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2021
ISSN: 2317-2428
www.rigs.ufba.br
Publicação acadêmica, quadrimestral. Publica 3 tipos de documentos:
textos, fotos e vídeos. Estimula 6 tipos de contribuições: tecnológi-
ca, teórica, vivencial, indicativa, fotográfica e audiovisual. Explora a
gestão social de forma ampla ao situá-la na contemporaneidade, em
territórios pluridisciplinares de prática e na investigação acadêmica.
Difunde estudos pautados pela interdisciplinaridade.
Quadrimestral.
Descrição baseada em: Vol. 1, n.1 (jan./ abr. 2012).
ISSN 2317-2428
15 Foto da Capa
Contribuição fotográfica
Kleber Moitinho
17 The Effect of Volunteer Work in Hospitals: In a Brazilian University
Hospital
June Alison Westarb Cruz, Kleberson Massaro Rodrigues, Ronald Rodrigues Vale,
Suelen Cequinel Moraes, Heitor Takashi Kato e Alex Sandro Quadros Weymer
Contribuição Vivencial
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.33503
SEÇÃO TEMÁTICA
Foto: Kleber Moitinho
editoriais
Como ocorre tradicionalmente, a RIGS apresenta aos seus leitores contribuições variadas,
sejam teóricas, fotográficas, vivenciais, dentre outras que tratem de questões relevantes ao
campo da Gestão Social. E no presente número, a RIGS traz uma seção temática especial,
dedicada ao contexto da pandemia global, COVID-19. São experiências, relatos e reflexões
totalmente voltados a esse cenário.
Anteriores à seção temática, há duas contribuições teóricas. A primeira, aborda a dinâmica
e efeitos do trabalho voluntário em um hospital universitário brasileiro, sob a hipótese de
que tal trabalho proporcionaria maior eficiência na assistência hospitalar no âmbito do
SUS (Sistema Único de Saúde). A segunda, discute a potencialidade da retórica como
instrumento útil a graduandos dos cursos de Administração no acesso e compreensão de
teorias relativas à Ciência Social Aplicada à referida área.
Quanto à seção temática especial, partiu-se da compreensão de como o ano de 2020
impactou sobremaneira a vida social, alterando as formas com que interações sociais são
estabelecidas e, consequentemente, o olhar analítico de pesquisadores sobre os problemas
sociais. A vivência de uma pandemia em um mundo globalizado com fronteiras cada vez
mais fluidas evidenciou a fragilidade de Estados na implementação de políticas públicas
para mitigar os efeitos da pandemia na sociedade. As desigualdades sociais também se
mostraram como um fator negativo para a manutenção de vidas. Ou seja, países pobres que
não implementaram medidas de contenção do vírus tiveram mais perda populacional.
Desse modo, a seção especial foi dedicada particularmente aos cenários e possiblidades, a
partir do contexto de crise sanitária provocada pela disseminação da COVID-19 e seus
desdobramentos vivenciados em dimensão global. Circunscrita aos integrantes do CIAGS
que participaram do I Congresso UFBA Virtual no ano de 2020, contou com a participação
de professores e estudantes que voltaram suas reflexões para a gestão social dos territórios
nos tempos de pandemia.
Com o tema “Novos sentidos e significados da Gestão Social e os desafios do Desenvolvimento
Territorial”, são apresentadas, na referida seção, diferentes contribuições, tais como uma
fotográfica que retrata o vazio das ruas de Lisboa durante o período de lockdown. Já uma
contribuição vivencial apresenta e contextualiza o momento vivenciado pela UFBA e sua
reação à pandemia. Na sequência, apresentam-se duas contribuições teóricas com reflexões
sobre gestão pública e pandemia. Uma delas, problematiza a despolitização da gestão de
políticas públicas e como a gestão social pode influenciar um projeto de desenvolvimento
democrático e participativo; a seguinte trata de conexões interdisciplinares entre os conceitos
de Administração Política e Geografia Política para analisar os impactos impostos pela
pandemia.
12 Memórias de Operários e Gestores
Outro artigo faz uma análise sobre a estratégia de resiliência da cidade de Salvador e sua
adaptação à pandemia. Adiante, outro trabalho apresenta resultados de pesquisas científicas
de estudantes no âmbito do Mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social do Programa
de Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA para a resolução de problemas na sociedade
pós-pandêmica.
A responsabilidade social corporativa é o foco de outro trabalho desta seção e reflete
sobre como empresas orientam seus investimentos sociais e de que maneira as populações
impactadas pelas atividades operacionais são consideradas na tomada de decisão para a
aplicação de tais investimentos. Na sequência, outro artigo aborda uma proposta de
integração da temática da ação do indivíduo sobre a tecnologia no campo da gestão social.
Para fechar as contribuições teóricas, tem-se um trabalho que se refere à temática das
habilidades sociais entre os interesses de ensino, pesquisa e extensão do campo da Gestão
Social. A seção temática é, então, finalizada com duas contribuições vivenciais. A primeira,
sobre processos de ação e mobilização social das lideranças religiosas ligadas às tradições de
matriz africana, a segunda, a respeito da experiência de se viver a pandemia e o distanciamento
social em um país estrangeiro.
E assim, diante de um conjunto robusto de contribuições que compõem o presente número,
desejamos a todos uma boa leitura e as melhores reflexões.
LUIZA TEIXEIRA
LUCIANA ALVES RODAS VERA
Editoras da Seção Temática
GRACE RODRIGUES
Editora-chefe
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“Nesta cidade, a consciência é um perigo iminente”. Alberto Luiz Baraúna, poeta baiano
precocemente falecido, que foi aluno da UFBA, teve versos recolhidos por Dalila Machado
e alertava para que “todos se retirem de suas portas”, ou seja, saiam de suas “zonas de
conforto”.
Este número da RIGS cumpre uma missão similar de alerta em vários sentidos, nos artigos,
depoimentos e imagens, sendo, no seu conjunto, uma metáfora dos tempos de dispersão e
encontros, quando o passado e o futuro são repensados no individual e no coletivo. Vivemos
um momento único, em que tudo é possível, da morte à vida, como sempre foi, mas não
com tanta “consciência do perigo iminente”. O contexto pandêmico é uma convergência de
todas as carências e potenciais que mobilizam energias e exigem novas construções sociais
das políticas, das intervenções, do agir.
Os artigos exploram os espaços em que ocorrem estas construções e reconstruções, como
a urbe, os hospitais e as empresas, que tentam ressignificar o investimento social. Este
conjunto de contribuições reflexivas e propositivas trazem a GESTÃO SOCIAL na sua
plenitude, desde a GESTÃO de SI até a GESTÃO DOS OUTROS, em coletivos de
múltiplas escalas, em ambiências próximas e distantes. Nós, indivíduos, criamos fatos e
artefatos, pois as habilidades comunicacionais estão cada vez mais demandadas, mediadas
ou não pela tecnologia, que também reduz a bipolaridade do ensino e da aprendizagem.
O distanciamento necessário induz ao inevitável encontro presencial de cada um consigo
mesmo, a novas formas de aproximação com os círculos familiares e sociais de qualquer
natureza e amplitude.
Este número especial é um atestado de que a RIGS tem a GESTÃO SOCIAL como
um tema, que só pode tratar da interdisciplinaridade. Veículo institucional do primeiro
programa de formação de gestores sociais para o desenvolvimento no Brasil, a RIGS
incorpora também resultados de trabalhos dos alunos e dos impactos dos mesmos, já que
o PDGS assume ser um programa de formação profissional. O PDGS, integrante do
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE GESTÃO SOCIAL (CIAGS), é um instrumento
multidimensional de promoção da “consciência iminente” da necessária multipolaridade.
Agradecimentos são devidos à editoria, às autoras e autores, aos responsáveis pelo suporte
técnico e aos que terão acesso a esta construção coletiva. Da dor, surgem as aprendizagens.
É o tempo de nos retirarmos das portas, preparando os encontros em espaços tradicionais
como os das ruas e praças que serão ressignificados, enquanto aprendemos, cada vez mais, a
viver nos espaços remotos que se tornam cada vez mais próximos.
FOTO DA CAPA
Kleber Moitinho
INTRODUCTION
Volunteering can be seen as an expression of human kindness. This statement can only be
made through empiricism, without the need for a specific citation from a specific study.
Although the statement seems courageous, the experiential nature of this work allows such
audacious statements to be made, since this is a socially constructed idea. This is especially
relevant in a peculiar organizational environment, in which the borderline between health
and disease is tenuous.
In Brazil, volunteer work within a hospital environment began around 1543, when the
first “Santa Casa de Misericórdia” in Santos-SP was created by the first Portuguese groups
(RODRIGUES et al., 2014). From that moment on, several researchers have qualitatively
shown that there is a perception that volunteers can have a tangible impact within the
strategy of these organizations, where their undertaken actions explicitly show significant
improvement to the efficiency of the hospital regarding the services offered, especially for
the SUS providers.
Within this area of research, Ferreira, Proença e Proença (2015) state that a volunteer
program that is aligned with an institution’s strategies can contribute to the strengthening
of the internal culture and effectiveness of processes and protocols (FARMER; FEDOR,
2001).
Such contribution can become exponentially valuable as long as it is presented as a service
for the Brazilian public system, which promotes strategies, processes and actions based on
increasing access and quality of health services, whose purpose is to safeguard citizens’ lives
(FERREIRA et al., 2015). Such system has as a central agent, hospital structures that serve
as the principal establishments in complex healthcare, aimed at seeking medical solutions
for individuals and the communities which they belong to.
In corroboration to a study done by Hotchkiss et al. (2009), the current study strives to
prove, quantitatively, the impact of volunteering on hospital environment, as seen through
increased satisfaction of patients, diminishing average stay rates and diminishing average
hospital infection rates. In order to do so, this study uses statistical procedures applied
to both University Hospitals within greater Curitiba, which are providers of the Unified
Health System. The purpose of this study is to prove a new perspective: that human goodness
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materialized into volunteer work applied to a complex institution can increase the access
and quality of hospital institutions.
Therefore, based on this general objective, the present study is justified, under the aspect
of social management, by its empirical relevance, in subsidizing, through the practice of
science, a better condition of access and health care in the Brazilian context, especially to
users of the Unified Health System.
Dart (2004) highlight the strategic and tactical importance of volunteer work on hospital
structure, specifically within the operational component of support work, fundraising,
brand imaging, awareness campaigns focused on patient safety, information and process
flows, as well as aspects related to the improvement of the organizational climate amongst
employees, patients and family members.
In this sense, Rodrigues, Meyer and Cruz (2014, p. 155) state:
[...] volunteers, when well-managed, can contribute significantly to the
fulfillment of various activities as well as to organizational performance, with
emphasis on the humanizing element itself, in hospital organizations.
In this context, volunteers, as collaborators, can contribute to the promotion
of the quality and agility of the services provided with clear benefits to the
users of these services, creating a climate conducive to good reception, good
ambience and good treatment. Volunteers can potentially contribute not only
to improving health services, but also to minimizing operational expenses and
strengthening the organizational image by acting as propagators of good ser-
vices provided to society.
According to Meyer, Pascucci and Murphy (2013), within hospital activities, volunteers
can be a source of sociopsychological assistance to patients and their family members; they
contribute to the creation of strategy independence of formal structures, contribute to the
process of clinical treatment, when well accompanied. They may also be involved in other
activities, such as public assistance, helping with patient displacement, answering phones,
reading books to patients, single visits, conversing with patient family members, among
other activities that vary according to the needs and demands of the particular management
team of the hospital (WELLA et al., 2004).
Some studies present evidence of the effect of volunteer work beyond personal assistance
of individuals focused on the improvement of humanizing indicators, based on the
improvement of hospital assistance, especially within the Brazilian Unified Health System
(VASCONCELOS et al., 2017). This has seen to increase hospital stay times, satisfaction,
hospital infection rates, among other (RODRIGUES; MEYER; CRUZ, 2014). However,
the majority of these studies are based on qualitative measures which reinforce the value
of this current study. This study incorporates quantitative analysis to prove the hypothesis
that volunteer work assists with the improvement of the quality of health service assistance
(ANHEIER; SALAMON, 1999).
Within this context, the dissertation of these theoretical elements about understanding
performance within health services becomes essential to comprehend the empirical
relationship proposed. This is especially relevant to understand the Sistema Único de Saúde
(SUS), whose practical purpose is challenging both in terms of access as well as the status
of the service given (ZDZIARSKI, 2019).
Based on the challenge of fostering access and quality of health services, the Ministry of
Health, through the Administrative Rule 312 of May 2, 2002, established the Standardization
of Nomenclature in the Hospital Center. The Ministry of Health defined hospital indicators
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with the objective that they may be used in diverse sectors of the hospital. They are: quality of
the patient’s day, average length of stay and hospital infection rate. Besides these indicators,
the Ministry of Health (2012) highlights the importance of a patient satisfaction indicator,
as this is one of the few indicators that allow the evaluation of the provided services from
the patient’s and his/her family members’ perspectives (CRUZ et al., 2010).
Finally, through the understanding of the theoretical framework about this research proposal,
one can evidence several scientific experiences whose purpose is to confirm the hypothesis
that volunteer work positively affects the human element in hospital institutions, whose
purpose is to safeguard human life. This fact is supported by the work by Hotchkiss et al.
(2009). Such evidence strengthens the theoretical aspect of the first hypothesis provided:
volunteer work positively impacts performance within healthcare, it is proven through
scientific method, and it can be described in the following item.
METHODOLOGICAL PROCEDURES
This study has a descriptive and quantitative character that uses data from the University
Hospital database. The analyzed data correspond to the average stay and average hospital
infection indicators (dependent variables) and the amount of volunteer activities
(independent variable) from January 2015 to October 2018, with monthly account,
throughout 46 periods, as described in Table 1.
Table 1 - Descriptive Analysis Variables
These data were analyzed with the help of SPSS software, by applying multiple regressions,
with analysis of normality tests of residuals and multicollinearity Kolmogorov-Smirnov
and Shapiro-Wilk.
The definition of the independent variables was based on a research by Rodrigues et al.
(2014). The definition of dependent variables was based on the indicators described by the
Ministry of Health. Both are cites in the Theoretical Approach component of this article.
In a complementary way, this study affirms that there is no multicollinearity among the
variables, this assertion is based on the VIF index, whose values are presented in the
metric indicated by the bibliography that shows evidence on the validity of the regression
(Internment Pickup: 2.229; Storytellers: 2.177; Solitary Visits: 2.205). According to Levine
et al. (2005), when the VIF is greater than 10, it means that there is too much correlation
of the explanatory variables with each other, this will not provide new information, making
it difficult to separate the effect of these variables on the dependent variable or the variable
response, and therefore, collinearity was not representative in the variables analyzed in this
study.
24 The Effect of Volunteer Work in Hospitals
Analysis of the residuals shows that the data are normal (Kolmogorov-Smirnov: 0.200;
Shapiro-Wilk: 0.742), since they present indexes above the predicted minimum (0.05) in
the statistical literature, validating the normality assumption of the regression residuals, as
shown in Figure 1 below.
Figure 1 - Graph on the Normal Probability Plot of Residuals
Therefore, when establishing the Stay Rate as a dependent variable, it can be affirmed that
there is a relevant effect of voluntary activities to its decrease, in particular, the activity called
“Internment Pickup”, which relates to the “bed-turning”, makes it possible for more people
to be attended with the same resources, as well as it decreases the exposure of patients to the
risks inherent to staying in a hospital environment.
Such results corroborate the theoretical evidence cited by Ferreira et al. (2015) and Hotchkiss
et al. (2009) in their latest research, affirming the positive influence of volunteer work on
hospital stay rate.
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The analysis of the residuals show that the data are normal (Kolmogorov-Smirnov: 0.199;
Shapiro-Wilk: 0.547), as in the analysis of the Stay Rate, the Hospital Inflection Rate as
a dependent variable, shows indices above the predicted minimum (0.5) in the statistical
literature, validating the assumption of the normality of the regression residuals according
to the Figure 2.
26 The Effect of Volunteer Work in Hospitals
Therefore, as well as in the analysis of the Stay Rate, the effect of volunteer work is noticeable
regarding Hospital Infection Rate. One can affirm that there is a relationship between
volunteer work and the prevention of infections in a patient’s hospital stay. This ultimately
reduces the cost of treatment and increases a patient’s health care quality.
In this context, the evidence of the impact of voluntary work, as a contributory alternative
to the improvement of health care conditions, by decreasing the permanence rate and the
rate of nosocomial infection, corroborates with evidence from other research in the area,
such as Ferreira et al. (2015), Rodrigues et al. (2014), Hotchkiss et al. (2009) and Farmer
and Fedor (2001).
FINAL CONSIDERATIONS
From the results presented, it was possible to analyze the effect of volunteer work on hospital
care, regarding the improvement of patient’s life conditions, a decrease in the length of stay,
and a reduction of hospital infection rate. These data reinforce the findings of Rodrigues,
Meyer and Cruz (2014) and Meyer, Pascucci and Murphy (2013), which note the potential
ability that volunteers have, when well-managed: contributing to the improvement of
health services, reducing operational expenses, and strengthening the organization’s image.
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This relates to evidence reported by Hotchkiss et al. (2009), who quantitatively assert that
there is a relationship between volunteer work and the reduction of organizational hospital
expenses.
Although the focus of this research is not to show the economic effect of volunteer work,
one can affirm that decreasing stay rates and hospital infection rates directly impacts the
structural cost of the hospital, as well as the probability of generating new income. This can
be a potential argument for not considering volunteers as solely adjuncts, but as integral and
strategic components of hospital care (RODRIGUES; MEYER; CRUZ, 2014).
Ultimately, one can conclude that this study corroborates the need of incentivizing
volunteer work in hospitals, as it can significantly reduce stay rates, hospital infection rates,
and positively affect the quality of care within healthcare services. This confirms that the
concept of “human goodness” and volunteering can become a manner to increase the access
and quality of work of health care institutions.
In time, it is worth noting that the conceptual and empirical alignment of this research with
research already carried out is evident, in the sense of positively affirming that voluntary
work practices are worthy of attention in health management, contributing in an alternative
way to qualification and access to health services, either by decreasing the patient’s stay in
hospital bed or by contributing to reducing hospital infection.
Finally, the present research is limited in its object and characteristics, as it assesses the
context of the practice of voluntary work, solely and exclusively in beds linked to the Sistema
Único de Saúde (SUS). These characteristics may show a bias in the research, as it fails to
address the application of volunteering in supplementary health beds or other regions of
the country, with different cultures, protocols and technologies.
NOTE
1 Submetido à RIGS em: set. 2019. Aceito para publicação em: dez. 2020.
REFERENCES
ANHEIER, H. K.; SALAMON, L. M. Volunteering in cross-national perspective: Initial
comparisons. Law and Contemp. Probs., v. 62, n. 43, 1999.
BABBIE, E. R. The Practice of Social Research. 13. ed. California: Wadsworth, 2013.
BRASIL, Padronização da Nomenclatura do Senso Hospitalar. (2018). Portaria. n. º
312, de 02 de maio de 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
padronizacao_censo.pdf. Acesso em: 17 nov. 2018.
CNAAN, R. A.; CASCIO, T. A. Performance and commitment: Issues in management
of volunteers in human service organizations. Journal of Social Service Research, v. 24,
(3-49), 1998.
28 The Effect of Volunteer Work in Hospitals
June Alison Diretor Executivo da Província Marista Brasil Centro Sul, Professor
Westarb Cruz do Mestrado e Doutorado em Administração, Professor do Mestrado
Profissional de Gestão de Cooperativas da PUCPR e Pós-doutorando em
Administração pela FGV EAESP.
INTRODUÇÃO
É de comum conhecimento que a inteligência é inata à espécie humana; em contrapartida,
“[...] ninguém nasce com o manual de instruções para a utilizar. Cabe à educação fornecê-
lo” (IDE, 2000, p. VII). O teor deste pensamento é antigo na cultura ocidental, desde
tempos quando Aristóteles (2016) ocupou-se com o desenvolvimento da inteligência, isto
é, a condição para o indivíduo pensar adequadamente. Essa mesma leitura da relação entre
inteligência e disciplina intelectual está em Descartes (1973), segundo o qual, para entender
a realidade, é preciso superar o senso comum, ou seja, é necessário um método.
Feita esta breve contextualização histórico-filosófica, nossa experiência docente (ao longo
de mais de trinta anos) em instituições de ensino superior nos cursos de graduação em
Administração de Empresas, Economia, Ciências Contábeis e Ciências Atuariais tem
revelado a dificuldade dos alunos com as práticas necessárias ao estudo, entre as quais a
compreensão dos textos com a criticidade compatível à formação de nível superior (por
extensão, sabe-se que o mesmo fenômeno ocorre nos demais cursos das chamadas “ciências
humanas”). A análise retórica apresentada neste artigo, portanto, faz uso de um referenciado
autor da área de Administração – tal como será oportunamente apresentado –, haja
vista a necessidade de delimitar o objeto de estudo; faz-se relevante mencionar que um
exercício similar pode ser realizado com a literatura de qualquer outro curso no campo das
humanidades.
A deficiência na compreensão da leitura dá-se não apenas pelas lacunas na capacidade em
“interpretar textos”, mas também pelo desconhecimento sobre o que é ciência (seu objeto,
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seus métodos e limites) e pela inexperiência com a análise política dos textos (em última
instância, da posição dos autores frente às controvérsias inerentes às humanidades).
A literatura das ciências humanas, por motivos sobejamente conhecidos, não é “neutra”. Pelo
contrário, ela expressa interesses e valores, versa sobre temas que, pela natureza do objeto,
não produzem teses demonstráveis (ARISTÓTELES, 2012; SANTOS, 1999). Também
são características deste campo do conhecimento a controvérsia, as diferentes intepretações
para o mesmo fenômeno, a coexistência entre autores seminais e seguidores (os quais, não
raro, se autonomeiam “novos”, sem pudor de plagiar) e a boa e a má literaturas. Assim, é
imprescindível que o aluno saiba, ao ler, não só identificar as diferenças entre os autores,
mas ir além da interpretação do texto e julgá-los, o que só ocorre se puder compreender os
interesses e as intenções do autor, além da qualidade dos argumentos apresentados – mesmo
porque o extraordinário aumento do acesso à informação característico de nosso tempo
torna a competência de julgar o que se lê imprescindível à formação do aluno.
O estudo da política e da filosofia do conhecimento na forma de disciplinas é bem-vindo a
qualquer estudante de ciências humanas, apesar de que, ainda assim, não necessariamente
convergiria para a elaboração de um método de leitura-estudo que contribuísse para a
autonomia intelectual do aluno. Leitores de política e filosofia também aprendem pela
denominada “tentativa-e-erro”, segundo Gardner (1994), o mais tosco, custoso e lento dos
métodos, nas palavras do autor. É preciso, pois, organizar uma disciplina para a inteligência
na tradição de Aristóteles, de Descartes e de tantos outros grandes pensadores da nossa
civilização: é preciso ensinar a estudar a teoria.
Na perspectiva metodológica proposta por Aristóteles (2012), todo enunciado parte de
premissas (explícitas ou implícitas), isto é, as asserções fundamentadas no conhecimento
(ou na experiência) do leitor ao qual nos dirigimos – se ocupasse-nos de “provarmos” tais
ideias, o artigo não se voltaria ao uso da retórica como método de aprendizagem, mas ao
conteúdo de cada premissa, portanto, não discorreremos sobre isto. A expressão “provar”
apresenta-se como metáfora (entre aspas, portanto), porque o conhecimento sobre o qual
este artigo se debruça não é demonstrável, não é da categoria do verdadeiro ou falso, mas,
sim, do plausível.
As duas premissas a que esta pesquisa se volta, a serem apresentadas explicitamente, são: (1)
os textos das ciências humanas não se revelarem facilmente ao leitor, então a compreensão
exige conhecimento prévio, método e disciplina; (2) os alunos de graduação dessa área
do conhecimento não conhecem um método adequado para ler-estudar. Na tradição dos
pensadores da chamada nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000;
REBOUL, 2000; ALEXANDRE JR., 2012), defende-se a seguinte tese: a leitura retórica
se trata do conhecimento e da prática para ensinar graduandos a ler a teoria relativa às
ciências sociais, inclusive aquelas das áreas específicas (o management propriamente dito).
O objetivo deste estudo, portanto, é evidenciar a potencialidade do uso da retórica para o
ensino nos cursos de graduação em Administração, norteando-se por uma metodologia
que constitua na apresentação dos recursos retóricos para a leitura com base na revisão
bibliográfica pertinente e no exercício de análise retórica de um artigo “clássico” sobre
34 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração
A RETÓRICA
A retórica nasceu da prática de hábeis oradores na antiguidade – provindos da Grécia, de
Roma, do Egito, da China e da Índia (KENNEDY, 1997) – e, por volta de 350 a. C., foi
configurada por Aristóteles como arte e prática do discurso oratório voltadas aos princípios
e às técnicas da comunicação. A obra Retórica, de Aristóteles (2012), ainda é referência
fundamental para o estudo do tema – os autores subsequentes ao filósofo dialogam com
ou referenciam-se a ele. A retórica é a prática de argumentar de forma eficaz, convém
para persuadir o auditório (ouvinte ou ouvintes) das ideias (teses) daquele que fala (ou
escreve, ou representa; a mídia pode variar) e é também prática hermenêutica, servindo
para desconstruir analiticamente os textos. A retórica aristotélica, logo, é “uma teoria da
argumentação persuasiva” (ALEXANDRE JR., 2012, p. 19) que apela à lógica e às emoções
do auditório.
Na antiguidade clássica, a retórica floresceu para ocupar o lugar dos mitos na função do
entendimento da realidade (MEYER, [19--?] apud PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2000) e para servir aos princípios democráticos das cidades-Estado gregas. Caiu
no esquecimento durante a Idade Média, acusada pelo pensamento cristão hegemônico
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ELEMENTOS DA RETÓRICA
A obra Retórica de Aristóteles (2012) apresenta detalhadamente os elementos do discurso
que objetivam persuadir um determinado auditório; entre os elementos retóricos, tem-se
como central o argumento lógico. Ao ressaltar a retórica calcada no raciocínio, acaba-se
também por apresentar ao leitor um método de trabalho e um potente sistema crítico de
análise de qualquer forma de discurso. É nesse sentido, de método de leitura e compreensão,
que a retórica vem sendo apropriada pelas várias áreas do conhecimento, e é ainda nessa
direção que utilizamos a retórica: não para ensinar a discursar, mas a ler, ainda que a leitura
retórica também ensine como discursar.
O estudo da retórica tem extraordinário potencial para ampliar a capacidade humana de
aprender e comunicar o aprendizado, permitindo seu uso como instrumento para “inventar,
reinventar e solidificar” a educação (ALEXANDRE JR., 2012, p. X). Por isso mesmo, tem
sido utilizada como referência teórica para as pesquisas sobre o ensino (DUARTE, 2010;
CAMPBELL; HUXMAN; BURKHOLDER, 2015).
Na elaboração da literatura científica em Administração de Empresas, entre outros,
conforme compilação de Fernando, Silva e Amorim (2017)2, podemos citar Arora e Romijn
(2012), Borges, Medeiros e Júnior (2007), Boussard e Dujarier (2014), Dias, Lopes e Dalla
(2007), Fischer, Heber, Fadul e Fachin (2001), Frezatti, Carter e Barroso (2014), Lalonde,
Bourgault e Findeli (2012), Nardy, Guido, Novais e Amorim (2016), Sucupira, Chaves e
Monteiro (2007), autores estes que utilizam a retórica para estudos como técnica de análise
ou de discurso.
À conveniência deste artigo, seguindo as categorias de leitura retórica de Reboul (2000) e
da dupla Perelman e Obrelchts-Tyteca (2000), sintetizou-se o sistema retórico aristotélico
em seis elementos: orador, auditório, exórdio, intenção (do autor), teses e argumentos. Para
melhor organizar a leitura, usamos o recurso negrito para destacar o primeiro uso de cada
expressão, acompanhada de sua definição nos termos da retórica.
O orador e o auditório constituem-se a palco da retórica: o primeiro dirige-se (oralmente,
por meio de texto ou qualquer outra mídia) ao segundo (constituído por um ou mais
ouvintes), buscando persuadi-lo por meio de argumentos que serão considerados eficazes
à medida que provocarem a adesão às teses em pauta (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2000). À luz da retórica, os fatos não “falam por si”, mas, pelo contrário, para
obter a adesão, é necessário planejar cuidadosamente a forma de apresentá-los, sem, no
entanto, transfigurá-los por negligenciar a verdade e a honestidade. Trata-se de um método
responsável, e não de manipulação da linguagem (GRIMALDI, 1980).
O auditório, qualquer que seja, reage aos apelos racionais e emocionais em graus e formas
diferentes. É do humano emocionar-se (sentir) primeiro, para apenas depois pensar e,
eventualmente, agir – pois, sem o apelo à emoção, a razão não se manifesta (DAMÁSIO,
1996) –, por isso mesmo é sempre frágil o discurso que suprima ou use demasiadamente
um dos apelos.
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A retórica recomenda ao orador iniciar sua tarefa com o exórdio, isto é, o acordo prévio
elaborado como discurso preliminar que procura a adesão do auditório antes que sejam
apresentados os argumentos. O exórdio busca produzir uma emoção (inspirar confiança
ou credibilidade, entre as mais importantes para a aceitação dos argumentos) para obter
atenção antes de apresentar a tese, os argumentos e as propostas. As características do
orador e do auditório, o conteúdo da tese e os objetivos do primeiro estabelecem a forma e
a duração do exórdio.
Isto posto, o exórdio é imprescindível (afinal, não há como argumentar com eficácia sem um
acordo prévio); estrutura-se sobre um conjunto de premissas implícitas ou explícitas, fatos,
verdades e presunções.
Os fatos, em princípio, são verificáveis; mesmo assim podem ser contestados, pois “toda
verdade construída por um discurso pode ser desconstruída por um contra-discurso”
(FIORIN, 2015, p. 23). As verdades, por sua vez, são nexos causais complexos, enquanto as
presunções (elemento capital na argumentação) são afirmações verossímeis admitidas pela
maioria até prova contrária (REBOUL, 2000). Não há regra para a duração do exórdio, o
qual também pode ser implícito, brevíssimo ou abrupto, quando o orador escolhe abordar o
assunto principal aparentemente sem preparação prévia (REBOUL, 2000).
Relativamente ao orador, é preciso identificar: (1) quem é, (2) quando discursa e (3) de
onde discursa (REBOUL, 2000). Antes de iniciar a leitura, o leitor deve saber se o orador é
pesquisador de um importante centro de pesquisa e autor de obras originais ou, ao contrário,
um copista que compilou e simplificou – por sua conta e seu risco – teorias proeminentes. Na
bibliografia dos cursos de Administração, os manuais e os textos de imitadores costumam
conviver com obras de autores seminais, sem que os alunos compreendam as diferenças de
qualidade e propósito entre uns e outros.
O aluno deve saber também o contexto (quando?) da produção da obra, pois é da natureza
das humanidades serem fortemente influenciadas pela realidade à sua volta e, por isso mesmo,
parte do conteúdo pode ser obsoleto na atualidade e outra parte, ainda válida. Lembrando
que, se de um lado uma obra escrita há décadas possa caducar, de outro, a mais recente
não é necessariamente a melhor: uma obra se mantém atual se explica adequadamente os
problemas contemporâneos.
O exercício para identificar o orador ensina aos alunos que uma obra não deve ser aceita
passivamente, ou que necessariamente apresente o mesmo grau de relevância em todos
os capítulos. Vale ilustrar, neste momento, o trabalho brilhante de Joseph A. Schumpeter
(1982), denominado Teoria do Desenvolvimento Econômico, base de todos os demais autores
que escrevem sobre inovação (e não necessariamente referenciada), sendo absolutamente
tosco e superado relativamente à função de liderança do agente inovador. Ora, portanto,
Schumpeter deve ser utilizado quando o tema for inovação e, independentemente de seus
prestígio e importância, descartado quando se discutir liderança.
O aluno deve, por fim, perceber a intenção – ou posição (de onde?) – do orador quanto às
polêmicas pertinentes ao seu tema. Em ciências humanas, a polêmica é a regra, e raramente
38 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração
gestão organizacional. De fato, essa alegação é válida para o auditório formado por pessoas
da área de negócios.
O mundo dos negócios não costuma apresentar verdades demonstráveis, ainda que o senso
comum (às vezes travestido de ciência) confunda o princípio da racionalidade econômica
com a possibilidade do uso da racionalidade lógica. Raramente há evidências – tão somente
exemplos – de que estratégias competitivas sejam superiores às colaborativas, que condutas
agressivas sejam mais ou menos eficazes que as amigáveis; de fato, a teoria utiliza presunções
plausíveis na perspectiva do auditório.
Os argumentos podem ser classificados desde as categorias gerais até as detalhadas. Visando
ao propósito deste artigo, utilizaremos a classificação mais abrangente: (1) quase-lógicos;
(2) fundamentados na estrutura do real; e (3) fundadores da estrutura do real (FIORIN,
2015; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000).
Os argumentos quase-lógicos lembram a estrutura dos lógicos, mas suas conclusões não
são logicamente verdadeiras. Nas ciências humanas – e certamente na Administração de
Empresas –, o uso do argumento quase-lógico não ocorre por fragilidade do conhecimento,
mas pela natureza dos fenômenos em estudo; são domínios nos quais as premissas só podem
ser possibilidades, ou plausíveis. Já os argumentos fundamentados na estrutura da realidade
são baseados em relações que o contexto ou tão somente o auditório considera existente –
causalidade, sucessão, coexistência e hierarquia. Finalmente, os argumentos fundadores do
real organizam a realidade a partir da indução ou da analogia, produzindo generalidades ou
transposições. Estão nessa categoria os exemplos, os modelos e os antimodelos, a ilustração e
as semelhanças (FIORIN, 2015; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000). Muito
mais pode ser apresentado sobre a tipologia dos argumentos, tarefa, no entanto, que excede
os limites e objetivos deste artigo.
AUDITÓRIO E EXÓRDIO
A publicação do artigo no Journal of Marketing, editado pela American Marketing
Association, prestigiado fórum da área, sugere que o auditório é, em primeiro lugar, formado
pelos demais pesquisadores em Administração de Empresas e, em segundo, por executivos
de empresas.
Quanto à construção do acordo prévio entre orador e auditório (o exórdio), dá-se pela
linguagem (idioma inglês e estilo) e pela opção de não confrontar explicitamente as teorias e
os autores que poderiam divergir do orador (Porter, particularmente). O primeiro elemento
é a utilização do idioma inglês, indiscutivelmente o da ciência e dos negócios. O segundo é
o estilo despido de expressões técnicas que poderiam estar aquém da compreensão do leitor
mediano. Por fim, o terceiro é o uso recorrente de expressões carregadas de positividade no
mundo dos negócios, tais como competitividade, lucro e produtividade. Esses elementos
combinados criam identificação entre orador e auditório, facilitando a necessária confiança
recomendada pela retórica.
Ao trazer a estratégia competitiva (“escola” do posicionamento, segundo Mintzberg,
Ahlstrand e Lampel [2010]), principal teoria com a qual poderia rivalizar, o autor não
a confronta diretamente, não a desqualifica explicitamente, mas prefere citá-la de forma
cuidadosa, como se pode constatar no seguinte trecho: “A mudança feita ao se enfatizar
as capacidades [chaves] não significa que o posicionamento estratégico de Porter é menos
importante” (DAY, 1994, p. 49), aparentemente propondo-se somar – e não subtrair
– conhecimento à teoria da estratégia. Ao adular um potencial rival tão poderoso como
Porter, evita opor-se aos seus seguidores, certamente presentes no auditório, apresentando-
se, assim, como orador gentil e equilibrado a um auditório sensível a tanto.
Day investiu parte significativa do texto para alinhar, à sua conveniência, fatos e verdades
necessários para convencer o auditório da necessidade de desenvolver as capacidades-chave
como a estratégia que torna uma empresa voltada ao mercado e, por decorrência, em exitosa.
Quase metade do texto é utilizada como exórdio, composto de definições como orientação
para o mercado, Gestão da Qualidade Total, ativos, capacidades, competências essenciais,
capacidades de dentro para fora, capacidades de fora para dentro, organizações voltadas
ao mercado, entre outras. A primeira prescrição para o desenvolvimento da capacidade
vencedora – a qual leva a empresa a se voltar para o mercado –, central em sua tese, só é
apresentada na metade do artigo, na sexta página de um total de treze. Dado que há pouca
chance de discordância do auditório com as expressões gerais, o autor constrói um clima
adequado de aceitação às suas teses.
A combinação entre o lugar do autor (suas credenciais como pesquisador e consultor), o
prestígio do Journal of Marketing, a linguagem adequada e a aparente reverência ao principal
opositor potencial buscam – e conseguem, dado o impacto do artigo – a adesão do auditório
à tese e aos argumentos que virão.
42 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração
ARGUMENTOS
Os principais argumentos são referências à literatura científica, apresentações de definições
e exemplos. Nos termos da retórica, são argumentos elaborados a partir do raciocínio
preferível, do tipo fundadores do real. As referências bibliográficas principais são de autoria
de Hamel e de Prahalad, prestigiadas pelo auditório e escolhidas para confirmar a tese do
orador. No campo retórico, citações são argumentos de autoridade, o uso de autores cujos
conhecimento e relevância são inquestionáveis no juízo do auditório. São 65 referências
bibliográficas dos mais conceituados pensadores das principais escolas da estratégia,
trazendo autores como Jay Barney, Arie de Geus, Pankaj Ghemawat, Gary Hamel, C. K.
Prahalad, Robert B. Kaplan, Edith T. Penrose e Michael Porter (DAY, 1994). Um conjunto
expressivo de citações pode sugerir que a intenção dominante do autor é informar. Não é
assim, todavia: se o fosse, a revisão bibliográfica de Day deveria apresentar explicitamente
também os argumentos discordantes da sua tese.
Os exemplos são as experiências exitosas de empresas admiradas pelo porte e por seu
sucesso, como Walmart, Honda e Federal Express, entre outras (são vinte exemplos, ao
todo, ocupando oito das treze páginas do artigo). Não há detalhamento dos casos, haja
vista a utilização do respeito e a familiaridade do auditório com as grandes marcas para
emprestar credibilidade às propostas do orador: conforme Day (1994, p. 39), “[uma]
capacidade distintiva é um fator-chave de sucesso. Claramente, por exemplo, a competência
da Honda em fabricar motores eficientes, confiáveis e pequenos adiciona um grande valor
e torna seus carros mais competitivos versus a concorrência”, e complementa seu raciocínio
mencionando “[...] a habilidade da Motorola em continuamente melhorar a qualidade e
desenvolver produtos e a habilidade de integrar processos de transação da Federal Express”.
A competência da Honda, a habilidade da Motorola e a da Fedex não são sustentadas por
indicadores, sequer por fatos, sendo, portanto, apenas os juízos do autor apelando à boa
imagem das empresas.
Ora, exemplos são escolhidos à conveniência do orador, evitando deliberadamente apresentar
outros que destruiriam sua tese, isto é, as empresas cujas experiências com a GQT não
evitaram desastres: a usina nuclear de Three Mile Island em 1979, a Hubble Telescope,
o iPhone 4 da Apple e o Ford Pinto. O exemplo é tão somente uma experiência que não
permite generalizações, como bem previne a metodologia de pesquisa sobre estudo de casos.
Conforme a análise retórica, as definições podem ser apresentadas como verdades que
produzem outras (PERELMAND; OLBRECHTS-TYTECA, 2000), ou seja, encontram-
se em tal ordem que sugerem relações de causalidades aparentemente suficientes para
estabelecer que, se A é verdadeira ou plausível, então Y também o é. Assim, as definições
“ativos”, “capacidades” e “competências essenciais”, presunções utilizadas como argumentos,
sobre as quais não há discordância, cumprem a função de assegurar que é imprescindível
à organização “desenvolver capacidades para a formulação e execução de estratégia”, esta
última com o status de verdade. Na mesma linha, as frases “orientação para o mercado” e
“organizações voltadas para o mercado” preparam o terreno para a verdade: “as organizações
voltadas para o mercado têm desempenho superior” (DAY, 1994, p. 38).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 43
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa objetivou evidenciar a potencialidade do uso da retórica ao ensino em cursos
de graduação em Administração e, deste modo, para contemplar tal proposta, selecionou-se
um artigo clássico sobre estratégia a fim de se realizar uma análise retórica contundente.
Rumando, portanto, ao fechamento do presente estudo, traz-se uma constatação de Walter
Benjamin (2000), segundo o qual, na sociedade contemporânea, a obra de arte não fala por
si, devendo, portanto, ser explicada ao público. Das obras de pensadores como Aristóteles
e Descarte e – salvaguardada a devida diferença de proporção e importância – da nossa
experiência docente, também os textos não se revelam facilmente ao leitor: pelo contrário, a
compreensão exige método e disciplina (ou prática). Como pudemos demonstrar, a retórica
aristotélica não só ensina a organização da mensagem do orador, como também permite sua
desconstrução por meio da leitura crítica.
44 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração
O senso comum, no que lhe diz respeito, utiliza a expressão “crítica” como um ato de
desqualificar determinado conteúdo; a retórica, porém, utiliza-a como análise e avaliação
criteriosas. A capacidade de ler criticamente é um poderoso instrumento de aprendizagem
tanto do conteúdo do que se lê (ou simplesmente se vê, quando se retratando de uma
imagem) quanto do escrever e do pensar. Isto se dá, porque compreender a posição e a
intenção de um orador, assim como identificar argumentos e o tipo de um texto são um
exercício de desconstrução do pensamento que ensina a construir o próprio raciocínio,
acelerando a aquisição da experiência intelectual, a qual, sem o recurso à técnica retórica,
seria mais lenta.
A literatura no campo das ciências humanas é majoritariamente posicionada – quem quer
que “fale” o faz de uma determinada posição. Portanto, o autor tem uma intenção e utiliza
argumentos com vistas a persuadir seu auditório, não pelo desejo de embuste, mas por
ser da natureza dos fenômenos sobre os quais se debruça. Trata-se do mundo classificado
por Aristóteles (2012) como não demonstrável e, por isso mesmo, não deve ser abordado
nos termos do raciocínio necessário, mas, sim, do preferível. As técnicas de interpretação
de textos não ajudam o auditório de forma explícita a compreender a qualidade dos
argumentos e as intenções do autor, daí a superioridade da retórica para o estudo dos textos
de Administração de Empresas.
A leitura retórica é interpretação e, assim sendo, estas considerações podem – e devem –
ser cotejadas por exercício semelhante de outros autores. Feita a ressalva, avalia-se que a
principal contribuição do artigo de Day, isto é, sua proposta de estratégia cuja implementação
utiliza os instrumentos da GQT, não é exatamente original, pois os elementos fundamentais
da proposta – ou seja, a estratégia baseada em recursos e a GQT em si – não são de sua
autoria. A obra de Mintzberg, Ahlstrand e Lampel (2010), ao tratar da teoria da estratégia
baseada em recurso, cita Birger Wernerfelt nos anos 1980 como pioneiro do campo, seguido
por Prahalad e Hamel, na década de 1990, como os responsáveis pela popularização das
ideias a respeito das capacidades dinâmicas. Em síntese, nesta análise, compreende-se que
a contribuição de Day é combinar elementos conhecidos de maneira organizada para o
mundo do management. Adicionalmente, a despeito de ter escrito para mover a opinião do
auditório, também contribuiu para a discussão sobre temas relevantes no referido campo
administrativo.
De forma compatível com sua intenção predominante (que é obter a adesão do auditório
ao seu modelo de estratégia baseada em competências-chave) e a partir dos argumentos
utilizados, Day não avançou na compreensão ou na superação de eventuais lacunas da
teoria e da implementação da estratégia, sem ter invalidado quaisquer outras propostas
na área. Como, então, explicar a importância do texto publicado há mais de 25 anos? Pela
competência retórica do orador.
A competência retórica do artigo funda-se na articulação adequada do exórdio, em argumentos
e prescrições e na utilização de argumentos considerados adequados pelo auditório: os
exemplos, as citações de autores de prestígio e o uso das presunções (afirmações verossímeis
aos olhos do auditório) para sustentar as “verdades” que, por fim, levem à aceitação das
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 45
NOTAS
1 Submetido à RIGS em: nov. 2019. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Aquela se trata de uma compilação autoral de Fernando, Silva e Amorim (2017), portanto, as
obras mencionadas foram replicadas da seleção dos autores, não constando em nosso aporte
bibliográfico.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE JR., Manuel. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012.
ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
ARISTÓTELES. Organon. São Paulo: Edipro, 2016.
ARIDA, Pérsio. A história do pensamento econômico como teoria e retórica. In: REGO,
José M. Retórica na economia. São Paulo: Editora 34, 1996. p. 11-46.
BARNEY, Jay. Firm Resources and Sustained Competitive Advantage. Journal of
Management, v. 17, n. 1, p. 99-120, 1991.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In:
ADORNO T. et al. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Zouk, 2000. p. 221-254.
46 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração
Abstract The experience of the pandemic is not the same for everyone and there are
multiple ways of expressing each experience. Photographs can display the
world in particular ways, but they also speak of collective moments and
experiences. This photo essay presents some of the memories of my interim
doctoral period in the city of Lisbon/Portugal, during the pandemic caused
by COVID-19. They are captures of light in the shadow of lack, of concreted
life, of silent night, of (in)finite colors and flowers without an audience.
The records began on March 18 – the date the Portuguese government
declared a state of emergency – until July 17, 2020 – the day I returned to
Brazil. Beyond my gaze, these images make up a patchwork of moments
fragmented by voids.
INTRODUÇÃO
As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos. Precisam de nós para
que sejam desdobrados seus segredos. As fotografias são memórias, histórias
escritas nelas, sobre elas, de dentro delas, com elas (SAMAIN, 2012, p. 160).
Este ensaio fotográfico ilustra fragmentos das minhas memórias durante os quatro meses
pandêmicos que vivi em Lisboa. Mudei-me para a cidade em fevereiro de 2020 para a
realização do doutoramento intercalar no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
Meu primeiro contato foi com uma cidade viva, de ruelas ocupadas pelos mais diversos
cheiros, sons, cores, idiomas e nacionalidades.
Em 2019, a cidade de Lisboa foi eleita, pelo terceiro ano consecutivo, o Melhor Destino City
Break do Mundo nos World Travel Awards (WTA), ou seja, melhor destino para viagens
de curta duração. O WTA é um programa criado em 1993 para reconhecer, recompensar
e celebrar a excelência em todos os principais setores das indústrias de viagens, turismo e
hotelaria. A par da distinção recebida por Lisboa, Portugal foi eleita como Melhor Destino
Turístico do Mundo, algo ilustrado pelos números do turismo. Em 2019, o setor turístico do
país bateu um novo recorde ao registrar 27 milhões de pessoas (INE, 2020).
Para 2020, as previsões eram de um novo ano de recorde no turismo lisboeta, até o início da
pandemia da COVID-19. Em 02 de março, foi confirmado o primeiro caso em Portugal, na
cidade do Porto. Seguindo um movimento mundial, no dia 13 de março, o governo português
anunciou a “Declaração de Situação de Alerta” em todo o território nacional. As ruas de
Lisboa já apresentavam uma diminuição na circulação de turistas e um crescimento na
quantidade de pessoas usando máscaras. Na segunda-feira, dia 16 de março, foi registrada a
primeira morte em território português, um homem de 80 anos que se encontrava internado
no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Em 18 de março, o governo português declarou o
estado de emergência, que durou até 04 de maio, data de início do plano de desconfinamento
em etapas gradativas.
Assim como Prestes e Grisci (2017), considero a fotografia um valioso elemento visual que
pode ir além de um caráter meramente ilustrativo ou representativo. Este ensaio diz de um
tempo, mas também de sentimentos. São imagens fotográficas que “provocam os domínios
do tempo como captura de um instante preciso e sensível e como possibilidade de duração”
(SILVA; TITTONI; AXT, 2013, p. 204).
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O primeiro dia em que encarei o vazio. A Calçada de Carriche é uma das principais entradas e
saídas da Cidade de Lisboa. Data: 02/04/2020.
Qual a história deste urso? Na Estrada do Lumiar, há um longo muro de concreto, desgastado
pelo tempo, e, nele, um urso de pelúcia abandonado. Sempre que passava por ele, imaginava
suas possíveis histórias. Data: 15/04/2020.
.
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Silêncio na Rua do Ouro. Elevador de Santa Justa e Baixa Chiado. Data: 24/04/2020.
Não há vida no Castelo. Entrada e ruela do Castelo de São Jorge. Data: 24/04/2020
Noite calada. Rua de Santa Catarina e Estação de Metro Baixa-Chiado. Data: 03/06/2020.
NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em out. 2020.
REFERÊNCIAS
PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística (INE). Disponível em: <https://www.
ine.pt/>. Acesso em: 08 set. 2020.
PRESTES, V. A.; GRISCI, C. L. I. A Fotografia como Lugar de Memórias e Recurso
Disparador da Fala no Trabalho Imaterial de Modelo de Moda. RIGS – Revista
Interdisciplinar de Gestão Social, Salvador, v. 6, n. 3, p. 39-54, 2017.
WORLD TRAVEL AWARDS. Premiações 2019. Disponível em: <https://www.
worldtravelawards.com/>. Acesso em: 08 set. 2020.
SAMAIN, E. As peles da fotografia: fenômeno, memória/arquivo, desejo. Visualidades, v.
10, n. 1, p. 151-164, 2012.
SILVA, P. M.; TITTONI, J.; AXT, M. Experimentações fotográficas: o tempo como tema-
dispositivo na pesquisa com imagens. Informática na Educação: teoria & prática, v. 16, n.
2, p. 203-216, 2013.
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Resumo Com o pressuposto de que a vida pós-pandemia não será como antes, o
objetivo do artigo é evidenciar a contribuição do Congresso UFBA 2020
– Virtual, como suporte ao desenvolvimento do ensino na instituição
universitária, mediante o uso das Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC). O período atual experimentado pelas sociedades
resultante da pandemia em decorrência da COVID-19 revelou a necessidade
de se pensar em atividades acadêmicas remotas, via mediação tecnológica.
Nesta linha, o presente texto relata a experiência de participantes no referido
Congresso, o qual evidenciou à comunidade acadêmica a possibilidade de
integração virtual, com o uso da TDIC no ambiente educacional.
Abstract With the assumption that post-pandemic life will not be as it used to,
the aim of the article is to highlight the contribution of the UFBA 2020
Congress – Virtual, as support for the development of education in the
university, through the use of Digital Information and Communication
Technologies (TDIC). The current period experienced by societies as a
result of the COVID-19 pandemic revealed the need to think about remote
academic activities, through technological mediation. Thus, this text reports
the experience of participants in this Congress, which evidenced to the
academic community the possibility of virtual integration, with the use of
DicT within the educational environment.
INTRODUÇÃO
A pandemia em pleno Século XXI, decorrente da Declaração de Emergência em Saúde
Pública de Importância Internacional (ESPII) pela Organização Mundial da Saúde, em 30
de janeiro de 2020, provocada pela COVID-19 (novo coronavírus), impôs a suspensão das
atividades presenciais nos quatro cantos do mundo. Em específico quanto ao funcionamento
das atividades na área da educação, no estado da Bahia, Brasil, as aulas foram suspensas em
março de 2020, após a publicação da Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a
qual prevê medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional, acompanhada pelos Decretos Estaduais nº 19.529 e nº 19.532 de 16 e 17
de março de 2000, conforme evidenciado com a suspensão das atividades acadêmicas de
ensino de graduação da Universidade Federal da Bahia.
Neste contexto, a Medida Provisória nº 934, de 1º. de abril de 2020, complementa a
orientação concernente à suspensão das atividades acadêmicas quando estabelece normas
excepcionais sobre o ano letivo da Educação Básica e do ensino superior, decorrentes das
medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a
mencionada Lei Federal nº 13.979. A Portaria Federal nº 544, de 16 de junho de 2020,
orienta a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, até 31 de dezembro
de 2020, e o Parecer do Conselho Nacional da Educação (CNE), Conselho Pleno (CP) nº
5/2020, aprovado em 28 de abril de 2020, institui a reorganização do Calendário Escolar
e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento
da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da COVID-19, acompanhado do
Parecer CNE/CP nº 9/2020.
Considerando as normas aqui apresentadas, a comunidade acadêmica encontrou-se diante
dos desafios ocasionados na realidade mundial em decorrência da pandemia, a qual,
interferindo em todos os aspectos da vida social, para a educação, trouxe um componente
a mais: manter as atividades educacionais a partir de uma lógica inovadora para docentes,
técnicos universitários e discentes: o uso das Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC) no ensino.
Tal desafio impôs-se para a comunidade acadêmica de forma intempestiva e gerou diferentes
posicionamentos sobre os percursos e direcionamentos a serem adotados para atendimento
e manutenção das atividades de ensino, pesquisa e extensão, de forma a preservar o vínculo
com os estudantes. É fato que as instituições universitárias públicas foram convocadas a
discutir amplamente a temática concernente ao uso da mediação tecnológica no ambiente
educacional.
Seguindo a dinâmica da Universidade, a qual deve participar e contribuir para a solução
de problemas vivenciados pela sociedade, desde março de 2020, são realizados debates,
reflexões, com lastro em pesquisas nas áreas de gestão da educação, formação docente ou
educação a distância, no intuito de propor ações que subsidiem os Conselhos Superiores
da Instituição nos diferentes processos de tomada de decisão, com ênfase em possibilitar
a conectividade da comunidade universitária (acesso à internet aliado à disponibilidade de
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto de pandemia tornou emergentes indagações que estavam reprimidas, a exemplo
do uso de recursos tecnológicos como mediação no ensino. Para Bates (2016), a mediação
tecnológica na educação auxilia a prática discente, estimulando a pesquisa, análise e
aplicação da informação; permite o diálogo entre sujeito e conhecimento, professor e aluno,
estudantes e colegas. Entretanto, requer do docente o processo de seleção e apropriação de
tecnologias, considerando o projeto do curso e ementa do componente curricular.
É fato que o uso da mediação tecnológica no processo ensino e aprendizagem decorre das
transformações na sociedade causadas pelo uso cotidiano das TDIC. Assim, ela solicita da
universidade adoção de objetos de aprendizagem que estimulem e propiciem aos alunos
experiências práticas em parceria com a discussão teórica. Trata-se de intervenção de caráter
instrucional que exige uma postura ativa do aluno e uma ação reflexiva do professor em
relação à escolha do objeto que melhor se adeque ao momento e perfil da turma.
Em atenção ao questionamento deste estudo, o desenvolvimento das atividades acadêmicas
na UFBA, após a declaração do estado de pandemia em 2020, iniciativas a exemplo do
Congresso UFBA 2020 – Virtual, em maio de 2020, proporciona a discussão sobre o uso da
TDIC no ambiente educacional, possibilitando o processo ensino/aprendizagem, por meio
da integração professor e estudante, estudante e estudante, técnico, docente e estudante, em
um ambiente virtual. Portanto, é preciso reconhecer essa estratégia da UFBA, como uma
forma de incentivar sua comunidade a participar de atividades acadêmicas de forma remota,
68 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual
NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
REFERÊNCIAS
BATES, A. W. Tony. Educar na Era Digital: design, ensino e aprendizagem. São Paulo:
Artesanato Educacional, 2017.
CARVALHO, Alecir Francisco; SILVA, Cleder Tadeu Antão da; MILL, Daniel. Mediação
tecnológica. In: MILL (Org.). Dicionário Crítico de educação e tecnologias e de educação
a distância. Campinas, SP: Papirus, 2018.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5.
ed. Curitiba: Positivo, 2010.
UFBA. Congresso Virtual UFBA – 2020. Disponível em: https://congresso2020.ufba.br/.
Acesso em: 28 jul. 2020.
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Resumo O novo coronavírus trouxe uma série de desafios e dilemas para diferentes
campos científicos, os quais não mediram esforços nas contribuições para o
enfrentamento à pandemia de COVID-19. No campo das políticas públicas
e, em especial, no campo de estudos das políticas públicas, esses desafios
retomaram a inclinação à racionalidade instrumental (de tradição positivista)
e à desassociação entre fato e valor; agravaram o desamparo público vivido;
e ressaltaram a disputa de narrativas no Brasil, gerando um esvaziamento
discursivo em torno da noção de ‘gestão’ no combate à pandemia. Neste
artigo, a despolitização da gestão de políticas públicas é problematizada a
partir desses três aspectos, abordando os fatores que causaram a subtração da
gestão, e discutindo como a Gestão Social pode contribuir para retomar um
projeto de desenvolvimento democrático e participativo.
Com isto, reforça-se, cada vez mais, o alijamento da política (e também das políticas
públicas) de nossas vidas cotidianas, como se o ‘político’ fosse nocivo à sociedade ou fosse,
necessariamente, o caminho perverso da apropriação privada da coisa pública, num contraste
evidente com uma ideia mais ampla de democracia (DEWEY, 1998 [1937]). Neste contexto
de crise pandêmica, este movimento de subtração da importância e da dimensão política da
gestão ganha contornos ainda mais complexos, sobretudo no que diz respeito aos processos
de deliberação: em lugar de serem publicamente construídos, são conduzidos tecnicamente,
como se não houvesse questões valorativas envolvidas nesta atividade. Este esvaziamento
obstrui o diálogo e potencializa os sentimentos de desproteção, de medo e de abandono,
contribuindo para algo que, metaforicamente, interpretamos como um “desamparo público”.
Diante disso, este artigo objetiva problematizar esse movimento de despolitização da
gestão de políticas públicas, potencializado pelo momento pandêmico, e jogar luz sobre
a necessidade de reinvenção da gestão. Para isso, assumimos a gestão como um espaço
de tensão valorativa e argumentativa entre as dimensões política e técnica dos fluxos
multiatoriais em políticas públicas, a partir dos estudos críticos em políticas públicas
(MAJONE, 1989; FISCHER; FORESTER, 1993; FISCHER, 2016). Do ponto de vista
do método, as ideias aqui presentes são frutos de uma pesquisa implicada (BOULLOSA,
2019), de natureza exploratória, predominantemente qualitativa, na qual dados e evidências
quantitativas são apresentados como pertencentes a estruturas narrativas e valorativas e seus
usos são compreendidos como instrumentos modificadores da consciência e da sociedade
como um todo (BARRETO, 1994).
Faremos isso em três momentos. Começamos problematizando a revalorização de uma
gestão científica das políticas públicas, pautada exclusivamente na racionalidade linear-
sequencial no contexto da pandemia de COVID-19. Em um segundo momento, discutimos
o crescente afeto de “desamparo público” – aqui proposto como metáfora interpretativa do
dramático acúmulo de crises na história recente do Brasil, as quais apenas se aprofundam
com a chegada da pandemia de COVID-19 (ABBRUCCIO et al., 2020; BRONZO, 2020;
SPOSATI, 2020; TENÓRIO, 2020). Por fim, em um terceiro momento, adicionamos à
discussão uma nova camada, relativa às disputas narrativas e aos perigos da despolitização da
gestão de políticas públicas, sobretudo em um momento como este. Por fim, argumentamos
que a confluência dessas três situações problemáticas engendra a des-valorização progressiva
da gestão de políticas públicas.
Nesse sentido, parece-nos particularmente relevante a retomada dos Critical Policy Studies, os
quais defendem a não normalização dos processos de políticas públicas, a começar pelos seus
próprios conceitos. Em relação à ciência, Fischer (2016, p. 170) sugere que um dos caminhos
para o cientista pós-positivista é substituir a noção de ‘prova científica’, de ‘evidência’ ou
mesmo de ‘verificação’ pela noção de interpretação, uma vez que “as explicações científicas
são produzidas por observadores com diferentes quadros ideacionais, tipos de formação,
experiência de investigação, capacidades perceptivas, etc.”. Para os estudos críticos, portanto,
as políticas públicas são sempre contextualmente mediadas por significados simbólicos
(FISCHER et al., 2018). Ou, mais além, políticas públicas são fluxos interpretativos ativados
por uma multiatorialidade que governa problemas de pública relevância (BOULLOSA,
2019), e que, por abarcarem uma diversidade de experiências públicas sensíveis e simbólicas,
têm o potencial de qualificar e de ampliar o campo das políticas públicas (PERES, 2020).
A desativação progressiva de tal multiatorialidade – que vai deixando de se reconhecer
nos processos públicos, seja em função da exaltação da dimensão privada da experiência,
em detrimento da pública; da personificação de mitos em detrimento da ação coletiva; da
destituição da dimensão pública na felicidade privada, inclusive em termos de realização
valorativa pessoal – é um dos principais caminhos que conduzem ao que chamamos de
‘desamparo público’ (BOULLOSA et al., 2020).
como um afeto de um corpo político, coletivo, propondo uma teoria dos afetos, para a
compreensão dos vínculos sociopolíticos.
Assim, trazendo a discussão de desamparo para o campo de estudos em políticas públicas,
compreendemos o “desamparo público” (BOULLOSA et al., 2020) como um afeto
sociopolítico (SAFATLE, 2015), socialmente realizado (DEWEY, 1938), carregado de
significados de negação axiológica aparente (RICOEUR, 1986), os quais se reafirmam
e se remodelam continuamente (RICOEURS, 1955). A desativação progressiva de uma
multiatorialidade (BOULLOSA, 2019) é responsável, em grande medida, por bloquear
a possibilidade de que experiências públicas plurais possam emergir, colaborando,
potencialmente, para a construção de um tipo de gestão dialógica, horizontal e o mais coletiva
possível (PERES, 2020). Não se constituem como experiências públicas as experiências em
que uma multiatorialidade não se reconhece ou se veja sufocada pela exaltação da dimensão
da experiência privada, pela dissolução dos sujeitos, pela personificação de mitos (em
detrimento da valorização da ação coletiva) ou pela destituição da dimensão pública dos
afetos privados.
termos temporais, territoriais, políticos, culturais, narrativos etc. E, nesse sentido, para além
de equivocadas e visivelmente fragmentadas, as narrativas construídas por autoridades, por
agentes públicos e pela mídia ganham especial relevância, sobretudo, porque evidenciam
a perda progressiva de espaço e de importância da gestão nas discussões de estratégias de
enfrentamento à pandemia.
Ademais, os argumentos que defendem a baixa gravidade do vírus e que a situação seja
encarada com ‘normalidade’ são incompatíveis com as histórias das 143.0624 vítimas
de COVID-19 no Brasil (Brasil.io, 2020): histórias plurais, tendo em comum o que
chamamos de ‘desamparo público’. Tal desamparo possui, porém, múltiplas dimensões e
está diretamente relacionado à falta de articulação que, do ponto de vista da governança,
se torna especialmente preocupante, sobretudo em um país federativo, descentralizado e de
dimensões continentais como o nosso. Se, por um lado, a construção narrativa hegemônica
imputa grandes responsabilidades a prefeitos e municípios, por outro lado, não leva em
consideração as capacidades reais de resposta dos municípios diante de tantas crises, agora
agravadas pela crise sanitária.
A redução da gestão de políticas públicas a uma atividade meramente técnica, as tentativas
contínuas de despolitizá-la ou de reduzir sua complexidade e a desativação progressiva do
que entendemos como uma multiatorialidade (BOULLOSA, 2013; 2019) apresentam-se
como grandes obstáculos ao processo de construção cooperada e coordenada de capacidades
que garantam respostas ágeis e eficientes no combate à pandemia nas três esferas federativas
e, especialmente, na escala municipal.
Nesse sentido, a pandemia de COVID-19 não só escancarou a baixa capacidade de
articulação/coordenação entre politics e policy, como, também, entre as diferentes esferas
governamentais e entre Sociedade, Estado e Mercado. Dentre outras coisas, porém, a
pandemia nos chama atenção para o fato de que a gestão importa e de que a ‘capacidade de
gestão’ é mais do que a soma das capacidades administrativa, burocrática, de prestação de
serviço, financeira etc.
Com a pandemia, ficou ainda mais evidente a importância da construção de espaços
de diálogo, de debate, de conversa e do fomento das capacidades de coordenação, de
comunicação e de persuasão. Ganha maior relevância, também, a explicitação de valores, a
coerência política, o dinamismo, a qualidade e a horizontalidade das relações, bem como o
compartilhamento de responsabilidades.
Em outras palavras, diante das crises que se acumulam e que são agravadas pela pandemia
de COVID-19, parece-nos fundamental (e urgente) uma ‘virada à gestão social’ que passa
pela recuperação de seus valores e princípios, amplamente discutidos há pelo menos três
décadas (TENÓRIO, 1998; BOULLOSA; SCHOMMER, 2008; FISCHER, 2012).
Defesa semelhante já foi feita, também, pelo Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom
Ghebreyesus, ainda em 2018, quando apontou o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro
como modelo para o resto do mundo, não apenas em função dos princípios de gratuidade e
universalidade, mas, sobretudo, em função do princípio da participação, o qual engaja cidadãos
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 79
Todos os esforços da gestão (seja para o enfrentamento das crises ou para a superação
do desamparo público) esbarram, porém, em uma dimensão mais profunda da gestão: a
dimensão narrativa. Nesse sentido, é possível argumentar que os esforços de governos e
prefeituras para o controle da pandemia foram minimizados pela falta de coordenação com
o governo federal e pela construção de uma narrativa que se consolidou como hegemônica e
que desfavoreceu o diálogo e a construção de estratégias articuladas, integradas e coordenadas.
A escolha por uma construção discursiva desconectada dos propósitos republicanos e
federativos brasileiros e desconectada dos princípios da gestão social fragiliza a democracia
e reduz as chances de construção de espaços de pactuação que permitam a coordenação,
a cooperação, o codesenho e a cogestão entre os atores engajados em torno de problemas
públicos. Somado a isso, a perspectiva do desamparo reproduz-se na insegurança acerca da
(des)continuidade de parcerias, contratos e convênios estabelecidos entre os diferentes entes
federados.
Os problemas públicos – complexos e agravados pelo contexto pandêmico – não se
circunscrevem às divisões políticas que delimitam as fronteiras de estados e municípios. São
territorializados e demandam uma atuação conjunta multiatorial. A falta de cooperação,
essencial ao modelo federativo brasileiro (SILVEIRA, 2007), e a falta de capacidade de
escuta ativa da sociedade cobram a reinvenção da gestão, a retomada dos princípios da gestão
social e de um caminho de desenvolvimento ancorado nas lutas sociais e nas necessidades
das comunidades e territórios mais afetados – em um processo capaz de gerar uma força de
oposição ao movimento de despolitização da gestão de políticas públicas.
ALGUMA CONCLUSÃO
Neste artigo, buscamos problematizar a diminuição da importância da gestão de políticas
públicas no contexto pandêmico. E o fizemos a partir da identificação de três causas
principais. A primeira diz respeito à revalorização de uma tradição positivista na produção
de conhecimento, a qual subtrai da gestão sua dimensão política, reduzindo-a a ‘coisa
técnica’, própria de especialistas e de uma elite burocrática. Tal subtração, a qual busca
atribuir neutralidade à gestão, vem sendo potencializada e autorizada por um chamamento
da ciência global à produção de evidências capazes de embasar o enfrentamento da pandemia
e da “infodemia”, como a OMS (WHO, 2020) caracterizou a epidemia de desinformação.
A segunda refere-se a um contexto de crescente desamparo público, também acirrado
pela pandemia. Um acirramento que se evidencia quando assumimos a centralidade de
sua dimensão narrativa . O sentimento crescente de desamparo transborda o medo,
o sofrimento e a sensação de abandono privado e assume uma dimensão pública,
influenciando significativamente nos arranjos governativos e na (falta de) coordenação para
o enfrentamento da pandemia.
A terceira, por fim, diz respeito à explicitação das disputas narrativas acerca da pandemia, o
que só se torna visível se assumimos que a gestão de políticas públicas é conformada, também,
por palavras, por discursos, por fluxos multiatoriais, multidirecionais e multissensoriais que
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NOTAS
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Dentre estes esforços, destacamos desde a abertura de novas linhas de apoio em muitas univer-
sidades, centros de pesquisa, escolas de governo e agências de fomento, não obstante a precari-
edade de recursos econômicos, desde março de 2020, até, na ponta da pirâmide da divulgação
científica, muitas revistas, de diferentes áreas, que lançaram números especiais com chamadas
abertas ou para trabalhos convidados.
3 Ao longo do mês de março, enquanto os pronunciamentos presidenciais se destinavam a ate-
nuar a situação que se instaurava, houve o esforço dos 27 governadores das UFs brasileiras em
decretar medidas de distanciamento social como forma de frear a transmissão e dar tempo do
Sistema de Saúde se organizar. Com o tempo, porém, observamos que vários governadores
começaram, precipitadamente, a afrouxar ou a voltar atrás em suas medidas.
4 Número de vítimas em 30 de setembro de 2020.
REFERÊNCIAS
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fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/81879>. Acesso em: 30 set. 2020.
82 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico
INTRODUÇÃO
Os conceitos de Administração Política e Geografia Política permitem analisar, de
forma interdisciplinar, os dilemas, desafios e perspectivas da gestão municipal para o
enfrentamento da Pandemia da COVID-19. Considerar o Espaço Geográfico como objeto
teórico e empírico desse ensaio reflete o anseio de ampliar as possibilidades interpretativas,
contextuais e práticas que sustentam os estudos desenvolvidos no Programa de Mestrado
em Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA com ênfase na área/linha de pesquisa
Administração Política, Desenvolvimento e Territorialidades. A associação desses dois
campos de conhecimento – Administração Política e Geografia Política – permite ampliar
a compreensão das relações sociais de produção que se materializam no território como
espaço ocupado e dominado por interesses contraditórios.
Se as preocupações centrais da Geografia Política estão associadas à construção de bases
conceituais que permitam compreender a ideia de ‘Território-Nação’ (RATZEL, 1988), a
Administração Política integra novos e relevantes elementos a esse debate, ao considerar
o Espaço Geográfico como resultado e resultante de uma dada organização espacial que
representa também um fenômeno administrativo. Conforme ressaltado por Silva (2019),
ao tomar a organização territorial como substantivo concreto, é possível considerar que
as dinâmicas administrativas que ocorrem no âmbito de ambiente refletem aspectos
sociológicos e políticos abstratos. O que implica considerar que interpretar a Administração
Política do Espaço Geográfico possibilita ao campo de estudo da Administração superar
os limites instrumentais que têm sido impostos à Administração Científica. Esse esforço
inovador permite, pois, avançar para além da análise das dinâmicas micro-organizacionais,
representada pelas unidades produtivas, para interpretar fenômenos complexos que envolvem
política econômica, gestão do desenvolvimento e relações internacionais resultantes desse
processo político administrativo territorializado.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 89
Nesse sentido, o objetivo central deste ensaio é identificar as formas de gestão das relações
socioespaciais de produção no atual cenário de crise sanitária e seus impactos nas relações
socioeconômicas atuais e futuras considerando os diálogos possíveis entre os pensamentos
de Milton Santos e Reginaldo Santos, dois baianos que inovaram os estudos da Geografia
e da Administração. Essa conexão justifica-se pelo reconhecimento defendido por Silva
(2020) na sua pesquisa doutoral de haver uma justaposição dos dois corpos teóricos que
classifica como Administração Política do Espaço Geográfico: A Organização Espacial
como um Fenômeno de Gestão. Tomando como inspiração a tese destacada, pretende-se
apontar alguns elementos teóricos e empíricos que inspirem a definição de uma agenda
preliminar de pesquisa sobre a evolução temporal e topológica da Organização Espacial
como um evento que reflete aspectos relevantes da Gestão com ênfase nos desafios impostos
pela Pandemia.
A Administração Política representa um movimento em direção à consolidação de um novo
campo do conhecimento que questiona, integra e complementa os conceitos fundantes da
ortodoxia da Administração Científica. Ao ampliar o escopo interpretativo dos fenômenos
administrativos, esse novo campo de estudo aproxima-se dos estudos críticos sobre
desenvolvimento econômico ( JUSTEN et al., 2017; PAÇO CUNHA, 2019). Esse novo
campo de conhecimento, ao se apresentar como uma novidade no cenário multifacetado
da Administração Científica e dos estudos organizacionais, insurge-se contra o exacerbado
funcionalismo presente na estrutura interpretativa dos estudos ortodoxos da Administração
e se propõe a contribuir para dar novas formas de compreensão e expressão da Administração
como fenômeno social e organizacional complexo. Nascida das “inquietações intelectuais”
de um grupo de pensadores vinculados à Escola de Administração da Universidade Federal
da Bahia, esse novo campo advoga que as relações sociais de produção são resultantes e
resultadas de uma dada intencionalidade gestionária. O que significa que sua intepretação
exige avançar os aspectos instrumentais próprios dos estudos da Administração Clássica
(SANTOS, R., 2009; 2010; SANTOS, R.; RIBEIRO, E., 1993).
Ao considerar a Administração como fenômeno ampliado, vinculado aos diversos objetos
que integram as Teoria Sociais e Teorias Econômicas, temas estranhos à teia conceitual da
Administração Científica – como política macroeconômica, finanças públicas, entre outros
–, devem integrar os estudos acadêmicos a serem desenvolvidos pelos administradores.
Nesse sentido, a Administração Política pode ser compreendida como um salto evolutivo
e/ou complementar da Administração Científica e dos estudos organizacionais visto que
propicia uma expansão necessária de suas possibilidades, ao romper e superar o funcionalismo
metodológico da administração organizacional e resgatar as preocupações da emancipação
humana como ponto fulcral das análises dos fenômenos administrativos.
Ao refutar o criticismo dominante no campo de estudos administrativos, esse novo campo
de conhecimento abre um leque de possibilidades de diálogos com os mais diversos
domínios do conhecimento social. Conforme destacado por Justen et al. (2017), no campo
da economia, a Administração Política consegue travar debates que integram desde
a Economia Política, de matriz liberal, keynesiana, até o pensamento crítico das escolas
marxistas. Além de abrir possibilidades de diálogos com diversos campos do conhecimento
90 Administração Política do Espaço Geográfico
complementares às ciências sociais aplicadas, com ênfase nas ciências sociais e humanas,
também amplia conexões com as ciências exatas, as ciências da saúde, e tem dialogado com
o campo da literatura e das artes, de modo geral.
Conforme apontado por Santos (2004), Santos, Ribeiro e Chagas (2009) e Vidal (2009),
a ampliação do campo de estudo da Administração Política só tem sido possível pelo
reconhecimento de que não é a ‘Organização’, enquanto substantivo concreto, mas,
sim, a ‘Gestão’ o verdadeiro objeto científico desse campo de conhecimento. Sobre esse
aspecto, Silva traz considerações importantes ao ressaltar que, embora esse debate pareça
simples, revela implicações determinantes para consolidar a Administração como campo
de conhecimento autônomo, ainda que assuma seu caráter de campo com forte viés inter
e multidisciplinar. Afirma o autor que, ao deslocar o termo ‘Organização’ do seu sentido
concreto e assentar bases sobre seu significado como substantivo abstrato, a Administração
Política traz uma relevante inovação científica por dar centralidade não mais à entidade
produtiva ou social, enquanto personalidade independente, mas o foco central da análise
dos ‘atos e fatos administrativos’ passa a ser os formatos pelos quais a conduta voltada para
o alcance de determinados objetivos será coordenada, isto é, será administrada.
O que implica considerar que o conceito de ‘Organização’ para a Administração Política
é utilizado não em sua acepção de substantivo concreto – definido como uma locução
que expressa uma ideia autônoma, não precisando de outrem para existir –, mas em sua
concepção de substantivo abstrato, ou seja, a sua existência é mediada por uma causa
anterior ou movimento exterior (refletido na concepção de gestão). Vidal (2009) reforça
essa intepretação ao destacar que a ‘Organização’ não é algo que tem forma e existência
própria, não é uma entidade que se torna objeto de estudo e pesquisa, tal como ocorre na
Administração Científica e nos Estudos Organizacionais. Ao contrário dessa interpretação,
o autor defende que a locução ‘Organização’ deve ser recepcionada como um conjunto
procedimental ou um processo pelo qual o ‘ato de produzir’ é estruturado, isto é, cobra a
ação de terceiros para ter existência.
Ao admitir que é a ‘Gestão’ garante o sentido de ser uma disciplina social, a Administração
Política considera que a Organização, enquanto fenômeno concreto, representa tão
somente um dos lugares privilegiados de sua realização (SANTOS, 2004). Ao ampliar
o escopo de ação e representação da Administração Científica para além do interior das
unidades produtivas para ocupar os mais diversos segmentos e eventos sociais nos quais
haja a ocorrência de ações de planejamento, organização, comando, coordenação e controle,
a Administração Política ultrapassa a abordagem gerencial e alcança a real essência dos
fenômenos administrativos que estão manifestos nos aspectos políticos que regem as
relações sociais de produção, consumo e distribuição. Como afirma Santos (2004), o “como
fazer” (isto é, o ‘como administrar’) é alçado à condição de fenômeno social que permeia
todo o comportamento coletivo e pode, assim, ser abordado pelos estudos administrativos,
ampliando, dessa forma, os espaços de interlocução científica da ciência da administração.
A consequência política decorrente da mudança da perspectiva limitada da Administração
Científica, presa ao arcabouço da economia neoclássica e às bases da ciência positivista,
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 91
interesses e construções do seu tempo histórico, porém, são também pontuadas por
elementos do passado e, a depender do grau de inovação absorvida, é possível determinar o
nível de modernidade presente.
Metodologicamente, a proposição deste ensaio tem por mote propulsor estabelecer
comparações e conexões entre as teses defendidas por Santos (2004) e Santos, Ribeiro e
Chagas (2009), as quais sustentam o campo da Administração Política, com as contribuições
feitas por Milton Santos (2008) sobre a concepção de Espaço, abrigada no debate sobre
o campo da Geografia Política. A problemática interdisciplinar que fundamenta as
reflexões teóricas aqui levantadas remete à necessidade de se criar parâmetros analíticos e
procedimentais que permitam entender como o Espaço, o território, reflete um dado padrão
de gestão das relações sociais de produção, consumo e distribuição e, complementarmente,
como essas ações administrativas espelham-se nas expressões geográficas.
O objetivo deste texto é fornecer instrumentos teóricos e metodológicos interdisciplinares
a partir das conexões entre os campos da Administração Política e da Geografia Política, de
modo a possibilitar a ampliação do campo interpretativo da gestão dos fenômenos espaciais,
recepcionando-os como resultado da conduta produtiva dos agrupamentos sociais. De posse
desse marco analítico, espera-se identificar a dinâmica que tem orientado a Administração
Política do Espaço Geográfico brasileiro com vistas a identificar cenários e perspectivas para
o enfrentamento da Pandemia da COVID-19 com ênfase na capacidade real e potencial da
gestão pública e gestão social.
desafios que precisam ser enfrentados para alterar o padrão da Administração Política do
Espaço Geográfico, em resposta às ameaças trazidas pelo atual contexto pandêmico.
Quanto a esse aspecto, Aaltola (2012) adverte sobre o predomínio de estudos e abordagens
que tendem a resvalar ou encobrir as dimensões sociopolíticas que interferem, direta ou
indiretamente, nas ações de combate aos surtos infecciosos. Nesse sentido, considera-se
que uma das contribuições desse ensaio é apontar as derivações políticas do combate às
endemias e pandemias, expressas nos aspectos subjetivos que envolvem essa agenda. A
importância dessas extensões evidencia-se, justamente, porque afetam distintos aspectos
da vida humana com especial destaque para os padrões de gestão das relações sociais de
produção, base central dos conceitos de Administração Política e Geografia Política.
Movidos pelo esforço acadêmico de avançar nas conexões possíveis entre esses dois campos
de conhecimento, com vistas a contribuir para orientar o poder público e a sociedade no
combate aos surtos infecciosos (epidêmicos e pandêmicos), destacam-se duas dimensões
que têm sido apontadas por diversos autores sobre o tema. Conforme Ghebreyesus (2018),
deve-se destacar os seguintes: (i) a construção e manutenção de uma resiliente estrutura de
prevenção, detecção e resposta a surtos infecciosos, dentro dos paradigmas do Regulamento
Sanitário Internacional (RSI, 2005), em nível global, nacional e regional; e (ii) a garantia
de rápido acesso aos serviços essenciais de Saúde, de qualidade, para as populações afetadas
por emergências infecciosas. Segundo o autor, para cada fase de um surto, é recomendado
um tipo de resposta e projeto de intervenção. Sobre essa questão, a OMS destaca que a
introdução do patógeno exige ações antecipadas e de rápida detecção, ressaltando, ainda, que
a agenda de contenção responde como meio de combate à transmissão localizada, enquanto
as medidas de controle e de mitigação da doença surgem como alternativas à disseminação
ampliada do vírus (WHO, 2018).
Sobre essas exterioridades, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária adverte que, mesmo
quando a doença não representa um risco efetivo, as providências das políticas públicas de
controle não devem ser suspensas ou subestimadas. Tal determinação pode ser interpretada
como a aceitação de que a contenção de surtos endêmicos e pandêmicos deve ser considerada
como uma questão administrativa e não apenas um problema sanitário. Ao admitir a
necessidade de “[...] coleta, compilação e a análise contínua e sistemática de dados para
fins de [controle da] saúde pública e a disseminação oportuna de informações para fins de
avaliação e resposta em saúde pública”, a ANVISA reforça o argumento central sustentado
neste ensaio (ANVISA, 2009, p. 18).
Rosenberg (1989) corrobora essa afirmação ao defender que as determinações político-
administrativas se constituem como verdadeiros veredictos para o efetivo combate às
epidemias e pandemias, realçando, desse modo, a imperiosidade de assunção de um padrão
de gestão capaz de conter os efeitos devastadores dos surtos sobre as vidas humanas.
Acrescenta, ainda, que somente o uso de instrumentos racionais de gestão e gerência
permitirá que as sociedades se preparem, adequadamente, para dar conta dos impactos
produzidos pelo elevado nível de aleatoriedade em que ocorrem os surtos.
98 Administração Política do Espaço Geográfico
Aaltola (2012) confirma essa interpretação ao ressaltar que doenças e surtos (endêmicos
e pandêmicos) manifestam-se como processos físico-fisiológicos e fenômenos sociais
cujas formas de percepção e entendimento são coletivamente construídas. O que implica
considerar que os riscos de adoecimento individual e coletivo, por constituírem reflexos de
representações sociais eivadas de intencionalidades e interesses e resultantes de concertação
política, manifestam sua face administrativa, a qual precisa ser interpretada de forma crítica
e espacialmente localizada.
NOTA
1 Submetido à RIGS em: dez. 2020. Aceito para publicação em: 2020.
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Abstract The need to prepare for future events has led cities around the world –
including Salvador, Bahia – to develop and implement their resilience
strategies; long-term planning in search of development that is, in fact,
sustainable. However, in 2020, the planet was surprised by the COVID-19
Pandemic. Thus, the present work aims to analyze how Salvador developed
its strategy to face extreme health events and how it dealt with the situation
in practice when the emergency situation arose. The research considered a
bibliographic review focused on resilience, pandemics and territories, as well
as the analysis of the “Plano Salvador Resiliente” document and the website
“Salvador contra o Coronavírus”. It was possible to verify that, despite the
108 Estratégia de Resiliência e Território
fact that the city had not expressly prepared itself in relation to epidemics
and pandemics in its long-term strategies, when the emergence of a health
emergency arose, it was able to incorporate the principles defined for an
emergency action that considered the social vulnerabilities identified in the
territory.
INTRODUÇÃO
Uma das vertentes de busca do desenvolvimento sustentável caracteriza-se pela resiliência
urbana, a qual consiste na capacidade da cidade de resistir, se adaptar e se recuperar de
desastres ou impactos que atinjam o ambiente e a população (UNISDR, 2012). Para tanto,
o planejamento urbano constitui-se como peça fundamental. Ações locais são necessárias
ao alcance e fortalecimento da resiliência nas esferas sociais, prezando o bem-estar humano,
e ambiental (DURÃES et al., 2019). A resiliência urbana também consiste em garantir
acesso à saúde e à alimentação, um grande desafio, principalmente para os países em
desenvolvimento.
Com o surgimento da pandemia causada pelo vírus COVID-19, também conhecido por
Coronavírus, e seus consequentes impactos na economia e qualidade de vida, diversas
necessidades urbanas e barreiras para supri-las ganharam destaque nos mais diversos
territórios. O cenário enfrentado em todo o mundo confirmou a necessidade de planejar
ações de resiliência locais que foquem no controle e mitigação de epidemias e pandemias
(GLOBAL RESILIENT CITIES NETWORK, 2020).
Com o objetivo de reduzir as vulnerabilidades e fortalecer a resiliência das cidades, diversos
programas de desenvolvimento urbano têm sido criados e executados nos últimos anos. Estes
programas promovem cenários multidisciplinares de trocas de conhecimento, estratégias e
redes de apoio entre as cidades participantes, sendo alguns dos principais: Programa 100
Cidades Resilientes – R100, C40, ICLEI (Local Governments for Sustainability) e The
Global Covenant of Mayors for Climate & Energy (ARUP, 2015). A cidade de Salvador,
Bahia, é membro integrante de todas elas, juntamente com Rio de Janeiro, a primeira a
entregar sua proposta de estratégia de resiliência, e Porto Alegre – três cidades do Brasil que
despontaram como pioneiras no planejamento urbano sustentável e resiliente, com o apoio
do programa R100 (ROCKEFELLER FOUNDATION, 2018).
Esta rede de cidades já vinha procurando formas de ampliar seus resultados enquanto espaço
de articulação e de troca de conhecimentos e experiências. A pandemia do COVID-19,
no entanto, fez com que novas estratégias tivessem que ser desenvolvidas pela Rockefeller
Foundation, conforme explicado posteriormente. Afinal, ao construir e implementar suas
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 109
Folha de S. Paulo de julho de 2020. Quando todos os bairros da cidade são analisados,
conclui-se que o número de casos cresceu 420% no período de 22 de maio a 01 de julho.
Entretanto, quando se analisa somente os bairros mais pobres da cidade, o número chega a ser
quase três vezes maior, atingindo 1.200%, no mesmo período (FOLHA DE SÃO PAULO,
2020). Entre os fatores que podem contribuir para isso, podem ser listados: a distância entre
o local de moradia e o emprego, localizados, muitas vezes, longe no “centro social” ou “centro
tradicional” da cidade; a dependência do transporte coletivo para deslocamento; carência
de bens e serviços básicos, como de saneamento e saúde; a densidade populacional, muito
comum nos bairros periféricos; entre outros (CARVALHO; PEREIRA, 2015). Sendo
assim, “[...] por mais que se fale em um vírus democrático que atinge todas as classes sociais,
são os mais pobres que estão sujeitos as dificuldades habitacionais, de saneamento básico,
mobilidade urbana, sobretudo dos sistemas de saúde público e de segurança, entre outras
questões” (QUINZANI, 2020, p. 45).
Não obstante o presente estudo focar nas ações governamentais de planejamento e de
atuação emergencial frente à pandemia, vale destacar a existência de ações populares de
Organizações Não Governamentais (ONGs), Associações de Moradores e mesmo de civis,
tanto com distribuições de equipamento de proteção individual e higienização de espaços
públicos quanto com instalações de pias para as ações de higiene pessoal (AGÊNCIAS DE
NOTÍCIAS DA FAVELA, 2020a;b;c).
Com base nos dados divulgados pela cidade, até o dia 26/08/2020, Salvador apresentou
73.824 confirmações de casos e 2.325 óbitos, 3% do total. Comparada a outras cidades, como
por exemplo, Rio de Janeiro – pioneira no Brasil na elaboração de um plano de resiliência
que aponta ações específicas voltadas a pandemias e epidemias –, Salvador apresenta bons
resultados quanto ao enfrentamento do Coronavírus, mesmo sem citar ações exclusivas
para pandemias em seu Plano. Até a mesma data, 26/08/2020, a cidade do Rio de Janeiro
apresentou 10,6% de óbitos em relação aos casos confirmados (RIO DE JANEIRO, 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia do COVID-19 torna clara a necessidade de voltar o olhar e ações políticas
e sociais para o combate e controle de epidemias e pandemias localmente, no Brasil e no
mundo. Mesmo atores que já vinham se preparando para o enfrentamento de situações
críticas nesta natureza, como é o caso das cidades que compõem o R100 e que agora fazem
parte também da GNRC, fica clara a necessidade de novas formas de reflexão e atuação.
É interessante notar que, quando do surgimento da emergência, os planos de ação de
Salvador não fazem menção alguma ao planejamento estratégico que foi elaborado
participativamente para se chegar a uma “Salvador Resiliente”. Entretanto, é possível
observar que requisitos básicos da construção de resiliência estiveram presentes nas ações
emergenciais, como o foco nas localidades mais vulneráveis da cidade. Vale ressaltar tal fato,
uma vez que diversas cidades do Brasil indicaram possíveis subnotificações dos casos de
COVID-19, principalmente nas áreas de menor renda. Salvador, pelo contrário, reforçou a
116 Estratégia de Resiliência e Território
NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
REFERÊNCIAS
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combate à pandemia. Postado em: 7 maio 2020. Disponível em: <https://www.anf.org.br/
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 117
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e território. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020, e-ISSN: 1981-
7746.
INTRODUÇÃO
O debate sobre a natureza dos mestrados profissionais é um desafio que se impõe
numa Academia que se consolidou a partir de uma cultura que valoriza o rigor teórico
metodológico (BERTERO; CALDAS; WOOD Jr., 1999; MASCARENHAS;
ZAMBALDI; MORAES, 2011; MENDONÇA NETO; VIEIRA; OYADOMARI,
2019) em detrimento da relevância e do impacto social do conhecimento produzido.
Os mestrados profissionais buscam capacitar profissionais qualificados para o exercício da
prática profissional de procedimentos; transferir conhecimento para a sociedade, atendendo
demandas específicas e de arranjos produtivos com vistas ao desenvolvimento; promover
a articulação integrada da formação profissional com entidades demandantes, visando
melhorar a eficácia e a eficiência das organizações por meio da solução de problemas e geração
e aplicação de processos de inovação apropriados; e, contribuir para agregar competitividade
e aumentar a produtividade em organizações públicas e privadas (BRASIL, 2009).
Apesar da natureza predominantemente pragmática de sua contribuição, percebe-se ainda
uma dificuldade em equilibrar o rigor científico da produção acadêmica com as contribuições
que os resultados das pesquisas podem agregar à sociedade. Buscando contribuir para esse
debate, este artigo, fruto da participação do Congresso da UFBA 2020, tem o objetivo
de apresentar as contribuições de três pesquisas dos estudantes no âmbito do Mestrado
Interdisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social (MIPDGS) do
Programa de Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS) para a resolução de problemas na
sociedade pós/pandêmica.
A apresentação dos resultados destas pesquisas e a discussão sobre a sua contribuição
para a sociedade é importante, pois contribui para vislumbrar e compreender a relevância
social das propostas desenvolvidas em programas profissionais na universidade, quando os
estudantes pesquisadores desenvolvem metodologias mais engajadas com as organizações,
sejam públicas, privadas ou da sociedade civil, promovendo interação com os atores sociais
no campo e construindo soluções (muitas vezes de forma colaborativa) para os problemas
diagnosticados. Assim, este trabalho contribui para desmistificar o foco do rigor teórico
metodológico das pesquisas em mestrados profissionais, a partir da discussão do potencial
transformador da sociedade a partir da resolução dos problemas sociais e da construção das
aplicações ou tecnologias.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 125
Desde sua criação, o programa enfrenta um duplo desafio (FISCHER et al., 2010): ser
interdisciplinar e profissional. A interdisciplinaridade impacta na construção dos problemas
de pesquisa dos estudantes no mestrado e requer uma conversação entre áreas distintas
(de classes diferentes) de conhecimento. A seleção de discentes formados em diferentes
áreas (por exemplo, na turma 7 do Mestrado, Ciências Sociais, Serviço Social, Engenharia
Sanitária e Ambiental, Ciências Econômicas, Educação Física, Enfermagem, Química,
Comunicação Social, Direito, Ciências Contábeis e Pedagogia) e a diversidade de formação
dos professores docentes orientadores no curso promovem a construção de problemas
complexos que requerem conhecimento e integração de mais de uma área do conhecimento,
contribuindo para o avanço das fronteiras da ciência e tecnologia.
O segundo desafio é ser profissional. No programa, os estudantes, além de diagnosticar o
problema socioterritorial em suas pesquisas científicas, buscam desenvolver tecnologias que
possam ser replicadas pela e na sociedade para resolução de problemas do desenvolvimento
territorial. Para enfatizar a questão profissional, o PDGS realiza um processo seletivo
que destaca o exercício profissional dos candidatos, principalmente na área da gestão, nos
seus critérios de seleção nos cursos. A aproximação com a sociedade e o cotidiano inter/
organizacional é facilitada por atividades no curso, como Residência Social e Residência
Docente, as quais promovem uma experiência prática substancial que aproxima o estudante
do cotidiano organizacional e da prática educacional, desenvolvendo competências
importantes para a sua atuação. A participação de profissionais nas bancas de qualificações
e de defesa das dissertações dos estudantes, além de professores doutores, colabora para
refletir sobre a relevância social das propostas.
É importante ressaltar que o objetivo principal dos trabalhos de conclusão de um curso de
mestrado profissional não é criar conhecimento “teórico-metodológico”, embora ainda o
faça, visto que a interdisciplinaridade provoca uma reflexão do conhecimento a partir de
diferentes tipos de áreas que precisam conversar entre si para atender à natureza múltipla
de fenômenos complexos, o que pode resultar em teorias e metodologias inovadoras com
graus crescentes de intersubjetividade. Apesar da importância do conhecimento teórico-
metodológico, o foco do mestrado profissional é a solução de problemas complexos com
a geração de processos de inovação, demandada por organizações públicas, privadas e da
sociedade civil. Neste percurso de construção, é que emergem as tecnologias propostas pelos
estudantes, os quais, em grande medida, utilizam conhecimentos teórico-metodológicos e
conhecimentos do cotidiano para desenvolvê-las.
O MIPDGS desenvolve suas atividades de pesquisa científica e desenvolvimento
tecnológico desde o primeiro semestre do curso, por meio de várias atividades como: aulas
de metodologia, residência social, seminários de apresentação dos projetos de pesquisa
e qualificação, orientação acadêmica e defesa da dissertação. Além deste itinerário
metodológico, as próprias disciplinas desenvolvem atividades de pesquisa e extensão focadas
nos conteúdos programáticos do curso.
O ensino de metodologia científica e tecnológica é distribuído a cada semestre com aulas
presenciais e atividades de pesquisa e extensionistas. A construção do projeto de pesquisa
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 127
exterior, embora o Brasil pareça, muitas vezes, muito mais adequado para determinados tipos
de problemas sociais. Com a pandemia, por causa das medidas de isolamento, o programa
tem construído atividades inovadoras com os estudantes (com atividades não presenciais)
para concluir a imersão da RS com distanciamento.
Na sétima turma do mestrado, foi realizado um laboratório de discussão dos projetos com a
participação de professores e profissionais convidados. Essa experiência teve uma avaliação
muito positiva, pois possibilitou uma avaliação coletiva dos projetos, quando se refletiu
sobre a contribuição das propostas para a sociedade e a viabilidade das tecnologias. Esse
tipo de atividade possibilita a articulação do conhecimento produzido no programa com a
sociedade, além de apreciar a demanda das organizações públicas, privadas e da sociedade
civil para com a universidade.
No final do terceiro semestre, os estudantes participam do seminário de qualificação dos
projetos de dissertação, quando são avaliados por uma banca de professores doutores com a
presença de um profissional que tenha relação com o objeto de pesquisa do estudante. Este
profissional pode ser um funcionário da organização, um consultor da área, um representante
da sociedade civil etc., com saberes específicos sobre o problema da dissertação e que
consiga avaliar a importância e a viabilidade da tecnologia proposta. Após a qualificação,
o estudante defende a proposta final da dissertação profissional para a banca avaliadora,
também composta por um profissional da área da proposta.
O formato do Trabalho Final do Curso ou a dissertação profissional foi ampliado a partir
da Portaria Normativa n. 17, de 28 de dezembro de 2009 (BRASIL, 2009), possibilitando
ao MIPDGS novas formas de apresentação das tecnologias de gestão social. Todavia, o
que se percebe é que a maioria dos estudantes no programa escreve uma dissertação. Em
alguns casos, além da dissertação, o estudante apresenta algum outro tipo de produção (por
exemplo, Jatobá escreveu a dissertação, um livro e criou um site de Gestão Colaborativa de
Teatros; e, Soares escreveu a dissertação, uma cartilha e produziu vídeos sobre Mestres de
Artes e Ofícios Populares). Normalmente, os trabalhos de conclusão de curso profissional
seguem o mesmo regulamento dos cursos acadêmicos das universidades e as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Na sétima turma do MIPDGS, os estudantes vêm desenvolvendo diferentes tecnologias,
como: Simulador para comercialização e aprendizagem em negócios de cafés especiais,
Programa de assistência às pessoas com HIV/AIDS, Sistema de Monitoramento das
Violações de Direitos Humanos, Modelo de Gestão Dialógica de Projetos Socioambientais,
Modelo de diagnóstico da implementação da política de assistência estudantil, Núcleo
estruturado de Inteligência Penitenciária, Metodologia de avaliação para organizações
culturais populares, Estratégias de Gestão com base na Economia Plural e da Participação
Popular (Lojas Solidárias), Metodologia de ensino-aprendizagem para desenvolvimento
de turismo criativo, Metodologia de Gestão para plataformas de qualificação empresarial
(Merc’ Afro), Estratégias para a interiorização do policiamento frente à violência doméstica e
familiar contra a mulher, Gamificação e desenvolvimento de competências profissionais
para os operários da Construção Civil, Instrumento de avaliação dos impactos de estresse
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 129
Diante da crise mundial que estamos vivendo em decorrência da pandemia, a qual atinge
de forma mais intensa e fatal as populações pobres e desassistidas, pode-se ainda destacar a
percepção da importância de iniciativas como esta pesquisa, quando o linguista e pensador
norte americano Noam Chomsky (2020a) afirma “esta crise é o enésimo exemplo do
fracasso do mercado assim como é ameaça de uma catástrofe ambiental” e que “a crise atual
oferece um argumento poderoso em favor da assistência universal à saúde e de reavaliação
dos problemas mais profundos de nossas sociedades. O resultado que prevalecerá depende
da força da opinião pública despertada” (CHOMSKY, 2020b). É neste contexto de grave
crise ambiental que a pesquisa contribui para o despertar da força da opinião pública,
num modelo que, ao estabelecer uma relação direta entre agricultores e empresas eólicas
intermediada por políticas públicas, pode se constituir em mais uma alternativa à rigidez
da lógica atual do mercado, fugindo assim de regras inegavelmente fracassadas, desnudadas
pela pandemia, como afirma Chomsky.
A promoção de parques geradores de energia eólica nestas regiões brasileiras pode representar
um fator de desenvolvimento territorial em função, principalmente, da possibilidade de
convivência com outras atividades econômicas e da receita gerada a partir de pagamento
de arrendamento de terras. Todavia, é necessário a concertação entre as políticas públicas,
os projetos de investimento social privado das empresas e os projetos de atendimento a
condicionantes socioambientais no apoio aos pequenos proprietários, tornando a gestão das
propriedades mais eficiente e ambientalmente sustentável.
autorização e indicação do Comando das unidades, devido ao impacto do curso nas escalas
de trabalho. As turmas normalmente são mistas, com oficiais e praças de diferentes postos
e graduações, e de unidades de diferentes territórios de Salvador. O ambiente do curso é
informal, sem uso de uniformes ou outros sinais indicativos da hierarquia da organização.
Para os comandantes que se interessam em levar o programa para todo o seu efetivo, existe
o subprograma de “Unidades Modelo”, o qual oferece um acompanhamento especial para a
unidade, no sentido de ajudar a implementar a técnica de respiração como parte da rotina
da unidade e treinar facilitadores de forma mais aprofundada em temas de saúde mental,
autocuidado e cuidado com o outro. Em muitas unidades, esse processo também inclui
ajuda na adequação física do espaço de respiração. Atualmente, 14 unidades (entre CIPM,
Batalhões, Colégios e Academia de Polícia Militar) estão em processo de implementação
do programa.
A principal técnica ensinada nos cursos é a Kryia Yoga (SKY), um tipo de prática de
respiração cíclica e controlada que se concentra em vários tipos de exercícios respiratórios.
Diferentes estudos sobre o efeito dessa técnica demonstram sua eficácia na redução de
estresse, promoção de saúde física e mental e incremento de qualidade de vida em diversas
populações. No que se refere especificamente aos efeitos envolvendo policiais e militares,
foi verificado que o Sky é efetivo para melhora de sintomas relacionados ao transtorno de
estresse pós-traumático, com efeitos agudos e a longo prazo. Para além dos efeitos clínicos do
Sky a partir de escalas, a prática também apresentou impactos significativos na alteração de
biomarcadores, como a diminuição do cortisol, hormônio associado à reatividade fisiológica
ao estresse, aumento da prolactina e melhora do status antioxidante em praticantes.
O contexto de atuação do programa, saúde mental dos policiais militares, vem ganhando
bastante destaque na imprensa, seja por causa do custo que os afastamentos representam
para a instituição e para o contribuinte, seja pelo alto número de suicídios (em alguns
estados, já ultrapassa o número de mortes em combate) e, mais frequentemente, por causa
de surtos, uso desproporcional de violência etc.
Estudos apontam que profissionais de segurança pública estão entre os mais afetados por
estresse ocupacional, no mundo. Isso também é verdade no Brasil, onde uma série de estudos
indicam a prevalência de altos índices de afastamentos e transtornos mentais (SILVA,
2009); violência policial, suicídio (KURTZ; ZAVALA; MELANDER, 2015; STANLEY;
HOM; JOINER, 2016); outros sintomas físicos e psicológicos (COSTA; ACCIOLY
JÚNIOR; MAIA et al., 2007; ROSSETTI et al., 2008, DANTAS et al., 2010; MINAYO;
ASSIS; OLIVEIRA, 2011; LIZ et al., 2014). Ainda que o problema seja concreto e suas
consequências sentidas em toda a sociedade, são raras as intervenções e ainda mais raras
aquelas documentadas cientificamente.
Diante deste cenário, busca-se responder o seguinte problema: Como avaliar a eficácia de
programas institucionais de manejos de estresse baseados em respiração, para além dos
benefícios individuais?
Assim, no final de 2018, a pesquisadora tornou-se voluntária no projeto e vivenciou a rotina
de cursos e práticas desenvolvidas nas unidades, realizou “diálogos” com os policiais e com
134 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia
dos fazeres culturais. São, portanto, fundamentais para a ampliação da democracia cultural
no Brasil.
Em sua pesquisa, Itã (2019) propõe o termo Organizações Culturais Populares (OCP) para
se referir a essa diversidade de grupos que têm em comum não uma forma de expressão
cultural (indo além da compreensão mais estrita de cultura popular), mas, sim, a posição
que ocupam na estrutura social, a forma coletiva de fazer a sua gestão e a utilidade social
que têm para os seus territórios. O processo de pesquisa em desenvolvimento analisa
criticamente o fenômeno de imposição de instrumentos e a visão empresarial sobre essas
iniciativas culturais (BRANT, 2004; CARVALHO, 2006; HOLANDA, 2011; SANTOS,
2016; XAVIER, 2016) e propõe uma metodologia de gestão que seja feita a partir das
peculiaridades e dos sentidos do organizar desses grupos.
Dessa forma, o trabalho tem um duplo objetivo: compreender a gestão no âmbito das
iniciativas culturais a partir de um olhar substantivo sobre essas experiências e construir
uma proposta metodológica para a avaliação da gestão de Organizações Culturais Populares.
Trata-se de uma proposição que se situa em um terreno delicado, pois está entre dois campos
marcados pela hegemonia da visão gerencialista e positivista: o da Gestão e o da Avaliação.
Para resolver este desafio, adotou-se abordagens que problematizam os paradigmas dessas
duas áreas e propõem outros caminhos de construção do conhecimento sobre gestão e sobre
avaliação. A primeira é a noção de Gestão Social, a qual se consolida enquanto campo que
visa construir uma gestão baseada em uma lógica substantiva, visando o interesse público e
social, em detrimento de interesses estritamente monetários e privados (ARAÚJO, 2014).
A segunda é construída pelas abordagens construtivistas e pluralistas da Avaliação, as quais
propõem o rompimento da supremacia da visão gerencial, do paradigma positivista, da
dependência do quantitativo e da incapacidade de acomodar o pluralismo de valores nos
processos avaliativos (KANTORSKI et al., 2009; GUBA; LINCOLN, 2011; PARLETT;
HAMILTON, 1982; HOUSE; HOWE, 2000; BOULLOSA; TAVARES, 2009, entre
outros).
Contando com tais referências, a pesquisa trilhou um processo de interação do pesquisador
com membros de Organizações Culturais Populares e com apoiadores/pesquisadores desse
campo para coconstruir o conteúdo da metodologia: dimensões e indicadores que espelham
os pontos essenciais da gestão de uma OCP, para além de um olhar estritamente econômico
e instrumental
A metodologia de avaliação resultante desse trabalho, chamada Ocas Populares, utiliza-se
da metáfora da “oca” (forma genérica que se usa para se referir às construções tradicionais
indígenas, mas que também pode ser conhecida como óga, maloca, shabono, kijeme, entre
outros, a depender do povo e sua língua) para argumentar que uma Organização Cultural
Popular é, para a sua comunidade, o que uma oca é para a sua aldeia. A partir dessa imagem,
a dinâmica criada pela metodologia estimula que os próprios membros de uma iniciativa
cultural possam dialogar e discutir a sua gestão e sua atuação local, avaliando a sua “oca
popular” a partir de temas geradores, como, por exemplo, a construção/transmissão de
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 137
NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
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Abstract This paper deals with the topic of Corporate Social Responsibility, bearing
in mind the social and environmental impacts provided and the investments
involved in Brazil and in the world. The question of this study is: how
companies guide their social investments and how populations impacted by
operational activities are considered in the decision-making process for the
application of such investments. Two cases were considered in the Brazilian
scenario: Bracell and Vale. A multiple-case methodology was chosen, and
relevant and distinct impacts were found in each case. Both companies
studied in this work have been planning their programs and projects to
146 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...
INTRODUÇÃO
Há diversas teorias sobre as primeiras iniciativas de Investimento Privado no Brasil,
inclusive, desde a época em que alguns senhores de engenho se quotizavam para comprar
alforrias de escravos (CHALHOUB, 1990). Hoje, o conceito já é difundido no mundo. No
Brasil, mais especificamente, é abarcado por duas organizações sem fins lucrativos, sediadas
em São Paulo: o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE, 2018) e o Instituto
para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS, 2020). O Brasil é um dos países que
se destaca internacionalmente quando se trata do tema Investimento Social Privado (ISP).
Juntamente com a Índia, é tido como um dos países em desenvolvimento com soluções mais
criativas e efetivas como parte de uma nova onda de filantropia global, na qual não apenas
os países desenvolvidos exportam seus modelos e metodologias (KISIL, 2007).
Um dos motivos do tema ter ganhado repercussão mundial foi a grandeza dos números
envolvidos nas ações realizadas por meio desses investimentos. Desde 2007, a Comunitas,
organização que trabalha com o tema do Investimento Social, realiza a pesquisa Benchmarking
do Investimento Social Corporativo (BISC, 2019), uma ferramenta que traça parâmetros
e comparações sobre o perfil do investimento social privado no Brasil, acompanhando a
evolução dos compromissos sociais das empresas participantes, as quais acreditam na sua
parcela de responsabilidade na proteção do meio ambiente e geração de solidariedade social.
Igualmente, o GIFE (2018), para compreender melhor as características das organizações
associadas e suas prioridades de investimento social, realiza pesquisa bianual entre seus
associados – o Censo GIFE (2018). Somando os valores coletados pelo BISC (2019) e o
Censo GIFE(2018), realizado com 133 organizações, correspondendo a 84% de sua base
associativa, o volume de recursos do Investimento Social Privado no Brasil chega a R$3,59
bilhões (GIFE, 2018). Segundo o GIFE (2018), os investimentos sociais provenientes de
entes privados superam os orçamentos de alguns ministérios, como o do Meio Ambiente,
Cultura e Esporte.
Em termos de recursos, 50% do orçamento total dos respondentes do censo são destinados
à execução direta de projetos próprios, o que representa R$1,6 bilhão (GIFE, 2018).
Apenas 14% dos projetos e programas são desenvolvidos com outras organizações, no
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 147
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de Responsabilidade Social ou “Cidadania Empresarial” pode ser entendido
como uma relação de direitos e deveres entre empresas e seus públicos de interesse. Tem
a ver com a “boa vontade” que as empresas devem ter em contribuir para as questões das
comunidades onde atuam. É um fazer que aproxima os interesses do negócio com os seus
stakeholders (SCHOMMER; FISCHER, 1999). Além disso, visto que a empresa necessita
de matéria-prima e recursos humanos, ela não gera riqueza se não estiver envolvida em um
ambiente social.
Ladeira et al. (2017) trazem referências sobre a Responsabilidade Social Corporativa (RSC)
alinhada ao Marketing Social. Para os autores, a Responsabilidade Social Empresarial
(RSE) é o mais amplo de todos os termos pesquisados, relacionados ao próprio Marketing
Social, aspectos ambientais e financeiros relacionados à estratégia ou plano. De acordo
148 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...
com os autores, a RSE é utilizada pelo Marketing Social como estratégia para alavancar a
marca, visto que o conceito traz a premissa de parceria na qual a empresa pode ter resultados
emocionais e sustentáveis e, em seguida, benefícios como a fidelidade dos clientes, atraindo
novos consumidores e um maior volume de vendas, visando, como foco principal, a mudança
de comportamentos e atitudes. Também é uma ferramenta importante para criar vantagem
competitiva; desenvolve a lealdade dos colaboradores e atrai novos talentos; atrai novos
parceiros de negócios, capital e investimentos; e melhora o relacionamento entre a empresa
e as comunidades locais.
Com o objetivo de estabelecer diretrizes sobre a RSE, por meio das dimensões social,
ambiental e econômica, foi elaborada a Norma Internacional para a Responsabilidade Social
ISO 26000 (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2010). A ISO
26000 foi lançada internacionalmente em 1º. de novembro de 2010, na cidade de Genebra,
Suíça. Já a versão brasileira foi apresentada na capital paulista no dia 8 de dezembro do
mesmo ano. Para Dias (2011), a ISO 26000 surgiu em um momento em que a relação das
empresas com a sociedade estava em acelerado processo de mudanças, o que ocorre ainda
hoje. Segundo a Norma, a Responsabilidade Social é a responsabilidade de uma organização
pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente, por meio de
um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável
– inclusive a saúde e o bem-estar da sociedade –; leve em consideração as expectativas das
partes interessadas; esteja em conformidade com a legislação aplicável; seja consistente com
as normas internacionais de comportamento; esteja integrada em toda a organização; e seja
praticada em suas relações.
Do ponto de vista empresarial, a Responsabilidade Social pode agregar valor ao negócio,
trazendo benefícios que vão além dos muros das corporações: imagem e reputação de
marca e fidelização dos públicos, mas, principalmente, a sustentabilidade de suas atividades
(GRAJEW, 2000).
Uma iniciativa importante nos últimos anos e que, nos dias de hoje, orienta todo o empenho
mundial acerca do tema é a aprovação da Agenda Global 2030, realizada em 2015 na
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, tratando-se de um plano de ação
para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade. A proposta é que todos os países e
todas as partes interessadas atuem em parceria na implementação do plano. A Agenda
comporta os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS, com 169 metas, as quais
devem ser consideradas de forma integrada e voluntária (NAÇÕES UNIDAS BRASIL,
2015).
O conceito de Investimento Social Privado é caracterizado pela transferência voluntária de
recursos de entes privados para comunidades por meio de projetos (GIFE 2018). No Brasil,
o ISP é realizado por meio de projetos sociais, geralmente executados por organizações do
Terceiro Setor (FISCHER, 2002). Essas organizações, por sua vez, possuem a expertise
em metodologias para desenvolvimento de tais projetos. Para Brown et al. (2006), o ISP
pode se estender à transferência de recursos para entidades de assistência social, sem o
compromisso do ente privado em monitorar os resultados. O GIFE (2018) traz o conceito
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 149
METODOLOGIA
Utilizamos, nesta pesquisa, o estudo de casos múltiplos (YIN, 2015) como abordagem
metodológica, o que permitiu um melhor entendimento dos processos e práticas (“como”
e “por que”), utilizados por duas grandes corporações no que se refere ao Investimento
Social Privado. Foram selecionados dois casos de entes privados com impacto em territórios
diferenciados e complexos, os quais orientam sua gestão social por meio do ISP, buscando
como objetivo o desenvolvimento social. São eles: a gestão do Investimento Social Privado
da Bracell, uma empresa de reflorestamento para produção de celulose, com impacto em
31 municípios e mais de 300 comunidades, situada no Litoral e Agreste baianos, e da Vale,
uma mineradora com atuação no Pará, onde está a maior planície mineral do mundo, e
em Minas Gerais, sendo este último local não considerado neste estudo. Ambos os casos
foram selecionados por terem muitos insumos para a pesquisa e por estarem em territórios
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 151
em poucos benefícios sociais e econômicos para os municípios. Para a entidade, a qual reúne
as principais empresas florestais da Bahia, o Brasil possui 7,74 milhões de hectares plantados
de eucalipto, pinus e outras espécies, em uma área correspondente a 0,9% do território
nacional. O setor brasileiro de árvores plantadas é responsável por 91% de toda a madeira
produzida para fins industriais no País − os demais 9% vêm de florestas nativas legalmente
manejadas. A utilização de madeiras certificadas e produzidas de forma sutentável levou a
uma melhor aceitação das atividades desta empresa, agregando valor à marca da mesma.
O eucalipto é matéria-prima para produção de celulose, carvão, lenha, madeira serrada e
extração de óleos essenciais. O carvão vegetal antes era produzido por meio da retirada da
mata nativa. O eucalipto veio como uma alternativa de revegetação de áreas degradadas,
porém, ainda devem ser verificados seus impactos negativos nas regiões replantadas. Segundo
a Indústria Brasileira de Árvores (IBA, 2020), o eucalipto é cultivado atendendo a planos
de manejo sustentável, tendo como objetivo reduzir os impactos ambientais e promover
o desenvolvimento econômico e social das comunidades vizinhas. Segundo a instituição,
as certificações são as ferramentas das quais as empresas do setor dispõem para realizar a
gestão ambientalmente responsável, social e economicamente viável no presente e para as
gerações futuras.
Em decorrência de uma forte pressão negativa e críticas de seus principais stakeholders, e
também para conhecer melhor seu território de atuação, em 2012, a Bracell Bahia contratou
uma consultoria externa especializada para elaborar um diagnóstico socioeconômico.
O documento, disponibilizado pela empresa para essa pesquisa trouxe subsídios que
possibilitaram a elaboração e implementação de sua Política de Responsabilidade Social
e Ambiental, com quatro principais pilares: educação, empreendedorismo, agronegócio e
diálogo permanente. Este último foi necessário, visto que o diagnóstico apontou, depois de
ouvir as comunidades vizinhas, que a empresa era ausente e não havia ações de parceria para
o desenvolvimento da região. Oito anos depois do diagnóstico, a empresa vive outro cenário:
são 26 programas e projetos socioambientais estruturados, alcançando 65 mil pessoas nas
mais de 300 comunidades vizinhas aos plantios de eucalipto, nos 31 municípios onde
atua. No organograma da empresa, o setor de Responsabilidade Social faz parte de uma
Gerência Sênior que também reúne Relações Institucionais e Sustentabilidade, e está ligada
diretamente à alta gestão da empresa, o que possibilita que a tomada de decisão de seu
investimento social esteja alinhada às estratégias de negócio. Outro passo importante dado
foi a implementação de sua Política de Sustentabilidade, em 2016, a qual está publicada no
site da empresa e que traz como base a filosofia de que tudo que a empresa realiza “deve ser
bom para a comunidade, bom para o país, bom para o clima e bom para os clientes. Só então
será bom para a empresa” (BRACELL, 2020). A política está dividida em sete temas, ou
assuntos, dentre eles, o desenvolvimento de comunidades locais. Nesse trecho, o documento
dá as orientações para o trabalho que a empresa realiza nas mais de 300 comunidades
vizinhas. No passo a passo estão: conhecer o contexto local e realizar o engajamento das
partes interessadas; elaborar e implementar os projetos com o envolvimento das comunidades
na tomada de decisão; apoiar o desenvolvimento da região por meio do fortalecimento
dos arranjos produtivos locais; investir na educação; estabelecer parcerias; dar preferência
a projetos estruturantes em detrimento aos filantrópicos; estar engajada com os Objetivos
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trazer à análise a convergência entre Investimento Privado e a necessidade efetiva
do território contribuiu para compreender não apenas como a gestão social de grandes
corporações é orientada, mas, principalmente, como é realizado o envolvimento dos atores
sociais no processo. É possível verificar que o envolvimento dessas populações na tomada
de decisões e o atendimento ao que de fato é necessidade legítima do território impactado
sendo assim, o processo mais assertivo para sua transformação.
Ambas as empresas estudadas neste trabalho vêm não apenas realizando aportes de recursos,
mas planejando seus programas e projetos para atender a demandas do território. Porém,
entende-se que o protagonismo desempenhado pela iniciativa privada no desenvolvimento
local não é apenas para expor a “boa vontade em contribuir”, mas, sim, por ser necessário
à sustentabilidade de seus negócios, um melhor posicionamento de suas marcas e
melhoramento de suas imagens e reputações organizacionais, sobretudo, a partir de pressão
de investidores estrangeiros.
Com base na pesquisa, parte apresentada neste artigo, está sendo desenvolvido um
diagnóstico, que será a matéria-prima para a construção de uma ferramenta de gestão
social, além de uma fonte de informação sobre o cenário do território estudado quanto ao
seu desenvolvimento socioeconômico e possibilidades de investimentos. Essa ferramenta
(digital) com acesso livre, poderá ser replicável em diversos territórios e deverá servir para
nortear novas iniciativas e orientar também quanto às ações que poderão ser realizadas por
diversos atores sociais, não só a iniciativa privada, mas, também, governos, organizações
sociais etc. O objetivo é contribuir de imediato para que as empresas tenham subsídios
para elaborarem seus planejamentos estratégicos, direcionando-os para utilização do
investimento social privado com foco no gerenciamento de seus impactos, com participação
dos atores envolvidos. Além disso, dará visibilidade também às empresas que atuarem com
essa proposição, transformando a sua gestão social em ativos de imagem e reputação às suas
marcas. A plataforma, por si só, tem a premissa de proporcionar visibilidade, uma vez que
todos os atores sociais cadastrados poderão ser acessados.
Dessa forma, este estudo contribuirá também para trazer à prática teorias/discussões sobre
a relevância do direcionamento do Investimento Social Privado, viabilizando iniciativas de
gestão social de impacto significante. Como consequência, espera-se que a ferramenta se
constitua em uma forma de minimizar os impactos negativos oriundos dos empreendimentos
privados, pensados à revelia das comunidades diretamente afetadas pelos mesmos.
A tecnologia que está sendo elaborada também contribuirá diretamente para a atuação dos
gestores sociais, uma vez que o mercado ainda é carente de uma ferramenta que propricie
e evidencie o encontro de interesses entre empresa e atores sociais impactados; que ofereça
informações e oportunidades para ambos com agilidade e em tempo real.
O projeto interessará a qualquer pessoa/instituição que atue com gestão social ou que estude
o tema, mas, principalmente, será de interesse de corporações, governos e sociedade em
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 157
geral que estejam inseridas no território em questão. Lembrando que a metodologia terá a
flexibilidade de ser implementada em qualquer território.
NOTA
1 Submetido à RIGS em: ago. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
REFERÊNCIAS
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Plantadas – Mitos sobre o Eucalipto. 2020. Disponível em: http://www.abaf.org.br/arvores-
plantadas/mitos-sobre-eucalipto/ Acesso em: 1 abr. 2020.
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ABNT - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. Diretrizes sobre
Responsabilidade Social. ABNT NBR ISO 26000. Rio de Janeiro: ABNT NBR, 2010.
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ANDRADE, M. L; OLIVEIRA, G. G. A monocultura do eucalipto na Bahia: um retrato da
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BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
BISC - Benchmarking do Investimento Social. Relatório Benchmarking do Investimento
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COELHO, T. P.; MILANEZ, B.; PINTO, R. A Empresa, o Estado e as Comunidades. In:
ZONTA, Márcio; TROCATE, Charles. (Org.). Antes Fosse Mais Leve a Carga: Reflexões
sobre o desastre da Samarco/ Vale / BHP Billiton. 1. ed. Marabá: Editorial Iguana, 2016, v.
1, p. 183-228.
CHALHOUB, S. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DIAS, R. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Atlas,
2011.
158 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...
INTRODUÇÃO
Pensar a sociedade nos tempos de hoje requer observar todas as possibilidades de interação
e interfaces entre pessoas e máquinas presentes no dia a dia, principalmente, as que possuem
suporte ou mediação das tecnologias da informação e comunicação (TICs) e das tecnologias
de um modo geral. Essa interação torna-se mais urgente em um mundo pós-pandemia, onde
vários avanços no uso da tecnologia foram adiantados por uma questão de necessidade. As
tecnologias disruptivas e uma plataforma econômica compartilhada são uma realidade e, a
cada dia, estão sendo massificadas (DE STEFANO, 2016).
Nesse sentido, investigar em que medida as tecnologias podem impactar os comportamentos
e ações humanas é um dos temas que despontam como interesse específico da linha de
pesquisa Tecnologias e Redes Colaborativas, integrante dos eixos de pesquisa do Centro
Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
Para construir essas discussões, a linha de pesquisa de Tecnologias e Redes Colaborativas
investiga e discute questões relacionadas com a criação, a apropriação e o uso de tecnologias
na sociedade. Em um primeiro momento, parte-se da discussão da tecnologia enquanto
produto da ação humana, entendida, neste ensaio, e a partir da visão de autores como
Castells (1999) e Pinto (2005), como resultado do uso aplicado do conhecimento humano
para a solução de problemas.
Essa visão permite compreender a tecnologia como aplicação dos conhecimentos e da
técnica humanos em elementos presentes na sociedade, como artefatos tecnológicos que
servem para realizar determinadas tarefas. Por se tratar de resultado da ação humana, vê-se
na tecnologia a presença de características e valores daqueles que a produziram (WINNER,
1986; PINTO, 2005), o que implica no caráter social da tecnologia e na presença de valores,
interesses, cultura, fatores sociais e outros elementos imbuídos nos artefatos tecnológicos.
A partir do exposto, este ensaio tem como objetivo apresentar algumas das discussões
realizadas na linha de pesquisa Tecnologia e Redes Colaborativas sobre o caráter social da
tecnologia. A inquietação associada às discussões consiste na busca por uma ressignificação
da área de tecnologia da informação no âmbito da Gestão Social. Os temas comumente
abordados como emergentes em TICs no campo da Gestão Social eram abordados
rapidamente ou ficavam apenas no campo das ideias.
O ensaio organiza-se da seguinte forma: esta introdução, seguida de uma discussão sobre
tecnologia e sociedade, uma seção abordando a aprendizagem de máquinas e uma seção de
discussão das possibilidades de integração das temáticas estudadas na linha de Tecnologias
e Redes Colaborativas com a Gestão Social.
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TECNOLOGIA E SOCIEDADE
As inúmeras tecnologias presentes na sociedade constituem o resultado da produção
humana de fatos e de artefatos tecnológicos, criados e utilizados para facilitar a vida das
pessoas e com finalidades diversas, desde a sobrevivência, o desenvolvimento e realização
do trabalho e o bem-estar. Conforme aponta Castells (1999), a tecnologia tornou-se um
elemento presente na sociedade e seus impactos podem ser percebidos nos mais diversos
aspectos da vida cotidiana, englobando relacionamentos, comunicação, negócios, educação
e trabalho, por exemplo.
Acerca da tecnologia, Bastos (2015, p. 17) comenta que “o entendimento da tecnologia
na sua amplitude e profundidade é complexo, pois inclui várias dimensões que abordam
aspectos sociais, econômicos, antropológicos e técnicos”, o que demanda posturas de crítica
e de reflexão sobre seu desenvolvimento e sobre sua utilização na sociedade.
De acordo com Santos (2012), a tecnologia molda a sociedade, ao mesmo tempo em que
é moldada por ela. A esse respeito, para Winner (1986), artefatos tecnológicos podem
incorporar formas específicas de poder e autoridade, além de características culturais e
sociais de acordo com o período em que são construídos.
Pinto (2005) reflete sobre a produção tecnológica, em se tratando de uma atividade
humana, e sua relação com o perfil dos indivíduos que a produzem. Neste sentido, um
artefato tecnológico não pode ser analisado de forma dissociada do contexto social no qual
foi produzido, uma vez que guarda essa relação entre os valores, crenças e interesses do(s)
indivíduo(s) produtor(es) (PINCH; BIJKER, 1984).
Winner (1986) também discute essa questão, enfatizando o discurso comum de que as
tecnologias se desenvolvem como resultado de dinâmicas internas, o que leva a um
pensamento que o autor denomina de determinismo tecnológico. O determinismo
tecnológico vê a tecnologia como um fim em si mesma, livre de influências externas e capaz
de moldar a sociedade para que se adeque aos seus padrões. A esse respeito, Winner (1968)
discorre sobre os perigos de assumir um posicionamento determinista da tecnologia para
a não reflexão sobre os contextos sociais de sua produção, as características do momento
histórico, os aspectos sociais e os valores imbuídos na tecnologia, os quais são a raiz dos
artefatos.
De outra parte, limitar a visão e análise das tecnologias ao contexto de sua produção também
traz outros impactos e desconsidera o papel dos indivíduos que utilizam tais tecnologias.
Isso leva a pensar sobre o processo de apropriação e uso dos artefatos por parte da sociedade.
Um exemplo, a esse respeito, pode ser visto nas ferramentas de tecnologias da informação e
comunicação (TICs) eletrônicas. Desenvolvidas, a priori, para o compartilhamento rápido
de informações entre grupos de pessoas e/ou organizações (CASTELLS, 1999), as TICs
passaram a ser incorporadas nas práticas sociais dentro dos mais diversos tipos de situações,
extrapolando a finalidade inicial de compartilhar informações para se tornarem ferramentas
de comunicação de uso popular, presentes em vários momentos da vida humana.
164 Tecnologias e Sociedade
Outros pontos que merecem reflexão estão relacionados com a aquisição ou produção das
tecnologias. Pinto (2005) já discutiu o fato de que muitas tecnologias utilizadas em países
‘subdesenvolvidos’ são importadas das potências mundiais. Esse fato já foi amplamente
discutido por pesquisadores das áreas de C&T (CUTCLIFF, 2003; KREIMER, 2009;
DAGNINO, 2014) e mostra que grandes impactos podem ser percebidos pelo uso de
tecnologias importadas, ressaltando-se:
y as tecnologias são desenvolvidas em um contexto social específico, incorporando
práticas sociais, valores e interesses do seu local de produção e de seus produtores;
y a diferença dos contextos de produção e de utilização da tecnologia pode trazer
prejuízos para o segundo grupo, uma vez que o artefato foi pensado para outra
realidade;
y ao importar tecnologias, não se consideram as potencialidades de desenvolvimento
local, impactando o desenvolvimento local e regional, e o fato de não reconhecer e
incorporar as demandas da sociedade que será foco dessas tecnologias.
De outra parte, discutir o desenvolvimento de tecnologias em tempos atuais implica
observar e refletir sobre a produção de artefatos relacionados com as ferramentas digitais,
com o ambiente virtual e com as TICs. Um exemplo claro desses artefatos são os softwares
utilizados em inúmeras situações do cotidiano. Enquanto artefato, o software chega às mãos
dos usuários que se apropriam dessa tecnologia e a incorporam ao seu cotidiano, sem, muitas
vezes, refletir sobre a produção desses softwares.
Para Alves (2019), é preciso observar softwares e ferramentas de inteligência artificial
considerando o seu processo de criação, o qual engloba aspectos do seu criador (ou
desenvolvedor) e pode representar, por meio das características do algoritmo, situações
advindas da sociedade, como valores pessoais ou de um determinado grupo, preconceitos e
compreensões sociais que representam os interesses, visões e cultura de quem desenvolveu o
software ou desenhou o algoritmo.
Gillespie (2018) diz que os algoritmos representam um papel fundamental em vários
processos contemporâneos, incluindo o acesso a informação, uma vez que algoritmos de
ferramentas de busca fazem a seleção das informações a serem retornadas aos usuários
de acordo com o que ele identifica como de interesse do indivíduo que está buscando
informação.
Para Alves (2019), os algoritmos trabalham com o mapeamento da realidade para que
esta seja aplicada em alguma situação computacional. Nesse contexto, os desenvolvedores
ou programadores acabam criando mapas do mundo a partir de suas próprias percepções,
inserindo esses mapas no processo de criação de algoritmos, os quais, posteriormente, serão
a base de funcionamento de vários artefatos tecnológicos utilizados na sociedade.
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APRENDIZAGEM DE MÁQUINA
Os algoritmos refletem uma demanda importante em selecionar informação, cada vez mais
relevante e crucial para a participação social. As ferramentas computacionais deixaram de
ser instrumentos para assumir uma função primária da expressão humana (GILLESPIE,
2018). Um algoritmo descreve uma relação técnica, uma forma de comunicação entre o
interesse humano e uma máquina. No entanto, essa relação entre homem e máquina não
tende a ser meramente técnica (TOMAZ, 2018).
De forma geral, essa relação consiste em uma simbiose homem-máquina potencializada por
dados cada vez mais acessíveis, métodos estatísticos capazes de lidar com dados dinâmicos
e um aumento de poder computacional (LANTZ, 2013). Esse ambiente computacional
propicia dar sentido a dados complexos. É isso a que a aprendizagem de máquina se propõe,
ao aliar as condições ambientais favoráveis à capacidade de processamento, desenvolvimento
avançado de linguagens de programação, como o R e o Python, além do uso de modelos
estatísticos capazes de aprender, ou seja, que são inteligentes.
Lantz (2013) descreve uma máquina que aprende como uma máquina que pode ser
representada por um algoritmo, capaz de, pela experiência, melhorar o desempenho
em futuras experiências. Essa capacidade transforma dados em conhecimento ativo. Os
algoritmos de aprendizagem recebem uma carga de dados e, a partir deles, conseguem
tomar decisões que melhor classificam, discriminam e revelam informações que antes não
poderiam ser obtidas.
A máquina de aprendizagem não cria dados, nem varre todos os possíveis dados, ela aprende
os padrões dos dados disponíveis para treinamento. É uma forma similar de aprendizagem
à dos humanos, com a vantagem da capacidade de processamento dos dados. Os dados são
suficientes quando o conhecimento abstrato pode ser utilizado em futuras ações (LANTZ,
2013).
Os dados utilizados nesses algoritmos foram alterados, sendo potencializados pela Web 2.0,
dando lugar aos dados massivos em uma realidade de Web 3.0 (KOO, 2009). O mundo está
mais colaborativo e comunicativo, em parte, impulsionado pelas redes sociais. O crescimento
exponencial de artefatos móveis, jogos e o amplo acesso à Internet, possibilitaram a geração
de dados que representam intimamente cada indivíduo.
Gillespie (2018) salienta as informações conhecidas sobre um usuário de tecnologias. O
conhecimento que pode ser acumulado com uma simples busca na Internet revela muito
da personalidade, desejos e perfil de consumo do indivíduo. Os algoritmos inteligentes
aprendem com esses dados, a ponto de indicar para o usuário o que pode ser relevante para
ele.
É óbvio que há um vasto campo de estudo sobre os efeitos dessa relação homem-máquina
sob os âmbitos culturais, econômicos e éticos. Porém, essas tecnologias disruptivas permitem
vislumbrar que a análise preditiva de dados possa estimular a participação social e contribuir
166 Tecnologias e Sociedade
causa de exclusão social e desigualdade, e a proliferação e impacto das fake news, são temas
urgentes, os quais envolvem desde o uso consciente da informação até a consolidação de
comportamentos e padrões já estabelecidos, representados por exemplo pela Lei de Acesso
à Informação (BRASIL, 2012).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As redes potencializadas pelas tecnologias podem proporcionar uma melhor abordagem de
criação de valor local e senso de pertencimento a um determinado território. Indo além, a
formação de redes promove a difusão do conhecimento e a possibilidade de adotar melhores
práticas na Gestão Social. Tecnologias disruptivas e com rápido crescimento podem auxiliar
fortemente o campo da Gestão Social no que se refere à formação de redes colaborativas.
Este ensaio buscou apresentar as convergências entre o estudo da relação homem-máquina
com o campo da Gestão Social. As possibilidades de integração suscitam e clamam pela
atuação universitária, sob a égide do tripé: ensino, pesquisa e extensão. Também clama
por uma modernização da máquina pública no que se refere ao uso de tecnologias para
beneficiar a gestão de políticas públicas. Também clama por estudos futuros que mostrem as
anomalias, os dilemas éticos e morais que o uso da tecnologia pode gerar, bem como o uso
dos dados por parte das grandes corporações.
Dessa forma, a linha de pesquisa de Tecnologias e Redes Colaborativas é voltada para o
aprofundamento em aplicações práticas do uso da tecnologia na área de Gestão Social,
dando ênfase a redes colaborativas. Essas aplicações práticas são aderentes a quem busca
conhecimentos básicos em análise preditiva de dados e em extração de dados em redes
sociais, aplicados em linguagens de programação como R e Python. O conhecimento técnico
avançado é voltado para a formação de equipes multidisciplinares, cuja equipe é formada
por gestores sociais, com certo grau de familiaridade com estatística e programação.
O gestor social pode e deve possuir tais conhecimentos para resolver problemas ou propor
soluções na sua área de trabalho, inclusive envolvendo a utilização de tecnologias com maior
aplicabilidade na área. Ao mesmo tempo que o gestor social se abre para novas possibilidades
de criação e uso inovador de uma tecnologia social, ele também fortalece a participação
democrática na construção de programas sociais, abre caminhos para ressignificar ou
desenvolver um território e contribui para a área de Gestão Social na formação de redes
colaborativas.
NOTA
1 Submetido à RIGS em: out. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 169
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Resumo Este artigo propõe situar a temática das Habilidades Sociais (HSs) entre
os interesses de ensino, pesquisa e extensão do campo da Gestão Social
(GS). Mediante a discussão conceitual sobre o fenômeno das HSs e de suas
repercussões sobre o bem-estar e sobre o processo de desenvolvimento local,
busca-se estabelecer a pertinência e relevância do tema para estudantes,
gestores e pesquisadores da área. Apresenta-se e comenta-se os principais
desafios teóricos e metodológicos e propõe-se uma agenda de pesquisa,
ensino e extensão e possibilidades de atuação prática.
Abstract This article proposes to situate the theme of Social Skills (SS) among
the interests of teaching, research and extension in the field of Social
Management. Through conceptual discussion on the phenomenon of SS and
its repercussions on well-being and local development process, we seek to
establish the pertinence and relevance of the theme for students, managers
and researchers in the area. The main theoretical and methodological
challenges are presented and commented, and a research agenda and
possibilities for practical action are proposed.
INTRODUÇÃO
O tema das Habilidades Sociais (HSs), a despeito de sua consolidação no universo
acadêmico, ainda é cercado de desafios, em especial quanto a sua delimitação conceitual e
percursos metodológicos apropriados para sua aplicabilidade, notadamente no campo do
mundo do trabalho e das organizações. Apesar das controvérsias, Caballo (1996) apresenta
um conceito abrangente que contribui para um entendimento amplo do fenômeno. O autor
considera que:
O comportamento socialmente hábil é esse conjunto de comportamentos emit-
idos por um indivíduo em um contexto interpessoal que expressa sentimentos,
atitudes, desejos, opiniões ou direitos desse indivíduo de modo adequado à
situação, respeitando esses comportamentos nos demais, e que geralmente re-
solve os problemas imediatos da situação enquanto minimiza a probabilidade
de futuros problemas (CABALLO, 1996, p. 6).
Para este autor, uma resposta socialmente hábil é produto de condutas encadeadas que vão
desde receber corretamente os estímulos a passar por um processamento cognitivo flexível
que permita avaliar as possibilidades de resposta, selecionar a melhor, e emitir de forma
apropriada a opção escolhida. Vale destacar que a escolha das respostas consideradas mais
apropriadas varia de acordo com o contexto, o qual é mutável, exigindo, portanto, adaptações
contínuas. Dentre outros aspectos pertinentes, baseiam-se nas normas sociais vigentes
que nos impõem quais atitudes e comportamentos são considerados normais, aceitáveis e
esperados em uma situação social específica (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
Em consonância com essa ideia, Del Prette e Del Prette (2018) destacam o fato das HSs
serem comportamentos sociais valorizados em determinada cultura, os quais provavelmente
gerarão resultados favoráveis tanto para seu emissor quanto para o grupo ao qual pertence
e à comunidade de forma geral. Além disso, os autores destacam a importância do conceito
de competência social, definindo-o como focado na avaliação do desempenho e resultados
alcançados por um indivíduo ao executar uma tarefa interpessoal, levando em conta os
objetivos dessa pessoa, a situação e a cultura, bem como critérios instrumentais e éticos
(DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2018).
No que se refere especificamente ao mundo do trabalho, as HSs – competências sociais ou
a capacidade de interagir efetivamente com os outros – são cada vez mais importantes para
as organizações, à medida em que mais arranjos baseados em equipes são usados e mais
empregos orientados a serviços são implementados (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
No contexto de pós-pandemia do COVID-19, os desafios tendem a crescer e, possivelmente,
haverá uma drástica transformação nas formas de organização da economia e do próprio
trabalho. Assim, a ideia de adaptação a um contexto mutável exigirá ainda mais flexibilidade
cognitiva e comportamental para que o sujeito possa emitir as respostas desejáveis frente ao
desconhecido.
O mundo pós-pandemia trará, certamente, desafios econômicos e sociais para os territórios
e suas populações na medida em que as incertezas deterioram a capacidade de investimento
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 175
do setor privado e limitam o espaço de manobra do setor público. O quadro aponta para
o recrudescimento de problemas antigos e para o surgimento de novos. A superação ou a
mitigação dos aspectos mais graves desse cenário demandará formas não tradicionais de
mobilização e gestão dos recursos e dos esforços coletivos. A Gestão Social (GS) tem muito
a contribuir nesse sentido, já que se trata da gestão do desenvolvimento social que ocorre no
espaço de articulação do território e de suas interorganizações (FISCHER, 2002).
A GS é fundamentalmente uma gestão das relações. Desse modo, nosso propósito
aqui é apresentar os pontos de convergência entre esses dois campos de estudos e suas
possibilidades de aplicações no ensino, na pesquisa e na extensão comunitária. Nosso foco
é prioritariamente voltado para o papel da universidade no desenvolvimento de HS que
favoreçam as iniciativas de promoção de melhoria de bem-estar social, em especial, nos
âmbitos local e regional.
Para alcançar esses objetivos, além desta breve introdução, na próxima seção, iremos
conceituar e caracterizar as HSs, e, em seguida, iremos relacionar tais conceitos com o
campo da GS. Por fim, apontaremos para uma proposição de agenda para a pesquisa, o
ensino e extensão. A última seção destina-se às considerações finais.
situação específica. Além disso, para ser considerado hábil, o comportamento deve manter
ou melhorar os relacionamentos, o próprio respeito e a autoestima do emitente (CABALLO,
1996). Assim, de modo geral, também deve permitir ao indivíduo a oportunidade de
expressar sentimentos positivos e negativos em situações interpessoais sem perder o reforço
social (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
Segundo Caballo (1996), as HSs dividem-se em três tipos de elementos componentes:
cognitivo, fisiológico e comportamental. Entre os elementos cognitivos, o autor destaca o
conhecimento de qual seria a conduta hábil apropriada, o conhecimento de costumes sociais
próprios daquela cultura, o conhecimento dos diferentes sinais de resposta, a empatia e a
capacidade de solução de problemas. Além disso, as pessoas podem realizar transformações
cognitivas de estímulos, situações, ambiente etc., centrando-se em determinados aspectos,
de modo que tal categorização seletiva muda o impacto que o estímulo ou a situação exerce
sobre a conduta. Assim, esquemas mentais disfuncionais podem prejudicar a forma como o
sujeito interpreta o ambiente e como se comporta diante dele.
Os componentes fisiológicos foram os que, segundo Caballo (1996), receberam menor
atenção por parte das pesquisas sobre HS. Isso provavelmente se deve à dificuldade de
coletar dados referentes à pressão sanguínea, batimentos cardíacos, respostas eletrodérmicas,
entre outros em estudos mais relacionados às ciências sociais.
Já os componentes comportamentais, por seu turno, são os que receberam mais atenção e
têm maior número de estudos voltados para o seu entendimento. Podem ser avaliados a
partir de uma perspectiva molar, mais geral e mais dependente de interpretações subjetivas
(habilidades gerais como a defesa dos direitos ou a capacidade de atuar com eficácia em
entrevistas de emprego) ou molecular, mais objetiva e estática (contato visual, volume da
voz, postura, entre outros) (CABALLO, 1996). Nesse sentido, são também os que mais
facilmente podem ser avaliados como competentes do ponto de vista social.
Tanto os aspectos mais amplos (molares) quanto os mais específicos (moleculares) podem
ser alvo de THS nos níveis primário, secundário ou terciário, de acordo com os objetivos
que se pretende alcançar. Intervenções primárias são direcionadas a grupos ou pessoas
que precisam desenvolver HS como fator de proteção a riscos, ainda que não tenham
sido acometidas por problemas interpessoais. Intervenções secundárias são voltadas para
grupos ou pessoas já sob efeito de fatores de risco para problemas interpessoais, tais como
crianças agressivas criadas por pais com problemas, em práticas educativas parentais. Já as
intervenções terciárias têm por objetivo minimizar consequências nos casos em que já existe
um déficit acentuado em HS (MURTA, 2005).
A OMS (WHO, 1999) propõe programas de Ensino de Habilidades de Vida, os quais
consistem em desenvolver capacidades emocionais, sociais e cognitivas em algumas
áreas, dentre as quais as competências comunicacionais e interpessoais, assertividade,
autoconhecimento e empatia. Ainda segundo a OMS, o foco no desenvolvimento de
competências enquanto promoção de características positivas e adaptativas configura-se
preditor importante na saúde individual e coletiva (LOUREIRO, 2013).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 177
Portanto, nota-se que as HSs são comportamentos bastante ricos e promissores para o
ambiente de trabalho e social do sujeito, possibilitando que este obtenha um bom manejo,
assertividade e possibilidade de resolução de problemas com melhor êxito. Desta forma, vê-
se a importância dos estudantes e profissionais se engajarem em propostas e oportunidades
que possibilitem um maior preparo na aquisição de comportamentos habilidosos que
facilitem suas relações sociais e sua percepção de bem-estar subjetivo.
e vasto campo para investigações. Flórida (2011), por exemplo, indica que as HSs crescem
em importância à medida em que economias locais se tornam maiores e mais complexas.
Para ele, as HSs concentram-se e são uma marca das grandes cidades que prosperam por
conta disso. Essa é uma temática que merece ser ampliada, não só pela aparente escassez de
publicações, mas por conta do papel ativo que o gestor social possui no desenvolvimento
dos territórios nos quais atua. Ainda no âmbito da pesquisa, é preciso que se investigue as
conexões conceituais entre as HSs e a GS, uma vez que o estabelecimento de interseções
entre elas e outros campos de estudos é importante e necessário (DEL PRETTE; DEL
PRETTE, 2010).
Em relação ao ensino, a formação universitária deve levar em conta as competências analítica,
instrumental e social, mas, no geral, o tema das HSs não faz parte das disciplinas ofertadas,
a despeito da sua crescente valorização pelo mercado de trabalho e pelos estudantes. Tais
fontes de pressão, externa e interna, podem estimular a inserção dessa temática nos currículos
das universidades (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2003).
Essa parece ser a realidade nos cursos de GS, sendo, dessa forma, imprescindível que a
discussão teórica e a prática das HSs sejam incorporadas às disciplinas diversas nesse
campo, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Essa inserção pode ocorrer através da
criação de disciplinas específicas e na incorporação dessa temática em outras já existentes.
Disciplinas específicas podem, por exemplo, tratar de: história, conceito e tipologia das
HSs e sua importância para a GS; o contexto territorial e o desenvolvimento das HSs;
HSs requeridas ao gestor social em diferentes contextos de trabalho e interação; HSs
demandadas em organizações sociais e públicas; HSs e de comunicação para o gestor social;
HSs para negociações e mediação de conflitos em territórios. Disciplinas não específicas,
mas correlatas à temática, podem incorporá-las como um tópico, como seria o caso de uma
disciplina de comunicação que discutisse o conceito de HS e o relacionasse às discussões
sobre interação interpessoal.
Por outro lado, disciplinas nos cursos de GS não diretamente correlatas às HSs não precisam
discuti-las, mas podem exercitá-las e qualificá-las em situações diversas ao longo de um
semestre. Podem, por exemplo, avaliar as HSs dos alunos ao apresentarem um seminário
sobre GS e contemporaneidade ou ao longo da preparação de um projeto em grupo sobre
avaliação de políticas públicas. Tal estratégia permitiria que os alunos desenvolvessem suas
HSs ao longo de todo o curso de GS e, para tanto, seria necessário que disciplinas sobre HS
(ou que as discutam) fossem ministradas, preferencialmente como componentes no início
da graduação ou da pós-graduação, para prover os alicerces que permitiriam a sua avaliação
ao longo do curso, facilitando, inclusive, uma melhor adaptação à universidade (LIMA;
SOARES; SOUZA, 2019; SOARES; DEL PRETTE, 2015) do aluno de GS.
Dentro dessa ótica, seria necessário, também, que os professores dos cursos de GS fossem
capacitados, o que permitiria que acompanhassem o desenvolvimento das HSs em suas
disciplinas. A importância do desenvolvimento dos docentes nessa temática é demonstrada
por Del Prette et al. (1998) ao examinarem os efeitos de uma intervenção sobre professores
não universitários. Já indicativos de quais temáticas seriam relevantes na capacitação dos
180 Habilidades Sociais e Gestão Social
professores podem ser encontrados em Vieira-Santos, Del Prette e Del Prette (2018). Por
fim, vale ressaltar que tais propostas devem contemplar questões conceituais e práticas, de
modo similar ao conduzido por Del Prette e Del Prette (2003), para que se coadunem com
os princípios críticos e de intervenção que são típicos da GS.
As atividades de extensão podem assumir as modalidades projeto, curso, evento, trabalho
de campo, prestação de serviço e publicação e outros produtos acadêmicos (UFBA, 2014).
Existe, portanto, uma vasta gama de possibilidades de conexão entre as HSs e a GS. Pode-
se, por exemplo, incorporar elementos das HSs em projetos de desenvolvimento territorial,
publicações de manuais diversos voltados ao campo social ou desenhos de políticas públicas
voltadas para a ampliação desses repertórios nos territórios. No entanto, a maior interseção
parece estar presente na formulação de treinamentos para desenvolver as HSs dos gestores
sociais.
Para Del Prette e Del Prette (2018), um programa de treinamento de habilidades sociais
orientado para a competência social deve englobar atividades planejadas para estruturar
a sua aprendizagem e incluir dentre os seus objetivos: o aprendizado de novas HSs; a
ampliação das que já existem, mas não estão suficientemente desenvolvidas; o aumento
de sua variabilidade; a redução de comportamentos que sejam com elas concorrentes; o
refinamento do discriminar tarefas interpessoais no ambiente social; o pautar-se por valores
de convivência centrados nos direitos humanos; e, finalmente, o desenvolvimento da
automonitoria e do autoconhecimento.
Baseado nesses apontamentos de Del Prette e Del Prette (2018), pode-se afirmar que
os treinamentos em HS focados em gestores sociais (ressaltando que isso vale também
para alunos e professores de GS) devem, primeiro, levar em conta o desenvolvimento de
suas habilidades (e competências) por meio da sua aquisição, ampliação e aumento de
variabilidades, bem como da mudança ou minimização de certos comportamentos que as
impactam. Além disso, o desenvolvimento de valores de convivência pautados pelo respeito
aos direitos humanos coaduna-se a uma tradição humanista da GS e, nesse sentido, esse é
um elemento relevante ao se considerar capacitações em HS focadas neste grupo.
Sob outro ângulo, as capacitações de gestores sociais podem ter um caráter mais geral,
abordando componentes comportamentais, cognitivos e fisiológicos (CABALLO, 1996) ou
até mesmo focar, de maneira separada, em aspectos particulares como a empatia, a escuta e o
feedback, sem, no entanto, perder de vista o seu caráter humanista. Nesse ponto, deve-se ter
em conta que o desenvolvimento de HS de gestores sociais via extensão universitária, para
além do aprimoramento individual, deve considerar, também, o papel multiplicador que será
desempenhado por eles na ampliação das HSs do território. Isso corrobora os argumentos
de Del Prette e Del Prette (2018) quando afirmam que os critérios de competência social
incluem uma dimensão de resultado mais instrumental, focado nos interesses individuais e
outra ética que atende ao interesse dos grupos sociais. Tais treinamentos podem ter como
base manuais tais como o elaborado por Del Prette e Del Prette (2018).
A Figura 1 sintetiza as propostas relativas às aplicações das interseções entre HS e GS nos
campos da pesquisa, ensino e extensão universitária.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou apresentar uma proposta de agenda acadêmica sobre as confluências
dos temas de HS e GS. Ambos os temas são e foram desenvolvidos em alicerces distintos,
mas que podem se complementar. Para apresentar esta proposta, a base teórica das HSs foi
apresentada, com foco na sinergia entre os dois temas e nas oportunidades que se abrem
a partir daí. Um dos principais pontos de convergência reside no caráter multidisciplinar,
necessitando continuamente de contribuições de diversas áreas de estudo para que as
interseções entre as HSs e a GS se desenvolvam enquanto ramificação dos dois campos de
estudo, contribuindo para o desenvolvimento teórico-conceitual de ambos.
Nesta reflexão sobre as HSs e a GS, cabe afirmar que, a partir da aproximação entre essas duas
temáticas, é possível se desenvolver um campo de investigação e de oferta de capacitação
amplo que abranja estudantes e gestores sociais. Tal proposta possibilita um maior foco na
interação entre HS, GS e Território com vistas a seu desenvolvimento econômico e social.
Nesse sentido, o trabalho avança também em uma perspectiva prática, já que discute a
182 Habilidades Sociais e Gestão Social
NOTA
1 Submetido à RIGS em: jul. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
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Fábio Almeida PhD in Media Studies pela Universidade do Texas em Austin, mestre em
Ferreira Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia, especialista em
Gestão Empresarial pela FGV/ICEF e bacharel em Administração pela
UFBA. Atualmente, é professor da Escola de Administração da UFBA e
professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social.
Tem interesse nas áreas de criatividade, indústrias e territórios criativos e
comunicação.
Karine Freitas Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Souza Paulo -PUC/SP. Mestre em Análise Regional pela Universidade Salvador
- Unifacs. Especialista em Arte Integrativa pela Universidade Anhembi-
Morumbi. Possui pós-graduaçōes em Administração de Recursos
Humanos e Gestão de Eventos. Graduada em Secretariado Executivo pela
Universidade Federal da Bahia. Docente no ensino superior desde 1997.
Atual Chefe de Departamento da Escola de Administração da UFBA.
Leciona na Universidade Federal da Bahia desde 2007 e também atua no
mestrado em Segurança Pública, Justiça e Cidadania desde 2017.
Abstract The purpose of this essay-based article is, in a photographic way, to understand
how, in the first moments of the established pandemic, the processes of
action and social mobilization of religious leaders linked to African-based
traditions took place. What speeches and social practices started to be
incorporated into the religious routines of these traditional communities is
our focus of attention. As an empirical case, we will report on the experience
of formulating and managing the @ cura.daterra campaign on instagram and
whatsapp groups, their scope, limitations and narrative potential.
INTRODUÇÃO
As religiões são expressões da sociabilidade humana e como tal, emitem discursos capazes de
alimentar as motivações dos seus fieis, seguidores e simpatizantes. Se, em tempos normais, as
religiões já cumprem a função social de nortear a espiritualidade e a conduta dos indivíduos,
em tempos de agonia, esse papel amplifica-se de tal modo que elas terminam por cumprir a
função de verdadeiros artefatos sociais capazes de auxiliar coletividades nos seus processos
de tomada de decisão e enfrentamento dos desafios postos.
Seja através do enfrentamento, seja através da resignação, a força e o alcance dos dogmas e
dos discursos de dada religião guardam em si o poder de mobilização social com o potencial
de animar ações coletivas em perspectiva multiterritorial e multiescalar. Em sendo assim,
não é exagerado dizer que as religiões praticam gestão social em perspectiva planetária,
mobilizando atores em rede, através de práticas articuladas que passam por distintos âmbitos,
tais como estimas, afetos, movimentos, sociabilidades, economicidades, políticas e poder.
As religiões com os seus símbolos e ritualísticas, para além da expressão da fé humana,
guardam em si performances que mobilizam, emocionam e constroem arquétipos a serem
seguidos. Nestes termos, as religiões e suas estratégias de gestão social não podem ser
negligenciadas quando nos está posto o desafio de compreender como determinados grupos
identitários enfrentam determinadas situações postas à sociedade, de modo geral.
As narrativas religiosas são, assim, expressões de dadas racionalidades que se, em tempos
normais, já configuram um campo em disputa, em tempos de exceção, essas disputas são mais
amplificadas e mais audíveis aos olhos do observador social. Como não se emocionar com
o discurso do Papa Francisco diante de uma praça vazia, numa madrugada fria, chorando
os mortos da COVID-19 e evocando católicos e não católicos para práticas, reflexões e
o exercício da empatia? Como não se indignar com lideranças de distintas religiões que,
mesmo em meio ao clamor científico para o isolamento social, ainda assim, insistiam em
incentivar seus fiéis a furar o dever de quarentena para acompanhar os atos religiosos?
Como não se comover com as mobilizações religiosas em torno da solidariedade em prol
dos mais necessitados nesse momento em que, para além da pandemia, a fome também se
fez algoz? As religiões são assim. Mobilizam paixões, comovem corações e inspiram atores
sociais em movimento.
O objetivo do presente artigo de natureza ensaística é, de modo fotográfico, compreender
como se deram, nos primeiros momentos da pandemia instaurada, os processos de ação
e mobilização social das lideranças religiosas ligadas às tradições de matriz africana. Que
discursos e que praticas sociais passaram a ser incorporadas nas rotinas religiosas dessas
comunidades tradicionais é o nosso foco de atenção. Como caso empírico, traremos o relato
da experiência de formulação e gestão da campanha @cura.daterra no instagram e grupos
de whatsapp, seus alcances, limitações e potencial narrativo.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 189
espaço de casa passou a ser percebido como uma extensão dos terreiros, fazendo com que
essa territorialidade criasse novos elãs, novos sentidos e novas formas de representação.
Outro elemento muito presente que passou a ser estimulado através das redes sociais foi
o exercício da solidariedade como elemento de distribuição e redistribuição do Axé. Essa
que sempre foi uma prática comum aos terreiros, em tempos pandêmicos, foi (e ainda
tem sido) intensificada por muitas casas de Axé. Campanhas de arrecadação e doação de
alimentos, seja para prover membros da própria comunidade mais desfavorecida, seja para
compartilhar com comunidades do entorno, estabeleceram-se como uma dinâmica do
contexto pandêmico, sobretudo, quando se configurou a crise humanitária pelo fechamento
dos comércios.
Outra prática humanitária muito comum em alguns terreiros foi a utilização da expertise
em corte e costura em prol da confecção de máscaras para abastecimento desse equipamento
de segurança fundamental nas cidades pandêmicas. A Casa de Oxumarê, sob a liderança de
Baba Pecê de Oxumarê, e o Terreiro de Oyá, hoje liderado pela jovem Ya Nivia, constituem-
se em dois exemplos de casas que montaram uma verdadeira estratégia de produção de
máscaras, a partir da alocação de máquinas e distribuição de panos para que membros
das suas respectivas comunidades de santo confeccionassem máscaras nas suas próprias
residências, máscaras essas que foram doadas para hospitais e comunidades carentes.
À medida em que os meses foram passando e o número de mortes aumentando, as
comunidades de terreiro, assim como toda a sociedade brasileira, intensificou o uso de
ferramentas digitais para se ampliar o congraçamento entre religiosos. Esse foi o momento
da realização de muitas lives, webinários com pais e mães de santo, momentos esses que
criaram possibilidades de escutas, compartilhamentos e assistência espiritual para seguidores
e simpatizantes do Axé.
Se, por um lado, esse congraçamento virtual pôde ser estabelecido com a transposição das
barreiras tecnológicas, por outro, no caso dos lutos de religiosos ocorridos nesse período
marcado pela COVID-19, as comunidades de terreiro precisaram, a duras penas, aprender
a readequar e ressignificar suas práticas religiosas do morrer e do luto. Esse é um capítulo à
parte, o qual passa por dogmas, ritos e costumes construídos pela memória coletiva do povo
de santo.
À medida em que a campanha foi tomando as redes sociais, religiosos de outras casas,
espalhados por distintas regiões do país, passaram a solicitar participação nesse processo
de construção política. Nestes termos, os cards, vídeos e mini-podcasts foram essenciais para
viralizar essa campanha, gerando, assim, posicionamentos e, sobretudo, presença massiva do
povo de santo nas redes para além da mobilização positiva em prol da cura da terra.
De um modo geral, as mensagens emitidas pelos religiosos caminhavam muito no sentido
de repensarmos os nossos modelos de vida e de desenvolvimento, dando à terra e às forças da
natureza o devido valor que fora negligenciado pela sociedade no século XX. Nestes termos,
a recomendação de recato, recolhimento e entendimento de que esse era um momento de
transformação da terra, algo que deveria ser respeitado por todos, trazia o elemento reflexivo
como portador de um momento de silêncio necessário para a cura do planeta. Não sem
razão, os cânticos destinados ao velho Omolu, recomendam o silêncio. “Atotô Obaluaê!” –
Seu significado é: “Silêncio para o grande Rei da Terra!”.
Todavia, um processo de construção dessa natureza também contou com desgastes e
esgotamentos... Nunca é muito fácil unificar entendimentos, discursos e estratégias,
sobretudo, quando as decisões são coletivas e realizadas no formato virtual, através de uma
organização reticular. As comunidades tradicionais de terreiros, ao contrário do catolicismo
e das religiões evangélicas, no âmbito dos posicionamentos públicos de cada terreiro,
respondem a partir de lógicas de independência, não sendo centralizado o poder decisório
nas mãos de uma liderança suprema, como é o caso do papa, ou do bispo da igreja tal.
Ademais, em um processo de construção coletiva, a divisão das responsabilidades, bem
como dos trabalhos em torno da manutenção das redes, terminou por dificultar a produção
e dinamização dos conteúdos. Para algumas das lideranças, muito mais poderia ser realizado
no que concerne à produção de conteúdos e ressignificação da campanha. Todavia, o desgaste
acumulado de outras experiências pretéritas, a natureza voluntária dos trabalhos, bem como
o próprio efeito da pandemia na vida das pessoas, terminaram por dificultar a continuidade
da campanha, ainda que o seu legado tenha sido muito positivo e agregador, sobretudo, em
se tratando de um momento de calamidade pública.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os tantos discursos que conformaram a pandemia, o discurso religioso foi e tem
sido conformador de narrativas, estimas, lealdades e resiliências, algo que se expressa
em performances e mobilizações dos atores em movimento. No caso das religiões de
matriz africana, como visto ao longo deste artigo, a experiência da pandemia também foi
mobilizadora de ação pública, criando assim, novos repertórios e práticas de interação e
gestão social mediada pelas tecnologias.
Dessas considerações realizadas aqui, algumas reflexões nos abrem verdadeiras agendas de
pesquisa que podem contribuir para pensarmos a sociedade pandêmica e pós-pandêmica,
no que concerne às suas conformações religiosas, bem como, o modo como as religiões
dialogam com seus fiéis e simpatizantes. Qual o papel que exercem os discursos religiosos
194 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia
nas escolhas públicas da população brasileira em torno da pandemia é uma questão que nos
parece ser bastante pertinente em tempos de negação das ciências e ascensão de evangélicos
declaradamente conservadores na política.
No que concerne às comunidades tradicionais de terreiros, essas reflexões alimentam uma
ampla agenda de pesquisa que nos apresenta um Brasil profundo que historicamente
negligenciado pelo Estado brasileiro, mas que compõe o mosaico que é a sociedade brasileira.
Nesse sentido, o olhar holístico das religiões de matriz africana para o mundo pandêmico e
as possibilidades de vida para além da pandemia convidam-nos a repensar modelos de vida
contemporâneos, bem como o modo como o homem tem se relacionado com o planeta,
nossa grande morada.
Ademais, o modo de ação política do povo de santo abre-nos margem a pensar como tem
se dado as relações entre estados, comunidades tradicionais de terreiros e a sociedade de
um modo geral. Essa é uma reflexão que, para os estudiosos do campo da gestão social,
nutre uma verdadeira agenda de dilemas públicos no que concerne às nossas contradições,
ambiguidades e paradoxos emulados no tempo. Fazer-se ouvir em tempos de uma pandemia
que, dia após dia, amplifica as nossas gramáticas da desigualdade é, sobretudo, a expressão de
uma demanda por identidade e reconhecimento.
NOTAS
1 Submetido à RIGS em: out. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Família de santo é o modo como se denomina a família religiosa não consanguínea que se
constrói nos terreiros através das solidariedades e afetividades em torno dos Orixás, Inquices,
Voduns e encantados. Nestes termos, o “Santo” é o elemento aglutinador da família religiosa.
3 Para além dos terreiros, outras irmandades de cor institucionalizadas ou não foram decisivas
para a sobrevivência do povo negro. Estamos aqui nos referindo às irmandades laicas e religio-
sas, bem como, os remanescentes de quilombo e demais comunidades tradicionais marcada-
mente negros.
4 Esse é o mote da disciplina de Extensão Universitária que criamos em 2017 no Programa
ACCS da Universidade Federal da Bahia e já caminha para a sua quinta edição, qual seja: Lu-
gares de memória, poder e redes de solidariedade do povo negro da Bahia: a Gestão do Futuro.
5 Essa divindade, comum às principais nações de matriz africana, responde por diferentes nomes,
a depender da nação que se fale: Omolu, Obaluayê, Xapanã, Kavungo, o velho, dentre outros.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de Guerra. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AMADO, Jorge. Mar Morto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a cidade: a forma social negro brasileira. Petrópolis: Editora
Vozes, 1988.
Finalmente cheguei no final de fevereiro deste ano em Los Angeles, para atuar como
Pesquisadora Visitante no Instituto Latino Americano (LAI) da Universidade da California
(UCLA). Quinze dias depois, por conta do COVID-19, estávamos em casa (eu, esposo –
também pesquisador visitante na UCLA – e dois filhos, um de 7 e outro de 4 anos), devido
à recomendação de stay at home.
Assim, como toda moeda sempre tem dois lados (ouvimos muito isto por aqui), a minha
realidade também tinha. O lado ruim de estar em casa era a ausência do convívio com os
colegas do LAI e da presença física e cotidiana no Campus da UCLA. O lado bom passou
a ser a entrada do meu objeto de pesquisa, literalmente, dentro da minha casa. As aulas
dos meus filhos, as reuniões de pais promovidas pela escola, as conferências da UCLA, as
reuniões da UFBA e todos os outros eventos acadêmicos passaram a ser realizados através
da Internet e, então, pude observar variadas práticas direta ou indiretamente associadas ao
processo de ensinoaprendizagem (aqui escrito junto para reforçar a relação inseparável entre
essas duas ações) ocorrendo em ambiente online.
Observei que as dificuldades e desafios impostos, para professores, estudantes (e suas
famílias) e funcionários, pela necessidade da realização de atividades acadêmicas de
forma não presencial, eram as mesmas encontradas no Brasil: a) conhecimento, acesso e
disponibilidade de recursos computacionais; b) formação e uso da linguagem apropriada ao
trabalho com esses dispositivos tecnológicos; c) realização das atividades acadêmicas dentro
do ambiente doméstico; e d) motivação e engajamento de todos os envolvidos, com vistas a
fazer as coisas acontecerem.
Dentre esses desafios, em menos de quatro meses, o governo do estado de Los Angeles
apresentou alternativas para disponibilizar acesso à internet e distribuir equipamentos
àqueles que precisavam. Em paralelo, passaram a buscar, testar e investir esforços em
integração de softwares educacionais e sistemas de gestão de aprendizagem. Elaboraram
198 Toda Moeda Tem Dois Lados
normas e políticas que regulassem aspectos relacionados aos direitos autorais, privacidade e
segurança da informação, com base nos princípios da cidadania digital. Realizaram diversos
eventos, por webconferência, buscando capacitar tecnicamente os envolvidos (incluindo
famílias e estudantes), compartilhar, exaustivamente, informações e tentar motivá-los a
participar das ações que seriam desenvolvidas no próximo ano letivo (iniciado em agosto
de 2020).
Em relação aos outros desafios, a meu ver, uma das questões mais críticas, em Los Angeles e
no Brasil, ainda é como ensinar em ambiente não presencial e construir vínculos fortes com
os alunos, implicando-os nos seus processos de aprendizagem. Em ações não presenciais, isso
se torna ainda mais difícil, pois estimular as interações e a formação de redes colaborativas
quando não temos o contato físico presencial é ainda mais desafiador. Realmente, não é fácil,
mas, já estávamos vivendo esse desafio dentro da sala de aula presencial, mesmo quando
tentávamos incorporar as tecnologias digitais como forma de inovar em nossas práticas
de ensino e fortalecer vínculos interativos, pois as relações constituídas entre professor e
estudantes, muitas vezes, já eram frágeis.
Como toda moeda tem dois lados, a forma atraente como as tecnologias se apresenta para
nossos estudantes já vinha distraindo a atenção e reduzindo o seu interesse, quando estes
eram convidados a aprender em ambientes formais de ensino. Informações, temos muitas na
web: parece que tudo que queremos saber já está lá. Por isso, gosto de perguntar aos colegas,
quando estou realizando alguma ação de formação de professor: será que tem algo que você
dirá a seu aluno na próxima aula que já não esteja na web?
A questão não é o que você diz, mas como você diz! Daí, nasce o desafio da mediação
da aprendizagem do qual tanto falamos quando defendemos a Educação Online (EOL),
constituída a partir dos princípios da autoria, compartilhamento, conectividade e colaboração.
É a capacidade de simplificar o difícil; personalizar a aprendizagem, considerado que cada
estudante é único e, por isso, tem demandas e interesses diferentes; instigar curiosidades; e
disparar processos criativos. É o “fazer com” o estudante que é fundamental, seja no ambiente
presencial ou não presencial.
No final das contas, a meu ver, o lado ruim da moeda é a dificuldade em incorporar ao
ambiente doméstico a realização das atividades acadêmicas, quando “todos” estão em casa,
realizando outras atividades e compartilhando os mesmos espaços; e a ausência do contato
físico presencial, o qual representa um forte dispositivo para a constituição de vínculos mais
estreitos.
E o lado bom? A oportunidade que nos foi apresentada para repensar como ensinamos e
como aprendemos, seja no presencial ou não, incorporando os dispositivos tecnológicos que
temos à nossa disposição ou, pelo menos, as linguagens adotadas por esses para atualizar as
formas criativas e reflexivas que podemos adotar para construirmos novos conhecimentos,
sem perder de vista que o centro da questão está em como fazemos. E isto é o que diferencia
o professor de Los Angeles, do Brasil ou de onde quer que seja.
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NOTA
1 Submetido à RIGS em: dez. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.