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v.10 n.1 jan./abr.

2021
ISSN: 2317-2428
www.rigs.ufba.br
Publicação acadêmica, quadrimestral. Publica 3 tipos de documentos:
textos, fotos e vídeos. Estimula 6 tipos de contribuições: tecnológi-
ca, teórica, vivencial, indicativa, fotográfica e audiovisual. Explora a
gestão social de forma ampla ao situá-la na contemporaneidade, em
territórios pluridisciplinares de prática e na investigação acadêmica.
Difunde estudos pautados pela interdisciplinaridade.

v.10 n.1 jan./abr. 2021 ISSN: 2317-2428


www.rigs.ufba.br
Universidade Federal da Bahia
Reitor: Prof. Dr. João Carlos Salles Pires da Silva

Escola de Admininistração/ UFBA


Diretor: Prof. Dr. João Martins Tude

Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social - CIAGS


Coordenadora: Profª. Drª. Tânia Fischer

Editor chefe Gestor Executivo


Grace Kelly Marques Rodrigues Kleber Moitinho Gomes
(CIAGS/EA/UFBA) revistarigs@ciags.org.br

Editoras de Seção Revisão da Língua Portuguesa


e Normalização
Luciana Rodas Vera
Kleber Moitinho Gomes
(UFBA)
Luiza Reis Teixeira Gestão da Comunicação
(UFBA) Rodrigo Maurício Freire Soares
(CIAGS/EA/UFBA)
Editores Associados Gestão do Design e Diagramação
Eduardo Paes Barreto Davel Márdel Santos
(CIAGS/EA/UFBA) (CIAGS/EA/UFBA)
Fábio Bittencourt Meira
(UFRGS) Gestão Financeira
Cristina Araújo
Luiza Reis Teixeira (CIAGS/EA/UFBA)
(UFBA)

Paula Chies Schommer Foto da Capa


(UDESC) Kleber Moitinho

Revista interdisciplinar de gestão social / Universidade Federal da


Bahia, Escola de Administração, Centro Interdisciplinar de
Desenvolvimento e Gestão Social. – Vol.10, n. 1 (jan./abr. 2021)-
. - Salvador : EAUFBA, 2014 - .
v.

Quadrimestral.
Descrição baseada em: Vol. 1, n.1 (jan./ abr. 2012).

ISSN 2317-2428

1. Administração local - Periódicos. 2. Desenvolvimento social -


Periódicos. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração.
CDD 352
CONSELHO EDITORIAL

Alexandre de Pádua Carrieri João Martins Tude


Universidade Federal de Minas Universidade Federal da Bahia,
Gerais, UFMG, Brasil Brasil

Alketa Peci José Antonio Gomes de Pinho


Fundação Getúlio Vargas, EBAPE, Universidade Federal da Bahia,
Rio de Janeiro, Brasil Brasil

Ana Silvia Rocha Ipiranga Josiane Silva de Oliveira


Universidade Estadual do Ceará Universidade Estadual de
(UECE), Brasil Maringá, Brasil

Anderson de Souza Sant’Anna Letícia Dias Fantinel


Fundação Dom Cabral, Brasil Universidade Federal do Espírito
Santo, Brasil
Andrea Leite Rodrigues
Escola de Artes, Ciências e Luciano Junqueira
Humanidades, Universidade de Pontifícia Universidade Católica
São Paulo, Brasil de São Paulo, Brasil

Antonia de Lourdes Colbari Luiz Alex Silva Saraiva


Universidade Federal do Espírito Universidade Federal de Minas
Santo, Brasil Gerais, Brasil

Antonio Strati Marcelo de Souza Bispo


Facoltà di Sociologia, Università Universidade Federal da Paraíba,
di Trento, Itália Brasil

Ariádne Scalfoni Rigo Maria Amélia Jundurian Corá


Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Alagoas,
Brasil Brasil

Cintia Rodrigues de O. Medeiros Maria Ester de Freitas, Fundação


Universidade Federal de Getúlio Vargas - SP/EAESP, Brasil
Uberlândia, Brasil
Miguel Pina e Cunha
Eda Castro Lucas de Souza Universidade Nova de Lisboa,
Universidade de Brasília, Brasil Portugal

Fabio Bittencourt Meira Paula Chies Schommer


Universidade Federal do Rio Universidade do Estado de Santa
Grande do Sul, Brasil Catarina, Brasil

Fabio Vizeu Ferreira Pedro Bendassolli


Universidade Positivo, Brasil Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Brasil
Fernando Gomes de Paiva Júnior
Universidade Federal de Silvia Gherardi
Pernambuco, Brasil Facoltà di Sociologia, Università
degli Studi di Trento, Itália
Jeová Torres Silva Júnior
Universidade Federal do Cariri, Tânia Maria Diederichs Fischer
Brasil Universidade Federal da Bahia,
Brasil
sumário
11 Editoriais

15 Foto da Capa
Contribuição fotográfica
Kleber Moitinho


17 The Effect of Volunteer Work in Hospitals: In a Brazilian University
Hospital
June Alison Westarb Cruz, Kleberson Massaro Rodrigues, Ronald Rodrigues Vale,
Suelen Cequinel Moraes, Heitor Takashi Kato e Alex Sandro Quadros Weymer
Contribuição Vivencial
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.33503

31 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração


Rodrigo Guimarães Motta, Neusa Maria Bastos Fernandes dos Santos,
Maria Cristina Sanches Amorim e Jorge Vieira da Silva
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.34138

SEÇÃO TEMÁTICA

49 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa


Catia Eli Gemelli
Contribuição Fotográfica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.38771

63 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual: o que nos diz o


Congresso 2020 – Virtual da UFBA?
Tânia Moura Benevides e Lídia Boaventura Pimenta
Contribuição Vivencial
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39139
71 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico: os
desdobramentos de um desamparo público agravado pela Covid-19
Rosana de Freitas Boullosa, Janaína Lopes Pereira Peres, Lara Silva Laranja
e Luciana Guedes da Silva
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39296

87 Administração Política do Espaço Geográfico: análise da capacidade


de gestão da pandemia da COVID-19
Elizabeth Matos Ribeiro, Emerson de Sousa Silva, Reginaldo Souza Santos
e Mônica Matos Ribeiro
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42609

107 Estratégia de Resiliência e Território: atuação de Salvador no


enfrentamento a pandemias
Andréa Cardoso Ventura, Tássio Santos Silva e Clarice Araújo Carvalho
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39174

123 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia:


descortinando impactos das dissertações profissionais no PDGS
Claudiani Waiandt, Solange Oliveira Leite, Iago Itã de Almeida Pereira
e Mayra Ferreira Mezzomo
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39154

145 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade para o


Desenvolvimento de Territórios?
Mouana do Socorro Sioufi Fonseca, Rodrigo Ladeira e Jorge Emanuel Reis Cajazeira
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.38597

161 Tecnologias e Sociedade: o papel dos indivíduos na criação de fatos


e artefatos
Fernando Antônio de Melo Pereira Lhamas e Rodrigo Muller
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39323

173 Habilidades Sociais e Gestão Social: possibilidades nas áreas de


pesquisa, ensino e extensão
Daniela Campos Bahia Moscon, Ernani Coelho Neto, Fábio Almeida Ferreira,
Fernando Antônio de Melo Pereira Lhamas, Karine Freitas Souza e Guilherme Marback Neto
Contribuição Teórica
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.38092
187 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia: notícias das
religiões de matriz africana e os seus discursos em torno da @cura.
da terra
André Luis Nascimento e Desirée Ramos Tozi
Contribuição Vivencial
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42145

197 Toda Moeda Tem Dois Lados: ensinoaprendizagem em tempos de


COVID19
Maria Carolina de Souza Sampaio
Contribuição Vivencial
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42896



Foto: Kleber Moitinho
editoriais
Como ocorre tradicionalmente, a RIGS apresenta aos seus leitores contribuições variadas,
sejam teóricas, fotográficas, vivenciais, dentre outras que tratem de questões relevantes ao
campo da Gestão Social. E no presente número, a RIGS traz uma seção temática especial,
dedicada ao contexto da pandemia global, COVID-19. São experiências, relatos e reflexões
totalmente voltados a esse cenário.
Anteriores à seção temática, há duas contribuições teóricas. A primeira, aborda a dinâmica
e efeitos do trabalho voluntário em um hospital universitário brasileiro, sob a hipótese de
que tal trabalho proporcionaria maior eficiência na assistência hospitalar no âmbito do
SUS (Sistema Único de Saúde). A segunda, discute a potencialidade da retórica como
instrumento útil a graduandos dos cursos de Administração no acesso e compreensão de
teorias relativas à Ciência Social Aplicada à referida área.
Quanto à seção temática especial, partiu-se da compreensão de como o ano de 2020
impactou sobremaneira a vida social, alterando as formas com que interações sociais são
estabelecidas e, consequentemente, o olhar analítico de pesquisadores sobre os problemas
sociais. A vivência de uma pandemia em um mundo globalizado com fronteiras cada vez
mais fluidas evidenciou a fragilidade de Estados na implementação de políticas públicas
para mitigar os efeitos da pandemia na sociedade. As desigualdades sociais também se
mostraram como um fator negativo para a manutenção de vidas. Ou seja, países pobres que
não implementaram medidas de contenção do vírus tiveram mais perda populacional.
Desse modo, a seção especial foi dedicada particularmente aos cenários e possiblidades, a
partir do contexto de crise sanitária provocada pela disseminação da COVID-19 e seus
desdobramentos vivenciados em dimensão global. Circunscrita aos integrantes do CIAGS
que participaram do I Congresso UFBA Virtual no ano de 2020, contou com a participação
de professores e estudantes que voltaram suas reflexões para a gestão social dos territórios
nos tempos de pandemia.
Com o tema “Novos sentidos e significados da Gestão Social e os desafios do Desenvolvimento
Territorial”, são apresentadas, na referida seção, diferentes contribuições, tais como uma
fotográfica que retrata o vazio das ruas de Lisboa durante o período de lockdown. Já uma
contribuição vivencial apresenta e contextualiza o momento vivenciado pela UFBA e sua
reação à pandemia. Na sequência, apresentam-se duas contribuições teóricas com reflexões
sobre gestão pública e pandemia. Uma delas, problematiza a despolitização da gestão de
políticas públicas e como a gestão social pode influenciar um projeto de desenvolvimento
democrático e participativo; a seguinte trata de conexões interdisciplinares entre os conceitos
de Administração Política e Geografia Política para analisar os impactos impostos pela
pandemia.
12 Memórias de Operários e Gestores

Outro artigo faz uma análise sobre a estratégia de resiliência da cidade de Salvador e sua
adaptação à pandemia. Adiante, outro trabalho apresenta resultados de pesquisas científicas
de estudantes no âmbito do Mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social do Programa
de Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA para a resolução de problemas na sociedade
pós-pandêmica.
A responsabilidade social corporativa é o foco de outro trabalho desta seção e reflete
sobre como empresas orientam seus investimentos sociais e de que maneira as populações
impactadas pelas atividades operacionais são consideradas na tomada de decisão para a
aplicação de tais investimentos. Na sequência, outro artigo aborda uma proposta de
integração da temática da ação do indivíduo sobre a tecnologia no campo da gestão social.
Para fechar as contribuições teóricas, tem-se um trabalho que se refere à temática das
habilidades sociais entre os interesses de ensino, pesquisa e extensão do campo da Gestão
Social. A seção temática é, então, finalizada com duas contribuições vivenciais. A primeira,
sobre processos de ação e mobilização social das lideranças religiosas ligadas às tradições de
matriz africana, a segunda, a respeito da experiência de se viver a pandemia e o distanciamento
social em um país estrangeiro.
E assim, diante de um conjunto robusto de contribuições que compõem o presente número,
desejamos a todos uma boa leitura e as melhores reflexões.

LUIZA TEIXEIRA
LUCIANA ALVES RODAS VERA
Editoras da Seção Temática

GRACE RODRIGUES
Editora-chefe
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 13

“Nesta cidade, a consciência é um perigo iminente”. Alberto Luiz Baraúna, poeta baiano
precocemente falecido, que foi aluno da UFBA, teve versos recolhidos por Dalila Machado
e alertava para que “todos se retirem de suas portas”, ou seja, saiam de suas “zonas de
conforto”.
Este número da RIGS cumpre uma missão similar de alerta em vários sentidos, nos artigos,
depoimentos e imagens, sendo, no seu conjunto, uma metáfora dos tempos de dispersão e
encontros, quando o passado e o futuro são repensados no individual e no coletivo. Vivemos
um momento único, em que tudo é possível, da morte à vida, como sempre foi, mas não
com tanta “consciência do perigo iminente”. O contexto pandêmico é uma convergência de
todas as carências e potenciais que mobilizam energias e exigem novas construções sociais
das políticas, das intervenções, do agir.
Os artigos exploram os espaços em que ocorrem estas construções e reconstruções, como
a urbe, os hospitais e as empresas, que tentam ressignificar o investimento social. Este
conjunto de contribuições reflexivas e propositivas trazem a GESTÃO SOCIAL na sua
plenitude, desde a GESTÃO de SI até a GESTÃO DOS OUTROS, em coletivos de
múltiplas escalas, em ambiências próximas e distantes. Nós, indivíduos, criamos fatos e
artefatos, pois as habilidades comunicacionais estão cada vez mais demandadas, mediadas
ou não pela tecnologia, que também reduz a bipolaridade do ensino e da aprendizagem.
O distanciamento necessário induz ao inevitável encontro presencial de cada um consigo
mesmo, a novas formas de aproximação com os círculos familiares e sociais de qualquer
natureza e amplitude.
Este número especial é um atestado de que a RIGS tem a GESTÃO SOCIAL como
um tema, que só pode tratar da interdisciplinaridade. Veículo institucional do primeiro
programa de formação de gestores sociais para o desenvolvimento no Brasil, a RIGS
incorpora também resultados de trabalhos dos alunos e dos impactos dos mesmos, já que
o PDGS assume ser um programa de formação profissional. O PDGS, integrante do
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE GESTÃO SOCIAL (CIAGS), é um instrumento
multidimensional de promoção da “consciência iminente” da necessária multipolaridade.
Agradecimentos são devidos à editoria, às autoras e autores, aos responsáveis pelo suporte
técnico e aos que terão acesso a esta construção coletiva. Da dor, surgem as aprendizagens.
É o tempo de nos retirarmos das portas, preparando os encontros em espaços tradicionais
como os das ruas e praças que serão ressignificados, enquanto aprendemos, cada vez mais, a
viver nos espaços remotos que se tornam cada vez mais próximos.

TÂNIA MARIA DIEDERICHS FISCHER


Coordenadora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social
Foto: Kleber Moitinho
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021

FOTO DA CAPA
Kleber Moitinho

Fiz este registro de uma ruela de Cuzco em


2015. Entretanto, poderia ter sido feito durante a
Pandemia, pois apresenta características comuns a
este momento: rua quase deserta e figuras humanas
distanciadas. Além disso, o diálogo entre as linhas
do calçamento e da arquitetura pré-colombiana cria
uma perspectiva de afunilamento, de claustrofobia,
sentimento este compartilhado por grande parte
da população mundial por conta das medidas
preventivas relacionadas à COVID-19.
No entanto, ainda que pareça distante, podemos ver
na foto que há uma saída! No nosso caso, a saída, ou
melhor, as saídas podem estar no investimento em
Ciência e em políticas públicas elaboradas e geridas
realmente em prol no coletivo, do Social, como
indicam os textos aqui presentes.
Foto: Kleber Moitinho
jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p. 17- 29
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.33503

The Effect of Volunteer Work in Hospitals: In a


Brazilian University Hospital1
June Alison Westarb Cruz, Kleberson Massaro Rodrigues,
Ronald Rodrigues Vale, Suelen Cequinel Moraes, Heitor Takashi Kato
e Alex Sandro Quadros Weymer

Resumo Na gestão das instituições de saúde, em especial das estruturas hospitalares,


a hipótese de que o trabalho voluntário proporciona mais eficiência na
assistência hospitalar é um pensamento comum ao longo da prática
cotidiana dessas instituições. No entanto, faltam evidências quantitativas de
apoio a ​​esse argumento. Este artigo tem como objetivo identificar o efeito
do trabalho voluntário na qualidade do atendimento, mais especificamente,
o efeito na satisfação do usuário, na taxa média de permanência e na taxa
de infecções hospitalares, em uma Instituição Hospitalar Universitária do
Sul do Brasil. Trata-se de um estudo quantitativo baseado em relatórios
gerenciais internos, cujas análises foram realizadas por meio de regressões
múltiplas, testes de normalidade de resíduos e testes de multicolinearidade.
Os resultados apontam para dois indicadores claros da eficácia do trabalho
voluntário: Taxa Média de Permanência e Taxa Média de Infecção Hospitalar.
Ambos demonstram que, além de promover a humanização da assistência,
o trabalho voluntário contribui para a qualidade da assistência à saúde no
Sistema Único de Saúde (SUS).
Palavras-chave Voluntariado. Gestão Hospitalar. Atuação. Sem Fins lucrativos.

Abstract In the management of health institutions, especially hospital structures, the


hypothesis that voluntary work provides more efficiency in hospital care is a
common thought throughout the day-to-day practices of these institutions.
However, there is a lack of quantitative evidence supporting such argument.
This article aims to identify the effect of volunteer work on the quality of care,
more specifically, the effect on user satisfaction, average stay rate and the rate
of hospital infections, within a University Hospital Institution in Southern
Brazil. This is a quantitative study based on internal managerial reports,
whose analyses were conducted through multiple regressions, normality
tests of residuals and multicollinearity tests. The results point to two clear
18 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

indicators of the effectiveness of volunteer work: Average Stay Rate and


the Average Hospital Infection Rate. Both demonstrate that in addition
to promoting the humanization of care, volunteer work contributes to the
quality of health care within the Sistema Único de Saúde - SUS (Unified
Health System).
Keywords Volunteering. Hospital Management. Performance. Nonprofit.

INTRODUCTION
Volunteering can be seen as an expression of human kindness. This statement can only be
made through empiricism, without the need for a specific citation from a specific study.
Although the statement seems courageous, the experiential nature of this work allows such
audacious statements to be made, since this is a socially constructed idea. This is especially
relevant in a peculiar organizational environment, in which the borderline between health
and disease is tenuous.
In Brazil, volunteer work within a hospital environment began around 1543, when the
first “Santa Casa de Misericórdia” in Santos-SP was created by the first Portuguese groups
(RODRIGUES et al., 2014). From that moment on, several researchers have qualitatively
shown that there is a perception that volunteers can have a tangible impact within the
strategy of these organizations, where their undertaken actions explicitly show significant
improvement to the efficiency of the hospital regarding the services offered, especially for
the SUS providers.
Within this area of research, Ferreira, Proença e Proença (2015) state that a volunteer
program that is aligned with an institution’s strategies can contribute to the strengthening
of the internal culture and effectiveness of processes and protocols (FARMER; FEDOR,
2001).
Such contribution can become exponentially valuable as long as it is presented as a service
for the Brazilian public system, which promotes strategies, processes and actions based on
increasing access and quality of health services, whose purpose is to safeguard citizens’ lives
(FERREIRA et al., 2015). Such system has as a central agent, hospital structures that serve
as the principal establishments in complex healthcare, aimed at seeking medical solutions
for individuals and the communities which they belong to.
In corroboration to a study done by Hotchkiss et al. (2009), the current study strives to
prove, quantitatively, the impact of volunteering on hospital environment, as seen through
increased satisfaction of patients, diminishing average stay rates and diminishing average
hospital infection rates. In order to do so, this study uses statistical procedures applied
to both University Hospitals within greater Curitiba, which are providers of the Unified
Health System. The purpose of this study is to prove a new perspective: that human goodness
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 19

materialized into volunteer work applied to a complex institution can increase the access
and quality of hospital institutions.
Therefore, based on this general objective, the present study is justified, under the aspect
of social management, by its empirical relevance, in subsidizing, through the practice of
science, a better condition of access and health care in the Brazilian context, especially to
users of the Unified Health System.

THEORETICAL APPROACH: VOLUNTEERING & ASSISTANCE PERFORMACE


Volunteer work can be defined as unpaid labor from individuals that desire to improve the
well-being of a community (WU et al., 2019). Some studies affirm that volunteer work is
present in all societies and cultures and is related to caring the underserved: the sick, the
disabled, the elderly, widows and orphaned children (KOHAN, 1965).
In addition to history, there is a worldwide increase in individuals participating in volunteer
work, which can be justified by a collective yearning to improve life conditions on the
planet. This increase has been noticeable for more than a decade. In 2006, a certain number
of authors already published evidence affirming the growth of businesses, organizations and
people involved in volunteer work (STUDER; VON SCHNURBEIN, 2013).
For Wu et al. (2019), volunteer work is considered a strategic and operational tool within
the creation and expansion of social capital. This view is also affirmed in studies conducted
by Rodrigues et al. (2014) and Ferreira et al. (2015). The effectiveness of volunteer work lies
at the root of social capital expansion.
This work, besides having behavioral values, is linked to several technical characteristics. In
this sense, Hudson (1999) emphasizes the importance of three aspects of volunteer work
for society:
a. Representation: a volunteer action should not be considered as a provider of social
services through the State, rather, within a democratic state, it is perceived as an
aspect of the representative process, of social integration and of the promotion of
public policy;
b. Innovation: volunteers have proven to be an important source of innovation when
they are directly involved with the problem and, due to that, solutions are created;
c. Citizenship: in a subjective nature, volunteers work to find solutions for diverse
problems and aspire to better everyday life.
More specifically, other researchers have discussed the effects of volunteer work in hospital
institutions, such as Ferreira et al. (2002), Rajah et al. (2016), Zappa and Zavarrone (2010),
Rodrigues et al. (2014), Cnaan and Cascio (1998). Meyer, Pascucci and Murphy (2013)
emphasize the forms of contribution and highlight the following advantages: patient
improvement, image benefits to the hospital and cost reduction.
20 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

Dart (2004) highlight the strategic and tactical importance of volunteer work on hospital
structure, specifically within the operational component of support work, fundraising,
brand imaging, awareness campaigns focused on patient safety, information and process
flows, as well as aspects related to the improvement of the organizational climate amongst
employees, patients and family members.
In this sense, Rodrigues, Meyer and Cruz (2014, p. 155) state:
[...] volunteers, when well-managed, can contribute significantly to the
fulfillment of various activities as well as to organizational performance, with
emphasis on the humanizing element itself, in hospital organizations.
In this context, volunteers, as collaborators, can contribute to the promotion
of the quality and agility of the services provided with clear benefits to the
users of these services, creating a climate conducive to good reception, good
ambience and good treatment. Volunteers can potentially contribute not only
to improving health services, but also to minimizing operational expenses and
strengthening the organizational image by acting as propagators of good ser-
vices provided to society.
According to Meyer, Pascucci and Murphy (2013), within hospital activities, volunteers
can be a source of sociopsychological assistance to patients and their family members; they
contribute to the creation of strategy independence of formal structures, contribute to the
process of clinical treatment, when well accompanied. They may also be involved in other
activities, such as public assistance, helping with patient displacement, answering phones,
reading books to patients, single visits, conversing with patient family members, among
other activities that vary according to the needs and demands of the particular management
team of the hospital (WELLA et al., 2004).
Some studies present evidence of the effect of volunteer work beyond personal assistance
of individuals focused on the improvement of humanizing indicators, based on the
improvement of hospital assistance, especially within the Brazilian Unified Health System
(VASCONCELOS et al., 2017). This has seen to increase hospital stay times, satisfaction,
hospital infection rates, among other (RODRIGUES; MEYER; CRUZ, 2014). However,
the majority of these studies are based on qualitative measures which reinforce the value
of this current study. This study incorporates quantitative analysis to prove the hypothesis
that volunteer work assists with the improvement of the quality of health service assistance
(ANHEIER; SALAMON, 1999).
Within this context, the dissertation of these theoretical elements about understanding
performance within health services becomes essential to comprehend the empirical
relationship proposed. This is especially relevant to understand the Sistema Único de Saúde
(SUS), whose practical purpose is challenging both in terms of access as well as the status
of the service given (ZDZIARSKI, 2019).
Based on the challenge of fostering access and quality of health services, the Ministry of
Health, through the Administrative Rule 312 of May 2, 2002, established the Standardization
of Nomenclature in the Hospital Center. The Ministry of Health defined hospital indicators
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 21

with the objective that they may be used in diverse sectors of the hospital. They are: quality of
the patient’s day, average length of stay and hospital infection rate. Besides these indicators,
the Ministry of Health (2012) highlights the importance of a patient satisfaction indicator,
as this is one of the few indicators that allow the evaluation of the provided services from
the patient’s and his/her family members’ perspectives (CRUZ et al., 2010).
Finally, through the understanding of the theoretical framework about this research proposal,
one can evidence several scientific experiences whose purpose is to confirm the hypothesis
that volunteer work positively affects the human element in hospital institutions, whose
purpose is to safeguard human life. This fact is supported by the work by Hotchkiss et al.
(2009). Such evidence strengthens the theoretical aspect of the first hypothesis provided:
volunteer work positively impacts performance within healthcare, it is proven through
scientific method, and it can be described in the following item.

METHODOLOGICAL PROCEDURES
This study has a descriptive and quantitative character that uses data from the University
Hospital database. The analyzed data correspond to the average stay and average hospital
infection indicators (dependent variables) and the amount of volunteer activities
(independent variable) from January 2015 to October 2018, with monthly account,
throughout 46 periods, as described in Table 1.
Table 1 - Descriptive Analysis Variables

Type Periods Data Description


It corresponds to the average period patients stay in
DV 46 Average Stay Rate
the hospital structure.
Hospital Infection It corresponds to the number of infections acquired
DV 46
Rate by the patient while in hospital.
Displacement of the patient by means of a wheel-
IV 46 Attendance chair, stretcher or walking to the place indicated by
the nurses.
Internment Reception of the patient who has just been admit-
IV 46
Pickup ted for a surgical procedure.
IV 46 Telephone Service Receiving calls.
Providing guidance to people who need to get to
IV 46 Service Desk
the examination sites or are lost in the hospital.
Changing visitation time to a playful moment with
IV 46 Storytellers
story-reading or listening to patients’ stories.
Providing active listening to the patient in hospital
IV 46 Solitary Visits
bed.
IV 46 Solitary Angels Visiting patients who are in palliative care.
IV 46 Musical Moments Musical activities with patients and relatives.

Tabela continua pág. 22


22 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

Playful moments of joy and relaxation with the


IV 46 Vigilantes of Joy
patients.
Activities focused on the collaborator, such as:
Caring for who
IV 46 Reiki, motivational speech, stretching and postural
cares
exercises.
IV 46 Pet Care Dog visits to patients and collaborators.
Beauty and aesthetic practices focused on patients,
IV 46 Beauty Doctors
employees and family members.
Recreational Mo- Recreational activities and interactions between
IV 46
ments patients, relatives and collaborators.
IV 46 Volunteer Choir Musical activities with patients and relatives.

Source: Research Data, 2019.

These data were analyzed with the help of SPSS software, by applying multiple regressions,
with analysis of normality tests of residuals and multicollinearity Kolmogorov-Smirnov
and Shapiro-Wilk.
The definition of the independent variables was based on a research by Rodrigues et al.
(2014). The definition of dependent variables was based on the indicators described by the
Ministry of Health. Both are cites in the Theoretical Approach component of this article.

DATA PRESENTATION AND ANALYSIS


Providing context to the primary objective of the study is an important element of the
presentation and analysis of data. The study was conducted in the Cajuru University Hospital,
located in Curitiba, the capital of the state of Paraná, in southern Brazil. It was founded in
1958, currently with 2016 beds, and it serves approximately 160 thousand patients through
its clinical, surgical and diagnosis services per year. The hospital is accredited by the Unified
Health System (SUS) as a service provider, with 100% community-based care and the
mission of excellence in providing services to the community and continuing community
development through teaching and research.
With 17 years of volunteer work, the institution currently has 220 volunteers, conducting
14 types of activities (Table 1). The institution has a qualified process of admission and
training of volunteers, working effectively with the procedural dynamics of the institution.
Such controls serve as a database of independent variables for the study. Before the analysis,
three independent variables were identified: Inpatient capture, storytellers and solitary
visits. The variables were distinguished with an “F” indicator if they were above 4.17, and
a “T” indicator for a value above 1.96. Others were discarded for analytical purposes since
they were not relevant in observing a causal relationship and desired effects (LEVINE et
al., 2005). The following are specific analyses of the dependent variables: Average stay rate
and hospital infection rate.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 23

AVERAGE STAY RATE


The correlation between Stay Rate, as a dependent variable, and Volunteer Activities analyzed
has a significant value of 0.208 (R-Squared), with an F index of 5.671, which, according to
the bibliography, rejects the Null Hypothesis, affirming that there is a relationship between
these variables and it shows the apparent effect of volunteer work on the variance of Stay
Rates within the hospital.
The evidence of the correlation between these variables, although noticeable, does not
allow for the confirmation that an increase in volunteer work decreases Hospital Stay Rate.
Thus, a complementary analysis of the “T” index was performed, in this sense, “Internment
Pickup” has a greater relevance of causality (-2.317), followed by the “Solitary Visits” activity
(-0.742) and “Storytellers” (-0.502), that is among the variables, the “Internment Pickup” is
statistically significant in the reduction of Hospital Stay Rate.
Although the other variables also contribute to the decrease of the Stay Rate, their significance
is considered to be of little relevance, according to the parameters described in the statistical
bibliography, since, according to Levine (2005), when the “z” score obtained exceeds 1.96
(a “z” higher than 1.96 or lower than -1.96), the result is considered statistically significant,
revealing a greater causal relationship, in this case, the more “Internment Pickup”, the lower
the Stay Rate of patients within the hospital.
The statistical data of the multiple linear regression between the variables can be better
observed in Table 2.
Table 2 - Non-standard coefficients of Multiple Linear Regression between Average Stay Rate
and Volunteer Work

DV – Average Stay Rate


Independent
Variables Kolmogorov-S- Shapiro-Wilk
R2 F T VIF
mirnov - Sig - Sig
Internment
-2,317 2,229
Pickup
0,208 5,671 0,200 0,742
Storytellers -0,742 2,177
Solitary Visits -0,502 2,205

Source: Research Data, 2019

In a complementary way, this study affirms that there is no multicollinearity among the
variables, this assertion is based on the VIF index, whose values are presented in the
metric indicated by the bibliography that shows evidence on the validity of the regression
(Internment Pickup: 2.229; Storytellers: 2.177; Solitary Visits: 2.205). According to Levine
et al. (2005), when the VIF is greater than 10, it means that there is too much correlation
of the explanatory variables with each other, this will not provide new information, making
it difficult to separate the effect of these variables on the dependent variable or the variable
response, and therefore, collinearity was not representative in the variables analyzed in this
study.
24 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

Analysis of the residuals shows that the data are normal (Kolmogorov-Smirnov: 0.200;
Shapiro-Wilk: 0.742), since they present indexes above the predicted minimum (0.05) in
the statistical literature, validating the normality assumption of the regression residuals, as
shown in Figure 1 below.
Figure 1 - Graph on the Normal Probability Plot of Residuals

Source: Research Data, 2019

Therefore, when establishing the Stay Rate as a dependent variable, it can be affirmed that
there is a relevant effect of voluntary activities to its decrease, in particular, the activity called
“Internment Pickup”, which relates to the “bed-turning”, makes it possible for more people
to be attended with the same resources, as well as it decreases the exposure of patients to the
risks inherent to staying in a hospital environment.
Such results corroborate the theoretical evidence cited by Ferreira et al. (2015) and Hotchkiss
et al. (2009) in their latest research, affirming the positive influence of volunteer work on
hospital stay rate.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 25

HOSPITAL INFECTION RATE


Regarding the Hospital Infection Rate indicator, there is a significant correlation with the
independent variables. The regression analysis calculates a significance of 0.561 (R-squared),
with a factor of 17.899 in ANOVA. This rejects the Null Hypothesis, in other words, the
more the volunteer work there is, the smaller the Hospital Infection Rate.
The analysis of the “T” index showed that the voluntary work of “Solitary Visits” has a
greater relevance of causality (-3.637), followed by “Internment Pickup” (-1.125) and
“Storytellers” (-0.637), this means that, among the independent variables, the “Solitary
Visits” is statistically significant (above 1.96) in decreasing Hospital Infection Rate.
The multicollinearity test showed that the indirect variables analyzed were not collinear,
since they presented FIV (Inflation Factor of Variance) less than 10, in this case, Internment
Pickup 2.229, Solitary Visits 2.177 and Storytellers 2.205 make all the regressions valid.
The statistical data of the correction among the variables can be better observed in Table 3
below.
Table 3 - Non-standard coefficients of Multiple Linear Regression between Hospital Infection
and Volunteer Work.

DV – Hospital Infection and Volunteer Work


Independent
Variables Kolmogorov-S- Shapiro-Wilk
R2 F T VIF
mirnov - Sig - Sig
Internment
-1,125 2,222
Pickup
0,561 17,899 0,199 0,547
Storytellers -3,637 2,180
Solitary Visits -0,637 2,204

Source: Research Data, 2019

The analysis of the residuals show that the data are normal (Kolmogorov-Smirnov: 0.199;
Shapiro-Wilk: 0.547), as in the analysis of the Stay Rate, the Hospital Inflection Rate as
a dependent variable, shows indices above the predicted minimum (0.5) in the statistical
literature, validating the assumption of the normality of the regression residuals according
to the Figure 2.
26 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

Figure 2 - Graph on the Normal Probability Plot of Residuals

Source: Research Data. 2019

Therefore, as well as in the analysis of the Stay Rate, the effect of volunteer work is noticeable
regarding Hospital Infection Rate. One can affirm that there is a relationship between
volunteer work and the prevention of infections in a patient’s hospital stay. This ultimately
reduces the cost of treatment and increases a patient’s health care quality.
In this context, the evidence of the impact of voluntary work, as a contributory alternative
to the improvement of health care conditions, by decreasing the permanence rate and the
rate of nosocomial infection, corroborates with evidence from other research in the area,
such as Ferreira et al. (2015), Rodrigues et al. (2014), Hotchkiss et al. (2009) and Farmer
and Fedor (2001).

FINAL CONSIDERATIONS
From the results presented, it was possible to analyze the effect of volunteer work on hospital
care, regarding the improvement of patient’s life conditions, a decrease in the length of stay,
and a reduction of hospital infection rate. These data reinforce the findings of Rodrigues,
Meyer and Cruz (2014) and Meyer, Pascucci and Murphy (2013), which note the potential
ability that volunteers have, when well-managed: contributing to the improvement of
health services, reducing operational expenses, and strengthening the organization’s image.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 27

This relates to evidence reported by Hotchkiss et al. (2009), who quantitatively assert that
there is a relationship between volunteer work and the reduction of organizational hospital
expenses.
Although the focus of this research is not to show the economic effect of volunteer work,
one can affirm that decreasing stay rates and hospital infection rates directly impacts the
structural cost of the hospital, as well as the probability of generating new income. This can
be a potential argument for not considering volunteers as solely adjuncts, but as integral and
strategic components of hospital care (RODRIGUES; MEYER; CRUZ, 2014).
Ultimately, one can conclude that this study corroborates the need of incentivizing
volunteer work in hospitals, as it can significantly reduce stay rates, hospital infection rates,
and positively affect the quality of care within healthcare services. This confirms that the
concept of “human goodness” and volunteering can become a manner to increase the access
and quality of work of health care institutions.
In time, it is worth noting that the conceptual and empirical alignment of this research with
research already carried out is evident, in the sense of positively affirming that voluntary
work practices are worthy of attention in health management, contributing in an alternative
way to qualification and access to health services, either by decreasing the patient’s stay in
hospital bed or by contributing to reducing hospital infection.
Finally, the present research is limited in its object and characteristics, as it assesses the
context of the practice of voluntary work, solely and exclusively in beds linked to the Sistema
Único de Saúde (SUS). These characteristics may show a bias in the research, as it fails to
address the application of volunteering in supplementary health beds or other regions of
the country, with different cultures, protocols and technologies.

NOTE
1 Submetido à RIGS em: set. 2019. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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June Alison Diretor Executivo da Província Marista Brasil Centro Sul, Professor
Westarb Cruz do Mestrado e Doutorado em Administração, Professor do Mestrado
Profissional de Gestão de Cooperativas da PUCPR e Pós-doutorando em
Administração pela FGV EAESP.

Kleberson Doutorando em Administração pela PUCPR.


Massaro
Rodrigues

Ronald Mestrando em Administração pela UFPR.


Rodrigues Vale

Suelen Doutorando em Administração pela PUCPR.


Cequinel
Moraes

Heitor Takashi Professor do Mestrado e Doutorado em Administração da PUCPR.


Kato
Alex Sandro Professor do Mestrado Profissional em Gestão de Cooperativas da PUCPR.
Quadros
Weymer
30 The Effect of Volunteer Work in Hospitals

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p. 31- 47
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.34138

A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino


de Administração1
Rodrigo Guimarães Motta, Neusa Maria Bastos Fernandes dos Santos,
Maria Cristina Sanches Amorim e Jorge Vieira da Silva

Resumo A dificuldade de alunos em compreender a literatura em cursos de


graduação em Administração de Empresas é recorrente: é natural
que textos de ciências sociais não se revelem facilmente ao leitor;
pelo contrário, a compreensão exige método e disciplina. Isto posto,
acredita-se que a retórica é um conhecimento e uma prática eficaz
para ensinar graduandos a ler a teoria relativa à ciência social aplicada
e às áreas específicas. Assim, o objetivo desta pesquisa é evidenciar a
potencialidade do uso da retórica ao ensino em cursos de graduação em
Administração. A metodologia consiste na apresentação dos recursos
retóricos para a leitura e no exercício de leitura retórica de um artigo
sobre estratégia, The Capabilities of Market-Driven Organizations de
George S. Day (1994), referência de alto impacto até hoje. Perante
a análise desenvolvida, os resultados revelaram que a intenção de
Day é persuadir o leitor a escolher seu modelo de estratégia, sem
apresentar avanços teóricos, sendo sua principal contribuição autoral
combinar elementos conhecidos de maneira organizada ao campo do
management.
Palavras-chave Ensino em Administração. Aprendizagem em Administração.
Leitura Retórica. Estratégia de Ensino-Aprendizagem. Gestão da
Qualidade Total.

Abstract Students’ difficulties to fully comprehend texts in Business courses


are recurrent. It belongs to the nature of texts not to reveal themselves
easily, quite the contrary: understanding them requires method
and discipline. Our thesis is that rhetoric is both a knowledge and
32 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

a practice that can efficiently teach undergraduate students to


read the representative theory of major scientific areas, related to
Applied Social Sciences and to specific areas. Therefore, this paper
intends to present the potential of the rhetoric use for teaching
and learning in undergraduate Business courses. The methodology
consists in presenting rhetorical resources of an article on strategy,
The Capabilities of Market-Driven Organizations, by George S. Day
(1994), still considered being of high impact until today. According
to our analysis, the purpose of Day’s article, which is to persuade
the reader to choose his/her strategy model, does not represent a
theoretical advancement, but it contributes to the discussion of the
topic.

Keywords Teaching in Business Administration. Business Learning. Rhetorical


Reading. Teaching and Learning Strategies. Total Quality
Management.

INTRODUÇÃO
É de comum conhecimento que a inteligência é inata à espécie humana; em contrapartida,
“[...] ninguém nasce com o manual de instruções para a utilizar. Cabe à educação fornecê-
lo” (IDE, 2000, p. VII). O teor deste pensamento é antigo na cultura ocidental, desde
tempos quando Aristóteles (2016) ocupou-se com o desenvolvimento da inteligência, isto
é, a condição para o indivíduo pensar adequadamente. Essa mesma leitura da relação entre
inteligência e disciplina intelectual está em Descartes (1973), segundo o qual, para entender
a realidade, é preciso superar o senso comum, ou seja, é necessário um método.
Feita esta breve contextualização histórico-filosófica, nossa experiência docente (ao longo
de mais de trinta anos) em instituições de ensino superior nos cursos de graduação em
Administração de Empresas, Economia, Ciências Contábeis e Ciências Atuariais tem
revelado a dificuldade dos alunos com as práticas necessárias ao estudo, entre as quais a
compreensão dos textos com a criticidade compatível à formação de nível superior (por
extensão, sabe-se que o mesmo fenômeno ocorre nos demais cursos das chamadas “ciências
humanas”). A análise retórica apresentada neste artigo, portanto, faz uso de um referenciado
autor da área de Administração – tal como será oportunamente apresentado –, haja
vista a necessidade de delimitar o objeto de estudo; faz-se relevante mencionar que um
exercício similar pode ser realizado com a literatura de qualquer outro curso no campo das
humanidades.
A deficiência na compreensão da leitura dá-se não apenas pelas lacunas na capacidade em
“interpretar textos”, mas também pelo desconhecimento sobre o que é ciência (seu objeto,
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 33

seus métodos e limites) e pela inexperiência com a análise política dos textos (em última
instância, da posição dos autores frente às controvérsias inerentes às humanidades).
A literatura das ciências humanas, por motivos sobejamente conhecidos, não é “neutra”. Pelo
contrário, ela expressa interesses e valores, versa sobre temas que, pela natureza do objeto,
não produzem teses demonstráveis (ARISTÓTELES, 2012; SANTOS, 1999). Também
são características deste campo do conhecimento a controvérsia, as diferentes intepretações
para o mesmo fenômeno, a coexistência entre autores seminais e seguidores (os quais, não
raro, se autonomeiam “novos”, sem pudor de plagiar) e a boa e a má literaturas. Assim, é
imprescindível que o aluno saiba, ao ler, não só identificar as diferenças entre os autores,
mas ir além da interpretação do texto e julgá-los, o que só ocorre se puder compreender os
interesses e as intenções do autor, além da qualidade dos argumentos apresentados – mesmo
porque o extraordinário aumento do acesso à informação característico de nosso tempo
torna a competência de julgar o que se lê imprescindível à formação do aluno.
O estudo da política e da filosofia do conhecimento na forma de disciplinas é bem-vindo a
qualquer estudante de ciências humanas, apesar de que, ainda assim, não necessariamente
convergiria para a elaboração de um método de leitura-estudo que contribuísse para a
autonomia intelectual do aluno. Leitores de política e filosofia também aprendem pela
denominada “tentativa-e-erro”, segundo Gardner (1994), o mais tosco, custoso e lento dos
métodos, nas palavras do autor. É preciso, pois, organizar uma disciplina para a inteligência
na tradição de Aristóteles, de Descartes e de tantos outros grandes pensadores da nossa
civilização: é preciso ensinar a estudar a teoria.
Na perspectiva metodológica proposta por Aristóteles (2012), todo enunciado parte de
premissas (explícitas ou implícitas), isto é, as asserções fundamentadas no conhecimento
(ou na experiência) do leitor ao qual nos dirigimos – se ocupasse-nos de “provarmos” tais
ideias, o artigo não se voltaria ao uso da retórica como método de aprendizagem, mas ao
conteúdo de cada premissa, portanto, não discorreremos sobre isto. A expressão “provar”
apresenta-se como metáfora (entre aspas, portanto), porque o conhecimento sobre o qual
este artigo se debruça não é demonstrável, não é da categoria do verdadeiro ou falso, mas,
sim, do plausível.
As duas premissas a que esta pesquisa se volta, a serem apresentadas explicitamente, são: (1)
os textos das ciências humanas não se revelarem facilmente ao leitor, então a compreensão
exige conhecimento prévio, método e disciplina; (2) os alunos de graduação dessa área
do conhecimento não conhecem um método adequado para ler-estudar. Na tradição dos
pensadores da chamada nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000;
REBOUL, 2000; ALEXANDRE JR., 2012), defende-se a seguinte tese: a leitura retórica
se trata do conhecimento e da prática para ensinar graduandos a ler a teoria relativa às
ciências sociais, inclusive aquelas das áreas específicas (o management propriamente dito).
O objetivo deste estudo, portanto, é evidenciar a potencialidade do uso da retórica para o
ensino nos cursos de graduação em Administração, norteando-se por uma metodologia
que constitua na apresentação dos recursos retóricos para a leitura com base na revisão
bibliográfica pertinente e no exercício de análise retórica de um artigo “clássico” sobre
34 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

estratégia; no caso desta pesquisa, selecionou-se o estudo intitulado The Capabilities of


Market-Driven Organizations, do educador e consultor norte-americano George S. Day,
e publicado no Journal of Marketing em 1994. O artigo é considerado de alto impacto até
hoje, de acordo com a Web of Science (plataforma de banco de dados acadêmicos) – conforme
também será detalhado adiante.
A relevância atestada pelo referido veículo científico demonstra a importância global que
o estudo de Day detém na área a que se volta, configurando sua alta distinção mesmo
em dias presentes. O artigo retratado – mesmo que publicado há duas décadas – segue
permitindo diversos desdobramentos acadêmicos, o que evidentemente constata sua
significativa pertinência até a contemporaneidade para a realização de novos estudos
voltados às diferentes capacidades referentes ao marketing organizacional, entre outros
desenvolvimentos possíveis, tal como o da presente pesquisa, a qual o usa como norte
para demonstrar a potencialidade do uso da retórica voltada ao ensino-aprendizagem em
Administração.
Este artigo está organizado em quatro partes, a começar por esta introdução inicial. A
próxima seção apresenta (1) um breve histórico sobre a utilização da retórica como ciência,
prática e arte, a elaboração na antiguidade clássica, o ostracismo durante a Idade Média
e a Idade Moderna até a “ressurreição” na pós-modernidade e (2) os elementos retóricos
utilizados na análise. A seção seguinte, voltada à leitura retórica do artigo The Capabilities
of Market-Driven Organizations de George S. Day, cerne deste trabalho, é dividida (1)
na síntese do artigo de Day e (2) na análise retórica propriamente dita. Finalmente, são
desenvolvidas as considerações finais, seguidas pelas referências consultadas para embasar
este estudo.

A RETÓRICA
A retórica nasceu da prática de hábeis oradores na antiguidade – provindos da Grécia, de
Roma, do Egito, da China e da Índia (KENNEDY, 1997) – e, por volta de 350 a. C., foi
configurada por Aristóteles como arte e prática do discurso oratório voltadas aos princípios
e às técnicas da comunicação. A obra Retórica, de Aristóteles (2012), ainda é referência
fundamental para o estudo do tema – os autores subsequentes ao filósofo dialogam com
ou referenciam-se a ele. A retórica é a prática de argumentar de forma eficaz, convém
para persuadir o auditório (ouvinte ou ouvintes) das ideias (teses) daquele que fala (ou
escreve, ou representa; a mídia pode variar) e é também prática hermenêutica, servindo
para desconstruir analiticamente os textos. A retórica aristotélica, logo, é “uma teoria da
argumentação persuasiva” (ALEXANDRE JR., 2012, p. 19) que apela à lógica e às emoções
do auditório.
Na antiguidade clássica, a retórica floresceu para ocupar o lugar dos mitos na função do
entendimento da realidade (MEYER, [19--?] apud PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2000) e para servir aos princípios democráticos das cidades-Estado gregas. Caiu
no esquecimento durante a Idade Média, acusada pelo pensamento cristão hegemônico
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 35

de ser “mera manipulação linguística” (ALEXANDRE JR., 2012, p. IX), de aproximar-se


demasiadamente da mentira; voltou à cena intelectual durante o Renascimento, menos por
readquirir função intelectiva relevante, mais pelo interesse no conhecimento greco-romano.
Foi novamente abandonada nos albores da ciência moderna dada a fé desta última no
exclusivamente demonstrável (o que hoje muitos denominam de cientificismo cartesiano),
restando-lhe o espaço dos estilos literários e da hermenêutica utilizada pela linguística
(MASSMANN, 2009).
No século XX, dois eventos propiciaram, por caminhos diversos, um contexto favorável
à recuperação da retórica aristotélica como “antiga e nova rainha das ciências humanas”
(ALEXANDRE JR., 2012, p. IX): a crise da ciência moderna (iniciada no final do século
XIX) (ARIDA, 1996) e as duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) (MASSMANN,
2009). O primeiro evento mostrou a fragilidade da ciência que se propunha a ocupar o lugar
da verdade absoluta (deixando-a vaga pelo recuo do poder religioso institucionalizado),
expondo os estreitos limites do saber produzido pelas demonstrações e a complexidade
dos fenômenos regidos pela irreversibilidade do tempo (PRIGOGINE, 2009). O segundo
evento, por sua vez, mostrou o custo incomensurável e o risco de desastre ainda maior da
hecatombe nuclear que ameaçava a sobrevivência da espécie humana – e a ciência do saber
demonstrável não fora capaz de inspirar alternativas a tamanha destruição, tampouco dava
esperanças de como evitar a próxima.
Nesse contexto, a intelectualidade voltou-se para o conhecimento que levasse ao
entendimento e ao compromisso entre atores ainda em conflito (MASSMANN, 2009).
Ora, se o demonstrável não explicava parcelas relevantes da realidade e tampouco oferecia
soluções para problemas gravíssimos, outros saberes até então considerados “heterodoxos”
acenderam à condição de conhecimento legítimo, entre eles, a retórica.
A restauração da retórica nas pesquisas deu-se também por suas características metodológicas
(ARIDA, 1996): inspirada em vários saberes, interdisciplinar e transdisciplinar
(ALEXANDRE JR., 2012 p. X), permite aos pesquisadores de várias áreas utilizarem-
na como ponto de partida para suas reflexões. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca
(2000), no final da década de 1950, e Olivier Reboul (2000) e McCloskey (1983), na década
de 1980, estão entre os autores que recuperam a retórica na condição do saber adequado aos
problemas propostos pela pós-modernidade – os dois primeiros utilizaram-na no direito, o
segundo, na filosofia, e o terceiro, na economia; sobre a história da retórica, recomenda-se a
leitura da obra Comparative Rhetoric, de George Kennedy (1997).
Atualmente, constata-se uma intensa pesquisa nas mais variadas áreas do conhecimento
baseada na retórica; um forte exemplo é a International Society for the History of Rhetoric,
fundada em 1977, na cidade suíça de Zurique, sendo uma das mais importantes referências
do ramo e promovendo conferências bienais voltadas ao estudo e à prática da retórica em
todos os períodos e idiomas.
Na próxima subseção, o leitor encontrará os elementos do sistema retórico aristotélico
devidamente explicados e que subsidiarão a análise posteriormente.
36 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

ELEMENTOS DA RETÓRICA
A obra Retórica de Aristóteles (2012) apresenta detalhadamente os elementos do discurso
que objetivam persuadir um determinado auditório; entre os elementos retóricos, tem-se
como central o argumento lógico. Ao ressaltar a retórica calcada no raciocínio, acaba-se
também por apresentar ao leitor um método de trabalho e um potente sistema crítico de
análise de qualquer forma de discurso. É nesse sentido, de método de leitura e compreensão,
que a retórica vem sendo apropriada pelas várias áreas do conhecimento, e é ainda nessa
direção que utilizamos a retórica: não para ensinar a discursar, mas a ler, ainda que a leitura
retórica também ensine como discursar.
O estudo da retórica tem extraordinário potencial para ampliar a capacidade humana de
aprender e comunicar o aprendizado, permitindo seu uso como instrumento para “inventar,
reinventar e solidificar” a educação (ALEXANDRE JR., 2012, p. X). Por isso mesmo, tem
sido utilizada como referência teórica para as pesquisas sobre o ensino (DUARTE, 2010;
CAMPBELL; HUXMAN; BURKHOLDER, 2015).
Na elaboração da literatura científica em Administração de Empresas, entre outros,
conforme compilação de Fernando, Silva e Amorim (2017)2, podemos citar Arora e Romijn
(2012), Borges, Medeiros e Júnior (2007), Boussard e Dujarier (2014), Dias, Lopes e Dalla
(2007), Fischer, Heber, Fadul e Fachin (2001), Frezatti, Carter e Barroso (2014), Lalonde,
Bourgault e Findeli (2012), Nardy, Guido, Novais e Amorim (2016), Sucupira, Chaves e
Monteiro (2007), autores estes que utilizam a retórica para estudos como técnica de análise
ou de discurso.
À conveniência deste artigo, seguindo as categorias de leitura retórica de Reboul (2000) e
da dupla Perelman e Obrelchts-Tyteca (2000), sintetizou-se o sistema retórico aristotélico
em seis elementos: orador, auditório, exórdio, intenção (do autor), teses e argumentos. Para
melhor organizar a leitura, usamos o recurso negrito para destacar o primeiro uso de cada
expressão, acompanhada de sua definição nos termos da retórica.
O orador e o auditório constituem-se a palco da retórica: o primeiro dirige-se (oralmente,
por meio de texto ou qualquer outra mídia) ao segundo (constituído por um ou mais
ouvintes), buscando persuadi-lo por meio de argumentos que serão considerados eficazes
à medida que provocarem a adesão às teses em pauta (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2000). À luz da retórica, os fatos não “falam por si”, mas, pelo contrário, para
obter a adesão, é necessário planejar cuidadosamente a forma de apresentá-los, sem, no
entanto, transfigurá-los por negligenciar a verdade e a honestidade. Trata-se de um método
responsável, e não de manipulação da linguagem (GRIMALDI, 1980).
O auditório, qualquer que seja, reage aos apelos racionais e emocionais em graus e formas
diferentes. É do humano emocionar-se (sentir) primeiro, para apenas depois pensar e,
eventualmente, agir – pois, sem o apelo à emoção, a razão não se manifesta (DAMÁSIO,
1996) –, por isso mesmo é sempre frágil o discurso que suprima ou use demasiadamente
um dos apelos.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 37

A retórica recomenda ao orador iniciar sua tarefa com o exórdio, isto é, o acordo prévio
elaborado como discurso preliminar que procura a adesão do auditório antes que sejam
apresentados os argumentos. O exórdio busca produzir uma emoção (inspirar confiança
ou credibilidade, entre as mais importantes para a aceitação dos argumentos) para obter
atenção antes de apresentar a tese, os argumentos e as propostas. As características do
orador e do auditório, o conteúdo da tese e os objetivos do primeiro estabelecem a forma e
a duração do exórdio.
Isto posto, o exórdio é imprescindível (afinal, não há como argumentar com eficácia sem um
acordo prévio); estrutura-se sobre um conjunto de premissas implícitas ou explícitas, fatos,
verdades e presunções.
Os fatos, em princípio, são verificáveis; mesmo assim podem ser contestados, pois “toda
verdade construída por um discurso pode ser desconstruída por um contra-discurso”
(FIORIN, 2015, p. 23). As verdades, por sua vez, são nexos causais complexos, enquanto as
presunções (elemento capital na argumentação) são afirmações verossímeis admitidas pela
maioria até prova contrária (REBOUL, 2000). Não há regra para a duração do exórdio, o
qual também pode ser implícito, brevíssimo ou abrupto, quando o orador escolhe abordar o
assunto principal aparentemente sem preparação prévia (REBOUL, 2000).
Relativamente ao orador, é preciso identificar: (1) quem é, (2) quando discursa e (3) de
onde discursa (REBOUL, 2000). Antes de iniciar a leitura, o leitor deve saber se o orador é
pesquisador de um importante centro de pesquisa e autor de obras originais ou, ao contrário,
um copista que compilou e simplificou – por sua conta e seu risco – teorias proeminentes. Na
bibliografia dos cursos de Administração, os manuais e os textos de imitadores costumam
conviver com obras de autores seminais, sem que os alunos compreendam as diferenças de
qualidade e propósito entre uns e outros.
O aluno deve saber também o contexto (quando?) da produção da obra, pois é da natureza
das humanidades serem fortemente influenciadas pela realidade à sua volta e, por isso mesmo,
parte do conteúdo pode ser obsoleto na atualidade e outra parte, ainda válida. Lembrando
que, se de um lado uma obra escrita há décadas possa caducar, de outro, a mais recente
não é necessariamente a melhor: uma obra se mantém atual se explica adequadamente os
problemas contemporâneos.
O exercício para identificar o orador ensina aos alunos que uma obra não deve ser aceita
passivamente, ou que necessariamente apresente o mesmo grau de relevância em todos
os capítulos. Vale ilustrar, neste momento, o trabalho brilhante de Joseph A. Schumpeter
(1982), denominado Teoria do Desenvolvimento Econômico, base de todos os demais autores
que escrevem sobre inovação (e não necessariamente referenciada), sendo absolutamente
tosco e superado relativamente à função de liderança do agente inovador. Ora, portanto,
Schumpeter deve ser utilizado quando o tema for inovação e, independentemente de seus
prestígio e importância, descartado quando se discutir liderança.
O aluno deve, por fim, perceber a intenção – ou posição (de onde?) – do orador quanto às
polêmicas pertinentes ao seu tema. Em ciências humanas, a polêmica é a regra, e raramente
38 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

há consenso sobre definições e prescrições; a literatura dos cursos de Administração de


Empresas, por sua vez, não foge à regra. Não obstante e não raro, os programas dos cursos
das áreas específicas (marketing, gestão de pessoas, estratégia etc.) costumam apresentar a
literatura tão somente na linha do tempo, induzindo o aluno a acreditar que a mais recente
abordagem é a melhor ou a correta.
A intenção do orador estabelece o tipo do texto, como podemos constatar a partir da
utilização de Ide (2000) da expressão “nível de leitura” para instruir o leitor (auditório)
da necessidade de identificar a intenção do autor, não necessariamente coincidente com o
declarado sob a rubrica “objetivo”. Os tipos podem ser o de prover informação, comover ou
sensibilizar (independentemente do conteúdo), dirigindo-se à inteligência, à vontade ou à
sensibilidade, respectivamente. O discurso do primeiro tipo busca ensinar algo, apresenta
o estado de uma discussão relevante; o segundo, a agir ou reagir, procura orientar ações ou
intenções; o terceiro, sensibilizar, animar ou deprimir, provocar ira ou resignação (IDE,
2000; CAMPBELL; HUXMAN; BURKHOLDER, 2015). Um texto pode ter um, dois
ou os três tipos simultaneamente, em graus diferentes, e ainda assim é sempre possível
identificar o tipo predominante.
Feita a análise do tipo de discurso e da intenção do orador, o aluno estará preparado
para o necessário distanciamento crítico, protegendo-se dos conteúdos com pretensões
à manipulação, à venda de consultoria especializada, à mera destruição de oponentes
intelectuais ou de concorrentes comerciais etc. O exercício da crítica baseada na retórica
açula um tipo particular de motivação muito adequada à aprendizagem: a desconfiança, a
velha dúvida cartesiana.
A tese, por sua vez, é o enunciado de um juízo a partir do qual o orador deseja persuadir
o auditório, gramaticalmente assumindo a forma de uma assertiva. Em geral, há muitas
teses nos discursos científicos, e cabe ao auditório identificar aquela – ou aquelas – mais
importante – ou importantes. No entanto, não necessariamente a tese declarada pelo orador
como tal é, de fato, a mais essencial.
Na tradição retórica, a argumentação é a estratégia discursiva, enquanto os argumentos
são os raciocínios destinados a persuadir o auditório da tese do orador (FIORIN, 2015).
Aristóteles (2012) divide os raciocínios subjacentes aos argumentos em duas categorias: o
necessário e o preferível. O primeiro é aquele cuja conclusão decorre das premissas válidas,
assim como a conclusão também o será; já o segundo é aquele cuja conclusão pode ser
plausível, mas não necessariamente verdadeira, pois as premissas não são demonstráveis,
sendo antes dependentes de crenças e valores.
Sendo assim, os raciocínios necessários são do domínio da lógica, servem para demonstrar
fenômenos sobre os quais é possível dizer se são falsos ou verdadeiros. Os raciocínios
preferíveis são do domínio da retórica e servem para lidar com fenômenos não demonstráveis
pela sua natureza, cujas premissas devem ser aceitas por serem mais justas, melhores ou
belas (ARISTÓTELES, 2012). Como se verá ao longo do artigo, a argumentação de Day
(1994) procura mover o auditório para acolher suas propostas de estratégia com base em
competências-chave, recorrendo à proposição da importância inquestionável da eficácia na
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 39

gestão organizacional. De fato, essa alegação é válida para o auditório formado por pessoas
da área de negócios.
O mundo dos negócios não costuma apresentar verdades demonstráveis, ainda que o senso
comum (às vezes travestido de ciência) confunda o princípio da racionalidade econômica
com a possibilidade do uso da racionalidade lógica. Raramente há evidências – tão somente
exemplos – de que estratégias competitivas sejam superiores às colaborativas, que condutas
agressivas sejam mais ou menos eficazes que as amigáveis; de fato, a teoria utiliza presunções
plausíveis na perspectiva do auditório.
Os argumentos podem ser classificados desde as categorias gerais até as detalhadas. Visando
ao propósito deste artigo, utilizaremos a classificação mais abrangente: (1) quase-lógicos;
(2) fundamentados na estrutura do real; e (3) fundadores da estrutura do real (FIORIN,
2015; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000).
Os argumentos quase-lógicos lembram a estrutura dos lógicos, mas suas conclusões não
são logicamente verdadeiras. Nas ciências humanas – e certamente na Administração de
Empresas –, o uso do argumento quase-lógico não ocorre por fragilidade do conhecimento,
mas pela natureza dos fenômenos em estudo; são domínios nos quais as premissas só podem
ser possibilidades, ou plausíveis. Já os argumentos fundamentados na estrutura da realidade
são baseados em relações que o contexto ou tão somente o auditório considera existente –
causalidade, sucessão, coexistência e hierarquia. Finalmente, os argumentos fundadores do
real organizam a realidade a partir da indução ou da analogia, produzindo generalidades ou
transposições. Estão nessa categoria os exemplos, os modelos e os antimodelos, a ilustração e
as semelhanças (FIORIN, 2015; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000). Muito
mais pode ser apresentado sobre a tipologia dos argumentos, tarefa, no entanto, que excede
os limites e objetivos deste artigo.

LEITURA RETÓRICA DE THE CAPABILITIES OF MARKET-DRIVEN


ORGANIZATIONS, O ARTIGO DE DAY
O artigo em análise, escolhido propositadamente, é considerado o de mais alto impacto
nos campos da estratégia e da Gestão da Qualidade Total (GQT) nos últimos 25 anos,
tendo acumulado 1.667 citações desde 1994, cerca de 72 ao ano, acessado por leitores das
áreas de organização, estratégia, produção e cultura organizacional (dados estes extraídos
do banco de dados da plataforma Web of Science). Para melhor compreensão do índice de
impacto, acrescentamos que, segundo o mesmo site, Kotter, outro proeminente autor sobre
estratégia organizacional, conta com 573 citações, 26 ao ano, para obra sua publicada em
1995. Espera-se, pois, que muitos dos nossos leitores conheçam o artigo em tela e possam
acompanhar melhor nosso exercício analítico; de todo modo, a leitura prévia não é condição
para tanto.
Dando sequência à proposta do artigo aqui estudado, Day (1994) parte de três premissas: (1)
apenas a organização orientada para satisfazer as necessidades dos consumidores (“orientada
para o mercado”) terá sucesso; (2) a orientação para o mercado só pode ser obtida pelo
40 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

reconhecimento e pela utilização simultânea dos ativos tangíveis e “capacidades”; e (3)


as capacidades são as formas desenvolvidas na realização dos vários processos, tais como
atendimento de pedidos, desenvolvimento de novos produtos etc. – às três premissas o autor
dá o nome de estratégia das “competências essenciais”. A teoria da estratégia reconhece
esse conjunto de presunções como representativas da escola de Resource-Based View (RBV)
(visão baseada em recursos, em tradução livre) (BARNEY, 1991). Associa-se, assim, a
estratégia das competências essenciais à Gestão da Qualidade Total (GQT), a qual, por sua
vez, é complementar à sua proposta de estratégia, posto que é voltada à gestão da operação
propriamente dita.
A tese principal de Day é que, entre todas as competências, duas são essenciais: “marketing
sense” (entendimento do mercado) e “customer linking” (conexão com os clientes). Ao longo
do artigo, o autor desenvolve argumentos (exemplos, citações bibliográficas e relações de
causalidade entre presunções e verdades) para persuadir o auditório e levá-lo a adotar suas
prescrições no tocante à estratégia organizacional, uma agenda para o desenvolvimento
dessas capacidades, associando-as às práticas da GQT. Ele alude, com aparente respeito,
à teoria do posicionamento e recomenda pesquisas futuras que aprimorem seu modelo:
melhor identificação das capacidades distintivas, estabelecimento de indicadores de
comportamento orientado ao mercado e gerenciamento do programa de desenvolvimento
das capacidades.

O ORADOR (AUTOR) E O CONTEXTO DA PUBLICAÇÃO DO ARTIGO


George S. Day graduou-se na Universidade de British Columbia, cursou MBA na
Universidade de Western Ontario e doutorado na Universidade de Columbia. À data da
elaboração desta pesquisa, é professor de marketing e um dos diretores da Wharton School
na Universidade da Pensilvânia (uma das mais importantes escolas de negócio do mundo).
É um pesquisador prestigiado de renomadas instituições e, como costuma ser regra nos
EUA, prestador de serviços (consultant) para empresas e governos de vários países.
Como já retratado, o artigo aqui estudado foi publicado em 1994, quando as obras de
William Edwards Deming (1982) e Joseph Juran (1980) já haviam construído a cultura da
qualidade na indústria americana e nas grandes escolas de negócios. Não obstante, a economia
americana, em particular o setor automobilístico, perdia a concorrência internacional para
a exitosa indústria japonesa, esta, por sua vez, pioneira na adoção da GQT. As discussões
sobre qualidade começaram no chão de fábrica, mas superaram os limites da gestão da
produção para se constituir em modelo de gestão organizacional, a GQT.
O autor ancora-se em duas ideias de grande aceitação pelo auditório, dada por fatos alheios
ao seu modelo: o crescimento da economia japonesa e as dificuldades da economia norte-
americana nos anos 1980 e 1990, e o prestígio de Deming e Juran. Ao associar seu modelo à
GQT, escolheu não desconstruir crenças, mas se aproveitar do contexto favorável à sua tese.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 41

AUDITÓRIO E EXÓRDIO
A publicação do artigo no Journal of Marketing, editado pela American Marketing
Association, prestigiado fórum da área, sugere que o auditório é, em primeiro lugar, formado
pelos demais pesquisadores em Administração de Empresas e, em segundo, por executivos
de empresas.
Quanto à construção do acordo prévio entre orador e auditório (o exórdio), dá-se pela
linguagem (idioma inglês e estilo) e pela opção de não confrontar explicitamente as teorias e
os autores que poderiam divergir do orador (Porter, particularmente). O primeiro elemento
é a utilização do idioma inglês, indiscutivelmente o da ciência e dos negócios. O segundo é
o estilo despido de expressões técnicas que poderiam estar aquém da compreensão do leitor
mediano. Por fim, o terceiro é o uso recorrente de expressões carregadas de positividade no
mundo dos negócios, tais como competitividade, lucro e produtividade. Esses elementos
combinados criam identificação entre orador e auditório, facilitando a necessária confiança
recomendada pela retórica.
Ao trazer a estratégia competitiva (“escola” do posicionamento, segundo Mintzberg,
Ahlstrand e Lampel [2010]), principal teoria com a qual poderia rivalizar, o autor não
a confronta diretamente, não a desqualifica explicitamente, mas prefere citá-la de forma
cuidadosa, como se pode constatar no seguinte trecho: “A mudança feita ao se enfatizar
as capacidades [chaves] não significa que o posicionamento estratégico de Porter é menos
importante” (DAY, 1994, p. 49), aparentemente propondo-se somar – e não subtrair
– conhecimento à teoria da estratégia. Ao adular um potencial rival tão poderoso como
Porter, evita opor-se aos seus seguidores, certamente presentes no auditório, apresentando-
se, assim, como orador gentil e equilibrado a um auditório sensível a tanto.
Day investiu parte significativa do texto para alinhar, à sua conveniência, fatos e verdades
necessários para convencer o auditório da necessidade de desenvolver as capacidades-chave
como a estratégia que torna uma empresa voltada ao mercado e, por decorrência, em exitosa.
Quase metade do texto é utilizada como exórdio, composto de definições como orientação
para o mercado, Gestão da Qualidade Total, ativos, capacidades, competências essenciais,
capacidades de dentro para fora, capacidades de fora para dentro, organizações voltadas
ao mercado, entre outras. A primeira prescrição para o desenvolvimento da capacidade
vencedora – a qual leva a empresa a se voltar para o mercado –, central em sua tese, só é
apresentada na metade do artigo, na sexta página de um total de treze. Dado que há pouca
chance de discordância do auditório com as expressões gerais, o autor constrói um clima
adequado de aceitação às suas teses.
A combinação entre o lugar do autor (suas credenciais como pesquisador e consultor), o
prestígio do Journal of Marketing, a linguagem adequada e a aparente reverência ao principal
opositor potencial buscam – e conseguem, dado o impacto do artigo – a adesão do auditório
à tese e aos argumentos que virão.
42 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

ARGUMENTOS
Os principais argumentos são referências à literatura científica, apresentações de definições
e exemplos. Nos termos da retórica, são argumentos elaborados a partir do raciocínio
preferível, do tipo fundadores do real. As referências bibliográficas principais são de autoria
de Hamel e de Prahalad, prestigiadas pelo auditório e escolhidas para confirmar a tese do
orador. No campo retórico, citações são argumentos de autoridade, o uso de autores cujos
conhecimento e relevância são inquestionáveis no juízo do auditório. São 65 referências
bibliográficas dos mais conceituados pensadores das principais escolas da estratégia,
trazendo autores como Jay Barney, Arie de Geus, Pankaj Ghemawat, Gary Hamel, C. K.
Prahalad, Robert B. Kaplan, Edith T. Penrose e Michael Porter (DAY, 1994). Um conjunto
expressivo de citações pode sugerir que a intenção dominante do autor é informar. Não é
assim, todavia: se o fosse, a revisão bibliográfica de Day deveria apresentar explicitamente
também os argumentos discordantes da sua tese.
Os exemplos são as experiências exitosas de empresas admiradas pelo porte e por seu
sucesso, como Walmart, Honda e Federal Express, entre outras (são vinte exemplos, ao
todo, ocupando oito das treze páginas do artigo). Não há detalhamento dos casos, haja
vista a utilização do respeito e a familiaridade do auditório com as grandes marcas para
emprestar credibilidade às propostas do orador: conforme Day (1994, p. 39), “[uma]
capacidade distintiva é um fator-chave de sucesso. Claramente, por exemplo, a competência
da Honda em fabricar motores eficientes, confiáveis e pequenos adiciona um grande valor
e torna seus carros mais competitivos versus a concorrência”, e complementa seu raciocínio
mencionando “[...] a habilidade da Motorola em continuamente melhorar a qualidade e
desenvolver produtos e a habilidade de integrar processos de transação da Federal Express”.
A competência da Honda, a habilidade da Motorola e a da Fedex não são sustentadas por
indicadores, sequer por fatos, sendo, portanto, apenas os juízos do autor apelando à boa
imagem das empresas.
Ora, exemplos são escolhidos à conveniência do orador, evitando deliberadamente apresentar
outros que destruiriam sua tese, isto é, as empresas cujas experiências com a GQT não
evitaram desastres: a usina nuclear de Three Mile Island em 1979, a Hubble Telescope,
o iPhone 4 da Apple e o Ford Pinto. O exemplo é tão somente uma experiência que não
permite generalizações, como bem previne a metodologia de pesquisa sobre estudo de casos.
Conforme a análise retórica, as definições podem ser apresentadas como verdades que
produzem outras (PERELMAND; OLBRECHTS-TYTECA, 2000), ou seja, encontram-
se em tal ordem que sugerem relações de causalidades aparentemente suficientes para
estabelecer que, se A é verdadeira ou plausível, então Y também o é. Assim, as definições
“ativos”, “capacidades” e “competências essenciais”, presunções utilizadas como argumentos,
sobre as quais não há discordância, cumprem a função de assegurar que é imprescindível
à organização “desenvolver capacidades para a formulação e execução de estratégia”, esta
última com o status de verdade. Na mesma linha, as frases “orientação para o mercado” e
“organizações voltadas para o mercado” preparam o terreno para a verdade: “as organizações
voltadas para o mercado têm desempenho superior” (DAY, 1994, p. 38).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 43

A utilização ordenada das definições e asserções dão credibilidade às verdades, permitindo


a Day construir o seu argumento-síntese: as características organizacionais dos processos e
recursos são facilmente copiáveis, enquanto as competências-chave não o são, daí serem mais
relevantes ao sucesso do negócio. Só então o autor apresenta as recomendações relativas à
implantação do modelo de gestão.

INTENÇÃO, TIPO DE DISCURSO E POSIÇÃO DO ORADOR


Identificados os argumentos – quais são e quais os tipos –, é possível compreender a intenção
do orador, sua posição e o tipo de artigo em tela.
O orador tem como intenção persuadir o auditório da superioridade de suas prescrições
no campo da estratégia relativamente às demais, em particular às estratégias da chamada
escola do posicionamento (cujo um dos grandes expoentes é Michel Porter), apelando à
racionalidade e às emoções do auditório para atingir sua vontade. O uso dos exemplos, das
citações bibliográficas e da ordem textual (longo exórdio, definições e verdades em relação
de suposta causalidade, apresentação das prescrições) toca a racionalidade e, ao mesmo
tempo, as emoções evocadas pelos nomes de grandes empresas de reconhecido sucesso.
Quais emoções? Admiração, esperança de atingir o mesmo desempenho, talvez.
A intenção determina o tipo do texto: mover as crenças relativas à melhor forma de gerir e à
melhor estratégia a escolher, ainda que informe o auditório sobre estratégia e GQT. Mover,
nesse caso, é influenciar ou orientar ações, levar o auditório a utilizar suas ideias e – por que
não? – a contratar seus serviços de consultor.
A intenção do orador, por fim, é a de defender suas ideias, seu trabalho como pesquisador,
professor e consultor e, em segundo plano, contribuir para o aprimoramento do conhecimento
em Administração das Empresas e das reflexões do auditório no que diz respeito à estratégia
e à eficácia na gestão das organizações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa objetivou evidenciar a potencialidade do uso da retórica ao ensino em cursos
de graduação em Administração e, deste modo, para contemplar tal proposta, selecionou-se
um artigo clássico sobre estratégia a fim de se realizar uma análise retórica contundente.
Rumando, portanto, ao fechamento do presente estudo, traz-se uma constatação de Walter
Benjamin (2000), segundo o qual, na sociedade contemporânea, a obra de arte não fala por
si, devendo, portanto, ser explicada ao público. Das obras de pensadores como Aristóteles
e Descarte e – salvaguardada a devida diferença de proporção e importância – da nossa
experiência docente, também os textos não se revelam facilmente ao leitor: pelo contrário, a
compreensão exige método e disciplina (ou prática). Como pudemos demonstrar, a retórica
aristotélica não só ensina a organização da mensagem do orador, como também permite sua
desconstrução por meio da leitura crítica.
44 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

O senso comum, no que lhe diz respeito, utiliza a expressão “crítica” como um ato de
desqualificar determinado conteúdo; a retórica, porém, utiliza-a como análise e avaliação
criteriosas. A capacidade de ler criticamente é um poderoso instrumento de aprendizagem
tanto do conteúdo do que se lê (ou simplesmente se vê, quando se retratando de uma
imagem) quanto do escrever e do pensar. Isto se dá, porque compreender a posição e a
intenção de um orador, assim como identificar argumentos e o tipo de um texto são um
exercício de desconstrução do pensamento que ensina a construir o próprio raciocínio,
acelerando a aquisição da experiência intelectual, a qual, sem o recurso à técnica retórica,
seria mais lenta.
A literatura no campo das ciências humanas é majoritariamente posicionada – quem quer
que “fale” o faz de uma determinada posição. Portanto, o autor tem uma intenção e utiliza
argumentos com vistas a persuadir seu auditório, não pelo desejo de embuste, mas por
ser da natureza dos fenômenos sobre os quais se debruça. Trata-se do mundo classificado
por Aristóteles (2012) como não demonstrável e, por isso mesmo, não deve ser abordado
nos termos do raciocínio necessário, mas, sim, do preferível. As técnicas de interpretação
de textos não ajudam o auditório de forma explícita a compreender a qualidade dos
argumentos e as intenções do autor, daí a superioridade da retórica para o estudo dos textos
de Administração de Empresas.
A leitura retórica é interpretação e, assim sendo, estas considerações podem – e devem –
ser cotejadas por exercício semelhante de outros autores. Feita a ressalva, avalia-se que a
principal contribuição do artigo de Day, isto é, sua proposta de estratégia cuja implementação
utiliza os instrumentos da GQT, não é exatamente original, pois os elementos fundamentais
da proposta – ou seja, a estratégia baseada em recursos e a GQT em si – não são de sua
autoria. A obra de Mintzberg, Ahlstrand e Lampel (2010), ao tratar da teoria da estratégia
baseada em recurso, cita Birger Wernerfelt nos anos 1980 como pioneiro do campo, seguido
por Prahalad e Hamel, na década de 1990, como os responsáveis pela popularização das
ideias a respeito das capacidades dinâmicas. Em síntese, nesta análise, compreende-se que
a contribuição de Day é combinar elementos conhecidos de maneira organizada para o
mundo do management. Adicionalmente, a despeito de ter escrito para mover a opinião do
auditório, também contribuiu para a discussão sobre temas relevantes no referido campo
administrativo.
De forma compatível com sua intenção predominante (que é obter a adesão do auditório
ao seu modelo de estratégia baseada em competências-chave) e a partir dos argumentos
utilizados, Day não avançou na compreensão ou na superação de eventuais lacunas da
teoria e da implementação da estratégia, sem ter invalidado quaisquer outras propostas
na área. Como, então, explicar a importância do texto publicado há mais de 25 anos? Pela
competência retórica do orador.
A competência retórica do artigo funda-se na articulação adequada do exórdio, em argumentos
e prescrições e na utilização de argumentos considerados adequados pelo auditório: os
exemplos, as citações de autores de prestígio e o uso das presunções (afirmações verossímeis
aos olhos do auditório) para sustentar as “verdades” que, por fim, levem à aceitação das
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 45

propostas do autor. Adicionalmente, pode ter se beneficiado à época da publicação de seu


texto da aproximação com a GQT, de grande popularidade. O impacto atual do texto, no
entanto, sugere que ele se manteve atraente por méritos próprios.
Ainda sobre o impacto textual, tal qual medido pela Web of Science, a retórica sugere que ele
pode ser causado pela simplicidade da proposta. Há um extenso exórdio, uma longa lista de
exemplos e citações, mas a recomendação é simples: as competências-chave para chegar ao
cliente são apenas duas – o entendimento do mercado e a conexão com os clientes e, para
implantar as competências-chave, a conhecida e prestigiada Gestão da Qualidade Total.
A retórica sempre mostrou o poder da simplicidade para a eficácia da persuasão
(ARISTÓTELES, 2012), algo particularmente válido, a nosso ver, para um auditório que
valoriza o pensamento estruturado e comprometido com a ação.
A leitura retórica, portanto, admite vários níveis e interpretações e, nesta pesquisa, foi
apresentado o seu nível mais genérico, com base nas principais categorias analíticas e
visando ao objetivo proposto, e produzida uma interpretação que certamente está longe de
ser única, por empreender inúmeros desenvolvimentos possíveis. Pode-se considerar, por
fim, que o aspecto mais relevante do artigo não é a leitura retórica sobre o texto de Day, em
si e por ele próprio, mas a demonstração das possibilidades da retórica para a compreensão
da literatura e da aprendizagem nos cursos de graduação em Administração de Empresas.

NOTAS
1 Submetido à RIGS em: nov. 2019. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Aquela se trata de uma compilação autoral de Fernando, Silva e Amorim (2017), portanto, as
obras mencionadas foram replicadas da seleção dos autores, não constando em nosso aporte
bibliográfico.

REFERÊNCIAS
ALEXANDRE JR., Manuel. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012.
ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
ARISTÓTELES. Organon. São Paulo: Edipro, 2016.
ARIDA, Pérsio. A história do pensamento econômico como teoria e retórica. In: REGO,
José M. Retórica na economia. São Paulo: Editora 34, 1996. p. 11-46.
BARNEY, Jay. Firm Resources and Sustained Competitive Advantage. Journal of
Management, v. 17, n. 1, p. 99-120, 1991.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In:
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46 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

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SCHUMPETER, Joseph A. Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril,
1982.

Rodrigo Doutor e mestre em Administração pela PUC/SP. Professor de Marketing


Guimarães e Vendas em cursos de extensão, graduação, pós-graduação e MBA, além
Motta de executivo e empresário atuante em algumas das principais empresas
multinacionais e nacionais de bens de consumo e saúde.

Neusa Maria Pós-doutora pela McGill University, doutora em Controladoria e


Bastos Contabilidade pela USP e mestra em Administração pela USP. Vice-
Fernandes dos coordenadora do programa de pós-graduação em Ciências Contábeis e
Santos professora titular da PUC/SP.
Maria Cristina Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP e mestra em Economia pela
Sanches USP. Professora titular no departamento de Economia e no programa de
Amorim pós-graduação em Administração, coordenadora do grupo de pesquisa
“Gestão, Economia e Política”, assim como coeditora da Revista de Ciências
Médicas da Faculdade de Sorocaba da PUC/SP.
Jorge Vieira da Doutor em Ciências Políticas pela PUC/SP e mestre em Administração pela
Silva PUC/SP. Professor de Governança Corporativa, Finanças Empresariais e
Diplomacia Corporativa e Prevenção de Conflito na Ambra University
(Orlando, Flórida, EUA) e professor pesquisador associado sênior do
grupo de pesquisa em “Gestão, Economia e Política” do programa de pós-
graduação em Administração da PUC/SP.
48 A Potencialidade do Uso da Retórica para o Ensino de Administração

Foto: Kleber Moitinho


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v.10n.1 p. 49- 61
ISSN: 2317-2428
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Capturas do Silêncio: memórias do vazio em


Lisboa1
Catia Eli Gemelli

Resumo A experiência da pandemia não é a mesma para todas as pessoas e são


múltiplas as formas de expressar cada vivência. As fotografias podem exibir
o mundo de maneiras particulares, mas também dizem de momentos
e experiências coletivas. Este ensaio fotográfico apresenta algumas das
memórias do meu período de doutoramento intercalar na cidade de Lisboa/
Portugal, durante a pandemia provocada pela COVID-19. São capturas de
luz à sombra da falta, da vida concretada, da noite calada, do (in)finito de
cores e flores sem plateias. Os registros iniciaram em 18 de março – data em
que o governo português declarou estado de emergência – até 17 de julho de
2020 – dia em que retornei ao Brasil. Para além do meu olhar, essas imagens
compõem um patchwork de momentos fragmentados por vazios.

Palavras-chave Pandemia. COVID-19. Fotografias. Vivências. Lisboa.

Abstract The experience of the pandemic is not the same for everyone and there are
multiple ways of expressing each experience. Photographs can display the
world in particular ways, but they also speak of collective moments and
experiences. This photo essay presents some of the memories of my interim
doctoral period in the city of Lisbon/Portugal, during the pandemic caused
by COVID-19. They are captures of light in the shadow of lack, of concreted
life, of silent night, of (in)finite colors and flowers without an audience.
The records began on March 18 – the date the Portuguese government
declared a state of emergency – until July 17, 2020 – the day I returned to
Brazil. Beyond my gaze, these images make up a patchwork of moments
fragmented by voids.

Keywords Pandemic. COVID-19. Photographs. Experiences. Lisbon.


50 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

INTRODUÇÃO
As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos. Precisam de nós para
que sejam desdobrados seus segredos. As fotografias são memórias, histórias
escritas nelas, sobre elas, de dentro delas, com elas (SAMAIN, 2012, p. 160).

Este ensaio fotográfico ilustra fragmentos das minhas memórias durante os quatro meses
pandêmicos que vivi em Lisboa. Mudei-me para a cidade em fevereiro de 2020 para a
realização do doutoramento intercalar no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
Meu primeiro contato foi com uma cidade viva, de ruelas ocupadas pelos mais diversos
cheiros, sons, cores, idiomas e nacionalidades.
Em 2019, a cidade de Lisboa foi eleita, pelo terceiro ano consecutivo, o Melhor Destino City
Break do Mundo nos World Travel Awards (WTA), ou seja, melhor destino para viagens
de curta duração. O WTA é um programa criado em 1993 para reconhecer, recompensar
e celebrar a excelência em todos os principais setores das indústrias de viagens, turismo e
hotelaria. A par da distinção recebida por Lisboa, Portugal foi eleita como Melhor Destino
Turístico do Mundo, algo ilustrado pelos números do turismo. Em 2019, o setor turístico do
país bateu um novo recorde ao registrar 27 milhões de pessoas (INE, 2020).
Para 2020, as previsões eram de um novo ano de recorde no turismo lisboeta, até o início da
pandemia da COVID-19. Em 02 de março, foi confirmado o primeiro caso em Portugal, na
cidade do Porto. Seguindo um movimento mundial, no dia 13 de março, o governo português
anunciou a “Declaração de Situação de Alerta” em todo o território nacional. As ruas de
Lisboa já apresentavam uma diminuição na circulação de turistas e um crescimento na
quantidade de pessoas usando máscaras. Na segunda-feira, dia 16 de março, foi registrada a
primeira morte em território português, um homem de 80 anos que se encontrava internado
no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Em 18 de março, o governo português declarou o
estado de emergência, que durou até 04 de maio, data de início do plano de desconfinamento
em etapas gradativas.
Assim como Prestes e Grisci (2017), considero a fotografia um valioso elemento visual que
pode ir além de um caráter meramente ilustrativo ou representativo. Este ensaio diz de um
tempo, mas também de sentimentos. São imagens fotográficas que “provocam os domínios
do tempo como captura de um instante preciso e sensível e como possibilidade de duração”
(SILVA; TITTONI; AXT, 2013, p. 204).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 51

O primeiro dia em que encarei o vazio. A Calçada de Carriche é uma das principais entradas e
saídas da Cidade de Lisboa. Data: 02/04/2020.

A igreja. Largo Padre Augusto Gomes Pinheiro. Data: 15/04/2020


52 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

Qual a história deste urso? Na Estrada do Lumiar, há um longo muro de concreto, desgastado
pelo tempo, e, nele, um urso de pelúcia abandonado. Sempre que passava por ele, imaginava
suas possíveis histórias. Data: 15/04/2020.

.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 53

É proibido sentar-se ou brincar. Praças e parques do Lumiar. Data: 17/04/2020.


54 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

Silêncio na Rua do Ouro. Elevador de Santa Justa e Baixa Chiado. Data: 24/04/2020.

Novo souvenier. Rossio. Data: 24/04/2020.


© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 55

O comboio parou. Praça Martim Moniz. Data: 24/04/2020.


56 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

Não há vida no Castelo. Entrada e ruela do Castelo de São Jorge. Data: 24/04/2020

Primavera sem plateia. Jardim do Torel. Data: 01/06/2020.


© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 57

Noite calada. Rua de Santa Catarina e Estação de Metro Baixa-Chiado. Data: 03/06/2020.

Ensino Remoto. Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Data: 12/06/2020.


58 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

A espera da próxima fornada. Manteigaria da Rua Augusta. Data: 16/07/2020.

Tempo e espaço. Mercado TimeOut. Data: 16/07/2020.


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Partida silenciosa. Estação do Metrô e Salão de Entrada do Aeroporto de Lisboa. Data:


17/07/2020.
60 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

Partida silenciosa. Estação do Metrô e Salão de Entrada do Aeroporto de Lisboa. Data:


17/07/2020.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em out. 2020.

REFERÊNCIAS
PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística (INE). Disponível em: <https://www.
ine.pt/>. Acesso em: 08 set. 2020.
PRESTES, V. A.; GRISCI, C. L. I. A Fotografia como Lugar de Memórias e Recurso
Disparador da Fala no Trabalho Imaterial de Modelo de Moda. RIGS – Revista
Interdisciplinar de Gestão Social, Salvador, v. 6, n. 3, p. 39-54, 2017.
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SAMAIN, E. As peles da fotografia: fenômeno, memória/arquivo, desejo. Visualidades, v.
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SILVA, P. M.; TITTONI, J.; AXT, M. Experimentações fotográficas: o tempo como tema-
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2, p. 203-216, 2013.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 61

Catia Eli Professora de Administração no Instituto Federal de Educação, Ciência


Gemelli e Tecnologia do Rio Grande do Sul/Campus Osório. Doutoranda em
Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/
UFRGS).
62 Capturas do Silêncio: memórias do vazio em Lisboa

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p. 63- 69
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A Universidade Pública Mergulhada no Virtual: o


que nos diz o Congresso 2020 – Virtual da UFBA?1
Tânia Moura Benevides e Lídia Boaventura Pimenta

Resumo Com o pressuposto de que a vida pós-pandemia não será como antes, o
objetivo do artigo é evidenciar a contribuição do Congresso UFBA 2020
– Virtual, como suporte ao desenvolvimento do ensino na instituição
universitária, mediante o uso das Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC). O período atual experimentado pelas sociedades
resultante da pandemia em decorrência da COVID-19 revelou a necessidade
de se pensar em atividades acadêmicas remotas, via mediação tecnológica.
Nesta linha, o presente texto relata a experiência de participantes no referido
Congresso, o qual evidenciou à comunidade acadêmica a possibilidade de
integração virtual, com o uso da TDIC no ambiente educacional.

Palavras-chave TDIC. Ensino. Comunidade Acadêmica.

Abstract With the assumption that post-pandemic life will not be as it used to,
the aim of the article is to highlight the contribution of the UFBA 2020
Congress – Virtual, as support for the development of education in the
university, through the use of Digital Information and Communication
Technologies (TDIC). The current period experienced by societies as a
result of the COVID-19 pandemic revealed the need to think about remote
academic activities, through technological mediation. Thus, this text reports
the experience of participants in this Congress, which evidenced to the
academic community the possibility of virtual integration, with the use of
DicT within the educational environment.

Keywords TDIC. Teaching. Academic Community.


64 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual

INTRODUÇÃO
A pandemia em pleno Século XXI, decorrente da Declaração de Emergência em Saúde
Pública de Importância Internacional (ESPII) pela Organização Mundial da Saúde, em 30
de janeiro de 2020, provocada pela COVID-19 (novo coronavírus), impôs a suspensão das
atividades presenciais nos quatro cantos do mundo. Em específico quanto ao funcionamento
das atividades na área da educação, no estado da Bahia, Brasil, as aulas foram suspensas em
março de 2020, após a publicação da Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a
qual prevê medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional, acompanhada pelos Decretos Estaduais nº 19.529 e nº 19.532 de 16 e 17
de março de 2000, conforme evidenciado com a suspensão das atividades acadêmicas de
ensino de graduação da Universidade Federal da Bahia.
Neste contexto, a Medida Provisória nº 934, de 1º. de abril de 2020, complementa a
orientação concernente à suspensão das atividades acadêmicas quando estabelece normas
excepcionais sobre o ano letivo da Educação Básica e do ensino superior, decorrentes das
medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a
mencionada Lei Federal nº 13.979. A Portaria Federal nº 544, de 16 de junho de 2020,
orienta a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, até 31 de dezembro
de 2020, e o Parecer do Conselho Nacional da Educação (CNE), Conselho Pleno (CP) nº
5/2020, aprovado em 28 de abril de 2020, institui a reorganização do Calendário Escolar
e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento
da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da COVID-19, acompanhado do
Parecer CNE/CP nº 9/2020.
Considerando as normas aqui apresentadas, a comunidade acadêmica encontrou-se diante
dos desafios ocasionados na realidade mundial em decorrência da pandemia, a qual,
interferindo em todos os aspectos da vida social, para a educação, trouxe um componente
a mais: manter as atividades educacionais a partir de uma lógica inovadora para docentes,
técnicos universitários e discentes: o uso das Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC) no ensino.
Tal desafio impôs-se para a comunidade acadêmica de forma intempestiva e gerou diferentes
posicionamentos sobre os percursos e direcionamentos a serem adotados para atendimento
e manutenção das atividades de ensino, pesquisa e extensão, de forma a preservar o vínculo
com os estudantes. É fato que as instituições universitárias públicas foram convocadas a
discutir amplamente a temática concernente ao uso da mediação tecnológica no ambiente
educacional.
Seguindo a dinâmica da Universidade, a qual deve participar e contribuir para a solução
de problemas vivenciados pela sociedade, desde março de 2020, são realizados debates,
reflexões, com lastro em pesquisas nas áreas de gestão da educação, formação docente ou
educação a distância, no intuito de propor ações que subsidiem os Conselhos Superiores
da Instituição nos diferentes processos de tomada de decisão, com ênfase em possibilitar
a conectividade da comunidade universitária (acesso à internet aliado à disponibilidade de
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 65

dispositivo), para que as atividades acadêmicas sejam desenvolvidas com a participação de


todos.
Considerando o contexto de pandemia e os desafios enfrentados pelas universidades públicas
no Brasil, e de forma mais específica na Bahia, este trabalho parte da seguinte questão: De
que maneira o Congresso UFBA 2020 – Virtual contribuiu para a utilização das TDIC no
contexto do ensino na Universidade Federal da Bahia?
Esta Contribuição Vivencial tem por objetivo geral discutir as contribuições do Congresso
UFBA 2020 – Virtual para o uso de TDIC na comunidade acadêmica da UFBA. De forma
mais específica, busca-se caracterizar o evento realizado em um contexto de pandemia; e
identificar as contribuições das TDIC para a viabilização do Congresso 2020 – Virtual
e a possibilidade de uso da mediação tecnológica na oferta das atividades de ensino de
graduação.
Este relato justifica-se em função da importância da realização do Congresso UFBA 2020
– Virtual em maio de 2020, no contexto de crise sanitária, exigindo dos organizadores e da
equipe técnica o planejamento e execução do evento “mergulhados no virtual”, conforme
mencionou Fernando Guerreiro, presidente da Fundação Gregório de Mattos, por ocasião
da comemoração do Dois de Julho em 2020, tendo em vista a impossibilidade de realizar o
desfile tradicional.
Com efeito, os ambientes educacional e cultural sofreram o impacto da pandemia de forma
imediata: sala de aula e teatro implicam em convivência de pessoas, troca de experiências.
Como assegurar o distanciamento social nestes ambientes? Ou como acontecer sem o
encontro presencial? Surgem então as lives dos artistas e o uso das plataformas digitais
como estratégias de assegurar os vínculos sociais e institucionais.
Assim, entende-se o Congresso UFBA 2020 – Virtual como evento de grande relevância
no cenário nacional, o qual mobilizou grande número de pessoas no cenário nacional e
internacional e cujo planejamento e realização aconteceram por mediação de TDIC.
Esse trabalho está estruturado em três seções. A primeira aqui apresentada é a introdução,
trazendo os elementos norteadores desse estudo. A segunda constitui-se em uma
contribuição vivencial acerca da realização do Congresso UFBA 2020. Na terceira e última
seção, são apresentadas as considerações finais sobre o relato.
66 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual

CONGRESSO UFBA 2020 - VIRTUAL


A mediação tecnológica, proporcionada pelas Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação, está presente como objeto de análise no atual contexto de pandemia em todas
as esferas da vida humana. No âmbito da educação, o uso das TDICs tem sido amplamente
debatido em função da sua utilização para a manutenção de parte das atividades escolares
e formativas. Tal debate apresenta discussões passionais que vão da ampla defesa até a mais
expressiva manifestação de repulsa.
Por mediação, entende-se facilitar a relação entre as pessoas, com origem do latim mediare,
que significa mediar; relação que se constitui entre dois ou mais objetos, pessoas ou
concepções; vínculo entre professor, estudantes e o objeto de conhecimento (FERREIRA,
2010). Para Bates (2016), a mediação tecnológica na educação auxilia a prática discente
estimulando a pesquisa, a análise e a aplicação da informação; permite o diálogo entre
sujeito e conhecimento, entre professor e aluno e entre estudantes e colegas, facilitando o
processo ensino aprendizagem, contudo, requer do docente a aproximação do processo de
reflexão, seleção e apropriação de tecnologias, considerando o projeto pedagógico do curso
e a ementa da disciplina ou componente curricular. O mesmo autor ressalta que
Tecnologias e novos modos de distribuição abrem oportunidades maravilho-
sas para repensar completamente o processo de ensino. Professores [...] com
profundo conhecimento do assunto podem agora encontrar muitas maneiras
originais e emocionantes para abrir seu ensino e para integrar sua investigação
de pesquisa ao seu ensino. A restrição principal agora não é tempo nem din-
heiro, mas falta de imaginação. Aqueles com imaginação serão capazes de voar
de maneiras antes impensáveis no ensino (BATES, 2017, p. 455).

Assim, a mediação tecnológica é compreendida como uma aproximação ao processo


de reflexão, seleção e apropriação de tecnologias voltadas à efetiva prática de mediação
pedagógica na educação, também concebida como “educação mediada por tecnologias”.
O uso de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação para a construção do
conhecimento permite agregar professores, estudantes e demais atores da comunidade
acadêmica em espaço e tempos distintos, todos atuando de forma coletiva e colaborativa,
servindo de intermediária entre grupos e pessoas afim de dirimir divergências, superar
desafios, solucionar problemas e transformar a educação, disseminando conhecimento e
gerando transformação territorial (CARVALHO; SILVA; MILL, 2018).
O uso de TDIC, apesar de ter grande potencial para a universalização, democratização e
interiorização da educação superior, em certa medida, ainda é avaliado com desconfiança e
restrições no contexto acadêmico. Tal avaliação ocorre, principalmente, em função do uso
inadequado das TDICs e não propriamente da sua natureza. Entretanto, a crise sanitária
obrigou a comunidade acadêmica a refletir, utilizar e difundir as TDICs, estabelecendo
uma nova apropriação para os recursos tecnológicos. Um exemplo bem significativo dessa
utilização vincula-se à realização do Congresso UFBA 2020 – Virtual, em maio de 2020.
As atividades do Congresso em análise foram compostas de vídeo-pôsteres, mesas e outras
formas de discussão, a exemplo de palestras, debates, entrevistas e depoimentos, além das
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 67

participações artísticas. Todas as atividades foram realizadas de forma remota, respeitando


as recomendações sanitárias. Os resultados do evento, ocorrido entre os dias 18 e 29 do mês
de maio, foram considerados de muito sucesso, com reconhecimento amplo e irrestrito de
toda comunidade acadêmica nacional e internacional. Para além do período, observa-se um
outro benefício decorrente do evento – um enorme acervo digital de todas as atividades
propostas e realizadas (UFBA, 2020).
Essa constatação reforça a importância da qualidade do corpo docente, técnico e discente da
UFBA, o qual, ao se deparar com um desafio sem precedentes na sua história, se articulou,
organizou e executou com maestria um evento reconhecidamente relevante pela comunidade
acadêmica baiana. As condições podem ser adversas, mas o potencial e qualidade do capital
humano na universidade pública, indiscutivelmente, credenciam a condição de diferenciação
para a sua atuação.
Ressalta-se, ainda, a relevância dos atos de inovação nas diferentes unidades da UFBA.
O Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), desde 2005,
desenvolve e testa modelos de formação em gestão social, utilizando-se das TDICs, por
meio da mediação tecnológica. Tal experiência gerou um diferencial para a Escola de
Administração da UFBA (EAUFBA), proporcionando o desenvolvimento de competências
digitais pelo corpo técnico e docente através da participação das iniciativas e experiências
formativas do CIAGS da EAUFBA, ao longo dos anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto de pandemia tornou emergentes indagações que estavam reprimidas, a exemplo
do uso de recursos tecnológicos como mediação no ensino. Para Bates (2016), a mediação
tecnológica na educação auxilia a prática discente, estimulando a pesquisa, análise e
aplicação da informação; permite o diálogo entre sujeito e conhecimento, professor e aluno,
estudantes e colegas. Entretanto, requer do docente o processo de seleção e apropriação de
tecnologias, considerando o projeto do curso e ementa do componente curricular.
É fato que o uso da mediação tecnológica no processo ensino e aprendizagem decorre das
transformações na sociedade causadas pelo uso cotidiano das TDIC. Assim, ela solicita da
universidade adoção de objetos de aprendizagem que estimulem e propiciem aos alunos
experiências práticas em parceria com a discussão teórica. Trata-se de intervenção de caráter
instrucional que exige uma postura ativa do aluno e uma ação reflexiva do professor em
relação à escolha do objeto que melhor se adeque ao momento e perfil da turma.
Em atenção ao questionamento deste estudo, o desenvolvimento das atividades acadêmicas
na UFBA, após a declaração do estado de pandemia em 2020, iniciativas a exemplo do
Congresso UFBA 2020 – Virtual, em maio de 2020, proporciona a discussão sobre o uso da
TDIC no ambiente educacional, possibilitando o processo ensino/aprendizagem, por meio
da integração professor e estudante, estudante e estudante, técnico, docente e estudante, em
um ambiente virtual. Portanto, é preciso reconhecer essa estratégia da UFBA, como uma
forma de incentivar sua comunidade a participar de atividades acadêmicas de forma remota,
68 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual

preservando o vínculo com a instituição, a conectividade, a inclusão digital, buscando


garantir e preservar o direito à educação.
O congresso foi um “mergulho no virtual”, oportunidade em que, ao experimentar a
efervescência das atividades e discussão sobre a pesquisa, ensino e extensão, a comunidade
acadêmica pôde reduzir a resistência ao uso de TDICs na UFBA.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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Acesso em: 28 jul. 2020.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 69

Tânia Moura Graduada em Administração pela Faculdade Ruy Barbosa, especialista em


Benevides Finanças Empresariais pela FGV, mestre em Administração Estratégica
pela Universidade Salvador e doutora em Administração pela Universidade
Federal da Bahia. Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, coordena
a Unidade de Educação à Distância da UNEB. Como pesquisadora, integra
a equipe do projeto denominado Qualidade do Ambiente Urbano de
Salvador - QUALISalvador, o qual tem como objeto de estudo a realidade
urbano ambiental de Salvador.

Lídia Graduada em Administração pela Escola de Administração de Empresas da


Boaventura Bahia, Especialista em Auditoria Interna (UCSAL/AUDIBRA), Mestre e
Pimenta Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professora do
Programa de Pós-Graduação Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação
(GESTEC/UNEB). Coordenadora Adjunta da Unidade Acadêmica de
Educação à Distância (UNEAD/UNEB). Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Educação, Universidade e Região – EduReg.
70 A Universidade Pública Mergulhada no Virtual

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p. 71- 85
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39296

Subtração da Gestão de Políticas Públicas no


Contexto Pandêmico: os desdobramentos de um
desamparo público agravado pela Covid-191
Rosana de Freitas Boullosa, Janaína Lopes Pereira Peres, Lara Silva Laranja
e Luciana Guedes da Silva

Resumo O novo coronavírus trouxe uma série de desafios e dilemas para diferentes
campos científicos, os quais não mediram esforços nas contribuições para o
enfrentamento à pandemia de COVID-19. No campo das políticas públicas
e, em especial, no campo de estudos das políticas públicas, esses desafios
retomaram a inclinação à racionalidade instrumental (de tradição positivista)
e à desassociação entre fato e valor; agravaram o desamparo público vivido;
e ressaltaram a disputa de narrativas no Brasil, gerando um esvaziamento
discursivo em torno da noção de ‘gestão’ no combate à pandemia. Neste
artigo, a despolitização da gestão de políticas públicas é problematizada a
partir desses três aspectos, abordando os fatores que causaram a subtração da
gestão, e discutindo como a Gestão Social pode contribuir para retomar um
projeto de desenvolvimento democrático e participativo.

Palavras-chave Gestão de Políticas Públicas. Gestão Social. Pandemia. Desamparo Público.

Abstract The new coronavirus brought a series of challenges and dilemmas to


different scientific fields, which spared no effort in contributing to tackle the
COVID-19 pandemic. In the field of public policies and, especially, in the
field of public policy studies, these challenges have returned to the inclination
towards instrumental rationality (of positivist tradition) and disassociation
between fact and value; they have also aggravated the public helplessness
experienced; and highlighted the dispute for narratives in Brazil, generating
and emptying public management in combating the pandemic. In this article,
the depoliticization of public policy management is problematized based
on these three aspects, addressing the factors that caused the subtraction
of management, and discussing how Social Management can contribute to
resuming a democratic and participatory development project.

Keywords Policy Management. Social Management. Pandemic. Public Helplessness.


72 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

INTRODUÇÃO: CONSTRUINDO UM ÓCULOS ANALÍTICO-VALORATIVO


PARA PROBLEMATIZAR A PERDA DA IMPORTÂNCIA DA GESTÃO
A triste curva de expansão da pandemia de COVID-19, no Brasil, a qual já alcançou mais
de 140 mil óbitos em apenas 07 meses, parece vir acompanhada de uma contração dos
espaços de diálogo e de construção discursiva sobre a noção de gestão de políticas públicas.
Uma leitura pouco atenta deste cenário pode interpretar tal contraste como paradoxal,
particularmente se levarmos em consideração que grande parte da produção científica
mundial sobre a pandemia vincula-se, de um modo ou de outro, a uma discussão sobre
políticas públicas (em sentido amplo). Ampliando um pouco o olhar, já começamos a
perceber que temos falado, cada vez mais, sobre a importância das políticas públicas, e, cada
vez menos, sobre os seus processos de gestão.
E, ao falarmos mais sobre políticas públicas, assistimos a um adensamento expressivo de
sua arena, provocada, em grande medida, por uma capacidade excepcional de ativação da
Academia brasileira, na realização e na divulgação de pesquisas, no desenvolvimento de
plataformas de monitoramentos e de modelos analíticos, dentre outras formas de expressão
e de produção de conhecimento científico, voltados ao enfrentamento de tal problema
público2. Grande parte deste recente adensamento é êxito quase direto de um movimento
de advocacy mais amplo, por uma retomada (ou quase uma refundação) do papel da ciência
na sociedade, um movimento alicerçado na ideia de que é preciso conhecer, sistemática e
profundamente, o novo coronavírus, com toda a rede de implicações que estruturam a sua
gravidade e a sua expansão pelo território brasileiro.
Se, por um lado, este adensamento é importante para o campo de estudos e práticas em
políticas públicas; por outro, não é possível desconsiderar que esta advocacy tem sido por
uma ciência de epistemologia positivista, de base economicista, de tradição linear-explicativa
e metodologicamente empírica. E isto, claro, traz consequências para os desenvolvimentos
internos do próprio campo. Em particular, gostaríamos de problematizar os riscos de que,
nesse processo de revalorização da ciência (ou melhor, de um tipo único de ciência), o campo
de estudos em políticas públicas (policy studies) seja reduzido apenas àquelas abordagens
pautadas em epistemologias positivistas, as quais apostam na neutralidade e no caráter
técnico e racional tanto dos gestores quanto dos processos de políticas públicas.
Trata-se de um risco que não pode ser minimizado, pois, apesar da indiscutível necessidade
de valorização da ciência e, particularmente, da ciência das políticas públicas, estes avanços
não podem ser acompanhados da despolitização das políticas públicas, da redução da gestão
a uma atividade especializada e meramente técnica e do risco de desaceleração de uma
fértil e necessária pluralização do campo de estudos em políticas públicas (BOULLOSA;
PERES; BESSA, 2020). Ademais, ao conferir o poder de agência apenas a um pequeno
grupo de indivíduos, pertencentes a uma elite burocrática, bloqueiam-se as possibilidades
de ativação de outras multiatorialidades (BOULLOSA, 2019), bem como as possibilidades
de emergência de experiências públicas capazes de fomentar a inovação social e a construção
de novos espaços de diálogo (PERES, 2020).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 73

Com isto, reforça-se, cada vez mais, o alijamento da política (e também das políticas
públicas) de nossas vidas cotidianas, como se o ‘político’ fosse nocivo à sociedade ou fosse,
necessariamente, o caminho perverso da apropriação privada da coisa pública, num contraste
evidente com uma ideia mais ampla de democracia (DEWEY, 1998 [1937]). Neste contexto
de crise pandêmica, este movimento de subtração da importância e da dimensão política da
gestão ganha contornos ainda mais complexos, sobretudo no que diz respeito aos processos
de deliberação: em lugar de serem publicamente construídos, são conduzidos tecnicamente,
como se não houvesse questões valorativas envolvidas nesta atividade. Este esvaziamento
obstrui o diálogo e potencializa os sentimentos de desproteção, de medo e de abandono,
contribuindo para algo que, metaforicamente, interpretamos como um “desamparo público”.
Diante disso, este artigo objetiva problematizar esse movimento de despolitização da
gestão de políticas públicas, potencializado pelo momento pandêmico, e jogar luz sobre
a necessidade de reinvenção da gestão. Para isso, assumimos a gestão como um espaço
de tensão valorativa e argumentativa entre as dimensões política e técnica dos fluxos
multiatoriais em políticas públicas, a partir dos estudos críticos em políticas públicas
(MAJONE, 1989; FISCHER; FORESTER, 1993; FISCHER, 2016). Do ponto de vista
do método, as ideias aqui presentes são frutos de uma pesquisa implicada (BOULLOSA,
2019), de natureza exploratória, predominantemente qualitativa, na qual dados e evidências
quantitativas são apresentados como pertencentes a estruturas narrativas e valorativas e seus
usos são compreendidos como instrumentos modificadores da consciência e da sociedade
como um todo (BARRETO, 1994).
Faremos isso em três momentos. Começamos problematizando a revalorização de uma
gestão científica das políticas públicas, pautada exclusivamente na racionalidade linear-
sequencial no contexto da pandemia de COVID-19. Em um segundo momento, discutimos
o crescente afeto de “desamparo público” – aqui proposto como metáfora interpretativa do
dramático acúmulo de crises na história recente do Brasil, as quais apenas se aprofundam
com a chegada da pandemia de COVID-19 (ABBRUCCIO et al., 2020; BRONZO, 2020;
SPOSATI, 2020; TENÓRIO, 2020). Por fim, em um terceiro momento, adicionamos à
discussão uma nova camada, relativa às disputas narrativas e aos perigos da despolitização da
gestão de políticas públicas, sobretudo em um momento como este. Por fim, argumentamos
que a confluência dessas três situações problemáticas engendra a des-valorização progressiva
da gestão de políticas públicas.

A REVALORIZAÇÃO DE UMA GESTÃO CIENTÍFICA DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS
Antes mesmo dos primeiros indícios de que o mundo viria a atravessar uma pandemia dessa
magnitude, quando os primeiros casos de contaminação por Sars-CoV-2 começaram a ser
noticiados na China, a desinformação também começou a ganhar espaço nas discussões sobre
este assunto, tanto na mídia hegemônica quanto nos espaços mais privados de produção
e circulação de informações. Governos e organismos internacionais, como a Organização
Mundial da Saúde (OMS), ainda tateavam as informações que poderiam ser consideradas
74 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

confiáveis sobre a doença, seus modos e velocidades de propagação e de contágio, os


meios necessários para contê-la, os caminhos que deveriam ser tomados etc. Conhecia-
se, portanto, muito pouco sobre este vírus, cujos desenvolvimentos e consequências ainda
seguem recebendo ajustes contínuos.
Diante de tantas lacunas e incertezas, a comunidade científica internacional começou, muito
rapidamente, a se organizar por meio da reunião de importantes grupos de pesquisadores,
institutos e universidades, empreendendo uma verdadeira corrida na produção de informações
confiáveis. Por outro lado, à medida que tal produção avançava, crescia também a produção
de informações sem base científica. Pós-verdade, populismo, desconfiança generalizada e
polarização política foram apontados como potenciais motores de uma intensa disputa de
narrativas, na qual a ideia de “ciência” começou a ganhar o status de trunfo discursivo de
quem defendia, e ainda defende, uma produção mais sistemática e estatisticamente confiável
de conhecimento. E neste debate (ou pelo menos em uma parte dele), a ideia de ciência que
melhor se enquadra na qualidade de trunfo é a ciência de epistemologia positivista, de
base economicista, de tradição linear-explicativa e metodologicamente empírica. Contra a
desinformação, informação. Mas qual informação? A informação estatística, os números, a
busca por dados e evidências e a defesa de que são sempre neutros e desprovidos de valores
ou de vieses políticos.
Esta, porém, não é a única tradição epistemológica vigente na discussão sobre Ciência. As
armadilhas históricas da ciência positivista, relacionadas à tentativa de forjar um projeto
racional de sociedade, foram profundamente discutidas por Habermas (1971), ensejando
trabalhos importantes da sociologia da ciência, dentre o quais destacamos Foucault
(1980) e Latour (1987), os quais defendiam a imputação da condição de prática social à
investigação científica, reconhecendo-a como um espaço de disputa argumentativa entre
diferentes epistemologias (FISCHER, 2016). Com o passar do tempo, estes primeiros
trabalhos, os quais criticavam a crença cega na neutralidade científica e que defendiam
a indissociabilidade entre fato e valor, ganharam espaço nas diferentes áreas do saber,
consolidando uma compreensão mais plural do ‘fazer ciência’ e do que pode ser considerado
como científico. Assim, chamamos a atenção para o fato de que podemos estar diante de
certo encolhimento do campo científico, ou seja, de uma pluralidade interpretativa que
vinha sendo solidamente construída.
Além disso, de modo ainda mais específico, a premissa da importância da ciência, mas de uma
determinada tradição científica, conectou-se com a compreensão das políticas públicas como
os loci mais importantes do combate à expansão da pandemia de COVID-19, resultando em
uma premissa casada com a anterior. E isto parece ter provocado um recrudescimento que
aparenta ser ainda mais forte, em um campo muito específico de saber: o campo de estudos
em políticas públicas. Trata-se de um campo de estudos que, embora tenha nascido com base
nos trabalhos pioneiros de Harold Lasswell (1951) e em uma abordagem racional-positivista
(a qual veio a ocupar o lugar do mainstream), vinha se deparando, pelo menos desde os anos
1980, com novas possibilidades interpretativas e novas posicionalidades epistemológicas.
Como resultado, pode-se compreender o campo das políticas públicas como um campo
plural, ancorado em duas grandes tradições ontológicas – uma mais naturalista-positivista
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 75

e outra mais construtivista-pós-positivista –, cujas escolas mais evidentes são a Análise


Racional de Políticas Públicas e os Estudos Críticos em Políticas Públicas, respectivamente
(BOULLOSA; PERES; BESSA, 2020).
Nesse sentido, é reducionista a ideia de uma ciência das políticas públicas pautada em
uma determinada tradição, a racional-positivista, como instrumento único de produção de
informações para a tomada de decisão pública. Embora seja indispensável a valorização da
gestão de políticas públicas, parece-nos que esta nova força insiste em uma velha ideia: a de
que as políticas públicas devam ser objeto de um conhecimento especializado, exclusivo de
uma parcela pequena e muito específica da sociedade, identificada com a elite da burocracia
e filiada a um tipo de racionalidade linear-explicativa que privilegia a dimensão objetiva e
objetivadora dos fatos.
Essa força, porém, encontra um entrave em suas próprias concepções, ao ignorar a
diferenciação entre dado e informação, tratando a combinação de algoritmos numéricos
como vazios de significados, quando, na verdade, a evidência só se produz ao atribuir, às
cifras, a influência do comportamento, da experiência observada e, então, constituir uma
informação mensurada. A interação entre o dado bruto e o conhecimento científico é, dessa
forma, central para a existência da estatística e, quando interrompida, exige a agregação
de alguma interpretação teórica – ainda que distante da verdade de sua origem –, para o
preenchimento desta lacuna.
Para o campo de políticas públicas, a ideia de uma geração espontânea (e neutra) de
evidências quantitativas fragiliza a qualidade de seus resultados e de seus desdobramentos,
pois se ampara ora em uma realidade social que não representa, ora em uma ausência de
significância numérica para aspectos incontestáveis da observação. Nesse sentido, a busca
pela integralidade da informação e pela explicitação dos valores subjacentes a ela, desde sua
modelagem, a partir de aspectos interpretativos, até a fomentação de novas perspectivas
(guardando a estrutura numérica), é particularmente fundamental, ainda que consciente das
restrições contextuais que a referenciam (PORCARO, 2001).
Construída desta forma, porém, esta disputa que ora se reorganiza em favor das políticas
públicas como um objeto técnico e especializado do saber vem novamente se apoiando na
falsa dicotomia entre fato e valor, prescrição e descrição e, também, entre normatividade
e empiria. E, mais do que isso, faz a balança voltar a pender, quase exclusivamente, para
a tradição positivista-gerencialista em políticas públicas, o que desconsidera valiosos
movimentos não apenas de ampliação e de pluralização deste campo como também de
politização das políticas públicas em curso há pelo menos quatro décadas.
Associar a boa tomada de decisão à dimensão puramente técnica dos processos públicos
e não a sua dimensão política – associando, negativamente, a dimensão da política da
deliberação pública à dimensão da não razão ou da retórica (DRYZEK, 2010), da pós-
verdade, ou ao universo das fake news – fortalece a ideia de que o reino da deliberação
pública deve se restringir ao universo mais específico de políticas públicas, levadas adiante
pela elite da burocracia, dialogando com certo iluminismo de ideias e de loci exclusivo de
produção de conhecimento.
76 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

Nesse sentido, parece-nos particularmente relevante a retomada dos Critical Policy Studies, os
quais defendem a não normalização dos processos de políticas públicas, a começar pelos seus
próprios conceitos. Em relação à ciência, Fischer (2016, p. 170) sugere que um dos caminhos
para o cientista pós-positivista é substituir a noção de ‘prova científica’, de ‘evidência’ ou
mesmo de ‘verificação’ pela noção de interpretação, uma vez que “as explicações científicas
são produzidas por observadores com diferentes quadros ideacionais, tipos de formação,
experiência de investigação, capacidades perceptivas, etc.”. Para os estudos críticos, portanto,
as políticas públicas são sempre contextualmente mediadas por significados simbólicos
(FISCHER et al., 2018). Ou, mais além, políticas públicas são fluxos interpretativos ativados
por uma multiatorialidade que governa problemas de pública relevância (BOULLOSA,
2019), e que, por abarcarem uma diversidade de experiências públicas sensíveis e simbólicas,
têm o potencial de qualificar e de ampliar o campo das políticas públicas (PERES, 2020).
A desativação progressiva de tal multiatorialidade – que vai deixando de se reconhecer
nos processos públicos, seja em função da exaltação da dimensão privada da experiência,
em detrimento da pública; da personificação de mitos em detrimento da ação coletiva; da
destituição da dimensão pública na felicidade privada, inclusive em termos de realização
valorativa pessoal – é um dos principais caminhos que conduzem ao que chamamos de
‘desamparo público’ (BOULLOSA et al., 2020).

O CRESCENTE AFETO DE DESAMPARO PÚBLICO


O desamparo é uma noção da psicologia que indica o sentimento ou afeto de abandono
experienciado por pessoas em contextos muito específicos de não atendimento às suas
demandas mais íntimas de proteção, em diferentes níveis de suas realizações individuais.
Qualquer experiência, todavia, quando interpretada à luz do conceito de aprendizagem,
mesmo que se dê no indivíduo, acontece socialmente (DEWEY, 1939). O próprio processo
de investigação, compreendido como construção de sentidos (e de ação), ou seja, como
construção da experiência, extrapola sobremaneira a dimensão do indivíduo. Nesse sentido,
Dewey (1927) ressalta a dimensão pública da experiência individual, inclusive na dimensão
do afeto. O desamparo, portanto, para além de individualmente sentido, pode ser um afeto
coletivamente construído e experienciado.
No que concerne à dimensão dos significados, a sociologia linguística francesa, em diálogos
intervalados com o pragmatismo deweyano, explora a dimensão de construto social dos
significados, os quais modelam e são modelados pela interpretação, em uma ética social
(RICOEUR, 1955). Os significados de abandono, construídos publicamente, portanto,
estão imbricados em redes ou matrizes extensas, historicizadas, em um processo de reforço
de uma ação pública de difícil acesso. E, quando negativizado, o afeto coletivo de abandono
pode provocar a negação dos julgamentos (RICOEUR, 1986), por uma circularidade que
imputa uma falsa condição de neutralidade axiológica na vida pública, subtraindo a dimensão
pública dos processos de juízo valorativo. Mais ainda, este mesmo afeto de desamparo, como
sustenta Safatle (2015), pode ser experienciado em sua dimensão política ou, simplesmente,
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 77

como um afeto de um corpo político, coletivo, propondo uma teoria dos afetos, para a
compreensão dos vínculos sociopolíticos.
Assim, trazendo a discussão de desamparo para o campo de estudos em políticas públicas,
compreendemos o “desamparo público” (BOULLOSA et al., 2020) como um afeto
sociopolítico (SAFATLE, 2015), socialmente realizado (DEWEY, 1938), carregado de
significados de negação axiológica aparente (RICOEUR, 1986), os quais se reafirmam
e se remodelam continuamente (RICOEURS, 1955). A desativação progressiva de uma
multiatorialidade (BOULLOSA, 2019) é responsável, em grande medida, por bloquear
a possibilidade de que experiências públicas plurais possam emergir, colaborando,
potencialmente, para a construção de um tipo de gestão dialógica, horizontal e o mais coletiva
possível (PERES, 2020). Não se constituem como experiências públicas as experiências em
que uma multiatorialidade não se reconhece ou se veja sufocada pela exaltação da dimensão
da experiência privada, pela dissolução dos sujeitos, pela personificação de mitos (em
detrimento da valorização da ação coletiva) ou pela destituição da dimensão pública dos
afetos privados.

DISPUTAS NARRATIVAS E OS PERIGOS DA DESPOLITIZAÇÃO DA GESTÃO


DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Tanto as narrativas sobre a pandemia – ainda em construção e em constante revisão –
quanto os argumentos e valores que as sustentam vêm desempenhando papel central no
enfrentamento à COVID-19 e têm desvelado disputas de poder entre diferentes atores
que se engajam (com diferentes intensidades) nesse ‘problema público’ (BLUMER, 1971;
BOULLOSA, 2019) e cada vez mais político.
No âmbito das apreciações políticas acerca da difusão e da gravidade da pandemia de
COVID-19, a construção da narrativa “oficial” – protagonizada, sobretudo, pela Presidência
da República e marcada pela trajetória errante da pasta do Ministério da Saúde – foi
pautada, ao menos inicialmente, na ideia de que reações mais contundentes à situação eram
sinal de ‘histeria’, uma vez que a pandemia era tida como uma ‘fantasia’ e que se defendia que
a COVID-19 não passava de uma ‘gripezinha’, como afirmou o Presidente da República,
em março (CONGRESSO EM FOCO, 2020).
Além disso, no que diz respeito à relação entre os entes federados diante da pandemia,
a narrativa construída em âmbito federal foi marcada por sinais de desarticulação e de
combatividade3, os quais se evidenciam em afirmações como “cobre do seu prefeito”
(BOLSONARO, 2020), “o Governo Federal dificultou a vida de prefeitos na pandemia”
(AGÊNCIA SENADO, 2020) e manchetes que denunciam que a “credibilidade da saúde”
foi “abalada com interferência de Bolsonaro e desmonte de área técnica” (PARAGUASSU,
2020).
É importante ressaltar, porém, que a Gestão (de políticas públicas) é, por excelência, um
ato relacional que, além de produzir bens e serviços, produz significados (FISCHER,
2012), por meio de processos complexos e sempre situados, contextualizados, ancorados em
78 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

termos temporais, territoriais, políticos, culturais, narrativos etc. E, nesse sentido, para além
de equivocadas e visivelmente fragmentadas, as narrativas construídas por autoridades, por
agentes públicos e pela mídia ganham especial relevância, sobretudo, porque evidenciam
a perda progressiva de espaço e de importância da gestão nas discussões de estratégias de
enfrentamento à pandemia.
Ademais, os argumentos que defendem a baixa gravidade do vírus e que a situação seja
encarada com ‘normalidade’ são incompatíveis com as histórias das 143.0624 vítimas
de COVID-19 no Brasil (Brasil.io, 2020): histórias plurais, tendo em comum o que
chamamos de ‘desamparo público’. Tal desamparo possui, porém, múltiplas dimensões e
está diretamente relacionado à falta de articulação que, do ponto de vista da governança,
se torna especialmente preocupante, sobretudo em um país federativo, descentralizado e de
dimensões continentais como o nosso. Se, por um lado, a construção narrativa hegemônica
imputa grandes responsabilidades a prefeitos e municípios, por outro lado, não leva em
consideração as capacidades reais de resposta dos municípios diante de tantas crises, agora
agravadas pela crise sanitária.
A redução da gestão de políticas públicas a uma atividade meramente técnica, as tentativas
contínuas de despolitizá-la ou de reduzir sua complexidade e a desativação progressiva do
que entendemos como uma multiatorialidade (BOULLOSA, 2013; 2019) apresentam-se
como grandes obstáculos ao processo de construção cooperada e coordenada de capacidades
que garantam respostas ágeis e eficientes no combate à pandemia nas três esferas federativas
e, especialmente, na escala municipal.
Nesse sentido, a pandemia de COVID-19 não só escancarou a baixa capacidade de
articulação/coordenação entre politics e policy, como, também, entre as diferentes esferas
governamentais e entre Sociedade, Estado e Mercado. Dentre outras coisas, porém, a
pandemia nos chama atenção para o fato de que a gestão importa e de que a ‘capacidade de
gestão’ é mais do que a soma das capacidades administrativa, burocrática, de prestação de
serviço, financeira etc.
Com a pandemia, ficou ainda mais evidente a importância da construção de espaços
de diálogo, de debate, de conversa e do fomento das capacidades de coordenação, de
comunicação e de persuasão. Ganha maior relevância, também, a explicitação de valores, a
coerência política, o dinamismo, a qualidade e a horizontalidade das relações, bem como o
compartilhamento de responsabilidades.
Em outras palavras, diante das crises que se acumulam e que são agravadas pela pandemia
de COVID-19, parece-nos fundamental (e urgente) uma ‘virada à gestão social’ que passa
pela recuperação de seus valores e princípios, amplamente discutidos há pelo menos três
décadas (TENÓRIO, 1998; BOULLOSA; SCHOMMER, 2008; FISCHER, 2012).
Defesa semelhante já foi feita, também, pelo Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom
Ghebreyesus, ainda em 2018, quando apontou o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro
como modelo para o resto do mundo, não apenas em função dos princípios de gratuidade e
universalidade, mas, sobretudo, em função do princípio da participação, o qual engaja cidadãos
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 79

comuns (usuários do sistema) na modelagem dos serviços de saúde, reconhecendo, por


exemplo, os conselhos de base comunitária como importantes inovações socioinstitucionais
de gestão.
Sabemos, porém, que, apesar dos avanços, são inúmeras as dificuldades de ativar valores
democráticos e participativos e de ativar multiatorialidades nos fluxos de políticas públicas e
nos processos de gestão. Tais dificuldades são evidências, também, de nossa baixa capacidade
de articulação, de cooperação e de atuação transversal – tipos de capacidade que só podem
ser construídos por meio do acúmulo de experiências participativas e dialógicas e de sua
perenidade no tempo, elementos capazes de garantir a construção de fluxos mais densos ou
robustos de políticas públicas.
Por fim, o que gostaríamos de evidenciar neste artigo é que as construções narrativas (e as
tensões subjacentes a tais construções) são indissociáveis dos processos de políticas públicas
e da gestão, porque, como nos lembra Majone (1989), as políticas públicas são produtoras
de argumentos e são feitas de palavras. Apagar as dimensões narrativa e política da gestão
desarticula e desmobiliza os esforços de gestão das crises, de ressignificação dos problemas
públicos e de enfrentamento do desamparo público em que vivemos.

A CONFLUÊNCIA DAS TRÊS CAUSAS NA DES-VALORIZAÇÃO DA GESTÃO


DE POLÍTICAS PÚBLICAS
O entrelaçamento dos três pontos abordados – a revalorização da gestão científica, o
desamparo público e a disputa narrativa – impactam diretamente a gestão de políticas
públicas, principalmente no contexto da pandemia de COVID-19.
Na estrutura federativa brasileira, formalizada na Constituição de 1988, a atribuição de
autonomia aos entes federados – União, estados e municípios – vai além da concessão das
capacidades de se auto-organizar, autolegislar e autogovernar. Baseado na premissa de
diversidade na unidade (BERNARDES, 2010), o arranjo federativo brasileiro pauta-se
na promoção da cultura do diálogo entre governo e cidadãos e na valorização da unidade
municipal como locus de maior escuta social ativa. Assim, o propósito federativo deveria
se traduzir em uma estrutura de governança e de gestão não hierarquizada, priorizando a
horizontalidade dos atores, atuando em articulação, integração e coordenação (LÚCIO;
DANTAS, 2018).
Quando abordamos o desamparo público, agravado pela redução da ciência das políticas
públicas a apenas uma tradição – a racional-positivista – e acrescido da construção de uma
narrativa que desfavorece o diálogo, a negociação, a articulação e a construção coletiva de
estratégias de enfrentamento e de ressignificação de problemas públicos, queremos enfatizar
os movimentos de des-valorização (subtração da dimensão valorativa) e de des-politização
(subtração da dimensão política) da gestão de políticas públicas, a qual tem recebido pouco
ou nenhum espaço nos debates acerca do enfrentamento à pandemia.
80 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

Todos os esforços da gestão (seja para o enfrentamento das crises ou para a superação
do desamparo público) esbarram, porém, em uma dimensão mais profunda da gestão: a
dimensão narrativa. Nesse sentido, é possível argumentar que os esforços de governos e
prefeituras para o controle da pandemia foram minimizados pela falta de coordenação com
o governo federal e pela construção de uma narrativa que se consolidou como hegemônica e
que desfavoreceu o diálogo e a construção de estratégias articuladas, integradas e coordenadas.
A escolha por uma construção discursiva desconectada dos propósitos republicanos e
federativos brasileiros e desconectada dos princípios da gestão social fragiliza a democracia
e reduz as chances de construção de espaços de pactuação que permitam a coordenação,
a cooperação, o codesenho e a cogestão entre os atores engajados em torno de problemas
públicos. Somado a isso, a perspectiva do desamparo reproduz-se na insegurança acerca da
(des)continuidade de parcerias, contratos e convênios estabelecidos entre os diferentes entes
federados.
Os problemas públicos – complexos e agravados pelo contexto pandêmico – não se
circunscrevem às divisões políticas que delimitam as fronteiras de estados e municípios. São
territorializados e demandam uma atuação conjunta multiatorial. A falta de cooperação,
essencial ao modelo federativo brasileiro (SILVEIRA, 2007), e a falta de capacidade de
escuta ativa da sociedade cobram a reinvenção da gestão, a retomada dos princípios da gestão
social e de um caminho de desenvolvimento ancorado nas lutas sociais e nas necessidades
das comunidades e territórios mais afetados – em um processo capaz de gerar uma força de
oposição ao movimento de despolitização da gestão de políticas públicas.

ALGUMA CONCLUSÃO
Neste artigo, buscamos problematizar a diminuição da importância da gestão de políticas
públicas no contexto pandêmico. E o fizemos a partir da identificação de três causas
principais. A primeira diz respeito à revalorização de uma tradição positivista na produção
de conhecimento, a qual subtrai da gestão sua dimensão política, reduzindo-a a ‘coisa
técnica’, própria de especialistas e de uma elite burocrática. Tal subtração, a qual busca
atribuir neutralidade à gestão, vem sendo potencializada e autorizada por um chamamento
da ciência global à produção de evidências capazes de embasar o enfrentamento da pandemia
e da “infodemia”, como a OMS (WHO, 2020) caracterizou a epidemia de desinformação.
A segunda refere-se a um contexto de crescente desamparo público, também acirrado
pela pandemia. Um acirramento que se evidencia quando assumimos a centralidade de
sua dimensão narrativa . O sentimento crescente de desamparo transborda o medo,
o sofrimento e a sensação de abandono privado e assume uma dimensão pública,
influenciando significativamente nos arranjos governativos e na (falta de) coordenação para
o enfrentamento da pandemia.
A terceira, por fim, diz respeito à explicitação das disputas narrativas acerca da pandemia, o
que só se torna visível se assumimos que a gestão de políticas públicas é conformada, também,
por palavras, por discursos, por fluxos multiatoriais, multidirecionais e multissensoriais que
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 81

conformam um espaço de tensão valorativa e argumentativa entre as dimensões política e


técnica (BOULLOSA, 2019; PERES, 2020).
Argumentamos, assim, que este triplo movimento provoca não apenas a des-valorização e
a des-politização da gestão, como também obstrui a construção de estratégias articuladas,
integradas e coordenadas. Quando subtraímos a dimensão política da coordenação, por
exemplo, passamos a compreendê-la em sua expressão mais mandatária (de cima para
baixo) e menos participativa, democrática e horizontal. E é nesse sentido que defendemos
a necessidade urgente de reinvenção da gestão, com base nos princípios da gestão social. A
reinvenção de que falamos pode seguir muitos caminhos, mas deve passar, necessariamente,
pela ampliação do campo das políticas públicas e da gestão e, ainda, pela ênfase em valores
e princípios como dialogicidade, pluralidade, solidariedade, criatividade e imaginação
(FRANÇA FILHO; BOULLOSA, 2015; BOULLOSA; PERES, 2019).
Trata-se de um movimento que deve passar, por fim, pelo reconhecimento – por parte da
sociedade, em geral, e de gestores, analistas, formuladores, avaliadores de políticas públicas,
em particular – de que a palavra, as falas, os discursos, as narrativas construídas e os valores
subjacentes a eles têm um papel central na identificação de problemas públicos e em
sua ressignificação. A pandemia de COVID-19 coloca-nos a necessidade de ampliação
do campo e enfatiza a importância dos estudos críticos em políticas públicas, justamente
porque escancara a centralidade das dimensões comunicativa e axiológica no enfrentamento
de crises como a que estamos vivendo.

NOTAS
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Dentre estes esforços, destacamos desde a abertura de novas linhas de apoio em muitas univer-
sidades, centros de pesquisa, escolas de governo e agências de fomento, não obstante a precari-
edade de recursos econômicos, desde março de 2020, até, na ponta da pirâmide da divulgação
científica, muitas revistas, de diferentes áreas, que lançaram números especiais com chamadas
abertas ou para trabalhos convidados.
3 Ao longo do mês de março, enquanto os pronunciamentos presidenciais se destinavam a ate-
nuar a situação que se instaurava, houve o esforço dos 27 governadores das UFs brasileiras em
decretar medidas de distanciamento social como forma de frear a transmissão e dar tempo do
Sistema de Saúde se organizar. Com o tempo, porém, observamos que vários governadores
começaram, precipitadamente, a afrouxar ou a voltar atrás em suas medidas.
4 Número de vítimas em 30 de setembro de 2020.

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Rosana Professora Associada II da Universidade de Brasília, Bolsista de


de Freitas Produtividade DT do CNPq, Líder do Grupo de Pesquisa em Processos
Boullosa de Inovação e Aprendizagem em Políticas Públicas e Gestão Social,
Coordenadora do curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas
da UnB e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (NEUR) do
Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados (CEAM/UnB). Possui
publicações em teoria de políticas públicas, avaliação de políticas públicas,
desenvolvimento territorial e gestão social.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 85

Janaína Lopes Mestre e doutora em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação


Pereira Peres Internacional (PPGDSCI/CEAM/UnB). Graduada em Turismo &
Hotelaria (UNIVALI). Desenvolve pesquisas sociocêntricas e implicadas,
com ênfase em gestão social, governança urbana e desigualdades
socioterritoriais.

Lara Silva Mestre e doutoranda em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação


Laranja Internacional (PPGDSCI/CEAM/UnB). Graduada em Direito
(UniCEUB). Pesquisa gestão e governança pública, ênfase em saúde pública.

Luciana Mestre e doutoranda em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação


Guedes da Internacional (PPGDSCI/CEAM/UnB). Graduada em Estatística (UnB).
Silva Pesquisa gestão pública, educação, saúde e infraestrutura.
86 Subtração da Gestão de Políticas Públicas no Contexto Pandêmico

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.87-104
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42609

Administração Política do Espaço Geográfico:


análise da capacidade de gestão da pandemia da
COVID-191
Elizabeth Matos Ribeiro, Emerson de Sousa Silva, Reginaldo Souza Santos
e Mônica Matos Ribeiro

Resumo Este ensaio busca estabelecer conexões interdisciplinares entre os conceitos


de Administração Política e Geografia Política com vistas a analisar a
Administração Política do Espaço Geográfico no contexto da Pandemia
da COVID-19 no Brasil. Esse esforço tem um objetivo duplo: (i) analisar
as formas de Gestão das relações socioespaciais de produção, considerando
os cenários e perspectivas impostos pela crise sanitária e socioeconômica; e
(ii) promover um diálogo auspicioso entre os textos inaugurais do campo
da Administração Política com o pensamento/ensinamentos do geógrafo
brasileiro e baiano, Milton Santos. Utilizou-se o método comparativo
para cotejar as duas abordagens teóricas, de modo a identificar possíveis
conexões entre os dois campos de conhecimento fundamentais para o
desenvolvimento de novos estudos na área de Desenvolvimento e Gestão
Social. Como resultado desse esforço acadêmico, foi possível identificar que
a justaposição desses dois corpos teóricos permitiu identificar aspectos que
caracterizam a Administração Política do Espaço Geográfico, sustentada na
evolução temporal e topológica da Organização Espacial como base para
analisar os impactos impostos pela Pandemia.
Palavras-chave Administração Política. Organização Espacial. Gestão Pública. Espaço
Geográfico. Pandemia da COVID-19.

Abstract This essay intends to establish interdisciplinary connections between the


concepts of Political Administration and Political Geography in order to
analyze the Political Administration of Geographic Space in the context
of the COVID-19 pandemic in Brazil. This effort has a double objective:
analyze the forms of management of socio-spatial relations of production,
considering the scenarios and perspectives imposed by the health and
socioeconomic crisis; and promote an auspicious dialogue between the
88 Administração Política do Espaço Geográfico

inaugural texts in the field of Political Administration with the teachings


of the Brazilian and Bahian geographer, Milton Santos. The comparative
method was used to assess the two theoretical approaches in order to
identify possible connections between the two fields of knowledge,
fundamental to the development of new studies in the area of Development
and Social Management. As a result of this academic effort, it was possible
to identify that the juxtaposition of these two theoretical fields allowed
to identify aspects that characterize the Political Administration of the
Geographic Space, based on the temporal and topological evolution of the
Space Organization as the basis for analyzing the impacts imposed by the
pandemic.

Keywords Political Administration. Spatial Organization. Public Management.


Geographic Space. COVID-19 Pandemic.

INTRODUÇÃO
Os conceitos de Administração Política e Geografia Política permitem analisar, de
forma interdisciplinar, os dilemas, desafios e perspectivas da gestão municipal para o
enfrentamento da Pandemia da COVID-19. Considerar o Espaço Geográfico como objeto
teórico e empírico desse ensaio reflete o anseio de ampliar as possibilidades interpretativas,
contextuais e práticas que sustentam os estudos desenvolvidos no Programa de Mestrado
em Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA com ênfase na área/linha de pesquisa
Administração Política, Desenvolvimento e Territorialidades. A associação desses dois
campos de conhecimento – Administração Política e Geografia Política – permite ampliar
a compreensão das relações sociais de produção que se materializam no território como
espaço ocupado e dominado por interesses contraditórios.
Se as preocupações centrais da Geografia Política estão associadas à construção de bases
conceituais que permitam compreender a ideia de ‘Território-Nação’ (RATZEL, 1988), a
Administração Política integra novos e relevantes elementos a esse debate, ao considerar
o Espaço Geográfico como resultado e resultante de uma dada organização espacial que
representa também um fenômeno administrativo. Conforme ressaltado por Silva (2019),
ao tomar a organização territorial como substantivo concreto, é possível considerar que
as dinâmicas administrativas que ocorrem no âmbito de ambiente refletem aspectos
sociológicos e políticos abstratos. O que implica considerar que interpretar a Administração
Política do Espaço Geográfico possibilita ao campo de estudo da Administração superar
os limites instrumentais que têm sido impostos à Administração Científica. Esse esforço
inovador permite, pois, avançar para além da análise das dinâmicas micro-organizacionais,
representada pelas unidades produtivas, para interpretar fenômenos complexos que envolvem
política econômica, gestão do desenvolvimento e relações internacionais resultantes desse
processo político administrativo territorializado.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 89

Nesse sentido, o objetivo central deste ensaio é identificar as formas de gestão das relações
socioespaciais de produção no atual cenário de crise sanitária e seus impactos nas relações
socioeconômicas atuais e futuras considerando os diálogos possíveis entre os pensamentos
de Milton Santos e Reginaldo Santos, dois baianos que inovaram os estudos da Geografia
e da Administração. Essa conexão justifica-se pelo reconhecimento defendido por Silva
(2020) na sua pesquisa doutoral de haver uma justaposição dos dois corpos teóricos que
classifica como Administração Política do Espaço Geográfico: A Organização Espacial
como um Fenômeno de Gestão. Tomando como inspiração a tese destacada, pretende-se
apontar alguns elementos teóricos e empíricos que inspirem a definição de uma agenda
preliminar de pesquisa sobre a evolução temporal e topológica da Organização Espacial
como um evento que reflete aspectos relevantes da Gestão com ênfase nos desafios impostos
pela Pandemia.
A Administração Política representa um movimento em direção à consolidação de um novo
campo do conhecimento que questiona, integra e complementa os conceitos fundantes da
ortodoxia da Administração Científica. Ao ampliar o escopo interpretativo dos fenômenos
administrativos, esse novo campo de estudo aproxima-se dos estudos críticos sobre
desenvolvimento econômico ( JUSTEN et al., 2017; PAÇO CUNHA, 2019). Esse novo
campo de conhecimento, ao se apresentar como uma novidade no cenário multifacetado
da Administração Científica e dos estudos organizacionais, insurge-se contra o exacerbado
funcionalismo presente na estrutura interpretativa dos estudos ortodoxos da Administração
e se propõe a contribuir para dar novas formas de compreensão e expressão da Administração
como fenômeno social e organizacional complexo. Nascida das “inquietações intelectuais”
de um grupo de pensadores vinculados à Escola de Administração da Universidade Federal
da Bahia, esse novo campo advoga que as relações sociais de produção são resultantes e
resultadas de uma dada intencionalidade gestionária. O que significa que sua intepretação
exige avançar os aspectos instrumentais próprios dos estudos da Administração Clássica
(SANTOS, R., 2009; 2010; SANTOS, R.; RIBEIRO, E., 1993).
Ao considerar a Administração como fenômeno ampliado, vinculado aos diversos objetos
que integram as Teoria Sociais e Teorias Econômicas, temas estranhos à teia conceitual da
Administração Científica – como política macroeconômica, finanças públicas, entre outros
–, devem integrar os estudos acadêmicos a serem desenvolvidos pelos administradores.
Nesse sentido, a Administração Política pode ser compreendida como um salto evolutivo
e/ou complementar da Administração Científica e dos estudos organizacionais visto que
propicia uma expansão necessária de suas possibilidades, ao romper e superar o funcionalismo
metodológico da administração organizacional e resgatar as preocupações da emancipação
humana como ponto fulcral das análises dos fenômenos administrativos.
Ao refutar o criticismo dominante no campo de estudos administrativos, esse novo campo
de conhecimento abre um leque de possibilidades de diálogos com os mais diversos
domínios do conhecimento social. Conforme destacado por Justen et al. (2017), no campo
da economia, a Administração Política consegue travar debates que integram desde
a Economia Política, de matriz liberal, keynesiana, até o pensamento crítico das escolas
marxistas. Além de abrir possibilidades de diálogos com diversos campos do conhecimento
90 Administração Política do Espaço Geográfico

complementares às ciências sociais aplicadas, com ênfase nas ciências sociais e humanas,
também amplia conexões com as ciências exatas, as ciências da saúde, e tem dialogado com
o campo da literatura e das artes, de modo geral.
Conforme apontado por Santos (2004), Santos, Ribeiro e Chagas (2009) e Vidal (2009),
a ampliação do campo de estudo da Administração Política só tem sido possível pelo
reconhecimento de que não é a ‘Organização’, enquanto substantivo concreto, mas,
sim, a ‘Gestão’ o verdadeiro objeto científico desse campo de conhecimento. Sobre esse
aspecto, Silva traz considerações importantes ao ressaltar que, embora esse debate pareça
simples, revela implicações determinantes para consolidar a Administração como campo
de conhecimento autônomo, ainda que assuma seu caráter de campo com forte viés inter
e multidisciplinar. Afirma o autor que, ao deslocar o termo ‘Organização’ do seu sentido
concreto e assentar bases sobre seu significado como substantivo abstrato, a Administração
Política traz uma relevante inovação científica por dar centralidade não mais à entidade
produtiva ou social, enquanto personalidade independente, mas o foco central da análise
dos ‘atos e fatos administrativos’ passa a ser os formatos pelos quais a conduta voltada para
o alcance de determinados objetivos será coordenada, isto é, será administrada.
O que implica considerar que o conceito de ‘Organização’ para a Administração Política
é utilizado não em sua acepção de substantivo concreto – definido como uma locução
que expressa uma ideia autônoma, não precisando de outrem para existir –, mas em sua
concepção de substantivo abstrato, ou seja, a sua existência é mediada por uma causa
anterior ou movimento exterior (refletido na concepção de gestão). Vidal (2009) reforça
essa intepretação ao destacar que a ‘Organização’ não é algo que tem forma e existência
própria, não é uma entidade que se torna objeto de estudo e pesquisa, tal como ocorre na
Administração Científica e nos Estudos Organizacionais. Ao contrário dessa interpretação,
o autor defende que a locução ‘Organização’ deve ser recepcionada como um conjunto
procedimental ou um processo pelo qual o ‘ato de produzir’ é estruturado, isto é, cobra a
ação de terceiros para ter existência.
Ao admitir que é a ‘Gestão’ garante o sentido de ser uma disciplina social, a Administração
Política considera que a Organização, enquanto fenômeno concreto, representa tão
somente um dos lugares privilegiados de sua realização (SANTOS, 2004). Ao ampliar
o escopo de ação e representação da Administração Científica para além do interior das
unidades produtivas para ocupar os mais diversos segmentos e eventos sociais nos quais
haja a ocorrência de ações de planejamento, organização, comando, coordenação e controle,
a Administração Política ultrapassa a abordagem gerencial e alcança a real essência dos
fenômenos administrativos que estão manifestos nos aspectos políticos que regem as
relações sociais de produção, consumo e distribuição. Como afirma Santos (2004), o “como
fazer” (isto é, o ‘como administrar’) é alçado à condição de fenômeno social que permeia
todo o comportamento coletivo e pode, assim, ser abordado pelos estudos administrativos,
ampliando, dessa forma, os espaços de interlocução científica da ciência da administração.
A consequência política decorrente da mudança da perspectiva limitada da Administração
Científica, presa ao arcabouço da economia neoclássica e às bases da ciência positivista,
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 91

para o foco da Administração Política permite, pois, identificar que as organizações


não são entidades com vida própria, mas refletem um conjunto de ações coordenadas e
controladas, previamente planejadas. O que significa considerar que seus movimentos não
nascem espontaneamente do seu interior, da sua vontade, mas de uma decisão externa que
reflete relações sociais mais complexas, envolvendo interesses conflitantes. A mudança
substancial de que objeto científico está na gestão e não nas organizações, defendida pela
Administração Política, traz outra mudança substancial vinculada ao reconhecimento da
qualidade da finalidade das ações administrativas. Conforme destacado por Silva (2020, p.
12), “[...] se a ortodoxia a assentou por sobre [as bases da] eficiência lucrativa da firma ou
[na] eficácia procedimental das entidades sociais [organizações], a Administração Política
elege a promoção do bem-estar geral para [assumir] esse posto”.
Nesse sentido, Santos (2004) e Santos e Gomes (2017) afirmam que o objetivo dos estudos
vinculados ao campo da Administração Política teria como finalidade a superação da
materialidade social em um contexto no qual a coordenação política das relações sociais de
produção, consumo e distribuição pudesse promover ou, ao menos, se comprometer com
a emancipação humana ou o alcance do bem-estar social. O que significa admitir que o
objetivo dos estudos da Administração Política não se limita apenas a ampliar a arena dos
estudos administrativos para ultrapassar a compreensão da realidade intraorganizacional, mas
integrar os fenômenos próprios da gestão no circuito produtivo mais dilatado, integrando
as etapas de alocação, consumo e distribuição da renda e riqueza produzida socialmente.
Ao ampliar o escopo epistemológico-teórico e analítico dos fenômenos administrativos,
a Administração Política qualifica-se para se conectar com outros campos de estudos da
administração, a exemplo da tradição dos estudos em administração do desenvolvimento. O
que implica considerar que cobre uma lacuna, até então, despercebida ou desconsiderada pelas
ciências sociais aplicadas expressa pelo que Santos (2004) denomina de “ação gestionária”
do modo de produção das relações sociais. Para o referido autor, essa normatividade dá-se
por meio da identificação do problema expresso na pergunta “como se produzir, consumir e
distribuir a renda e riqueza socialmente produzida?”. Para responder a esta questão seminal, os
modelos conceituais desenhados nos textos clássicos da Administração Política defendem
que o circuito produtivo deve ser entendido como uma construção social moldada por uma
dada intencionalidade (portanto, administrada), politicamente concertada, por meio da
articulação dos interesses complexos representados pelas relações complexas entre sociedade,
Estado e agentes produtivos privados (SANTOS, 2004; 2010; SANTOS; RIBEIRO;
CHAGAS, 2009).
Considerando o esquema referencial teórico da Administração Política, o Estado tem
se revelado como o principal agente de desenvolvimento das sociedades modernas e
contemporâneas. Historicamente, o papel central do poder público tem sofrido alterações,
manifestas em concepções mais ou menos intervencionistas, a depender das condições
sócio-históricas e do desempenho macroeconômico. Porém, independentemente do maior
ou menor papel assumido na condução das relações sociais de produção, o poder público
tem conseguido preservar em suas mãos os principais meios políticos de intervenção
socioeconômica (Administração Política), mantendo-se como ente capital para a condução
92 Administração Política do Espaço Geográfico

dos processos históricos de reconfiguração produtiva das sociedades contemporâneas. Essa


concepção teórica fundamenta, portanto, que a coordenação precípua dos demais agentes
econômicos e sociais passa, essencialmente, pela concepção de um “Projeto de Nação” ou
projeto nacional de desenvolvimento, dirigido para atender às demandas socialmente eleitas
para garantir o bem-estar coletivo.
Entretanto, ao analisar o esquema referencial teórico da Administração Política, observa-
se que a base central de todo o processo decisório está na vontade geral da Sociedade
que evidencia o desiderato coletivo. E a base técnica (gerencial) encontra-se no espaço
próprio ocupado pelos entes produtivos privados e também entes sociais, orientados pela
normatização e condução política do Estado, o qual assume tanto o papel de regulador
como também passa a assumir o papel de capitalista (investidor) – nesse caso, seu papel
é garantir o fornecimento dos bens e serviços sociais que as empresas não conseguem ou
não têm interesse em fornecer. Muito embora esse esquema represente uma forma de
idealização de um dado padrão de gestão das relações sociais de produção, consumo e
distribuição, é possível generalizar esse arcabouço interpretativo mais amplo dos fenômenos
administrativos para o contexto no qual as contradições derivadas do circuito produtivo
condicionem, por meio de uma série de intervenções políticas, não necessariamente estatais
(mas privadas), o comportamento e o papel desempenhado por cada um dos agentes sociais
e econômicos refletidos em situações de conflitos de poder. Nesse cenário, o “Projeto de
Nação” assumiria a condição de síntese dos interesses colocados (implícitos e explícitos) e
sua viabilidade decorreria da correlação de forças políticas. Considerando essa abordagem
teórica, admite-se a aceitação de um Estado que assume o papel de reprodutor das aspirações
de grupos políticos organizados dominantes, ainda que, historicamente, essa situação se
revela dinâmica, sujeita a diversas condicionantes internas e externas.
Ao admitir a Administração Política como campo do conhecimento, detentor de um
objeto científico definido e materializado nos padrões de gestão das relações sociais de
produção, consumo e distribuição, compete-lhe a responsabilidade de identificar, qualificar,
categorizar, historiar, pronunciar e prescrever sobre os modos pelos quais as mais diversas
sociabilidades coordenam os seus próprios circuitos produtivos. O que significa considerar
que esse campo de conhecimento tem como principal desafio epistemológico e teórico-
metodológico se debruçar não apenas sobre questões técnicas próprias da administração
gerencial (Administração Profissional), mas avançar por uma miríade de aspectos próprios
das ciências sociais, ciências humanas que permitam responder sobre questões mais amplas
– vinculadas à legislação trabalhista, às relações diplomáticas, às desigualdades sociais, ao
desenvolvimento territorial, à gestão social, à segurança pública, à educação, enfim, sobre os
mais diversos aspectos que refletem a complexidade da vida social.
No entanto, para os objetivos específicos deste ensaio, existe um aspecto que ainda não tem
sido abordado pelo campo de estudos da Administração Política representado pelo Espaço
Geográfico. Considerando tratar-se de uma dimensão essencial para o entendimento
das dinâmicas de um dado padrão de gestão das relações sociais de produção, consumo e
distribuição, Silva (2020) identificou uma lacuna que exige investimentos para aprofundar
o entendimento dos elementos administrativos que interferem na Organização Espacial
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 93

(organização do território). Tomando como referência a definição de Milton Santos (2008)


para estabelecer uma aproximação entre os campos da Geografia Política e da Administração
Política, é imperativo aceitar que o Espaço é uma construção humana e não apenas um
aspecto dessa condição, expressando-se, portanto, como um conceito que se confunde com
a própria sociedade. Conforme destacado pelo citado autor, essa afirmação sustenta-se no
fato de que aquele (o território) se coloca como a soma dos objetos geográficos. Essa análise
encontra sustentação, portanto, no fato de que o Espaço só pode ser entendido como um
fenômeno mutável, não apenas entre os lugares, mas também no tempo. O que possibilita
afirmar que a Administração Política pode contribuir para a intepretação de que a definição
dessas mudanças seja considerada um reflexo administrado das formas pelas quais o ser
humano produz e implementa um dado padrão de relações sociais de produção, consumo e
distribuição.
Nesse sentido, pode-se inferir que a natureza não pode ser apropriada por conta de suas
características ecológicas, mas se faz imperativo considerar também toda a problemática
social envolvida nessas relações históricas. O que implica analisar que, dialeticamente, seu
entendimento se dá a partir dos meios que condicionam sua própria transformação, ou seja,
através da intervenção do elemento humano. Considerando os aspectos epistemológicos e
teórico-metodológicos preliminares apontados de forma resumida sobre as conexões dos
temas objetos deste ensaio, a questão central que pretende-se invocar é a seguinte: se se
aceita que o fator que modifica o Espaço é a ação produtiva e essa é planejada, coordenada e
controlada por uma conduta gestionária (portanto, administrada), a qual se expressa como uma
prática social, é possível afirmar que toda e qualquer intervenção no território é efeito de uma
deliberação administrativamente concertada?
Atualizando esse questionamento para o contexto da Pandemia da COVID-19, pretende-
se contribuir para introduzir aspectos preliminares que possibilitem refletir sobre o seguinte
problema: considerando os desafios impostos pela pandemia da COVID-19, quais os cenários
e perspectivas da administração política do espaço geográfico brasileiro para o enfrentamento
dessa grave questão sanitária, social, econômica e administrativa? Partindo dos argumentos
já apontados anteriormente, assume-se como pressuposto central que toda e qualquer
intervenção no Espaço é efeito de uma deliberação administrativamente concertada.
Considerando essa pressuposição central, conjectura-se que os desafios impostos pelo contexto
da pandemia exigem uma compreensão mais ampliada sobre as bases que sustentam os atuais
padrões de Administração Política do Espaço Geográfico brasileiro, considerando os cenários e
perspectivas colocados pela falta de coordenação entre os entes federativos.
Tomando como referência teórica as análises preliminares destacadas sobre as conexões
possíveis entre Administração Política e Geografia Política, a Organização Espacial é
definida como um contexto influenciado por fatores distintos quanto ao poder político,
economias de escala, eficiência do capital e formas de concentração e especialização
produtiva. Considerando os estudos de Milton Santos (2008), o Espaço é distinto em
sua vastidão e temporalidade, porque a evolução dos modos de produção reflete a própria
evolução das forças produtivas. Para o citado autor, cada espacialidade carrega em si os
94 Administração Política do Espaço Geográfico

interesses e construções do seu tempo histórico, porém, são também pontuadas por
elementos do passado e, a depender do grau de inovação absorvida, é possível determinar o
nível de modernidade presente.
Metodologicamente, a proposição deste ensaio tem por mote propulsor estabelecer
comparações e conexões entre as teses defendidas por Santos (2004) e Santos, Ribeiro e
Chagas (2009), as quais sustentam o campo da Administração Política, com as contribuições
feitas por Milton Santos (2008) sobre a concepção de Espaço, abrigada no debate sobre
o campo da Geografia Política. A problemática interdisciplinar que fundamenta as
reflexões teóricas aqui levantadas remete à necessidade de se criar parâmetros analíticos e
procedimentais que permitam entender como o Espaço, o território, reflete um dado padrão
de gestão das relações sociais de produção, consumo e distribuição e, complementarmente,
como essas ações administrativas espelham-se nas expressões geográficas.
O objetivo deste texto é fornecer instrumentos teóricos e metodológicos interdisciplinares
a partir das conexões entre os campos da Administração Política e da Geografia Política, de
modo a possibilitar a ampliação do campo interpretativo da gestão dos fenômenos espaciais,
recepcionando-os como resultado da conduta produtiva dos agrupamentos sociais. De posse
desse marco analítico, espera-se identificar a dinâmica que tem orientado a Administração
Política do Espaço Geográfico brasileiro com vistas a identificar cenários e perspectivas para
o enfrentamento da Pandemia da COVID-19 com ênfase na capacidade real e potencial da
gestão pública e gestão social.

ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA DO ESPAÇO GEOGRÁFICO: BASE TEÓRICO-


ANALÍTICA PARA IDENTIFICAR A CAPACIDADE DE GESTÃO PÚBLICA E
GESTÃO SOCIAL DA PANDEMIA
Estudar a Administração Política do Espaço Geográfico pode trazer relevantes contribuições
para a análise dos desafios da gestão pública e da gestão social para o enfrentamento da
Pandemia da COVID-19 no Brasil. Para alcançar esse propósito, é necessário, em primeiro
lugar, compreender como esse fenômeno tem sido abordado pela ciência, pela gestão pública
e pela sociedade. Tomando como referência a definição de Last (2001), pode-se inferir que
o que caracteriza uma pandemia é seu alcance mundial devido ao potencial de ultrapassar
fronteiras e afetar, de forma indiscriminada, diversas populações. Outro aspecto que tem
sido destacado desse fenômeno global está relacionado aos impactos perversos sobre os mais
pobres devido aos riscos das condições de vulnerabilidade aos quais estão submetidos em
razão das desigualdades sociais e estruturais. Em segundo lugar, conforme destacado pela
OMS (2000), ao considerar a origem, desenvolvimento, efeitos e implicações dos surtos
infecciosos (endêmicos e, principalmente, pandêmicos), constata-se que são fatos complexos
por não se limitarem à órbita da medicina, mas afetarem distintos estrados fundamentais
para as relações sociais com ênfase nas dimensões política, econômica e administrativa.
Conforme destacado por Morens, Folkers e Fauci (2009), as características básicas de
uma pandemia são as seguintes: abrangerem uma ampla extensão geográfica, ter um
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 95

perfil rastreável de movimento espacial, representar níveis elevados de explosividade de


sua expansão, representar baixos níveis de imunidade populacional, seja causada por um
novo ‘patógeno’ ou uma nova variedade de outro mais antigo, além de refletir altas taxas
de infecciosidade, contágio, severidade e fatalidade. Rosenberg (1989) complementa essa
caracterização ao ressaltar que, assim como epidemias são eventos episódicos, claramente
perceptíveis, que provocam efeitos imediatos e ostensivos onde eclodem, as pandemias
seguem os mesmos passos só que numa escala mais ampliada.
Esse esforço interpretativo foi ampliado por Green et al. (2002) ao chamarem a atenção
para o fato de que uma situação de epidemia (e pandemia) poder ser considerada um
processo que obedece tanto a parâmetros sanitários como, também, carrega elementos
semânticos, comunicacionais, políticos e administrativos. Nessa mesma direção, Rosenberg
(1989) adverte que o combate às causas e efeitos das epidemias e pandemias deve denunciar
as iniquidades sociais existentes na maioria das sociedades contemporâneas, como evitar
promover o controle de uma classe social sobre outras menos favorecidas, especialmente
quando as medidas de contenção das doenças são utilizadas para alijar direitos básicos ou
constranger sua autonomia.
Sobre essa questão, Aaltola (2012) observa que o impacto social de uma pandemia é
determinado pela sensibilidade política dos atores que dirigem as relações sociais em um
dado espaço-tempo. Tal provocação abre espaço para apontar que é a extensão do poder
político dos grupos atingidos pelo vírus que vai definir o nível dos “riscos”, reais e potenciais,
provocados por um surto pandêmico. Conforme destacado pela literatura internacional e
nacional, abordado por diversos campos do conhecimento, os surtos infecciosos são uma
realidade que tem acompanhado a história da humanidade e cada sociedade tem revelado
formas diferenciadas para seu enfrentamento. Porém, como destacado por Ghebreyesus
(2018), o que chama a atenção para os riscos que emergem no Século XXI está associado
muito mais à vulnerabilidade que o mundo tem revelado para lidar com os problemas de
saúde pública, em âmbito nacional e global, do que os eventos em si. Essa constatação revela
que o mundo não está preparado para responder a eventos de tal natureza, advertindo que
esses riscos podem afetar a própria estabilidade das relações sociais globais e nacionais, e
seus efeitos ainda não estão sendo calculados.
Diante dessas evidências, é importante destacar que um dos impactos graves das crises
sanitárias é o aprofundamento das desigualdades sociais, especialmente em contextos
marcadas por assimetrias socioeconômicas históricas, como é o caso do Brasil. Tal condição
aprofunda tanto os riscos de rupturas da tessitura social como reduz as possibilidades
de promoção do desenvolvimento socioeconômico. Estudos realizados pela OMS têm
evidenciado que um aspecto que agrava o enfrentamento desses riscos está no fato de
que, por tratar-se de fenômenos sociais complexos, não permite replicar soluções (‘boas
práticas’ de gestão) em outros territórios. O que significa admitir que cada realidade social
requer formas específicas e inéditas de intervenção pública e social, dirigida para superar
as ameaças provocadas pelo surto infeccioso (WHO, 2018). A Pandemia da COVID-19
tem colocado em evidência lições extraídas do enfrentamento ao surto de ebola na África
Ocidental, em 2014. Ghebreyesus (2018) ressalta, entretanto, que a principal aprendizagem
96 Administração Política do Espaço Geográfico

desse evento está justamente no reconhecimento de que a segurança sanitária global só


poderá ser considerada um sistema forte quando seu elo mais fraco alcançar o mesmo
patamar de garantia. Essa conclusão reafirma, portanto, que os cenários e perspectivas para
o enfrentamento da pandemia estão longe de serem alcançados em âmbito global e nacional.
Com base nessa breve revisão sobre o contexto e desafios impostos para o enfrentamento da
pandemia da COVID-19, é possível observar alguns aspectos gerais que têm caracterizado
a condução política da maioria dos gestores públicos, o que ajuda a identificar os padrões
de Administração Política do Espaço Geográfico brasileiro. Infelizmente, as evidências
empíricas não são muito animadoras e mostram, conforme apontado por Rosenberg (1989),
que a gestão ou condução dos surtos infecciosos, geralmente, obedece a uma sequência de
reações que evidenciam o curso das seguintes etapas: (i) a consciência do avanço da doença
progride em função inversa ao poder de resistência dos interesses políticos e socioeconômicos
em relação às taxas de morbidade e mortalidade; (ii) quando a concretude da doença
subjuga as subjetividades do aparato decisório político-social, os agentes investem na tarefa
de tentar ‘gerenciar’ (tecnicamente) a aleatoriedade que o surto produz, sendo instados a
criar estruturas que lhes permitam sugerir algum controle sobre algo que, efetivamente,
não dominam; e (iii) como consequência desse segundo ato, quando já estão convencidos
da necessidade de contenção da doença e já têm estimados os meios de combate, passam
ao estágio da negociação das responsabilidades públicas. Com base nesse comportamento,
é possível concluir que não está havendo um esforço de inovação na gestão pública para o
enfrentamento da pandemia.
As recomendações feitas pela OMS sobre esse tema permite observar que as respostas para
o enfrentamento dos surtos infecciosos compreendem um conjunto amplo de deliberações
que deve ser harmoniosamente engendrado e arquitetado, a partir da adoção de quatro
eixos de Gestão principais (WHO, 2018): (i) Coordenação entre agentes – os elementos
participantes do combate a surtos infecciosos necessitam estar sintonizados de modo
que seus esforços produzam os efeitos esperados; (ii) Informações de Saúde – a coleta
de informações seguras e atualizadas são necessárias para monitorar a situação existente,
mensurar os impactos das intervenções promovidas e para guiar corretamente o processo
decisório; (iii) Riscos de comunicação – a fim de se evitar um cenário de desinformação
para não agravar o quadro de disseminação das doenças, é preciso combater os rumores, os
boatos e as notícias falsas sobre a doença – as principais ferramentas para esse enfrentamento
são a informação correta e a comunicação franca e verdadeira com a Sociedade –; e (iv)
Intervenções de Saúde – cada doença cobra por um estoque procedimental próprio que vai
se orientar no sentido de reduzir a transmissão, os níveis de morbidade e de mortalidade,
o impacto sobre os sistemas de Saúde e, também, os riscos econômicos, políticos e sociais,
entre outros de matriz coletiva e individual.
Contudo, conforme destacado por Carney e Bennett (2014), uma análise crítica das
recomendações feitas pela OMS evidencia que a preocupação central dessa organização
privilegia a superação do desafio médico-científico. Revelando não haver preocupações
com outros fenômenos sociais que podem ser causas e/ou decorrências da pandemia. Ao
desprezar as dimensões sociais, econômicas, políticas e administrativas, a OMS revela os
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 97

desafios que precisam ser enfrentados para alterar o padrão da Administração Política do
Espaço Geográfico, em resposta às ameaças trazidas pelo atual contexto pandêmico.
Quanto a esse aspecto, Aaltola (2012) adverte sobre o predomínio de estudos e abordagens
que tendem a resvalar ou encobrir as dimensões sociopolíticas que interferem, direta ou
indiretamente, nas ações de combate aos surtos infecciosos. Nesse sentido, considera-se
que uma das contribuições desse ensaio é apontar as derivações políticas do combate às
endemias e pandemias, expressas nos aspectos subjetivos que envolvem essa agenda. A
importância dessas extensões evidencia-se, justamente, porque afetam distintos aspectos
da vida humana com especial destaque para os padrões de gestão das relações sociais de
produção, base central dos conceitos de Administração Política e Geografia Política.
Movidos pelo esforço acadêmico de avançar nas conexões possíveis entre esses dois campos
de conhecimento, com vistas a contribuir para orientar o poder público e a sociedade no
combate aos surtos infecciosos (epidêmicos e pandêmicos), destacam-se duas dimensões
que têm sido apontadas por diversos autores sobre o tema. Conforme Ghebreyesus (2018),
deve-se destacar os seguintes: (i) a construção e manutenção de uma resiliente estrutura de
prevenção, detecção e resposta a surtos infecciosos, dentro dos paradigmas do Regulamento
Sanitário Internacional (RSI, 2005), em nível global, nacional e regional; e (ii) a garantia
de rápido acesso aos serviços essenciais de Saúde, de qualidade, para as populações afetadas
por emergências infecciosas. Segundo o autor, para cada fase de um surto, é recomendado
um tipo de resposta e projeto de intervenção. Sobre essa questão, a OMS destaca que a
introdução do patógeno exige ações antecipadas e de rápida detecção, ressaltando, ainda, que
a agenda de contenção responde como meio de combate à transmissão localizada, enquanto
as medidas de controle e de mitigação da doença surgem como alternativas à disseminação
ampliada do vírus (WHO, 2018).
Sobre essas exterioridades, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária adverte que, mesmo
quando a doença não representa um risco efetivo, as providências das políticas públicas de
controle não devem ser suspensas ou subestimadas. Tal determinação pode ser interpretada
como a aceitação de que a contenção de surtos endêmicos e pandêmicos deve ser considerada
como uma questão administrativa e não apenas um problema sanitário. Ao admitir a
necessidade de “[...] coleta, compilação e a análise contínua e sistemática de dados para
fins de [controle da] saúde pública e a disseminação oportuna de informações para fins de
avaliação e resposta em saúde pública”, a ANVISA reforça o argumento central sustentado
neste ensaio (ANVISA, 2009, p. 18).
Rosenberg (1989) corrobora essa afirmação ao defender que as determinações político-
administrativas se constituem como verdadeiros veredictos para o efetivo combate às
epidemias e pandemias, realçando, desse modo, a imperiosidade de assunção de um padrão
de gestão capaz de conter os efeitos devastadores dos surtos sobre as vidas humanas.
Acrescenta, ainda, que somente o uso de instrumentos racionais de gestão e gerência
permitirá que as sociedades se preparem, adequadamente, para dar conta dos impactos
produzidos pelo elevado nível de aleatoriedade em que ocorrem os surtos.
98 Administração Política do Espaço Geográfico

Aaltola (2012) confirma essa interpretação ao ressaltar que doenças e surtos (endêmicos
e pandêmicos) manifestam-se como processos físico-fisiológicos e fenômenos sociais
cujas formas de percepção e entendimento são coletivamente construídas. O que implica
considerar que os riscos de adoecimento individual e coletivo, por constituírem reflexos de
representações sociais eivadas de intencionalidades e interesses e resultantes de concertação
política, manifestam sua face administrativa, a qual precisa ser interpretada de forma crítica
e espacialmente localizada.

APONTAMENTOS PARA UMA AGENDA DE ESTUDOS EM ADMINISTRAÇÃO


POLÍTICA DO ESPAÇO GEOGRÁFICO COM ÊNFASE NO ENFRENTAMENTO
DA PANDEMIA DA COVID-19
Conforme destacado no corpo deste ensaio, considera-se que Pandemias são eventos
administrativos por refletirem ações que envolvem pesquisa, vigilância e contenção das
doenças e por ocorrerem em ambientes permeados por institucionalidades, valores culturais
e construções sociais. Essa afirmação assume contornos mais claros, segundo Abeysinghe
(2019), quando se reconhece que a própria definição de Pandemia é uma deliberação
organizacional que depende de diversas condicionantes, atinando as mais distintas searas
que definem e orientam as relações sociais – envolvendo aspectos políticos, econômicos,
geográficos, psicológicos, além da própria infectologia.
Há algum tempo, pesquisadores e especialistas em Saúde Pública têm alertado sobre o risco
do advento de uma nova pandemia que poderia desestruturar todo o circuito produtivo em
escala planetária. Porém, a despeito desse alerta, poucas lideranças políticas dispuseram-se
a considerar esses riscos (FRIEDEN, 2020). Do mesmo modo, já se tornou consensual
que a expansão em volume e velocidade da economia mundial fez com que as interações
promovidas pelos agentes econômicos no contexto da ‘economia-mundo’ amplificassem
os riscos representados por surtos infecciosos, epidemias e pandemias (ABEYSINGHE,
2019).
Sobre essa discussão, Bjordahl e Carlsen (2019) ressaltam que surtos infecciosos de
natureza pandêmica, em qualquer tempo e espaço, são fenômenos que incorporam
elementos epidemiológicos, comunicacionais e políticos, entendendo essa última face
como um conjunto de práticas de governança. Por outro lado, Carney e Bennett (2014)
advogam que as implicações dos planos de governança e controle de eventos pandêmicos
encontram estribo, ao menos na clínica médica, nos modelos epidemiológicos de Saúde
Pública e nos modos de expressão de governança. Destacam os referenciados autores que,
em se tratando de pandemias, o processo de governança é algo inexato e afetado pelas
mais diversas contingências, em razão de ser um fenômeno de difícil previsibilidade e
fortemente carregado de sentido político. Essa análise não implica deixar de considerar que
surtos infecciosos prescindam de abordagens especificamente epidemiológicas, mas destaca
que esses eventos cobram mais do que medidas sanitárias, pois requerem a estruturação
de um arcabouço político-administrativo que permita a transformação do conhecimento,
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 99

das experiências e das informações disponíveis em ações de resposta concretas e efetivas


(BJORDAHL; CARLSEN, 2019).
Outro impacto relevante provocado pelos surtos pandêmicos que impactam com severidade
o circuito produtivo está relacionado tanto aos efeitos de retroalimentação e generalização
espacial quanto aos níveis de integração territorial dos mercados ( JORDÀ; SINGH;
TAYLOR, 2020). Conforme destacado por Carney e Bennett (2012), é essencial considerar
que planos de contenção de pandemias não podem ser monólitos de rigidez administrativa
e focados, exclusivamente, no acesso e uso de instrumentos gerenciais. Ao contrário dessa
expectativa, um padrão de Administração Política do Espaço Geográfico deve refletir altos
níveis de flexibilidade para ter capacidade de considerar a presença de elementos culturais,
políticos e históricos em seu meio ambiente, assim como não pode desprezar o contexto
ideológico que os circunscrevem (SANTOS, 2004; SANTOS; RIBEIRO; CHAGAS,
2009; CARNEY; BENNETT, 2012; 2014).
Abeysinghe (2019) reforça essa perspectiva ampliada de interpretação do papel da
administração das pandemias quando declara que o conjunto de respostas a riscos de ordem
sanitária é composto por uma série de estratégias que se encontram à disposição dos entes
e das entidades de decisão para serem utilizadas da forma que melhor lhes aprouver. O que
significa concluir uma elevada convergência das análises destacadas pelos estudiosos com os
princípios que sustentam a Administração Política, ao ressaltarem que o enfrentamento dos
surtos pandêmicos implica admitir que se está tratando de uma realidade que carrega fortes
e complexas contradições e conflitos, potencializando os graves problemas provocados pelas
desigualdades estruturais que permeiam historicamente as relações sociais do capitalismo
moderno e contemporâneo.
Considerando os argumentos expostos, embora seja amplamente aceito que é da
competência dos governos prevenir e conter surtos infecciosos, as formas pelas quais tal
esforço deve ser estruturado e administrado é um campo aberto para onde convergem
diferentes e complementares opiniões, a exemplo da abordagem proposta neste ensaio,
a qual defende a possibilidade de um campo de estudo que contemple a Administração
Política do Espaço Geográfico (SILVA, 2020). Tal conclusão sustenta-se em medidas que
secundam as mais diversas intencionalidades que afetam a dinâmica das relações sociais de
produção, influenciando os equilíbrios existentes e propiciando processos de reestruturação
dos papéis assumidos pelo conjunto dos agentes sociais.
Com o objetivo de inspirar novos estudos sobre os desafios da capacidade de gestão pública
e gestão social em tempos de pandemia e pós-pandemia, serão indicados, com base em
Frieden (2020), alguns apontamentos/questionamentos que refletem aspectos político-
administrativos que podem ajudar a avançar em reflexões sobre o tema Administração Política
do Espaço Geográfico: (i) quais restrições impor e quando elas devem ser flexibilizadas; (ii)
onde os recursos públicos e sociais devem ser aplicados e de onde serão extraídos; (iii) até
onde os interesses e preocupações nacionais podem ser limitados em nome da cooperação
internacional. Assim como podem ser acrescidos outros que contemplem a realidade
brasileira especialmente ao considerar o contexto de descoordenação das políticas públicas
100 Administração Política do Espaço Geográfico

de prevenção e atendimento da COVID-19, buscando responder à seguinte questão: (iv)


até onde os interesses e preocupações do governo federal podem ser limitados em nome da
imperiosidade do estabelecimento da cooperação federativa.
Ao destacar a relevância da análise dos padrões de gestão das relações sociais de produção,
consumo e distribuição, objeto científico e técnico dos estudos da Administração Política,
para o aprofundamento dos estudos administrativos quanto ao enfrentamento do surto
sanitário, foi possível reconhecer que as escolhas feitas por cada país são fundamentais
para determinar a trajetória da pandemia, dimensionando seus impactos, reais e potenciais,
na sociedade e na economia. Se se admite que o significado e sentido substantivo de
‘AdMinistrar’, defendido por Santos, Ribeiro e Chagas (2009), implica assumir compromisso
com a concepção e condução de um dado ‘projeto de sociedade’, dirigido para o alcance do
“Bem-Estar Social”, a direção que o surto da COVID-19 venha a seguir irá determinar a
qualidade de vida que se deseja preservar para as futuras gerações.
Para mudar o curso desse desastre prenunciado, será necessário ampliar a agenda de
prioridades defendidas pelos epidemiologistas, as quais incluem as seguintes ações dirigidas
para minimizar os níveis de morbidade e mortalidade associada ao vírus: evitar picos
epidêmicos que sobrecarreguem os serviços de saúde; e manter um impacto econômico
administrável e achatar a curva epidêmica, enquanto se aguarda o desenvolvimento em
larga escala da terapia antiviral e da produção de vacinas (MEDINA et al., 2020). Porém,
conforme evidenciam os dados das crises de saúde e socioeconômica, essa agenda tem se
mostrado insuficiente para dar conta das graves fragilidades que foram exacerbadas com a
chegada da pandemia, especialmente no Brasil, manifesta tanto pelo aprofundamento das
vulnerabilidades sociais como pelas incapacidades administrativas – expressas no âmbito
político-institucional, financeiro e técnico – que têm marcado a administração pública no
nosso país.
Considerando essa triste e desafiadora realidade, urge reconhecer que o enfrentamento da
atual pandemia, em âmbito global e nacional, passa por uma profunda revisão ou refundação
das bases da Administração Política do Capitalismo contemporâneo. Esse esforço deve
permitir repensar ou adequar os padrões atuais de gestão das relações sociais de produção,
consumo e distribuição que tem priorizado os interesses privados em detrimento dos
interesses coletivos (SANTOS et al., 2016; DARDOT; LAVAL, 2016; SANTOS; GOMES,
2017; SILVA, 2019; FRANÇA-FILHO; EYNAUD, 2020; HARVEY, 2020; DAVIS,
2020; entre outros autores críticos). Nesse sentido, é fundamental reconhecer o que se tentou
destacar nas reflexões teórico-metodológicas e empíricas destacadas neste ensaio no sentido
de considerar que surtos infecciosos – endemias, epidemias e pandemias – são fenômenos,
essencialmente, político-administrativos – ainda que se explicitem em diversas dimensões
que envolvem desde questões relativas à saúde, passando pelas questões socioeconômicas,
até alcançar as questões psicossociais, entre outras – e sua condução é mediada por uma
concertação de intencionalidades. A direção a ser seguida refletirá, portanto, a vontade e
capacidades que cada sociedade tem para redescobrir caminhos que possibilitem reinventar-
se, a partir das aprendizagens advindas da própria experiência da crise. Nesse sentido, é
essencial se ‘pensar outros modos de gestão’ que potencializem a solidariedade nas relações
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 101

sociais e contribuam para promover transformações sociais indispensáveis para garantir a


sobrevivência coletiva (FRANÇA-FILHO; EYNAUD, 2020).

NOTA
1 Submetido à RIGS em: dez. 2020. Aceito para publicação em: 2020.

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104 Administração Política do Espaço Geográfico

Elizabeth Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal da Bahia.


Matos Ribeiro Doutora em Ciências Políticas e da Administração pela Universidade de
Santiago de Compostela-Espanha. Professora Associada II da Universidade
Federal da Bahia. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos
Conjunturais em Administração-NEC, Coordenadora do Núcleo de
Apoio Acadêmico e Profissional dos Estudantes da EA-UFBA (NAAPE)
e Coordenadora do Mestrado Profissional em Administração – MPA/
NPGA.

Emerson de Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Sergipe.


Sousa Silva Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal de
Sergipe. Doutor em Administração pelo Núcleo de Pós-Graduação em
Administração-NPGA. Economista da Advocacia Geral da União (AGU)
junto à Procuradoria Geral Federal em Sergipe. Divulgador da área de
pesquisa da Administração Política do Espaço Geográfico.

Reginaldo Bacharel em Administração Pública pela Universidade Federal da Bahia.


Souza Santos Mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração
Pública e Empresarial (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas. Doutor
em Economia pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP
e pós-doutor pelo Instituto Superior de Economia e Gestão - ISEG da
Universidade Técnica de Lisboa - UTL. Professor aposentado, atualmente,
é professor do Núcleo de Pós-Graduação em Administração da UFBA e
professor visitante da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus
Arapiraca. Autor de dezenas de trabalhos, entre eles: A Administração
Política como Campo do Conhecimento (2001), Keynes e a Proposta de
Administração Política do Capitalismo (2010) e Outro Modo de Interpretar
o Brasil (2018).

Mônica Matos Bacharel em Economia pela Universidade Católica do Salvador. Mestre


Ribeiro em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Doutora
em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Professora e
coordenadora do Colegiado de Administração, Campus V, da Universidade
do Estado da Bahia. Professora do Mestrado Profissional em Direito,
Governança e Políticas Públicas da Universidade Salvador.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 105

Foto: Kleber Moitinho


106 Administração Política do Espaço Geográfico

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.107-120
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39174

Estratégia de Resiliência e Território: atuação de


Salvador no enfrentamento a pandemias1
Andréa Cardoso Ventura, Tássio Santos Silva e Clarice Araújo Carvalho

Resumo A necessidade de preparar-se para eventos futuros vem levando cidades de


todo o mundo – entre elas, Salvador, na Bahia – a elaborarem e implementarem
suas estratégias de resiliência; planejamentos a longo prazo em busca de um
desenvolvimento que seja, de fato, sustentável. Entretanto, no ano de 2020,
o planeta foi surpreendido pela Pandemia do COVID-19. Desta forma,
o presente trabalho tem como objetivo analisar como Salvador elaborou
sua estratégia para enfrentamento de eventos extremos ligados à saúde e
como lidou com a situação na prática, ao surgir a situação de emergência. A
pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica voltada à resiliência,
pandemias e territórios, assim como da análise de conteúdo do documento
Plano Salvador Resiliente e do site Salvador contra o Coronavírus. Foi
possível constatar que, não obstante a cidade não tenha se preparado
expressamente em relação a epidemias e pandemias em suas estratégias de
longo prazo, quando do surgimento de uma emergência em saúde, foi capaz
de incorporar os princípios ali definidos para uma ação emergencial que
considerou as vulnerabilidades sociais identificadas no território.
Palavras-chave Resiliência Urbana. Planejamento Urbano. Pandemias. Salvador.

Abstract The need to prepare for future events has led cities around the world –
including Salvador, Bahia – to develop and implement their resilience
strategies; long-term planning in search of development that is, in fact,
sustainable. However, in 2020, the planet was surprised by the COVID-19
Pandemic. Thus, the present work aims to analyze how Salvador developed
its strategy to face extreme health events and how it dealt with the situation
in practice when the emergency situation arose. The research considered a
bibliographic review focused on resilience, pandemics and territories, as well
as the analysis of the “Plano Salvador Resiliente” document and the website
“Salvador contra o Coronavírus”. It was possible to verify that, despite the
108 Estratégia de Resiliência e Território

fact that the city had not expressly prepared itself in relation to epidemics
and pandemics in its long-term strategies, when the emergence of a health
emergency arose, it was able to incorporate the principles defined for an
emergency action that considered the social vulnerabilities identified in the
territory.

Keywords Urban Resilience. Urban Planning. Pandemies. Salvador.

INTRODUÇÃO
Uma das vertentes de busca do desenvolvimento sustentável caracteriza-se pela resiliência
urbana, a qual consiste na capacidade da cidade de resistir, se adaptar e se recuperar de
desastres ou impactos que atinjam o ambiente e a população (UNISDR, 2012). Para tanto,
o planejamento urbano constitui-se como peça fundamental. Ações locais são necessárias
ao alcance e fortalecimento da resiliência nas esferas sociais, prezando o bem-estar humano,
e ambiental (DURÃES et al., 2019). A resiliência urbana também consiste em garantir
acesso à saúde e à alimentação, um grande desafio, principalmente para os países em
desenvolvimento.
Com o surgimento da pandemia causada pelo vírus COVID-19, também conhecido por
Coronavírus, e seus consequentes impactos na economia e qualidade de vida, diversas
necessidades urbanas e barreiras para supri-las ganharam destaque nos mais diversos
territórios. O cenário enfrentado em todo o mundo confirmou a necessidade de planejar
ações de resiliência locais que foquem no controle e mitigação de epidemias e pandemias
(GLOBAL RESILIENT CITIES NETWORK, 2020).
Com o objetivo de reduzir as vulnerabilidades e fortalecer a resiliência das cidades, diversos
programas de desenvolvimento urbano têm sido criados e executados nos últimos anos. Estes
programas promovem cenários multidisciplinares de trocas de conhecimento, estratégias e
redes de apoio entre as cidades participantes, sendo alguns dos principais: Programa 100
Cidades Resilientes – R100, C40, ICLEI (Local Governments for Sustainability) e The
Global Covenant of Mayors for Climate & Energy (ARUP, 2015). A cidade de Salvador,
Bahia, é membro integrante de todas elas, juntamente com Rio de Janeiro, a primeira a
entregar sua proposta de estratégia de resiliência, e Porto Alegre – três cidades do Brasil que
despontaram como pioneiras no planejamento urbano sustentável e resiliente, com o apoio
do programa R100 (ROCKEFELLER FOUNDATION, 2018).
Esta rede de cidades já vinha procurando formas de ampliar seus resultados enquanto espaço
de articulação e de troca de conhecimentos e experiências. A pandemia do COVID-19,
no entanto, fez com que novas estratégias tivessem que ser desenvolvidas pela Rockefeller
Foundation, conforme explicado posteriormente. Afinal, ao construir e implementar suas
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 109

estratégias de resiliência nos últimos anos, já houve muito aprendizado construído em


diversas cidades ao redor do mundo.
Desta forma, surgiu o interesse em compreender: como Salvador planejou sua estratégia de
resiliência voltada a pandemias e epidemias e como, de fato, enfrentou o primeiro evento
desta natureza após esse planejamento?
As análises e reflexões apresentadas neste trabalho são fruto de estudos e debates de um
grupo de pesquisa voltado à resiliência urbana, o GpS – Governança para Sustentabilidade
e Gestão de Baixo Carbono, sediado na Escola de Administração da Universidade
Federal da Bahia, tendo atenção especial de seu subgrupo de Resiliência Urbana. Para o
desenvolvimento desta pesquisa, foram consideradas produções teóricas recentes sobre
territórios e pandemias, focando na COVID-19, bem como sobre as redes de resiliência
urbana. Para a análise empírica sobre a atuação de planejamento para o território de Salvador,
considerou-se especialmente o plano estratégico de resiliência “Salvador Resiliente” e o site
informativo sobre expansão e medidas de combate ao Coronavírus, http://informe.salvador.
ba.gov.br/ (SALVADOR, 2020). A análise realizada refletiu sobre o foco da cidade em
ações a longo prazo relacionadas a epidemias e pandemias, assim como medidas urgentes
de combate à doença.
Para demonstrar os resultados obtidos, o trabalho estrutura-se em quatro seções, para além
desta introdução. A segunda seção discorre sobre os efeitos de pandemias em desigualdades
sociais; a terceira trata do Programa 100 Cidades Resilientes e seus desdobramentos; a quarta
aborda o planejamento e as ações da cidade de Salvador frente a epidemias e pandemias. Por
fim, apresentam-se as considerações finais.

O EFEITO DE PANDEMIAS NA DESIGUALDADE SOCIAL


Se é verdade que nos últimos anos os países da América Latina e o Caribe passaram
por períodos de crescimento e prosperidade econômica, é verdade também que a região
ainda consiste na mais desigual do mundo, apresentando um coeficiente de Gini quase
um terço superior ao da Europa e Ásia Central (NAÇÕES UNIDAS CEPAL, 2019). Tal
desigualdade é resultado tanto do modo tardio de produção capitalista quanto das heranças
coloniais que implicam veementemente na distribuição desigual de direitos, como moradia,
educação, saúde, serviços, entre outros (QUINZANI, 2020; MARICATO, 2015). Assim
sendo, para Milton Santos (2011, p. 87), “[...] nos países subdesenvolvidos de um modo
geral há cidadãos de classes diversas, há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos
e os que nem mesmo ainda o são”. Essa realidade é espelhada no modo de apropriação e
organização do espaço urbano de grande parte das cidades latino-americanas, em especial
as brasileiras.
As discrepâncias na escala intraurbana, inclusive no acesso a serviços e infraestrutura,
combinadas pelos fatores classe e território, são essenciais na estruturação da geração
de hierarquias e assimetrias, “[...] marcantes na distribuição dos níveis de saúde dentro
da população” (FIGUEIREDO SANTOS, 2020, p. 3). Logo, o contexto e as situações
110 Estratégia de Resiliência e Território

de vulnerabilidade socioeconômica e civil em que uma comunidade vive contribuem


intensamente para o agravamento do quadro em uma situação de pandemia, visto que
No âmbito espacial, a distância entre moradia e trabalho, a dependência do
transporte coletivo, a deficiência de saneamento, a densidade demográfica, a
proximidade física entre os objetos que compõem as configurações territoriais,
a interação face a face, as limitações internas em espaço e suporte das moradias
− em sua função de ‘espaço de proteção’ na situação de pandemia − geram
situações e comportamentos de risco para aqueles que se distribuem em espaços
com estas características. (FIGUEIREDO SANTOS, 2020, p. 4)

Assim, tanto na concentração de doenças crônicas como em situações de periculosidades


ambientais, há outros fatores de risco a serem considerados, como a insegurança alimentar, a
infraestrutura da residência, entre outros. Como afirma Maricato (2015), a exclusão e estado
de vulnerabilidade em que boa parte das pessoas vive é “um todo”. Poucas coisas são tão
simbólicas e reveladoras quanto o fato da primeira vítima fatal de Coronavírus na cidade do
Rio de Janeiro ter sido uma empregada doméstica – a qual possuía diabetes e hipertensão – e
que provavelmente contraiu a doença de sua patroa recém-chegada do exterior (G1, 2020).
Tais desigualdades, portanto, ficam ainda mais evidentes diante de uma crise sanitária
mundial, como a pandemia da COVID-19, a qual resultará/está resultando, como um
efeito dominó, em outras diversas crises, como econômica, social e política. Apesar da visão
imobiliária da cidade impedir que ela seja vista como uma totalidade (SANTOS, 2011) – já
que a ocupação das pessoas no território varia, principalmente, de acordo com suas classes
–, em momentos como esse, a “totalidade” fica nítida tanto na dependência dos serviços
dos moradores dos bairros mais pobres para os moradores dos bairros mais ricos quanto
na rapidez de contágio em toda a cidade. Essa questão também se torna nítida em regiões
metropolitanas, estados e países.
A falta de recursos, informações, capacidades e condições para mudar a rotina e adesão de
práticas de higienização e prevenção em um contexto como esse – somando-se o “efeito
desorientador” dos atos e falas do atual presidente do Brasil – é o ingrediente necessário
para a dificuldade de “achatamento da curva” de contágios (FIGUEIREDO SANTOS,
2020). Os reflexos dessas questões são sentidos fortemente nas cidades, onde os impactos
podem ser observados de maneira mais enfocada.
Não diferente das outras grandes cidades, a capital baiana, quarta cidade mais populosa
do Brasil, apresenta uma nítida segregação socioespacial influenciada pelos fatores classe e
raça, os quais, por sua vez, são influenciados pelo contexto latinoamericano e peculiaridades
próprias. A partir de dados e análises de censos demográficos, de acordo com Carvalho
e Pereira (2008; 2015), é possível identificar um padrão de apropriação a partir de três
grandes vetores na “Salvador moderna”, o qual se constituiu a partir da década de 1960: o
primeiro seria a “Orla Atlântica”, onde se concentra não só as classes média e alta, locais
de moradias adequadas, equipamentos e serviços, mas também os investimentos públicos
e interesses do capital imobiliário; o segundo é o “Miolo”, centro geográfico da cidade,
ocupado inicialmente com a construção de residências para a “classe média baixa” na fase
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 111

áurea do Sistema Financeiro de Habitação e, posteriormente, tomado por loteamentos e


ocupações populares; e o terceiro é o “Subúrbio Ferroviário”, inicialmente impulsionado
pela implantação da linha férrea no século XIX, vindo a ser região de ocupações populares
sem controle urbanístico e concentração do déficit habitacional (CARVALHO; PEREIRA,
2008; 2015). Ainda segundo os autores, tais características não são homogêneas, porém, são
preponderantes em cada subdivisão sociogeográfica.
Se a desigualdade social foi o fator chave para a ocupação das diferentes classes no território,
ainda hoje ela é algo extremamente presente. Segundo dados da Pesquisa Nacional por
Amostra Domiciliar Contínua (2018), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), as residências mais ricas de Salvador apresentam uma renda 61
vezes maior do que as residências mais pobres da cidade. Essa desigualdade tem uma forte
expressão territorial e se expressa nas condições de moradia da cidade (CORREIO, 2019).
Se, devido às diferentes condições socioeconômicas e físico-ambientais, Salvador é
constituída por “várias cidades” (CARVALHO; PEREIRA, 2008), qualquer programa ou
estratégia que se proponha a tornar a cidade mais resiliente e, portanto, mais preparada para
enfrentar suas adversidades, deve ser capaz de incorporar tanto as especificidades quanto a
totalidade.

O PROGRAMA 100 CIDADES RESILIENTES: SALVADOR ENTRE AS


PIONEIRAS
Lançado, em 2013, pela Fundação Rockefeller, o Programa 100 Cidades Resilientes (R100)
selecionou cidades ao redor do mundo engajadas em construir e fortalecer a resiliência em
seus territórios. O objetivo do programa é focar nos desafios físicos, sociais e econômicos
das cidades, almejando o desenvolvimento sustentável. Os locais selecionados recebem
suporte na elaboração de um plano de resiliência que englobe todas as vertentes (social,
física e econômica), assim como acesso a financiamentos, parcerias com entidades públicas
e privadas e constante troca de conhecimento entre os membros do Programa R100.
Para a elaboração dos planos, é utilizada metodologia desenvolvida pela Arup (2015),
City Resilience Framework, a qual define 12 indicadores para acompanhamento das ações
estratégicas quanto da busca de resiliência.
Como participantes do R100, as cidades brasileiras Salvador, Rio de Janeiro e Porto
Alegre seguiram a matriz para a elaboração dos seus planos de resiliência. No entanto,
cada cidade definiu pilares para basear o planejamento das ações a serem implantadas.
Salvador definiu “Transformação urbana sustentável”, “Economia diversificada e inclusiva”,
“Cultura e múltiplas identidades”, “Comunidade saudável e engajada” e “Cidade informada
e governança inovadora” como seus pilares (SALVADOR, 2019). A partir destes temas,
foram definidos objetivos estratégicos e ações que atuam no enfrentamento dos choques e
estresses específicos da cidade.
112 Estratégia de Resiliência e Território

Um novo momento para o R100 e suas cidades


Visando dar prosseguimento ao programa R100, os Diretores de Resiliência (Chief Resilience
Officers - CROs) atuando conjuntamente criaram, em setembro de 2019, o Global Resilience
Cities Network - GRCN (Rede de Cidades Globais Resilientes). O objetivo é manter em
ação os planos de resiliência elaborados a partir do R100 e garantir o enfrentamento às
mudanças climáticas e demais desafios sociais, econômicos e físicos, principalmente das
comunidades vulneráveis. O novo programa possui o diferencial de ser liderado pelos
Diretores de Resiliência de cada cidade participante do programa anterior, além de receber
diferentes fontes de financiamento para além dos existentes no R100 (GRCN, 2019).
O propósito de acompanhar e manter as cidades trocando experiências e informações visa
fortalecer a relação entre esses territórios, na busca de soluções sustentáveis e resilientes
de desenvolvimento (GRCN, 2019). As parcerias criadas entre as cidades tornam-se de
extrema importância ao lidar com epidemias e pandemias, uma vez que se estendem para
além das fronteiras territoriais e seu enfrentamento requer medidas em conjunto.
Em realidade, desde a fundação da GRCN, havia uma percepção clara de que as pandemias
estavam entre os principais desafios a serem enfrentados pelas cidades no século XXI,
juntamente com as mudanças climáticas, as infraestruturas inadequadas, os ataques
cibernéticos e outros riscos potenciais, sendo fundamental que as cidades pudessem
trocar experiências e conhecimentos entre si. No entanto, com a chegada do COVID-19,
a GRCN teve que alterar seu planejamento de emergência. Nele, discute-se desde o
aproveitamento da tecnologia para combater o vírus até como será a recuperação econômica
quando o COVID-19 for contido (GRCN, 2020). Assim, atualmente, a GRCN integra a
coalizão Cities for a Resilient Recovery – C2R (Cidades para uma Recuperação Resiliente),
englobando governos locais e praticantes de resiliência em uma plataforma colaborativa
aberta a participantes de fora da rede (C2R, 2020).

SALVADOR RESILIENTE FRENTE A EPIDEMIAS E PANDEMIAS


A Estratégia de Resiliência de Salvador, lançada em 2019, foi construída a partir do
diálogo de diversos setores da cidade. Secretarias, órgãos e diretorias municipais, órgãos
de representação da indústria e comércio, startups, empresas, investidores, academia,
comunidades de diversos bairros e ONGs participaram do processo de elaboração do “Plano
Salvador Resiliente”. Em 2018, ocorreu a Fase 1 de elaboração do Plano, com participação
de 1.254 pessoas. Nesse momento, foram classificados os principais impactos, tensões e
desafios de Salvador. Entre os choques – eventos extremos que exigem uma ação imediata
– foram identificados: deslizamentos de terra, surto de doenças, inundações e alagamentos
e insuficiência de serviços básicos. Já entre os estresses – problemas crônicos que impactam
a cidade em longo prazo – foram identificados: pobreza e desigualdade social, desemprego,
crimes e violência, uso e ocupação irregular do solo, falta de mobilidade urbana e falta de
educação adequada (SALVADOR, 2019; SILVA et al, 2020).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 113

A Fase 2 envolveu 4500 participantes, os quais contribuíram para o aprofundamento das


ações do Plano, definindo soluções para os choques e estresses mapeados anteriormente. O
resultado desta fase originou 60 ações e iniciativas organizadas em pilares (SALVADOR,
2019).
Ao analisar a Estratégia de Resiliência da Cidade de Salvador, nota-se que o plano não
incorporou entre os possíveis choques a serem enfrentados pela cidade “Pandemias”. Porém,
foi incorporado o “Surto de Doenças”. Logo, foram pensadas ações norteadas por um
planejamento urbano e habitacional. Este visa requalificar o espaço urbano e garantir um
saneamento básico adequado, algo essencial para evitar o surgimento de doenças infecciosas,
como dengue, zika, leptospirose, entre outras. É sabido que, nesses casos, principalmente
territórios vulneráveis são mais afetados, já que as ocupações em áreas ambientalmente
frágeis – as que “sobram” para boa parte da população – acabam gerando inúmeros problemas,
inclusive epidemias (MARICATO, 2015).
A partir da análise sobre ações versus choques e estresses apresentados no Plano, entre as
138 ações apresentadas, esta pesquisa identificou 18 ações que podem prevenir direta ou
indiretamente a expansão de doenças transmissíveis. Diretamente, tem-se, por exemplo:
Reformas de casarões vazios; Restauração florestal do lixão de Canabrava; Lei Revitalizar;
Projeto Vale das Pedrinhas; Novo Mané Dendê; Plano Municipal de Saneamento;
Projeto Casarões; Reciclando vidro a partir do concreto; Implantação da coleta domiciliar
pública e aumento do número de PEVs; Sistemas de triagem; Projetos habitacionais
no Comércio; Requalificação das residências; Aplicação de geomantas; Requalificação
urbana; e Restauração de lixões ou reciclagem de resíduos, visto que imóveis abandonados
e acumulação de resíduos sólidos sem tratamento adequado podem vir a ser ninhos e
focos para transmissores de doenças, como ratos, insetos peçonhentos, entre outros.
Indiretamente, pode-se considerar a introdução e estimulação de biodiversidade em áreas
verdes, importantes para o controle de “pragas”, sendo elas: Biodiversidade em parques e
praças; Requalificação do Jardim Botânico de Salvador; Parque Lagos dos Pássaros; Projeto
Rio Camarajipe; e Certificação Bandeira Azul.
Além disso, visando a “promoção da saúde” na cidade do Salvador, sua Estratégia possui
três ações voltadas especificamente para este objetivo: i) Saúde para Todos: visa aumentar a
oferta de serviços de qualidade na atenção básica e especializada, com cobertura das regiões
mais carentes; ii) Indicadores de Qualidade na Saúde: garantir a efetiva qualidade dos
serviços de saúde prestados em todas as esferas da assistência com a implantação de um
sistema de acompanhamento de resultados; e iii) SOPRAR - Monitoramento da qualidade
do ar: pretende introduzir sistemas inovadores de modelagem da qualidade do ar aplicados
à vigilância em saúde (SALVADOR, 2019). Essas iniciativas podem fazer a diferença em
períodos de epidemias e pandemias, já que visam aumentar o raio de atuação e eficácia da
qualidade e acesso a saúde.
Também deve-se levar em consideração que a maioria das ações que compõem o Plano de
Salvador (91 ações) tem como foco a redução das desigualdades e pobreza, fazendo jus ao
que afirma Nery (2015, p. 21): “[...] esforços de resiliência são, acima de tudo, a construção
114 Estratégia de Resiliência e Território

de sociedades mais fortes, inovadoras e socialmente justas”. Características indispensáveis


para reduzir os impactos e consequências negativas, bem como proporcionar uma saída
rápida e sistemática diante dos mais variados desastres, crises e tragédias.

Ações de Enfrentamento à Pandemia como Fortalecimento da


Resiliência Urbana
Durante a pandemia de COVID-19, a Prefeitura de Salvador desenvolveu um plano de
ação de combate à doença. Em um primeiro olhar, esse plano não teve qualquer relação
visível com os planejamentos anteriores voltados a resiliência a epidemias e pandemias.
Entretanto, em um olhar mais atento, nota-se como o direcionamento voltado não apenas
às condições de saúde, mas, também, à redução das desigualdades sociais esteve presente.
Conforme visto no site especialmente criado para divulgar as ações do governo municipal
para o enfrentamento da pandemia (SALVADOR, 2020), as medidas de enfrentamento
foram divididas em sete áreas de atuação: Saúde, Assistência Social, Educação, Trânsito e
Transporte, Comércio e Serviços, Controle Sanitário e Espaços Públicos.
Na área de Saúde, ações como a inauguração de sete unidades da Saúde da Família em
bairros de menor renda da cidade e criação de consultórios de rua para acompanhamento
médico e psicológico de moradores de rua, entre outras medidas de mesma natureza, estão
em congruência com as ações apontados no Plano Salvador Resiliente, ainda que não haja
menção da estratégia de resiliência naquele plano de ação. Além disso, foram inaugurados
228 leitos de UTI, em 11 hospitais. Entretanto, destes, sete estão localizados na Orla
Atlântica – onde se concentram as classes altas e médias da cidade – e no Centro Antigo
de Salvador, representando 68,42% dos leitos de UTI recém-criados; apenas quatro dos
recentes hospitais estão localizados no Miolo e Subúrbio Ferroviário – onde se concentram
as classes baixas –, representando 31,57% dos novos leitos (SALVADOR, 2020). Apesar
da desproporção dos leitos de UTI, o mesmo site indica que as ações de assistência social
têm como foco os bairros mais vulneráveis, com distribuição de máscaras, álcool gel, luvas,
refeições e cestas básicas.
Interessante notar que essas duas localidades, Miolo e Subúrbio Ferroviário, são identificadas
como mais vulneráveis em saúde de Salvador, de acordo com o índice elaborado pelo grupo
de pesquisa GeoCombate COVID-19, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O
índice analisa as condições do meio ambiente construído, a dimensão socioeconômica e a
dimensão da saúde, resultado de “uma combinação de aspectos individuais, coletivos e de
contexto” (GEOCOMBATE, 2020, p. 1). No primeiro, os bairros ou áreas do bairro de
Cassange, São Cristóvão, Nova Brasília e São Marcos são apresentados com mais vulneráveis.
No segundo, bairros ou áreas do bairro de São Tomé, Paripe, Periperi, Nova Constituinte,
Fazenda Coutos, Coutos e Valéria constituem-se como mais vulneráveis, apresentando um
índice maior que 7.
Assim, é possível reconhecer no Miolo e no Subúrbio fatores que contribuem intensamente
para a explosão dos casos de COVID-19 nesses territórios, como mostra reportagem da
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 115

Folha de S. Paulo de julho de 2020. Quando todos os bairros da cidade são analisados,
conclui-se que o número de casos cresceu 420% no período de 22 de maio a 01 de julho.
Entretanto, quando se analisa somente os bairros mais pobres da cidade, o número chega a ser
quase três vezes maior, atingindo 1.200%, no mesmo período (FOLHA DE SÃO PAULO,
2020). Entre os fatores que podem contribuir para isso, podem ser listados: a distância entre
o local de moradia e o emprego, localizados, muitas vezes, longe no “centro social” ou “centro
tradicional” da cidade; a dependência do transporte coletivo para deslocamento; carência
de bens e serviços básicos, como de saneamento e saúde; a densidade populacional, muito
comum nos bairros periféricos; entre outros (CARVALHO; PEREIRA, 2015). Sendo
assim, “[...] por mais que se fale em um vírus democrático que atinge todas as classes sociais,
são os mais pobres que estão sujeitos as dificuldades habitacionais, de saneamento básico,
mobilidade urbana, sobretudo dos sistemas de saúde público e de segurança, entre outras
questões” (QUINZANI, 2020, p. 45).
Não obstante o presente estudo focar nas ações governamentais de planejamento e de
atuação emergencial frente à pandemia, vale destacar a existência de ações populares de
Organizações Não Governamentais (ONGs), Associações de Moradores e mesmo de civis,
tanto com distribuições de equipamento de proteção individual e higienização de espaços
públicos quanto com instalações de pias para as ações de higiene pessoal (AGÊNCIAS DE
NOTÍCIAS DA FAVELA, 2020a;b;c).
Com base nos dados divulgados pela cidade, até o dia 26/08/2020, Salvador apresentou
73.824 confirmações de casos e 2.325 óbitos, 3% do total. Comparada a outras cidades, como
por exemplo, Rio de Janeiro – pioneira no Brasil na elaboração de um plano de resiliência
que aponta ações específicas voltadas a pandemias e epidemias –, Salvador apresenta bons
resultados quanto ao enfrentamento do Coronavírus, mesmo sem citar ações exclusivas
para pandemias em seu Plano. Até a mesma data, 26/08/2020, a cidade do Rio de Janeiro
apresentou 10,6% de óbitos em relação aos casos confirmados (RIO DE JANEIRO, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia do COVID-19 torna clara a necessidade de voltar o olhar e ações políticas
e sociais para o combate e controle de epidemias e pandemias localmente, no Brasil e no
mundo. Mesmo atores que já vinham se preparando para o enfrentamento de situações
críticas nesta natureza, como é o caso das cidades que compõem o R100 e que agora fazem
parte também da GNRC, fica clara a necessidade de novas formas de reflexão e atuação.
É interessante notar que, quando do surgimento da emergência, os planos de ação de
Salvador não fazem menção alguma ao planejamento estratégico que foi elaborado
participativamente para se chegar a uma “Salvador Resiliente”. Entretanto, é possível
observar que requisitos básicos da construção de resiliência estiveram presentes nas ações
emergenciais, como o foco nas localidades mais vulneráveis da cidade. Vale ressaltar tal fato,
uma vez que diversas cidades do Brasil indicaram possíveis subnotificações dos casos de
COVID-19, principalmente nas áreas de menor renda. Salvador, pelo contrário, reforçou a
116 Estratégia de Resiliência e Território

atenção para tais áreas, o que possivelmente impactou positivamente no enfrentamento da


doença.
Considerando que a resiliência urbana visa minimizar as vulnerabilidades e fortalecer
a capacidade da cidade de resistir aos impactos, estas ações devem atender a população
amplamente, principalmente a parcela de menor renda, como vem sendo realizado. Destaca-
se, assim, a importância de as cidades possuírem planos emergenciais para o caso de impactos
não premeditados, além de estratégias de resiliência pensadas para o desenvolvimento
urbano no longo prazo e que sejam, de fato, postos em prática em seu dia a dia na execução
das ações planejadas.
As ações de enfrentamento realizadas em Salvador não focaram apenas em questões
de saúde, mas no combate às desigualdades que tenderiam a intensificar a gravidade da
pandemia no município. A distribuição de máscaras e materiais de higiene em bairros
vulneráveis e medidas de atendimento à população de rua comprovam essa percepção. Um
questionamento futuro, além do trabalho desta pesquisa, é o caminho a ser seguido nesses
territórios e sua população no âmbito da saúde e habitação que atuem, de fato, na melhoria
da qualidade de vida destes bairros.
Para além de um fator puramente biomédico, as situações de vulnerabilidade nas mais
diversas dimensões contribuem para o maior número de casos nessas regiões, mesmo que,
provavelmente, não notificadas, devido ao acesso desigual aos testes. Em qualquer momento,
inclusive diante de crises, os recursos não podem ser concentrados em um território e as
informações e capacidade para adequar a rotina não devem ser privilégios de determinada
classe.
É necessário o reconhecimento e incentivo de estudos de identificação de territórios
vulneráveis, assim como um olhar especial e atitudes direcionadas para essas áreas, visando
garantir acesso a direitos básicos e fundamentais, bem como o exercício da cidadania. Além
disso, é preciso reconhecer as iniciativas populares já existentes, criando-se maneiras de
incluí-las e potencializar seu raio de eficácia e atuação. Se, como afirma Carlos Roberto
Monteiro de Andrade (2020), “[...] essa pandemia não é a primeira, não é a última, tampouco
[...] então a coisa é muito grave e tem implicações sobre o urbanismo, sobre o desenho das
cidades, sobre como pensá-las”. Nesse sentido, faz-se urgente pensar em cidades que sejam
resilientes.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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120 Estratégia de Resiliência e Território

Andréa Doutora e mestre em Administração (UFBA). Professora Adjunta da


Cardoso Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
Ventura de seu Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA/UFBA).
Colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão
Social (CIAGS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Governança
para Sustentabilidade e Gestão de Baixo Carbono e da Câmara Temática
de Resiliência do Painel Salvador de Mudança do Clima.

Tássio Santos Bacharel Interdisciplinar em Humanidades (UFBA). Graduando em


Silva Direito (UFBA). Pesquisador do projeto Qualidade do Ambiente Urbano
de Salvador (QUALISALVADOR/UFBA) e pesquisador voluntário no
Projeto Cidades Resilientes de Baixo Carbono (UFBA).

Clarice Araújo Graduada e mestranda em Administração (UFBA). Pesquisadora do


Carvalho Grupo de Pesquisa em Governança para Sustentabilidade e Gestão de
Baixo Carbono e da Câmara Temática de Resiliência do Painel Salvador
de Mudança do Clima.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 121

Foto: Kleber Moitinho


122 Estratégia de Resiliência e Território

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.123-143
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39154

Gestão do Desenvolvimento de Territórios


Pós/Pandemia: descortinando impactos das
dissertações profissionais no PDGS1
Claudiani Waiandt, Solange Oliveira Leite, Iago Itã de Almeida Pereira
e Mayra Ferreira Mezzomo

Resumo O artigo apresenta as contribuições das pesquisas científicas dos estudantes


no âmbito do Mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social do Programa
de Desenvolvimento e Gestão Social para a resolução de problemas na
sociedade pós/pandêmica. O ensaio foi realizado a partir de pesquisa
bibliográfica e de campo. Verificou-se que as tecnologias desenvolvidas
contribuem para os territórios durante e pós pandemia, trazendo solução para
distintos problemas: investimento em propriedades agrícolas arrendantes de
terra para instalação de geradores em parques de energia eólica no semiárido
baiano, manejo de estresse para servidores públicos da segurança pública
e gestão de organizações culturais populares baianas. Cada dissertação
apresenta uma tecnologia de Gestão Social que possui impacto regional e
possibilidade de replicabilidade em outros territórios. Além disso, foram
desenvolvidas a partir da combinação de conhecimentos de diferentes áreas
com a colaboração de diferentes atores sociais.

Palavras-chave Metodologia de Pesquisa. Tecnologias de Gestão Social. Inovação Social.


Gestão Social. Desenvolvimento.

Abstract The article presents the contributions of students’ scientific research in


Development and Social Management of the Development and Social
Management Master’s Program to solve problems in post/pandemic society.
The essay was carried out from bibliographic and field research. It was found
that the developed technologies contribute to the territories during and
after the pandemic, providing solution to different problems: investment
in agricultural properties leasing land to install generators in wind energy
parks in the semiarid region of Bahia, stress management for public security
employees and management of popular Bahian cultural organizations. Each
thesis presents a social management technology that has regional impact
and the possibility of replicability in other territories. In addition, they
124 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

were developed from interdisciplinary knowledge based on intersectoral


collaboration.

Keywords Research Methodology. Social Management Technologies. Social


Innovation. Social Management. Development.

INTRODUÇÃO
O debate sobre a natureza dos mestrados profissionais é um desafio que se impõe
numa Academia que se consolidou a partir de uma cultura que valoriza o rigor teórico
metodológico (BERTERO; CALDAS; WOOD Jr., 1999; MASCARENHAS;
ZAMBALDI; MORAES, 2011; MENDONÇA NETO; VIEIRA; OYADOMARI,
2019) em detrimento da relevância e do impacto social do conhecimento produzido.
Os mestrados profissionais buscam capacitar profissionais qualificados para o exercício da
prática profissional de procedimentos; transferir conhecimento para a sociedade, atendendo
demandas específicas e de arranjos produtivos com vistas ao desenvolvimento; promover
a articulação integrada da formação profissional com entidades demandantes, visando
melhorar a eficácia e a eficiência das organizações por meio da solução de problemas e geração
e aplicação de processos de inovação apropriados; e, contribuir para agregar competitividade
e aumentar a produtividade em organizações públicas e privadas (BRASIL, 2009).
Apesar da natureza predominantemente pragmática de sua contribuição, percebe-se ainda
uma dificuldade em equilibrar o rigor científico da produção acadêmica com as contribuições
que os resultados das pesquisas podem agregar à sociedade. Buscando contribuir para esse
debate, este artigo, fruto da participação do Congresso da UFBA 2020, tem o objetivo
de apresentar as contribuições de três pesquisas dos estudantes no âmbito do Mestrado
Interdisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social (MIPDGS) do
Programa de Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS) para a resolução de problemas na
sociedade pós/pandêmica.
A apresentação dos resultados destas pesquisas e a discussão sobre a sua contribuição
para a sociedade é importante, pois contribui para vislumbrar e compreender a relevância
social das propostas desenvolvidas em programas profissionais na universidade, quando os
estudantes pesquisadores desenvolvem metodologias mais engajadas com as organizações,
sejam públicas, privadas ou da sociedade civil, promovendo interação com os atores sociais
no campo e construindo soluções (muitas vezes de forma colaborativa) para os problemas
diagnosticados. Assim, este trabalho contribui para desmistificar o foco do rigor teórico
metodológico das pesquisas em mestrados profissionais, a partir da discussão do potencial
transformador da sociedade a partir da resolução dos problemas sociais e da construção das
aplicações ou tecnologias.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 125

A pesquisa foi realizada predominantemente pela análise documental e revisão da literatura


sobre os mestrados profissionais, relevância social e impacto social. Os casos foram
construídos a partir das pesquisas dos estudantes de mestrado no programa e utilizam uma
série de técnicas e instrumentos distintos em cada pesquisa.
O artigo está organizado em quatro seções. Após esta introdução, apresenta-se o itinerário
metodológico do MIPDGS, descrevendo suas atividades e relacionando com a construção
das tecnologias das dissertações; após, descreve-se as três pesquisas e suas contribuições
para a sociedade pós/pandemia; e, finalmente, realiza-se um debate com reflexões sobre o
impacto social destas tecnologias.

ITINERÁRIO METODOLÓGICO DO MESTRADO DE DESENVOLVIMENTO E


GESTÃO PÚBLICA
O Programa de Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS) é pioneiro no ensino, pesquisa
e extensão sobre o campo de gestão social do desenvolvimento, sendo criado em 2001, após
mais de 15 anos de pesquisa e extensão do Núcleo de Estudos de Poder Local na Escola
de Administração da Universidade Federal da Bahia (EA/UFBA). Em 2005, integrou-se
ao Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), com objetivo
de formar gestores sociais do desenvolvimento territorial, a partir da criação e testagem de
modelos de formação apoiados em perfis de competência (FISCHER et al., 2010).
Essa produção artesanal e processo de construção coletiva resultou na oferta do Mestrado
Interdisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social (MIPDGS), em 2006.
Passados 14 anos, já foram titulados cerca de 160 mestres que desenvolveram projetos de
impacto social para a sociedade brasileira. A gestão social do desenvolvimento é concebida
como um processo de produzir ações para resolução de problemas relacionados ao
interesse público em territórios. Para Fischer (2012), a gestão social orientada para e pelo
desenvolvimento é:
[...] forjada por interorganizações que refletem os interesses plurais das
instituições que operam no espaço público. Governo local, empresas e
organizações sociais se articulam dentro de uma trama singular de interesses
criando modelos de ações coletivas, traduzidos em desenhos organizativos
complexos, [...] (FISCHER, 2002, p. 23 apud FISCHER, 2012, p. 15).

Assim, o campo da gestão social do desenvolvimento é marcado pelo hibridismo e


contradição que pressupõem articulações, pactos e alianças; além disso, é orientado por
valores e pela ética da responsabilidade (RAMOS, 1989), atendendo aos imperativos da
eficácia e eficiência organizacional (FISCHER, 2012). A relação de imbricação entre
desenvolvimento como processo e território como ancoragem resgata as concepções de
desenvolvimento sustentável de Ignacy Sachs, ressaltando as dimensões sociais, ambientais,
culturais, econômicas e espaciais que compõem o desenvolvimento territorial (SACHS,
2007).
126 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

Desde sua criação, o programa enfrenta um duplo desafio (FISCHER et al., 2010): ser
interdisciplinar e profissional. A interdisciplinaridade impacta na construção dos problemas
de pesquisa dos estudantes no mestrado e requer uma conversação entre áreas distintas
(de classes diferentes) de conhecimento. A seleção de discentes formados em diferentes
áreas (por exemplo, na turma 7 do Mestrado, Ciências Sociais, Serviço Social, Engenharia
Sanitária e Ambiental, Ciências Econômicas, Educação Física, Enfermagem, Química,
Comunicação Social, Direito, Ciências Contábeis e Pedagogia) e a diversidade de formação
dos professores docentes orientadores no curso promovem a construção de problemas
complexos que requerem conhecimento e integração de mais de uma área do conhecimento,
contribuindo para o avanço das fronteiras da ciência e tecnologia.
O segundo desafio é ser profissional. No programa, os estudantes, além de diagnosticar o
problema socioterritorial em suas pesquisas científicas, buscam desenvolver tecnologias que
possam ser replicadas pela e na sociedade para resolução de problemas do desenvolvimento
territorial. Para enfatizar a questão profissional, o PDGS realiza um processo seletivo
que destaca o exercício profissional dos candidatos, principalmente na área da gestão, nos
seus critérios de seleção nos cursos. A aproximação com a sociedade e o cotidiano inter/
organizacional é facilitada por atividades no curso, como Residência Social e Residência
Docente, as quais promovem uma experiência prática substancial que aproxima o estudante
do cotidiano organizacional e da prática educacional, desenvolvendo competências
importantes para a sua atuação. A participação de profissionais nas bancas de qualificações
e de defesa das dissertações dos estudantes, além de professores doutores, colabora para
refletir sobre a relevância social das propostas.
É importante ressaltar que o objetivo principal dos trabalhos de conclusão de um curso de
mestrado profissional não é criar conhecimento “teórico-metodológico”, embora ainda o
faça, visto que a interdisciplinaridade provoca uma reflexão do conhecimento a partir de
diferentes tipos de áreas que precisam conversar entre si para atender à natureza múltipla
de fenômenos complexos, o que pode resultar em teorias e metodologias inovadoras com
graus crescentes de intersubjetividade. Apesar da importância do conhecimento teórico-
metodológico, o foco do mestrado profissional é a solução de problemas complexos com
a geração de processos de inovação, demandada por organizações públicas, privadas e da
sociedade civil. Neste percurso de construção, é que emergem as tecnologias propostas pelos
estudantes, os quais, em grande medida, utilizam conhecimentos teórico-metodológicos e
conhecimentos do cotidiano para desenvolvê-las.
O MIPDGS desenvolve suas atividades de pesquisa científica e desenvolvimento
tecnológico desde o primeiro semestre do curso, por meio de várias atividades como: aulas
de metodologia, residência social, seminários de apresentação dos projetos de pesquisa
e qualificação, orientação acadêmica e defesa da dissertação. Além deste itinerário
metodológico, as próprias disciplinas desenvolvem atividades de pesquisa e extensão focadas
nos conteúdos programáticos do curso.
O ensino de metodologia científica e tecnológica é distribuído a cada semestre com aulas
presenciais e atividades de pesquisa e extensionistas. A construção do projeto de pesquisa
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 127

inicia-se com a apresentação da proposta de projeto submetida ao programa durante o


processo de seleção com a discussão sobre os seus limites e possibilidades, bem como
com a apresentação das diretrizes dos trabalhos de conclusão de curso em mestrados
profissionais. Nesta discussão, reflete-se sobre a criação da tecnologia de gestão social para o
desenvolvimento, destacando a sua viabilidade e o seu impacto social, mais especificamente,
no território em que será desenvolvida. Nesta fase, também se conjetura as aspirações
profissionais dos estudantes com a realização do mestrado e como essa tecnologia pode
impactar as suas carreiras profissionais.
Durante as aulas de metodologia de pesquisa (atividade de Pesquisa e Intervenção), foi
criado o termo Tecnologia de Gestão Social (TGS), o qual consiste em um processo
gerencial (planejamento, organização, execução, direção, controle e avaliação) e/ou um
produto (instrumento, técnica, ferramenta, organização), desenvolvido e/ou aplicado na
interação com o território e apropriado por ele, com o objetivo de transformar a realidade
social, promovendo o desenvolvimento territorial (WAIANDT; DAVEL, 2015). Este
termo passou a ser utilizado nas últimas turmas do mestrado.
Outra atividade realizada, normalmente, a partir do segundo semestre, é a Residência Social
(RS), uma atividade de imersão do estudante, durante cerca de 30 dias, em uma organização,
projeto ou programa relacionado com seu interesse de pesquisa. A RS é uma metodologia
transversal de formação em gestão social, cujo conceito “foi utilizado inicialmente por
Fischer (2001) e integrou a proposta do programa” (SCHOMMER; FRANÇA FILHO,
2010). Fischer et al. (2006) destacam a tripla natureza da RS: técnico-profissional, acadêmica
e existencial.
A primeira está relacionada ao conhecimento através da prática, da necessidade
de resolver problemas de gestão. A segunda diz respeito à dimensão de pesquisa
(exigindo rigor científico para sua elaboração) presente na experiência onde o
sujeito confronta-se com a necessidade de conhecer sua realidade enquanto ob-
jeto de estudo e cujo resultado assumirá a forma de uma análise organizacional.
Finalmente, o caráter existencial de tal prática relaciona-se à experiência de
imersão do sujeito numa realidade que lhe é estranha, permitindo a expansão
do seu olhar sobre o mundo e suscitando questionamentos sobre sua própria
forma de encará-lo, gerando, desta forma, a oportunidade também para reflexão
a partir de erros, conflitos e “desilusões”, o que costuma criar novas possibili-
dades de aprendizagem (FISCHER et al., 2006, p. 2).

Assim, a tecnologia de ensino possibilita a articulação do conhecimento produzido


na universidade com os saberes presentes na sociedade; promove o desenvolvimento
de competências profissionais durante a experiência; permite a criação de redes de
relacionamento; e possibilita a observação ou mesmo criação de tecnologias (práticas de
gestão) e de conhecimentos relacionados ao objeto de pesquisa. Essa imersão também
proporciona uma experiência profissional importante, pois, a interação do estudante com
a gestão da acolhedora e suas demandas pode produzir mudanças significativas para a
prática profissional. A imersão pode ser tão impactante que resulta na própria redefinição
profissional e mudança de carreira. No mestrado, essa experiência dá-se principalmente no
128 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

exterior, embora o Brasil pareça, muitas vezes, muito mais adequado para determinados tipos
de problemas sociais. Com a pandemia, por causa das medidas de isolamento, o programa
tem construído atividades inovadoras com os estudantes (com atividades não presenciais)
para concluir a imersão da RS com distanciamento.
Na sétima turma do mestrado, foi realizado um laboratório de discussão dos projetos com a
participação de professores e profissionais convidados. Essa experiência teve uma avaliação
muito positiva, pois possibilitou uma avaliação coletiva dos projetos, quando se refletiu
sobre a contribuição das propostas para a sociedade e a viabilidade das tecnologias. Esse
tipo de atividade possibilita a articulação do conhecimento produzido no programa com a
sociedade, além de apreciar a demanda das organizações públicas, privadas e da sociedade
civil para com a universidade.
No final do terceiro semestre, os estudantes participam do seminário de qualificação dos
projetos de dissertação, quando são avaliados por uma banca de professores doutores com a
presença de um profissional que tenha relação com o objeto de pesquisa do estudante. Este
profissional pode ser um funcionário da organização, um consultor da área, um representante
da sociedade civil etc., com saberes específicos sobre o problema da dissertação e que
consiga avaliar a importância e a viabilidade da tecnologia proposta. Após a qualificação,
o estudante defende a proposta final da dissertação profissional para a banca avaliadora,
também composta por um profissional da área da proposta.
O formato do Trabalho Final do Curso ou a dissertação profissional foi ampliado a partir
da Portaria Normativa n. 17, de 28 de dezembro de 2009 (BRASIL, 2009), possibilitando
ao MIPDGS novas formas de apresentação das tecnologias de gestão social. Todavia, o
que se percebe é que a maioria dos estudantes no programa escreve uma dissertação. Em
alguns casos, além da dissertação, o estudante apresenta algum outro tipo de produção (por
exemplo, Jatobá escreveu a dissertação, um livro e criou um site de Gestão Colaborativa de
Teatros; e, Soares escreveu a dissertação, uma cartilha e produziu vídeos sobre Mestres de
Artes e Ofícios Populares). Normalmente, os trabalhos de conclusão de curso profissional
seguem o mesmo regulamento dos cursos acadêmicos das universidades e as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Na sétima turma do MIPDGS, os estudantes vêm desenvolvendo diferentes tecnologias,
como: Simulador para comercialização e aprendizagem em negócios de cafés especiais,
Programa de assistência às pessoas com HIV/AIDS, Sistema de Monitoramento das
Violações de Direitos Humanos, Modelo de Gestão Dialógica de Projetos Socioambientais,
Modelo de diagnóstico da implementação da política de assistência estudantil, Núcleo
estruturado de Inteligência Penitenciária, Metodologia de avaliação para organizações
culturais populares, Estratégias de Gestão com base na Economia Plural e da Participação
Popular (Lojas Solidárias), Metodologia de ensino-aprendizagem para desenvolvimento
de turismo criativo, Metodologia de Gestão para plataformas de qualificação empresarial
(Merc’ Afro), Estratégias para a interiorização do policiamento frente à violência doméstica e
familiar contra a mulher, Gamificação e desenvolvimento de competências profissionais
para os operários da Construção Civil, Instrumento de avaliação dos impactos de estresse
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 129

ocupacional e qualidade de vida no trabalho na área de Segurança Pública, Rede de


relacionamento entre investimento social privado e organizações da sociedade civil, Gestão
do Accountability nas Organizações Sociais do Setor de Saúde (OSS), Modelo de Avaliação
de Investimento na Propriedade Agrícola em parques de energia eólica, e Estratégia de
inserção profissional para usuários de drogas com base nas práticas de redução de danos
físicos e sociais. As dissertações são construídas a partir de conhecimento de diferentes
áreas – Administração, Assistência Social, Direito, Psicologia, Educação, Psicologia etc. –
relacionadas à gestão social do desenvolvimento.
Os Trabalhos de Conclusão de Curso do mestrado são disponibilizados de forma pública
no Labor (<www.labor.ufba.br>), plataforma em que podem ser pesquisadas as tecnologias
desenvolvidas no âmbito do programa. Em síntese, o que se percebe é que o processo de
pesquisa realizado de forma mais reflexiva com o território acaba por gerar uma série de
tecnologias durante a construção da pesquisa que contribuem para a solução de problemas
complexos em nossa sociedade, principalmente neste período de pandemia. Nas próximas
seções, apresentam-se três pesquisas sobre as contribuições para a sociedade pós/pandêmica.

PESQUISA 1: SISTEMATIZAÇÃO DE AVALIAÇÃO DE INVESTIMENTO EM


PROPRIEDADES AGRÍCOLAS
Leite (2019) buscou sistematizar uma avaliação sobre os resultados da utilização dos recursos
financeiros, provenientes do arrendamento de terras para a instalação de parque eólico, em
propriedade agrícola, no Alto Sertão II (AS II), na Bahia.
A energia eólica é fundamental na geração de energias sustentáveis, tendendo a um
crescimento acelerado nos países subdesenvolvidos. O Brasil ocupa o primeiro lugar em
geração de energia eólica na América Latina e Caribe e oitava posição mundial (GWEC,
2018 apud LEITE; WAIANDT, 2019). Esta geração correspondeu a um aumento de 59,9
% ao ano (2005-2019) e representa a segunda posição (cerca de 10% com 602 parques
instalados) na matriz elétrica brasileira, sendo que a projeção de geração aponta para a
continuidade desse crescimento nas próximas décadas (LEITE; WAIANDT, 2019).
O maior potencial eólico brasileiro situa-se na região semiárida, justamente a de menor
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (DHM). Esta região do país é desprovida
de investimentos industriais, com condições climáticas desfavoráveis, exigindo investimentos
em tecnologia para desenvolvimento da agricultura e agropecuária (SECTI, 2013 apud
LEITE; WAIANDT, 2019).
Na Bahia, estado que disputa com o Rio Grande do Norte o primeiro lugar em capacidade
instalada, são 154 parques com cerca de 1300 aerogeradores. Essas turbinas de geração
de energia são implantadas em propriedades privadas, cujos proprietários recebem um
valor mensal a título de arrendamento, no valor entre um a dois mil reais por aerogerador
(depende do tipo de contrato). A Bahia tem em média uma receita da ordem de R$ 23
milhões/ano proveniente do arrendamento de terras para implantação desses parques. Se
esse volume de recurso fosse aplicado dentro do território, preferencialmente na inovação
130 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

tecnológica e melhoria da gestão das propriedades rurais, a instalação de parques eólicos


poderia representar um importante vetor de desenvolvimento territorial baiano. Diante deste
cenário, a pergunta que se coloca é: Qual o impacto da aplicação dos recursos financeiros
provenientes do arrendamento de terras em parques eólicos na gestão e na sustentabilidade
das propriedades arrendantes?
Para se aproximar da resposta, realizou-se um diagnóstico sobre a aplicação dos recursos
com 59 arrendantes do parque eólico AS II, implantado pela Renova Energia, na região
de Caetité, Bahia, no período de 2012 a 2020. A pesquisa deu-se por meio de análise
documental, entrevistas semiestruturadas com os agricultores e observação. As entrevistas e a
observação participante ainda serão realizadas, pois, por motivo da pandemia, os municípios
de Caetité, Pindaí e Igaporã estão com restrição de acesso. Desse modo, houve um ajuste
na metodologia e as entrevistas serão realizadas por profissionais da região com amplo
conhecimento da área e das famílias, pois trabalhavam na implantação do parque AS II.
Os principais interessados na pesquisa são as empresas de energia eólica que oferecem
os programas de arrendamento; os órgãos da gestão pública que promovem políticas de
desenvolvimento territorial; e, as organizações de licenciamento ambiental que legislam
sobre o território. Em pleno desenvolvimento desta pesquisa, reflete-se sobre as suas
contribuições para estes três atores neste momento de pandemia e pós-pandemia, a partir
de 3 perspectivas:
y Contribuição para a segurança alimentar das famílias arrendantes de terra e território,
por meio da manutenção e ampliação da produção de alimentos, produzidos majoritari-
amente pela agricultura familiar;
y Fomento de políticas públicas decorrentes da instalação de parques eólicos, de modo
que atentem aos impactos dessa instalação na vida das famílias e na gestão dessas pro-
priedades;
y Alerta aos órgãos de licenciamento ambiental da importância de estabelecer condicio-
nantes socioambientais que mitiguem os impactos da instalação de parques de geração
de energia nas pequenas propriedades.
A primeira perspectiva centra-se na reflexão sobre a produção agrícola e o risco de segurança
alimentar. Percebeu-se, a partir de observações, que os pequenos proprietários que haviam
arrendado suas terras para instalação de aerogeradores, recebendo um valor mensal por
este arrendamento, estavam abandonando ou reduzindo a produção de alimentos em suas
propriedades, a exemplo do que já ocorre, em regiões empobrecidas no México e no Chile,
este último, fato observado durante a Residência Social (realizada em agosto de 2019)
(LEITE: WAIANDT, 2019). O abandono ou redução da produção dessas propriedades
acarreta um risco de comprometimento da segurança alimentar e nutricional dessas famílias
e do território.
O risco do comprometimento da segurança alimentar se dá, pois, conforme o Censo
Agropecuário de 2017 (IBGE, 2017), no Brasil, 77% dos estabelecimentos agrícolas
do país são classificados como de agricultura familiar e empregam mais de 10 milhões
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 131

de pessoas (setembro de 2017), o que representa 67% do total de pessoas ocupadas na


agropecuária. A agricultura familiar foi responsável por 23% do valor total da produção dos
estabelecimentos agropecuários, com participação significativa na produção dos alimentos
como café e banana (48%), mandioca (80%), abacaxi (69%) e feijão (42%). Uma redução da
produção agrícola nas propriedades rurais nas áreas dos parques eólicos impacta numa menor
produção agrícola nas regiões do semiárido nordestino e, consequentemente, na diminuição
de pessoas empregadas, fragilizando ainda mais o desenvolvimento destes territórios.
A segunda perspectiva está relacionada ao fomento de políticas públicas de apoio à instalação
de parques eólicos de modo que atentem aos impactos dessa instalação na vida das famílias
e na gestão dessas propriedades. Ao se instalarem na região, as companhias eólicas mudam
a dinâmica financeira da região. Para aqueles agricultores que vivem na região semiárida
do nordeste brasileiro e que arrendaram parte da sua propriedade para a instalação de
aerogeradores, o arrendamento representa uma oportunidade de investimento, uma vez que
dois dos grandes desafios enfrentados por esses pequenos agricultores foram equacionados:
a regularização fundiária e a capitalização.
Apesar desta oportunidade, ainda se observa a manutenção da situação de pobreza na
maior parte dessas famílias, conjuntura essa que remonta às origens da posse da terra no
Brasil, à ausência de reforma agrária e aos aspectos dela decorrentes: baixa capitalização,
falta de acesso a linhas de crédito oficiais, tecnologia inadequada, falta de assistência
técnica e desconhecimento de formas de comercialização da produção. O fortalecimento
da agricultura familiar no Brasil depende de um conjunto de fatores econômicos, sociais,
políticos e culturais que precisam ser concebidos e implementados de forma articulada e
concertada. São diversos atores institucionais envolvidos nessa empreitada, mas, sem dúvida,
o Estado tem papel fundamental e determinante no fomento das políticas públicas. Os
territórios com parques eólicos instalados precisam ser objeto de planejamento conjunto
entre as organizações públicas e as empresas operadoras dos parques para a articulação e a
concertação de programas e projetos para a potencialização dos seus resultados.
A terceira perspectiva trata dos processos de licenciamento ambiental para a instalação dos
parques e busca sensibilizar os órgãos responsáveis por esse licenciamento da importância de
estabelecer novas condicionantes socioambientais que mitiguem os impactos da instalação
de parques de geração de energia nas pequenas propriedades. Apesar da importância da
agricultura familiar para a segurança alimentar territorial, os esforços de avaliação dos
impactos da implantação de parques eólicos são focados na dimensão ambiental, notadamente
aqueles que determinam a morte de pássaros (aves migratórias) e morcegos, os quais vêm
sendo monitorados e estudados e são comuns nas áreas em que sejam implantadas torres
com aerogeradores.
Apesar da produção científica sobre o desenvolvimento econômico da implantação
dos parques de energia eólica (NASCIMENTO; MENDONÇA; CUNHA, 2012;
CAVALCANTI; CANDIDO, 2017 apud LEITE, 2019), foram realizados poucos estudos
que analisam os impactos sociais destes investimentos econômicos nas propriedades rurais
arrendadas para a instalação dos aerogeradores e sua irradiação para o território.
132 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

Diante da crise mundial que estamos vivendo em decorrência da pandemia, a qual atinge
de forma mais intensa e fatal as populações pobres e desassistidas, pode-se ainda destacar a
percepção da importância de iniciativas como esta pesquisa, quando o linguista e pensador
norte americano Noam Chomsky (2020a) afirma “esta crise é o enésimo exemplo do
fracasso do mercado assim como é ameaça de uma catástrofe ambiental” e que “a crise atual
oferece um argumento poderoso em favor da assistência universal à saúde e de reavaliação
dos problemas mais profundos de nossas sociedades. O resultado que prevalecerá depende
da força da opinião pública despertada” (CHOMSKY, 2020b). É neste contexto de grave
crise ambiental que a pesquisa contribui para o despertar da força da opinião pública,
num modelo que, ao estabelecer uma relação direta entre agricultores e empresas eólicas
intermediada por políticas públicas, pode se constituir em mais uma alternativa à rigidez
da lógica atual do mercado, fugindo assim de regras inegavelmente fracassadas, desnudadas
pela pandemia, como afirma Chomsky.
A promoção de parques geradores de energia eólica nestas regiões brasileiras pode representar
um fator de desenvolvimento territorial em função, principalmente, da possibilidade de
convivência com outras atividades econômicas e da receita gerada a partir de pagamento
de arrendamento de terras. Todavia, é necessário a concertação entre as políticas públicas,
os projetos de investimento social privado das empresas e os projetos de atendimento a
condicionantes socioambientais no apoio aos pequenos proprietários, tornando a gestão das
propriedades mais eficiente e ambientalmente sustentável.

PESQUISA 2: METODOLOGIA DE AVALIAÇÃO INTEGRATIVA DO IMPACTO


DAS TÉCNICAS DE REDUÇÃO DE ESTRESSE
A pesquisa de Mezzomo (2019) tem o objetivo de desenvolver uma metodologia de avaliação
integrativa do impacto das técnicas de redução de estresse em policiais militares da Bahia.
O Programa SKY para a redução do estresse ocupacional da Polícia Militar da Bahia é uma
intervenção de manejo de estresse que está sendo conduzida por uma Organização Social
na Polícia Militar da Bahia desde 2016. Neste período, teve a participação de mais de 2100
policiais na capital e região metropolitana. Este programa tem um caráter inovador no trato
com um público tão complexo – policiais militares –, porque seu modelo de gestão social vai
além da intervenção individual e viabiliza, em algumas unidades, mudanças de rotina em
prol da adoção de valores, comportamentos e práticas de autocuidado. A organização social
responsável pelo programa tem expertise no desenvolvimento desse tipo de intervenção
baseada em respiração, expertise esta adquirida com outros públicos, inclusive exércitos
na Rússia e Índia, e veteranos de guerra nos Estados Unidos da América. O programa
realizado na Polícia Militar baiana, entretanto, ganha destaque, continuidade, escala e
desdobramentos institucionais.
O programa envolve um curso de quatro dias consecutivos, com ênfase em técnicas de
respiração para o gerenciamento de estresse e melhora do bem-estar geral. A participação é
voluntária, a partir de convocação realizada através de canais internos da Polícia, mas requer
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 133

autorização e indicação do Comando das unidades, devido ao impacto do curso nas escalas
de trabalho. As turmas normalmente são mistas, com oficiais e praças de diferentes postos
e graduações, e de unidades de diferentes territórios de Salvador. O ambiente do curso é
informal, sem uso de uniformes ou outros sinais indicativos da hierarquia da organização.
Para os comandantes que se interessam em levar o programa para todo o seu efetivo, existe
o subprograma de “Unidades Modelo”, o qual oferece um acompanhamento especial para a
unidade, no sentido de ajudar a implementar a técnica de respiração como parte da rotina
da unidade e treinar facilitadores de forma mais aprofundada em temas de saúde mental,
autocuidado e cuidado com o outro. Em muitas unidades, esse processo também inclui
ajuda na adequação física do espaço de respiração. Atualmente, 14 unidades (entre CIPM,
Batalhões, Colégios e Academia de Polícia Militar) estão em processo de implementação
do programa.
A principal técnica ensinada nos cursos é a Kryia Yoga (SKY), um tipo de prática de
respiração cíclica e controlada que se concentra em vários tipos de exercícios respiratórios.
Diferentes estudos sobre o efeito dessa técnica demonstram sua eficácia na redução de
estresse, promoção de saúde física e mental e incremento de qualidade de vida em diversas
populações. No que se refere especificamente aos efeitos envolvendo policiais e militares,
foi verificado que o Sky é efetivo para melhora de sintomas relacionados ao transtorno de
estresse pós-traumático, com efeitos agudos e a longo prazo. Para além dos efeitos clínicos do
Sky a partir de escalas, a prática também apresentou impactos significativos na alteração de
biomarcadores, como a diminuição do cortisol, hormônio associado à reatividade fisiológica
ao estresse, aumento da prolactina e melhora do status antioxidante em praticantes.
O contexto de atuação do programa, saúde mental dos policiais militares, vem ganhando
bastante destaque na imprensa, seja por causa do custo que os afastamentos representam
para a instituição e para o contribuinte, seja pelo alto número de suicídios (em alguns
estados, já ultrapassa o número de mortes em combate) e, mais frequentemente, por causa
de surtos, uso desproporcional de violência etc.
Estudos apontam que profissionais de segurança pública estão entre os mais afetados por
estresse ocupacional, no mundo. Isso também é verdade no Brasil, onde uma série de estudos
indicam a prevalência de altos índices de afastamentos e transtornos mentais (SILVA,
2009); violência policial, suicídio (KURTZ; ZAVALA; MELANDER, 2015; STANLEY;
HOM;  JOINER, 2016); outros sintomas  físicos e psicológicos (COSTA; ACCIOLY
JÚNIOR; MAIA et al., 2007; ROSSETTI et al., 2008, DANTAS et al., 2010; MINAYO;
ASSIS; OLIVEIRA, 2011; LIZ et al., 2014). Ainda que o problema seja concreto e suas
consequências sentidas em toda a sociedade, são raras as intervenções e ainda mais raras
aquelas documentadas cientificamente.
Diante deste cenário, busca-se responder o seguinte problema: Como avaliar a eficácia de
programas institucionais de manejos de estresse baseados em respiração, para além dos
benefícios individuais?
Assim, no final de 2018, a pesquisadora tornou-se voluntária no projeto e vivenciou a rotina
de cursos e práticas desenvolvidas nas unidades, realizou “diálogos” com os policiais e com
134 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

a equipe de voluntários e outras atividades promovidas pela Organização Social. Diferentes


de outros estudantes, o objeto de pesquisa tornou-se a própria experiência de Residência
Social (RS). Assim, ao invés de realizar a RS em um mês, a pesquisadora completou um ano
de imersão no programa, em várias frentes, inclusive realizou uma viagem internacional para
Denver, nos EUA, para a apresentação do programa em uma Conferência. A Residência,
assim, deixa de ser apenas o local para o levantamento das informações da pesquisa ou do
desenvolvimento da tecnologia, mas se transforma em local para o desenvolvimento de
conhecimentos, habilidades e atitudes do exercício profissional.
Além dessas naturezas, a RS ainda propiciou uma mudança existencial. O que a pesquisadora
vivenciou nos cursos e nos contatos com os policiais e com a equipe de voluntários desafiou
e enriqueceu, sob vários aspectos, o seu conhecimento sobre responsabilidade social,
gestão de projetos e inovação social construídos ao longo de mais de 10 anos de trajetória
profissional. Possibilitou também pensar o cuidado e o autocuidado a partir da perspectiva
da responsabilidade com o outro.
A observação participante dentro da organização permitiu entender os principais aspectos
culturais da organização PM-BA, bem como as subculturas de cada CIPM, Colégio ou
Unidade Especializada participante do programa de Unidades Modelo e como elas dialogam
com as particularidades de cada território. Do ponto de vista da gestão, foi possível concluir
que determinados contextos organizacionais são mais favoráveis à adoção e continuidade
do programa e que, sem o compromisso pessoal do comandante, esse tipo de ação torna-
se inviável. Para muitos deles, o programa representou a oportunidade ideal para pautar
a preocupação e o cuidado com a tropa, temas difíceis de conversar e encaminhar, dentro
da instituição. No que toca à pesquisa, um dos principais aprendizados foi perceber que a
articulação para a realização de uma pesquisa dessa natureza é profundamente ancorada em
uma relação de respeito e confiança, a qual não se estabelece da noite para o dia. Por fim, a
experiência levou-a a desafiar os próprios conceitos sobre a instituição e as pessoas.
Paralelamente à abordagem qualitativa, a pesquisadora realizou uma pesquisa quantitativa
em uma unidade ativa e uma unidade controle, analisando os impactos individuais (dos
policiais militares) no programa a partir de quatro dimensões – ‘Condição’ de ansiedade,
‘Condição’ de qualidade de vida, ‘Condição’ de depressão e ‘Condição’ de estresse, com
instrumentos validados; marcadores fisiológicos de estresse: variabilidade cardíaca, avaliação
da concentração de cortisol capilar; e relação desses dados com os indicadores das unidades.
Esta pesquisa somente foi realizada após a sua aprovação no Comitê de Ética de Pesquisa
da Universidade Federal da Bahia, em janeiro de 2020. A ideia inicial era trabalhar com
7 grupos, mas, por causa da pandemia e das medidas de isolamento, a coleta de dados
precisou ser interrompida no segundo grupo. Essa aprovação foi uma conquista importante,
pois todas as pesquisas com seres humanos desenvolvidas pela universidade precisam ser
aprovadas no conselho de ética.
A pesquisa desta experiência na Polícia Militar da Bahia, então, possibilitou a construção
colaborativa de um modelo de avaliação de intervenções de prevenção e manejo do estresse
baseados em respiração, conciliando os aspectos individuais e organizacionais. Refletindo
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 135

sobre este momento de pandemia e pensando no mundo pós-pandêmico, é importante


destacar os impactos desta pesquisa para as organizações envolvidas.
O resultado da avaliação do programa de manejo de estresse no contexto de uma instituição
da área de segurança pública (complexa, hierarquizada e com uma enraizada cultura
organizacional) gera resultado sobre a sua efetividade, desta forma, subsidia informações para
a expansão do programa para outros estados e países, impactando milhares de profissionais
que enfrentam uma grande responsabilidade de implementação das políticas de segurança
pública e que não raro estão à beira do colapso mental.
A determinação das medidas de isolamento social em Salvador durante a pandemia do
COVID-19 agravou alguns dos fatores estressores na profissão do policial e trouxe
novos contornos a outros. O índice de criminalidade em determinados bairros da cidade
aumentou por causa da redução da quantidade de pessoas circulando nas ruas e a rotina de
trabalho passou a incluir ações de apoio à implementação das medidas sanitárias. Enquanto
a recomendação para a população era ficar em casa, para os policiais, isso significa ficar nas
ruas, portanto, expostos e, muitas vezes, sem os equipamentos de proteção adequados. Os
afastamentos por causa da suspeita ou do contágio da COVID-19 geraram uma pressão
adicional aos policiais não afastados, com aumento das jornadas de trabalho e mudanças
de escala. O contágio e morte dos colegas e familiares também foi relatado como fator de
estresse e ansiedade.
Este contexto, o qual não se restringe somente a Salvador ou ao estado da Bahia, impactou
instituições no Brasil e no mundo, policiais ou não. Para algumas delas, a pandemia tornou
fundamental a adoção de medidas de manejo de estresse. Neste sentido, a organização social já
foi demandada a oferecer programas em departamentos de polícia nos Estados Unidos, além
de programas específicos para trabalhadores na área de saúde que estão no enfrentamento
direto da COVID-19. Desta forma, a pesquisa confirma a confiabilidade dos resultados
do programa na manutenção do equilíbrio emocional dos policiais, principalmente neste
momento de tantas complexidades. Sem a sua devida avaliação, não seria confiável a sua
reaplicação. As intervenções baseadas em respiração mostram-se uma alternativa eficiente e
viável para prevenir e mitigar os efeitos do estresse não só no contexto da segurança pública,
mas em outras áreas da gestão pública.

CASO 3: METODOLOGIA OCA DE GESTÃO PARA ORGANIZAÇÕES


CULTURAIS POPULARES
Entre os atores do campo da cultura estão aquelas pequenas organizações que atuam nas
favelas, quilombos, aldeias, nas grandes e pequenas cidades brasileiras, criando, difundindo
e salvaguardando cultura. Refere-se àquelas iniciativas que estão nos chamados “meios
populares” e que se organizam sob as mais diversas formas: bibliotecas comunitárias,
cineclubes, museus comunitários, coletivos, associações culturais, entre outras. Esses grupos
são capazes de integrar cultura e vida social em seus territórios, descentralizam a produção de
bens culturais e colocam aqueles que estão à margem da estrutura social como protagonistas
136 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

dos fazeres culturais. São, portanto, fundamentais para a ampliação da democracia cultural
no Brasil.
Em sua pesquisa, Itã (2019) propõe o termo Organizações Culturais Populares (OCP) para
se referir a essa diversidade de grupos que têm em comum não uma forma de expressão
cultural (indo além da compreensão mais estrita de cultura popular), mas, sim, a posição
que ocupam na estrutura social, a forma coletiva de fazer a sua gestão e a utilidade social
que têm para os seus territórios. O processo de pesquisa em desenvolvimento analisa
criticamente o fenômeno de imposição de instrumentos e a visão empresarial sobre essas
iniciativas culturais (BRANT, 2004; CARVALHO, 2006; HOLANDA, 2011; SANTOS,
2016; XAVIER, 2016) e propõe uma metodologia de gestão que seja feita a partir das
peculiaridades e dos sentidos do organizar desses grupos.
Dessa forma, o trabalho tem um duplo objetivo: compreender a gestão no âmbito das
iniciativas culturais a partir de um olhar substantivo sobre essas experiências e construir
uma proposta metodológica para a avaliação da gestão de Organizações Culturais Populares.
Trata-se de uma proposição que se situa em um terreno delicado, pois está entre dois campos
marcados pela hegemonia da visão gerencialista e positivista: o da Gestão e o da Avaliação.
Para resolver este desafio, adotou-se abordagens que problematizam os paradigmas dessas
duas áreas e propõem outros caminhos de construção do conhecimento sobre gestão e sobre
avaliação. A primeira é a noção de Gestão Social, a qual se consolida enquanto campo que
visa construir uma gestão baseada em uma lógica substantiva, visando o interesse público e
social, em detrimento de interesses estritamente monetários e privados (ARAÚJO, 2014).
A segunda é construída pelas abordagens construtivistas e pluralistas da Avaliação, as quais
propõem o rompimento da supremacia da visão gerencial, do paradigma positivista, da
dependência do quantitativo e da incapacidade de acomodar o pluralismo de valores nos
processos avaliativos (KANTORSKI et al., 2009; GUBA; LINCOLN, 2011; PARLETT;
HAMILTON, 1982; HOUSE; HOWE, 2000; BOULLOSA; TAVARES, 2009, entre
outros).
Contando com tais referências, a pesquisa trilhou um processo de interação do pesquisador
com membros de Organizações Culturais Populares e com apoiadores/pesquisadores desse
campo para coconstruir o conteúdo da metodologia: dimensões e indicadores que espelham
os pontos essenciais da gestão de uma OCP, para além de um olhar estritamente econômico
e instrumental
A metodologia de avaliação resultante desse trabalho, chamada Ocas Populares, utiliza-se
da metáfora da “oca” (forma genérica que se usa para se referir às construções tradicionais
indígenas, mas que também pode ser conhecida como óga, maloca, shabono, kijeme, entre
outros, a depender do povo e sua língua) para argumentar que uma Organização Cultural
Popular é, para a sua comunidade, o que uma oca é para a sua aldeia. A partir dessa imagem,
a dinâmica criada pela metodologia estimula que os próprios membros de uma iniciativa
cultural possam dialogar e discutir a sua gestão e sua atuação local, avaliando a sua “oca
popular” a partir de temas geradores, como, por exemplo, a construção/transmissão de
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 137

conhecimento, a relação com o ambiente, a disponibilidade de recursos, a participação


política, a relação entre os membros, entre outras questões tão importantes para esses grupos.
Assim, trata-se de uma metodologia de autoavaliação (e não avaliação externa), baseada na
dialogicidade/reflexividade e que funciona como uma facilitadora de processos coletivos de
avaliação e de aprendizagem.
As OCP vêm passando, nos últimos anos, por um cenário de redução do investimento
público, atingindo, de diferentes formas, todos os atores do campo da cultura. A extinção
do Ministério da Cultura e o direcionamento que o atual Governo Federal vem dando à
política cultural não permite um olhar mais animador sobre o apoio a tais iniciativas, as
quais vêm encontrando sérias dificuldades para se manterem atuantes. Questões como a
intolerância à religião e às referências afro-brasileiras (ROSAS, 2015; BENEDITO, 2006),
a dificuldade de passagem intergeracional (SILVA, 2016) e o avanço do neoconservadorismo
e da intolerância são pontos críticos com os quais os atores do campo da cultura se deparam.
Este cenário tornou-se mais pessimista com as consequências graves e imprecisas da
pandemia do Novo Coronavírus, as quais impactam, especialmente, essas pequenas
iniciativas que lidam com a realização de festejos tradicionais, rituais religiosos, feiras,
eventos locais e outras atividades, cujo objetivo é justamente aglomerar pessoas em torno
de um fazer cultural.
O Ocas Populares é um instrumento que, diante desse contexto crítico, contribui para a
resistência de Organizações Culturais Populares, entendendo que elas são importantes
pelo papel social que cumprem, ainda que estejam à margem das políticas e do próprio
conhecimento em gestão. O fortalecimento de uma OCP significa contribuir para a
salvaguarda de patrimônios culturais, para a democratização do acesso à cultura e para
a possibilidade de criação de bens e serviços culturais em milhares de comunidades no
Brasil. No atual cenário crítico pelo qual todo o setor cultural vem passando, especialmente
aquelas organizações autogestionadas e sem finalidade lucrativa, é importante que haja
instrumentos que contribuam para que iniciativas populares construam aprendizados e
vislumbrem caminhos para que possam melhor organizar a sua resistência.
Desta forma, o Ocas Populares contribui para que Organizações Culturais Populares
reflitam sobre si, percebendo que as Organizações Culturais Populares são como ocas: feitas
com o que é local, por quem é local e capazes de resistir.

DEBATE E CONSIDERAÇÕES FINAIS


Este artigo apresentou as contribuições das pesquisas dos estudantes no âmbito do MIPDGS
para a resolução de problemas na sociedade pós/pandêmica, por meio da descrição do
itinerário metodológico do MPIDGS e da apresentação de três pesquisas sobre a construção
das tecnologias de gestão social e seus impactos na sociedade. Refletindo sobre a relevância
e a inserção social destas pesquisas na sociedade pós/pandêmica e fundamentado nas
pesquisas de Buckland e Murillo (2013), gostaríamos de discutir quatro finalidades destas
138 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

tecnologias: o impacto e transformação social, a colaboração intersetorial, o tipo de inovação


e a escalabilidade e reaplicabilidade.
As tecnologias propostas por Leite (2019), Mezzomo (2019) e Itã (2019) foram demandadas
a partir de problemas de sua atuação profissional e possuem impacto em seus territórios
– Alto do Sertão, Polícia Militar da Bahia e Organizações Culturais Populares baianas
–, trazendo uma transformação: na forma de gerenciar propriedades agrícolas e planejar
políticas públicas; no cuidado da saúde e, consequentemente, na atuação de policiais
militares neste período de pandemia e pós-pandemia; e, na gestão e sustentabilidade de
organizações culturais populares.
Os resultados da utilização dos recursos financeiros, provenientes do arrendamento de
terras para a instalação de parque eólico, em propriedades agrícolas do semiárido baiano
(LEITE, 2019) contribuem para: a segurança alimentar do território na medida em que se
divulgam os dados da avaliação para os atores interessados e sensibilizam os proprietários de
terra sobre as possibilidades de mudança da política pública e da tecnologia aeorogeradora;
para o fomento de políticas públicas que abarquem os interesses desses proprietários de
terra que representam parte importante da produção de alimento no território; e, para
o estabelecimento de condicionantes socioambientais pelos órgãos de licenciamento
ambiental que mitiguem os impactos da instalação de parques de geração de energia nas
pequenas propriedades.
Os resultados da avaliação integrativa do impacto das técnicas de redução de estresse
em policiais militares da Bahia (MEZZOMO, 2019) contribui para a efetividade do
programa na medida em que subsidia informações (confirmando sua confiabilidade) para
a sua expansão para outros estados e países, podendo impactar milhares de profissionais
que enfrentam uma grande responsabilidade de implementação das políticas de segurança
pública e que, não raro, estão à beira do colapso mental.
Os resultados da construção de uma proposta metodológica para a avaliação da gestão de
Organizações Culturais Populares, a partir das peculiaridades e dos sentidos do organizar
desses grupos (ITÃ, 2019), contribuem para a manutenção e resistência destas organizações
que gerem a salvaguarda de patrimônios culturais, democratizam o acesso à cultura e
possibilitam a criação de bens e serviços culturais em milhares de comunidades no Brasil.
A colaboração intersetorial é uma realidade em cada uma das tecnologias desenvolvidas
quando se integram diferentes atores (organizações) interessados na resolução dos
problemas construídos. Leite (2019) interage com gestores das empresas dos parques
eólicos, com proprietários rurais do semiárido, com técnicos agrícolas do território e
representantes governamentais para resolver seu problema e construir a metodologia de
avaliação. Mezzomo (2019) interage com a organização da sociedade civil promotora da
intervenção, com policiais militares e com a própria organização pública para construir sua
metodologia de avaliação do programa. Itã (2019) interage com professores especialistas e
com gestores e participantes de organizações culturais populares para a construção de sua
metodologia de avaliação. Percebe-se que os atores interessados são fonte de conhecimento
para a construção colaborativa das tecnologias propostas.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 139

As tecnologias possuem média complexibilidade, na medida em que as soluções propostas


relacionam diferentes tipos do conhecimento e diferentes atores para a sua resolução.
Desenvolvimento territorial e gestão da propriedade rural, modelo de avaliação e saúde
mental, e modelos de avaliação e gestão social são conhecimentos que interagem para a
construção das tecnologias propostas. O relacionamento destes conhecimentos com as
práticas metodológicas que promovem uma reintegração de saberes dos atores sociais
contribui para a construção de conhecimento interdisciplinar sobre a gestão social e o
desenvolvimento territorial em diferentes contextos. Esta interação extrapola os limites da
disciplinaridade, além de proporcionar novos tipos de conhecimentos.
A maioria das tecnologias produzidas no âmbito do PDGS é aberta, isto é, os atores e
demais interessados têm liberdade para reaplicar a solução encontrada sem restrições. Todas
as dissertações são divulgadas na página do programa, na universidade federal. Além disso,,
as tecnologias propostas podem ser transmitidas a outras organizações em escala nacional,
apesar de serem construídas no âmbito regional. Os parques eólicos são a solução energética
que mais cresce no Brasil e no mundo (LEITE, 2019). A tecnologia de Mezzomo (2019) foi
demandada por organizações de segurança pública dos Estados Unidos, após participação
da estudante em um congresso internacional. A metodologia de Itã (2019) oferece solução
para organizações de todo o país, principalmente em comunidade do interior que promove
a democratização da cultura popular. Em síntese, as três pesquisas apresentadas trazem
contribuições importantes para a sociedade pós/pandêmica e colaboram para resolver
problemas territoriais para o desenvolvimento territorial.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: set. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 143

Claudiani Possui graduação e mestrado em Administração pela Universidade Federal


Waiandt do Espírito Santo e doutorado em Administração pela Universidade Federal
da Bahia. Atualmente, é professora associada da Universidade Federal da
Bahia e pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e
Gestão Social (CIAGS) e do Programa de Estudo, Pesquisa e Formação
em Política e Gestão de Segurança Pública (PROGESP). Tem experiência
na área de Administração, com ênfase em Educação e Aprendizagem
em Administração e Metodologia de Pesquisa & Inovação, atuando
principalmente nos seguintes temas: ensino e aprendizagem, metodologia de
pesquisa e inovação, gestão organizacional, gestão social, empreendedorismo
e estudos organizacionais.

Solange É pedagoga pela UFBA, especialista em Leitura e Linguagem pela UEFS


Oliveira Leite e em Gestão do Desenvolvimento Territorial pela UFBA. Mestranda em
Desenvolvimento e Gestão Social na UFBA. É professora universitária,
gestora de Programas de Investimento Social Privado em empresas
de energia eólica e de Projetos Sociais para juventude. Atualmente, é
Coordenadora Nacional de Inserção Laboral Programas de Formação e
Inserção Laboral do Instituto Aliança.
Iago Itã de É graduado em Gestão Pública e Gestão Social e mestrando em
Almeida Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA. Atua no campo da
Pereira gestão cultural, em projetos ligados a culturas populares e manifestações
tradicionais. É técnico do núcleo de produção cultural da Escola de Teatro
da UFBA e membro da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária da
Federal da Bahia.
Mayra Ferreira É graduada em Produção Cultural pela UFBA, especialista em Gestão da
Mezzomo Inovação Social pelo Instituto AMANI e mestranda em Desenvolvimento
e Gestão Social pela UFBA. Possui 10 anos de experiência em comunicação
corporativa, responsabilidade social e gestão de projetos sociais. É consultora
de inovação social. Desde 2018, coordena o Prêmio Juntas Transformamos
do Instituto Avon, uma iniciativa que reconhece, premia e capacita mulheres
que trabalham com o enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil.
Também é consultora do programa de Aceleração e Inovação de Impacto,
realizado pela ANPROTEC em parceria com o ICE e o SEBRAE. 
144 Gestão do Desenvolvimento de Territórios Pós/Pandemia

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.145-159
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.38597

Será o Investimento Social Privado uma


Oportunidade para o Desenvolvimento de
Territórios?1
Mouana do Socorro Sioufi Fonseca, Rodrigo Ladeira
e Jorge Emanuel Reis Cajazeira

Resumo O presente artigo versa sobre o tema de Responsabilidade Social Corporativa,


tendo em vista os impactos sociais e ambientais proporcionados e as cifras
envolvidas pela mesma no Brasil e no mundo. A problemática do estudo
é: como as empresas orientam seus investimentos sociais e de que maneira
as populações impactadas pelas atividades operacionais são consideradas na
tomada de decisão para a aplicação de tais investimentos. Foram considerados
dois casos relevantes no cenário brasileiro, sendo eles a Bracell e a Vale. Como
metodologia, foi escolhido o estudo de casos múltiplos e foram constatados
impactos relevantes e distintos em cada caso. As empresas estudadas neste
trabalho vêm planejando seus programas e projetos para atender demandas
do território, sempre considerando as comunidades afetadas direta e
indiretamente e obtendo resultados importantes. Com base na pesquisa,
está sendo desenvolvido um diagnóstico que será a matéria-prima para
a construção de uma ferramenta de gestão social, além de uma fonte de
informação sobre o território estudado quanto ao seu desenvolvimento
socioeconômico e possibilidades de investimentos.

Palavras-chave Responsabilidade Social Corporativa. Investimento Social Privado. Gestão


Social do Território. Filantropia. Partes Interessadas.

Abstract This paper deals with the topic of Corporate Social Responsibility, bearing
in mind the social and environmental impacts provided and the investments
involved in Brazil and in the world. The question of this study is: how
companies guide their social investments and how populations impacted by
operational activities are considered in the decision-making process for the
application of such investments. Two cases were considered in the Brazilian
scenario: Bracell and Vale. A multiple-case methodology was chosen, and
relevant and distinct impacts were found in each case. Both companies
studied in this work have been planning their programs and projects to
146 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

meet the demands of the territory, always considering the communities


directly and indirectly affected and obtaining important results. Based
on the research, a diagnosis is being developed, which shall be the raw
material for the construction of a social management tool as well as a
source of information on the scenario of the studied territory regarding its
development, concerning socioeconomic status and investment possibilities.

Keywords Corporate Social Responsibility. Private Social Investment. Social Territory


Management. Philanthropy. Stakeholders.

INTRODUÇÃO
Há diversas teorias sobre as primeiras iniciativas de Investimento Privado no Brasil,
inclusive, desde a época em que alguns senhores de engenho se quotizavam para comprar
alforrias de escravos (CHALHOUB, 1990). Hoje, o conceito já é difundido no mundo. No
Brasil, mais especificamente, é abarcado por duas organizações sem fins lucrativos, sediadas
em São Paulo: o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE, 2018) e o Instituto
para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS, 2020). O Brasil é um dos países que
se destaca internacionalmente quando se trata do tema Investimento Social Privado (ISP).
Juntamente com a Índia, é tido como um dos países em desenvolvimento com soluções mais
criativas e efetivas como parte de uma nova onda de filantropia global, na qual não apenas
os países desenvolvidos exportam seus modelos e metodologias (KISIL, 2007).
Um dos motivos do tema ter ganhado repercussão mundial foi a grandeza dos números
envolvidos nas ações realizadas por meio desses investimentos. Desde 2007, a Comunitas,
organização que trabalha com o tema do Investimento Social, realiza a pesquisa Benchmarking
do Investimento Social Corporativo (BISC, 2019), uma ferramenta que traça parâmetros
e comparações sobre o perfil do investimento social privado no Brasil, acompanhando a
evolução dos compromissos sociais das empresas participantes, as quais acreditam na sua
parcela de responsabilidade na proteção do meio ambiente e geração de solidariedade social.
Igualmente, o GIFE (2018), para compreender melhor as características das organizações
associadas e suas prioridades de investimento social, realiza pesquisa bianual entre seus
associados – o Censo GIFE (2018). Somando os valores coletados pelo BISC (2019) e o
Censo GIFE(2018), realizado com 133 organizações, correspondendo a 84% de sua base
associativa, o volume de recursos do Investimento Social Privado no Brasil chega a R$3,59
bilhões (GIFE, 2018). Segundo o GIFE (2018), os investimentos sociais provenientes de
entes privados superam os orçamentos de alguns ministérios, como o do Meio Ambiente,
Cultura e Esporte.
Em termos de recursos, 50% do orçamento total dos respondentes do censo são destinados
à execução direta de projetos próprios, o que representa R$1,6 bilhão (GIFE, 2018).
Apenas 14% dos projetos e programas são desenvolvidos com outras organizações, no
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 147

sentido de compartilhamento de autoria, governança e tomada de decisão. Ou seja, segundo


o levantamento, existem indícios de que os parceiros sociais são mais considerados para
executar iniciativas com foco nas prioridades dos investidores sociais (empresas privadas)
do que em suas próprias prioridades ou necessidades.
Uma tendência apontada pelo GIFE (2018) é a de que cresce o alinhamento entre o
Investimento Social Privado e o negócio. Isso é explicado por 43% dos respondentes que
orientam seu planejamento e atuação pela percepção de que há um aumento de cobrança na
sociedade sobre o papel e atuação das empresas. Nesse cenário, não há indicativos evidentes
de que o ISP de fato contribua com o desenvolvimento do território, visto que, no censo, não
fica claro se as necessidades/prioridades do público impactado são levadas em consideração
no direcionamento desses investimentos sociais.

PROBLEMA DE PESQUISA E OBJETIVO


Visto o que foi exposto na introdução deste trabalho, a pesquisa busca aprofundar questões
ainda não inteiramente respondidas em trabalhos anteriores que tratam o Investimento
Social Privado. Portanto, a problemática do estudo é: como as empresas orientam
seus investimentos sociais e de que maneira as populações impactadas pelas atividades
operacionais são consideradas na tomada de decisão para a aplicação de tais investimentos?
Partindo da pergunta de pesquisa, o objetivo do estudo é propor um instrumento de
diagnóstico territorial voltado para a gestão do Investimento Social Privado que leve em
consideração o encontro de interesses entre empresa e atores sociais locais, legitimando
o atendimento às necessidades do território, como estratégia para a transformação. Neste
artigo, como esse instrumento ainda está em processo de construção, buscamos explorar o
tema ISP por meio de uma análise e considerações sobre estudos de casos realizados em
trabalhos de campo até o momento.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de Responsabilidade Social ou “Cidadania Empresarial” pode ser entendido
como uma relação de direitos e deveres entre empresas e seus públicos de interesse. Tem
a ver com a “boa vontade” que as empresas devem ter em contribuir para as questões das
comunidades onde atuam. É um fazer que aproxima os interesses do negócio com os seus
stakeholders (SCHOMMER; FISCHER, 1999). Além disso, visto que a empresa necessita
de matéria-prima e recursos humanos, ela não gera riqueza se não estiver envolvida em um
ambiente social.
Ladeira et al. (2017) trazem referências sobre a Responsabilidade Social Corporativa (RSC)
alinhada ao Marketing Social. Para os autores, a Responsabilidade Social Empresarial
(RSE) é o mais amplo de todos os termos pesquisados, relacionados ao próprio Marketing
Social, aspectos ambientais e financeiros relacionados à estratégia ou plano. De acordo
148 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

com os autores, a RSE é utilizada pelo Marketing Social como estratégia para alavancar a
marca, visto que o conceito traz a premissa de parceria na qual a empresa pode ter resultados
emocionais e sustentáveis e, em seguida, benefícios como a fidelidade dos clientes, atraindo
novos consumidores e um maior volume de vendas, visando, como foco principal, a mudança
de comportamentos e atitudes. Também é uma ferramenta importante para criar vantagem
competitiva; desenvolve a lealdade dos colaboradores e atrai novos talentos; atrai novos
parceiros de negócios, capital e investimentos; e melhora o relacionamento entre a empresa
e as comunidades locais.
Com o objetivo de estabelecer diretrizes sobre a RSE, por meio das dimensões social,
ambiental e econômica, foi elaborada a Norma Internacional para a Responsabilidade Social
ISO 26000 (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2010). A ISO
26000 foi lançada internacionalmente em 1º. de novembro de 2010, na cidade de Genebra,
Suíça. Já a versão brasileira foi apresentada na capital paulista no dia 8 de dezembro do
mesmo ano. Para Dias (2011), a ISO 26000 surgiu em um momento em que a relação das
empresas com a sociedade estava em acelerado processo de mudanças, o que ocorre ainda
hoje. Segundo a Norma, a Responsabilidade Social é a responsabilidade de uma organização
pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente, por meio de
um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável
– inclusive a saúde e o bem-estar da sociedade –; leve em consideração as expectativas das
partes interessadas; esteja em conformidade com a legislação aplicável; seja consistente com
as normas internacionais de comportamento; esteja integrada em toda a organização; e seja
praticada em suas relações.
Do ponto de vista empresarial, a Responsabilidade Social pode agregar valor ao negócio,
trazendo benefícios que vão além dos muros das corporações: imagem e reputação de
marca e fidelização dos públicos, mas, principalmente, a sustentabilidade de suas atividades
(GRAJEW, 2000).
Uma iniciativa importante nos últimos anos e que, nos dias de hoje, orienta todo o empenho
mundial acerca do tema é a aprovação da Agenda Global 2030, realizada em 2015 na
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, tratando-se de um plano de ação
para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade. A proposta é que todos os países e
todas as partes interessadas atuem em parceria na implementação do plano. A Agenda
comporta os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS, com 169 metas, as quais
devem ser consideradas de forma integrada e voluntária (NAÇÕES UNIDAS BRASIL,
2015).
O conceito de Investimento Social Privado é caracterizado pela transferência voluntária de
recursos de entes privados para comunidades por meio de projetos (GIFE 2018). No Brasil,
o ISP é realizado por meio de projetos sociais, geralmente executados por organizações do
Terceiro Setor (FISCHER, 2002). Essas organizações, por sua vez, possuem a expertise
em metodologias para desenvolvimento de tais projetos. Para Brown et al. (2006), o ISP
pode se estender à transferência de recursos para entidades de assistência social, sem o
compromisso do ente privado em monitorar os resultados. O GIFE (2018) traz o conceito
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 149

de ISP aliado à transferência de recursos de pessoas jurídicas ou físicas, sem a necessidade


de um preposto, porém, com o comprometimento de que os projetos executados sejam
avaliados e não ocorram em ações assistencialistas.
Porter e Kramer (2006) mostram que, em muitos casos, a filantropia é usada como forma
de relações públicas ou publicidade para promover a imagem ou a marca da empresa.
Pressionadas por demandas crescentes da sociedade, os executivos sentem que suas empresas
devem realizar ações filantrópicas, mas sentem dificuldades para justificá-las do ponto de
vista dos resultados financeiros que elas possam proporcionar. As doações verdadeiramente
estratégicas atendem simultaneamente metas sociais e econômicas, representando uma
convergência de interesses entre a empresa e a sociedade. A filantropia apresentará uma
conotação estratégica quando representar uma melhor relação custo-benefício num contexto
competitivo, assim aproxima-se do conceito de ISP. Os autores entendem que é possível sair
da armadilha dos extremos: a filantropia pura que se realiza por meio de doações diretas
em dinheiro ou prestação de serviços sem fins lucrativos e o interesse comercial puro. Desse
modo, questões revestidas de caráter filantrópico, de um lado, e econômico, de outro, podem
se combinar, fazendo com que as empresas se insiram de maneira mais harmônica e solidária
em questões de interesse da sociedade com benefícios tangíveis e intangíveis para o negócio.
A combinação de interesses comerciais com benefícios sociais não amesquinha a filantropia,
desde que esses interesses sejam orientados por uma prática de gestão responsável coerente
com os princípios diretivos aqui apresentados. Uma filantropia praticada nessas condições
difere radicalmente da filantropia feita apenas para melhorar a imagem pública da empresa.
As ações filantrópicas podem combinar a busca de benefícios econômicos para a empresa
com o cumprimento das metas do milênio ou outras consideradas importantes de acordo
com o conceito de desenvolvimento sustentável.
Com efeito, a gestão do ISP para a transformação das localidades onde os empreendimentos
se instalam ainda carece de produção acadêmica, havendo uma série de desafios na sua
implementação, os quais vão desde o investimento à gestão, perpassando por várias situações,
tais como:
y muitos investimentos realizados por diversas empresas, num mesmo território,
na maioria das vezes, estão concentrados nas mãos das organizações sociais mais
conhecidas, o que dificulta a possibilidade desses recursos serem distribuídos para
outras regiões e diversificar seu alcance;
y baixo grau de participação dos atores sociais locais envolvidos no processo de
tomada de decisão. Não se discute com a comunidade as necessidades locais. Sendo
assim, as chances de o investimento ter o impacto na transformação positiva da
localidade ficam cada vez mais distantes;
y poucas iniciativas de avaliação dos investimentos realizados, ou seja, não se mede o
impacto da ação realizada por meio do ISP.
150 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

Para Ian Thomson (2007), especialista em gestão do desenvolvimento socialmente


sustentável, o relacionamento com a comunidade era base de sustentação das práticas
sociais, uma vez que, para operar, a empresa precisava obter sua Licença Social. Essa licença
é uma espécie de aprovação da comunidade em relação às operações de uma determinada
empresa, não sendo um documento escrito, mas, sim, um pacto de confiança construído
entre empresa e partes interessadas (ABREU, 2014).
Os investimentos sociais eram a forma como as corporações tentavam corrigir ou prevenir
seus impactos, buscando a licença social para suas operações. Werneck (2007) propôs um
cenário diferente, no qual as empresas procurassem fazer a diferença por meio de ações
sociais de impacto, as quais demonstrassem seus valores e que estivessem comprometidas
com causas sociais. No cenário atual, segundo o Benchmarking do Investimento Social
(2019), a destinação desses recursos tem sido influenciada por diversos fatores, dentre eles,
mudanças importantes no comportamento dos dirigentes em decorrência do avanço do
processo de integração desses investimentos aos negócios e pela reação positiva às pressões
da sociedade.
Para complementar o referencial teórico, trazemos também o tema território, local onde o
ISP acontece, tendo como base as relações estabelecidas. Para Raffestin (1993), o território
forma-se a partir do espaço e é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático
(ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta
ou abstratamente, o ator “territorializa” o mesmo. Para o autor, território é o que se pode
produzir a partir do espaço e as relações de poder que acontecem nele, portanto, um local
de relações, de decisões.
Saquet (2003) também referencia território como relação social e de conflitos. Ele coloca-
nos que, para existir território, é preciso haver qualquer tipo de poder e de relações sociais.
Neste estudo, trazemos como territórios o Litoral Norte baiano, onde atua uma empresa de
reflorestamento para produção de celulose, e a região sudeste do Pará, onde está localizado
o maior complexo de minério de ferro do mundo.

METODOLOGIA
Utilizamos, nesta pesquisa, o estudo de casos múltiplos (YIN, 2015) como abordagem
metodológica, o que permitiu um melhor entendimento dos processos e práticas (“como”
e “por que”), utilizados por duas grandes corporações no que se refere ao Investimento
Social Privado. Foram selecionados dois casos de entes privados com impacto em territórios
diferenciados e complexos, os quais orientam sua gestão social por meio do ISP, buscando
como objetivo o desenvolvimento social. São eles: a gestão do Investimento Social Privado
da Bracell, uma empresa de reflorestamento para produção de celulose, com impacto em
31 municípios e mais de 300 comunidades, situada no Litoral e Agreste baianos, e da Vale,
uma mineradora com atuação no Pará, onde está a maior planície mineral do mundo, e
em Minas Gerais, sendo este último local não considerado neste estudo. Ambos os casos
foram selecionados por terem muitos insumos para a pesquisa e por estarem em territórios
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 151

completamente distintos e possuírem impacto significante na transformação do território


onde estão localizados. A coleta de dados deu-se por meio das seguintes técnicas: dados
secundários existentes sobre o tema e os casos escolhidos para pesquisa; observação direta;
análise documental de dados colhidos nos sites; declarações e documentos publicados pelas
duas organizações.
O primeiro passo foi mapear e selecionar experiências significativas de Investimento Social
Privado como ferramentas de gestão social de ambas as empresas. A partir da pesquisa de
dados secundários, buscaram-se artigos de periódicos, sites das empresas referidas e demais
documentos referentes a gestão social, Investimento Social Privado e Responsabilidade
Social. Posteriormente, buscaram-se dados publicados a cerca dos empreendimentos
estudados. Nessa etapa, foram analisados documentos institucionais e produtos técnicos,
publicados pelas organizações mencionadas, bem como informações sobre os projetos
sociais desenvolvidos, relatos de reuniões, dentre outros. Por fim, foi realizada a análise de
conteúdo com interpretação e análise dos dados levantados na pesquisa. Segundo Bardin
(2011), a interpretação e análise dos dados é a principal etapa de um projeto de pesquisa.
Segundo a autora, a análise de conteúdo é um conjunto de instrumentos metodológicos em
constante aperfeiçoamento, oscilando entre objetividade e subjetividade, além de admitir
tanto abordagens quantitativas quanto qualitativas.

ANÁLISE DOS RESULTADOS


A Gestão Social da Bracell
Na Bahia, a empresa Bracell, com atuação nas regiões do Litoral Norte e Agreste, tem como
atividade a produção de florestas de eucalipto para abastecer sua fábrica, situada no Polo de
Camaçari, região metropolitana de Salvador. A empresa, a qual atua no Brasil há 17 anos,
é uma das maiores produtoras de celulose especial do mundo. A visão da multinacional
é ser uma das maiores, mais bem administradas e sustentáveis empresas no setor de
recursos renováveis, gerando valor para a comunidade, o país, o meio ambiente e os clientes
(BRACELL, 2020).
O plantio de florestas para fins comerciais no Brasil iniciou-se na década de 1970, com
o incentivo ao reflorestamento pelo Governo Federal através de programas de fomento
das atividades de silvicultura. Na Bahia, os plantios foram realizados na microrregião do
litoral norte baiano, estimulados pelo preço atrativo da celulose no mercado internacional e,
sobretudo, pela proximidade do recém-criado Polo Petroquímico de Camaçari, do Centro
Industrial de Aratu (CIA) e da capital do Estado (ANDRADE; OLIVEIRA, 2016).
Segundo a Associação Baiana das Empresas de Base Florestal (ABAF, 2020), a falta de
pesquisas que subsidiassem um maior conhecimento sobre a atividade, aliada ao planejamento
inadequado do uso da terra, escolhas equivocadas das espécies a serem plantadas, utilização
inadequada de fertilizantes, uma frágil legislação e ineficiente fiscalização culminaram no
surgimento de correntes contrárias à cultura do eucalipto. Dentre mitos e verdades, estão
afirmações de que o eucalipto seca e empobrece o solo, gera um deserto verde e que resulta
152 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

em poucos benefícios sociais e econômicos para os municípios. Para a entidade, a qual reúne
as principais empresas florestais da Bahia, o Brasil possui 7,74 milhões de hectares plantados
de eucalipto, pinus e outras espécies, em uma área correspondente a 0,9% do território
nacional. O setor brasileiro de árvores plantadas é responsável por 91% de toda a madeira
produzida para fins industriais no País − os demais 9% vêm de florestas nativas legalmente
manejadas. A utilização de madeiras certificadas e produzidas de forma sutentável levou a
uma melhor aceitação das atividades desta empresa, agregando valor à marca da mesma.
O eucalipto é matéria-prima para produção de celulose, carvão, lenha, madeira serrada e
extração de óleos essenciais. O carvão vegetal antes era produzido por meio da retirada da
mata nativa. O eucalipto veio como uma alternativa de revegetação de áreas degradadas,
porém, ainda devem ser verificados seus impactos negativos nas regiões replantadas. Segundo
a Indústria Brasileira de Árvores (IBA, 2020), o eucalipto é cultivado atendendo a planos
de manejo sustentável, tendo como objetivo reduzir os impactos ambientais e promover
o desenvolvimento econômico e social das comunidades vizinhas. Segundo a instituição,
as certificações são as ferramentas das quais as empresas do setor dispõem para realizar a
gestão ambientalmente responsável, social e economicamente viável no presente e para as
gerações futuras.
Em decorrência de uma forte pressão negativa e críticas de seus principais stakeholders, e
também para conhecer melhor seu território de atuação, em 2012, a Bracell Bahia contratou
uma consultoria externa especializada para elaborar um diagnóstico socioeconômico.
O documento, disponibilizado pela empresa para essa pesquisa trouxe subsídios que
possibilitaram a elaboração e implementação de sua Política de Responsabilidade Social
e Ambiental, com quatro principais pilares: educação, empreendedorismo, agronegócio e
diálogo permanente. Este último foi necessário, visto que o diagnóstico apontou, depois de
ouvir as comunidades vizinhas, que a empresa era ausente e não havia ações de parceria para
o desenvolvimento da região. Oito anos depois do diagnóstico, a empresa vive outro cenário:
são 26 programas e projetos socioambientais estruturados, alcançando 65 mil pessoas nas
mais de 300 comunidades vizinhas aos plantios de eucalipto, nos 31 municípios onde
atua. No organograma da empresa, o setor de Responsabilidade Social faz parte de uma
Gerência Sênior que também reúne Relações Institucionais e Sustentabilidade, e está ligada
diretamente à alta gestão da empresa, o que possibilita que a tomada de decisão de seu
investimento social esteja alinhada às estratégias de negócio. Outro passo importante dado
foi a implementação de sua Política de Sustentabilidade, em 2016, a qual está publicada no
site da empresa e que traz como base a filosofia de que tudo que a empresa realiza “deve ser
bom para a comunidade, bom para o país, bom para o clima e bom para os clientes. Só então
será bom para a empresa” (BRACELL, 2020). A política está dividida em sete temas, ou
assuntos, dentre eles, o desenvolvimento de comunidades locais. Nesse trecho, o documento
dá as orientações para o trabalho que a empresa realiza nas mais de 300 comunidades
vizinhas. No passo a passo estão: conhecer o contexto local e realizar o engajamento das
partes interessadas; elaborar e implementar os projetos com o envolvimento das comunidades
na tomada de decisão; apoiar o desenvolvimento da região por meio do fortalecimento
dos arranjos produtivos locais; investir na educação; estabelecer parcerias; dar preferência
a projetos estruturantes em detrimento aos filantrópicos; estar engajada com os Objetivos
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 153

do Desenvolvimento Sustentável, sendo signatária do Pacto Global das Nações Unidas;


monitorar indicadores sociais; e priorizar comunidades tradicionais além das que estão na
área de sua atuação (BRACELL, 2020).
Dentre os projetos sociais desenvolvidos pela Bracell Bahia, elencamos três com destaque
maior. São eles: o Projeto de Educação Continuada, o Projeto da Fábrica de Fardamentos e
o Projeto Farmácia Verde.
O Projeto de Educação Continuada iniciou em 2014, com a parceria da rede pública e execução
do Instituto Chapada de Educação, com o objetivo de não apenas levar formações para os
professores do território, mas, também, buscar articular um arranjo de desenvolvimento
regional em prol da educação, estabelecendo a mobilização e cooperação, além de consolidar
as políticas públicas de formação continuada desses educadores. Participam do projeto cerca
de 2.300 professores da rede pública de oito municípios, com impacto em 36 mil alunos. Os
principais indicadores de evolução do projeto são o IDEB (Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica) e o índice de alfabetizados. No início do projeto, tanto o IDEB quanto o
índice de alfabetizados dos municípios onde o projeto era executado configuravam entre os
menores da Bahia. Após seis anos de implementado, pode-se perceber o aumento do IDEB
e também do índice de alfabetizados, sendo que, em alguns municípios, já atingiu os 100%.
Outro projeto fruto da gestão social da reflorestadora é a Fábrica de Fardamentos, executado
pela Cooperativa de Trabalho das Costureiras de Inhambupe e Região – COOPECIR. Esta
foi fundada em 2016, tendo como atividade principal a confecção de peças de vestuário, com
ênfase em uniformes. O projeto iniciou em 2013, por iniciativa da Bracell Bahia, com o
objetivo de desenvolver um projeto de geração de renda em um dos municípios principais
de sua atuação – local onde fica um dos viveiros de mudas da empresa –, iniciado com 40
mulheres que receberam um treinamento intensivo em costura industrial. O projeto acontece
até hoje em um galpão com estrutura de fábrica industrial, com cerca de 50 máquinas de
corte, costura, bordado e acabamento. Uma consultoria especializada foi contratada para
desenvolver com o grupo um plano de negócios. Como de praxe, em um ciclo de projeto, a
cooperativa levou alguns anos para ser formada, o que só aconteceu após o amadurecimento
do grupo para o negócio social estabelecido. Hoje, a empresa é apenas um dos clientes
da Fábrica de Fardamentos (BRACELL, 2020). Em 2020, este grupo passou também a
produzir máscaras para proteção contra o Cononavírus. Próximo aos plantios de eucalipto
da Bracell, estão comunidades que, em sua maioria, são de pequenos produtores rurais;
dessas, sete são comunidades tradicionais quilombolas com as quais a empresa desenvolve
projetos de geração de renda. Uma delas é o Cangula, sede do Projeto Farmácia Verde. O
projeto foi implementado a partir de um diagnóstico socio-produtivo através do qual se
identificou o saber popular na utilização de plantas medicinais. A fitoterapia caseira era
uma fonte de cura na comunidade, um conhecimento passado de pais para filhos. O projeto
tem como objetivo resgatar os saberes da comunidade com ações estruturantes dentro do
empreendedorismo social, na perspectiva da geração de renda e autonomia local. Uma
consultoria especializada realizou o diagnóstico e construiu juntamente com a comunidade
o projeto. Os integrantes do grupo passaram por uma capacitação em plantas medicinais e
oficinas produtivas para desenvolvimento de práticas agroecológicas, saboaria e fitoterápicos.
154 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

Todo o trabalho desenvolvido partiu do princípio da biodiversidade e da preservação das


riquezas naturais das comunidades, tendo orientações para catalogação das plantas nativas
medicinais e manejo sustentável, através do cultivo orgânico dessas espécies. A consultoria
também realiza uma assessoria contábil para que a associação se mantenha regularizada
em suas obrigações fiscais e capacita o grupo para elaboração de projetos para acesso a
editais. Em 2019, um desses projetos foi aprovado em Edital Público, com recursos de
aproximadamente R$554 mil, para construção de viveiros agroecológicos para produção de
mudas de plantas medicinais, com o objetivo de dar sustentabilidade ao projeto, garantindo
a matéria prima para os fitoterápicos.
Além disso, o grupo estabeleceu uma parceria com a FACIN – Faculdades de Ciências
Neuropática da Bahia, para a realização do primeiro curso de Extensão Universitária da
Bahia em Naturoterapia, com 680 horas de formação. Participam dessa iniciativa, além
de integrantes do Cangula, agentes de saúde da região. O objetivo é que as pessoas com
essa formação possam integrar as equipes municipais da Saúde para realizar o tratamento
da população com naturoterapia. Já existem municípios na região de atuação da empresa
com leis aprovadas para implementação dessa prática pelo SUS. Um dos indicadores que
a empresa apresenta sobre o projeto é que as medicações naturais estão sendo cada vez
mais utilizadas nas enfermidades dos moradores da comunidade e com a propagação das
melhoras em pacientes assistidos, muitas pessoas têm buscado adquirir os produtos, sendo
ainda apresentados em feiras locais e eventos direcionados. Ressalta-se que a comercialização
é sob forma de experimentos de medicações naturais sem pretensão de escala de produção.
O Farmácia Verde traz ainda um indicador importante e qualitativo de sua evolução:
integrantes com retorno à escola formal e extensão em áreas como tecnólogo em meio
ambiente e graduação em ciências sociais.

A Gestão Social da Vale no Pará


Em 1967, nascia o Projeto Carajás e a história da Companhia Vale do Rio Doce no Pará,
quando foi descoberta a primeira jazida de minério de ferro da região, onde está localizada a
maior planície mineral do planeta. Mais precisamente no município de Canaã dos Carajás,
sudeste do estado, está o Complexo S11D Eliezer Batista, maior investimento privado
realizado no Brasil na segunda década do século 20. O minério de ferro é o carro chefe
da empresa no Brasil, e o encontrado em Carajás é considerado o melhor do mundo. A
Vale atua em 105 municípios no país e mantem relacionamento com 1.149 comunidades,
destas, 443 são prioritárias, onde estão seus maiores esforços. Em 2019, a empresa lançou
o Portal ESG Environmental, Social and Governace, um canal onde é possível encontrar
dados ambientais, sociais e de governança. Segundo o portal, a empresa investe em ações
potencializadoras, preventivas, e compensatórias, relacionadas a impactos socioeconômicos
de operações, projetos ou pesquisa mineral. Além de ações que contribuam para o
desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida nos territórios onde atua (VALE, 2020).
A história da Vale é acompanhada de grande desconfiança sobre sua ação socioambiental,
em especial, após a sua privatização durante o governo FHC (Fernando Henrique Cardoso)
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 155

em 6 de maio de 1997. Coelho et al. (2916) pesquisaram a relação entre mineração e


desenvolvimento em municípios onde a Vale opera. Eles avaliam que uma das principais
mudanças entre a gestão pública e privada da empresa é a imposição de um modelo de
mineração mais predatório e antidemocrático.
Em janeiro de 2012, por exemplo, a mineradora foi eleita como a pior empresa do mundo,
no que refere-se a direitos humanos e meio ambiente, pelo Prêmio Public Eye, premiação
realizada desde o ano 2000 pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna. O motivo: uma
história de 70 anos manchada por violações dos direitos humanos, condições desumanas de
trabalho, pilhagem do patrimônio público e pela exploração da natureza, alertam Leonardo
Fernandes, Lu Sudré e Rute Pina (2019).
Entretanto, a postura da empresa tem outras vertentes mais socialmente responsáveis. Por
exemplo, segundo a Fundação Vale, braço social da empresa, em 2019, cerca de 770 mil
pessoas foram beneficiadas por seus projetos sociais em 68 municípios, nos seis estados
onde atua: Pará, Maranhão, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Rio de
Janeiro. A empresa realiza sua gestão social por meio da Diretoria de Investimento Social
integrada com a Diretoria Executiva de Sustentabilidade e Relações Institucionais, a qual
reúne os projetos e programas socioculturais e ambientais da empresa de cunho Obrigatório
e Voluntário, incluindo a Fundação Vale. A empresa também é mantenedora do Fundo Vale,
uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), criada em 2009.
Para realizar o Investimento Social, a empresa traz como diretrizes, entre outras: alinhamento
à Estratégia de Sustentabilidade do Sistema Vale; implementação em territórios impactados
pelos negócios ou de interesse para a empresa; prioridade para comunidades em situações
de vulnerabilidade; e ações estruturantes, com resultados mensuráveis e prazo de conclusão
definido (VALE, 2020).
Com 50 anos de atuação, a Fundação Vale coloca-se como uma referência do país em
desenvolvimento territorial. Inclusive, detém a autoria do conceito de Parceria Social
Público-Privada (PSPP), o qual trata da integração entre governo, iniciativa privada
e comunidades para maximizar os impactos positivos do Investimento Social Privado
(VALE, 2020). A empresa afirma, em suas publicações, que não realiza investimentos em
ações que sejam de obrigação do Poder Público, porém, pode complementá-las no caso
de calamidades públicas, como no atual cenário de pandemia. A Fundação Vale apoia a
gestão de espaços culturais e mantém estações de conhecimento (espaços socioeducativos
que promovem atividades com foco na formação integral de 4.500 crianças e adolescentes
de 6 a 17 anos e suas famílias). As atividades buscam ampliar as oportunidades educativas
no contraturno escolar, nos eixos de esporte, cultura, cidadania e multiletramento (VALE,
2020).
Nos últimos anos, a mineradora vem atravessando uma fase conturbada de sua história, após
acidentes em sequência em suas instalações, resultando em centenas de vítimas fatais. O
Relatório de Sustentabilidade 2019 da empresa traz as ações desenvolvidas para enfrentar
e minimizar os efeitos dos últimos acontecimentos. Independentemente do impacto à
imagem e reputação da marca, a empresa mantém seus investimentos sociais (VALE, 2020).
156 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trazer à análise a convergência entre Investimento Privado e a necessidade efetiva
do território contribuiu para compreender não apenas como a gestão social de grandes
corporações é orientada, mas, principalmente, como é realizado o envolvimento dos atores
sociais no processo. É possível verificar que o envolvimento dessas populações na tomada
de decisões e o atendimento ao que de fato é necessidade legítima do território impactado
sendo assim, o processo mais assertivo para sua transformação.
Ambas as empresas estudadas neste trabalho vêm não apenas realizando aportes de recursos,
mas planejando seus programas e projetos para atender a demandas do território. Porém,
entende-se que o protagonismo desempenhado pela iniciativa privada no desenvolvimento
local não é apenas para expor a “boa vontade em contribuir”, mas, sim, por ser necessário
à sustentabilidade de seus negócios, um melhor posicionamento de suas marcas e
melhoramento de suas imagens e reputações organizacionais, sobretudo, a partir de pressão
de investidores estrangeiros.
Com base na pesquisa, parte apresentada neste artigo, está sendo desenvolvido um
diagnóstico, que será a matéria-prima para a construção de uma ferramenta de gestão
social, além de uma fonte de informação sobre o cenário do território estudado quanto ao
seu desenvolvimento socioeconômico e possibilidades de investimentos. Essa ferramenta
(digital) com acesso livre, poderá ser replicável em diversos territórios e deverá servir para
nortear novas iniciativas e orientar também quanto às ações que poderão ser realizadas por
diversos atores sociais, não só a iniciativa privada, mas, também, governos, organizações
sociais etc. O objetivo é contribuir de imediato para que as empresas tenham subsídios
para elaborarem seus planejamentos estratégicos, direcionando-os para utilização do
investimento social privado com foco no gerenciamento de seus impactos, com participação
dos atores envolvidos. Além disso, dará visibilidade também às empresas que atuarem com
essa proposição, transformando a sua gestão social em ativos de imagem e reputação às suas
marcas. A plataforma, por si só, tem a premissa de proporcionar visibilidade, uma vez que
todos os atores sociais cadastrados poderão ser acessados.
Dessa forma, este estudo contribuirá também para trazer à prática teorias/discussões sobre
a relevância do direcionamento do Investimento Social Privado, viabilizando iniciativas de
gestão social de impacto significante. Como consequência, espera-se que a ferramenta se
constitua em uma forma de minimizar os impactos negativos oriundos dos empreendimentos
privados, pensados à revelia das comunidades diretamente afetadas pelos mesmos.
A tecnologia que está sendo elaborada também contribuirá diretamente para a atuação dos
gestores sociais, uma vez que o mercado ainda é carente de uma ferramenta que propricie
e evidencie o encontro de interesses entre empresa e atores sociais impactados; que ofereça
informações e oportunidades para ambos com agilidade e em tempo real.
O projeto interessará a qualquer pessoa/instituição que atue com gestão social ou que estude
o tema, mas, principalmente, será de interesse de corporações, governos e sociedade em
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 157

geral que estejam inseridas no território em questão. Lembrando que a metodologia terá a
flexibilidade de ser implementada em qualquer território.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: ago. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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Mouana Comunicóloga pela Universidade Federal do Pará, com Habilitação em Jornalismo.


do Socorro Mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social, pela Universidade Federal da
Sioufi Bahia. Possui certificação em Project Management for Development (PMD
Fonseca PRO), metodologia de gestão de projetos sociais com certificação internacional e
que é 100% aplicável para organizações sociais. Atualmente, atua como Gerente de
Relações Institucionais e Responsabilidade Social na Empresa Bracell.

Rodrigo Graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas


Ladeira Gerais e graduação em Administração - Habilitação em Comércio Exterior
pela Faculdade de Ciências Gerenciais- União de Negócios e Administração.
Mestrado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo e doutorado em
Doutorado sanduíche - Vanderbilt University (1999). Pós-doutorado na New
York University, New York. Atualmente, é Professor Associado II da Universidade
Federal da Bahia. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em
Administração de Marketing, Varejo físico e virtual, atuando principalmente
nos seguintes temas: Comportamento do Consumidor, Varejo, Planejamento
Estratégico, Comportamento do Consumidor e Marketing de Serviços, Marketing
de Experiencia e Marketing Digital. Participante do Conselho de Sustentabilidade
da FIEB ( Federação das Industrias da Bahia).

Jorge Doutor e mestre em Administração de Empresas pela FGV-EAESP, ambos


Emanuel Reis títulos obtidos com distinção. Graduação em Administração de Empresas pela
Cajazeira Universidade Católica do Salvador e em Engenharia Mecânica pela Universidade
Federal da Bahia. MBA em Gestão Empresarial pela FGV-Rio de Janeiro.
Atualmente, é consultor em gestão empresarial e ex-diretor de relações institucionais
da SUZANO PAPEL E CELULOSE. Preside o Conselho de Sustentabilidade da
FIEB. Membro do Conselho Consultivo da ABERJE - Associação Brasileira de
Comunicação Empresarial. Tem experiência nos seguintes temas: sustentabilidade,
qualidade, normas ISO, estratégia, estratégia de operações, relações governamentais,
diálogo com stakeholder, cultura organizacional, produtividade e inovação, métodos
estatísticos aplicados à engenharia, seis sigmas, metodologia Falconi de melhoria de
processo, gestão financeira. Professor convidado do Programa de Desenvolvimento
e Gestão Social da UFBA (PDGS). Atua ministrando aulas na pós-graduação do
SENAI/CIMATEC e da UNIFACS.
160 Será o Investimento Social Privado uma Oportunidade ...

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.161-170
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.39323

Tecnologias e Sociedade: o papel dos indivíduos


na criação de fatos e artefatos1
Fernando Antônio de Melo Pereira Lhamas e Rodrigo Muller

Resumo Este ensaio propõe integrar a temática da ação do indivíduo sobre


a tecnologia no campo da gestão social. Através de uma abordagem
conceitual, ancorado sob uma perspectiva multidisciplinar de
humanidades digitais, são investigadas quais práticas são aderentes e
relevantes para gestores sociais, pesquisadores e estudantes. Busca-se
estabelecer uma ponte entre o estudo da tecnologia e sociedade com
o papel social dos indivíduos na criação de artefatos e práticas que
delimitem o uso de tecnologias que cumpram uma função social.

Palavras-chave Tecnologia. Gestão Social. Aprendizagem de Máquina.

Abstract This essay proposes to integrate the theme of an individual’s action on


technology in the field of social management. Through a conceptual
approach, anchored under a multidisciplinary digital humanities
perspective, it is investigated which practices are adherent and relevant
for social managers, researchers, and students. It seeks to establish a
bridge between the study of technology and society with the social
role of individuals in the creation of artifacts and practices that limit
the use of technologies that fulfill a social function.
Keywords Technology. Social Management. Machine Learning.
162 Tecnologias e Sociedade

INTRODUÇÃO
Pensar a sociedade nos tempos de hoje requer observar todas as possibilidades de interação
e interfaces entre pessoas e máquinas presentes no dia a dia, principalmente, as que possuem
suporte ou mediação das tecnologias da informação e comunicação (TICs) e das tecnologias
de um modo geral. Essa interação torna-se mais urgente em um mundo pós-pandemia, onde
vários avanços no uso da tecnologia foram adiantados por uma questão de necessidade. As
tecnologias disruptivas e uma plataforma econômica compartilhada são uma realidade e, a
cada dia, estão sendo massificadas (DE STEFANO, 2016).
Nesse sentido, investigar em que medida as tecnologias podem impactar os comportamentos
e ações humanas é um dos temas que despontam como interesse específico da linha de
pesquisa Tecnologias e Redes Colaborativas, integrante dos eixos de pesquisa do Centro
Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
Para construir essas discussões, a linha de pesquisa de Tecnologias e Redes Colaborativas
investiga e discute questões relacionadas com a criação, a apropriação e o uso de tecnologias
na sociedade. Em um primeiro momento, parte-se da discussão da tecnologia enquanto
produto da ação humana, entendida, neste ensaio, e a partir da visão de autores como
Castells (1999) e Pinto (2005), como resultado do uso aplicado do conhecimento humano
para a solução de problemas.
Essa visão permite compreender a tecnologia como aplicação dos conhecimentos e da
técnica humanos em elementos presentes na sociedade, como artefatos tecnológicos que
servem para realizar determinadas tarefas. Por se tratar de resultado da ação humana, vê-se
na tecnologia a presença de características e valores daqueles que a produziram (WINNER,
1986; PINTO, 2005), o que implica no caráter social da tecnologia e na presença de valores,
interesses, cultura, fatores sociais e outros elementos imbuídos nos artefatos tecnológicos.
A partir do exposto, este ensaio tem como objetivo apresentar algumas das discussões
realizadas na linha de pesquisa Tecnologia e Redes Colaborativas sobre o caráter social da
tecnologia. A inquietação associada às discussões consiste na busca por uma ressignificação
da área de tecnologia da informação no âmbito da Gestão Social. Os temas comumente
abordados como emergentes em TICs no campo da Gestão Social eram abordados
rapidamente ou ficavam apenas no campo das ideias.
O ensaio organiza-se da seguinte forma: esta introdução, seguida de uma discussão sobre
tecnologia e sociedade, uma seção abordando a aprendizagem de máquinas e uma seção de
discussão das possibilidades de integração das temáticas estudadas na linha de Tecnologias
e Redes Colaborativas com a Gestão Social.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 163

TECNOLOGIA E SOCIEDADE
As inúmeras tecnologias presentes na sociedade constituem o resultado da produção
humana de fatos e de artefatos tecnológicos, criados e utilizados para facilitar a vida das
pessoas e com finalidades diversas, desde a sobrevivência, o desenvolvimento e realização
do trabalho e o bem-estar. Conforme aponta Castells (1999), a tecnologia tornou-se um
elemento presente na sociedade e seus impactos podem ser percebidos nos mais diversos
aspectos da vida cotidiana, englobando relacionamentos, comunicação, negócios, educação
e trabalho, por exemplo.
Acerca da tecnologia, Bastos (2015, p. 17) comenta que “o entendimento da tecnologia
na sua amplitude e profundidade é complexo, pois inclui várias dimensões que abordam
aspectos sociais, econômicos, antropológicos e técnicos”, o que demanda posturas de crítica
e de reflexão sobre seu desenvolvimento e sobre sua utilização na sociedade.
De acordo com Santos (2012), a tecnologia molda a sociedade, ao mesmo tempo em que
é moldada por ela. A esse respeito, para Winner (1986), artefatos tecnológicos podem
incorporar formas específicas de poder e autoridade, além de características culturais e
sociais de acordo com o período em que são construídos.
Pinto (2005) reflete sobre a produção tecnológica, em se tratando de uma atividade
humana, e sua relação com o perfil dos indivíduos que a produzem. Neste sentido, um
artefato tecnológico não pode ser analisado de forma dissociada do contexto social no qual
foi produzido, uma vez que guarda essa relação entre os valores, crenças e interesses do(s)
indivíduo(s) produtor(es) (PINCH; BIJKER, 1984).
Winner (1986) também discute essa questão, enfatizando o discurso comum de que as
tecnologias se desenvolvem como resultado de dinâmicas internas, o que leva a um
pensamento que o autor denomina de determinismo tecnológico. O determinismo
tecnológico vê a tecnologia como um fim em si mesma, livre de influências externas e capaz
de moldar a sociedade para que se adeque aos seus padrões. A esse respeito, Winner (1968)
discorre sobre os perigos de assumir um posicionamento determinista da tecnologia para
a não reflexão sobre os contextos sociais de sua produção, as características do momento
histórico, os aspectos sociais e os valores imbuídos na tecnologia, os quais são a raiz dos
artefatos.
De outra parte, limitar a visão e análise das tecnologias ao contexto de sua produção também
traz outros impactos e desconsidera o papel dos indivíduos que utilizam tais tecnologias.
Isso leva a pensar sobre o processo de apropriação e uso dos artefatos por parte da sociedade.
Um exemplo, a esse respeito, pode ser visto nas ferramentas de tecnologias da informação e
comunicação (TICs) eletrônicas. Desenvolvidas, a priori, para o compartilhamento rápido
de informações entre grupos de pessoas e/ou organizações (CASTELLS, 1999), as TICs
passaram a ser incorporadas nas práticas sociais dentro dos mais diversos tipos de situações,
extrapolando a finalidade inicial de compartilhar informações para se tornarem ferramentas
de comunicação de uso popular, presentes em vários momentos da vida humana.
164 Tecnologias e Sociedade

Outros pontos que merecem reflexão estão relacionados com a aquisição ou produção das
tecnologias. Pinto (2005) já discutiu o fato de que muitas tecnologias utilizadas em países
‘subdesenvolvidos’ são importadas das potências mundiais. Esse fato já foi amplamente
discutido por pesquisadores das áreas de C&T (CUTCLIFF, 2003; KREIMER, 2009;
DAGNINO, 2014)  e mostra que grandes impactos podem ser percebidos pelo uso de
tecnologias importadas, ressaltando-se:
y as tecnologias são desenvolvidas em um contexto social específico, incorporando
práticas sociais, valores e interesses do seu local de produção e de seus produtores;
y a diferença dos contextos de produção e de utilização da tecnologia pode trazer
prejuízos para o segundo grupo, uma vez que o artefato foi pensado para outra
realidade;
y ao importar tecnologias, não se consideram as potencialidades de desenvolvimento
local, impactando o desenvolvimento local e regional, e o fato de não reconhecer e
incorporar as demandas da sociedade que será foco dessas tecnologias.
De outra parte, discutir o desenvolvimento de tecnologias em tempos atuais implica
observar e refletir sobre a produção de artefatos relacionados com as ferramentas digitais,
com o ambiente virtual e com as TICs. Um exemplo claro desses artefatos são os softwares
utilizados em inúmeras situações do cotidiano. Enquanto artefato, o software chega às mãos
dos usuários que se apropriam dessa tecnologia e a incorporam ao seu cotidiano, sem, muitas
vezes, refletir sobre a produção desses softwares.
Para Alves (2019), é preciso observar softwares e ferramentas de inteligência artificial
considerando o seu processo de criação, o qual engloba aspectos do seu criador (ou
desenvolvedor) e pode representar, por meio das características do algoritmo, situações
advindas da sociedade, como valores pessoais ou de um determinado grupo, preconceitos e
compreensões sociais que representam os interesses, visões e cultura de quem desenvolveu o
software ou desenhou o algoritmo.
Gillespie (2018) diz que os algoritmos representam um papel fundamental em vários
processos contemporâneos, incluindo o acesso a informação, uma vez que algoritmos de
ferramentas de busca fazem a seleção das informações a serem retornadas aos usuários
de acordo com o que ele identifica como de interesse do indivíduo que está buscando
informação.
Para Alves (2019), os algoritmos trabalham com o mapeamento da realidade para que
esta seja aplicada em alguma situação computacional. Nesse contexto, os desenvolvedores
ou programadores acabam criando mapas do mundo a partir de suas próprias percepções,
inserindo esses mapas no processo de criação de algoritmos, os quais, posteriormente, serão
a base de funcionamento de vários artefatos tecnológicos utilizados na sociedade.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 165

APRENDIZAGEM DE MÁQUINA
Os algoritmos refletem uma demanda importante em selecionar informação, cada vez mais
relevante e crucial para a participação social. As ferramentas computacionais deixaram de
ser instrumentos para assumir uma função primária da expressão humana (GILLESPIE,
2018). Um algoritmo descreve uma relação técnica, uma forma de comunicação entre o
interesse humano e uma máquina. No entanto, essa relação entre homem e máquina não
tende a ser meramente técnica (TOMAZ, 2018).
De forma geral, essa relação consiste em uma simbiose homem-máquina potencializada por
dados cada vez mais acessíveis, métodos estatísticos capazes de lidar com dados dinâmicos
e um aumento de poder computacional (LANTZ, 2013). Esse ambiente computacional
propicia dar sentido a dados complexos. É isso a que a aprendizagem de máquina se propõe,
ao aliar as condições ambientais favoráveis à capacidade de processamento, desenvolvimento
avançado de linguagens de programação, como o R e o Python, além do uso de modelos
estatísticos capazes de aprender, ou seja, que são inteligentes.
Lantz (2013) descreve uma máquina que aprende como uma máquina que pode ser
representada por um algoritmo, capaz de, pela experiência, melhorar o desempenho
em futuras experiências. Essa capacidade transforma dados em conhecimento ativo. Os
algoritmos de aprendizagem recebem uma carga de dados e, a partir deles, conseguem
tomar decisões que melhor classificam, discriminam e revelam informações que antes não
poderiam ser obtidas.
A máquina de aprendizagem não cria dados, nem varre todos os possíveis dados, ela aprende
os padrões dos dados disponíveis para treinamento. É uma forma similar de aprendizagem
à dos humanos, com a vantagem da capacidade de processamento dos dados. Os dados são
suficientes quando o conhecimento abstrato pode ser utilizado em futuras ações (LANTZ,
2013).
Os dados utilizados nesses algoritmos foram alterados, sendo potencializados pela Web 2.0,
dando lugar aos dados massivos em uma realidade de Web 3.0 (KOO, 2009). O mundo está
mais colaborativo e comunicativo, em parte, impulsionado pelas redes sociais. O crescimento
exponencial de artefatos móveis, jogos e o amplo acesso à Internet, possibilitaram a geração
de dados que representam intimamente cada indivíduo.
Gillespie (2018) salienta as informações conhecidas sobre um usuário de tecnologias. O
conhecimento que pode ser acumulado com uma simples busca na Internet revela muito
da personalidade, desejos e perfil de consumo do indivíduo. Os algoritmos inteligentes
aprendem com esses dados, a ponto de indicar para o usuário o que pode ser relevante para
ele.
É óbvio que há um vasto campo de estudo sobre os efeitos dessa relação homem-máquina
sob os âmbitos culturais, econômicos e éticos. Porém, essas tecnologias disruptivas permitem
vislumbrar que a análise preditiva de dados possa estimular a participação social e contribuir
166 Tecnologias e Sociedade

na democratização do acesso à informação, sendo estas demandas tão importantes para a


Gestão Social (PINHO; SANTOS, 2015).
Ao fazer uso de algoritmos que aprendem, os dados abertos podem ser mais bem
contextualizados para possibilitar uma melhor compreensão da complexidade social e
definir um melhor curso de ação. Assim, ao extrair dados de redes sociais, a tecnologia
vigente pode trazer impactos diversos nos negócios contemporâneos.
Portanto, o uso de algoritmos inteligentes permite observar uma realidade complexa,
aprender os padrões dessa realidade, para, então, propor um modelo simplificado que faça
sentido, que permita uma aplicação prática, uma alteração do status quo, uma decisão melhor
sobre determinada questão (LANTZ, 2013). Quando usado para fins de desenvolvimento
social, há uma ampla gama de aplicações já conhecidas, mas tantas outras que podem surgir.

POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO DAS TEMÁTICAS DA TECNOLOGIA E


DA APRENDIZAGEM DE MÁQUINA COM A GESTÃO SOCIAL
No universo da Gestão Social, está consolidado que a construção social da tecnologia é
coletiva. Sob uma perspectiva de gestão, há uma compreensão de que as tecnologias
impactam a vida dos indivíduos e das organizações. O que buscamos compreender é a
dimensão desse impacto e como esse impacto tem tomado diversas formas ao longo do
tempo. A Figura 1 a seguir busca trazer algumas possibilidades de integração entre essa
nova abordagem tecnológica com as demandas atuais da Gestão Social.
Figura 1 - Uso da tecnologia no campo da gestão social

Fonte: Elaborado pelos autores, 2020.


© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 167

Ao avaliar as demandas atuais da Gestão Social, vislumbra-se que as tecnologias


apoiem a formação de redes, principalmente em comunidades, pequenas cidades
e locais que necessitam desenvolver nos indivíduos um senso de pertencimento,
um olhar não apenas emotivo, mas, também, de enxergar um potencial para
desenvolvimento profissional. As plataformas de comunicação, cada vez mais de
baixo custo, possibilitam a organização de indivíduos com interesses em comum e
facilitam novas formas de organização do trabalho.
Por outro lado, um dos desafios da Gestão Social reside na formação de redes
colaborativas. De uma perspectiva macro, resultaria em um sistema nacional
de políticas públicas e, quando diminuímos a abrangência, são aproximados os
saberes e práticas sociais que têm objetivos comuns. Estar presente no meio digital,
principalmente nas redes sociais, fazendo parte de uma rede com indivíduos e
instituições com objetivos em comum, pode proporcionar mais aprendizado,
transparência e facilidade na geração de dados.
Estar presente nos meios digitais, também garante maior participação da sociedade civil na
promoção de políticas públicas, os cidadãos têm a oportunidade de serem mais proativos
e engajados. Isso dá um senso de pertencimento àquele indivíduo, porque ele participa
da construção, da reforma e das ações de políticas públicas. Entre tantos benefícios, há
potencialidades já iniciadas, como a criação de repositórios e observatórios, buscando reunir
informações relevantes, não apenas para documentar, mas para transmitir o conhecimento
das ações sociais praticadas neste país continental.
Uma outra potencialidade reside no uso da tecnologia para ampliar e facilitar a coleta de
dados, o que permite avaliar melhor políticas públicas já implementadas e permite propor
melhores políticas públicas, pautadas em necessidades reais e atualizadas da população a ser
assistida. Os projetos sociais podem ser propostos com mais foco, pois se conhece melhor
seu público-alvo. Por isso, o uso de tecnologias acelera projetos sociais.
Sob um ponto de vista técnico, os conhecimentos das demandas atuais da Gestão Social,
bem como a perícia em práticas de gestão, não constituem toda a gama de conhecimento
necessária. O fazer social é um trabalho multifacetado e que, normalmente, requer o esforço
de equipes multidisciplinares. A perspectiva técnica atual em tecnologia exige conhecimento
de estatística e programação, para conduzir modelos estatísticos de inteligência artificial, bem
como adotar técnicas de aprendizagem de algoritmos. A extração de dados em redes sociais,
sendo mais um elemento técnico, traduz-se num aumento de qualidade da informação, e
é o uso dessas informações que nos permite mensurar indicadores sociais e, a partir desses,
tomar decisões melhores. Continuando esse fio, garante-se eficiência nos recursos utilizados
e a possibilidade de medir o impacto de uma ação ou de uma tecnologia social.
Apesar dos benefícios diversos que o uso da tecnologia pode proporcionar, há dilemas a
serem discutidos e teorizados, os quais têm seu lugar no campo da Gestão Social. Como
discussão geral, o debate sobre o acesso desigual à Internet no Brasil, podendo ser mais uma
168 Tecnologias e Sociedade

causa de exclusão social e desigualdade, e a proliferação e impacto das fake news, são temas
urgentes, os quais envolvem desde o uso consciente da informação até a consolidação de
comportamentos e padrões já estabelecidos, representados por exemplo pela Lei de Acesso
à Informação (BRASIL, 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As redes potencializadas pelas tecnologias podem proporcionar uma melhor abordagem de
criação de valor local e senso de pertencimento a um determinado território. Indo além, a
formação de redes promove a difusão do conhecimento e a possibilidade de adotar melhores
práticas na Gestão Social. Tecnologias disruptivas e com rápido crescimento podem auxiliar
fortemente o campo da Gestão Social no que se refere à formação de redes colaborativas.
Este ensaio buscou apresentar as convergências entre o estudo da relação homem-máquina
com o campo da Gestão Social. As possibilidades de integração suscitam e clamam pela
atuação universitária, sob a égide do tripé: ensino, pesquisa e extensão. Também clama
por uma modernização da máquina pública no que se refere ao uso de tecnologias para
beneficiar a gestão de políticas públicas. Também clama por estudos futuros que mostrem as
anomalias, os dilemas éticos e morais que o uso da tecnologia pode gerar, bem como o uso
dos dados por parte das grandes corporações.
Dessa forma, a linha de pesquisa de Tecnologias e Redes Colaborativas é voltada para o
aprofundamento em aplicações práticas do uso da tecnologia na área de Gestão Social,
dando ênfase a redes colaborativas. Essas aplicações práticas são aderentes a quem busca
conhecimentos básicos em análise preditiva de dados e em extração de dados em redes
sociais, aplicados em linguagens de programação como R e Python. O conhecimento técnico
avançado é voltado para a formação de equipes multidisciplinares, cuja equipe é formada
por gestores sociais, com certo grau de familiaridade com estatística e programação.
O gestor social pode e deve possuir tais conhecimentos para resolver problemas ou propor
soluções na sua área de trabalho, inclusive envolvendo a utilização de tecnologias com maior
aplicabilidade na área. Ao mesmo tempo que o gestor social se abre para novas possibilidades
de criação e uso inovador de uma tecnologia social, ele também fortalece a participação
democrática na construção de programas sociais, abre caminhos para ressignificar ou
desenvolver um território e contribui para a área de Gestão Social na formação de redes
colaborativas.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: out. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 169

REFERÊNCIAS
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Rosa. Fundamentos da ciência da computação 2 [recurso eletrônico]. Ponta Grossa: Atena
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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - A era da informação: economia, sociedade e
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170 Tecnologias e Sociedade

WINNER, Langdon. “Do artifacts have politics?”. In: WINNER, Langdon. The whale
and the re-actor - a search for limits in an age of high technology. Chicago: The University
of Chicago Press, 1986.

Fernando Doutor em Administração na área de métodos quantitativos e informática


Antonio de pela Universidade de São Paulo (FEA-USP), mestre e bacharel em
Melo Pereira Administração pela UFRN. Atualmente, é professor efetivo da Escola de
Lhamas Administração da UFBA. Tem interesse na área de estatística aplicada à
gestão.

Rodrigo Muller Doutor em Tecnologia e Sociedade (UTFPR), Mestre em Ciência, Gestão


e Tecnologia da Informação (UFPR), Especialista em Metodologia da
Educação para o Ensino Superior (OPET), Bacharel em Secretariado
Executivo (UNIOESTE) e Graduado em Análise e Desenvolvimento
de Sistemas (UNINTER). Atualmente, é professor adjunto na Escola de
Administração da UFBA e tem interesse nas áreas de redes de conhecimento
e tecnologia e sociedade.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 171

Foto: Kleber Moitinho


172 Habilidades Sociais e Gestão Social

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.173-185
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.38092

Habilidades Sociais e Gestão Social: possibilidades


nas áreas de pesquisa, ensino e extensão1
Daniela Campos Bahia Moscon, Ernani Coelho Neto, Fábio Almeida Ferreira,
Fernando Antônio de Melo Pereira Lhamas, Karine Freitas Souza
e Guilherme Marback Neto

Resumo Este artigo propõe situar a temática das Habilidades Sociais (HSs) entre
os interesses de ensino, pesquisa e extensão do campo da Gestão Social
(GS). Mediante a discussão conceitual sobre o fenômeno das HSs e de suas
repercussões sobre o bem-estar e sobre o processo de desenvolvimento local,
busca-se estabelecer a pertinência e relevância do tema para estudantes,
gestores e pesquisadores da área. Apresenta-se e comenta-se os principais
desafios teóricos e metodológicos e propõe-se uma agenda de pesquisa,
ensino e extensão e possibilidades de atuação prática.

Palavras-chave Habilidades Sociais. Desenvolvimento Local. Gestão Social.

Abstract This article proposes to situate the theme of Social Skills (SS) among
the interests of teaching, research and extension in the field of Social
Management. Through conceptual discussion on the phenomenon of SS and
its repercussions on well-being and local development process, we seek to
establish the pertinence and relevance of the theme for students, managers
and researchers in the area. The main theoretical and methodological
challenges are presented and commented, and a research agenda and
possibilities for practical action are proposed.

Keywords Social Skills. Local Development. Social Management.


174 Habilidades Sociais e Gestão Social

INTRODUÇÃO
O tema das Habilidades Sociais (HSs), a despeito de sua consolidação no universo
acadêmico, ainda é cercado de desafios, em especial quanto a sua delimitação conceitual e
percursos metodológicos apropriados para sua aplicabilidade, notadamente no campo do
mundo do trabalho e das organizações. Apesar das controvérsias, Caballo (1996) apresenta
um conceito abrangente que contribui para um entendimento amplo do fenômeno. O autor
considera que:
O comportamento socialmente hábil é esse conjunto de comportamentos emit-
idos por um indivíduo em um contexto interpessoal que expressa sentimentos,
atitudes, desejos, opiniões ou direitos desse indivíduo de modo adequado à
situação, respeitando esses comportamentos nos demais, e que geralmente re-
solve os problemas imediatos da situação enquanto minimiza a probabilidade
de futuros problemas (CABALLO, 1996, p. 6).

Para este autor, uma resposta socialmente hábil é produto de condutas encadeadas que vão
desde receber corretamente os estímulos a passar por um processamento cognitivo flexível
que permita avaliar as possibilidades de resposta, selecionar a melhor, e emitir de forma
apropriada a opção escolhida. Vale destacar que a escolha das respostas consideradas mais
apropriadas varia de acordo com o contexto, o qual é mutável, exigindo, portanto, adaptações
contínuas. Dentre outros aspectos pertinentes, baseiam-se nas normas sociais vigentes
que nos impõem quais atitudes e comportamentos são considerados normais, aceitáveis e
esperados em uma situação social específica (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
Em consonância com essa ideia, Del Prette e Del Prette (2018) destacam o fato das HSs
serem comportamentos sociais valorizados em determinada cultura, os quais provavelmente
gerarão resultados favoráveis tanto para seu emissor quanto para o grupo ao qual pertence
e à comunidade de forma geral. Além disso, os autores destacam a importância do conceito
de competência social, definindo-o como focado na avaliação do desempenho e resultados
alcançados por um indivíduo ao executar uma tarefa interpessoal, levando em conta os
objetivos dessa pessoa, a situação e a cultura, bem como critérios instrumentais e éticos
(DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2018).
No que se refere especificamente ao mundo do trabalho, as HSs – competências sociais ou
a capacidade de interagir efetivamente com os outros – são cada vez mais importantes para
as organizações, à medida em que mais arranjos baseados em equipes são usados e mais
empregos orientados a serviços são implementados (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
No contexto de pós-pandemia do COVID-19, os desafios tendem a crescer e, possivelmente,
haverá uma drástica transformação nas formas de organização da economia e do próprio
trabalho. Assim, a ideia de adaptação a um contexto mutável exigirá ainda mais flexibilidade
cognitiva e comportamental para que o sujeito possa emitir as respostas desejáveis frente ao
desconhecido.
O mundo pós-pandemia trará, certamente, desafios econômicos e sociais para os territórios
e suas populações na medida em que as incertezas deterioram a capacidade de investimento
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 175

do setor privado e limitam o espaço de manobra do setor público. O quadro aponta para
o recrudescimento de problemas antigos e para o surgimento de novos. A superação ou a
mitigação dos aspectos mais graves desse cenário demandará formas não tradicionais de
mobilização e gestão dos recursos e dos esforços coletivos. A Gestão Social (GS) tem muito
a contribuir nesse sentido, já que se trata da gestão do desenvolvimento social que ocorre no
espaço de articulação do território e de suas interorganizações (FISCHER, 2002).
A GS é fundamentalmente uma gestão das relações. Desse modo, nosso propósito
aqui é apresentar os pontos de convergência entre esses dois campos de estudos e suas
possibilidades de aplicações no ensino, na pesquisa e na extensão comunitária. Nosso foco
é prioritariamente voltado para o papel da universidade no desenvolvimento de HS que
favoreçam as iniciativas de promoção de melhoria de bem-estar social, em especial, nos
âmbitos local e regional.
Para alcançar esses objetivos, além desta breve introdução, na próxima seção, iremos
conceituar e caracterizar as HSs, e, em seguida, iremos relacionar tais conceitos com o
campo da GS. Por fim, apontaremos para uma proposição de agenda para a pesquisa, o
ensino e extensão. A última seção destina-se às considerações finais.

AS HABILIDADES SOCIAIS COMO CAMPO DE ESTUDO


O campo das HSs é amplo e tangencia discussões acerca de questões relacionadas a emoções,
comunicação, motivação, negociação, dentre outros fenômenos correlatos. A Psicologia, por
exemplo, vem se dedicando, especialmente nos últimos 30 anos, ao estudo e desenvolvimento
de Treinamento de Habilidades Sociais (THS) (LOUREIRO, 2013; MURTA, 2005) como
alternativa importante tanto para a prevenção quanto para o tratamento de transtornos
mentais. Segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS (WHO, 1999), as HS estão
entre os principais preditores de saúde mental e têm sido cada vez mais implementados
programas que possibilitem seu desenvolvimento desde a infância. Para Murta (2005), é
notório que déficits em HS estão correlacionados com delinquência, transtornos emocionais
e psíquicos diversos, assim como com fraco desempenho acadêmico e profissional.
Não há, entretanto, um conceito absoluto de HS, já que se trata da escolha das respostas
consideradas mais apropriadas de acordo com o contexto e do que é socialmente aceito e
desejável (para si e para as relações) naquela situação. Tal desejabilidade de respostas está
relacionada ao grau de eficácia que o sujeito é capaz de obter.
Um comportamento socialmente hábil poderia, portanto, ser definido pela eficácia de sua
função em uma situação, o que reforçaria a ideia de que o sujeito com HS demonstra ter
uma competência social. Em relação à tal eficácia, pode-se observar a eficácia nos objetivos,
eficácia nas relações e eficácia no respeito próprio. Isso significa que, para ser considerado
eficaz, ele precisa ter alcançado os objetivos desejados, podendo variar de uma situação para
outra. Embora experimentos controlados indiquem ser mais provável que determinados
comportamentos sejam mais eficazes no alcance de objetivos, uma resposta competente
é, normalmente, aquela que as pessoas consideram apropriada para um indivíduo em uma
176 Habilidades Sociais e Gestão Social

situação específica. Além disso, para ser considerado hábil, o comportamento deve manter
ou melhorar os relacionamentos, o próprio respeito e a autoestima do emitente (CABALLO,
1996). Assim, de modo geral, também deve permitir ao indivíduo a oportunidade de
expressar sentimentos positivos e negativos em situações interpessoais sem perder o reforço
social (BEHESHTIFAR; NOROZY, 2013).
Segundo Caballo (1996), as HSs dividem-se em três tipos de elementos componentes:
cognitivo, fisiológico e comportamental. Entre os elementos cognitivos, o autor destaca o
conhecimento de qual seria a conduta hábil apropriada, o conhecimento de costumes sociais
próprios daquela cultura, o conhecimento dos diferentes sinais de resposta, a empatia e a
capacidade de solução de problemas. Além disso, as pessoas podem realizar transformações
cognitivas de estímulos, situações, ambiente etc., centrando-se em determinados aspectos,
de modo que tal categorização seletiva muda o impacto que o estímulo ou a situação exerce
sobre a conduta. Assim, esquemas mentais disfuncionais podem prejudicar a forma como o
sujeito interpreta o ambiente e como se comporta diante dele.
Os componentes fisiológicos foram os que, segundo Caballo (1996), receberam menor
atenção por parte das pesquisas sobre HS. Isso provavelmente se deve à dificuldade de
coletar dados referentes à pressão sanguínea, batimentos cardíacos, respostas eletrodérmicas,
entre outros em estudos mais relacionados às ciências sociais.
Já os componentes comportamentais, por seu turno, são os que receberam mais atenção e
têm maior número de estudos voltados para o seu entendimento. Podem ser avaliados a
partir de uma perspectiva molar, mais geral e mais dependente de interpretações subjetivas
(habilidades gerais como a defesa dos direitos ou a capacidade de atuar com eficácia em
entrevistas de emprego) ou molecular, mais objetiva e estática (contato visual, volume da
voz, postura, entre outros) (CABALLO, 1996). Nesse sentido, são também os que mais
facilmente podem ser avaliados como competentes do ponto de vista social.
Tanto os aspectos mais amplos (molares) quanto os mais específicos (moleculares) podem
ser alvo de THS nos níveis primário, secundário ou terciário, de acordo com os objetivos
que se pretende alcançar. Intervenções primárias são direcionadas a grupos ou pessoas
que precisam desenvolver HS como fator de proteção a riscos, ainda que não tenham
sido acometidas por problemas interpessoais. Intervenções secundárias são voltadas para
grupos ou pessoas já sob efeito de fatores de risco para problemas interpessoais, tais como
crianças agressivas criadas por pais com problemas, em práticas educativas parentais. Já as
intervenções terciárias têm por objetivo minimizar consequências nos casos em que já existe
um déficit acentuado em HS (MURTA, 2005).
A OMS (WHO, 1999) propõe programas de Ensino de Habilidades de Vida, os quais
consistem em desenvolver capacidades emocionais, sociais e cognitivas em algumas
áreas, dentre as quais as competências comunicacionais e interpessoais, assertividade,
autoconhecimento e empatia. Ainda segundo a OMS, o foco no desenvolvimento de
competências enquanto promoção de características positivas e adaptativas configura-se
preditor importante na saúde individual e coletiva (LOUREIRO, 2013).
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 177

Portanto, nota-se que as HSs são comportamentos bastante ricos e promissores para o
ambiente de trabalho e social do sujeito, possibilitando que este obtenha um bom manejo,
assertividade e possibilidade de resolução de problemas com melhor êxito. Desta forma, vê-
se a importância dos estudantes e profissionais se engajarem em propostas e oportunidades
que possibilitem um maior preparo na aquisição de comportamentos habilidosos que
facilitem suas relações sociais e sua percepção de bem-estar subjetivo.

AS HSS E GS – PONTOS DE CONTATO


A Gestão Social (GS), campo de estudo de história recente no nosso país, não deve
ser tomada a partir de um conceito único ou consensual, pois se trata de algo ainda em
construção (CANÇADO; TENÓRIO; PEREIRA, 2011). Portanto, cabe aos autores deste
trabalho esclarecer sobre em qual perspectiva se apoiam. Usamos aqui a visão de Fischer
(2002), conforme já mencionado, em que a GS é descrita como a gestão do desenvolvimento
social onde o espaço de articulação é o território e suas interorganizações.
Entretanto, nas diversas perspectivas em debate, as estruturas e as atividades da GS, assim
como os papéis necessários ao exercício profissional e político nesse campo, estão ligadas
ao tema das HSs em pelo menos um aspecto: as relações humanas. A perspectiva da GS
salienta o contexto formado pela ação coletiva, pelas instâncias de articulação e governança
local e pelos processos de cooperação para a superação dos problemas sociais.
Há três camadas evidentes na relação entre a GS e as HSs. Na primeira, o fenômeno da
colaboração é o elo. A GS é uma técnica e uma prática social voltada para mobilização,
organização, participação de esforços coletivos entre sujeitos que buscam transformar uma
dada realidade local de forma interdependente, em regimes variados de colaboração. A
colaboração entre as pessoas envolvidas é sempre complexa e deve resultar em engajamento
e integração para tornar possível a solução dos problemas comuns.
Uma variável importante para o fortalecimento dos processos de colaboração é a capacidade
dos envolvidos de entender e navegar ambientes sociais complexos, lidar com conflitos e com
a necessidade de adequação de interesses, mediar a construção coletiva de alternativas para
os problemas locais e trabalhar para a construção de visões compartilhadas. Resumindo, na
GS, a ampliação do repertório de HS dos agentes sociais envolvidos com o desenvolvimento
local é uma das formas de qualificar a ação coletiva e fortalecer a colaboração, especialmente
quando entendemos, conforme salientado, que os comportamentos mais habilidosos são
também os mais adaptativos.
A segunda camada salienta a correlação entre o repertório de HS de populações e índices
de saúde mental, bem-estar, sucesso profissional e prosperidade material. Um levantamento
comparando dados de estudos longitudinais realizados em 9 países (OCDE, 2015)
identificou que as competências socioemocionais – as quais se aproximam do conceito de
habilidade social – tais como perseverança, autoestima e sociabilidade têm um impacto
relevante para o futuro das populações pesquisadas.
178 Habilidades Sociais e Gestão Social

Os resultados coletados até agora desenham um cenário comum e bem caracterizado:


disseminar esse tipo de habilidade entre jovens e crianças contribui para a qualidade de vida
individual e para o progresso social e econômico. Portanto, para a GS, as HSs devem ser um
ponto de atenção já que são, ao mesmo tempo, mecanismos para a melhoria da perspectiva
de vida dos sujeitos, instrumentos para o desenvolvimento territorial e oportunidade
de transformação social. Segundo a OMS (WHO, 1999), as HSs estão entre os mais
importantes preditores de qualidade de vida e saúde mental individuais e coletivos.
A terceira camada está ligada à formação profissional de pessoas aptas para trabalhar no
campo da GS. Um esquema conceitual bem difundido sobre os papéis dos gestores ressalta
seus componentes decisórios, informacionais e interpessoais (MINTZBERG, 1973).
Embora concebido com base na atuação do executivo da iniciativa privada, entendemos que
o esquema é válido para outros contextos de atuação do gestor, inclusive o da GS. Os papéis
do gestor descritos por Mintzberg (1973) estão, de todas as formas, vinculados ao universo
das HSs. O componente decisório está relacionado ao processo de solução de problemas,
os quais, nas organizações e territórios, sempre têm forte traço coletivo. O componente
informacional é, por natureza, um trabalho comunicativo, de ligação entre pessoas e
mediação de interesses. Por fim, o componente interpessoal é a própria materialização da
agenda de pesquisa das HSs.

POSSIBILIDADES NAS ÁREAS DE PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO


A aproximação entre o campo da GS e das HSs tem muito a oferecer na forma de intervenção
sobre a realidade social e em oportunidades de pesquisa, ensino e extensão universitária,
aspectos sobre os quais o corrente artigo irá se deter.
No universo de pesquisa, as HSs podem focar em estudantes, gestores sociais, organizações
e territórios. No que tange aos estudantes, já existem diversos estudos, como os de Tseng,
Yi e Yeh (2018) e o de Brink e Costigan (2015), que abordam HS, porém, sem um foco
específico nos que pretendem atuar na área de GS e nas especificidades desse setor. Isso vale,
também, para aqueles que já atuam como gestores sociais, pois muitas pesquisas, como as de
Behestifar e Norozy (2013) e de Zatkova e Polacek (2015), tratam das HSs em contextos
de trabalho, porém, nenhuma leva em conta o conceito de GS e as peculiaridades para o
gestor dessa área. Cabe então, a partir disso, que se investigue qual a relevância das HSs para
os gestores sociais, quais delas são essenciais às suas práticas profissionais e como é possível
desenvolvê-las considerando as peculiaridades dessa área de atuação.
Acerca das organizações, há, novamente, uma vasta literatura que foca nas HSs, como Dean
(2017) e Paksoy, Soyer e Çalik (2017). No entanto, é necessário que se investigue essas HSs
nas organizações sob a ótica da GS e isso implica, por um lado, num maior foco naquelas
que têm caráter social, buscando compreender se possuem requisitos de HS que lhes sejam
específicos.
No que diz respeito às HSs nos territórios e suas interorganizações, parece haver uma
maior escassez de pesquisas que os tomem como unidade de análise, existindo aí um novo
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 179

e vasto campo para investigações. Flórida (2011), por exemplo, indica que as HSs crescem
em importância à medida em que economias locais se tornam maiores e mais complexas.
Para ele, as HSs concentram-se e são uma marca das grandes cidades que prosperam por
conta disso. Essa é uma temática que merece ser ampliada, não só pela aparente escassez de
publicações, mas por conta do papel ativo que o gestor social possui no desenvolvimento
dos territórios nos quais atua. Ainda no âmbito da pesquisa, é preciso que se investigue as
conexões conceituais entre as HSs e a GS, uma vez que o estabelecimento de interseções
entre elas e outros campos de estudos é importante e necessário (DEL PRETTE; DEL
PRETTE, 2010).
Em relação ao ensino, a formação universitária deve levar em conta as competências analítica,
instrumental e social, mas, no geral, o tema das HSs não faz parte das disciplinas ofertadas,
a despeito da sua crescente valorização pelo mercado de trabalho e pelos estudantes. Tais
fontes de pressão, externa e interna, podem estimular a inserção dessa temática nos currículos
das universidades (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2003).
Essa parece ser a realidade nos cursos de GS, sendo, dessa forma, imprescindível que a
discussão teórica e a prática das HSs sejam incorporadas às disciplinas diversas nesse
campo, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Essa inserção pode ocorrer através da
criação de disciplinas específicas e na incorporação dessa temática em outras já existentes.
Disciplinas específicas podem, por exemplo, tratar de: história, conceito e tipologia das
HSs e sua importância para a GS; o contexto territorial e o desenvolvimento das HSs;
HSs requeridas ao gestor social em diferentes contextos de trabalho e interação; HSs
demandadas em organizações sociais e públicas; HSs e de comunicação para o gestor social;
HSs para negociações e mediação de conflitos em territórios. Disciplinas não específicas,
mas correlatas à temática, podem incorporá-las como um tópico, como seria o caso de uma
disciplina de comunicação que discutisse o conceito de HS e o relacionasse às discussões
sobre interação interpessoal.
Por outro lado, disciplinas nos cursos de GS não diretamente correlatas às HSs não precisam
discuti-las, mas podem exercitá-las e qualificá-las em situações diversas ao longo de um
semestre. Podem, por exemplo, avaliar as HSs dos alunos ao apresentarem um seminário
sobre GS e contemporaneidade ou ao longo da preparação de um projeto em grupo sobre
avaliação de políticas públicas. Tal estratégia permitiria que os alunos desenvolvessem suas
HSs ao longo de todo o curso de GS e, para tanto, seria necessário que disciplinas sobre HS
(ou que as discutam) fossem ministradas, preferencialmente como componentes no início
da graduação ou da pós-graduação, para prover os alicerces que permitiriam a sua avaliação
ao longo do curso, facilitando, inclusive, uma melhor adaptação à universidade (LIMA;
SOARES; SOUZA, 2019; SOARES; DEL PRETTE, 2015) do aluno de GS.
Dentro dessa ótica, seria necessário, também, que os professores dos cursos de GS fossem
capacitados, o que permitiria que acompanhassem o desenvolvimento das HSs em suas
disciplinas. A importância do desenvolvimento dos docentes nessa temática é demonstrada
por Del Prette et al. (1998) ao examinarem os efeitos de uma intervenção sobre professores
não universitários. Já indicativos de quais temáticas seriam relevantes na capacitação dos
180 Habilidades Sociais e Gestão Social

professores podem ser encontrados em Vieira-Santos, Del Prette e Del Prette (2018). Por
fim, vale ressaltar que tais propostas devem contemplar questões conceituais e práticas, de
modo similar ao conduzido por Del Prette e Del Prette (2003), para que se coadunem com
os princípios críticos e de intervenção que são típicos da GS.
As atividades de extensão podem assumir as modalidades projeto, curso, evento, trabalho
de campo, prestação de serviço e publicação e outros produtos acadêmicos (UFBA, 2014).
Existe, portanto, uma vasta gama de possibilidades de conexão entre as HSs e a GS. Pode-
se, por exemplo, incorporar elementos das HSs em projetos de desenvolvimento territorial,
publicações de manuais diversos voltados ao campo social ou desenhos de políticas públicas
voltadas para a ampliação desses repertórios nos territórios. No entanto, a maior interseção
parece estar presente na formulação de treinamentos para desenvolver as HSs dos gestores
sociais.
Para Del Prette e Del Prette (2018), um programa de treinamento de habilidades sociais
orientado para a competência social deve englobar atividades planejadas para estruturar
a sua aprendizagem e incluir dentre os seus objetivos: o aprendizado de novas HSs; a
ampliação das que já existem, mas não estão suficientemente desenvolvidas; o aumento
de sua variabilidade; a redução de comportamentos que sejam com elas concorrentes; o
refinamento do discriminar tarefas interpessoais no ambiente social; o pautar-se por valores
de convivência centrados nos direitos humanos; e, finalmente, o desenvolvimento da
automonitoria e do autoconhecimento.
Baseado nesses apontamentos de Del Prette e Del Prette (2018), pode-se afirmar que
os treinamentos em HS focados em gestores sociais (ressaltando que isso vale também
para alunos e professores de GS) devem, primeiro, levar em conta o desenvolvimento de
suas habilidades (e competências) por meio da sua aquisição, ampliação e aumento de
variabilidades, bem como da mudança ou minimização de certos comportamentos que as
impactam. Além disso, o desenvolvimento de valores de convivência pautados pelo respeito
aos direitos humanos coaduna-se a uma tradição humanista da GS e, nesse sentido, esse é
um elemento relevante ao se considerar capacitações em HS focadas neste grupo.
Sob outro ângulo, as capacitações de gestores sociais podem ter um caráter mais geral,
abordando componentes comportamentais, cognitivos e fisiológicos (CABALLO, 1996) ou
até mesmo focar, de maneira separada, em aspectos particulares como a empatia, a escuta e o
feedback, sem, no entanto, perder de vista o seu caráter humanista. Nesse ponto, deve-se ter
em conta que o desenvolvimento de HS de gestores sociais via extensão universitária, para
além do aprimoramento individual, deve considerar, também, o papel multiplicador que será
desempenhado por eles na ampliação das HSs do território. Isso corrobora os argumentos
de Del Prette e Del Prette (2018) quando afirmam que os critérios de competência social
incluem uma dimensão de resultado mais instrumental, focado nos interesses individuais e
outra ética que atende ao interesse dos grupos sociais. Tais treinamentos podem ter como
base manuais tais como o elaborado por Del Prette e Del Prette (2018).
A Figura 1 sintetiza as propostas relativas às aplicações das interseções entre HS e GS nos
campos da pesquisa, ensino e extensão universitária.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 181

Figura 1- Síntese da proposta em relação a ensino, pesquisa e extensão universitária

Fonte: Elaboração própria.

Assim, de acordo com a Figura 1, observam-se possibilidades de uma agenda sustentada


no tripé acadêmico: ensino, pesquisa e extensão. Tal divisão serve a propósitos meramente
didáticos, no sentido de que estes elementos são indissociáveis, e suas ações práticas se
desenvolvem comumente em práxis de ensino vinculadas a atividades de extensão que
contribuem empiricamente para a agenda de pesquisa de forma sucessiva e recíproca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou apresentar uma proposta de agenda acadêmica sobre as confluências
dos temas de HS e GS. Ambos os temas são e foram desenvolvidos em alicerces distintos,
mas que podem se complementar. Para apresentar esta proposta, a base teórica das HSs foi
apresentada, com foco na sinergia entre os dois temas e nas oportunidades que se abrem
a partir daí. Um dos principais pontos de convergência reside no caráter multidisciplinar,
necessitando continuamente de contribuições de diversas áreas de estudo para que as
interseções entre as HSs e a GS se desenvolvam enquanto ramificação dos dois campos de
estudo, contribuindo para o desenvolvimento teórico-conceitual de ambos.
Nesta reflexão sobre as HSs e a GS, cabe afirmar que, a partir da aproximação entre essas duas
temáticas, é possível se desenvolver um campo de investigação e de oferta de capacitação
amplo que abranja estudantes e gestores sociais. Tal proposta possibilita um maior foco na
interação entre HS, GS e Território com vistas a seu desenvolvimento econômico e social.
Nesse sentido, o trabalho avança também em uma perspectiva prática, já que discute a
182 Habilidades Sociais e Gestão Social

formação e a atuação no campo da gestão social, a partir do desenvolvimento das habilidades


sociais.
Salienta-se que o campo da GS é permeado por regionalidades e pelas características
econômicas, sociais e culturais distintas de cada território. O grau de desenvolvimento e
como se apresentam as políticas públicas em uma região exercem grande influência sobre
quais propostas de estudos são mais relevantes e que podem ter maior impacto na sociedade.
A literatura internacional, apesar de agregar atores, por vezes, distintos da realidade brasileira,
oferece uma perspectiva estratégica e parâmetros para avaliar o estágio de desenvolvimento
da GS no país. Possibilita ainda uma identificação de particularidades referentes aos objetos
de estudo e sujeitos da pesquisa, além das contribuições de áreas correlatas. Isso permite
uma melhor compreensão sobre como o tema das HSs se articula com as especificidades da
GS e seus contextos, contribuindo para que possamos avançar na pesquisa nacional.
Vale lembrar que este artigo não esgota a discussão sobre as possibilidades de pesquisa,
ensino e extensão, tendo em vista, inclusive, não apresentar dados empíricos e nem se
tratar de uma revisão sistematizada da literatura disponível sobre os temas. Todavia, enseja
servir como um dos pontos de partida para que tais discussões se ampliem. Deve-se ter em
conta, inclusive, que novos desafios serão colocados à GS pelas mudanças decorrentes da
pandemia do COVID-19, demandando a ampliação dos repertórios de HS a todos os atores
envolvidos. Assim, as propostas aqui descritas são um retrato transversal das necessidades
e possibilidades que se vislumbram quando os dois campos de estudo começam a obter
vantagens nessa confluência.

NOTA
1 Submetido à RIGS em: jul. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

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Daniela Doutora e mestre em Administração pela UFBA (Universidade Federal da


Campos Bahia Bahia), graduada em Psicologia pela mesma instituição, onde atua como vice-
Moscon chefe de departamento e professora Adjunta da Escola de Administração
(EAUFBA). Desenvolve pesquisas nos campos do comportamento humano
no trabalho e da gestão de pessoas. É membro do comitê científico da
Divisão Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho na ANPAD e Editora
Associada da Revista Psicologia, Organizações e Trabalho (rPOT).

Ernani Coelho Graduado em Administração de Empresas, mestre em Administração e


Neto doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade
Federal da Bahia. Foi Vice-Diretor da Escola de Administração da
Universidade Federal da Bahia, onde atua como professor e pesquisador.
Atualmente, é Coordenador do Mestrado Multidisciplinar em
Desenvolvimento e Gestão Social e componente do eixo de economia da
cultura, gestão criativa e turismo e do eixo de habilidades sociais.

Fábio Almeida PhD in Media Studies pela Universidade do Texas em Austin, mestre em
Ferreira Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia, especialista em
Gestão Empresarial pela FGV/ICEF e bacharel em Administração pela
UFBA. Atualmente, é professor da Escola de Administração da UFBA e
professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Gestão Social.
Tem interesse nas áreas de criatividade, indústrias e territórios criativos e
comunicação.

Fernando Doutor em Administração na área de métodos quantitativos e informática


Antônio de pela Universidade de São Paulo (FEA-USP), mestre e bacharel em
Melo Pereira Administração pela UFRN. Atualmente, é professor efetivo da Escola de
Lhamas Administração da UFBA. Tem interesse na área de estatística aplicada à
gestão.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 185

Karine Freitas Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Souza Paulo -PUC/SP. Mestre em Análise Regional pela Universidade Salvador
- Unifacs. Especialista em Arte Integrativa pela Universidade Anhembi-
Morumbi. Possui pós-graduaçōes em Administração de Recursos
Humanos e Gestão de Eventos. Graduada em Secretariado Executivo pela
Universidade Federal da Bahia. Docente no ensino superior desde 1997.
Atual Chefe de Departamento da Escola de Administração da UFBA.
Leciona na Universidade Federal da Bahia desde 2007 e também atua no
mestrado em Segurança Pública, Justiça e Cidadania desde 2017.

Guilherme Professor da Escola de Administração da UFBa. Doutor em Educação pela


Marback Neto UNESP, Mestre em Administração pela UFBa e Bacharel em Administração
de Empresas pela Escola de Administração de Empresas da Bahia. Autor
de diversos artigos e capítulos de livro sobre Gestão Universitária, Avaliação
da Educação Superior e Comunicação Organizacional.
186 Tecnologias e Sociedade

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.187-195
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42145

A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia:


notícias das religiões de matriz africana e os seus
discursos em torno da @cura.da terra1
André Luis Nascimento e Desirée Ramos Tozi

Resumo O objetivo do presente artigo de natureza ensaística é, de modo fotográfico,


compreender como se deram, nos primeiros momentos da pandemia
instaurada, os processos de ação e mobilização social das lideranças religiosas
ligadas às tradições de matriz africana. Que discursos e que práticas sociais
passaram a ser incorporadas nas rotinas religiosas dessas comunidades
tradicionais é o nosso foco de atenção. Como caso empírico, traremos o
relato da experiência de formulação e gestão da campanha @cura.daterra
no instagram e grupos de whatsapp, seus alcances, limitações e potencial
narrativo.

Palavras-chave Gestão Social. Religiões. Pandemia. Religiões de Matriz Africana.

Abstract The purpose of this essay-based article is, in a photographic way, to understand
how, in the first moments of the established pandemic, the processes of
action and social mobilization of religious leaders linked to African-based
traditions took place. What speeches and social practices started to be
incorporated into the religious routines of these traditional communities is
our focus of attention. As an empirical case, we will report on the experience
of formulating and managing the @ cura.daterra campaign on instagram and
whatsapp groups, their scope, limitations and narrative potential.

Keywords Social Management. Religion. Pandemic. African-Based Religions.


188 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia

INTRODUÇÃO
As religiões são expressões da sociabilidade humana e como tal, emitem discursos capazes de
alimentar as motivações dos seus fieis, seguidores e simpatizantes. Se, em tempos normais, as
religiões já cumprem a função social de nortear a espiritualidade e a conduta dos indivíduos,
em tempos de agonia, esse papel amplifica-se de tal modo que elas terminam por cumprir a
função de verdadeiros artefatos sociais capazes de auxiliar coletividades nos seus processos
de tomada de decisão e enfrentamento dos desafios postos.
Seja através do enfrentamento, seja através da resignação, a força e o alcance dos dogmas e
dos discursos de dada religião guardam em si o poder de mobilização social com o potencial
de animar ações coletivas em perspectiva multiterritorial e multiescalar. Em sendo assim,
não é exagerado dizer que as religiões praticam gestão social em perspectiva planetária,
mobilizando atores em rede, através de práticas articuladas que passam por distintos âmbitos,
tais como estimas, afetos, movimentos, sociabilidades, economicidades, políticas e poder.
As religiões com os seus símbolos e ritualísticas, para além da expressão da fé humana,
guardam em si performances que mobilizam, emocionam e constroem arquétipos a serem
seguidos. Nestes termos, as religiões e suas estratégias de gestão social não podem ser
negligenciadas quando nos está posto o desafio de compreender como determinados grupos
identitários enfrentam determinadas situações postas à sociedade, de modo geral.
As narrativas religiosas são, assim, expressões de dadas racionalidades que se, em tempos
normais, já configuram um campo em disputa, em tempos de exceção, essas disputas são mais
amplificadas e mais audíveis aos olhos do observador social. Como não se emocionar com
o discurso do Papa Francisco diante de uma praça vazia, numa madrugada fria, chorando
os mortos da COVID-19 e evocando católicos e não católicos para práticas, reflexões e
o exercício da empatia? Como não se indignar com lideranças de distintas religiões que,
mesmo em meio ao clamor científico para o isolamento social, ainda assim, insistiam em
incentivar seus fiéis a furar o dever de quarentena para acompanhar os atos religiosos?
Como não se comover com as mobilizações religiosas em torno da solidariedade em prol
dos mais necessitados nesse momento em que, para além da pandemia, a fome também se
fez algoz? As religiões são assim. Mobilizam paixões, comovem corações e inspiram atores
sociais em movimento.
O objetivo do presente artigo de natureza ensaística é, de modo fotográfico, compreender
como se deram, nos primeiros momentos da pandemia instaurada, os processos de ação
e mobilização social das lideranças religiosas ligadas às tradições de matriz africana. Que
discursos e que praticas sociais passaram a ser incorporadas nas rotinas religiosas dessas
comunidades tradicionais é o nosso foco de atenção. Como caso empírico, traremos o relato
da experiência de formulação e gestão da campanha @cura.daterra no instagram e grupos
de whatsapp, seus alcances, limitações e potencial narrativo.
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RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA E A GESTÃO SOCIOTERRITORIAL EM


TEMPOS DA NOSSA ANTIGA NORMALIDADE ANORMAL
As comunidades tradicionais de terreiros são um modo de organização social peculiar,
fruto de um processo de adaptação de cultos africanos em um mesmo território. Nesse
sentido, os terreiros configuram-se em uma verdadeira tecnologia social eminentemente
brasileira, tecnologia que trouxe como inovação simbólica a recriação da família ancestral
separada pela diáspora negra em microterritórios que contêm a simbolização de múltiplas
territorialidades, regionalidades e identidades deixadas em África.
Nesse sentido, o terreiro é, em verdade, a expressão de um modo de vida organizacional
permeado a todo tempo pelos valores que compõem a noção de gestão social. A família de
santo2 foi assim, ao longo dos tempos, se constituindo em uma estratégia de sobrevivência
das populações negras, sejam aos processos de escravidão que perduraram até o final século
XIX, sejam aos processos de racismo estrutural e estruturante muito próprios do Brasil da
pós-abolição.
Nesse contexto, os terreiros bem souberam atravessar o século XX como uma alternativa
de inclusão social e exercício da solidariedade negra3. Não sem razão, para Sodré (1988, p.
19), os terreiros configuram-se como a “forma social negro brasileira por excelência, porque
além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou
potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais”.
Experimentar a cidadania em condições desiguais é justamente a condicionalidade que
tornou os terreiros verdadeiros socioespaços relevantes para a manutenção da dignidade
de populações negras nos recantos do país, nos quais as religiões de matriz africana
conseguiram resistir a tantas práticas de intolerância e racismo religioso. Nesses termos,
os terreiros sempre atuaram em contextos de uma normalidade nacional eminentemente
anormal, qual seja, uma sociedade pautada nas desigualdades e na gramática do racismo
estrutural e estruturante.
Os terreiros da cidade de Salvador guardam a memória da ação coletiva negra que se
estabeleceu no campo da religiosidade afrobrasileira, mas que também transbordou para
outros enclaves, tais como, o campo da cultura e da ação política da cidade. Nesse sentido,
advogamos a tese de que os terreiros se constituem verdadeiros lugares de memória, poder
e redes de solidariedade do povo negro da Bahia4. Essa é a razão pela qual os terreiros, para
além de abarcarem suas comunidades religiosas, abarcam também os seus entornos, sejam
eles oriundos de territorialidades físicas, sejam eles oriundos de territorialidades simbólicas,
constituindo-se, assim, em um verdadeiro poder local de alcance inclusive global donde
emergem ações públicas de cunho coletivo.
A ciência das organizações, o campo da administração, seja ela administração geral, seja ela
administração pública (e suas variantes, à exemplo da gestão social), têm muito a aprender
com o universo organizacional dos terreiros e suas formas de realizar a ação coletiva. Esse
capítulo a mais ainda é uma dívida que tanto o mainstream como os estudos críticos carecem
adimplir.
190 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia

RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE


PANDÊMICA – A REINVENÇÃO DAS PRÁTICAS COLETIVAS
O contexto pandêmico criou, para as religiões, de um modo geral, as limitações que são postas
para as práticas sociais presenciais e compartilhadas. Igrejas católicas, templos evangélicos e
terreiros de candomblé, em princípio, tiveram limitações semelhantes no primeiro momento,
qual seja, a impossibilidade de práticas públicas que favorecessem aglomerações sociais.
Todavia, olhando-se de modo mais aproximado, percebe-se que os efeitos da pandemia em
comunidades tradicionais de terreiro se impuseram de modo mais deletério e com contornos
mais dramáticos. A grande questão é que estamos a falar de práticas religiosas pautadas no
convívio comunitário direto, donde o espaço do terreiro é mais do que um espaço apenas de
culto; em verdade, trata-se de um socioespaço de convivência comunitária de uma família
estendida que convive por dias, meses e, até mesmo, por anos a depender dos vínculos que
são estabelecidos.
Nesse contexto, o peso da pandemia para essas comunidades tradicionais foi mais sentido,
na medida em que a ideia de distanciamento social atacou o âmago dessa prática social que
se dá através da experiência coletiva. Nesse sentido, ao se ver interrompido o convívio entre
pares, se interrompe também a experiência de se conviver com os Orixás, Inkisses, Voduns
e ancestrais que se materializam e que convivem por entre as pessoas na coletividade dos
terreiros. Nestes termos, o convívio com o divino materializado é a expressão mais pujante
desse modo de vivenciar essa religiosidade. Nesse sentido, o isolamento social privou os
religiosos de matriz africana do compartilhamento dos espaços de terreiro, algo que precisou
ser mediado por outras estratégias, a fim de se manter a sanidade mental dos membros
dessas irmandades.
A primeira das narrativas que foi amplamente percebida pelos religiosos de matriz africana
foi justamente a noção de que a existência do vírus difundido e os perigos decorrentes da sua
letalidade imputavam a todos o dever de vigilância e recolhimento, a fim de se restabelecer
o equilíbrio das forças da natureza que governam as materialidades e as imaterialidades.
Não sem razão, os mais velhos ainda antes de se decretar a chegada da doença no Brasil,
recorrentemente, traziam à tona antigos itans dos mitos da criação e da ação curativa de
alguns Orixás, Inkisses e Voduns, à exemplo de Omolu, Xapanã, Oxalá, Lemba, Katendê,
Ossain, dentre outros. A cada história rememorada, uma reflexão acerca da ação humana na
terra e das consequências de uma prática não solidária com o planeta e as forças da natureza.
Após constatada a pandemia e o isolamento social instaurado, o espaço das redes sociais
passou a ser o principal veículo de diálogo entre religiosos e praticantes, donde os grupos de
whatsapp aproximaram aqueles que estavam distantes das suas famílias de santo, integrando,
assim, comunidades religiosas em rede, compartilhando novos modos de vivenciar a
religiosidade comunitária a partir dos espaços familiares.
Nesse sentido, práticas coletivas outrora vivenciadas apenas nos espaços de terreiro
passaram a ser estimuladas para a realização em casa, juntamente com os familiares. O
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 191

espaço de casa passou a ser percebido como uma extensão dos terreiros, fazendo com que
essa territorialidade criasse novos elãs, novos sentidos e novas formas de representação.
Outro elemento muito presente que passou a ser estimulado através das redes sociais foi
o exercício da solidariedade como elemento de distribuição e redistribuição do Axé. Essa
que sempre foi uma prática comum aos terreiros, em tempos pandêmicos, foi (e ainda
tem sido) intensificada por muitas casas de Axé. Campanhas de arrecadação e doação de
alimentos, seja para prover membros da própria comunidade mais desfavorecida, seja para
compartilhar com comunidades do entorno, estabeleceram-se como uma dinâmica do
contexto pandêmico, sobretudo, quando se configurou a crise humanitária pelo fechamento
dos comércios.
Outra prática humanitária muito comum em alguns terreiros foi a utilização da expertise
em corte e costura em prol da confecção de máscaras para abastecimento desse equipamento
de segurança fundamental nas cidades pandêmicas. A Casa de Oxumarê, sob a liderança de
Baba Pecê de Oxumarê, e o Terreiro de Oyá, hoje liderado pela jovem Ya Nivia, constituem-
se em dois exemplos de casas que montaram uma verdadeira estratégia de produção de
máscaras, a partir da alocação de máquinas e distribuição de panos para que membros
das suas respectivas comunidades de santo confeccionassem máscaras nas suas próprias
residências, máscaras essas que foram doadas para hospitais e comunidades carentes.
À medida em que os meses foram passando e o número de mortes aumentando, as
comunidades de terreiro, assim como toda a sociedade brasileira, intensificou o uso de
ferramentas digitais para se ampliar o congraçamento entre religiosos. Esse foi o momento
da realização de muitas lives, webinários com pais e mães de santo, momentos esses que
criaram possibilidades de escutas, compartilhamentos e assistência espiritual para seguidores
e simpatizantes do Axé.
Se, por um lado, esse congraçamento virtual pôde ser estabelecido com a transposição das
barreiras tecnológicas, por outro, no caso dos lutos de religiosos ocorridos nesse período
marcado pela COVID-19, as comunidades de terreiro precisaram, a duras penas, aprender
a readequar e ressignificar suas práticas religiosas do morrer e do luto. Esse é um capítulo à
parte, o qual passa por dogmas, ritos e costumes construídos pela memória coletiva do povo
de santo.

@CURA.DATERRA: O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA COMPLEXA E


INSTIGANTE
Nesse tópico, compartilharemos a experiência acerca da construção da “Campanha @cura.
daterra” realizada pelo povo de santo através de conta no instagram e grupos de whatsapp
nos primeiros momentos da pandemia. Tal campanha surgiu a partir da inquietação de
algumas lideranças religiosas de matriz africana da Bahia e seus filhos de santo acerca da
necessidade de comunicar em escala tanto para o povo de santo como para os simpatizantes
das religiões de matriz africana, uma mensagem positiva em meio à calamidade pública
provocada pela pandemia do coronavírus.
192 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia

Naquele momento, chamava também a atenção dessas lideranças religiosas a profunda


invisibilidade que a imprensa nacional destinou à cosmovisão das comunidades de terreiros
em relação às suas leituras sobre a pandemia. A invisibilidade, ainda quando não proposital,
reflete as relações de estigmatização, preconceito e negação do outro. A ausência de
interesse pelas interpretações do povo de santo, algo que certamente não ocorreu em relação
às religiões do mainstream, reflete, em última análise, os efeitos nefastos da intolerância
religiosa, bem como, do racismo religioso. É como se não existisse no Brasil essa forma de
religiosidade, expressa em modos de vida de uma parte da população brasileira.
Essas foram as deixas que mobilizaram esses atores a criar alguma estratégia de ação coletiva
que abarcasse as comunidades de terreiros, ao mesmo tempo em que gerasse externalidades
positivas para o povo de santo de um modo geral. Essa seria uma estratégia de afirmação
religiosa, mas, também, de afirmação política, capaz de posicionar as comunidades
tradicionais de terreiro no cenário das formulações de narrativas no contexto da pandemia.
Para tal, foi criado um grupo de whatsapp a fim de mobilizar lideranças religiosas de matriz
africana a doarem suas imagens e falas sobre o momento da pandemia e as saídas espirituais
que estão postas nesse momento dramático da vida terrena. O desafio posto era justamente
realizar, a partir das lideranças, uma convocação em prol de uma corrente de cura, rogando
a intervenção espiritual de Omolu.
Essa ideia não era uma novidade para as comunidades tradicionais de terreiro, ela remontava
a uma antiga mobilização do povo de santo do Recôncavo baiano e de Salvador quando
da epidemia de varíola no início do século passado. Contam os mais velhos que, naquela
ocasião, os terreiros do Recôncavo e de Salvador uniram-se em correntes de orações, pedindo
a Omolu que intercedesse naquele momento de grande mortandade. Muitas das obrigações
que ainda ocorrem nos meses de agosto nas casas de santo da Bahia remontam, também, a
esse momento da memória do povo de santo.
Não sem razão, esta narrativa oral encontra relevo nos romances de Jorge Amado, a
exemplo de “Tereza Batista cansada de Guerra”, “Jubiabá”, “Mar Morto”, dentre outros.
Em diversas passagens, Jorge localiza seus personagens na epidemia de varíola, atribuindo o
abrandamento dessa doença à intervenção direta do velho Omolu, o grande rei, senhor das
enfermidades e também da cura. Sensibilizado com o sofrimento do seu povo negro, o velho
com as suas pipocas veio em terra abrandar essa doença e aliviar seus filhos.
A campanha consistia, basicamente, em convocar todas as pessoas religiosas e simpatizantes
do candomblé para que, às segundas feiras, por volta das 19:00 horas, nas suas casas,
oferecessem um momento de sua atenção para pedir a intervenção de Omolu para a cura
da terra. Em tal momento, assim como se fazem nos terreiros, as pessoas poderiam oferecer
pipocas para o velho e acender uma vela para energizar e fortalecer aquela devoção.
No primeiro momento, a campanha começou com as contribuições das lideranças religiosas
da Bahia cujas casas organizaram a campanha. Esse foi um estímulo para que outras casas
demandassem o envio de conteúdos para ver suas imagens também vinculadas a esse
movimento.
© RIGS revista interdisciplinar de gestão social v.10 n.1 jan./abr. 2021 193

À medida em que a campanha foi tomando as redes sociais, religiosos de outras casas,
espalhados por distintas regiões do país, passaram a solicitar participação nesse processo
de construção política. Nestes termos, os cards, vídeos e mini-podcasts foram essenciais para
viralizar essa campanha, gerando, assim, posicionamentos e, sobretudo, presença massiva do
povo de santo nas redes para além da mobilização positiva em prol da cura da terra.
De um modo geral, as mensagens emitidas pelos religiosos caminhavam muito no sentido
de repensarmos os nossos modelos de vida e de desenvolvimento, dando à terra e às forças da
natureza o devido valor que fora negligenciado pela sociedade no século XX. Nestes termos,
a recomendação de recato, recolhimento e entendimento de que esse era um momento de
transformação da terra, algo que deveria ser respeitado por todos, trazia o elemento reflexivo
como portador de um momento de silêncio necessário para a cura do planeta. Não sem
razão, os cânticos destinados ao velho Omolu, recomendam o silêncio. “Atotô Obaluaê!” –
Seu significado é: “Silêncio para o grande Rei da Terra!”.
Todavia, um processo de construção dessa natureza também contou com desgastes e
esgotamentos... Nunca é muito fácil unificar entendimentos, discursos e estratégias,
sobretudo, quando as decisões são coletivas e realizadas no formato virtual, através de uma
organização reticular. As comunidades tradicionais de terreiros, ao contrário do catolicismo
e das religiões evangélicas, no âmbito dos posicionamentos públicos de cada terreiro,
respondem a partir de lógicas de independência, não sendo centralizado o poder decisório
nas mãos de uma liderança suprema, como é o caso do papa, ou do bispo da igreja tal.
Ademais, em um processo de construção coletiva, a divisão das responsabilidades, bem
como dos trabalhos em torno da manutenção das redes, terminou por dificultar a produção
e dinamização dos conteúdos. Para algumas das lideranças, muito mais poderia ser realizado
no que concerne à produção de conteúdos e ressignificação da campanha. Todavia, o desgaste
acumulado de outras experiências pretéritas, a natureza voluntária dos trabalhos, bem como
o próprio efeito da pandemia na vida das pessoas, terminaram por dificultar a continuidade
da campanha, ainda que o seu legado tenha sido muito positivo e agregador, sobretudo, em
se tratando de um momento de calamidade pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os tantos discursos que conformaram a pandemia, o discurso religioso foi e tem
sido conformador de narrativas, estimas, lealdades e resiliências, algo que se expressa
em performances e mobilizações dos atores em movimento. No caso das religiões de
matriz africana, como visto ao longo deste artigo, a experiência da pandemia também foi
mobilizadora de ação pública, criando assim, novos repertórios e práticas de interação e
gestão social mediada pelas tecnologias.
Dessas considerações realizadas aqui, algumas reflexões nos abrem verdadeiras agendas de
pesquisa que podem contribuir para pensarmos a sociedade pandêmica e pós-pandêmica,
no que concerne às suas conformações religiosas, bem como, o modo como as religiões
dialogam com seus fiéis e simpatizantes. Qual o papel que exercem os discursos religiosos
194 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia

nas escolhas públicas da população brasileira em torno da pandemia é uma questão que nos
parece ser bastante pertinente em tempos de negação das ciências e ascensão de evangélicos
declaradamente conservadores na política.
No que concerne às comunidades tradicionais de terreiros, essas reflexões alimentam uma
ampla agenda de pesquisa que nos apresenta um Brasil profundo que historicamente
negligenciado pelo Estado brasileiro, mas que compõe o mosaico que é a sociedade brasileira.
Nesse sentido, o olhar holístico das religiões de matriz africana para o mundo pandêmico e
as possibilidades de vida para além da pandemia convidam-nos a repensar modelos de vida
contemporâneos, bem como o modo como o homem tem se relacionado com o planeta,
nossa grande morada.
Ademais, o modo de ação política do povo de santo abre-nos margem a pensar como tem
se dado as relações entre estados, comunidades tradicionais de terreiros e a sociedade de
um modo geral. Essa é uma reflexão que, para os estudiosos do campo da gestão social,
nutre uma verdadeira agenda de dilemas públicos no que concerne às nossas contradições,
ambiguidades e paradoxos emulados no tempo. Fazer-se ouvir em tempos de uma pandemia
que, dia após dia, amplifica as nossas gramáticas da desigualdade é, sobretudo, a expressão de
uma demanda por identidade e reconhecimento.

NOTAS
1 Submetido à RIGS em: out. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.
2 Família de santo é o modo como se denomina a família religiosa não consanguínea que se
constrói nos terreiros através das solidariedades e afetividades em torno dos Orixás, Inquices,
Voduns e encantados. Nestes termos, o “Santo” é o elemento aglutinador da família religiosa.
3 Para além dos terreiros, outras irmandades de cor institucionalizadas ou não foram decisivas
para a sobrevivência do povo negro. Estamos aqui nos referindo às irmandades laicas e religio-
sas, bem como, os remanescentes de quilombo e demais comunidades tradicionais marcada-
mente negros.
4 Esse é o mote da disciplina de Extensão Universitária que criamos em 2017 no Programa
ACCS da Universidade Federal da Bahia e já caminha para a sua quinta edição, qual seja: Lu-
gares de memória, poder e redes de solidariedade do povo negro da Bahia: a Gestão do Futuro.
5 Essa divindade, comum às principais nações de matriz africana, responde por diferentes nomes,
a depender da nação que se fale: Omolu, Obaluayê, Xapanã, Kavungo, o velho, dentre outros.

REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de Guerra. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AMADO, Jorge. Mar Morto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a cidade: a forma social negro brasileira. Petrópolis: Editora
Vozes, 1988.

André Luis Professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia,


Nascimento pesquisador do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão
dos Santos Social e do Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO). Atualmente,
coordenador da Milonga: Laboratório de Extensão e Pesquisa em Direitos
Humanos, Políticas Públicas e Gestão da Diversidade. Religioso de Matriz
Africana, Ogã Confirmado de Xangô na Casa de Oxumarê. E-mail:
andreluisnascimentosantos@gmail.com

Desirée Ramos Graduada e Mestra em História, Especialista em Gestão Pública e


Tozi Curadoria em Museus de Arte, doutoranda em Antropologia pelo Programa
de Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro)/ UFBA, com estágio-sanduíche
no Departamento de Antropologia da City University of New York/
CUNY, onde desenvolve pesquisa relacionada ao campo da Política nas
Comunidades de Terreiro. Servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional/IPHAN desde 2010, é também pesquisadora associada
do Center of Folklife and Cultural Heritage, da Smithsonian. E-mail:
desireetozi@gmail.com
196 A Gestão Social das Religiões no Mundo da Pandemia

Foto: Kleber Moitinho


jan./abr. 2 0 2 1
v.10n.1 p.197-199
ISSN: 2317-2428
copyright@2014
www.rigs.ufba.br
http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v10i1.42896

Toda Moeda Tem Dois Lados: ensinoaprendizagem


em tempos de COVID191
Maria Carolina de Souza Sampaio

Finalmente cheguei no final de fevereiro deste ano em Los Angeles, para atuar como
Pesquisadora Visitante no Instituto Latino Americano (LAI) da Universidade da California
(UCLA). Quinze dias depois, por conta do COVID-19, estávamos em casa (eu, esposo –
também pesquisador visitante na UCLA – e dois filhos, um de 7 e outro de 4 anos), devido
à recomendação de stay at home.
Assim, como toda moeda sempre tem dois lados (ouvimos muito isto por aqui), a minha
realidade também tinha. O lado ruim de estar em casa era a ausência do convívio com os
colegas do LAI e da presença física e cotidiana no Campus da UCLA. O lado bom passou
a ser a entrada do meu objeto de pesquisa, literalmente, dentro da minha casa. As aulas
dos meus filhos, as reuniões de pais promovidas pela escola, as conferências da UCLA, as
reuniões da UFBA e todos os outros eventos acadêmicos passaram a ser realizados através
da Internet e, então, pude observar variadas práticas direta ou indiretamente associadas ao
processo de ensinoaprendizagem (aqui escrito junto para reforçar a relação inseparável entre
essas duas ações) ocorrendo em ambiente online.
Observei que as dificuldades e desafios impostos, para professores, estudantes (e suas
famílias) e funcionários, pela necessidade da realização de atividades acadêmicas de
forma não presencial, eram as mesmas encontradas no Brasil: a) conhecimento, acesso e
disponibilidade de recursos computacionais; b) formação e uso da linguagem apropriada ao
trabalho com esses dispositivos tecnológicos; c) realização das atividades acadêmicas dentro
do ambiente doméstico; e d) motivação e engajamento de todos os envolvidos, com vistas a
fazer as coisas acontecerem.
Dentre esses desafios, em menos de quatro meses, o governo do estado de Los Angeles
apresentou alternativas para disponibilizar acesso à internet e distribuir equipamentos
àqueles que precisavam. Em paralelo, passaram a buscar, testar e investir esforços em
integração de softwares educacionais e sistemas de gestão de aprendizagem. Elaboraram
198 Toda Moeda Tem Dois Lados

normas e políticas que regulassem aspectos relacionados aos direitos autorais, privacidade e
segurança da informação, com base nos princípios da cidadania digital. Realizaram diversos
eventos, por webconferência, buscando capacitar tecnicamente os envolvidos (incluindo
famílias e estudantes), compartilhar, exaustivamente, informações e tentar motivá-los a
participar das ações que seriam desenvolvidas no próximo ano letivo (iniciado em agosto
de 2020).
Em relação aos outros desafios, a meu ver, uma das questões mais críticas, em Los Angeles e
no Brasil, ainda é como ensinar em ambiente não presencial e construir vínculos fortes com
os alunos, implicando-os nos seus processos de aprendizagem. Em ações não presenciais, isso
se torna ainda mais difícil, pois estimular as interações e a formação de redes colaborativas
quando não temos o contato físico presencial é ainda mais desafiador. Realmente, não é fácil,
mas, já estávamos vivendo esse desafio dentro da sala de aula presencial, mesmo quando
tentávamos incorporar as tecnologias digitais como forma de inovar em nossas práticas
de ensino e fortalecer vínculos interativos, pois as relações constituídas entre professor e
estudantes, muitas vezes, já eram frágeis.
Como toda moeda tem dois lados, a forma atraente como as tecnologias se apresenta para
nossos estudantes já vinha distraindo a atenção e reduzindo o seu interesse, quando estes
eram convidados a aprender em ambientes formais de ensino. Informações, temos muitas na
web: parece que tudo que queremos saber já está lá. Por isso, gosto de perguntar aos colegas,
quando estou realizando alguma ação de formação de professor: será que tem algo que você
dirá a seu aluno na próxima aula que já não esteja na web?
A questão não é o que você diz, mas como você diz! Daí, nasce o desafio da mediação
da aprendizagem do qual tanto falamos quando defendemos a Educação Online (EOL),
constituída a partir dos princípios da autoria, compartilhamento, conectividade e colaboração.
É a capacidade de simplificar o difícil; personalizar a aprendizagem, considerado que cada
estudante é único e, por isso, tem demandas e interesses diferentes; instigar curiosidades; e
disparar processos criativos. É o “fazer com” o estudante que é fundamental, seja no ambiente
presencial ou não presencial.
No final das contas, a meu ver, o lado ruim da moeda é a dificuldade em incorporar ao
ambiente doméstico a realização das atividades acadêmicas, quando “todos” estão em casa,
realizando outras atividades e compartilhando os mesmos espaços; e a ausência do contato
físico presencial, o qual representa um forte dispositivo para a constituição de vínculos mais
estreitos.
E o lado bom? A oportunidade que nos foi apresentada para repensar como ensinamos e
como aprendemos, seja no presencial ou não, incorporando os dispositivos tecnológicos que
temos à nossa disposição ou, pelo menos, as linguagens adotadas por esses para atualizar as
formas criativas e reflexivas que podemos adotar para construirmos novos conhecimentos,
sem perder de vista que o centro da questão está em como fazemos. E isto é o que diferencia
o professor de Los Angeles, do Brasil ou de onde quer que seja.
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NOTA
1 Submetido à RIGS em: dez. 2020. Aceito para publicação em: dez. 2020.

Maria Carolina Professora Adjunta da Escola de Administração da UFBA. Membro do


de Souza CIAGS (EAUFBA) e GEPICC (ICI).
Sampaio
A RIGS – Revista Interdisciplinar de Gestão
Social é uma publicação acadêmica com peri-
odicidade de 4 meses, contando, portanto, com
3 números por ano.

Pressupõe-se que a gestão social situa-se na


contemporaneidade e em territórios pluridis-
ciplinares de prática e investigação acadêmica,
tratando de diversas problemáticas ligadas a
campos de conhecimentos tais como Sociolo-
gia, Antropologia, Administração, Educação,
Geografia, Arquitetura, Ciência Política, den-
tre outras.

Ao valorizar essa concepção abrangente e in-


clusiva da gestão, a RIGS publica documentos
originais para o contexto brasileiro. São tex-
tos, fotos e vídeos que demonstram sua con-
tribuição para o avanço da pesquisa e da prática
com base na interdisciplinaridade.

A RIGS publica documentos inseridos em seis


tipologias de contribuição: tecnológica, teórica,
vivencial, indicativa, fotográfica e audiovisual.

www. rigs .ufba.br

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