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MÓDULO II

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CADERNO PEDAGÓGICO

Agentes Populares de Saúde

DO CAMPO - CE
Caderno Pedagógico Módulo II

ORGANIZAÇÃO
Ana Paula Dias de Sá
André Luiz Dutra Fenner

Ceará, 2023

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MÓDULO II

Ficha Técnica

© 2023. Ministério da Saúde. Escola de Governo Fiocruz. Fundação Oswaldo Cruz

Alguns direitos reservados. É permitida a reprodução, disseminação e utilização dessa obra. Deve ser citada a fonte e é vedada sua
utilização comercial.

Formação de Agentes Populares de Saúde do Campo no Ceará. Coordenação-Geral de Ana Paula Dias de Sá e André Luiz Dutra
Fenner. Brasília: [Curso na modalidade à distância]. Fiocruz-2023.

ISBN: 978-65-88309-32-2
Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz Coordenação Político Pedagógica (CPP) Revisão Técnico-científico
Mario Moreira Ana Paula Dias de Sá André Luiz Dutra Fenner
Presidente Ana Paula Andrade Silva Milhomem Ana Paula Dias de Sá
André Luiz Dutra Fenner Gislei Siqueira Knierim
Fiocruz Brasília (GEREB) Fernando Paixão da Costa Jorge Mesquita Huet Machado
Maria Fabiana Damásio Passos Francisca Aldeize Martins Rosely Fabrícia de Melo Arantes
Diretora Gislei Siqueira Knierim
Joceline Souza dos Santos Revisor de Texto
Escola de Governo Fiocruz Brasília – EGF Jorge Mesquita Huet Machado Rosely Fabrícia de Melo Arantes
Luciana Sepúlveda Köptcke Vera Lúcia Alves Mariano
Diretora Executiva Virgínia da Silva Corrêa Produtor de Mídia
Ivandro Claudino de Sá
Programa de Promoção à Saúde, Ambiente Organização Henrique Guedes Formiga
e Trabalho (PSAT) André Luiz Dutra Fenner Kyanne Cristhines Dias Braga
Jorge Mesquita Huet Machado Ana Paula Dias de Sá Rangel Jungles dos Santos
Coordenador Gislei Siqueira Knierim
Jorge Mesquita Huet Machado Projeto Gráfico e Diagramação
Coordenação do Projeto Rosely Fabrícia de Melo Arantes Antônia Eva Souza dos Santos
André Luiz Dutra Fenner (Coordenador Leandro Sousa Alves
Geral) Colaboração
Ana Paula Dias de Sá (Coordenadora Alexandre Pessoa Dias Ilustração e Capa
Executiva) Ana Maria Dubeux Gervais Antônia Eva Souza dos Santos
Ana Paula Dias de Sá Jerly dos Santos Correia Junior
Colaboradores Fernando Paixão da Costa Leandro Sousa Alves
Movimento dos Trabalhadores e Fernando Ferreira Carneiro Samyrah do Monte Honorato
Trabalhadoras Rurais Sem Terra – MST/ CE Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho
Rede Nacional de Médicas e Médicos Francisca Malvinier Macedo
Populares – CE Gislei Siqueira Knierim
Maria Neila Ferreira dos Santos
Execução do Projeto:
Mestrandos do Programa de Pós-
Graduação de Políticas Públicas em Saúde
Ana Paula Dias de Sá
Fernando Paixão da Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F981f Fundação Oswaldo Cruz.

Formação de agentes populares de saúde do campo


no Ceará / Fundação Oswaldo Cruz, Gerência Regional de Brasília, Escola de
Governo Fiocruz -- Brasília: Fundação Oswaldo Cruz, 2023.
37 p. il. ; 30 cm – (Caderno Pedagógico do módulo II, n. 3)

Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-88309-32-2

1. Saúde da População Rural. 2. Agentes Comunitários de Saúde.


3. Vigilância em Saúde Pública. 5. Ceará. I. Fundação Oswaldo Cruz. Gerência
Regional de Brasília. Escola de Governo Fiocruz Brasília II. Título.
CDD: 614
CDU: 614.4

Índice para catálogo sistemático:


Saúde Pública 614

Ficha Catalográfica elaborada por Jaqueline Ferreira de Souza CRB 1/3225

Escola de Governo Fiocruz Brasília

Avenida L3 Norte, s/n, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba A

CEP: 70.904-130 – Brasília – DF


Telefone: (61) 3329-4550
https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/programas-projetos/psat/

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CADERNO PEDAGÓGICO

SOBRE OS/AS AUTORES/AS


CADERNO PEDAGÓGICO MÓDULO II

Alexandre Pessoa Dias


Doutor em Medicina Tropical pela Fundação Oswaldo Cruz
Professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - Fundação Oswaldo Cruz – Rio de
Janeiro
E-mail: alexandre.pessoa@fiocruz.br
Link de Lattes: http://lattes.cnpq.br/6160512059771433

Ana Maria Dubeux Gervais


Doutora em Sociologia
Professora colaboradora do Programa Pós-Graduação de Agroecologia e Desenvolvimento Territorial da
Universidade Federal Rural de Pernambuco.
E-mail: anadubeux66@gmail.com
Link do Lattes:http://lattes.cnpq.br/7478606758967006

Ana Paula Dias de Sá


Médica sanitarista
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
Mestra em Políticas Públicas em Saúde pela Escola de Governo Fiocruz – Brasília
E-mail: anapauladia@gmail.com
Link de Lattes: http://lattes.cnpq.br/8648554035683184

Fernando Paixão da Costa


Médico
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
Mestre em Políticas Públicas em Saúde pela Escola de Governo Fiocruz – Brasília
E-mail: fernandopcosta25@gmail.com
Link de Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do

Fernando Ferreira Carneiro


Doutor em Ciência Animal - Med. Vet. Prev. e Epidemiologia
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Ceará
E-mail: fernandocarneirofiocruz@gmail.com
Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8414094465792735

Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho


Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professor no Centro Universitário Maurício de Nassau
E-mail: claudiosilva.advocacia@gmail.com
Link de Lattes: http://lattes.cnpq.br/1636117320498274

Francisca Malvinier Macedo


Técnica em Economia Doméstica Rural - Colégio de Economia Doméstica Rural Elza Barreto
Bacharel em Biblioteconomia - UFC
Presidenta do CONSEA Ceará
E-mail: malviniermacedo@gmail.com

Gislei Siqueira Knierim


Doutoranda em Agroecologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Pesquisadora do Programa Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fundação Oswaldo Cruz - Unidade Regional
Brasília
E-mail: gisleisk@gmail.com
Link de Lattes: : http://lattes.cnpq.br/3513968437316920

Maria Neila Ferreira dos Santos


Mestra em Políticas Públicas em Saúde pela Escola de Governo Fiocruz - Brasília
Coordenadora Executiva do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora
(CETRA-CE)
E-mail: neilafsantos@hotmail.com
Link de Lattes: http://lattes.cnpq.br/7380187179911558

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MÓDULO II

SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................. 6

Pandemia em 2022: alguns aspectos ............................................. 9

Direito à água ............................................................................................ 12

Caminhos das águas e do saneamento rural ................................ 15

A história da luta pela terra ................................................................. 22

Direito à terra: as ameaças do agronegócio


e dos agrotóxicos para a defesa da vida ........................................ 26

A agroecologia na promoção da saúde e do bem viver ........... 29

Soberania alimentar ............................................................................... 34

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CADERNO PEDAGÓGICO

APRESENTAÇÃO
“Não basta que todos sejam iguais perante a lei.
É preciso que a lei seja igual perante todos.”
Salvador Allende

A palavra direito vem dos antigos romanos Diante de todos esses aspectos, o direito
e é a soma da palavra DIS (muito) + surge com o objetivo de obter justiça e de
RECTUM (reto, justo, certo). Já do latim, realizar o bem comum. Isto é, dar a cada
directum, significa o que está conforme a caso a melhor solução merecida e adequada
regra. As origens do direito localizam-se na conforme o sentimento humanitário,
formação das sociedades, e isto remonta ponderado e calcado em interpretação
às épocas muito anteriores à nossa escrita. conforme os princípios gerais que o regem.
Esses povos sem escrita não têm um tempo Precisamente por este carácter, ele é
determinado, podem ser dos homens das também dinâmico no que diz respeito ao
cavernas de 3.000 a.C. ou da população tempo e ao espaço.
indígena brasileira.
No Brasil, o pilar fundamental se chama
Por conceito, o direito é, na verdade, um Constituição Federal, nela está escrita a
conjunto de regras obrigatórias que garante Carta Magna da convivência coletiva entre
a convivência social, que regula a conduta os cidadãos. No entanto, esse conjunto
das pessoas nas sociedades, que coloca um de regras brasileiras vem sofrendo
mínimo de norma a ser seguida e se constitui inúmeros ataques desde o golpe de
num pacto social.

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MÓDULO II

Estado praticado em 2016 contra da área da Saúde Coletiva. Para atender


a Presidenta Dilma Roussef, sendo a este anseio, elegemos alguns direitos
necessária a defesa organizada de direitos fundamentais que mais se evidenciam no
fundamentais já conquistados, tais como cotidiano da vida no Campo, e que vêm
a água, a terra, os alimentos e a saúde. sendo ameaçados, de maneira mais intensa
a partir do golpe de estado impetrado em
Os desdobramentos desse golpe 2016.
intensificaram a gravidade da pandemia
da Covid-19 nos territórios mais Direito à Saúde
vulnerabilizados, entre eles o campo,
exigindo um esforço maior da população Em 2016, a Emenda Constitucional Nº 95
para seguir na luta por direitos. Tema que trouxe um regime fiscal que congelou o
não poderia ficar de fora sendo discussão orçamento da saúde e da educação por 20
central no Módulo II do Curso Livre de anos. O impacto dessa legislação é ainda
Formação em Agentes Populares de Saúde maior quando analisada as atuais condições
do Campo-CE, e que nasceu no âmbito das econômicas com o aumento da inflação e o
ações de Vigilância Popular em Saúde no desmonte de políticas públicas que apoiavam
contexto da Pandemia da Covid-19. o Sistema Único de Saúde (SUS). Para as
Populações do Campo, já historicamente
Esse Módulo II ocorreu de janeiro até maio negligenciadas, que só em 2011 haviam
de 2021, e manteve a mesma estrutura conseguido aprovar a Política Nacional de
pedagógica e metodológica do anterior. Saúde Integral das Populações do Campo,
A modalidade “híbrida” presencial e da Floresta e das Águas (PNSIPCFA),
virtual se desenvolveu na Pedagogia da seguem sem nem mesmo atingir patamares
Alternância, onde o Tempo Aula (TA) foi avaliáveis de implementação dessa política.
realizado de maneira virtual, via plataforma
Zoom, com cerca de 1h30 de duração Direito à Água
em intervalos quinzenais onde ocorreu o
Tempo Comunidade (TC). Por sua vez, esse O marco legal do saneamento, aprovado em
Tempo Comunidade foi realizado, em sua 2017 e atualizado novamente em 2020, de
maioria, no formato presencial atendendo modo geral, amplia a prestação dos serviços
às demandas do território em diálogo com às empresas privadas. O que parece bom
o tema abordado no Tempo Aula. na teoria, não é assim na prática. Empresa
privada quer lucro e dessa maneira fica fácil
O processo de formação foi estruturado do imaginar quais populações serão priorizadas
começo ao fim na dialogicidade e dessa para a execução dos serviços que envolve
forma compreendemos coletivamente que não somente o destino final da água, mas
não adiantava uma organização em torno todo o seu ciclo.
da ameaça imediata que era a Pandemia
da Covid-19. O contexto nos impunha a Direito à Terra
perceber que essa organização solicitava
anteriormente compreender a conjuntura As políticas públicas relacionadas às
social e econômica que estávamos vivendo, populações do Campo, da Floresta e das
e suas interfaces com o campo. Indo além, Águas, após o golpe de estado de 2016,
exercitar coletivamente a apreensão de que vêm sofrendo um amplo processo de
saúde é a capacidade de lutar contra tudo desmonte, sendo fragilizadas as estruturas
que nos oprime! de defesa e de proteção ambiental,
das pessoas e trabalhadores em geral.
Nessa perspectiva e pós avaliação do Registra-se nesse período o menor índice
conteúdo ministrado, da metodologia e histórico de desapropriações de terras.
das repercussões do primeiro módulo, Em paralelo, o agronegócio se expande, e
nós compreendemos ser fundamental que com ele as terras produtivas se dedicam à
precisávamos transitar pela discussão exportação de commodities que aumenta

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CADERNO PEDAGÓGICO

o lucro dos ricos, e deixa menor volume de Agroecologia, e findando com a Soberania
terras agricultáveis aos alimentos que de Alimentar e Segurança Nutricional da
fato vão para o prato dos brasileiros. Isso população brasileira.
eleva os preços e aumenta a insegurança
alimentar e nutricional da população. São reflexões que não traduzem, mas trazem
uma dimensão do que foram os encontros
Aproveitamos para agradecer às pessoas do Módulo II. O material pedagógico,
que se somaram conosco, contribuindo como textos e vídeos utilizados nesse
com os temas e discussões que ampliaram módulo, estão disponibilizados no nosso
nossos horizontes, nossos conhecimentos site www.agentescampo.com.br. Nele
e nos animaram para seguirmos na luta por você terá acesso ao nosso documentário
um Campo com dignidade, justiça e direitos. Vigilância Popular do Campo/CE, lançado
Parte dos conhecimentos trocados estão em abril de 2022.
expressos nesse Caderno Pedagógico.
Tudo organizado com o empenho, esforço
Esse Caderno Pedagógico, compõe o terceiro e o carinho da nossa equipe, desde os(as)
da coleção relacionado ao Curso Livre de educadores(as) que contribuíram com
Formação–Ação em Agentes Populares a escrita, até a equipe de organização e
de Saúde do Campo–CE, compreendendo revisão do material, nosso diagramador
os conteúdos do Módulo II. A primeira e diagramadoras, ilustradoras e da nossa
etapa foi registrada no Caderno Nº 01, que coordenação sempre parceira.
corresponde a um Guia de Roteiros para
a realização dos encontros de formação-
ação, tendo em vista o desafio da educação
remota que atendeu aos critérios sanitários Artigo I
de distanciamento social para a redução e
controle da transmissão do coronavírus. O Fica decretado que agora vale a verdade.
Caderno de Nº 02 foi o Caderno Pedagógico
que assim como esse, trouxe os conteúdos Agora vale a vida,
abordados durante a realização do Módulo
I da formação. E de mãos dadas,

Neste terceiro Caderno Pedagógico Marcharemos todos pela vida verdadeira.


iniciamos com uma análise da conjuntura
atual política e econômica, que nos permitirá (Os Estatutos do Homem, Thiago de Mello)
compreender como se deu essa formação
e relembrar o contexto da Pandemia da
Covid-19.

O texto Direito à Água é uma abordagem


que aponta para os marcos que regulam
esse direito e as ameaças recentemente
instauradas que comprometem, ou mesmo
impedem essa efetivação de direitos. Essa
discussão desemboca no texto seguinte
que apresenta o Caminho das Águas.

Saindo do debate do Direito à Água,


seguiremos pelo Direito à Terra. Nesse bloco
trouxemos o texto sobre a História da Luta
pela Terra no Brasil e na sequência outras
leituras que se aproximam dessa questão
como o Agronegócio e o Agrotóxico; a

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MÓDULO II

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos APSC-CE

PANDEMIA EM 2022:
ALGUNS ASPECTOS
FERNANDO PAIXÃO
ANA PAULA DIAS DE SÁ

Em março de 2020 foi decretada a pandemia da


Covid-19 no Brasil (UNASUS, 2022). Inédita para a
maioria dos brasileiros, ela passou a ser considerada
a pior crise sanitária de nossa geração, comparada
com as grandes epidemias que devastaram milhões O governo
de pessoas em séculos anteriores, como a gripe
espanhola no início do século XX. federal foi omisso
e optou por agir de
No início de dezembro de 2022 o Brasil registrou forma não técnica
690 mil óbitos e ultrapassou a marca de 30 milhões
de casos confirmados desde o início da pandemia e desidiosa no
(CONASS, 2022). Mundialmente são 600 milhões enfrentamento da
de casos e 6 milhões de óbitos (JHU, 2022). Esses pandemia do novo
números refletem uma pandemia devastadora que
ficará marcada em nossas vidas com muita dor,
coronavírus, expondo
angústia e indignação. deliberadamente a
população a risco
A indignação vem principalmente pela forma concreto de infecção
como se deu o combate à pandemia pelo Estado
brasileiro, marcado pelo descaso à vida humana, em massa ” (BRASIL, 2021).
por ações contrárias às orientações científicas
e por uma rede de desinformação que tornou o
enfrentamento muito mais difícil.

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CADERNO PEDAGÓGICO

O Governo Federal, liderado pelo Além do mais, o Governo Federal


presidente Jair Bolsonaro, atuou de apostou na utilização de medicamentos
modo a contribuir para um número comprovadamente ineficazes contra a
ainda maior de pessoas contaminadas doença, usando até mesmo a estrutura do
e, consequentemente, de óbitos. Num Ministério da Saúde (MS) para lançamento
primeiro momento, desacreditando da de nota em apoio ao uso dessas medicações
gravidade e perigos da doença, sabotando (UOL, 2022). Associado a isso o próprio
as orientações da ciência como uso de presidente fez parte de uma vasta rede de
máscaras e promovendo aglomerações. E, produção e disseminação de fake news,
posteriormente, retardando a compra de tendo inclusive um gabinete no Palácio do
vacinas e contribuindo com a disseminação Planalto dedicado a essa tarefa, como foi
de fakes news sobre todas as formas de demonstrado na CPI da Pandemia.
cuidados.


Dessa forma, fica claro que enfrentamos
ao mesmo tempo uma crise sanitária
potencializada por uma catástrofe política.
A veiculação de notícias falsas, A adoção de medidas adequadas e com
as conhecidas fake news, contribuíram respaldo científico teria poupado a vida e a
para que o objetivo negacionista fosse dor de milhares de brasileiros e brasileiras,
alcançado. Nesse ponto, a CPI apurou que sem mencionar as sequelas que ficam ou
não apenas houve omissão dos órgãos estão por vir, como problemas crônicos
oficiais de comunicação, no combate aos causados pela doença.
boatos e à desinformação, como também
existiu forte atuação da cúpula do governo, A pandemia aprofundou a crise econômica
em especial do Presidente da República, pré-existente, elevando o desemprego
no fomento à disseminação de fake news” e a fome que atinge mais de 30 milhões
(BRASIL, 2021). de brasileiros. Ela também despertou a
necessidade de reforçar a organização
A Comissão Parlamentar de Inquérito popular, para dar respostas às necessidades
do Senado Federal (CPI da Pandemia), sociais que se potencializaram devido à
dedicada a avaliar a atuação do governo ausência de políticas públicas eficazes.
frente à pandemia da Covid-19, trouxe Diversos movimentos sociais buscaram,
provas e explicitou que o Governo Federal através da solidariedade, ações que
adotou uma tese de imunidade de rebanho, amenizaram a fome de milhares de
onde acreditavam que a exposição de brasileiros e brasileiras, como as Cozinhas
grande parte da população ao vírus traria Solidárias do Movimento dos Trabalhadores
uma imunidade coletiva e dessa forma se Sem Teto (MTST) e Marmitas Solidárias,
controlaria a pandemia. Mesmo que essa que são parte da Campanha Mãos
tese fosse negada por toda a comunidade Solidárias, por iniciativa do Movimento
científica, o governo insistiu nessa teoria. dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)


(MTST, 2022; BRASIL DE FATO, 2022).

O MST também realizou diversas


Comprovaram-se a existência de campanhas de doação de alimentos
um gabinete paralelo de onde partiram as nos estados (MST, 2022), levando
orientações sobre a proposta de imunizar alimentos de qualidade, produzidos nos
a população por meio da contaminação assentamentos e acampamentos, para
natural, financiamento e promoção de um aqueles que mais precisam. Colocando
tratamento precoce sem amparo científico em prática uma premissa da solidariedade
de eficácia e o desestímulo ao uso de aprendida com a Revolução Cubana de que
medidas não farmacológicas” (BRASIL, 2021).

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MÓDULO II


necessário reforçar as ações de organização
popular para enfrentar a política de morte
solidariedade não é dar aquilo adotada pelo Governo Federal da época.
que nos sobra, mas sim compartilhar Construir melhoria nas condições de vida
aquilo que temos”. e de saúde de nossa população também
passa por reestruturar o país após a gestão
do presidente Jair Bolsonaro, com todo o
Outra iniciativa dos movimentos sociais e retrocesso imposto ao povo brasileiro e
que trouxe grande impacto positivo foi a assim sonharmos com a construção de dias
dos Agentes Populares de Saúde, surgida melhores.
das periferias de capitais como Recife e
que se espalhou pelo país. Essa iniciativa
buscou preparar pessoas voluntárias nas
comunidades para que desempenhassem
ações de promoção e prevenção à saúde,
possibilitando assim diminuir os efeitos da
pandemia da Covid-19 nas comunidades.
“O/a Agente Popular de Saúde é um
voluntário/a que se importa com a vida dos
vizinhos e com sua comunidade, estando
disposto a costurar uma rede popular de
solidariedade” (MÉLLO; ALBUQUERQUE,
2020).

No Ceará, o MST, através de seu Coletivo de


Saúde e de parceiros, desenvolveu diversas
ações que buscaram levar orientações
para a militância dos assentamentos
e acampamentos, como entrevistas a
médicas e médicos, transmitidas nas rádios;
produção de conteúdos audiovisuais para
serem distribuídos pelas mídias sociais
digitais; e disponibilizando os contatos de
WhatsApp das/dos médicas/os militantes Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos
APSC-CE
da organização para melhor orientar as Referências:
comunidades que apresentassem sinais e BRASIL. Senado Federal. Relatório Final CPI da Pandemia. Brasília: Senado Federal, 2021.
sintomas da Covid-19. 1288 p. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2441&tp=4.
Acesso em: 19 jun. 2022.

BRASIL DE FATO. No Recife, campanha Marmitas Solidárias completa um ano com


Para além das iniciativas descritas, em distribuição de alimentos. 2021. Disponível em: https://www.brasildefatope.com.
br/2021/03/16/no-recife-campanha-marmitas-solidarias-completa-um-ano-com-
parceria com a Fundação Oswaldo Cruz distribuicao-de-alimentos. Acesso em: 05 abr. 2022.

Brasília (FIOCRUZ), foi desenvolvido CONASS. Painel Nacional: Covid-19. 2022. Disponível em: https://www.conass.org.br/
painelconasscovid19/. Acesso em: 05 abr. 2022.
o primeiro Curso de Formação em JHU. COVID-19 Dashboard. 2022. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html.
Agentes Populares de Saúde do Campo Acesso em: 05 abr. 2022.

(APSC) que possibilitou a preparação de Méllo, L. M., & Albuquerque, P. C. (2020). Agentes Populares de Saúde: ajudando
minha comunidade no enfrentamento da pandemia de Covid 19. Recife: Fiocruz
agentes voltados para as características - PE. disponivel em: https://www.campanhamaossolidarias.org/_files/ugd/96f383_
a9904d59517f43a1b790c64328f763c8.pdf
e necessidades específicas do campo. Os MST. MST ultrapassa 6 mil toneladas de alimentos doados durante a pandemia. 2022.
APSCs fizeram frente ao processo de cuidado Disponível em: https://mst.org.br/2022/01/14/mst-ultrapassa-6-mil-toneladas-de-
alimentos-doados-durante-a-pandemia/. Acesso em: 05 abr. 2022.
em saúde nas áreas de acampamentos e MTST. Cozinha Solidária: O Projeto. Disponível em: https://www.cozinhasolidaria.
assentamentos do MST – CE. com/#projeto. Acesso em: 05 abr. 2022.

UNASUS. Coronavírus: Brasil confirma primeiro caso da doença. 2020. Disponível


em: https://www.unasus.gov.br/noticia/coronavirus-brasil-confirma-primeiro-caso-da-
Deste modo observamos que o desafio de doenca. Acesso em: 09 jun. 2022.

proporcionar melhores condições de saúde UOL. Nota técnica do MS coloca cloroquina como eficaz e vacina como não
efetiva. 2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/agencia-
para a população do campo persiste, sendo estado/2022/01/22/nota-tecnica-do-ms-coloca-cloroquina-como-eficaz-e-vacina-
como-nao-efetiva.htm. Acesso em: 05 abr. 2022.

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CADERNO PEDAGÓGICO

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos APSC-CE

DIREITO À ÁGUA
FRANCISCO CLÁUDIO OLIVEIRA SILVA FILHO
ANA PAULA DIAS DE SÁ

A água é um bem natural e indispensável à vida de tudo que existe. Sendo essencial, não
poderia estar de fora das disputas que envolve o mundo do capital, que têm o objetivo
de transformar tudo em mercadorias para geração de lucro (AITH & ROTHBARTH, 2015).
Desde sempre esse sistema busca o controle de recursos essenciais e mostra sua face mais
cruel diante da ameaça de escassez. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em
seu relatório sobre o desenvolvimento das águas publicado em 2015, o planeta enfrentará
até 2030 um déficit de 40% de água, a menos que sejam tomadas providências urgentes
sobre a gestão desse recurso.

A água nas mãos do capital abastece prioritariamente a indústria, as hidrelétricas e o


agronegócio, por isso está no centro da disputa mundial do capitalismo. Que tem o Brasil
como um dos principais territórios em disputa por possuir as principais reservas potáveis
de água do mundo.

Em nosso país temos mais de 13% de todas as reservas mundiais de água potável que
estão concentradas em grandes rios e aquíferos, sendo os maiores do mundo. Temos mais

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MÓDULO II

de 27 aquíferos, que somam em torno de Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988)


112 bilhões de metros cúbicos de água. não possui um tópico específico sobre a
Além disso, temos o setor de saneamento água, mas deixa claro em várias normas que
totalmente público, correspondendo a mais este é um direito fundamental:
de 20 companhias estaduais, 57 milhões de
ligações residenciais, 630 mil km de redes Art. 20 São bens da União:
de água instaladas, 300 mil km de redes de
esgotamento, 220 mil trabalhadores e um III - Os lagos, rios e quaisquer correntes
movimento de R$110 bilhões por ano. Some- de água em terrenos de seu domínio, ou
se a isso também possuir a maior empresa que banhem mais de um estado, sirvam de
de energia da América Latina, a Eletrobrás, limites com outros países, ou se estendam
com a outorga de 47 lagos hidrelétricos a território estrangeiro ou dele provenham,
(MST, 2020). bem como os terrenos marginais e as praias
fluviais;
No entanto, o capital depende da ação do
Estado para definir, codificar e dar forma Art. 22 Compete privativamente à União
jurídica aos seus interesses privados. Assim, legislar sobre:
diversas iniciativas de projetos de lei e
medidas provisórias, garantindo a máxima IV – Águas, energia, informática,
liberdade e direitos de propriedade ao telecomunicações e radiodifusão;
capital sobre a água, estão tramitando
no Congresso Nacional. Sob o respaldo Art. 26 Incluem-se entre os bens dos
do Presidente da República e da maioria Estados:
dos parlamentares, grandes empresas
multinacionais têm atuado para criar As águas superficiais ou subterrâneas,
todas as condições legais e institucionais fluentes, emergentes e em depósito,
alargando os negócios da classe dominante. ressalvadas, neste caso, na forma de lei, as
decorrentes de obras da União.
O novo marco regulatório do saneamento
escrito na recente Lei Nº 14.026 de 15 de Dessa maneira podemos concluir que,
junho de 2020 (BRASIL, 2020) e o Projeto segundo a Constituição, a água é um bem
de Lei Nº 495/2017 (mercado de águas) público juridicamente tutelado (protegido)
(BRASIL, 2017) são a via jurídica que e de uso comum do povo brasileiro.
permitirá que o capital se aproprie do setor
de saneamento e das reservas naturais de Para regular e proteger esse recurso o
água em nosso país. As empresas querem Estado brasileiro possui diferentes órgãos e
o direito de posse exclusiva sobre os rios e instâncias. A Política Nacional de Recursos
bacias hidrográficas para estabelecer novos Hídricos (PNRH) afirma que a gestão
negócios. Após a recente aprovação do dos recursos deve ser descentralizada
marco legal do saneamento, o PL 495/17 e contar com a participação do poder
vai se tornando uma ameaça iminente, pois público, dos usuários e das Comunidades.
poderá possibilitar às empresas o acesso Já a legislação que regulamenta o
à outorga de forma perpétua e liberá- saneamento básico reafirma que
las a criar mercados de águas em bacias todos temos direito ao abastecimento
hidrográficas brasileiras, sob a justificativa de água potável, a esgotamento
de dar segurança ao setor produtivo em sanitário, limpeza urbana e manejo de
situações de crise hídrica. Em resumo, resíduos sólidos, assim como manejo e
se houver escassez de água a prioridade drenagem das águas pluviais urbanas.
seriam as empresas e não a população.
Além de conhecer os mecanismos legais
Diante de tamanhas ameaças é necessário existentes em defesa do nosso direito a
que conheçamos bem nossos atuais água é importante também conhecer os
direitos para que possamos defendê-los. A espaços organizados e não governamentais

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CADERNO PEDAGÓGICO

que atuam nesse cenário. Em 2018, o Fórum Alternativo Mundial das Águas (FAMA) foi um
importante evento para reunir esses coletivos e denunciar as transnacionais Nestlé, Coca-
Cola, Ambev, Suez, Veolia, Brookfield (BRK Ambiental), Dow AgroSciences, Monsanto,
Bayer, Yara, os organismos financeiros multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, e ONGs ambientalistas de mercado, como The Nature Conservancy
e Conservation International, entre outras (FAMA 2018, 2018).

Esses coletivos expressam o caráter do “Fórum das Corporações” que, além de levarem
a exploração da água aos territórios onde se instalam, levam também o aumento das
desigualdades sociais e as diversas formas de violência para as pessoas e o meio ambiente.

Como lideranças comunitárias, como Agentes Populares de Saúde do Campo (APSC) somos
também guardiões e guardiãs das águas, pois a água é vida, saúde, alimento, território,
direito humano, um bem comum sagrado.

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos APSC-CE

Referências:
Aith, Fernando Mussa Abujamra e Rothbarth, Renata. O estatuto jurídico das águas no Brasil. Estudos Avançados [online]. 2015, v. 29, n. 84 [Acessado 19 Julho 2022] , pp. 163-177.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000200011>. Epub May-Aug 2015. ISSN 1806-9592. https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000200011.

BRASIL. Constituição (2020). Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência
Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento, a Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar
o nome e as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos
de que trata o art. 175 da Constituição Federal, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País, a Lei nº 12.305, de 2 de
agosto de 2010, para tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, a Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu
âmbito de aplicação às microrregiões, e a Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos
especializados.. . Brasília, Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.026-de-15-de-julho-de-2020-267035421. Acesso em: 19 maio 2022.

BRASIL. Constituição (2017). Projeto de Lei nº 495, de 2017. Altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover
alocação mais eficiente dos recursos hídricos.. . Brasília, Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131906. Acesso em: 19 fev. 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/ Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 19 maio 2022.

FAMA 2018. Declaração Final do Fórum Alternativo Mundial da Água. 2018. Disponível em: http://fama2018.org/declaracao-final/. Acesso em: 19 maio 2022.

MST. A privatização da água faz mal ao Brasil. 2020. Disponível em: https://mst.org.br/2020/09/01/a-privatizacao-da-agua-faz-mal-ao-brasil/. Acesso em: 10 maio 2022.

UNESCO. Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos. 2015. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/ HQ/SC/
images/WWDR2015ExecutiveSummary_POR_web.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2015.

14
MÓDULO II

CAMINHOS DAS ÁGUAS E DO


SANEAMENTO RURAL
ALEXANDRE PESSOA DIAS

A insegurança hídrica e sanitária no Brasil são expressões de uma profunda crise ecológica
(IPCC, 2022; MARQUES FILHO, 2018) que somente é possível compreender por meio de
uma análise multiescalar. Temos na escala mundial o aquecimento global que tem reflexo
nos continentes de forma diferenciada. Na escala de país, o Brasil tem o agravamento da
insegurança hídrica com maior frequência e intensidade do prolongamento das estiagens
e das inundações (BARCELLOS; CORVALÁN; SILVA, 2022).

Na escala dos biomas verifica-se a expansão da degradação ambiental, com os incêndios,


desmatamentos e avanço das monoculturas do agronegócio hidrointensivo e químico-
dependente de agrotóxicos (DIAS, 2021), da mineração e dos impactos socioambientais de
outros grandes empreendimentos.

Na escala das bacias hidrográficas, os mananciais, denominação dada as coleções


hídricas utilizadas para abastecimento público, têm sofrido intensa degradação ambiental
seja nos corpos hídricos, localizados próximos às cidades, na área rural e mesmo nas
unidades de conservação ambiental e nas florestas. Por fim, temos a escala domiciliar
onde as intervenções dependem muito da atuação das comunidades, dos moradores, dos
trabalhadores do saneamento e da saúde pública.

Isso requer um espaço de diálogo com os


diversos movimentos sociais e entidades
Nos cursos das águas existentes, de construção de mapeamentos
é necessário ouvir as e de cartografia social elaborados com
as comunidades que possam incluir as
vozes dos territórios, os diversas fontes de águas, suas trajetórias,
sujeitos coletivos, seus seus usos diversos (DIAS et al., 2022). Seja
para elaborar coletivamente diagnósticos
saberes, suas experiências como propor planos de intervenção de
e técnicas locais; adequação dos sistemas de saneamento e
seus manejos comunitários e domiciliares,
identificar as tecnologias bem como, lutar por políticas públicas nos
sociais e metodologias territórios.

participativas de Para além das águas de consumo humano


construção do nos domicílios temos as águas comunitárias,
água para produção animal e vegetal, água
conhecimento, de emergência, água da natureza, esgoto
intercâmbios, e não sanitário (águas cinzas e águas com fezes),
águas de reuso, efluentes industriais a serem
somente por técnicos ou tratados, águas residuárias de agrotóxicos a
especialistas. serem eliminados, águas de barragens etc.
A Figura 1, a seguir, apresenta os caminhos
das águas, suas fontes e usos múltiplos.

15
CADERNO PEDAGÓGICO

16
MÓDULO II

Desenho: Ivomar de Sá Pereira (2011)

17
CADERNO PEDAGÓGICO

As diversas formas que a água se apresenta As interações de formação junto aos


(chuva, granizo, vapor, umidade) seguindo movimentos sociais têm contribuído
as bacias hidrográficas (rios, lagos, lagunas, para novas formulações a exemplo do
açude, lençol freático, marés, orla marítima) saneamento ecológico (DIAS, 2021), que
estabelecem uma profunda relação com as pode ser conceituado como: a mediação do
populações. Desde moradores de cidades ser humano com o ambiente, por meio do
que abrem a torneira, e em muitos casos não manejo das águas, dos resíduos e efluentes,
sabem de onde vem as águas que consomem, com base na agroecologia, visando a
passando pelos camponeses e indígenas, até saúde ambiental, a soberania alimentar e
os povos das águas (pescadores artesanais, nutricional, a organização comunitária e a
ribeirinhos, coletores e marisqueiras, valorização da sociobiodiversidade.
caiçaras, atingidos por barragens, dentre


outros). A partir da centralidade da
água, de sua multidimensionalidade e de
seu papel pedagógico vários temas se
interrelacionam e podem contribuir para O saneamento
reconhecer e preservar as relações sociais e
ecológicas na perspectiva da promoção da ecológico deve ser
saúde ambiental e humana.
compreendido a
A água educa! partir da ampliação
O acesso à água potável e ao esgotamento dos conceitos
sanitário são considerados direitos humanos,
reconhecidos pela Organização das Nações de saneamento
Unidas (ONU), desde 2010, por meio da
Resolução 64/A/RES/64/292, cujo Brasil foi básico e ambiental,
signatário (HELLER, 2022; HELLER, 2018).
As ações de saneamento têm como objetivo, apresentando-se
além da garantia dos direitos humanos, a
promoção da saúde, a justiça ambiental como uma
e a proteção dos bens comuns (HELLER,
2018). O saneamento básico precisa estar estratégia de luta e
integrado com o manejo das coleções
hídricas e com as ações de saúde pública de emancipação dos
nos territórios. Nesse sentido, é necessário
que os componentes do saneamento básico povos do campo,
possam ser permeáveis a participação e
controle social e sejam estruturantes para a das florestas e das
organização comunitária.
águas” (DIAS; CARNEIRO, 2021).
Os seus componentes são (Brasil, 2007):

Ele abrange componentes teóricos, técnicos


e metodológicos construídos a partir
das experiências de vida, mediadas pelo
Abastecimento de água Esgotamento sanitário
trabalho como princípio educativo. Ele é
sistêmico, incorpora as ações e experiências
das comunidades em interação com seus
territórios visando superar uma visão
Limpeza urbana e Drenagem e manejo tecnicista, que desconsidera as condições
manejo de resíduos de águas pluviais
sólidos de vida e cultura regional e local.

18
MÓDULO II

As categorias e as relações estabelecidas pelo saneamento básico vigente e o saneamento


ecológico emergente, em diferentes perspectivas podem ser vistas no Quadro 1, a seguir

Fonte: Os Autores adaptado de Dias (2017)

19
CADERNO PEDAGÓGICO

Durante a pandemia, a partir de uma manutenção e conservação das estruturas


abordagem da Pedagogia do Cuidado, na resultam em desperdício, abandono, no
perspectiva freiriana da educação popular, saneamento inadequado. A identificação
a vigilância popular em saúde, a partir das estruturas de saneamento e de
dos diálogos com os territórios, permitiu suas condições de funcionamento e dos
uma maior problematização entre os riscos envolvidos é fundamental como
participantes dos caminhos das águas, dos atividade de formação que envolve,
alimentos e das pessoas, dos fluxos, fixos e simultaneamente, trabalho, pesquisa e ação
dinâmicas fundamentais para compreensão pedagógica.
dos processos de trabalho, de produção
da agricultura familiar camponesa, A Vigilância Popular em Saúde com o
transporte, distribuição, consumo e das seu protagonismo social em interação
relações ecológicas necessárias para o com a academia, na medida em que
enfrentamento da Covid-19 e das medidas organiza os processos de informação-
preventivas estruturais e estruturantes de decisão-ação pode contribuir para as
proteção contra a transmissibilidade do políticas públicas de saúde que integram a
coronavírus (MACHADO et al., 2020). Atenção Primária com a Vigilância em
Saúde visando analisar os critérios de
Tanto a compreensão das mudanças das acessibilidade à água. A ONU aponta como
condições de vida e de trabalho como os critérios normativos: a disponibilidade,
processos de produção da informação e qualidade, aceitabilidade, acessibilidade
comunic(ação) exigiram processos em física, acessibilidade financeira, acrescido,
redes, dialógicos e com diversas no caso do esgotamento sanitário,
metodologias participativas que trouxesse dos critérios de dignidade e
o protagonismo e a grande capacidade privacidade (HELLER, 2018).
organizativa dos movimentos sociais
populares, a exemplo da Articulação Os territórios podem identificar barreiras
Semiárido Brasileiro (ASA). de acessibilidade que eventualmente
restrinjam o direito ao acesso à água,
Os trabalhos anteriores realizados pela como o direito à informação, à educação, à
Fiocruz Brasília, no âmbito do Programa assistência técnica e jurídica, à organização
de Territórios Saudáveis e Sustentáveis, política e a própria democracia.
permitiu uma rearticulação dos
conhecimentos e da metodologia Para avançarmos no processo de
da Pedagogia das Águas (DIAS et reconstrução de um projeto de país, a
al., 2022), a partir da mudança da Vigilância Popular em Saúde pode fortalecer
realidade nos contextos pré-pandêmico, políticas e programas imprescindíveis
pandêmico e sinalizando para os desafios para a saúde das populações do campo,
pós-pandêmico, em especial para das florestas e das águas, como a Política
superação da insegurança hídrica e Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS)
alimentar, ampliado pela profunda crise (BRASIL, 2018), a Política Nacional de Saúde
socioeconômica e política no Brasil Integral das Populações do Campo, da
(MACHADO et al., 2020). Floresta e das Águas (PNSIPCFA) (BRASIL,
2011) e o Programa Nacional de Saneamento
Os componentes do saneamento básico Rural (PNSR) (BRASIL, 2019).
requerem ações estruturais (projetos e
obras) bem como ações estruturantes O PNSR é um dos programas previstos
de planejamento, gestão, educação, pelo Plano Nacional de Saneamento Básico
mobilização, participação e controle (Plansab), já em sua primeira edição de 2013
social. Observa-se ao longo da história que e revisada em 2018. Os marcos referenciais
intervenções de obras nos territórios sem abaixo orientaram a estruturação do PNSR
a devida assistência técnica e atuação do e indicam princípios a serem seguidos
Estado para as ações de operação, durante a sua implementação.

20
MÓDULO II

Saneamento básico como saneamento básico que podem caminhar no


direito humano; fortalecimento do saneamento ecológico
em sua interação com a agricultura
familiar camponesa e a agroecologia
Saneamento básico como (DIAS, 2021), tornando-se um instrumento
promoção da saúde; fundamental para a promoção de territórios
saudáveis e sustentáveis. O desafio agora
Saneamento básico e está na sua efetividade, considerando a
sociobiodiversidade e a riqueza da nossa
erradicação da extrema cartografia social, em uma país continental
pobreza e; chamado Brasil.
Referências:
Saneamento básico e
Barcellos, C.; Corvalán, C.; Silva, E.L. (Org.) Mudanças Climáticas, Desastres e Saúde. Rio
desenvolvimento rural de Janeiro: Editora Fiocruz, 2022.

solidário e sustentável. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Programa Nacional de
Saneamento Rural (PNSR). Brasília: Funasa, 2019. 260 p. Disponível em: <http://www.
funasa.gov.br/documents//20182/38564/MNL_PNSR_2019.pdf/08d94216-fb09-/468e-
ac98-afb4ed0483eb>. Acesso em: 18/10/2021.

De acordo com programa, no item Brasil. Portaria GM nº 2.866, de 2 de dezembro de 2011: institui, no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo
# 2.4.1 - Saneamento, Agricultura e e da Floresta (PNSIPCF). Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2866_02_12_2011.html>. Acesso em: 20
Segurança Alimentar e Nutricional para dez. 2011.

o Desenvolvimento Rural Sustentável Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº.588, de 12 de julho de 2018 do Conselho
Nacional de Saúde. Política Nacional de Vigilância em Saúde. Disponível em: < http://
(BRASIL, 2019), temos: conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso588.pdf> Acesso em: 18/10/2021.

Brasil. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o


saneamento básico. Casa Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
“O panorama da agricultura no Brasil revela, de forma Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm>. Acesso em: 18/10/2021.

geral, dois modelos de produção com características Dias, A.P. (et al.). Dicionário de agroecologia e educação. 1ed. São Paulo: Expressão
antagônicas. De um lado, o agronegócio opera baseado em Popular; Rio de Janeiro: EPSJV, 2021. 816p. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/
handle/icict/52824>. Acesso em: 18/12/2021.
dois elementos fundantes: o latifúndio e a monocultura. De
outro, a agricultura familiar, que ocupa cerca de 25% das Dias, A.P.; Machado, J.; Knierim, G.S.; Melo, F.V. Caminhos das Águas. In. Dicionário
terras agricultáveis, e tem, como um dos principais pilares, do Saneamento Básico: pilares para uma gestão participativa nos municípios. Belo
Horizonte: Sanbas, 2022. Disponível em: <https://infosanbas.org.br/download/
a produção de alimentos diversificados em pequenos lotes. dicionario-de-saneamento-basico/>. Acesso em: 05/08/22. p.82-87.
No primeiro modelo de produção, em parte dos casos, o
Heller, L. (Coord.). Saneamento e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2018. 74 p., il. (Série
uso intensivo de insumos pelo agronegócio – agrotóxicos, Fiocruz Documentos Institucionais. Coleção saúde, ambiente e sustentabilidade,
fertilizantes químicos e sementes híbridas – gera um passivo v.6). Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/46304>. Acesso em:
ambiental significativo. Ao atingirem o solo e as águas 14/10/2022.

superficiais e profundas, os resíduos de agrotóxicos e Heller, L. Os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. Rio de Janeiro: Editora
fertilizantes se constituem em uma ameaça ao saneamento Fiocruz, 2022. 620p.
adequado. A agricultura familiar, além do extrativismo, Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Climate Change 2022: Impacts,
decorre das práticas e técnicas das experiências de vida Adaptation and Vulnerability. Summary for Policemakers. IPCC: Contribution of Working
das comunidades tradicionais, dos quilombolas e dos povos Group II to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate
Change, 2022. 37 p. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-
indígenas. Por outro lado, carrega em si a possibilidade da report-working-group-ii/>. Acesso em: 15/03/2022.
transição agroecológica. Neste modelo de produção, a visão
Machado et al. Ciclo de Encontros ASA-Fiocruz Territórios Saudáveis e Sustentáveis
integrada do agroecossistema conduz a uma produção livre no Semiárido Brasileiro: Vigilância Popular em Saúde em Tempos de Pandemia. 2020.
de agrotóxicos e fertilizantes, adaptada às condições locais, Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/04/
com insumos geralmente produzidos a partir de Caderno-de-Sistematizac%CC%A7a%CC%83o-Ciclo-de-Encontros-ASA-Fiocruz.pdf.
Acesso em: 15/03/2022.
matérias-primas geradas na propriedade. Além disso, a
agroecologia se utiliza de tecnologias sociais, que contribuem Marques Filho, L.C. Capitalismo e colapso ambiental. 3ed.rev. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2018. 735p.
para a preservação e recuperação dos solos e das águas. ”
Pereira, I. de S. Em: Gnadlinger, J. A Busca da Água no Sertão, IRPAA, Juazeiro, BA, 2011,
Ed. 5. p. 65 https://irpaa.org/publicacoes/25/cartilhas/a-busca-da-agua-no-sertao

O Estado brasileiro tem uma dívida histórica


do saneamento junto às populações
vulnerabilizadas do campo, da floresta, das
águas, das periferias urbanas, e, portanto,
o PNSR é um divisor de águas na história
das políticas públicas de saneamento, não
só por apresentar objetivos e metas para
o saneamento dessas populações, mas
também pelos seus marcos referenciais,
seus estudos, metodologias, metas e
tecnologias sociais. Dimensões que
ampliam a intersetorialidade das ações de

21
CADERNO PEDAGÓGICO

A HISTÓRIA DA LUTA
PELA TERRA
ANA PAULA DIAS DE SÁ

“ Marchamos por saber que em cada coração há


uma esperança,
Há uma chama despertada em cada peito,
E a mesma luz é que nos faz seguir em frente
E tecer a história assim do nosso jeito.
Marchar se faz necessário
Para espantar os abutres desta estrada
E construir sem medo o amanhecer
Pois se eternos são os sonhos
Eterna também é a certeza de vencer”.
Ademar Bogo

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato.

Esse texto foi construído a partir dos de fronteiras e de controle dos povos. No
conteúdos apresentados no “Tempo Aula” Brasil, essa história se dá com a chegada dos
durante o Curso Livre de Formação em colonizadores, vindo de outros continentes,
Agentes Populares de Saúde do Campo e entre os povos que aqui já habitavam.
do Ceará, ocorrido de forma virtual no dia São lutas que se dão em maior ou menor
05/04/2021 e que teve como facilitadora proporção de acordo com as condições
a educadora e militante do Setor de oferecidas em cada território e que tem no
Produção do Movimento dos Trabalhadores modelo econômico um instrumento que


e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), piora ainda mais essas disputas.
Antônia Ivoneide Melo Silva, mais conhecida
como “Neném”, a quem agradecemos Podemos dizer que a luta pela terra no
imensamente a contribuição. Brasil nasceu naquele mesmo instante em que
os portugueses perceberam que estavam em
A história da luta pela terra, é na verdade, uma terra sem cerca, onde encontrava tudo
a história da nossa existência, sendo muito disponível. Os habitantes do local, então,
impossível contá-la em poucas páginas. diante de armas e intenções nunca imaginadas,
Aqui deixaremos um resumo dessa viagem teriam muito que lutar contra esse verdadeiro
no tempo. caso de invasão” (MORISSAWA, 2001).

Para contribuir com o processo,


Desde as suas primeiras civilizações, a apresentamos uma linha do tempo que nos
humanidade vive em constante disputa permitirá ver o que foi instituído pelo Estado
pela terra, sejam por questões climáticas, em relação à terra no Brasil e de como se
presença ou ausência de alimentos, deu a luta e a resistência popular.

22
MÓDULO II

BREVE HISTÓRIA DA

LUTA PELA TERRA


1 - Brasil Colônia
A terra foi dividida em capitanias hereditárias, que eram grandes
extensões de terras entregues em forma de concessão da Coroa
portuguesa a todos aqueles nobres que quisessem fazer fortuna
(regime das sesmarias), o lucro do que se extraia da exploração
da terra deveria ser entregue à coroa portuguesa (MORISSAWA,
2 - Brasil após a independência 2001).

Em 1850, sob o comando de D. Pedro II, foi aprovada a Lei de Aos povos originários coube a perseguição, escravidão, violência
Terras que legalizou o latifúndio no Brasil. As terras rentáveis, e morte. Recordamos Sepé Tiaraju, um líder indígena guarani
incluindo as sesmarias, passariam a ser propriedades, compradas que em 1753 liderou uma Comunidade indígena na defesa do
a valores elevados para assegurar o nível de quem fosse território, em área de fronteira Brasil e Paraguay em pleno
proprietário. Um fato curioso, é que essa lei veio exatamente período de disputa entre Portugal e Espanha. A resistência durou
em um contexto sociopolítico de efervescência pela abolição cerca de três anos quando foram massacrados e tiveram mais de
da escravatura no Brasil. Os políticos, percebendo que cedo 1500 mortes (MORISSAWA, 2001).
ou tarde a abolição seria declarada, criaram e aprovaram a lei
dando propriedade da terra a quem pudesse pagar. Assim, os
negros recém libertos não poderiam ocupar terras e nem teriam
o dinheiro para comprá-las, restando apenas a opção de se
converterem em mão de obra barata, quase nada diferente das
condições de escravo (WESTIN, 2020).
3 - Brasil República
A proclamação se deu em 1889, no período anterior às lutas
Assim como houve resistência indígena diante do processo de
republicanas. No contexto das lutas populares pela terra,
escravidão, também houve resistência do povo negro trazido
destacam-se as chamadas “lutas messiânicas”, que carregam
da África, o que nos permite afirmar que, nesse contexto, a luta
esse nome devido à presença de um líder de cunho espiritual e
abolicionista também pode se caracterizar como luta pela terra.
religioso, o “messias”. Eram lutas pela vida livre em comunidade e
A existência dos Quilombos data de 1629, sendo Palmares o mais
longe da exploração. Destacam-se Canudos e Contestado, ambas
conhecido por ser, na verdade, uma junção de vários Quilombos
dizimadas violentamente pela repressão do Estado.
chegando a reunir mais de 20 mil pessoas numa proposta de nova
ordem social sem a exploração do homem pelo homem.
Na década de 1930 com a chamada República Nova, o debate
sobre a luta pela terra passou a ter dimensões mais políticas
e se aglutinou em torno da reforma agrária. Em 1950 já se
tem registros da existência de coletivos organizados, como as
Ligas Camponesas, com predomínio na região Nordeste, e dos
4 - O Brasil na ditadura militar Sindicatos de Trabalhadores Rurais, na região Sul. Enquanto os
países ditos de primeiro mundo, em pleno processo de entrada
O golpe militar na história do Brasil, teve na revolução industrial, organizavam-se pela desconcentração da
início em abril de 1964 e só terminou em terra para ampliar as forças produtivas e a circulação de renda, a
março de 1985. Foram mais de 20 anos de governos totalitários. fim de aumentar a demanda por consumo, a burguesia brasileira
Em relação à questão agrária foi aprovado o Estatuto da Terra, manteve seu processo de concentração de terras e de renda.
documento que define e classifica o latifúndio no país. Ele afirma
o “uso social” da terra, termo que ao final deu a “brecha” legal
para que os mesmos latifundiários de sempre, aliados às novas
forças de Estado, pudessem investir fortemente na mecanização
dos campos e sendo financiados com recursos públicos, alegando
utilização em terras produtivas.
5 - Brasil após a ditadura
Já nos últimos anos da década de 1970 e início dos anos 1980
Do ponto de vista da luta social o que se deu na prática foi que
a ditadura começou a perder força. Nesse período o modelo
o processo de organização (Ligas Camponesas e sindicatos) em
de ocupações do MST já se alastrava país afora e o Movimento
prol da reforma agrária foi fortemente reprimido pela ditadura
organizou distintos eventos locais o que resultou na realização
militar. Desse processo, o legado das Ligas, em clandestinidade,
do 1º Encontro Nacional, no município de Cascavel, no Paraná,
converteu-se em esperança na ação pastoral da Igreja Católica,
em 1984. Este evento é considerado o marco para o nascimento
a exemplo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no final da
e fundação de um dos movimentos de camponeses sem terra de
década de 1970. Nesse período começaram também as primeiras
alcance nacional cujas pautas fundamentais eram a luta pela terra
ocupações de terra que vão dar origem ao Movimento dos
e a reforma agrária (MORISSAWA, 2001).
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST).
Atualmente o MST está presente em 24 das 27 unidades
federativas do país e é considerado um dos mais admirados
movimentos sociais, sendo inclusive o maior produtor de arroz
orgânico da América Latina (MST, 2022).

A existência da organização social do campo no Brasil é um


importante mecanismo de implementação da reforma agrária.
Ancorados na perspectiva do uso social da terra, o MST é um dos
movimentos que se dedica, dentre outras causas, a de ocupar
terras consideradas improdutivas e com isso pressionar o governo
a destiná-las para fins de reforma agrária.

23
CADERNO PEDAGÓGICO

Ao longo desses anos, o processo de


concentração de terras e de renda vem
sendo uma característica presente no
O QUE É Brasil. Por mais que tenham existido lutas,
LATIFÚNDIO? tanto no campo popular como no meio
institucional, com criação de mecanismos,
programas e leis para apoiar a reforma
A palavra latifúndio já era agrária, elas não foram suficientes para a
utilizada na Roma antiga para extinção do latifúndio que, atendendo ao
designar “uma grande área modelo econômico, veio se (re)organizando
de terra sobre a posse de um e fortalecendo-se.
único proprietário”.
Durante o final da década de 1990 e até
2014 alguns avanços no processo de
Em âmbito mundial, a desapropriação de terras e na elaboração
aplicação do adjetivo de políticas públicas para as populações do
“grande” varia de acordo campo foram conquistados. Paralelamente
com a realidade de cada e em proporção muito maior, também
país ou de uma região. cresceram o agronegócio, a violência no
Tomemos como exemplo campo e as desigualdades sociais.
extremos o Japão e Brasil.
Nos últimos anos, com ênfase no período pós
No Japão, que é um país golpe de 2016, a reforma agrária tem sofrido
vários ataques, aprofundados pelo governo
pequeno e superpovoado,
Bolsonaro, como o desmonte das políticas
uma propriedade que tenha agrárias e de incentivos à agricultura
mais de cem hectares familiar. A demarcação de terras indígenas
pode ser classificada como e quilombolas foi suspensa e as políticas
latifúndio. de fiscalização ambiental destruídas. Entre
os mais recentes ataques está o programa
Já no Brasil, um país de Titula Brasil, criado pelo Governo Federal. O
dimensões continentais e com programa retira as atribuições de titulação
grande quantidade de terra e regularização fundiária do Ministério
relativamente pouco povoada, da Agricultura e do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), e
o latifúndio pode ser uma
transfere para as Prefeituras.
propriedade com mais de
5 mil hectares. Se estiver O programa facilita a regularização da
localizada na Amazônia, ou, grilagem de terras, pois nos municípios
no outro extremo, de 500 o poder de pressão dos latifundiários,
hectares, se estiver situado no das empresas e parlamentares ligados
Rio Grande do Sul. ao agronegócio é maior. Também cresce
o assédio e pressão desses grupos e, do
No caso brasileiro, o nome próprio Incra, às famílias assentadas em
foi classificado em lei pelo “optar” pela titulação privada da terra, por
meio do Título de Domínio (TD). Estratégia
Estatuto da Terra em 30
que possibilita a venda das terras destinadas
de novembro de 1964, à Reforma Agrária, tirando dos assentados
para designar as grandes o próprio direito à terra, conquistado de
propriedades improdutivas forma coletiva, a partir de anos de luta das
(MORISSAWA, 2001). famílias dos movimentos que lutam pela
posse da terra.

24
MÓDULO II

Hoje a luta pela terra continua sendo uma luta


de classes, de um lado a classe trabalhadora,
resistindo aos instrumentos e modelos de
exploração da força de trabalho, e do outro,
o capital, mostrando uma de suas faces mais
perversas, como o agronegócio que, em
resumo, é o mecanismo que explora a terra,
submetendo-a a todo tipo de interferências
e violações, não importando inclusive se
essa terra terá capacidade produtiva no
futuro.

A luta por Reforma Agrária não é apenas


pela simples divisão da terra, mas uma
divisão que permita e dê ao trabalhador e
a trabalhadora do campo as condições de
permanecer com dignidade em sua moradia.
Um processo que contemple a relação do
ser humano com a natureza por meio da
agroecologia, garantindo assim um alimento
livre do veneno (Informação verbal).

O lado dos Movimentos Sociais do Campo,


a exemplo do MST, continua sendo o da
luta e o da resistência frente às ameaças
que persistem e se reinventam a cada dia.
Seguimos firmes!

Terra para Rose


(https://www.youtube.com/watch?v=1ZlqjK4K1-0&t=9s

O sonho de Rose
(https://www.youtube.com/watch?v=xP2Jm23RJ9Y)

Referências:

CHRISTOFFOLI, P. I. Agronegócio. Dicionário da Educação do Campo, Expressão Popular,


Rio de Janeiro, São Paulo, 2012, 788p.

MST. Há 10 anos o MST lidera a maior produção de arroz orgânico da América Latina.
2022. Disponível em: https://mst.org.br/2022/03/15/ha-10-anos-o-mst-lidera-a-maior-
producao-de-arroz-organico-da-america-latina/. Acesso em: 08 set. 2022.

MORISSAWA, Mitssue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001. 256 p. Disponível em: https://mst.org.br/2006/07/13/a-historia-da-luta-
pela-terra-e-o-mst/. Acesso em: 10 abr. 2021.

WESTIN, Ricardo. Há 170 anos, Lei de Terras oficializou opção do Brasil pelos
latifúndios. 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/
arquivo-s/ha-170-anos-lei-de-terras-desprezou-camponeses-e-oficializou-apoio-do-
brasil-aos-latifundios#:~:text=No%20Segundo%20Reinado%2C%20o%20Brasil,e%20n-
%C3%A3o%20em%20pequenas%20propriedades. Acesso em: 21 abr. 2021.

Fala da Profª Antônia Ivoneide Melo Silva no Tempo Aula, em 05/04/2021.

25
CADERNO PEDAGÓGICO

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos APSC-CE

DIREITO À TERRA: AS AMEAÇAS DO


AGRONEGÓCIO E DOS AGROTÓXICOS
PARA A DEFESA DA VIDA
FERNANDO FERREIRA CARNEIRO

O modelo agrícola vigente no Brasil está atrelado ao processo de modernização


conservadora da agricultura, que teve início a partir da década de 1960 e, num segundo
momento ao agronegócio, principalmente após os anos 2000 (DELGADO, 2012). O Estado
cumpriu papel fundamental nesses processos, com a implementação de políticas públicas
e programas governamentais (PIRES, 2000), facilitando a concentração de terras nas mãos
das elites agrárias e a expansão das áreas agricultáveis. Assim, instituiu-se um modelo
agrícola baseado no latifúndio e no monocultivo que se especializou, desde o final dos
anos de 1990, na produção em larga escala de cultivos de soja, milho e cana-de-açúcar (as
denominadas commodities).

Para sustentar este modo de produção, o Brasil tem sido historicamente alvo da aplicação
do pacote tecnológico pautado no uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e
sementes geneticamente modificadas. Inclui-se nesse pacote, há alguns anos, as novas
biotecnologias de edição gênica. A relação entre o uso de sementes transgênicas, a
diminuição no consumo de agrotóxicos e a elevação da produtividade das lavouras
defendida pelo agronegócio não se concretizou (ALMEIDA et al., 2017). Entretanto, a busca
por novas tecnologias que caminham no mesmo sentido continua. “Criou-se assim um

26
MÓDULO II

círculo vicioso no qual o progresso de Agrotóxicos (PNARA) e contra o PL


tecnológico se processa visando solucionar Nº 6.299/2002. Essa grande mobilização
problemas gerados pelas tecnologias resultou em dificuldades na aprovação do
precedentes” (MELGAREJO; FERRAZ; pacote do veneno e politizou o debate
FERNANDES, 2013). a favor da PNARA, contribuindo para a
crescente consciência da população em
A prática de um só cultivo em largas relação aos perigos dos agrotóxicos.
extensões de terra resulta em perda da
agrobiodiversidade e enfraquecimento
do solo, criando ambiente favorável à PARA UMA TRANSIÇÃO
multiplicação de insetos e plantas, o que ECOSSOCIAL DO
leva ao ciclo de dependência química
que nos encontramos. Os agrotóxicos e
MODELO DE PRODUÇÃO,
transgênicos fazem parte de um mesmo FORTALECIMENTO DA
pacote agrobiotecnológico para que o AGROECOLOGIA E DO BEM
agronegócio possa manter seus altos lucros
com grandes extensões de plantações de VIVER
soja e milho modificados geneticamente
resistentes aos venenos. A grande maioria Além de todos os riscos já apontados para
dessas commodities não vão diretamente a saúde e o ambiente, o modo de produzir
para a mesa das brasileiras e brasileiros, baseado na concentração de terras,
são mercadorias de exportação e/ou base monocultivo, agrotóxicos e transgenia,
para ração de animais no exterior, isentas implica em um forte limite para a produção
de impostos tanto para exportação quanto agroecológica ou orgânica.
para os agrotóxicos (SOARES; CUNHA;
PORTO, 2020; SOUZA; SILVA NETO; A agroecologia se propõe
MELGAREJO, 2017).
a preservar e potencializar
Assim, cresce não só o consumo de a agrobiodiversidade,
agrotóxicos no Brasil, como também a
intoxicação das pessoas e dos animais, a recuperar áreas
contaminação das águas e dos alimentos. degradadas, preservar
Este cenário de grande uso de agrotóxicos
resulta no adoecimento e morte da a água e o solo,
população. Segundo dados do Sistema potencializando os
Nacional de Agravos de Notificação
(SINAN), na última década foram registrados circuitos curtos de
mais de 46 mil casos de intoxicação por comercialização, a
agrotóxicos de uso agrícola, sendo que
1.857 pessoas morreram. Se considerarmos melhoria de renda das
a subnotificação de intoxicação, estes populações, a segurança
números serão bem maiores. Para a
Organização Mundial da Saúde (OMS) de e soberania alimentar e
cada caso notificado oficialmente, outros nutricional e a segurança
50 não são notificados (CARNEIRO et al.,
2015). do trabalho (FIOCRUZ, 2019).
Em 2017, diversas organizações da sociedade Com isso, por meio das experiências
civil se articularam e promoveram uma agroecológicas, são produzidos alimentos
grande mobilização a partir da Plataforma saudáveis, protegendo os agroecossistemas
#ChegaDeAgrotóxicos, que atualmente já e uma vida segura para quem vive e trabalha
conta com 1,7 milhões de assinaturas pela no campo, nas florestas, nas águas e nas
aprovação da Política Nacional de Redução cidades.

27
CADERNO PEDAGÓGICO

Enquanto no cenário nacional o governo intensifica o uso de agrotóxicos e não executa


programas e políticas para redução de agrotóxicos e de fomento à agroecologia e produção
orgânica, nos estados e municípios são construídas diferentes e potentes experiências.

A disputa por políticas nos territórios se aproxima da realidade e necessidade de vida dos
cidadãos e cidadãs e, portanto, tem papel muito importante. Os debates de propostas
legislativas nos estados e municípios (bases eleitorais dos parlamentares federais)
fortalecem o cenário para ampliação da consciência política da população e da pressão
no âmbito federal com vistas à aprovação da PNARA. Portanto, além de manter uma
vigilância popular em relação aos PLs que tramitam em cenário nacional, é fundamental
a articulação nos territórios para o desenvolvimento de experiências que avancem em
políticas municipais e estaduais, a exemplo do que já vem ocorrendo em diferentes locais.
A resistência já existe e precisa ser semeada criando um movimento ascendente e orgânico
onde a pressão da sociedade mude realidades nos estados e municípios e a correlação de
forças no Legislativo Federal.

Referências
ALMEIDA, Vicente Eduardo Soares de et al. Uso de sementes geneticamente modificadas e agrotóxicos no Brasil: cultivando perigos. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 10, p. 3333-3339,
2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n10/pt_1413-8123-csc-22-10-3333.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2020.

ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 294, de 29 de julho de 2019. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/
resolucao-da-diretoria-colegiada-rdc-n-294-de-29-de-julho-de-2019-207941987>. Acesso em: 18 set. 2020.

______. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 295, de 29 de julho de 2019. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/
resolucao-da-diretoria-colegiada-rdc-n-295-de-29-de-julho-de-2019-207944205>. Acesso em: 18 set. 2020.

______. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 296, de 29 de julho de 2019. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-
da-diretoria-colegiada-rdc-n-296-de-29-de-julho-de-2019-208028718>. Acesso em: 18 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização,
a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de
agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jul. 1989.

CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. (Orgs.). Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015.

CEARÁ. Lei nº. 16.820, de 08 de janeiro de 2019. Inclui dispositivo na Lei Estadual nº. 12.228, de 09 de dezembro de 1993, que dispõe sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio
e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins bem como sobre a fiscalização do uso de consumo do comércio, do armazenamento e do transporte interno desses
produtos. Diário Oficial do Estado, Fortaleza, CE, 09 jan. 2019.

CHEGA de engolir tanto agrotóxico. Assine pela aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos! Disponível em: <https://www.chegadeagrotoxicos.org.br/index.
html?p=1498>. Acesso em: 25 set. 2020.

DELGADO, Guilherme Costa. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século. Porto Alegre: UFRGS, 2012.

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GURGEL, Aline do Monte; FRIEDRICH, Karen (Orgs). Fundação Oswaldo Cruz. Fact Sheet nº 1 - Mudanças na rotulagem e bulas de agrotóxicos e nas diretrizes para classificação,
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SOARES, W. L.; CUNHA, L. N.; PORTO, M. F. S. Uma política de incentivo fiscal a agrotóxicos no Brasil é injustificável e insustentável. Relatório produzido pela Abrasco através
do GT Saúde e Ambiente, com apoio do Instituto Ibirapitanga. ABRASCO, 2020. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2020/02/Relatorio-Abrasco-
Desoneracao-Fiscal-Agrotoxicos-17.02.2020.pdf>. Acesso em: 17 Dez. 2020.

SOUZA, M. M. O.; SILVA NETO, C. M.; MELGAREJO, L. Agricultura Transgénica e Impactos Socioambientales: una lectura a partir del Cerrado/Brasil. Revista Agroecología, v. 12, n. 2,
Universidad de Múrcia, 2017. p. 59-70.

SOUZA, Murilo Mendonça Oliveira de et al. Agrotóxicos e Transgênicos: Retrocessos socioambientais e avanços conservadores no governo Bolsonaro. Revista da ANPEGE, v. 16. n. 29,
p. 319-352, 2020. Disponível em: <https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege/article/view/12561>. Acesso em: 13 dez. 2020.

28
MÓDULO II

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada na fotografia de Aspásia Mariana

A AGROECOLOGIA NA PROMOÇÃO DA
SAÚDE E DO BEM VIVER
GISLEI SIQUEIRA KNIERIM
ANA MARIA DUBEUX GERVAIS

Ao final do século XX, a política agrária sofreu profundas transformações, em consequência


da implantação da política neoliberal, do surgimento de grandes cadeias alimentares e da
chamada “revolução verde”, estratégias usadas para subordinar a agricultura aos padrões
de produção definidos pelo capitalismo. Isso gerou um padrão de produção no campo
caracterizado pelo monocultivo em grandes extensões de terra, a integração aos grandes
complexos corporativos agroindustriais, uso intensivo de agrotóxicos, uso desenfreado
das fontes de água, desmatamentos, redução da biodiversidade, exploração da força de
trabalho e concentração de terra. Processo esse que foi se intensificando no campo, hoje
conhecido como AGRONEGÓCIO.

Esse processo atingiu fortemente o planeta, provocando alterações no clima, na


biodiversidade, nas reservas de água doce, nos padrões alimentares, na disponibilidade de
alimentos e, consequentemente, na saúde e na vida das populações.

Para os camponeses e as camponesas, aprofundou fortemente as desigualdades sociais


acirrando fortemente os conflitos e disputas territoriais, provocando o êxodo rural, seja pelo
alto custo de produção, pela dificuldade dos agricultores de comercializar seus produtos,
como pela redução da disponibilidade de água e terra para produção de alimentos. Também
provocou o endividamento com a compra de maquinários, sementes e agrotóxicos.

29
CADERNO PEDAGÓGICO

Os camponeses impactados por esse


modelo, por sua vez, tem buscado se
organizar em diversas formas e movimentos


com uma articulação política comum, a luta
pela terra e pela reforma agrária.

No enfrentamento ao agronegócio, as Estamos lutando


organizações e movimentos sociais para defender nossa terra
do campo têm a Agroecologia como e territórios para preservar
instrumento de contestação, resistência, nosso modo de vida, nossas
defesa, reconfiguração e transformação comunidades e nossa cultura
dos territórios camponeses e dos espaços
[...] porque a agricultura
rurais disputados, em um espaço de
“recampesinação” (PLOEG, 2008).
camponesa agroecológica
que praticamos é uma peça
Os movimentos organizados na Via na construção da soberania
Campesina concebem a Agroecologia como alimentar, e é a primeira linha
de defesa à nossa Mãe Terra
A Agroecologia também pode ser [...] Estamos empenhados
concebida como uma disciplina que fornece em recuperar o nosso
os princípios básicos para estudar, desenhar conhecimento ancestral da
e manejar agroecossistemas produtivos agricultura e apropriarmos da
e conservadores de recursos naturais,
agroecologia(que na verdade
apropriados culturalmente, socialmente
justo e economicamente viáveis. Dessa
vem em grande parte do nosso
maneira, proporciona bases científicas para conhecimento acumulado),
apoiar processos de transição a estilos para que possamos produzir
de agriculturas de base ecológica e/ou em harmonia com e cuidando
sustentáveis (CAPORAL E COSTABEBER, da nossa Mãe Terra. O nosso é o
2004). modelo de vida, do campo com
camponeses e camponesas,
Portanto, um dos conceitos-chaves que das comunidades rurais com
orientam teórica e metodologicamente a famílias, dos territórios com
agroecologia são os agroecossistemas.
árvores e florestas, montanhas,
Agroecossistemas é um ecossistema lagos, rios e costas, e é em forte
artificializado pela prática humanas, por oposição ao ‘modelo da morte’,
meio do conhecimento, da organização corporativo da agricultura sem
social, dos valores culturais e da tecnologia, camponeses, nem famílias,
de maneira que sua estrutura interna é uma das monoculturas industriais,
construção social produto da coevolução de áreas rurais sem árvores,
entre as sociedades humanas e a natureza de desertos verdes e terras
(GUBER; TONÁ, 2012).
envenenadas com agroquímicos
e transgênicos. Estamos
E foi nessa interação entre agricultores e
enfrentando ativamente o
camponeses, que se rebelaram frente à
deterioração da natureza e da sociedade,
capital e o agronegócio,
provocada pelo modelo produtivo disputando com eles terras e
determinado pelo capital e os pesquisadores territórios” (LVC, 2013).
e professores mais comprometidos com
a busca de estratégias sustentáveis de
produção e cuidado com a Mãe Terra que
foi se gestando a Agroecologia.

30
MÓDULO II

E a partir desta interação, deste envolver- da vida social de acordo com os códigos
se, vai se construindo o conhecimento e regras estabelecidos pelas próprias
agroecológico, ancorado em metodologias comunidades. Uma economia inserida
que permitem o diálogo de saberes, trocas em vínculos e relacionamentos sociais
de experiências, práticas e vivências de corpo a corpo, onde as trocas ocorrem
diversos sujeitos em diferentes territórios. em relações próximas em curtos-circuitos,
com baixo consumo de energia e que
Constituindo a Agroecologia em suas os bens não sejam despersonalizados,
diferentes dimensões: mantendo o significado e um sentido
próprio, para além do seu valor de troca.
a Agroecologia enquanto
Movimento de luta; Fortalecer a organização, autogestão e
os processos coletivos. A organização
a Agroecologia enquanto ciência é o terreno fértil para que se cultive a
agroecologia, pois é a estrutura que
na busca da sustentabilidade; e permite a circulação das aprendizagens, os
diálogos de saberes e viveres, significados
a Agroecologia Política da e horizontes políticos de lutas, portanto
transformação das relações o único meio possível de disputar com o
sociais de produção e consumo. capital os meios de produção.

A construção de processos Agroecológicos Construir processos horizontais e


requer um olhar sistêmico, integrando as não hierárquicos (ROSSET; GIRALDO,
suas múltiplas perspectivas às políticas 2021). A necessidade de transpor a
econômicas, organizativas, metodológicas, lógica da construção de conhecimento
pedagógicas e filosóficas (ROSSET, onde os técnicos são os que sabem e
GIRALDO, 2021). Portanto, temos alguns os campesinos os que aprendem, mas
princípios orientadores para a construção construir metodologias que partam do
de processos Agroecológicos, a saber: princípio de que nem todo o conhecimento
dos agricultores foram substituídas pelas
A Agroecologia, deve ser revolucionária, práticas agronômicas convencionais,
capaz de questionar e transformar mas que tem conhecimento e práticas
estruturas e não as reproduzir (ROSSET; que seguem resistindo e existindo nos
GIRALDO, 2021). No sentido em que deve territórios. Esses conhecimentos e práticas
ser capaz de transformar de maneira podem estar fragmentados e dispersos nos
radical, tanto os sistemas alimentares e suas territórios, mas, que no encontro e no diálogo
estruturas, assim como as realidades locais entre agricultores, seus êxitos podem ser
adversas, enfrentadas pelas comunidades reconhecidos coletivamente e estimulados
rurais. Revolucionário no sentido de que a serem aplicados. Portanto, não se trata de
propõem a recuperação e a redistribuição transferir tecnologias descontextualizadas,
da terra e dos meios de produção, desde mas de revalorizar os saberes agrícolas, os
uma perspectiva popular, camponesa, cuidados tradicionais com a saúde, as dietas
indígena, feminista e despatriarcalizante, tradicionais, a cultura e a espiritualidade
capaz de desmantelar relações sexistas e de modo a ativar processos coletivos de
opressoras contra as mulheres. resolução de problemas e de transformação
da realidade.
A economia na agroecologia deve estar
baseada em valores de uso (ROSSET; A Formação agroecológica voltada para a
GIRALDO, 2021). Deve buscar a consolidação luta e a transformação (ROSSET; GIRALDO,
de economias solidárias e cooperadas 2021). Para construir uma agroecologia
que, ao invés de atuarem motivadas camponesa transformadora e emancipadora
pelo lucro e pelas leis de mercado, são é necessário superar o raciocínio de
organizadas para satisfazer a reprodução que os profissionais são responsáveis

31
CADERNO PEDAGÓGICO

por transmitir conhecimento através de da vida, portanto, é fundamental


sistemas de extensão, lotes demonstrativos, compreender o modelo de desenvolvimento
onde são eles que ensinam e orquestram e como ele opera no cotidiano da vida das
as trocas entre os camponeses. As pessoas e incide na saúde.
experiências que vem sendo construídas
pelos movimentos sociais são interessantes Precisamos considerar as condições
e distintas, tem elevado as experiências ambientais, de trabalho, de habitação,
pedagógicas em instrumentos de luta, a de saneamento; as relações sociais; as
fortalecer o protagonismo dos agricultores, necessidades biológicas, de alimentação,
das mulheres, ao formar sujeitos coletivos de água, de afeto, de carinho, de cuidados
e a utilizar a escola como um mediador na compreensão dos processos de saúde e
pedagógico para articular os territórios doença.
e impulsionar e acelerar a transição
agroecológica. A unidade básica de análise da Agroecologia
são os agroecossistemas, os quais analisamos
Agir a partir da cultura e da espiritualidade a partir dos seus limites e de suas relações
(ROSSET; GIRALDO, 2021). Qual o internas e externas. Da mesma forma é
momento que somos impactados para para com a nossa condição de saúde que
tomar a decisão de construir processos também está relacionada às nossas questões
agroecológicos? Quando nos sentimos individuais de sermos sujeitos singulares,
envolvidos, sensibilizados, despertados mas também com o território onde vivemos,
por sentimentos de afetividades, por emoções que possuem suas particularidades e que
ou pela fé. Enfim, quando envolvemos nosso estão em interação com outros. Portando,
coração e nossa espiritualidade. Somos ao olharmos para a saúde precisamos
seres sentipensantes, necessitamos sentir, considerar a sua dimensão multiescalar.
pensar, sonhar, incorporar nosso corpo e
coração nos processos agroecológicos. A agroecologia defende e preserva as
Somos corações e mentes. Compartilhamos culturas alimentares locais, ao estimular a
uma conexão espiritual com nossa Mãe produção de alimentos que dialogue com
Terra e com a vida. Amamos nossa terra, as condições ambientais e os saberes e
nosso povo, e sem esse amor não podemos práticas alimentares locais. Garantindo ao
defender nossa agroecologia, lutar por nosso corpo os alimentos e as vitaminas
nosso direito de alimentar o mundo. necessárias para a dieta rica e diversa
que precisamos. Tudo isso encontramos
na produção de base agroecológica, pois
Agroecologia e sua interface ela produz alimentos saudáveis e livres de
com a saúde agrotóxicos.

Sendo a agroecologia tão intimamente Os conhecimentos tradicionais são


relacionada às dimensões da vida, é fundamentais nesse processo de cuidado
importante refletirmos sobre quais as com a saúde já que considera o conhecimento
contribuições que a Agroecologia pode dos diferentes usos das plantas medicinais,
trazer para a nossa saúde. das práticas das rezadeiras, das benzedeiras
e das parteiras.
A agroecologia traz como premissa um
olhar sistêmico sobre o ambiente, pois Mais de 70% do corpo humano é composto
ao produzirmos alimentos saudáveis, de água o que a faz um elemento essencial
precisamos considerar: o solo, a para nossa saúde. A Agroecologia cuida
biodiversidade, o clima, a água, os sujeitos das diferentes águas que temos, seja para
que trabalham, os insumos de forma consumo humano ou para a produção
integrada. Também precisamos ter esse de alimentos. Por entender que a água
olhar para a saúde, pois ela é determinada doce é um bem comum finito se utiliza de
pelas condições de produção e reprodução práticas agrícolas que contribuem para sua

32
MÓDULO II

manutenção e conservação no ambiente, desenvolvendo tecnologias de estoques e


reutilização da água.

O trabalho é o meio pelo qual garantimos a reprodução da vida, onde buscamos atender
as necessidades básicas, mas também é onde se gera acumulação do Capital. Ao colocar
nossos corpos à disposição do trabalho, homens e mulheres sofrem um processo de
exploração diferenciados. Os corpos das mulheres acumulam dupla jornada de trabalho,
gerando com isso uma sobrecarga, causando processos de adoecimento tanto físico, como
mental.

A agroecologia está baseada no valor de uso dos bens, provocando com isso uma discussão
sobre o trabalho no campo e a construção de novas relações sociais entre homens e
mulheres na divisão equânime do trabalho e que envolve o cuidado com a família, a casa, a
agricultura e com os animais. Propõe também outras formas organizativas como: o trabalho
coletivo, a cooperação, a autogestão e estimula e fortalece a participação das mulheres e
da juventude na tomada de decisões que envolvem a vida da família e da comunidade.

Importante destacar que a Agroecologia tem se constituído uma estratégia de luta e de


resistência dos sujeitos do campo e da cidade em defesa da vida, da Mãe Terra e contra
o projeto de morte imposto pelo Agronegócio. A Saúde é a capacidade de lutar contra
tudo que nos oprime e nos mata. Portanto, são lutas comuns. Temos o mesmo propósito,
defender a vida, o Bem Viver, a Mãe Terra.

Referências:
LVC. Agroecologia Camponesa para la soberania alimentaria y la Madre Tierra. Experiencias de lá Vía Campesina. Cuadernos de la Vía Campesina, Harare, n. 7, abr. 2015. ______. De
Maputo a Yakarta: 5 años de agroecología en La Vía Campesina. Yacarta: LVC, 2013.

PLOEG, J. D. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

CAPORAL, F.R; COSTABEBER, J.A. Agroecologiar: alguns conceitos e princípios. Brasília: MDA -SAF-Dater – IICA, 2004.

GUBUR, D.M.P; TONÁ, N. Agroecologia. Dicionário da Educação do Campo. 2 ed, Rio de Janeiro, 2012.

GIRALDO, O.F.; ROSSET, P.M., Princípios sociales de las agroecologías emancipadoras, DMS, Seção especial – Territorialización de la agroecología Vol. 58, p. 708-732, jul./dez. 2021.
UFRPE.

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CADERNO PEDAGÓGICO

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada na fotografia de Felipe Betim

SOBERANIA ALIMENTAR
MALVINIER MACEDO
MARIA NEILA FERREIRA DOS SANTOS

A Constituição Federal de 1988 contém no seu Art. 1º:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e


Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa
humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo
político (BRASIL, 1988).

Sempre é necessário lembrar os fundamentos citados acima quando nos referimos aos
direitos básicos necessários para que se materialize vida digna para a população brasileira
em seus diferentes segmentos, respeitando sua diversidade de modos de vida. O Direito
Humano à Alimentação Adequada é condição básica para que as pessoas tenham vida
plena, saudável e autônoma.

Situações de pobreza, fome e miséria que as pessoas menos favorecidas no nosso país
convivem historicamente, mas que viveram uma pequena trégua em um período recente,
por conta de programas sociais e ações a eles atreladas que retirou o Brasil do mapa da
fome, em 2014. Mas que, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), voltaram
com força, em decorrência de desmontes de políticas sociais e outros fatores, retratando a
violação do direito humano à alimentação adequada.

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MÓDULO II

O Direito Humano à Alimentação Adequada Para que a segurança alimentar seja


só passou a ser constitucional em 2010, assegurada se faz necessário que não haja
quando o artigo 6º da Constituição Federal violação do direito humano à alimentação
de 1988, foi modificado pela Emenda adequada, bem como outros direitos sejam
Constitucional Nº 64/2010 e incluiu a preservados. Que sejam providenciadas
alimentação, ficando assim: “São direitos e implementadas as medidas e políticas
sociais a educação, a saúde, a alimentação, públicas de acesso à terra, de apoio
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a à agricultura familiar, à produção em
previdência social, a proteção à maternidade bases agroecológicas, aos meios de
e à infância, a assistência aos desamparados, comercialização como feiras e mercados,
na forma desta Constituição” (BRASIL, acesso à água, aos insumos, como sementes,
2010). e também que exista um sistema de
assistência técnica que contribua, de forma
É relevante entender que a Soberania contínua e sintonizada, com as demandas
Alimentar é de importância fundamental da produção. É fundamental que decisões
para a garantia do Direito Humano à políticas sejam realizadas garantindo a
Alimentação Adequada e da Segurança distribuição de renda e políticas públicas
Alimentar e Nutricional. É o direito dos que favoreçam às famílias as condições de
povos exercerem sua autonomia e decidir vida digna (BURITY et al., 2010).
sobre o que é produzido e consumido,
fortalecendo a democracia, respeitando
as diferentes culturas, os saberes, o meio QUE ALIMENTOS (NÃO)
ambiente e a biodiversidade. ESTAMOS COMENDO?
No Brasil, a Lei Nº 11.346/2006, que é a lei Esse questionamento faz parte da
que criou o Sistema Nacional de Segurança campanha “Comida é Patrimônio”,
Alimentar e Nutricional (SISAN), afirma no organizada e difundida pelo Fórum
seu Artigo 3º que Brasileiro de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (FBSSAN) que
busca provocar a sociedade a refletir e
segurança alimentar e agir em defesa da alimentação saudável,
nutricional consiste na produzida de modo sustentável, que
garanta a diversidade, respeite as culturas
realização do direito de locais e que promova saúde e não, a doença
todos ao acesso regular e (DIAS; CHIFFOLEAU, 2016).
permanente a alimentos de
Como destacado anteriormente, a
qualidade, em quantidade alimentação é um direito fundamental,
suficiente, sem comprometer além de ser uma necessidade básica
aos seres humanos e deve ser suprida
o acesso a outras adequadamente. Sua ausência, o excesso
necessidades essenciais, ou o modo de se alimentar podem causar
tendo como base práticas doenças, tornando-se uma questão de
saúde pública (DE ABREU et al., 2001).
alimentares promotoras
de saúde, que respeitem a Ao longo da história da humanidade a
alimentação humana vem se modificando
diversidade cultural e que e os modos de vida das populações
sejam ambiental, cultural, camponesas estão sendo impactados.
econômica e socialmente As revoluções na agricultura mundial, o
crescimento econômico, o monopólio do
sustentáveis (BRASIL, 2006). comércio e as decisões políticas em favor
dos impérios alimentares são alguns dos

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CADERNO PEDAGÓGICO

fatores que tem causando esses impactos. Eles também são responsáveis pela
desterritorialização pelo qual os alimentos e serviços passam, chegando a alcançar o nível
global, causando sérias modificações no jeito de produzir das comunidades camponesas,
além de provocar a extinção de vários alimentos da biodiversidade. Quanto ao jeito de
consumir da população, é cada vez mais rápido, individualizado e inacessível às populações
mais vulnerabilizadas que não dispõem de políticas públicas econômicas, sociais, agrícolas,
agrárias e de recursos financeiros para obtenção dos alimentos gerando subnutrição e a
fome (DIEZ GARCIA, 2003).

Com isso, as práticas, os hábitos alimentares, a cultura e os modos de vida das populações
em diversas partes do mundo são modificados e a alimentação que ganha força é a
industrializada, com alimentos envenenados e artificializados (DIAS; CHIFFOLEAU, 2016).
Os alimentos ultraprocessados, com grandes teores de açúcar, sal, conservantes e que
deixam muitos resíduos (latas, sacos, papelão) se tornam presentes em muitos lares.
Situação que requer atenção e preocupação das ciências da saúde, visto que os estudos
apontam relação direta entre a dieta e algumas doenças crônicas associadas à alimentação,
sendo necessário que intervenções de cunho social e político sejam realizadas para que as
mudanças nos padrões alimentares ocorram e essa situação se reverta, garantindo mais
saúde para a população (DIEZ GARCIA, 2003).

Queremos saúde e comida de verdade, no campo e na cidade. Por Direitos e Soberania


Alimentar, continuamos em Luta!

Fonte: Ilustração de Samyrah do Monte Honorato inspirada em imagens do acervo dos APSC-CE

Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 20 de março de 2022.

BRASIL. Constituição (2006). Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito
humano à alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm. Acesso em: 20 mar. 2022.

BURITY, V. et al. A Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito Humano à Alimentação no Brasil. In: Abrandh. [s.l: s.n.]. v. Módulo 1 –p. 69.

DE ABREU, E. S. et al. World food - a reflection on history [Alimentação mundial - uma reflexão sobre a história]. Saúde e Sociedade, v. 10, n. 2, p. 3–14, 2001.

DIAS, J.; CHIFFOLEAU, M. Mutações político-estéticas na comunicação da Soberania Alimentar e Segurança Alimentar e Nutricional. Razón y palabra, v. 3, n. 94, p. 657–664, 2016.

DIEZ GARCIA, R. W. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição, v. 16, n. 4, p. 483–492, 2003.

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