poder (BARBOSA e outros,
2016). Por isso, ela é um componente de uma comunidade de mudança pois é “uma
ferramenta de reconhecimento do outro enquanto sujeito e o reconhecimento de si como
agente capaz de modificar o panorama social que está envolvido [pesquisando]”
(BARBOSA, et. al. 2016, p. 89). Ao romper com as barreiras interpessoais, frutos de uma
“aculturação fundada na noção moderna de ser humano racional, desigual de gênero
[raça, cosmovisão, sexualidade] e na lógica mercadológico e concorrencial” (BARBOSA,
et. al. 2016, p. 89). (RIBEIRO, DIAS, 2021, p.112)

A partir desse momento, esse projeto, “Comunidade de Mudanças”, foi ganhando substâncias.
Desse encontro, em 2020, começamos a escrever um artigo. Diversas trocas de leituras, textos,
conversas. O texto foi sendo costurado por quatro mãos. Numa alinhavo epistêmico, ontológico e
metodológico que visava dar pontos largos em abismos, ditos, inconciáliveis. Combinando bell hooks,
Aiton Krenak e Rudolf Steiner e outras/os/es, naquilo que longe de ser uma “Comunidade imaginável”
representava as formas pelas quais buscávamos chegar em novas sínteses. Esse artigo é texto vivo
pulsante de um caminho novo a ser feito e construido, de encontros e conversas, de prosas e versos.
Em 2021, realizamos um Minicurso, baseado no artigo que, ainda no prelo, foi divulgado. No
primeiro dia, nos dedicamos a refletir sobre o aspecto da pesquisa social, da metodologia; e, no segundo
dia, dialogamos sobre o debate das identidades e do que chamamos de pós-conflito. No final desse ano,
o texto foi lançado com o título “Comunidades de Mudanças: abraçando mudanças de sentir, pensar e
agir em pesquisa social crítica” e faz parte do livro “No espelho da linguagem: diálogos criativos e
afetivos para o futuro100” que celebra os doze anos de docência da professora Juliana de Freitas Dias.
No ano de 2022, montamos uma Mesa Redonda na Semana Universitária 2022. Após o
lançamento do livro "No Espelho da Linguagem: diálogos criativos e afetivos para o futuro", no qual
sintetizamos as reflexões das outras três atividades anteriores realizadas (2019, 2020 e 2021),
convidamos colegas que foram influências e inspirações para as atividades anteriores e para a produção
do artigo, e que, além disso, dialogam e buscam a construção de diversas formas de comunidades de
mudanças. Convidamos Gina Alburquerque, que trouxe uma refexão sobre “Comunidades de mudanças
e educação”, Leonardo Ortegal101, para falar sobre “metodologias, ontologias e pesquisas sociais”, Katia
Torres102, para dialogar sobre “Comunidades e conflitos”, Thereza Raquel 103, abordando o tema das

100 Link para download https://www.pimentacultural.com/livro/espelho-linguagem.


101 Professor do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB.
102 É analista do ICMBio e professora junto ao Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
103 Psicóloga Analítica e Pós-Graduada em Psicologia Analítica Junguiana.

565
“Identidades e conflitos de poder”. A proposta aceita pelos convidados foi de, depois da leitura do artigo,
os convidados falarem a partir do texto sobre os temas designados a cada uma.
Partindo desse histórico, o objetivo da intervenção no “Conversatório 10 - Autoria criativa,
educação e consciência linguística: estudos críticos do discurso” é apresentar o histórico do projeto
“Comunidades de Mudanças em Pesquisa e Crítica Social”, destacando, em primeiro momento, sua
historicidade e, em segundo momento, suas principais categorias teóricas-acadêmicas.

PALAVRAS-CHAVE: Comunidades de Mudanças; pesquisa social; crítica social; decolonialidade; poder.

REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Djonatan Kaic; DIAS, Juliana de Freitas. Comunidades de Mudanças: Abraçando Mudanças de
Sentir, Pensar e Agir em Pesquisa Social Crítica. In: No espelho da linguagem: dialogos criativos e
afetivos para o futuro. Juliana de Freitas Dias - organizadora. São Paulo: Pimenta Cultural, 2021.
ALBURQUE, Gina; DIAS, Juliana. Carta a uma professora: “não quero ser invisível, quero ser
professora”. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 19 (3), 2018.

566
O DESPERTAR DA ESCRITA CRIATIVA AUTORAL DE PROFESSORES DURANTE UM CURSO DO
GECRIA

Mariane da Silva Soares


Licenciada em Letras – Português do Brasil como Segunda Língua (PBSL) e bacharel em Ciência Política.
Atualmente, cursa a dupla diplomação em Letras – Língua Portuguesa e Respectiva Literatura pela Universidade de
Brasília (UnB) e participa do grupo de pesquisa Educação Crítica e Autoria Criativa (GECRIA) do Instituto de Letras
da UnB. mdssoares20@gmail.com

Introdução

A saúde mental de professores/as era um tema recorrente antes da pandemia da Covid-19 e


intensificou-se durante esse período. Como exemplo, temos a pesquisa “A dor da gente”, parceria do
Sindicato dos Professores do Distrito Federal (SINPRO-DF) com o Laboratório de Psicodinâmica e
Clínica do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB), [...] que mapeou dados sobre o sofrimento dos
professores na relação deles com a gestão da escola e da SEEDF e identificou motivos de afastamento e
problemas de saúde dos profissionais da educação 104. Além disso, essa pesquisa foi tema de audiência
pública na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) no ano de 2020.
Por essa razão, pensar em alternativas para a promoção da cura de professores/as torna-se
necessário, e práticas como um curso de escrita criativa promovem um espaço de acolhimento,
pertencimento e descobertas, que permitem ao docente encontrar caminhos alternativos para o cotidiano
da vivência escolar.
Portanto, o objetivo geral desta pesquisa foi contribuir com os estudos do grupo de pesquisa
Educação Crítica e Autoria Criativa (GECRIA-CNPq/PPGL-UnB) no que tange a sua atuação com a
Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Além disso, os objetivos específicos foram: i)
relatar a experiência como tutora de um curso de Escrita Criativa Autoral para professores/as (em sua
maioria da educação básica do DF); ii) compreender como o curso de escrita criativa autoral do GECRIA
para professores/as contribuiu para as mudanças de perspectivas sobre a escrita na atuação docente e
para a saúde mental; iii) refletir sobre a base teórica da escrita criativa e contrastar com a temática do
trabalho; e iv) analisar como a experiência dos professores com o curso do GECRIA possibilitou a autoria
e outras descobertas dos docentes.

Metodologia

A pesquisa foi pautada na metodologia descritiva analítica qualitativa, com a observação das
aulas de escrita criativa para os/as professores/as, produção de questionário com perguntas abertas para
os/as docentes participantes do curso, bem como a análise dos textos produzidos por eles/as, com base
na estilística e na metodologia ativa da fenomenologia de Goethe e Steiner (2008 apud DIAS et al., no

104 https://www.sinprodf.org.br/a-dor-da-gente-torna-se-tema-de-audiencia-publica-na-cldf-desta-quinta-17/

567
prelo). Além disso, foi necessário participar de cursos do GECRIA e elaborar um diário de campo com
anotações sobre o processo dessa vivência com a escrita criativa.
O curso do GECRIA de escrita criativa para professores/as foi organizado da seguinte forma:
Tabela 1 – Organização do curso de Escrita Criativa para professores/as

CURSO DE ESCRITA CRIATIVA PARA PROFESSORES/AS

DIA ASSUNTOS

26/08/2021 - Escrita criativa: dinâmicas de desbloqueio Desbloqueio da escrita;

Intuição (linguagem);
02/09/2021 - Sequência Didática 1
Princípios da escrita;

09/09/2021 - Sequência Didática 2 Poesia;

16/09/2021 - Sequência Didática 3 Narração, descrição, digressão e diálogo;

23/09/2021 - Metodologia de reescritas Reescrita.

Fonte: elaborado pela autora.


Resultados

Os/as docentes que participaram do curso de escrita criativa organizado pelo GECRIA
(CNPq/PPGL-UnB) tiveram a oportunidade de vivenciar uma “comunidade de escrita”. Os/as
professores/as deviam postar suas produções textuais no Word compartilhável da plataforma online
Google, reescrever seu texto e sugerir melhorias nos textos dos/as colegas. Além disso, no dia do curso,
os/as docentes compartilhavam oralmente as suas escritas, como momento de partilha autoral.
Após as observações, a análise dos textos produzidos pelos/as professores/as e leitura das
respostas do questionário, foi possível constatar que o curso atingiu o seu objetivo, rompendo
paradigmas e formando novos escritores de escrita criativa. Na resposta de uma das perguntas do
questionário, os/as educadores/as disseram que tiveram as melhores expectativas em relação ao curso,
como ter motivações para escrever, aprender técnicas de escrita, obter dicas de escrita, aprender novas
metodologias, conhecer estratégias para trabalhar a leitura e escrita com alunos/as e poder utilizar a
escrita de uma forma mais interessante.
As perguntas do questionário foram as seguintes:
Tabela 2 – Perguntas para os/as professores/as

1. Como foi ser professor(a) durante a pandemia?

2. Quais mudanças a pandemia trouxe para a sua vivência como professor(a)?

3. O que te motivou a realizar um curso de escrita criativa durante a pandemia?

4. Se não tivéssemos em pandemia, você realizaria um curso de escrita criativa?

5. Quais eram as suas expectativas antes do curso de escrita criativa

568
6. Para você, o que é escrita criativa?

7. Qual a importância da escrita na sua vida como professor?

8. Qual a importância da leitura na sua vida como professor?

9. Como você trabalhava a escrita de seus alunos em sala de aula?

10. O curso do GECRIA contribuiu para alguma mudança de perspectiva sobre a escrita?

11. Como você pretende aplicar as dinâmicas do GECRIA em sala de aula?

12. De que forma o curso do GECRIA contribuiu para a sua saúde mental e profissional?

Fonte: elaborado pela autora.


Conclusão

Com os relatos dos/as docentes, verificou-se que o curso foi fundamental para mudanças de
perspectivas e abordagens para com a escrita. Sem dúvidas, após a experiência, os/as professores/as
considerarão a escrita como importante fonte de aprendizado e, mais ainda, como teoria de cura e
reconhecimento de personalidade. Sendo assim, a escrita criativa autoral é teoria de cura, mudanças
pessoais e redescobrimentos do “eu” interior.

REFERÊNCIAS
DIAS, Juliana de Freitas et al. (no prelo). Escrita criativa autoral e estilística da língua portuguesa.

569
MICRORRESISTÊNCIAS COTIDIANAS: COLAGEM E ESCRITA CRIATIVA COMO FORMAS
INSURGENTEMENTE POÉTICAS DE HABITAR O MUNDO

Paula Gomes
Eterna aprendiz, sou filha de Geraldo e de Beatriz. Graduada em Direito, pela Faculdade de Direito de Ipatinga,
com especialização em Direito Civil, pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Atualmente, sou mestranda pelo
Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília e discente do curso de Licenciatura em
Letras Português e respectivas literaturas, pela mesma universidade. Faço parte do Grupo de Pesquisa Educação
Crítica e Autoria Criativa (GECRIA – UnB/CNPQ). Artesã de linguagens insurgentes, trabalho com técnicas manuais
que transitam entre colagem, bordado e tantas outras. Desenvolvo pesquisa que investiga a relação entre a autoria
criativa e seus atravessamentos pelos Estudos Críticos do Discurso na Educação. paulagomes.adv.mg@gmail.com

Primeiras palavras

O presente trabalho é parto gerúndio. De parir e de partir, porque enquanto o vou parindo,
também me vou partindo em caminhos que vão nascendo de um acordo diário com o tempo. E, apesar
de soar individualíssimo, há, nesse lugar tão íntimo, algo demasiadamente coletivo.
Nesse instante, paro um pouquinho e bebo um gole de café. Esta pequena sorvedura é capaz de
estrelar o céu de minha boca. Tamanha a potência do intervalo: enxergar abundância no refugo, no
pouco e fazer o que nos é possível.
Então, eu peço licença aos superlativos e deixo um bocado de esperança entre os dedos. Não
haverei de lavar as minhas mãos. E bem sei que as flores não apagam o sangue dos jornais. Mas eu as
levarei, cotidianamente, para casa.

Introdução

Como podemos conservar a capacidade de ler o mundo após lermos, quase perfeitamente, as
palavras? Parto do conceito de “palavramundo”, cunhado por Paulo Freire, para a proposição de
reflexões acerca das possibilidades de microrresistirmos cotidianamente através da colagem e da escrita
criativa como formas insurgentemente poéticas de habitar o mundo. O presente trabalho respalda-se na
ontologia da trimembração do ser (Steiner), com foco no pensar-sentir-agir. Parte da epistemologia dos
Estudos Críticos do Discurso a fim de viabilizar a pesquisa-vida através do reconhecimento de
transaberes e resistências transgressivas (COROA; DIAS; LIMA, 2018) como instrumentos de
questionamento e combate ao apagamento da possibilidade da produção de sentidos de mundo do
indivíduo. Emerge ainda da investigação de práticas discursivo-identitárias germinadas em oficinas de
colagem e escrita criativa promovidas pelo Grupo de Pesquisa Educação Crítica e Autoria Criativa -
GECRIA UnB/CNPq, com foco na identidade pessoal, na identidade social e na identidade de agente de
mudança dos (as) participantes. Esta pesquisa pretende ainda investigar o potencial agentivo da
colagem e da escrita, sob o viés da autoria criativa, e seus atravessamentos pelos Estudos Críticos do
Discurso, como formas de microrresistências cotidianas, frente à alienação emocional e intelectual

570
produzida pela propagação de discursos hegemonicamente preparados que pretendem reduzir o ser
humano à engrenagem inanimada, desprovida de pensamento crítico e de afeto.

Movimento teórico-prático

O trabalho em questão desdobrou-se na realização de oficinas cujo objetivo principal traduziu-se


em suscitar nas/os participantes um olhar atento para o cotidiano, trazendo a colagem e a escrita criativa
como formas insurgentemente poéticas de habitar um mundo atravessado por ideologias
desumanizantes, oriundas de discursos hegemonicamente preparados. As oficinas foram construídas em
etapas (Escolher – Recortar – Acolher o acaso – Colar) que envolvem um movimento prático e
metodológico do trabalho, acompanhado pelas práticas de escrita criativa, bem como por diálogos
teóricos e transdisciplinares nascidos em construções nascidas em meu pensar-sentir-agir e, também,
desenvolvidas coletivamente no decorrer da construção do trabalho.
Dessa forma, a proposta não se limita à apresentação de técnicas propriamente ditas, mas, sim,
propõe uma forma de estar e perceber o mundo, um olhar cotidianamente transgressor e poético através
da colagem e da escrita, ambas sob a égide da autoria criativa e de seus gestos fundamentais, quais
sejam impulso, intuição e pulsação (DIAS, 2021). O projeto piloto nasceu do seguinte questionamento:
como podemos conservar a capacidade de ler o mundo depois de lermos, quase perfeitamente,
as palavras? A partir dessa questão inicial, dialogamos a respeito do fato de sermos seres em constante
processo, incompletos e de o quanto esse reconhecimento exige uma certa humildade ontológica e
epistemológica.
E, foi a partir dessa reflexão que emergiu a primeira dinâmica de escrita, onde as participantes
deveriam escrever, sem parar, por sete minutos, procurando responder à seguinte pergunta: “qual é a
sua palavramundo?” Essa dinâmica reflete o primeiro gesto da autoria criativa, qual seja, o impulso. A
partir desse gesto trabalhamos o desbloqueio da escrita, tentando romper com o paradigma estrutural de
que o ato de escrever consiste em uma tarefa inalcançável, restrita aos detentores de algum dom
especial.
Nesse ponto, acho interessante abordar o viés democrático apresentado pela autoria criativa.
Para a escrita convencional, necessitamos da palavra. Ela é nossa matéria prima. Para a colagem,
papéis e/ou objetos outros resolvem bem. Na ausência de instrumento cortante, transformamos nossas
próprias mãos em tesouras habilmente capacitadas. Rasgamos papéis, palavras e, simultaneamente,
velhos dogmas, crenças cristalizadas. Questionar-se sobre a própria palavramundo traduz uma tentativa
de romper com classificações e valorações provenientes de um sistema epistemológico que afasta a
razão da emoção. É potente ver como, delicadamente, Paulo Freire trata a leitura do mundo e a leitura
da palavra como formas complementares de conhecimento (1989, p. 09):
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não
possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a
percepção das relações entre o texto e o contexto.

571
Após esta dinâmica, pedimos que cada uma/um guardasse a(s) sua(s) palavramundo(s). A partir daí, as
oficinas desenvolveram-se em quatro momentos: escolher, recortar, acolher o acaso e colar. Os verbos-
momentos apresentados referem-se tanto à colagem, como à escrita, servindo de base para a tecitura de
reflexões sentipensantes.

Figura 1– “Amolegar”. Colagem analógica, fio e contemplação sobre papel e tempo. Fonte: Paula Gomes, 2022.

PALAVRAS-CHAVE: microrresistências; cotidiano; autoria criativa; colagem; escrita criativa; Estudos


Críticos do Discurso.

REFERÊNCIAS
COROA M.L.M.S.; DIAS, J. F.; LIMA, S. C. Criar, resistir e transgredir: pedagogia crítica de projetos e
práticas de insurgências na educação e nos estudos da linguagem. Cadernos de Linguagem e
Sociedade, 19, n. 3, 2018.
DIAS, J.F (org.). Autoria criativa: por uma pedagogia da escrita criativa. São Paulo: Pontes, 2021.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coordenadora de tradução: Izabel Magalhães. Brasília:
Universidade de Brasília, 2001.
FREIRE, P. (1982 [1989]). A importância do ato de ler. 23. ed. São Paulo: Cortez. Disponível em:
https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf. Acesso em: 02 jun.
2022.
GOMES, P. Amolegar. Querida mão, 2022. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cc6JchkP5Ve/.
Acesso em: 29 out. 2022.

572
Conversatório 11

573
A discussão sobre caminhos e alternativas para enfrentar as violências e opressões que
atravessam os transcursos formativos de pessoas de orientações de gênero e de sexualidade distintas
da concepção binaria é primordial para garantir o direito à educação e a luta por equidade para pessoas
LGBTQIAPN+. Sabe-se que dentro dessa população as identidades mais violentadas são de pessoas
transsexuais e travestis, fato destacado nos relatórios nacionais e internacionais sobre a violência de
gênero. Em 2022, pelo 14º ano seguido, o Brasil foi o país com o maior número de assassinatos contra
transexuais. Contudo, as pessoas que desafiam o binarismo entre “homem/mulher” ou
“masculino/feminino” não possuem apenas como pautas a violência contra suas vidas, tampouco são
apenas objetos dessa lógica desumana. Afinal, esse grupo social exala amor, compaixão e desejo por
“esperançar” - como bem dizia Paulo Freire - por se unir e lutar em prol do conhecimento e respeito por
“outras” formas de ser e estar no mundo. Foi com este espírito que o Conversatório 11 acolheu os
trabalhos de companheiras e “manas” de diferentes partes do Brasil, que estiveram presentes no evento
para falar sobre suas trajetórias e apresentar suas pautas de luta através de trabalhos acadêmicos sob a
perspectiva de gênero. A dinâmica do encontro iniciou com as falas das/as/es convidadas especiais
sobre o tema, seguida das apresentações das/os/es autores e seus trabalhos.
A instância de debate contou com a ilustre presença das pensadoras Jaqueline Gomes de Jesus
e Valdenízia Bento Peixoto, assim como do pensador Dan Kayo Lemos, personalidades as quais
convidamos a todas/os/es que busquem conhecer suas histórias de vida e luta por direitos como pessoas
LGBT+. Qualquer definição apresentada por estes coordenadores não seria capaz de descrever a
grandiosidade de tais personalidades, o que poderia, de certo modo, encerrá-las em uma circunscrição
meramente acadêmica. Neste sentido, destacamos alguns trechos das falas de apresentação das/os/es
convidadas.
Jaqueline Gomes de Jesus, natural de Brasília, relata que “foi a educação, foram os livros e,
também, as leituras” que lhe salvaram e que lhe deram “muitos caminhos, encontros e encruzilhadas”
para se tornar a primeira mulher trans negra a obter doutorado no Brasil. Pouco tempo depois ela viria a
assumir o cargo professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro
(IFRJ) .
Vale também destacar a participação de Dan Lemos, doutorando do Departamento de Estudos
Latino-Americanos da Universidade de Brasília (ELA/UnB) e presidente do Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades (IBRAT), que foi um dos responsáveis por inaugurar a primeira a casa de
acolhimento para pessoas transexuais do Brasil, no seu estado de origem, Ceará. O feito foi reconhecido
pela União Européia e recebeu recursos para criação e manutenção do abrigo. Em sua fala, Dan levanta
a seguinte questão: “Será que a dita inclusão social atende as reais necessidades que as pessoas
transexuais necessitam para serem reconhecidas nos espaços do saber ?”. Assim, ele afirma que
mesmo em uma universidade publica, a qual deveria ser uma arena de cultivo de valores da inclusão e
diversidade, estudantes, funcionários e professores transexuais têm uma dificuldade enorme em manter
a politica do uso do nome social e terem suas identidades respeitadas pelos seus pares.

574
Correlacionando a fala tanto de Jaqueline quanto de Dan, Valdenizia nos apresenta parte da sua
pesquisa, em que ela verifica que tais violências não são meras fobias, mas sim estruturas forjadas para
controlar nossos corpos, desejos, saberes e posicionamentos por meio de uma lógica moralista da
construção social e histórica brasileira.
O que se viu nessa instância de discussão foi a urgente necessidade de ampliar o campo de
estudos sobre gênero e sexualidade, de propiciar abordagens que permitam estabelecer paralelos entre
a trajetória de vida dos/das/des estudantes e seus temas de pesquisa, assim como de lutar pela
ampliação das politicas de ações afirmativas em todos níveis de ensino como forma de combater o
preconceito e o ódio contra pessoas LGBT+, além de assegurar o reconhecimento de corporalidades e
saberes dessa população, desde a escola primária até o ensino superior.

575
AUTORAS E AUTORES TÍTULO PÁG

Johnatan Boeira Rodrigues Narrativas queer envolvendo a matemática como espaço de


578
Maurício Rosa representatividade, respeito e acolhimento

Marcos da Cruz Alves Siqueira


Pode uma bicha falar? Tecendo reminiscências LGBTI+ na educação 586
Harryson Júnio Lessa Gonçalves

Políticas públicas educacionais e mulheres transexuais/travestis:


Docimar de Jesus Felisbino 589
sistema que desampara com base em costumes estereotipados

“Prefiro não declarar!”: silenciamentos e sexualidades em espaços


Wilker Ramos-Soares 604
acadêmicos-científicos

Arthur Henrique Sciarini Processos de construção de identidades transitórias na/pela escola


608
Harryson Júnio Lessa Gonçalves de pessoas não-binárias em formação inicial

Alan Baloni Transgeneridade e idiossincrasias nas religiões afro-brasileira s 611

576
NARRATIVAS QUEER ENVOLVENDO A MATEMÁTICA COMO ESPAÇO DE REPRESENTATIVIDADE,
RESPEITO E ACOLHIMENTO

Johnatan Boeira Rodrigues


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática;
Mestrado em Ensino de Matemática. johnatannbrodrigues@gmail.com

Maurício Rosa
Professor da Faculdade de Educação – Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). mauriciomatematica@gmail.com

Resumo

Considerando a importância da educação para as diferenças, se faz necessária a incorporação/reflexão


de temas problematizadores, tais como gênero, raça, etnia e sexualidade na sala de aula. Neste sentido,
o presente trabalho apresenta algumas bases dos estudos em Teoria Queer e aportes da experiência
com Tecnologias Digitais (TD) na educação matemática sob um viés crítico e propositivo. Acreditamos
que essas bases teóricas possam sustentar de sobremaneira nossa proposta de pesquisa, a qual
objetiva investigar a articulação de atividades-matemáticas por meio de vozes de pessoas LGBTQIA+ 105
de modo que a aula de matemática também sirva como espaço de representatividade, respeito e
acolhimento. Entendemos que essa pesquisa pode ser um caminho transgressor para abordar a
perspectiva de pessoas LGBTQIA+ por meio de suas memórias, afetos, pensamentos e experiências de
seu processo de formação escolar, especialmente, no que diz respeito à matemática. Deste modo,
esperamos que esta pesquisa possa contribuir com futuras práticas pedagógicas de
professores/professoras/professories106 que envolvam a matemática como suporte à héxis política e à
responsabilidade social, disponibilizando relatos e reflexões por meio de um canal de Podcats, o qual se
constituirá durante a pesquisa, bem como por meio de atividades-matemáticas que reconheçam as vozes
dessas pessoas.

Introdução

105 “[...] L = Lésbicas São mulheres que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outras mulheres. G = Gays
São homens que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outros homens. B = Bissexuais Diz respeito aos
homens e mulheres que sentem atração afetivo/sexual pelos gêneros masculino e feminino. T = Transexuais A
transexualidade não se relaciona com a orientação sexual, mas se refere à identidade de gênero. Dessa forma, corresponde
às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento. As travestis também são incluídas neste
grupo. Porém, apesar de se identificarem com a identidade feminina constituem um terceiro gênero. Q = Queer Pessoas com
o gênero ‘Queer’ são aquelas que transitam entre as noções de gênero, como é o caso das drag queens. A Teoria Queer
defende que a orientação sexual e identidade de gênero não são resultado da funcionalidade biológica, mas de uma
construção social. I = Intersexo A pessoa intersexo está entre o feminino e o masculino. As suas combinações biológicas e
desenvolvimento corporal, cromossomos, genitais, hormônios, etc. não se enquadram na norma binária (masculino ou
feminino). A = Assexual Assexuais não sentem atração sexual por outras pessoas, independente do gênero. Existem
diferentes níveis de assexualidade e é comum que estas pessoas não veem as relações sexuais humanas como prioridade. +,
O + é utilizado para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero. Aqui são incluídos os pansexuais, por
exemplo, que sentem atração por outras pessoas, independente do gênero”. (SILVA, 2020)
106 Esse projeto adota de maneira independente as possíveis orientações sexuais e identidades de gênero dos
professores/professoras/professories de matemática, assim como dos/das/des estudantes, assim utilizaremos esta grafia para
empoderar todos os gêneros neste artigo. Logo, inserindo o gênero gramatical neutro (CASSIANO, 2019).

577
Ao recordar a formação básica sendo vivenciada na escola pública ou privada, nos questionamos
sobre quais foram as vivências que nos fazem refletir sobre a educação para a diversidade.
Empiricamente, percebemos que há vivências de docentes (nossos mestres e/ou colegas) que se
mostram em formatos pedagógicos que não contemplam todos/todas/todes 107 estudantes nas suas
particularidades. Nesse sentido, os/as/es estudantes ao adentrarem às escolas precisam se ajustar às
regras, normas, formatos, padrões e sistemas que não lhes dão sentido e pertencimento naquele
espaço, onde o/a/e estudante é somente visto com olhar padronizado, sendo descartada sua
individualidade, de forma a ter que conviver, muitas vezes, com falas preconceituosas partidas de
professores/professoras/professories que distinguem as “diferenças” como escolhas, apontando o sujeito
sem suas particularidades e desacreditando sua capacidade intelectual.
Nessa perspectiva, escolhemos agir diferente e fazer nossa ação docente de forma humana e
equitativa, tratando cada estudante com suas individualidades, vivenciando possíveis conflitos com
colegas para conseguir quebrar a barreira do pré-conceito por meio de falas e formações. Entendemos
que é possível e imprescindível conhecer perspectivas teóricas que contemplam parcelas desassistidas a
fim de promover em sala de aula um espaço para a desnaturalização de ideias e discursos
preconceituosos, bem como para a formação cidadã e o pensamento crítico do/da/de estudante.
Diante disso, acreditamos ser necessária a reflexão em torno da educação a fim de se agregar
uma visão educacional e de formação com os/as/es professores/professoras/professories que envolva
temas importantes e que contribua para uma educação em prol da diversidade, justamente, para poder
pensar no acesso à educação pública e no seu atendimento. Dessa forma, a realidade do ensino de
matemática não foge dessa lógica.
Frente a este cenário, estudar e elaborar uma proposta educacional matemática que envolva
temas necessários para que novos formadores desenvolvam princípios e metodologias que atendam
os/as/es estudantes por meio de processos pedagógicos diversificados, há muito vem nos instigando.
Assim, elaborar uma proposta de atividades-matemáticas sob a perspectiva de gênero se faz necessária
para que a formação e o conhecimento se fundamente em práticas e ações. Além disso, propomos a
construção de materiais e pedagogias que sirvam de orientação para a educação e o ensino de
matemática para professores/professoras/professories e estudantes pertencentes a este espaço de
aprendizagem. Não damos conta sozinhos de abarcar essa realidade. Reconhecemos que ela, talvez,
nunca esteja contemplada em sua totalidade, mas ao menos algumas vozes de pessoas que passam por
esses preconceitos precisam ser ouvidas. Especificamente em relação ao universo LGBTQIA+, nos
propusemos a dar voz a pessoas que se vivenciam e se identificam com esse universo, ouvindo seus
afetos, dores, memórias, aversões, assim como alegrias, prazeres, desejos, vontades, expressos em
narrativas que possam contribuir com o desenvolvimento de atividades-matemáticas que ajudem a
formar uma sala de aula que também sirva como espaço de representatividade, respeito e acolhimento.
Em termos narrativos, partimos também das contribuições do filósofo francês Michel Foucault
(1987), pois ressaltamos que as práticas discursivas são instituidoras dos objetos dos quais falam,
moldam nossa forma de constituir o mundo. Isso trouxe novos desafios às pesquisas na área de Ciências
107 Utilizaremos esta grafia para empoderar todos os gêneros este artigo. Logo, inserindo o gênero gramatical neutro
(CASSIANO, 2019).

578
Humanas e na área de Educação, desnaturalizando ainda mais a possibilidade de uma observação
passiva, descritiva e objetiva do objeto de estudo dessas áreas. Por isso, é preciso ampliar as práticas
discursivas, e oportunizar espaços para dar voz às minorias e registrá-las para posteridade, assim como
tornar essas vozes fontes de inspiração, principalmente, para professores/professoras/professories que
ensinam matemática planejarem e desenvolverem aulas que também permitam compreender, respeitar e
empoderar as minorias nessa realidade da era digital e da diversidade.
Desta forma, um caminho para reflexão/formação com professores/professoras/professories de
matemática pode estar na produção de narrativas, a partir da experiência de pessoas LGBTQIA+,
orientadas ao planejamento de atividades-matemáticas queer. As narrativas serão registradas com a
produção de podcasts que ficarão disponíveis por meio de plataforma gratuita de podcasts e servirão
para um possível planejamento de atividades-matemáticas-queer.
Essas atividades consideram diversas dimensões, entre elas a dimensão matemática, a
pedagógica, a cultural, a sociológica, a política, a tecnológica, sendo esta última discutida por meio dos
aportes das Tecnologias Digitais. Nesse sentido, pretendemos utilizá-las como modo de divulgação por
meio de podcasts para registro das memórias em formato digital.
Investigaremos, então, como se articulam atividades-matemáticas por meio de vozes de pessoas
LGBTQIA+ envolvendo o ensino de matemática como temática a ser debatida, para que consigamos por
meio dessas vozes produzir atividades-matemáticas que assumam afetos, discursos e modos de
produção concernentes ao que nos falam essas pessoas. A ideia é ter indícios para possivelmente
transformar a aula de matemática em um espaço de representatividade, respeito e acolhimento. Assim,
entendemos que essa pesquisa pode contribuir com a educação matemática e suas relações sociais e
políticas que tenham por objetivo reconhecer e valorizar narrativas LGBTQIA+. Desenvolveremos um
conjunto de podcasts que oportunizem reflexões e acolhimento da concepção humanizadora na ação
docente, para ter a criticidade como foco e promover práticas de ensino de matemática regidas pela
equidade e justiça social.
Logo, esta pesquisa visa investigar como articular atividades-matemáticas por meio de vozes de
pessoas que se reconhecem como LGBTQIA+ de modo que a aula de matemática também sirva como
espaço de representatividade, respeito e acolhimento?
Dessa forma, buscamos evidenciar o papel da Teoria Queer como fonte de compreensão de
mundo e, em especial, da diversidade, destacando o aparato conceitual que nos permite interrogar e
desconstruir certas lógicas discriminatórias que se perpetuam no espaço escolar. Não obstante, Louro
(2010) afirma que os professores/professoras/professories se esquivam do assunto, optando por uma
posição “neutra” acerca do tema. Entendemos que na verdade não é uma neutralidade, e sim uma
reafirmação de grandes discursos hegemônicos, tornando heteronormativo o processo de escolarização.
Por meio dessas reflexões, observamos que é necessário produzir materiais e saberes que evocam as
pessoas LGBTQIA+ que possibilitem a discussão, problematização e reflexão da possibilidade de se
tornar queer a ação docente nas aulas de matemática. Com base nisso, buscamos avançar e discutir a
proposta da Teoria Queer, a qual entendemos poder contribuir para a educação matemática.

579
Teoria Queer

Ao interrogar as formas múltiplas das sexualidades humanas, a Teoria Queer permite avanços na
possibilidade de questionar a naturalização das identidades heteronormativas estabelecendo assim a
questão identitária como capital para entender os sujeitos queer.
Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante – homossexuais, bissexuais, transsexuais, travestis, drags. É o excêntrico que
não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser
que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que
desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade,
do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba,
provoca e fascina (LOURO, 2004, p.8).

Neste contexto, a Teoria Queer vem instaurando novos olhares sobre a construção identitária dos
sujeitos. Para esta perspectiva, as identidades de gêneros e sexuais são (re)construídas historicamente,
culturalmente e socialmente (ROSA, 2015, p.25).
Segundo Butler (2013), seria necessária uma relação de continuidade e coerência entre sexo,
gênero, desejo e prática sexual para que todos nós nos tornássemos inteligíveis. Para isso, a reflexão
sobre essas definições feita por diferentes áreas do conhecimento (Biologia, Psicologia, Sociologia...) é
de extrema urgência. Assim, a Teoria Queer nos permite perguntar, por exemplo, “o que é um homem?”,
“o que é uma mulher?”, “o sexo define a verdade do meu gênero?” ou “existe uma verdade do sexo?”.
O que existe na perspectiva queer, então, é um processo histórico e discursivo em curso que,
representando determinados interesses econômicos e biopolíticos, institui e naturaliza através de
correspondências binárias aquilo que é considerado “normal” e, a partir do lugar fundante da norma,
também institui aquilo que é considerado diferença. Assim, estudiosos da Teoria Queer como Butler
(2014) e Louro (2001) afirmam que essa diferença é dita necessária somente para estabelecer os limites
e as fronteiras entre ambos e para significar positivamente as representações identitárias tidas como
normais.
Logo, investigações que deem voz às de LGBTQIA+ são muito importantes também na área de
Educação Matemática, justamente para que se compreendam as necessidades educacionais dessas
pessoas, para que se compreenda como agir nas aulas de matemática assumindo uma postura de
respeito e acolhimento. Contudo necessitamos que se discuta a matemática como forma de sustentação
da equidade, como forma de compreensão dos socorros que a comunidade LGBTQIA+ necessita, mas
que são pouco ouvidos. Precisamos dar mais a voz e espaço aos LGBTQIA+, levar mais longe suas
necessidades educacionais, para podermos transformar essas necessidades em ações concretas na
prática de sala de aula, respeitando o que dizem e modificando o cenário vigente. Logo, cabe discutirmos
como faremos isso, apresentarmos nosso modo de conceber as narrativas que serão concebidas.

Metodologia de pesquisa

Esta pesquisa terá uma abordagem qualitativa, por meio da história oral e com a produção de
narrativas. Produzir narrativas com bases na história oral é produzir fontes intencionalmente e, dessa

580
maneira, acreditamos que “um trabalho em História Oral é, pois, sempre, um inventário de perspectivas
irremediavelmente perpassado pela subjetividade, um desfile de memórias narradas, um bloco
multifacetado de verdades anunciadas” (GARNICA, 2010, p. 31).
Ainda, Garnica (2008) concebe a história oral como:
[...] um método de pesquisa qualitativa que não difere, em geral, dos demais métodos
qualitativos: compartilha com eles alguns dos princípios mais essenciais e elementares,
mas deles difere por ter, dentre suas expectativas iniciais, não somente amarrar
compreensões a partir de descrições, mas constituir documentos “históricos”, registros do
outro, “textos provocados”. [...] São, portanto, sempre potenciais fontes históricas, cabendo
a alguém aproveitá-las assim ou não (GARNICA, 2008, p. 130).

As descrições narrativas são reveladas oralmente. Nesse sentido, Souza e Silva (2007, p. 142)
apresentam que as narrativas orais são, assim, vistas pela história oral:
Como fontes a partir das quais torna-se possível uma maior aproximação aos significados
atribuídos às realidades vividas por quem narra, já que busca (em grande parte dos casos)
preservar, em uma apresentação quase literal das narrativas coletadas por meio de
entrevistas, as legitimidades próprias do narrador. Através delas torna-se também possível
observarmos os distintos significados atribuídos a determinados acontecimentos
socialmente vividos, como também, e ao contrário, observar, como afirma Goldenberg
(2003), que cada indivíduo “singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura
social”. Neste caso, uma narrativa, uma biografia, constituir-se-ia em interessante meio de
conhecer o social partindo da “especificidade irredutível de uma vida individual”.

Essas fontes (“textos provocados”) são produzidas, então, pela oralidade, tendo início com a
realização das entrevistas com um determinado grupo de voluntaries pertencentes à comunidade
LGBTQIA+. Souza e Silva (2015, p. 41) contribuem que a própria palavra entrevista quando lida com
composição de outras duas (entre-vista) enfatiza o movimento realizado quando nos colocamos frente ao
outro e passamos a questioná-lo sobre um certo período da vida. Neste momento, estão ali dois sujeitos
constituídos por tudo que experienciaram, um à frente do outro, e tudo isso poderá fazer parte da história
que será relatada.
No caso desta pesquisa, as “entre-vistas” são entre o pesquisador e cada ume das pessoas que
que se reconhecem como LGBTQIA+. Assim, nossas entrevistas estão em processos e como produção
de dados e como material para a criação de podcasts. A gravação de áudio e de vídeo, ambos
indispensáveis para a construção da narrativa, estão servindo como fonte de dados. Após organizar esse
material gravado, nosso primeiro movimento se dá na direção de transcrever essas narrativas orais, com
a preocupação de preservar ao máximo o que pensamos caracterizar particularidades dos entrevistades.
Sendo assim, elementos próprios da fala por esse processo, chamamos de transcrição. Em seguida, já
em um processo analítico, existe um esforço para produzir um texto escrito que permita uma narrativa
mais fluente. Assim, esse texto resultante da transcrição é modificado e reorganizado, sempre havendo
uma preocupação de não descaracterizar o entrevistande, e isso é, sem dúvida, um desafio. No entanto,
não só a narrativa será realizada, mas a produção de podcasts e o exercício de desenvolvimento de
atividades-matemáticas que respeitem aquilo que os/as/es participantes da pesquisa revelaram sobre
práticas matemáticas vivenciadas, dificuldades, formas possíveis de alcançar elus108.

108 Utilizaremos esta grafia para empoderar todos os gêneros este artigo. Logo, inserindo o gênero gramatical neutro
(CASSIANO, 2019).

581
Para a produção dos podcasts, também como fonte histórica a ser evidenciada como fonte
histórica digital, utilizaremos a plataforma Anchor, que consiste em um aplicativo gratuito para fazer
podcasts no celular Android e iPhone (iOS). A plataforma permite editar e gravar arquivos de áudio, com
funções como cortar partes ou adicionar trilha sonora, segundo o site Techtudo.
Justificamos a produção de podcasts nessa pesquisa, pois “[...] o podcast surge como uma
alternativa viável, prática, com custos quase nulos e, também, uma metodologia de ensino [...]”
(CANELAS, 2012, p.47). Segundo o site Trendings 109 o podcast surgiu em 2004, conceito atribuído ao
empresário e ex-VJ da MTV110, o estadunidense Adam Curry, o qual criou o primeiro agregador de
podcasts e disponibilizou o seu código na internet. O nome podcast deriva da junção de iPod (dispositivo
de áudio da Apple) e Broadcast (transmissão de informações por rádio ou TV). O podcast é um arquivo
de áudio ou vídeo digital original, que se assemelha a um programa de rádio; o seu diferencial é que o
mesmo pode ser acessado em modo offline. A maioria dos arquivos de podcast está disponível em
formato de áudio devido ao menor consumo de dados, visto que o vídeo se torna dez vezes mais pesado
que um arquivo de áudio. Outra vantagem que um podcast oferece está em sua organização: os arquivos
são classificados por diferentes temáticas, sendo as principais: podcast de entretenimento (debate, bate-
papo), podcast informativo (informação de temas contemporâneos) e podcast de formação (em formato
didático). Esse último é o formato que pretendemos desenvolver como fonte histórico-didática.
Sendo assim, pretendemos estabelecer reflexão sobre o modo como entendemos História Oral e
narrativas, abordando discussões acerca dos aspectos teóricos e metodológicos que permeiam a
produção de fontes dessa natureza, bem como discussões que surgem quando nos propomos a produzir
narrativas fundamentadas nos princípios e procedimentos da História Oral em outros contextos como o
universo queer na educação matemática.

Considerações

Com o objetivo de investigar e produzir narrativas queer como forma de dar voz às pessoas
LGBTQIA+ em relação à própria sala de aula de matemática e aquilo que deve ser observado nesse
espaço, assumimos a História Oral como metodologia de pesquisa, para que
professores/professoras/professories, por meio das fontes históricas a serem produzidas no decorrer da
investigação (no caso, os “textos provocados” e os podcasts (narrativas digitais)), tenham conhecimento
e possibilitem a incorporação de assuntos que permeiam a comunidade LGBTQIA+ na sua prática
matemática de sala de aula . Nossa proposta de pesquisa visa, então, contribuir com formação com
professores/professoras/professories que ensinam matemática, principalmente, na possível
transformação de práticas didáticas de matemática como forma de reconhecimento e respeito às

109 TRENDINGS. Trendings. Podcast: como surgiu, quais as vantagens e qual o tamanho do mercado brasileiro. [S.l.]. Patrícia
Rodrigues, 2021. Disponível em: https://trendings.com.br/inovacao/podcast-como-surgiu-quais-as-vantagens-e-qual-o-
tamanho-do-mercado-brasileiro/. Acesso em: 10 out. 2021.
110 VJ é a denominação dada às práticas artísticas relacionadas com a performance visual em tempo real e MTV (Music
Television) foi uma rede de televisão norte americana.

582
minorias sociais no espaço escolar. Contudo nossa pesquisa encontra-se em construção, tendo
ressignificações a cada entre-vista realizada.

PALAVRAS-CHAVE: pessoas LGBTQIA+; ensino de matemática; podcasts; narrativas; Teoria Queer.

REFERÊNCIAS
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da Oralidade: uma Revisão da Literatura. Indagatio Didactica, vol. 4(3), jul. 2012. Aveiro: CIDTFF, 2012.
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CASSIANO, O. Guia para “Linguagem Neutra” (PT-BR). 2019. Disponível em:
https://medium.com/guia-para-linguagem-neutra-pt-br/guia-para-linguagem-neutra-pt-br-
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GARNICA, A. V. M. História oral e educação matemática: de um inventário a uma regulação.
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583
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SOUZA, M. F.; ROSA, M. Cyberformação, produtos cinematográficos e produção de aulas de
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como-surgiu-quais-as-vantagens-e-qual-o-tamanho-do-mercado-brasileiro/ . Acesso em: 10 out.
2021.

584
PODE UMA BICHA FALAR? TECENDO REMINISCÊNCIAS LGBTI+ NA EDUCAÇÃO

Marcos da Cruz Alves Siqueira


Doutor em Educação. Mestre em Ensino. Especialista em Pesquisa educacional. Historiador. Professor efetivo no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo-IFSP. Realiza estágio de pós-doutorado na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. marcos.cruz@ifsp.edu.br

Harryson Júnio Lessa Gonçalves


Livre-Docente pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, Doutor em Educação Matemática - PUC-SP,
Pedagogo e mestre em Educação - UnB. Professor associado da Faculdade de Engenharia da UNESP - Campus
de Ilha Solteira. Harryson.lessa@unesp.br

O que vamos falar?

Bichinha, sapatão, veado, cola velcro, boiola, puta, afeminada, piranha, divergente, gayzinho,
caminhoneira, macho etc. Essas memórias ainda estão presentes no espaço educativo. Enquanto isso,
R(e)xistimos. Este é um recorte do projeto de estágio pós-doutoral que faz uma interface entre
Antropologia e História por meio de narrativas de pessoas Lésbicas, Gays Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos – LGBTI+ na Educação. A questão norteadora do trabalho é: de que modos
as trajetórias tecem resistências e proporcionam uma reflexão sobre a educação? Nesse percurso,
vamos discutir como as vivências de pessoas LGBTI+ coproduzem significados de gênero, sexualidade,
raça e os limites de pensar como a educação perpassa as fronteiras culturais e as relações pedagógicas
influenciando no modo de ser e viver em sociedade. O objetivo geral é fazer uma etnografia de pessoas
LGBTI+ por meio de suas reminiscências, trajetórias e resistências criando um diálogo sobre Educação.
Desse modo, analisar as memórias presentes por meio das narrativas etnográficas e
problematizar as tensões em suas trajetórias e resistências desloca os modos de pensar a educação.
Assim, vamos problematizar os sentidos de existir e resistir que se manifestam por meio de pautas
sociais sobre gênero, sexualidade, raça e desenvolvem conhecimentos sobre si. Nesse processo de
análise, entendemos as vivências e experiências como ação educativa que utiliza da história de vida para
manifestar seu posicionamento político e instabilizar discursos de violência, opressão e ao mesmo tempo
aprender e ensinar sobre gênero, sexualidade e raça. Considero que as tecituras elaboradas nesta
investigação vão incidir em tesões políticas e pedagógicas que afetam os modos de ser e viver. Assim,
reconhecemos as reminiscências como um corpo político com sua significação social e educacional
capaz de aproximar grupos identitários, mobilizar ações em prol da educação e resistir frente à violência
homofóbica, racista e machista.

A bicha vai falar

Refletir as narrativas que propõem pensar as temáticas de gênero, sexualidade e raça dentro do
âmbito educativo, por meio da discussão das políticas educacionais para o enfrentamento à violência
homofóbica, é uma provocação constante. Acreditamos que seja importante analisar as narrativas
voltadas ao respeito à diversidade sexual, pois, segundo Gallo (2007), é por meio dessas narrativas que

585
se consolidam políticas públicas educacionais. Compreendê-las possibilita que novos projetos sejam
executados em acordo com as necessidades mais primárias sobre o assunto. Além disso, oportunizar
que pessoas LGBTI+ possam dialogar sobre suas vivências, trajetórias e resistências no meio educativo
é uma forma de deslocar os modos de pensar a educação e o modo de aprender e ensinar.
Uma das medidas para garantir a concretização das políticas de gênero e sexualidade é dialogar
com o movimento LGBTI+ caminhos possíveis para romper a heteronormatividade nos ambientes de
conhecimento, tais como: escola, universidades, instituições etc. Michel Foucault (1988) sugere que além
das condutas normativas referentes à sexualidade das pessoas, foram se estabelecendo por meio de
narrativas outros padrões sociais, tais como: branco, classe média e cristão, regidos, após o século XVIII,
por três códigos explícitos que administravam as práticas sexuais e a construção da vida social, a saber:
o direito canônico, cujo intuito era a formação da família: pai, mãe e filhos(as); a pastoral cristã, que
afirmava os relacionamentos héteros cristãos e estimulava a confissão dos atos acometidos no
casamento e como forma de pecado; e, por fim, a lei civil, que regulamentava e firmava a construção
desses discursos fixando, por meio de suas particularidades, a linha divisória entre o lícito e o ilícito.
Assim, como herança de tal construção histórica, a heteronormatividade, como narrativa, foi se
estabelecendo como padrão e sua construção na sociedade se deu por meio de várias instâncias. Uma
dessas instâncias que podemos exemplificar é o silenciamento de grupos minoritários, tais como:
mulheres, LGBTI+, negros, entre outros no ramo da ciência e do conhecimento em geral. As diferenças
entre os gêneros e raça foram paulatinamente normalizadas como modelos socialmente construídos e
sancionados, as condutas estabelecidas decidiam quais pessoas poderiam fazer ciência e quais pessoas
seriam excluídas deste saber. Com isso, formas tradicionais foram fixando modelos e padrões de
comportamentos em nossa sociedade, influenciando, assim, modos de convivências (BUTLER, 2011).
A escola é lugar onde as relações sociais se estabelecem cotidianamente, onde as diferenças,
sejam elas sexuais, étnico-raciais, são percebidas e enfrentadas de forma tênue ou tensa. É por meio da
escola e do saber sistematizado que o(a) aluno(a) passa a aprofundar sua compreensão de realidade
social e a refletir sobre suas práxis na comunidade (GÓIS, SOLIVA, 2013). Por isso, quando buscamos
por meio de narrativas de si problematizar as relações socias e as formas de estar no mundo, passamos
a perceber as violências sistêmicas contra pessoas que fogem da forma tradicional de comportamento.
É necessário pensar quais narrativas e políticas são direcionadas à diversidade sexual no âmbito
educativo para garantir a permanência e conclusão de alunos(as) LGBTI+ em seus estudos. Ao nos
atentarmos para essas políticas por meio de memórias e trajetórias da população LGBTI+ na educação é
que vamos conseguir compreender a estrutura do machismo, sexismos e homofobia presente nas
instituições de educação.
Desta forma, entendemos a educação como um campo de atenção, disputa e poder de
determinados setores da sociedade, tais como grupos políticos, religiosos, de militantes e a própria
comunidade, que têm o interesse de utilizar o espaço educacional como instrumento de efetivação de
preconceitos, mas também de conscientização. Eis a importância de ouvir as narrativas da comunidade,
movimentos sociais e representantes do poder público. Isso corrobora para a efetivação das políticas
públicas educacionais e as lutas dos movimentos.

586
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes
(Org.). O corpo educado. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.
151-172.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: A vontade de saber. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1988 (ed. or. 1976).
GALLO, Sílvio. Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In: RIBEIRO, Paula
Regina Costa; SILVA, Méri Rosane Santos da; GOELLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e
sexualidade: composições e desafios para a formação docente. Rio Grande: FURG, 2007. p. 93-102.
GÓIS, João Bôsco Hora; SOLIVA, Thiago Barcelos. A violência contra gays em ambiente escolar.
Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 123. p. 38-45, ago. 2013.

587
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E MULHERES TRANSEXUAIS/TRAVESTIS: SISTEMA QUE
DESAMPARA COM BASE EM COSTUMES ESTEREOTIPADOS

Docimar de Jesus Felisbino


professordocimar@gmail.com

Nasci no estado de Minas Gerais e com apenas três anos de idade me juntei ao povo goiano.
Embora sendo filho de pais analfabetos, fui incentivado por eles desde pequeno a perseguir meus
objetivos a partir dos estudos. Foi assim que, mesmo sendo discípulo de escola pública e membro de
família pobre, consegui romper uma pequena fração da bolha do sistema e cursei o ensino superior,
concluindo a primeira graduação no ano de 2007. Comecei a trajetória profissional como operador de
caixa de supermercado sem pensar muito em seguir meus estudos além do ensino médio, pois as
minhas condições sociais me convenceram que uma pessoa pobre e periférica jamais conseguiria passar
da Educação Básica, contudo, depois de sair desse emprego, consegui um contrato temporário na
Prefeitura Municipal de Cidade Ocidental, o que me motivou a prestar concurso para o mesmo cargo,
para o qual consegui aprovação para atuar como agente administrativo. Nesse ínterim, ao conviver com
colegas de trabalho, fui motivado a fazer uma graduação. Dessa maneira, fiz o primeiro curso superior
em uma faculdade particular do município de Valparaíso de Goiás. Como à época o salário era baixo,
passei muita dificuldade para concluir o curso. Humilhei-me muito aos diretores da faculdade com
pedidos de descontos e sempre consegui. No período não tive meios para comprar roupas ou qualquer
outra coisa, inclusive alimentação. Passei por muitas dificuldades, mas consegui. Depois de um tempo,
ainda na prefeitura de Cidade Ocidental, atuei em Conselho de Educação, fui secretário escolar e
lecionei em escola privada para alunos de Ensino Médio, ministrando aulas de Língua Portuguesa.
Passei toda minha infância tentando entender meu lugar no mundo, não entendia o que eu sentia, pois
me via atraído por homens e diferentemente a sociedade me indicava uma vida adulta dentro de uma
igreja como um padre ou um pai, casado e seguindo uma vida moldada nos padrões cis
heteropatriarcais. Cresci, tive uma adolescência conturbada, passei por constantes pensamentos
suicidas. Não me sentia pertencente ao mundo hétero e religioso no qual mergulhei, mas não conseguia
sair dali. Vivenciei por longos anos uma vida religiosa em seminário, mas ao perceber que ali não era
meu lugar, saí. Fui viver em meio à sociedade, forçando-me namoro hétero, mas aquilo não mudava meu
sentimento. Foi quando, cursando minha primeira graduação, tive meu primeiro relacionamento com um
homem. A partir dali comecei a me inserir no universo do qual eu sempre fiz parte. Procurei conhecer
mais da questão LGBTQIAPN+, sigla que corresponde às minorias sexuais e de gênero, englobando
lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersexos, assexuados, pansexuais, não-
binários e outras minorias semelhantes representadas pelo mais. Busquei também conhecer, inclusive,
as conquistas e histórias desse grupo em outros contextos históricos. Assim, alguns anos passaram e
depois de fazer a minha segunda graduação, dessa vez em pedagogia, no ano de 2014 prestei concurso
na prefeitura municipal de Valparaíso de Goiás para atuar como professor de 1º ao 5º ano e educação
infantil. Ao ser aprovado, em 2016 convocaram-me e de lá para cá exerci funções, além de docente, de

588
coordenação pedagógica e gerente de ensino e projetos da Secretaria Municipal de Educação do mesmo
município. Depois que assumi esse concurso, procurei seguir meus estudos e fiz durante esse período
duas especializações. Uma na área de Língua Portuguesa e outra na de Neuropsicopedagogia com
ênfase em Educação Especial e Inclusiva. Diante dessa trajetória, no ano de 2021 me deparei com
alguns amigos aderindo a processo para iniciarem o mestrado na Universidade Estadual de Goiás.
Assim, ao ver toda aquela movimentação, surgiu em mim a vontade de viver essa experiência, algo que
eu via como um sonho inalcançável, mas que agora parecia possível. Conversei com esses amigos e
posteriormente tive acesso ao edital para o mestrado profissional da Faculdade de Educação da UnB,
passei por todo o processo e, conseguindo aprovação, hoje estou mestrando sob a orientação do
professor doutor Eduardo di Deus.

Introdução

Conhecer as políticas educacionais públicas desenvolvidas no país e enfatizar as deficiências da


implementação dessas políticas para os homossexuais e os transexuais levará a sociedade a prestar
assistência a essa que é, notadamente, uma das classes menos assistidas pelo poder governamental.
Ao tornar o corpo social ciente do descuido das instâncias governamentais com mulheres transexuais,
implicará no incentivo aos que simpatizam com a causa a unir forças em busca de um país mais
equânime, para haver cobrança do poder público, escolha de autoridades democráticas e assumir
espaços de fala aos desassistidos, tal qual gays, lésbicas, bissexuais e travestis. Isso visa a atenuar e
alcançar, mesmo que parcialmente, soluções que levem a sociedade a enxergar essa população como
sujeitos entranhados de direitos e consequentemente dignos de reverência e respeito.
Nessa conjuntura, desde a descoberta das terras tupiniquins pelo povo europeu até pouco depois
da redemocratização ocorrida no ano de 1988 a partir da instituição da Constituição Federal, as questões
econômicas e a exploração da terra foram prioridades em oposição à educação, posto que a
preocupação da nobreza sempre foi sobrepor seus interesses em detrimento do restante da população
utilizada por esses predadores para implementar projetos de seus interesses. Investir em educação, por
esse motivo, só acontecia a fim de satisfazer a aristocracia no que concerne preparar seus parentes,
com o propósito de investir em seus conhecimentos para que esses perpetuassem essa exploração.
(RAMOS, 2021).
Ademais, no início do século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, essa realidade
começou a mudar e a população começou a cobrar dos estadistas a estruturação do ensino no país.
Contudo, apesar da perpetuação das escolas primárias, pouco ainda fora feito, posto que entendia-se
que bastava ao proletariado saber ler minimamente, escrever e calcular o necessário para atuar no
comércio e na indústria. (SOUZA et al, 2018).
Nessa perspectiva, estudos mais avançados como os atualmente chamados de ensino
fundamental anos finais, ensino médio e ensino superior eram privilégio apenas dos mais abastados.
Nem mesmo estudos que preparassem a criança para iniciar sua vida social eram considerados. Nesse

589
sentido, a educação infantil era algo distante e não se cogitava a necessidade dessa que hoje é uma
etapa indispensável da educação básica.
Diante disso, foi apenas em 1961 que se começou a pensar minimamente em educação e se
criou uma política efetiva para abarcar a população brasileira e lhes oferecer formações em níveis mais
avançados, tais quais o fundamental anos finais e ensino médio. Ademais, com o retrocesso de 1968, a
partir do golpe militar, a educação passou a ser vista como objeto de engrandecimento desses vaidosos
homens imersos em empáfia e vaidade. Assim, com fim de mirar, dessa forma, a altiva hombridade
desses oficiais, a educação foi reformulada em 1971. Essa reformulação foi tecida especialmente no
então 2º grau, hoje nominado Ensino Médio, unicamente com o intuito de formar mão de obra barata
para alimentar o mercado nacional inserido no cenário da ditadura militar. Com o objetivo de considerar
esse propósito, a educação oferecida tinha teor apenas técnico, a fim de padronizar a população, para
que essa sociedade acrítica apenas desempenhasse suas funções laborais (SOUZA et al, 2018).
Outrossim, apenas com a instituição do Estado Democrático de Direito e a criação da
Constituição Federal de 1988 a educação no país foi remodelada a partir da promessa de educação para
todos e todas. Nesse ínterim, com base nas premissas constitucionais elaborou-se e se introduziu na
sociedade a Lei 9394/96, que contemplava novas diretrizes e bases para a educação nacional. A partir
dessa lei, ocorreu uma reestruturação do ensino no país, nesse que fora realizado dentro do governo
Fernando Henrique Cardoso e oportunizou outras políticas educacionais.
Seguindo esse mesmo viés, os governos Lula e Dilma melhoraram essas políticas, dando uma
nova roupagem e criando muitas outras as quais foram essenciais para o desenvolvimento do ensino no
país (GOIS, 2018). Ademais, no que concerne aos direitos educacionais específicos aos LGBTs,
especialmente às mulheres transexuais, os avanços foram irrisórios, posto que no espaço educacional
predominaram visões cristãs cis-heteropatriarcais, o que exclui, em seu contexto, temáticas e pessoas
que vivem ou seguem princípios contrários a essa massa social.
Nessa conjuntura, considerando os documentos criados para reformular a educação a partir da
redemocratização do Brasil, percebe-se que o termo/emblema educação para todos está presente nas
redações de todos os documentos constitucionais e infraconstitucionais. Contudo é conveniente
questionar quem são esses todos, posto que LGBTs, especialmente o T de travesti e transexual da sigla,
sequer conseguem concluir a educação básica. A pergunta se dá especialmente porque não há políticas
efetivas que possibilitem o acesso e o reconhecimento de mulheres trans como pessoas detentoras de
direitos à educação. Coisas simples como a questão do uso do banheiro feminino por parte das mulheres
trans é questionada constantemente por autoridades políticas atreladas a costumes e a crenças
retrógradas. Além disso as palavras com tons jocosos, as humilhações e os atos constantes de violência
que essas pessoas sofrem nas escolas, somadas à falta de apoio dos familiares e os constantes ataques
da sociedade, tal qual às incentivadas por governantes, são os pontos que impulsionam a evasão de
mulheres transexuais.
Contudo, considerando o avanço do governo Jair Bolsonaro no ano de 2018, apoiado e financiado
por pessoas atreladas a pautas de costumes, as mulheres transexuais e toda a população LGBTQIAP+
se viu desamparada. Nessa perspectiva, pautas ligadas a esse público passaram a ser rechaçadas e

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essa parcela da população se viu mais marginalizada do que fora desde então, distanciando, dessa
forma, esse público de políticas educacionais, forçando-os a evadir das escolas. Entretanto, apesar da
existência de um governo declaradamente transfóbico e homofóbico, alguns dos direitos já adquiridos
continuaram existindo, posto a existência de instâncias democráticas que permaneceram firmes em
defesa desses povos. Ademais, nesse contexto, as políticas educacionais permaneceram nesses últimos
quatro anos imersas em um completo mar de estagnação. Contudo, a falta de leis que deem apoio a
essas mulheres não é ingerência exclusiva do atual Governo Federal; isso ocorreu em outros governos,
especialmente os anteriores à restauração da democracia. Porém, uma pequena mudança só ocorreu
após a imersão nesse contexto histórico, surgindo timidamente algumas mudanças no governo Fernando
Henrique Cardoso e posteriormente, apesar de ainda morosa, com um pouco mais de ênfase nos
governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Diante disso, mesmo assim não ocorreram
progressos significativos, e os poucos e inexpressivos avanços não foram suficientes para favorecer
plenamente mulheres transexuais e travestis no cenário educacional brasileiro (SILVA, 2020).
É necessário, nessa conjuntura, identificar as lacunas existentes no que concerne às políticas
públicas educacionais direcionadas às mulheres transexuais e travestis, com o intuito de cobrar de
governantes um olhar atento a essas pessoas, dada a necessidade de assisti-las efetivamente no que
tange ao contexto educacional brasileiro. Além disso, deve-se apontar as deficiências do sistema,
evidenciando a necessidade de se estabelecer novos parâmetros que facilitem a vida dessas minorias,
desde então achincalhadas pela heteronormatividade que constantemente barra quaisquer progressos
dados a transexuais e travestis, tornando suas vidas um contínuo tormento.
Foi realizada pesquisa bibliográfica em artigos científicos indexados entre 2011 e 2021 na base de
dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Visando localizar trabalhos
próximos ao interesse inicial desse artigo, procurou-se buscar a partir dos termos “políticas públicas
educacionais”, “LGBT”, “Mulheres transexuais”. Diante dessa busca o sistema ofereceu vinte e uma
dissertações/teses, contudo foram selecionadas apenas quatro teses por serem as únicas mais
completas e pertinentes. Os textos estavam em Língua Portuguesa, completos e disponíveis.
Além dessas, selecionaram-se textos a partir de livros com temática pertinente ao tema proposto.
Esse levantamento vem a refletir e confirmar que, dentro dos estudos sobre as políticas educacionais e
mulheres transexuais, persiste a falta de direcionamentos no que concerne à educação e mulheres
transexuais, constatados por meio das poucas publicações que abordam especificamente a temática.
Nessa conjuntura, a análise de conteúdo foi a metodologia selecionada para realização da atividade
(BARDIN, 1977). Essa metodologia procura descrever ou até mesmo esclarecer conteúdos presentes em
documentos e textos com intuito de reexaminar e explanar documentos e textos a fim de encontrar
respostas. Esse método, segundo a autora, é um conjunto de análises das comunicações que visa a, por
meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo, inferir conhecimentos sobre a
produção e recepção das mensagens. A análise de conteúdo foi dividida em três fases: pré-análise,
exploração do material e tratamento dos resultados, inferências e interpretações.

Mulheres transexuais e travestis em desassistência

591
As políticas públicas educacionais no Brasil são suficientemente recentes. Apesar dos registros
constarem o início da escolarização brasileira desde a chegada dos Jesuítas em 1549, foi apenas em
1961 que a primeira LDB foi criada no território nacional:
A primeira LDB data de 1961; dá mais autonomia aos órgãos estaduais, diminuindo a
centralização do poder no MEC; regulariza a existência dos Conselhos Estaduais de
Educação e do Conselho Federal de Educação; garante o empenho de 12% do orçamento
da União e 20% dos municípios com a educação; o ensino religioso é facultativo e há
obrigatoriedade de matrícula nos quatro anos do ensino primário, dentre outras normas.
(CHAVES, 2021)

Apesar dessa Lei de Diretrizes da Educação ter surgido tardiamente, na constituição de 1891 já
era possível encontrar algumas linhas que ressaltavam a aplicação da educação e das instituições de
ensino no país.
Ademais, ao se considerar o cenário econômico do Brasil e do mundo, esse período foi crucial
para a reformulação da educação. Com o intuito de dar importância às oscilações do mercado
internacional e às incertezas que perfaziam sua existência, a atuação britânica no início do século XX
desenhou o Estado brasileiro e toda a cultura ocidental. Para procurar, juntamente com os outros países
do ocidente, encontrar uma forma de tornar o mercado econômico mundial estável e levar riqueza a seus
países, além de tornar o país seguro, os Estados anularam todas as outras políticas, para levar o sistema
a não se atentar, inclusive, à educação, pois não se via essencialidade nela, tal-qualmente na saúde, na
cultura, por exemplo. Contudo, diante da falha global com a educação e outros setores essenciais para a
sociedade, levantes liderados por homens que perceberam essas lacunas ocorreram especialmente nos
países ocidentais da época, a fim de considerar, certamente, sua posição mais democrática. (POLANYI,
2000).
Ademais, após a Primeira Guerra Mundial, outra realidade começou a ser desenhada mundo
afora, com o propósito de levar o mundo a perceber a importância da educação para o sucesso de uma
sociedade. Foi assim que, a fim de alcançar a paz e a estabilidade financeira global, se procurou tomar a
educação como um dos sustentos da estrutura social. Nesse contexto, o mundo começou a se globalizar,
com o fito de unificar economias, criar alianças e singularizar relações. Essa situação se fez presente
com mais veemência a partir da década de oitenta, quando o mundo entendeu que, para considerar a
criação de inúmeras novas profissões e a necessidade de mão de obra qualificada, a educação passou a
ser necessária para que o mundo continuasse e mantivesse essa ascensão. (MELO, 2003).
Ianni (2007, p.13) afirma o fenômeno da globalização, mostra a faceta desse fenômeno e deixa
claro que o mundo hoje se atrela a todos e não mais ao conceito ulterior de individualização:
[...] o globo não é mais exclusivamente um conglomerado de nações, sociedades
nacionais, Estados-nações, em suas relações de interdependência, colonialismo,
imperialismo, bilateralismo, multilateralismo. Ao mesmo tempo, o centro do mundo não é
mais voltado só ao indivíduo, tomado singular e coletivamente como povo, classe, grupo,
minoria, maioria, opinião pública. Ainda que a nação e o indivíduo continuem a ser muito
reais, [...] ainda assim não são “hegemônicos. Foram subsumidos, real ou formalmente,
pela sociedade global, pelas configurações e movimentos da globalização.

592
Nessa conjuntura, o Brasil, seguindo essa onda de progresso globalizado, após a posse do ex-
presidente da república Fernando Henrique Cardoso (FHC), começou a adotar políticas essenciais para
acesso aos efetivos direitos sociais fundamentais.
Deste modo o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços,
mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes,
principalmente dos serviços sociais como educação e saúde, que são essenciais para o
desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a
democracia, na medida em que promovem cidadãos; e para uma distribuição de renda
mais justa, que o mercado é incapaz de garantir, dada a oferta muito superior à demanda
de mão-de-obra não-especializada. (BRASIL, 1995, p. 13)

Ademais, ao se considerar a educação um desses direitos, na gestão Fernando Henrique foi


criada LDBEN de número 9694/96, um marco para o ensino brasileiro. Com ela, outras políticas públicas
foram sendo criadas, tais como as que fomentaram as escolas do país com verba pública. O Fundo de
Valorização do Magistério viabilizou uma educação mais democrática e possibilitou às escolas a
aquisição de materiais antes impossíveis de serem adquiridos. Nesse sentido, foi possível tornar a escola
mais atraente e acessível, inclusive para aquelas crianças que não tinham condições de arcar com
materiais para uso da escola.
A criação do Conselho Nacional de Educação foi outro avanço significativo do governo FHC. Esse
conselho, com função consultiva, mobilizadora, normativa e fiscalizadora se tornou um dos melhores
intermediadores junto aos poderes públicos na criação de políticas para educação.
Ademais, nos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff na presidência da república
essas políticas foram mantidas e aprimoradas. Um exemplo foi o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica, aprimoração do FUNDEF. Além disso, o governo conseguiu
aumentar a idade mínima obrigatória, iniciando aos seis anos e terminando aos dezessete anos e deu
aos docentes o tão desejado Piso Salarial do Magistério, com o objetivo de tornar o salário dos
profissionais da educação mais digno e pontual. Os programas que abriram as portas para as
universidades foram outra das grandes conquistas desses governos, com a criação de cotas tanto para
negros, pessoas com deficiência e pessoas advindas de escolas públicas. Dentre essas cotas, algumas
faculdades dão oportunidade a mulheres e a homens transexuais. Contudo essa cota, diferente das
elencadas acima, não é uma obrigação, o que a torna opcional para as faculdades e viabiliza a adoção
desse método apenas pelas instituições mais progressistas.
Outrossim, ao analisar todos esses avanços, ainda encontramos lacunas as quais desfavorecem
especialmente a população mais vulnerável da sociedade brasileira. Dentre esses vulneráveis
encontram-se as mulheres transexuais, alvo de chacota e desrespeito constante nas escolas de
educação básica.
Quando nos atemos a essa questão, percebemos que a educação não tem sido garantida a
todos. Podem existir cotas para esse grupo social nas faculdades, mas o maior entrave está justamente
na educação básica. Nessa etapa, muitas transexuais não conseguem concluir exatamente por serem
alvo do desprezo de gestores e professores das escolas. Essas personagens, elementos essenciais para
a conscientização das demais figuras nas escolas são, em geral, as primeiras a julgarem e excluírem
com base em costumes e crenças.

593
As escolas hodiernamente transmitem costumes e conteúdos majoritariamente heterossexuais.
Para essas instituições é o correto moldar as pessoas a ponto de deixá-las iguais, pois, para essas,
existe um padrão a ser seguido e o padrão normal, nesse contexto, é a adoção por todas e todos dos
moldes atinentes ao heterossexualismo. Esse conceito arraigado nas escolas brasileiras é facilmente
encontrado nas Diretrizes Curriculares Nacionais, na Base Nacional Comum Curricular e nos currículos
formais das instituições de ensino do país. Isso reforça a ideia de que os homossexuais, assexuais,
intersexos e transexuais não são vistos pela educação. Essa invisibilidade inviabiliza a inserção dos
LGBTs no contexto escolar e seu reconhecimento, já que para a escola eles são pessoas exclusivamente
heterossexuais e é nesse formato que são tratados. Diante disso, ao se considerar essa visão tradicional
das instituições de ensino, vê-se que o público cis-heteropatriarcal acaba sendo privilegiado, pois tudo o
que concerne ao mundo hétero acaba sendo salientado, ou seja, os direitos desses são claramente
expostos, enquanto os atinentes às pessoas que estão em condições contrárias não são sequer
mencionados (DANILIAUSKAS, 2011, p. 27).
[...] a escola é a principal representante de todo um conjunto de instituições que
reproduzem a norma heterossexual. A escola é um espaço de sexo e gênero
naturalizados, no qual não há lugar para alunos e alunas gays, lésbicas e transexuais ou
qualquer expressão de sexualidade divergente. [...] No caso da escola, as próprias
políticas e práticas pedagógicas são orientadas por uma norma heterossexual, essa
instituição nasceu disciplinar e normalizadora, assim, a diferença, ou tudo aquilo que está
fora da norma, em especial, a norma sexual, mostra-se insuportável por transbordar os
limites do conhecido. (MOREIRA, 2016, p. 48)

Diante disso, ao procurar políticas públicas de combate a esse tipo de atitude e inclusão de todos,
deparamo-nos com lacunas. Assim, se formos analisar documentos norteadores legais e infralegais
brasileiros, encontraremos aquele texto perfeito, o qual deixa claro que a educação é para todos. Três
desses importantes documentos trazem claros em seus textos essa expressão.
Na Constituição Federal, por exemplo, podemos identificar essa palavra no artigo duzentos e
cinco, que diz:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988)

Outro documento que vale a pena citar aqui, além da LDBEN em seu artigo terceiro, inciso treze,
é o Plano Nacional da Educação em suas metas dois e três. Essas metas garantem a universalização da
Educação Básica a todos os brasileiros e todas as brasileiras. (BRASIL, 2014)
Perante o exposto, perguntamo-nos: existe educação para todos? Quem faz parte desse todo? As
mulheres transexuais se enquadram nesse todo?
Ora, o Plano Nacional da Educação, ao tramitar no Congresso Nacional por meio do Projeto de
Lei 8035/2010, trazia em seu texto um avanço expressivo nesse sentido, para contemplar meta que
motivava a criação de políticas públicas que dessem ao público LGBTQIA+ e às mulheres uma
viabilidade para que esses mais vulneráveis estivessem garantias as quais evitassem a sua evasão.
Essa meta trazia a ideia de se criar métodos os quais combatessem todo ato discriminatório e
preconceituoso no ambiente escolar e era primordial para a luta desse público e, especialmente, da

594
mulher trans no que concerne a seu acesso a permanência em ambiente público de ensino até, no
mínimo, o final da educação básica (BRASIL, 2010).
Conferências realizadas no ano de 2014 foram significativas para o avanço dessas
políticas educacionais. Nesses movimentos criou-se o kit Escola sem Homofobia; o
estabelecimento no calendário escolar do Dia do Combate à Homofobia (17 maio); o
acesso de transexuais e travestis a banheiros conforme sua identidade de gênero, a
formação de profissionais de educação em relação às famílias homoafetivas, a
implementação da Lei Maria da Penha, no que se refere à abordagem das questões de
gênero e violência doméstica nos currículos escolares, a construção de Diretrizes
Nacionais Curriculares de Gênero e Sexualidade pelo Conselho Nacional de Educação.
(CARREIRA, 2015, p. 347)

O Congresso Nacional, entretanto, motivado por uma onda conservadora, retrógada, tradicional
opôs-se a essas linhas do texto original, excluindo-as durante a votação, o que causou a permanência de
lacunas nas leis no que tange à aplicação e ao combate à discriminação e à evasão de transexuais nas
escolas públicas do Brasil.
Por conseguinte, apesar da criação de Conselhos LGBTs em algumas cidades brasileiras, pouco
se avançou nessa seara. São poucas devido a, na maioria das cidades, os projetos de criação desses
conselhos acabarem sendo barrados pelo legislativo dessas comunidades, quando não são vetados pelo
executivo depois de tramitados e aprovados. Ademais, mesmo nessas cidades nas quais os conselhos
conseguem ser aprovados e criados, pouco se avança, dado que o apoio às propostas desses
colegiados em geral não são aceitos e acabam sendo engavetados.
Isso acontece especialmente porque nas escolas e os próprios professores evitam falar desse
assunto. Alguns por receio da comunidade escolar e dos pais mais adeptos aos costumes cristãos,
outros exatamente por entenderem esses costumes como únicos e imutáveis. Diante disso, os casos de
violência nas escolas, seja ela verbal ou até mesmo física, em geral são abafadas e todo o corpo
pedagógico se esconde, fingindo não ver a barbárie acontecer. Essa postura homofóbica que vem desde
as camadas mais baixas da sociedade é um dos maiores empecilhos para que esse avanço aconteça no
Congresso e nas demais esferas políticas e sociais.
Esse silenciamento, que se traduz também na omissão quando aparecem os casos de
violência física ou verbal sofrida por estudantes que expressam sua diferença sexual e
de gênero, é compartilhado pelas (os) professoras (es) que evitam discutir o tema da
diversidade sexual e de gênero nas escolas. (DINIS, 2011, p. 43)

Nessa conjuntura, ao se considerar a política de inserção do LGBT na educação brasileira, pode-


se apontar nas universidades poucas orientações acerca dessa temática em sala de aula. Se analisar as
matérias oferecidas nos campos universitários, perceber-se-á que não há e se há não irá trazer
efetivamente a questão, pois se trata pouco ou deficientemente da questão. É necessário rever toda a
política e se atentar mais para essa deficiência presente nas universidades do país.
Ademais, como já se disse, o fato de as universidades públicas oferecerem cotas não atenua a
dificuldade de esse público alcançar o ensino superior. Diante disso, a dificuldade de o LGBT prosseguir
nos estudos é um dos fatores que impedem a perpetuação desses jovens nas escolas. As transexuais,
por serem o grupo mais discriminado entre os LGBTs, não conseguem concluir nem mesmo o ensino
fundamental ao se perceberem rechaçadas no ambiente.

595
Por serem um ambiente majoritariamente heteronormativo, as escolas perpassam conceitos e
costumes puramente patriarcais. Nesses lugares os profissionais se vedam para questões que
contrariam a visão social na qual o homem másculo, viril e cristão não é o centro. Para as unidades de
ensino, famílias diferentes não são bem-vindas, e isso se prova quando dão importância apenas a
comemorações realizadas unicamente a pais e a mães, a fim de se permitir atrelar ao contexto atinente
ao patriarcado. Segundo Moreira (2016, p.19), por esse motivo transexuais, lésbicas, gays, e demais
gêneros e/ou sexualidades não pertencentes ao modelo heterossexual, ficam à margem desse modelo
normativo heterossexual que regula o espaço e o cotidiano escolar.
Nessa conjuntura, aquelas crianças criadas por dois homens, duas mulheres ou pessoas trans
dificilmente serão vistas nas escolas. Apesar do esforço de algumas escolas em adotar uma data
exclusiva para festas familiares, nominando-as de dia da família, nada se percebe de diferente na
realização dessas celebrações. Isso se dá porque, se observarmos nos ambientes preparados para
essas solenidades, perceberemos que as fotos, murais e trabalhos realizados contemplam puramente o
tradicional, no qual a família considerada “perfeita” é estampada em murais brilhosos à base de
emborrachados. Essas ações tomadas pelas escolas apenas reforçam a intolerância e reproduzem o
desprezo da sociedade aos homossexuais e transexuais.
[...] a escola é, quase sempre, a primeira instituição com a qual a criança tem contato
fora da família, portanto a escola carrega a função de legitimar ou recusar essas
identidades, entre outros significados construídos previamente. Reconhecendo a escola
como lugar de organização e normatização, como um dispositivo de governo e de
controle que além de refletir certas condições, ela as produz (SOUZA, 2016, p. 67).

A partir dessa intolerância velada, as causas de desrespeito e violência dentro dos ambientes
educacionais crescem substancialmente. Essa violência acontece especificamente com frases jocosas e
zombarias, rechaçando o jeito de falar, andar e se portar da criança ou do adolescente que se encontra
nessas condições. Xingamentos constantes, humilhações em banheiros e na frente de colegas são vistos
nas escolas como algo normal, por vezes divertem aqueles que veem e, ao se passar por algo normal,
acabam por ser levados por todos os envolvidos e presentes naquele espaço como uma brincadeira que
serve para divertir, o que se torna longe de ser vista como algo tóxico.
É nessa premissa que o jovem e a jovem homossexual ou transexual, vendo-se impotente e ao se
tornar chacota para todos, evade da escola e procura na prostituição a única saída para manter a sua
sobrevivência, posto que, depois de se declararem aos familiares, muitas transexuais são expulsas de
casa e encontram no programa para fins sexuais a forma de manter a sobrevivência.
Nessa conjuntura, trabalhar as questões LGBTs em um ambiente tão hostil torna-se um desafio.
Nesse sentido essa dificuldade das classes dominantes e consequentemente das escolas de aceitarem
com naturalidade culturas distintas da sua, tal qual a LGBTQIA+, se deve à violência terrível exercida
pela intolerância estética, o que provoca aversão pelos estilos de vida diferentes. Isto é, sem dúvida, uma
das mais fortes barreiras entre as classes. (BOURDIEU, 1982, p.57).
Outrossim, a escola tende a discriminar e tratar o discente de forma a tentar moldá-lo, com
objetivo de discriminar suas origens e peculiaridades, ao se ter em vista transformá-lo em uma pessoa
socialmente padronizada, logo heterossexual, machista e cristã. Nesse sentido, quando é necessário
apresentar conceitos ou culturas contrárias, boa parte do corpo docente se torna resistente:

596
A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando
uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras
classes). […] Esse efeito ideológico, produz-lo a cultura dominante dissimulando a função
de divisão na função de comunicação: a cultura que une é também a cultura que separa e
que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a
definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante (BOURDIEU, 1989, p.10 e
11).

A única forma dessas mulheres e homens sobreviverem se dá a partir da militância com o intuito
de usar os espaços de fala, e se ajudar com o fito de proteção contra a sociedade parcial, machista e
depreciativa. Ao se manifestar e fazer suas vozes ouvidas, esse público encontra uma forma de falar e
de sobreviver, assim consegue seu lugar de fala e a confiança que a escola jamais possibilitou.
A escola, nesse sentido, precisa abraçar esse público, visualizar o ser humano nessas mulheres.
Sua cultura precisa, assim, ser abarcada pelas unidades de ensino brasileiras. Suas linguagens,
expressões, sua forma de viver e vestir precisam ser consideradas pela sociedade, a fim de dar voz e
vez a essa parcela mormente amordaçada pela sociedade cis-heteronomativa. É nesse sentido que as
políticas públicas devem ser revisadas com intuito de contemplar as causas transexuais. Isso se torna
necessário a partir do momento que irão contribuir com a superação dessas mazelas com base na justiça
e nos direitos atinentes a toda humanidade.
Nas escolas a adoção de conteúdos que contemplem causas homossexuais e trans precisam
permear para transpassar todas as disciplinas, pois a cultura, a fala e a situação socioeconômica que
afetam esse público devem também servir de debate. Apesar dos PCNs apresentarem em seu
documento uma seção que trata da orientação sexual como tema transversal, o menosprezo a esse tema
acaba por tornar o próprio documento menosprezado, posta, naturalmente, a pouca importância dada a
esse documento, optativo dentro das escolas e por isso pouco ou nada difundido. Enquanto isso os
documentos obrigatórios, tal qual a BNCC, LDB ou os demais documentos supra legais, nada falam
acerca desse tema.
Os PCNs, apesar de não se difundirem nas escolas, trazem em seu teor orientações valiosas no
que concerne auxiliar o público gay e travesti no que concerne sua existência e seu espaço de fala. A
importância desse aparato nas escolas se faz quando ele norteia o docente no trato exatamente dessas
premissas mais sensíveis para a sociedade:
Com a inclusão da Orientação Sexual nas escolas, a discussão de questões polêmicas e
delicadas, como masturbação, iniciação sexual, o “ficar” e o namoro, homossexualidade,
aborto, disfunções sexuais, prostituição e pornografia, dentro de uma perspectiva
democrática e pluralista, em muito contribui para o bem-estar das crianças, dos
adolescentes e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual e futura (BRASIL, 1997,
p. 293).

Apesar dos PCNs estarem cada vez mais em desuso, esse documento ainda é um dos mais
completos no que concerne a aplicação de questões transversais nas salas de aula. Os demais
documentos em voga pouco ou nada contribuem para essa transversalidade. Caso se procure, por
exemplo, temas importantes como educação ambiental, sexualidade e condição sexual na BNCC sair-se-
á com a sensação de que ao longo dos anos, ao invés de se avançar, retroagiu-se. Ao deixar esses
temas de lado e os menosprezar, os poucos avanços nas políticas públicas atinentes às questões
consideradas tabus estagnaram-se.

597
Isso se dá especialmente devido ao avanço de ideais conservadores que tomou conta do mundo
globalizado, representado atualmente pelo atual presente da república Jair Messias Bolsonaro e seus
seguidores. A pauta ligada aos costumes desses seguidores tem como intuito retroagir nos direitos dos
homossexuais e transexuais, assim como em todo avanço ocorrido. Para esses, o desejo de viver do
passado, com o objetivo de conservar os conceitos cristãos e tradicionais são prioridade e estão acima
da convivência pacífica social, da economia, educação e saúde. Para eles, a religião e os preceitos
ensinados na bíblia cristã devem estar acima de tudo o que se conquistou pela civilização
contemporânea. Toda essa visão retrógada do governo atual tem brecado toda política pública
educacional relacionada à população LGBT. Pouco ou nada no sentido de progresso aos homossexuais
e transexuais pode se listar desde a posse do governo Bolsonaro. Nele, esse público, ao contrário, sofre
constantes ataques, questionado e tornado alvo de constantes humilhações e violências.
Até mesmo programas antigos, lançados pelo governo Lula/ Dilma, hoje vêm sendo alvo de
críticas e notícias falsas, para além de denegrir os ex presidentes, diminuir e discriminar o público
LGBTQIA+. Exemplo disso é o programa Brasil sem Homofobia, lançado em dois mil e quatro pelo
governo Lula durante a gestão do ex-ministro da educação Fernando Haddad. Esse programa visava
orientar a sociedade, a fim de torná-la mais tolerante e respeitosa. Esse material foi criado durante o
governo Dilma, a fim de destiná-lo às escolas. Nele havia conteúdo de esclarecimento e orientação da
sociedade acerca de condição sexual e questões de gênero. Esse material recebeu o nome de programa
Brasil sem homofobia. O kit continha livros, revistas, boletins informativos, caderno de instruções,
sugestão de formação docente e vídeos.
Esse material trazia conteúdos pertinentes e atinentes à faixa etária indicada nos materiais e
pretendia apenas combater a violência e todo tipo de preconceito contra LGBTs. Contudo, representantes
do poder público conservadores iniciaram uma campanha para difamar o material e levar boa parte da
população a pressionar o descarte do material. Dessa forma, o violento e exaltado posicionamento dos
seguidores das pautas de costumes e crenças acabou deturpando, junto com a impressa, todo o objetivo
do material, o que levou a presidente Dilma a vetar a distribuição do material. Essa deturpação rendeu
até hoje um abundante levante de notícias falsas acerca desse fato; ao apelidar o material de kit gay,
acabaram por diminuir e pormenorizar o material.
Nessa perspectiva, ao apossar-se dessa falácia acerca do material e de um arraigado ódio pela
população transexual e gay, o atual presidente da república foi eleito em 2018, levando ao longo de toda
a sua gestão esse ódio. O que naturalmente acarretou na atual política de retrocessos e ódio aos LGBTs.

Resultados e discussão

No que se refere aos artigos publicados em periódicos científicos, identificados na base de dados
da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), observa-se o pouco investimento
dedicado à investigação do assunto. As publicações relacionadas a ele, além de escassas, são
relativamente recentes e têm sido um tema pouco explorado. A amostra do estudo foi composta por três
artigos científicos que obedeceram aos critérios de inclusão e exclusão determinados para este estudo.

598
Após leitura na íntegra dos textos selecionados, enfocando os objetivos desta pesquisa, é apresentada
no quadro 1 uma breve descrição dos artigos científicos que apresentaram relação com o tema proposto.

Quadro 1: Descrição dos artigos selecionados para avaliação das publicações do tema proposto

Título e Revista de
Autores e Ano Tipo Objetivos População estudada
publicação

Igualdade e diferenças
Gestores do
nas políticas Abordar as políticas de
CARREIRA, Tese de Ministério da
educacionais: a agenda diversidade na
Denise. 2015 doutorado Educação, ativistas
das diversidades nos educação.
da sociedade civil.
governos Lula e Dilma

Compreender a
A política educacional trajetória das políticas Ativistas do
SOUZA, José
brasileira em interface Dissertação públicas para a movimento social
Antonio Correia
com a diversidade sexual de Mestrado diversidade sexual e de LGBT na cidade de
de
no período de 2003 a 2014 gênero no âmbito da Salvador - BA.
educação

Avaliar no PNE 2014 a


presença de elementos
JANELAS FECHADAS: O Instituições
MOREIRA, Tese de narrativos relativos às
PERCURSO DA PAUTA educacionais e
Jasmine doutorado políticas educacionais
LGBT NO PNE 2014 sociedade civil.
de inclusão da
população LGBT

Analisar a trajetória de
introdução e
Pessoas ligados ao
problematização da
Movimento LGBT,
sexualidade, mais
Relações de gênero, gestores e técnicos
especificamente as
diversidade sexual e do governo que
questões LGBT, como
políticas públicas de DANILIAUSKA Dissertação participaram
direitos humanos nos
educação: uma análise do S, Marcelo de Mestrado diretamente do
documentos, planos e
programa Brasil sem processo de criação
programas educacionais
homofobia e/ou implementação
do governo federal
do Brasil Sem
tendo como foco o
Homofobia.
Programa Brasil Sem
Homofobia.

A partir desse estudo, procurou-se entender a necessidade de criar políticas públicas


educacionais específicas para mulheres transexuais. Assim, após análise, percebeu-se a existência de

599
lacunas que precisam ser preenchidas com o fito de ampliar o debate e criar políticas que amparem
essas mulheres no âmbito educacional.
Entretanto, considerando o atual governo federal, essa possibilidade chega a ser nula, posto que
o próprio presidente se declara transfóbico e, em favor de sua ideologia e costumes, tem barrado
quaisquer tipos de políticas específicas ao público LGBTQIAPN+. Diante disso, esse público precisa
resistir, tomando posse de seus direitos e recorrendo ao judiciário quando necessário.
No que concerne a elaboração de materiais que discutam essa temática, é necessário que as
universidades fomentem estudos que tratem das políticas educacionais para mulheres transexuais.
Diante disso, a criação e divulgação de matérias específicas que procurem debater essa questão se faz
fundamental para a elaboração de artigos, dissertações e textos que tratem dessa tônica.
Nessa perspectiva, ao tomar atitudes tais quais as elencadas, será possível ampliar o debate e
descortinar a insensatez de parte dos poderes públicos que insistem em estigmatizar mulheres
transexuais e travestis.

Considerações finais

Ao se considerar os governos FHC, Lula e Dilma, percebeu-se um avanço sem precedentes no


que concerne políticas educacionais brasileiras. É possível citar, desde então, algumas das mais
importantes, tais como a Lei de Diretrizes e Bases Nacionais, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
Prouni, Sisu, PDDE, FUNDEB e outros.
Essas políticas até hoje proporcionam um avanço considerável para a educação brasileira.
Contudo, essa temática ainda não tem sido suficiente, posto que ela não abrange toda a população, o
que exclui de boa parte desse sistema os mais vulneráveis que, desde o princípio, sofrem com o descaso
daqueles que comandam a máquina pública.
Essas políticas seriam fundamentais para que a educação se tornasse mais efetiva e confortável
para essas pessoas. Dessa forma, ao se considerar mulheres transexuais e travestis inseridas no
contexto escolar, percebe-se que essas não chegam a concluir seu ensino básico em comparação com
outras parcelas da sociedade.
Isso invalida essas pessoas e aumenta a possibilidade de evasão escolar, posto que vivemos em
uma sociedade cis heteropatriarcal, na qual apenas o homem hétero, branco, cristão tem vez e voz.
Nesse contexto, as mulheres trans e travestis tendem a sofrer nas escolas e espaços educacionais todo
tipo de intimidação, perseguição, assédio e violência. Temendo pelas suas vidas, essas desistem do
processo escolar. Outros casos de evasão acontecem também devido à necessidade de sobrevivência.
Ao se considerar o desamparo familiar que muitas vezes acontece com essas mulheres e travestis, dado
que, quando essas resolvem ser elas mesmas, os parentes tendem a expulsá-las de casa, deixando-as à
mercê, com fome e sem lugar para ficar, e isso se torna fator precípuo para que essas se entreguem à
prostituição a fim de se manter, o que as leva, naturalmente, a desistir do processo educacional.
Nessa conjuntura, faz-se necessária a criação dessas políticas, visando tornar a educação no
país mais equânime. É nesse sentido que, dado o tamanho da desigualdade entre as pessoas no Brasil,

600
tratar os desiguais de forma desigual é primordial para que os erros do passado sejam corrigidos, com o
objetivo de tornar o mundo mais igualitário e justo.

REFERÊNCIAS
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Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 30 ago.
2022.
________. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. 1995.
________. Parâmetros curriculares nacionais: documentos Temas Transversais. Brasília, 1996.
BARDIM, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad. Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Martins
Fontes: 1977.
BOURDIEU, P. O poder simbólico Tradução: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CARREIRA, Denise. Igualdade e diferenças nas políticas educacionais: a agenda das diversidades
nos governos Lula e Dilma. São Paulo: Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, 2015. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-
20042016-101028/publico/DENISE_CARREIRA_rev.pdf. Acesso em: 30 ago. 2022.
DANILIAUSKAS, Marcelo. Relações de gênero, diversidade sexual e políticas públicas de
educação: uma análise do programa Brasil sem homofobia. São Paulo: Catálogo USP, 2011.
Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-06072011-095913/publico/
MARCELO_DANILIAUSKAS.pdf. Acesso em: 24 jul. 2022.
GOIS, Antônio. Quatro décadas de gestão educacional no Brasil: Políticas públicas do MEC em
depoimentos de ex-ministros. São Paulo: Fundação Santillana e Instituto Unibanco, 2018. Disponível
em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/santillana/4_decadas_de_gestao_educacional.pdf.
Acesso em: 30 ago. 2022.
LUDKE, M. e ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU,
1986.
MELO, Adriana A. Sales. A mundialização da educação. Consolidação do projeto neoliberal na
América Latina. Brasil e Venezuela. Macéio: Edufal, 2014.
MOREIRA, Jasmine. JANELAS FECHADAS: O PERCURSO DA PAUTA LGBT NO PNE 2014. Paraná:
Biblioteca de Ciências Humanas – UFPR, 2016. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/44031/R%20-%20D%20-%20JASMINE
%20MOREIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 30 ago. 2022.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação (Parte 1 e 2). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980.
RAMOS, Jefferson Evandro Machado. Educação na Idade Média. São Paulo: Sua pesquisa.com, 2021.
Disponível em: https://www.suapesquisa.com/idademedia/educacao_idade_media.htm#:~:text=A
%20educa%C3%A7%C3%A3o%20na%20%C3%A9poca%20Medieval,jovens%20e%20adultos%20da
%20nobreza.&text=Como%20na%20Idade%20M%C3%A9dia%20havia,educa%C3%A7%C3%A3o
%20teve%20grande%20influ%C3%AAncia%20religiosa. Acesso em: 30 ago. 2022.

601
SILVA, Gabriele. Qual o significado da sigla LGBTQIA+? Entenda o significado de cada letra e a sua
importância para o movimento. 2020. Disponível em:
https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/dicas/qual-o-significado-da-sigla-lgbtqia
SOUZA, Dominique Guimarães; MIRANDA, Jean Carlos; SOUZA, Fabiano dos Santos. Aspectos
históricos da educação e do ensino de Ciências no Brasil: do século XVI ao século XX. Rio de Janeiro:
Fundação Cecierj, 2018. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/18/22/aspectos-
histricos-da-educao-e-do-ensino-de-cincias-no-brasil-do-sculo-xvi-ao-sculo-xx. Acesso em: 30 ago. 2022.
SOUZA, José Antônio Correia de. A política educacional brasileira em interface com a diversidade
sexual no período de 2003 a 2014. 2016. 172 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2016. Disponível em: https://tede.utp.br/jspui/bitstream/tede/1577/2/A
%20POLITICA%20EDUCACIONAL.pdf. Acesso em: 30 ago. 2022.

602
“PREFIRO NÃO DECLARAR!”: SILENCIAMENTOS E SEXUALIDADES EM ESPAÇOS
ACADÊMICOS-CIENTÍFICOS

Wilker Ramos-Soares
Sou uma pessoa não branca, não binária, não monogâmica, de classe social não abastada, oriundo de escola
pública e beneficiário das ações afirmativas de cotas sociais para universidades públicas, filho de uma mulher negra
empregada doméstica e de um homem branco pedreiro e motorista de caminhão, mestrando em linguagem e
práticas sociais pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologia (PPG-
IELT) da Universidade Estadual de Goiás (UEG), graduado em Licenciatura em Letras Português/Inglês pela
mesma instituição e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Goiás (FAPEG). w.rsp@outlook.com

Algumas palavras para iniciar a discussão

Neste resumo expandido, compartilho algumas reflexões construídas a partir de um recorte do


material empírico de uma pesquisa de mestrado em andamento que se insere na área de Formação
Crítica de Professoras/es de Línguas. Assim, para este texto, discuto as relações de silenciamento e
sexualidade por trás da escolha em “não declarar” a orientação sexual no questionário de
(auto)identificação e as reverberações disso nas falas das/os minhas/meus participantes de pesquisa.
Logo, para esse debate, tensiono a partir da seguinte interrogação: Por que enquanto pessoas não
heterossexuais ainda temos receio/medo de declarar nossa sexualidade em espaços acadêmicos-
científicos?
Praxiologicamente, caminho nos pressupostos da Linguística Aplicada Crítica, me
(des)localizando na arena decolonial. Além disso, no que se refere à metodologia, o estudo caminha
pelas discussões dos estudos pós-qualitativos. Os resultados parciais dão indícios de que, ao
problematizarmos temas com viés crítico e reflexivo, é possível desvelarmos algumas problemáticas e
inquietações no que se passa por uma escolha “comum”, aqui em questão o medo/receio de se colocar
enquanto uma pessoa não heterossexual.

Lampejos sobre o contexto do estudo

As discussões que apresento neste resumo expandido são um recorte de uma pesquisa de
mestrado em andamento que tem como cenário uma experiência de formação docente vivenciada em
uma oficina-colaborativa no período de 08 de outubro a 26 de novembro de 2021, que contou com a
participação de 7 licenciandas e 6 licenciandos de cursos de Letras de 4 universidades. Tal oficina é
entendida como um alpendre - a construção de um entrelugar de escuta e fala; um espaço com
possibilidades outras de construções de sentidos sobre formação de professoras/es de língua(gen)s.
Meu objetivo com esta discussão é debater o porquê ainda existe um receio/medo de declaramos
nossa sexualidade não heterossexual em espaços acadêmicos-científicos. Para tanto, os excertos que
optei por destacar no próximo tópico surgiram a partir de um relato que ocorreu no quinto encontro da
oficina. Naquela ocasião, estávamos discutindo as produções de sentido e semiótica presentes no clipe
da música “Etérea”, do Criolo, e sobre algumas inquietações acerca dos corpos que apareciam e o fato

603
de esse clipe ter sido um motivador para uma demissão de um professor da rede municipal de ensino da
cidade de Criciúma, na região sul de Santa Catarina 111, que havia usado esse clipe de forma didática em
sua aula de Artes.

Figura 1 – Print de tela do “Criolo - Etérea (doc)”. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=77u1lCDshzE&t=13s

Depois de discutirmos os possíveis sentidos construídos naquela produção semiótica, um/a


dos/as alpendreiros/as traz uma narrativa interessante sobre a sua decisão de “preferir não declarar” sua
sexualidade no ato de preenchimento do questionário ainda antes do início dos encontros. Partindo de
uma transcrição parcial de uma fala gravada em vídeo/áudio desse licenciando e um trecho presente na
(auto)narrativa enviada pelo mesmo, a seguir apresento os excertos do material empírico e sentipenso as
co-construções possíveis a partir deles.

Já está na hora de poder nos declararmos

No início da oficina-colaborativa optei por usar um questionário de (auto)identificação


perguntando sobre classe social, gênero, sexualidade etc. e, também, as preferências pronomais de
cada um/a das/os participantes. Foi encarando as informações presentes naqueles dados que algumas
percepções me inquietaram. Aqui, em especial, a relação de orientação sexual.
Quando pensamos na relação entre orientação sexual e identidade de gênero, é pertinente
destacar que sete pessoas se identificaram como heterossexuais, duas como homossexuais, duas como
bissexuais e três preferiram não se declarar. Mas, ao longo dos encontros, uma dessas pessoas que não
declarou sua orientação sexual se manifestou enquanto homossexual e as outras duas pessoas como
não heterossexuais em outros encontros.

111 Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/08/26/prefeito-de-criciuma-demite-professor-por-exibir-


clipe-de-musica-de-criolo-em-sala-de-aula.ghtml.

604
Um exemplo disso é o fato de eu me entender como uma pessoa homoafetiva, mas no
questionário que você passou, Will, eu não tive coragem de responder de verdade. Eu
estou conhecendo ainda a UEG, eu fiquei com receio de ser um ambiente hostil, de talvez
isso fazer eu sofrer com alguma possível discriminação, como passei em alguns lugares.
Principalmente quando frequentava muito a noite 112. Mas (+) agora eu já consigo sentir um
pouco mais confortável em falar disso, porque conheci as pessoas e já me sinto seguro
pra manifestar minha sexualidade, né? Então, tem isso também. [Fala do alpendreiro
Ulisses, trecho transcrito do 5º encontro]
[...] De qualquer forma, houveram situações de “bullying”, mesmo quando esse termo
ainda nem existia. Eu não tinha consciência de que era homoafetivo. Mas parece que
todos ao meu redor sabia. Na 8ª série, namorava um rapaz, e uma vez fomos agredidos
verbalmente por alguns skatistas quando estávamos saindo da aula. [...] Enfim, fora isso,
eu consegui chegar à UEG este ano e estou gostando bastante. Porém, já percebi que
qualquer tipo de preconceito, de fato, está enraizado na nossa sociedade em todos os
meios. Fico extremamente chocado quando vejo que em 2021 ainda exista tanto discurso
de ódio. [...] Acho que há um caminho muito grande a ser trilhado para que o mal da
discriminação nas escolas e Universidades arrefeça. [Trecho da (auto)narrativa do
alpendreiro Ulisses enviada após o 3º encontro]

Como podemos notar na justificativa do alpendreiro Ulisses, presente na sua fala no encontro
cinco, exemplificada no trecho destacado da sua (auto)narrativa, o motivo de não ter colocado no
questionário sua orientação sexual inicialmente foi pelo receio de não conhecer o grupo e, assim sendo,
não se sentir confortável de se expor devido a já ter sido vítima de algumas hostilidades em alguns locais
por sua orientação sexual. Mas ressaltou que, ao longo das reflexões e dos debates, se sentiu
confortável em falar sobre isso abertamente por sentir que ali seria um espaço de segurança. Todas as
pessoas que se percebem como heterossexuais identificaram-se desde o início, não tiveram o mesmo
receio, entendendo que socioculturalmente a sua orientação sexual é aceita e respeitada.
Isso evidencia o caráter problemático da pesquisa realizada, pela primeira vez, com o intento de
mapear a população LGBTQIA+ no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De
acordo com essa pesquisa, realizada através de dados coletados em 2019, somente 1,8% da população
se identifica como não heterossexual. Porém, a forma como esses dados foram recolhidos mostra a
problemática. Um membro de cada família respondia a pesquisa, além de, nessa pesquisa em
específico, não se levar em consideração nenhuma pergunta sobre identidade de gênero, deixando, mais
uma vez, pessoas trans e travestis de fora da pesquisa.
Se, dentro de um espaço acadêmico, em uma oficina ofertada para licenciandas/os, ainda houve
pessoas que optaram por manter sua sexualidade em segredo com medo de possíveis hostilidades,
como afirmar que, na configuração em que essa pesquisa do IBGE foi aplicada, os dados podem
realmente ser considerados próximos da realidade? Principalmente se levarmos em consideração que o
Brasil é o país, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), que mais mata pessoas não
heterossexuais no mundo. Com o grande aumento de discursos de ódio e violências enormemente
influenciados pelo, infelizmente, ainda atual governo de Jair Messias Bolsonaro, como podemos acreditar
na veracidade desses dados? E quais os impactos disso para a oferta e manutenção de direitos e ações
sociais voltados para a proteção e reivindicação de direito das pessoas LGBTQIA+ no Brasil?
Por isso, constantemente precisamos nos perguntar sobre até que ponto nossas pesquisas estão
desvelando esses fatos violentos e não apenas passando por dados como esses e os entendendo como
naturais. Samilo Takara (2019, p. 234) nos convida a refletir que “[l]iteralmente, gays, lésbicas, travestis e
112 Em uma outra atividade da oficina, o alpendreiro Ulisses conta sua relação com o que ele chama de ‘noite’.

605
pessoas trans são mortas pela perpetuação da violência contra aquelas que margeiam a heteronorma”.
Nesse contexto, acredito que “problematizando e tensionando as relações de poder, possibilita-se a
tomada de consciência sobre como a linguagem contribuiu, e contribui, para a dominação de alguns
corpos por outros [...] e que essa tomada de consciência é o primeiro passo para um processo de
emancipação” (RAMOS-SOARES; DA SILVA; GOTTARDI, 2022, p. 47).

Não há conclusão aqui

Neste resumo expandido compartilhei algumas reflexões construídas a partir de um recorte do


material empírico de uma pesquisa de mestrado em andamento que se insere na área de Formação
Crítica de Professoras/es de Línguas. Nos excertos do material que optei por destacar, pude perceber
que a sexualidade inicialmente escondida no início da oficina-colaborativa que resultou na potente fala de
um/a das/os minhas/meus participantes de pesquisa nos possibilita desvelar possíveis silenciamentos na
tentativa de des(re)construir uma sociedade menos violenta em um futuro.
Como um convite de reflexão final, espero que este estudo e as questões que dele emergem e
insurgem possam ser possibilidades de percebermos/construirmos uma educação aberta e atenta a
vozes e corpos silenciados e abafados há tanto tempo e que mais pesquisadoras/es em linguagem
possam problematizar cada vez mais os dados dos seus estudos com o intento de (re)pensar e desvelar
silenciamentos presentes neles.

PALAVRAS-CHAVE: colonialidades; sexualidade; Linguística Aplicada Crítica. Formação Crítica de


Professoras/es.

REFERÊNCIAS
RAMOS-SOARES, Wilker; DA SILVA, Vanessa Correia; GOTTARDI, Letícia. Drag Queen Pabllo Vittar
como “O Homem do Ano”: representações de mo(vi)mentos de (re)existências. Revista de Comunicação
Dialógica, Rio de Janeiro, n. 7, p. 30-52, 2022.
TAKARA, Samilo. Você já se sentiu odiado hoje? Pedagogias culturais do ódio acerca das
desobediências da normalidade. BAGOAS, v. 20, p. 225-263, 2019.
BAHIA, Grupo Gay. Relatório 2019: Assassinatos de LGBT no Brasil. Salvador: Grupo Gay da Bahia,
2019.
BAHIA, Grupo Gay. Relatório 2020: Assassinatos de LGBT no Brasil. Salvador: Grupo Gay da Bahia,
2020.

606
PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES TRANSITÓRIAS NA/PELA ESCOLA DE
PESSOAS NÃO-BINÁRIAS EM FORMAÇÃO INICIAL

Arthur Henrique Sciarini


Mestrando no programa de pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) do Câmpus de Bauru. arthur.sciarini@unesp.br

Harryson Júnio Lessa Gonçalves


Doutor em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Faculdade de
Engenharia do Câmpus de Ilha Solteira da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
harryson.lessa@unesp.br

Certa vez em uma palestra, me pediram para que me apresentasse e contasse um pouco sobre
mim, sobre quem era Arthur (Arth). Acho de extrema dificuldade e recorro muitas vezes àquela
apresentação: “Meu nome é Arthur, tenho 24 anos, sou de uma cidade pequenininha chamada Ipaussu,
no interior de São Paulo (…)” e finalizo com minha formação acadêmica e titulações. Dessa vez, fiz
diferente. Me lembrei de uma amizade que fiz recentemente, mas que me abalou de formas
inimagináveis, quando me disse que quem nós somos é a soma de todas as pessoas que tocamos e
deixamos ser tocados em nossa trajetória de vida; somos construídos pelas mãos de todas pessoas que
cruzaram nosso caminho e contribuíram com algo que carregamos conosco até mesmo após o
desencontro.
Com essa ideia na cabeça, começo a refletir que sou muito mais do que os meus diplomas, meus
referenciais teóricos, meus títulos. Arth é a coragem de cada LGBT+ que sai na rua e faz da sua
existência, resistência. Arth é a perseverança, a bondade, a curiosidade, os conhecimentos ancestrais e
a educação de minha avó (dona Léia). É a indignação com injustiças, com o que é errado, com a vontade
de fazer uma educação melhor, o rock e o amor pela aventura de minha mãe (Lisiane). É também o
carinho, a bondade e a inocência de minha irmã (Lorenzza). A masculinidade não frágil que foi passada
mesmo sofrendo influências do machismo e patriarcado de meu avô (Antônio Carlos), que infelizmente
não pode realizar o sonho de me ver concluir a graduação e ingressar na pós. É a feminilidade que
permite chegar em lugares, tocar pessoas, transmitir mensagens, ser e estar no mundo de minha
persona, quase alter ego drag queen (Delfine). É o senso de comunhão, diversão, inimizade ao fim,
alegria, sonhos, desejos e delírios de meus amigos próximos (aqui ficaria até 2023 para citar todos que
ainda trago comigo e os que já ficaram pelo caminho). É a vontade de levar conhecimento de qualidade,
emancipação do conhecimento, senso crítico, indignação com a forma que lidamos com as sexualidades
e a vontade de mudar o mundo através da educação da professora, orientadora e também amiga (Bruna
Diniz). É o olhar cuidadoso para o outro, subvertendo as amarras da colonização, a leveza e o respeito
do meu atual orientador e amigo (Harryson Lessa).
E eu poderia ainda citar muitas contribuições para a confecção felizmente eternamente inacabada
dessa pessoa não-binária, mas paro por aqui para não estragar a surpresa e o privilégio que é conhecer
melhor uma nova pessoa.
Em todos os processos da minha vida, as questões de gênero e sexualidade foram presentes,
desde pequeno não atender aos comportamentos e signos da masculinidade fez com que muitos dos

607
olhares se voltassem a mim, com teor de preconceito, desaprovação, me colocando em lugares de
isolamento, entre outras coisas. As inquietações foram muitas: porque deveria existir uma única forma de
ser no mundo? Por que haveria limitações nas formas de ser e estar? Tudo isso me acompanhou por
muito tempo, até o momento em que ingressei na universidade, mudei de cidade e passei adotar os
comportamentos, vestimentas, signos nos quais me sentia confortável. Passei também a me aprofundar
nas temáticas de gênero e sexualidade durante a graduação. Temática essa que, embora com
defasagens, é abordada em cursos de formação devido à valorização da diversidade sexual em
programas governamentais, além da presença nos PCNs, e em teoria aparece na produção científica
acerca do ensino de ciências e biologia, diagnosticando a dificuldade de professores para abordar e lidar
com assuntos, muitas vezes pelas próprias concepções ou pela forma em que se encontra o ensino no
país (PEREIRA; MONTEIRO, 2015).
Estas inquietações motivam a elaboração de uma dissertação de mestrado do programa de pós-
graduação Educação para a ciência e matemática da UNESP – Campus Bauru.
Nosso objetivo geral é compor uma etnografia através da investigação de vivências e influências
do gênero e sexualidade no contexto de formação inicial de estudantes do curso de ciências biológicas
da UNESP – Campus Ilha Solteira e como esses elementos transpassam os processos formativos, as
construções de identidades transitórias, as afetações e como a temática transpassa o ensino de ciências.
Para isto, busca-se nos objetivos específicos: realizar uma revisão sistemática da literatura sobre as
discussões de gênero e sexualidade na formação inicial e nos cursos de ciências biológicas; investigar
como os estudantes vivenciam e performam o gênero e a sexualidade e como essas vivências
atravessam os processos de formação.
Para tanto, propomos realizar momentos de diálogos (individualizados) com 3 pessoas as quais
se identificam e auto declaram serem não-binários e que atualmente cursam o curso de Ciências
Biológicas na UNESP – Campus Ilha Solteira (entre pesquisadoras/es e colaboradoras/es da pesquisa).
Para fins de apreensão das reminiscências, os diálogos ocorrerão no mínimo em três sessões de bate-
papo que servirão como um contato inicial com os colaboradores. Tais momentos de diálogo serão
filmados ou gravados o áudio (desde que autorizado pelas colaboradoras da pesquisa) com intuito de
subsidiar a produção/construção do texto etnográfico final. Após esses momentos, pretende-se
acompanhar o cotidiano dessas pessoas, tanto nos momentos particulares como nos momentos que
tangenciam vida acadêmica, profissional e pessoal. Então serão marcados encontros em ambientes
externos à academia para dialogar sobre as vivências que foram significativas para o processo de
construção identitária. O acompanhamento de atividades acadêmicas como aulas, práticas, estágio,
ocorrerá para que se possa compreender as relações que impactam o processo de formação e
posteriormente outros encontros para se tecer relações entre essas duas. É de extrema importância para
os pesquisadores acompanhar as relações interpessoais que são consolidadas, mesmo as não verbais e
simbólicas. Neste sentido é que a escrita etnográfica se materializará a partir da experiência em campo,
onde refletirão o entendimento de significados dados aos discursos (entre)tecidos pelas (con)vivências
com os interlocutores da pesquisa. Nesse contexto, corroboramos a perspectiva de Favret-Saada (2005)
acerca das situações comunicacionais que constituem uma etnografia pautada em/nas afetações: “eu, ao

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contrário, escolhi conceder estatuto epistemológico a essas situações de comunicação involuntária e não
intencional: é voltando sucessivamente a elas que constituo minha etnografia” (p. 160).

PALAVRAS-CHAVE: gênero; formação inicial; etnografia; não-binário.

REFERÊNCIAS
FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263 . Acesso em: 16 maio. 2022.
PEREIRA, Zilene Moreira; MONTEIRO, Simone Souza. Gênero e sexualidade no ensino de ciências no
Brasil: análise da produção científica recente. Revista Contexto & Educação, v. 30, n. 95, p. 117-146,
2015.

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TRANSGENERIDADE E IDIOSSINCRASIAS NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Alan Baloni
Físico/Matemático/Pedagogo

Arguir sobre sexualidade, identidade de gênero e orientação sexual dentro das religiões afro-
brasileiras está longe de ser um debate harmônico, principalmente quando a população preta, já
estigmatizada por um racismo institucional, se une às populações LGBTQIA+ que experimentam uma
violência cotidiana e cruel, sendo para uma sociedade cisheteronormativa uma espécie de ameaça
cultural e religiosa. As religiões de matriz africana se caracterizam por acolher as minorias e procurar
aceitar o indivíduo como ele é. Não há necessidade da sua conversão ou juízo de valores para o seu
aceitamento na comunidade religiosa. Cada indivíduo tem suas particularidades e idiossincrasias
respeitadas, para isso, importando apenas o que denominam, pelo povo de origem Ioruba, de Iwá Pelé
(O bom caráter). Por ser uma religião de excluídos, as denominações de matriz africana se comportam
como elementos agregadores e de acolhimento para qualquer ser. Contudo, a transexualidade ou
transgeneridade ainda é um desafio nos dias de hoje. Refletir sobre isso nas comunidades de terreiro
implica numa educação originária de uma cultura binária, pois ou se é homem ou se é mulher, ainda há
um pensamento colonial arraigado de conservadorismo em limitar sexualidade nos estigmas de macho e
fêmea, além de estarmos tomados por grandes tabus, mitos que advêm de uma cultura eurocêntrica,
branca, patriarcal que os tornam figuras indesejadas nos espaços sagrados. Contudo, as religiões afros
trazem, antes de qualquer elemento, o culto à Ori (cabeça). Ori é a divindade individualizada de cada ser
humano. Essa divindade é o ser que orienta o destino humano, que o faz ser bom ou mau de acordo com
o seu livre-arbítrio. Ori (cabeça) é a máxima. É a decisão de cada ser que nasce e morre com ele. Cada
indivíduo possui seu Orí, seu destino. É como a impressão digital de cada ser. É Orí que detém o poder
antes do Ser tomar forma, é ele o principal a vir ao mundo quando no momento do nascimento e que o
acompanha até mesmo após a morte. Entre os povos iorubás há um dito popular que “nenhum orixá ou
divindade abençoa ao homem se o seu ori não permitir”. Então, nos espaços sagrados das comunidades
de terreiro, se uma cabeça determina seu destino, ela deveria ser respeitada. O que existe é a deferência
pela decisão do outro. Na transexualidade o Ori da pessoa é antagônico ao sexo biológico, formando a
ideia de “identidade de gênero” que difere de sexo. Enquanto a primeira é a experiência da pessoa a
respeito de si mesma e das suas relações com o outro gênero, ou seja, como ela se percebe na
sociedade, a segunda refere-se às distinções biológicas e anatômicas como genitálias, seios, aparelhos
reprodutivos. As religiões africanas oferecem (ou pelo menos deveriam oferecer) aos seus seguidores a
possibilidade de encontrar e construir a sua própria identidade, e isso inclui a identidade de gênero. A
disforia de gênero (termo usado para designar o sentimento forte e persistente de que o sexo anatômico
da pessoa não corresponde ao seu sentimento interno de ser do sexo masculino, feminino, misto, neutro
ou algo mais causando-lhe dor e angústia) tem crescido a cada dia, tendo um dos seus responsáveis a
própria religião que, com seus dogmas e “pré-julgamentos”, busca enlatar os sentimentos dessa
comunidade, baseando-se em conceitos transfóbicos e segregadores. Sendo assim, uma religiosidade

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nascida da mãe preta excluída, do homem preto escravizado, agora dá margem para abraçar e agregar
aqueles que se sentem marginalizados. É um dos poucos territórios aonde a população trans se depara,
ou pelo menos tenta se deparar, que haja uma sociabilidade e respeito a sua individualidade. Limitar o
sagrado, o espiritual a uma condição macho e fêmea, ou masculino e feminino é transgredir todo o
processo de luta contra o sincretismo e se submeter ao pensamento (e comportamento) neoconservador
que não é base para o pensamento africano diaspórico. Recorrer a um pensamento e uma propositura
de decolonialidade é resgatar o que há de mais puro, de maior dignidade e respeito aos membros
pertencentes aos territórios que congregam religiões de matriz africana. Romper com esse modelo
eurocêntrico é acreditar na individualização do ser, respeitando suas particularidades e sentimentos,
promovendo o acesso a uma experiência religiosa não encontrada em outras denominações. Esse
processo de decolonialidade é o caminho para obstar e desarranjar paradigmas e princípios impostos
aos povos servis durante todos esses anos, trazendo também uma crítica real e prática à modernidade e
ao capitalismo.
Um proverbio em linguagem Iorubá diz: “Bí orí bá ti mọ, là ńdá fìlà fún um” (Tal como a cabeça é
em tamanho, assim são feitos os chapéus para ela). Isso nos traduz que cada ser possui seu destino e,
como tal, é individualizado e moldado a sua história ancestral. Então, aceitar e respeitar aquilo que o
próximo traz como “bagagem ancestral” é a primeira regra para a construção da vida nas comunidades
de terreiro. Limitar uma pessoa a sua condição biológica apenas, desconsiderando as formas holísticas
do pensamento, não é só insano, mas de uma crueldade sem tamanho àqueles que já se encontram
marginalizados à vista da sociedade ocidental.

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