Você está na página 1de 9

View metadata, citation and similar papers at core.ac.

uk brought to you by CORE


provided by Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos): SEER Unisinos

Neotropical Biology and Conservation


3(2):86-94, may - august 2008
© by Unisinos

Análise semântica dos nomes comuns atribuídos


às espécies de Passiflora (Passifloraceae)
no Estado da Bahia, Brasil

Semantic analysis of the common names ascribed to the


Passiflora species (Passifloraceae) in the state of Bahia, Brazil

Eraldo Medeiros Costa Neto1


eraldont@hotmail.com

Resumo
No Estado da Bahia, Nordeste do Brasil, o gênero Passiflora está representado por 31
espécies com distribuição ampla, ocorrendo em praticamente todos os biomas do Esta-
do. A partir de estudo prévio sobre as espécies de Passiflora na Bahia e considerando
os nomes comuns associados a algumas espécies por estes autores, o presente artigo
investiga o lexema ‘maracujá’ desde uma perspectiva semasiológica, buscando entender
a formação lingüística do termo. Este artigo se insere na abordagem da etnobotânica cog-
nitiva, relacionando-se com o campo de estudos da etnobiologia lingüística, a qual trata
da relação seres humanos/mundo vegetal conforme mediada pela linguagem.

Palavras-chave: etnobotânica, etnotaxonomia, fitonimia.

Abstract
The genus Passiflora is represented by 31 species with ample distribution and occurs
in almost all biomes in the state of Bahia, Northeastern Brazil. Based on previous study
about the Passiflora species from Bahia and considering the common names ascribed
to some species by these authors, this article deals with the lexeme ‘maracujá’ from a
semasiological perspective, seeking to understand the linguistic construction of that term.
This article has a cognitive ethnobotany approach and relates to the study area of linguistic
ethnobiology, which investigates the relationship between human beings and the plants as
1
Universidade Estadual de Feira de Santa-
mediated by language.
na, Departamento de Ciências Biológicas,
Km 03, BR 116, 44031-460, Feira de San-
tana, Bahia, Brasil. Key words: ethnobotany, ethnotaxonomy, phytonomy.
Análise semântica dos nomes comuns atribuídos às espécies de Passiflora (Passifloraceae) no Estado da Bahia, Brasil

Introdução cheirar e saborear) são canalizadas pe- exclusivas (etnogênero ou genérico e


los hábitos lingüísticos que favorecem etnoespécie ou específico), na medi-
Dentre as várias definições de etno- certas alternativas de interpretação. da em que se sobe na seqüência dos
botânica, pode-se entendê-la como­­­­ o Dessa maneira, o pesquisador etnobo- níveis de classificação, encontram-se
estudo das inter-relações (materiais tânico necessita ter um conhecimento categorias cada vez mais genéricas e
ou simbólicas) entre o ser humano e básico de lingüística para desenvolver inclusivas (formas de vida). Este cará-
as plantas, incluindo-se os fatores am- seus estudos (Prance, 2000). ter hierárquico, que envolve relações
bientais e culturais, bem como os con- A etnotaxonomia biológica investiga de inclusão, e as relações de contras-
ceitos locais que são desenvolvidos os processos pelos quais os organis- te manifestam os dois procedimentos
com relação às plantas e ao uso que mos vivos são percebidos, identifica- básicos da classificação: o de agrupar
se faz delas (Jorge e Morais, 2003). dos, denominados e classificados. Do e o de distinguir.
O termo etnobotânica foi cunhado ponto de vista da etnobotânica, a etno- De acordo com Berlin et al. (1973),
por Harshberger (1896), que a definiu taxonomia tem como proposta ofere- a nomeação de organismos vivos na
como “o estudo das plantas usadas por cer uma estratégia mais operativa para sistemática folk é essencialmente si-
povos aborígines e primitivos”. Exis- correlacionar o uso de plantas aos fe- milar em todas as línguas e pode ser
tem duas grandes abordagens de estu- nômenos sócio-culturais observados descrita com base em um pequeno
do: etnobotânica cognitiva, que atrai em campo (Posey, 1986). De acordo número de princípios nomenclatu-
o interesse de lingüistas e antropólo- com Albuquerque (2005), o mundo rais. Lévi-Strauss (1962) salienta que
gos; e etnobotânica econômica, que biológico é classificado em função das nomear é um processo que confere
vem sendo investigada por botânicos, características percebidas, sejam elas significado contextual às continuida-
arqueólogos, farmacólogos, ecólogos intrínsecas (como substâncias pro- des e às descontinuidades objetivas
entre outros (Cotton, 1997). duzidas pelas plantas) ou extrínsecas na natureza. Por esta razão, tanto as
A perspectiva cognitiva foi iniciada (como morfologia). Os processos de classificações etnobiológicas quanto
na década de 1950, quando os pes- categorização são influenciados cultu- a moderna classificação biológica
quisadores começaram a realizar ralmente (categorias cognitivas) e or- científica têm sido incentivadas pri-
estudos etnocientíficos, tendo como ganizados em padrões lógicos (estru- mariamente por esforços intelectuais
foco as classificações etnobiológicas turas taxonômicas) distintos para cada do ser humano para codificar linguis-
e as bases científicas do conhecimento sociedade (Lévi-Strauss, 1962; Bro- ticamente a realidade biológica que o
tradicional. Por meio de métodos pro- wn, 1985; Hunn, 1982; Hays, 1983). confronta (Berlin, 1992).
venientes da Lingüística (semântica) e Os padrões de expressão lingüística A compreensão da formação lingüís­
da Antropologia (Harris, 1976), bus- de um povo mostram uma regulari- tica do nome de um organismo é es-
ca-se registrar o significado que uma dade etnossemântica que incorpora sencial nos estudos de etnobiossiste-
dada sociedade atribui às espécies uma ligação holística e mútua entre o mática. Daly (1998) enfatiza que o
biológicas presentes nos ecossistemas ser humano e as plantas, os animais, nome de um animal ou de uma planta
(Berlin, 1992). O marco da pesquisa as paisagens e o sobrenatural (Maffi, aponta para um conceito, categoria ou
orientada cognitivamente foi o estudo 1999). Partindo desse pressuposto, táxon, que é um arquivo de história
de Conklin (1954) sobre a relação da Berlin et al. (1973) estabeleceram as natural cheio de informação, uma vez
etnia Hanunóo (Ilha Mindoro, Filipi- três principais áreas de estudo na sis- que pode revelar, assim como, às ve-
nas) com o mundo das plantas. Trata- temática etnobiológica: classificação, zes, obscurecer, como os processos de
se da primeira descrição de um sistema que se refere ao conjunto de princí- percepção, identificação e nominação
de classificação etnobotânica de uma pios pelos quais as classes de organis- foram e estão organizados. Para Atran
sociedade sem escrita. Os pesquisado- mos são naturalmente organizadas na (1990), a obtenção do vocabulário (lé-
res que seguem o enfoque etnocientí- mente pré-científica; nomenclatura, xico) adotado por determinada popu-
fico justificavam a grande ênfase dada que se refere à descrição dos princí- lação local seria o primeiro passo para
aos aspectos semânticos e de classifi- pios lingüísticos de denominação das acessar as informações sobre os di-
cação, alegando que as decisões so- classes organizadas de seres vivos em versos domínios cognitivos que com-
bre os usos alimentício, tecnológico, um dado idioma; identificação, que põem a mente e também uma forma
medicinal etc. das plantas e animais diz respeito às características físicas de aproximação indireta da formação
baseiam-se em critérios que podem utilizadas para associar um organis- e difusão de conceitos relacionados ao
ser expressos em forma lingüística mo particular a uma classe específica. universo pesquisado.
(Hunn, 1982). Segundo Revel (1994), Segundo estes autores, a taxonomia No Brasil, estudos voltados ao registro
cada idioma em particular possui uma etnobiológica tem caráter hierárquico do conhecimento botânico tradicional
visão única do mundo, uma vez que porque, enquanto nos níveis mais bai- começaram com André Thevet, Guilher-
todas as percepções (ver, ouvir, tocar, xos se encontram as categorias mais me Piso e von Martius, que aproveitaram

Neotropical Biology and Conservation 87


Eraldo Medeiros Costa Neto

da nomenclatura indígena, mas não estu- Materiais e métodos ticamente, a estrutura de nomes es-
daram a glossologia e a taxonomia dos pecíficos, segundo os princípios da
nomes das plantas (Haverroth, 1997). No Este artigo se insere na abordagem da classificação etnobiológica de Berlin
início do século XX, Barbosa Rodrigues etnobotânica cognitiva, relacionando- (1992), é regularmente binominal,
(1905 in Haverroth, 1997) publicou um se com o campo de estudos da etno- com o genérico modificado por um
estudo sobre nomenclatura botânica por biologia lingüística, a qual trata da adjetivo que usualmente designa al-
indígenas da família lingüística Tupi- relação seres humanos/mundo vegetal gum caráter morfológico óbvio. Os
Guarani e por Tapuios do Vale do Ama- conforme mediada pela linguagem nomes específicos monominais tam-
zonas, Paraguai e Mato Grosso. Na déca- (Brown, 2001). bém existem, mas, quando ocorrem,
da de 1960, Hartmann (1967) descreveu Os nomes comuns das espécies de ma- são polissêmicos com seus genéricos
e analisou linguisticamente os nomes racujás foram obtidos consultando-se o superordenados mais bem conheci-
pelos quais os Bororo (povo indígena do artigo de Nunes e Queiroz (2006), que dos ou com os mais largamente dis-
Mato Grosso) identificavam as plantas. A realizaram um inventário sobre o gêne- tribuídos.
autora preocupou-se em registrar os prin- ro Passiflora em diferentes localidades Na formação dos nomes comuns, predo-
cípios que orientavam a classificação e a do Estado da Bahia. Recomenda-se a minam as características morfológicas,
categorização das plantas no ambiente de leitura deste artigo para maiores deta- como cor, tamanho e forma do fruto,
cerrado por esses índios. lhes quanto à chave de identificação, consistência da casca do fruto, consis-
Dentre as plantas de interesse etno- descrições, ilustrações, fotos e mapas tência do caule e hábito da planta. As-
botânico, destacam-se as da família de distribuição das espécies. pectos ecológicos, como hábitat e uso
Passifloraceae. Esta família é predo- Os dados foram discutidos seguin- trófico dos frutos por determinados ani-
minantemente tropical e subtropical do-se as técnicas de análise etnosse- mais, bem como aspectos culturais, no
e possui cerca de 20 gêneros e 650 mântica, encontradas nos trabalhos de que se refere ao cultivo e consumo dos
espécies, a maioria das quais está su- Conklin (1962), Berlin (1992) e Couto frutos (ação antropogênica), também
bordinada ao gênero Passiflora, com (2007), para entender o significado do são critérios perceptuais importantes uti-
aproximadamente 400 espécies do lizados pelos indivíduos para denominar
nome da planta (categoria nominada)
Neotrópico (Killip, 1938 in Nunes e as espécies de Passiflora (Tabela 2).
na cultura em foco (Cotton, 1997).
Queiroz, 2006). ‘Maracujazeiro’ é a Segundo Sampaio (1995), o termo
designação comum a diversas plantas ‘maracujá’ provém do idioma Guara-
deste gênero, representado por trepa- Resultados ni: Mburukujá. Os lexemas ‘maracu-
deiras sublenhosas de frutos comes- e discussão jaí’ e ‘maracujazinho’ são genéricos
tíveis e com propriedades terapêuti- sinônimos. O primeiro traz o sufixo
cas de largo uso tradicional nas áreas Se considerados os sinônimos, foram tupi “í” que significa algo pequeno,
onde ocorrem (Sangirardi Jr., 1981; registrados 38 nomes comuns para as enquanto o segundo é a forma aportu-
Voeks, 1996; Brooker et al., 1998; 31 espécies de Passiflora, que se dis- guesada. Couto (2007) fala que a for-
Castner et al., 1998). O maracujá é tribuem em nove genéricos: ‘Cama- mação de nomes no diminutivo, assim
conhecido como um fruto comes- pu’, ‘Flor-da-paixão’, ‘Gema-de-ovo’, como no aumentativo, articula-se ao
tível e fonte de um suco de mesmo ‘Maracujá’, ‘Maracujaí’, ‘Maracujazi- longo de um mesmo eixo semântico,
nome. Sua polpa é usada em saladas nho’, ‘Peroba’, ‘Poca-poca’ e ‘Tripa- que é o tamanho: nomes que seguem
de frutas e como um aromatizante em de-galinha’ (Tabela1). Nem todas as os esquemas N+inho e N+ão são for-
molhos. Na Nova Caledônia, as es- espécies tiveram seus nomes comuns mados por referência a outra espécie
pécies de Passiflora são usadas como registrados, enquanto outras tiveram que tem nome com o mesmo radical.
inseticidas e vermífugos (Brooker et mais de dois nomes. O vocábulo mara- Ainda de origem tupi é o vocábu-
al., 1998). cujazeiro não foi registrado por Nunes lo ‘poca’, o qual é um pospositivo,
No Estado da Bahia, Passiflora está e Queiroz (2006). Isto se deve porque, que significa barulhento, ruidoso ou
representada por 31 espécies com dis- segundo Couto (2007), quando a árvo- estridente (Houaiss e Villar, 2001).
tribuição ampla, ocorrendo em prati- re é frutífera, em geral ela é chamada Daí que o nome comum ‘poca-poca’
camente todos os biomas do estado pelo nome da fruta e não da árvore em está reunido com os demais nomes
(Nunes e Queiroz, 2006). Consideran- si. Quando é necessário referir-se à ár- que se referem ao hábito que o fruto
do os nomes comuns registrados por vore, e não ao seu fruto, geralmente se tem de abrir-se estourando para es-
estes autores para algumas espécies, usa a expressão “pé de X”. palhar as sementes.
o presente estudo investiga o lexema Dos 38 nomes comuns registrados No Dicionário Houaiss da língua por-
‘maracujá’ desde uma perspectiva se- para as espécies de Passifloraceae tuguesa, tem-se que o termo ‘peroba’
masiológica, buscando entender a for- da Bahia, 34 são nomes binominais designa várias árvores das famílias
mação lingüística do termo. e quatro são monominais. Lingüis- Apocinaceae e Bignoniaceae, que têm

88 Volume 3 number 2 may - august 2008


Análise semântica dos nomes comuns atribuídos às espécies de Passiflora (Passifloraceae) no Estado da Bahia, Brasil

Tabela 1. Nomes comuns para as espécies de Passiflora no Estado da Bahia, segundo Nunes e Queiroz (2006).
Table 1. Common names for Passiflora species in the state of Bahia, in accordance with Nunes and Queiroz (2006).

Espécie Nomes comuns

Passiflora alata Curtis Maracujá, maracujá-açu, maracujá-doce

P. amethystina Mikan Maracujá-de-cobra

P. bahiensis Klotzsch ...

P. capsularis L. ...

Flor-da-paixão, maracujá, maracujá-brabo, maracujá-cultivado,


P. cincinnata Mast.
maracujá-de-boi, maracujá-do-mato, maracujá-muchila

P. contracta Vitta Maracujá-de-cacho, maracujá-de-cobra

P. edmundoi Sacco ...


Gema-de-ovo-grande, maracujá, maracujá-de-boi, maracujá-mirim,
P. edulis Sims.
maracujá-peroba, maracujá-preto, maracujá-redondo, maracujá-roxo, peroba-roxa

Camapu, maracujá-de-cobra, maracujá-de-estalo, maracujá-de-estralo,


maracujá-de-papoco, maracujá-de-papouco, maracujá-de-pipoco,
P. foetida L.
maracujá-de-praia, maracujá-do-campo, maracujá-do-mato, maracujaí,
maracujá-poca, maracujazinho-do-mato, poca-poca

P. galbana Mast. Maracujá


P. haematostigma Mart. ex Mast. Maracujá-de-veado
P. luetzelburgii Harms Maracujá-de-boi, maracujá-de-raposa, maracujá-poca
P. malacophylla Mast. in Mart. ...
P. mansoi (Mart.) Mast. Maracujá, maracujá-de-cobra, maracujá-do-mato
P. miersii Mast. ...
Maracujá-bravo, maracujá-da-serra, maracujá-mirim,
P. misera Kunth
maracujazinho, tripa-de-galinha
P. mucronata Lam. Maracujá-de-cobra
P. mucugeana sp. nov. ined. ...
P. nitida Kunth ...
P. organensis Gardn. Maracujazinho-da-serra, maracujazinho, maracujaí
P. odontophylla Harms ex Glaziou ...
P. pohlii Mast. ...
P. recurva Mast. in Mart. ...
P. rhamnifolia Mast. in Mart. ...
P. saxicola Gontsch. ...
P. setacea DC Maracujá, maracujá-do-mato
P. sidaefolia M.Roemer ...
P. suberosa L. Maracujá-de-cortiça, maracujá-mirim, maracujazinho
P. trintae Sacco ...
P. villosa Vell. ...
P. watsoniana Mast. ...

Neotropical Biology and Conservation 89


Eraldo Medeiros Costa Neto

Tabela 2. Interpretação eticista das características nominativas utilizadas na formação dos nomes comuns dados às espécies de Pas-
sifloraceae no Estado da Bahia, os quais foram registrados por Nunes e Queiroz (2006).
Table 2. Eticist interpretation of the nominative characteristics in the construction of the common names ascribed to species of Passiflora-
ceae in the state of Bahia, as they were recorded by Nunes and Queiroz (2006).

Características nominativas Nome comum

Morfologia do fruto (cor) Maracujá-roxo, maracujá-preto, gema-de-ovo-grande, peroba-roxa

Maracujá-açú, maracujá-mirim, maracujá-redondo,


Morfologia do fruto (tamanho e forma)
maracujazinho, maracujaí, maracujá-peroba, maracujá-muchila

Maracujá-de-estalo, maracujá-de-estralo, maracujá-de-papoco,


Morfologia do fruto (consistência da casca)
maracujá-de-papouco, maracujá-de-pipoco, poca-poca, maracujá-poca

Morfologia (hábito da planta) Maracujá-brabo, maracujá-bravo, maracujá-de-cacho

Morfologia (consistência do caule) Maracujá-de-cortiça

Maracujazinho-da-serra, maracujazinho-do- mato,


Ecologia (hábitat)
racujá-da-serra, maracujá-de-praia, maracujá-da-serra, maracujá-do-mato

Maracujá-de-veado, maracujá-de-raposa,
Ecologia (uso alimentar por animais)
maracujá-de-cobra, maracujá-de-boi

Ação antropogênica Maracujá-cultivado, maracujá-doce

como característica uma madeira de utilizados na paixão de Cristo: esti- improdutivos. Os lexemas primá-
boa qualidade. Em seu estudo sobre letes claviformes, com seus grandes rios simples são aqueles que não se
as espécies de Passiflora presentes estigmas (os cravos), anteras alonga- deixam decompor em unidades sig-
no Estado da Bahia, Nunes e Queiroz das e largos filamentos (o martelo), nificativas menores, em morfemas
(2006) não registraram o uso madei- coroa secundária da corola (a coroa ou outras palavras simples (Couto,
reiro dessas plantas. O termo ‘cama- de espinhos) e até mesmo as gavi- 2007). Como exemplos, citam-se os
pu’ é a designação comum às plantas nhas (látegos). Daí o nome ‘passiflo- termos ‘maracujá’ e ‘camapu’. Le-
do gênero Physalis, da família Sola- ra’ ou ‘flor-da-paixão’ (Sangirardi xemas primários produtivos ocorrem
naceae, com cálice frutífero acres- Jr., 1981). Atribui-se ao padre Fer- quando um dos constituintes de cada
cente, intumescido e vesiculoso, que rari a paternidade deste nome, que expressão indica uma categoria su-
envolve completamente o fruto, de a classificou em sua obra De florum perordinada à forma em questão (por
distribuição cosmopolita, cultivadas cultura publicada em 1833 (Tes- exemplo, ‘maracujá-doce’); nos pri-
pelos frutos e usos medicinais. Talvez chauer, 1925). No Brasil colônia, os mários improdutivos, nenhum cons-
por analogia de importância cultural, maracujazeiros eram plantados nos tituinte marca uma categoria supe-
este termo seja atribuído à espécie P. cemitérios, à volta dos túmulos, pro- rordenada à forma em questão (por
foetida. Já o lexema ‘gema-de-ovo’ vavelmente devido a esta simbologia exemplo, ‘tripa-de-galinha’).
nomeia o fruto de uma espécie de místico-religiosa. Segundo os princípios da classifica-
Passiflora porque tem cor similar à da Levando-se em consideração a análi- ção etnobiológica estabelecidos por
gema do ovo, que é amarela (Houaiss se etnossemântica dos nomes comuns Berlin (1992), etnogêneros ou ge-
e Villar, 2001). atribuídos às espécies de Passiflora néricos folk se referem às menores
O termo ‘flor-da-paixão’ é resquício em diferentes regiões do Estado da descontinuidades na natureza que
da influência da religião Católica Bahia, os lexemas registrados se en- são facilmente reconhecidos com
(Teschauer, 1925; Marques, 1995). quadram no que Berlin et al. (1973) base no largo número de caracterís-
No Brasil, os primeiros colonos, in- denominaram de lexemas primários ticas morfológicas totais. A maioria
duzidos pelos jesuítas, acreditavam (Tabela 3). Estes podem ser clas- dos etnogêneros é monotípica e não
que a flor reproduz os instrumentos sificados em simples, produtivos e inclui táxon de posição inferior. O

90 Volume 3 number 2 may - august 2008


Análise semântica dos nomes comuns atribuídos às espécies de Passiflora (Passifloraceae) no Estado da Bahia, Brasil

Tabela 3. Análise lexical, seguindo Berlin et al. (1973) e Couto (2007), dos nomes comuns das espécies de Passiflora no Estado da
Bahia, conforme registrado por Nunes e Queiroz (2006).
Table 3. According to Berlin et al. (1973) and Couto (2007), lexical analysis of the common names of Passiflora species in the state of
Bahia, as they were recorded by Nunes and Queiroz (2006).

Lexemas primários

Simples Produtivos Improdutivos

Maracujá Maracujá-açú Flor-da-paixão

Maracujazinho Maracujá-doce Gema-de-ovo-grande

Maracujaí Maracujá-de-cobra Peroba-roxa

Camapu Maracujá-brabo Poca-poca

Maracujá-cultivado Tripa-de-galinha

Maracujá-redondo

Maracujá-de-estalo

Maracujá-de-estralo

Maracujá-de-papoco

Maracujá-de-papouco

Maracujá-de-pipoco

Maracujá-poca

Maracujá-do-campo

Maracujá-de-boi

Maracujá-do-mato

Maracujazinho-do-mato

Maracujazinho-da serra

Maracujá-de-veado

Maracujá-de-raposa

Maracujá-de-cortiça

Maracujá-da-serra

Maracujá-bravo

Maracujá-muchila

Maracujá-mirim

Maracujá-peroba

Maracujá-preto

Maracujá-roxo

Maracujá-de-praia

Maracujá-de-cacho

Neotropical Biology and Conservation 91


Eraldo Medeiros Costa Neto

lexema ‘maracujá’, no entanto, é um ao abastecimento de mercados locais, lingüísticos) e à semântica (Couto,


genérico politípico, uma vez que 29 como pode ser observado em feiras 2007). Do total de 38 denominações,
específicos foram registrados (Tabela livres de algumas cidades do interior 15 se referem ao esquema N de N
3). Segundo Berlin (1992), os táxons do estado. P. alata Curtis é cultivada (nome de nome), como exemplificam
genéricos politípicos quase invaria- pela beleza de suas ramagens e flo- ‘maracujá-de-cobra’ e ‘maracujá-
velmente se referem àquelas classes res; os frutos são comestíveis (Cer- do-mato’; no esquema N+A (nome
de organismos que são culturalmente vi, 1997). P. edulis Sims. é a espécie + adjetivo), foram registradas nove
importantes, uma vez que categorias mais cultivada devido ao seu grande formas, como ‘maracujá-açu’ e ‘ma-
altamente diferenciadas reconhecidas valor comercial. racujá-roxo’; no esquema N+N, ape-
pela sociedade como um todo devem A etimologia do nome comum pode nas duas, como ‘maracujá-peroba’ e
ser o indicador mais forte de utilidade ser instrutiva sobre uma ou mais ‘maracujá-poca’; e o esquema N+inho
ou importância cultural. Além disso, pro­prie­dades da planta. Como Daly registra a forma ‘maracujazinho’ (Ta-
o reconhecimento de genérico polití- (1998) afirma, todos os elementos bela 4). Ainda na Bahia, os frutos dos
pico é o resultado da diversidade bio- de um dado organismo – conceitos e maracujazeiros são conhecidos pelos
lógica de algumas regiões, fato que percepções a seu respeito, suas partes seguintes nomes: ‘camapu’, ‘flor-da-
se comprova com a identificação de anatômicas, seus usos e as relações paixão’, ‘peroba’, ‘tripa-de-galinha’,
31 espécies de Passiflora no Estado com outros organismos – podem, em ‘gema-de-ovo-grande’ e ‘poca-poca’.
da Bahia (Nunes e Queiroz, 2006). um dado momento, ser unificados por Em uma tentativa de estabelecer uma
A importância cultural das passiflorá- um identificador único: seu nome. Os correspondência entre o sistema de
ceas é evidente, uma vez que o fruto nomes comuns podem revelar bas- classificação etnobiológico e a siste-
é utilizado para diversos fins (alimen- tante sobre muitos desses elementos. mática biológica científica (ou lineana),
tícios, medicinais), apresentando alto Dessa maneira, o autor enfatiza que Berlin (1966) distinguiu três categorias.
valor comercial. No Estado da Bahia, os nomes comuns, vernáculos ou na- A unidade básica de comparação é o ge-
Nunes e Queiroz (2006) apontam que tivos devem ser tratados com atenção nérico ou etnogênero, mas neste artigo
P. cincinnata Mast. é muito apreciada meticulosa, ou sua informação e sua a unidade selecionada é o específico ou
por seu fruto de sabor agridoce, mui- utilidade se perdem. etnoespécie. A primeira das três catego-
tas vezes cultivada em pequena esca- Os nomes das plantas podem ser es- rias comparativas, denominada corres-
la para a produção de suco, visando tudados quanto à forma (esquemas pondência um-a-um, ocorre quando um

Tabela 4. Análise semântica do lexema ‘maracujá’.


Table 4. Semantic analysis of the lexeme ‘maracujá’.

Esquema N de N: 15 Esquema N+A: 9 N+N: 2 N+inho: 1

Maracujá-de-cobra Maracujá-açu Maracujá-peroba Maracujazinho


M.-do-mato M.-doce M.-poca
M.-de-boi M.-brabo
M.-de-veado M.-bravo
M.-de-raposa M.-cultivado
M.-de-estralo M.-mirim
M.-de-estalo M.-preto
M.-de-praia M.-roxo
M.-de-papoco M.-redondo
M.-de-papouco
M.-de-pipoco
M.-de-cacho
M.-do-campo
M.-da-serra
M.-de-cortiça

92 Volume 3 number 2 may - august 2008


Análise semântica dos nomes comuns atribuídos às espécies de Passiflora (Passifloraceae) no Estado da Bahia, Brasil

único táxon específico referir-se a ape- vide-se em dois tipos. A do tipo 1 diz cies de dois ou mais gêneros científicos.
nas uma espécie da sistemática lineana; respeito a quando um táxon específico A Tabela 5 traz exemplos da correspon-
a segunda, a super-diferenciação, dá-se refere-se a duas ou mais espécies line- dência entre as espécies populares de
quando dois ou mais específicos corres- anas do mesmo gênero, enquanto a do maracujás e os equivalentes científicos.
pondem a uma única espécie científica; tipo 2 se refere a um mesmo específico Neste estudo, apenas a sub-diferencia-
a terceira, a sub-diferenciação, subdi- que corresponde a duas ou mais espé- ção tipo 1 foi registrada.

Tabela 5. Exemplos de correspondência taxonômica entre as etnoespécies de maracujás e seus equivalentes lineanos, segundo Berlin (1966).
Table 5. Examples of taxonomical correspondence between the ‘maracujás’ ethnospecies and their Linnaean equivalents, according to
Berlin (1966).

Nome comum Classificação botânica

Correspondência um-a-um

Maracujá-de-cortiça Passiflora suberosa

Super-diferenciação

Maracujá-de-papouco, Maracujá-de-papoco,
Maracujá-de-pipoco, Maracujá-de-estralo, P. foetida
Maracujá-de-estalo, Maracujá-poca, Poca-poca, Camapu
Sub-diferenciação (tipo 1)
P. contracta, P. amethystina,
Maracujá-de-cobra
P. mansoi, P. mucronata

Conclusão ca. O alto grau de variação léxica, es- mise and future prospects. Ann Arbor, Univer-
pecialmente em termos de sinonímia, sity of Michigan, p. 111-147.
Castner, J.L.; Timme, S.L.; Duke, J.A. 1998.
O universo léxico que compõe um corrobora tal fato. A field guide to medicinal and useful plants of the
dado idioma resulta de um longo pro- Upper Amazon. Gainesville, Feline Press, 154 p.
cesso biológico, histórico e cultural, Referências Cervi, A.C. 1997. Passifloraceae do Brasil.
Estudo do gênero Passiflora L., subgênero Pas-
traduzido na imensa variedade de sons
Albuquerque, U.P. 2005. Introdução à siflora. Fontqueria, 45:1-92.
e símbolos utilizados para dar sentido etnobotânica. 2ª ed., Rio de Janeiro, Interci- Conklin, H.C. 1954. The ralation of Hanu-
a tudo que existe e circunda a espécie ência, 93 p. nóo culture to the plant world. Tese de Doutora-
humana. ATRAN, S. 1990. Cognitive foundations of na- do, Yale University, New Haven, 471 p.
O estudo da classificação etnobiológi- tural history. Londres, Cambridge University CONKLIN, H.C. 1962. Lexicographical treat-
Press, 372 p. ment of folk taxonomies. International Journal
ca é de grande importância tanto para of American language, 28:119-141.
BERLIN, B. 1966. Folk taxonomies and biolo-
entender e compreender a biodiver- gical classification. Science, 154:273-275. Cotton, C.M. 1997. Ethnobotany: principles and
sidade local como para investigar a Berlin, B. 1992. Ethnobiological classifica- applications. Chichester, John Wiley & Sons, 434 p.
universalidade da capacidade humana tion: principles of categorization of plants and Couto, H.H. 2007. Ecolingüística: estudo
animals in traditional societies. New Jersey, das relações entre língua e meio ambiente. Bra-
de classificar o mundo biológico. Por
Princeton University Press, 335 p. sília, Thesaurus, 462 p.
outro lado, a existência de variações BERLIN, B.; BREEDLOVE, D.E.; RAVEN, Daly, D.C. 1998. Systematics and ethnobotany:
fonéticas dentro de um mesmo con- P.H. 1973. General principles of classification what’s in a name? In: V.S. FONSECA; I.M. SIL-
texto lingüístico-cultural é um fenô- and nomenclature in folk biology. American VA; C.F.C. SÁ (orgs.), Etnobotânica: bases para
Anthropologist, 75:214-242. conservação. Seropédia, EDUR, p. 50-68.
meno que merece ser investigado e
Brooker, SG.; Cambie, R.C.; Cooper, Harris, M. 1976. History and significance of
conservado. R.C. 1998. New Zealand medicinal plants. Au- the emic/etic distinction. Annual Review of An-
A riqueza de nomes comuns para os ckland, Reed Books, 268 p. thropology, 5:329-350.
tipos de maracujazeiros encontrados BROWN, C.H. 1985. Mode of subsistence and HARSHBERGER, J.W. 1896. Purposes of eth-
em praticamente todo o território do folk biological taxonomy. Current Anthropolo- nobotany. Botanical Gazette, 21:146-154.
gy, 26:43-64. HARTMANN, T. 1967. A nomenclatura botâ-
Estado da Bahia reflete uma forte BROWN, C.H. 2001. Linguistic ethnobiology: nica Borôro (materiais para um ensaio etno-
correlação positiva entre importância Amerindian oak nomenclature. In: FORD, R. I botâni­co). São Paulo, Instituto de Estudos Bra-
cultural e grau de diferenciação léxi- (ed.), Ethnobiology at the millennium: past pro- sileiros/USP, 89 p.
Eraldo Medeiros Costa Neto

Haverroth, M. 1997. Etnobotânica: uma logia, etnoecologia e plantas medicinais. Cuia- REVEL, N. 1994. Fleurs de paroles: histoire
revisão teórica. Antropologia em Primeira bá, Unicen, p. 89-98. naturelle Palawan I: lens dons de Nägsalad.
Mão, 20, 50 p. Disponível em: Lévi-Strauss, C. 1962. O pensamento sel- Paris, Editions Peeters, 390 p.
http://www.cfh.ufsc.br/~nessi/Etnobotanica%20uma vagem. São Paulo, Papirus, 330 p. Sampaio, M.A. 1995. Palavras indígenas no
%20revisao%20teorica.htm, acesso em: 21/08/2007. MAFFI, L. 1999. Language and the environment. linguajar brasileiro. Porto Alegre, Sagra, DC
HAYS, T.E. 1983. Ndumba folk biology and In: D.A. POSEY (ed.), Cultural and spiritual va- Luzzatto, 153 p.
general principles of ethnobotanical classifica- lues of biodiversity. Londres, ITP, p. 22-29. Sangirardi JR. 1981. Plantas eróticas. 2ª ed.,
tions and nomenclature. American Anthropolo- Marques, A.N. 1995. Pessoas, plantas e ani-
Rio de Janeiro, Nórdica, 138 p.
gist, 85:592-611. mais. 2ª ed., Salvador, Federação da Agricultura
Teschauer, C. 1925. Fauna e flora nos cos-
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. 2001. Di- do Estado da Bahia, 185 p.
tumes, superstições e lendas brasileiras e ame-
cionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Nunes, T.S.; Queiroz, L.P. 2006. Flora da
ricanas. 3ª ed., Porto Alegre, Barcellos, Bertaso
Janeiro, Objetiva, 2.922 p. Bahia: Passifloraceae. Sitientibus ser. C. Biol.,
HUNN, E. 1982. The utilitarian factor in folk 6(3):194-226. e Cia., 279 p.
biological classification. American Anthropolo- POSEY, D.A. 1986. Etnobiologia: teoria e prá- VOEKS, R.A. 1996. Tropical forest healers and ha-
gist, 84:830-847. tica. In: B.G. Ribeiro (ed.), Suma Etnológica bitat preference. Economic Botany, 50:381-400.
JORGE, S.S.A.; MORAIS, R.G. 2003. Et- Brasileira, v. 1. Etnobiologia. Petrópolis, Vo-
nobotânica de plantas medicinais. In: M.F.B. zes, p. 15-25.
COELHO; P. COSTA JÚNIOR; J.L.D. DOM- PRANCE, G.T. 2000. Ethnobotany and the fu- Submitted on August 27, 2007
BROSKI (eds.), Diversos olhares em etnobio- ture of conservation. Biologist, 47:65-68. Accepted on November 22, 2007

94 Volume 3 number 2 may - august 2008

Você também pode gostar