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Ciência

POLÍTICA
Kellen Lazzari
Ludmila Gonçalves da Matta
Rodrigo Ricardo Mayer
(Orgs.)
CIÊNCIA
POLÍTICA
K ellen L a zz ari
L udmil a G onçalves da M at ta
R odrigo R icardo M ayer
(O rgs .)

1ª E dição
A gos to | 2020
Gestão Universidade
Reitor Prof. Dr. Paulo Fossatti - Fsc
Vice-Reitor, Pró-Reitor de Pós-grad., Prof. Dr. Cledes Casagrande - Fsc
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Daniele Balbinot Guilherme P. Rovadoschi Nathália N. dos Santos S.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C569 Ciência política / Kellen Lazzari, Ludmila Gonçalves da Matta, Rodrigo Ricardo Mayer (orgs.)
– Canoas, RS : Universidade La Salle EAD, 2020.
114 p. : il. ; 30 cm. – (Direito e política)

Bibliografia.

1. Política. 2. Estado. 3. Cidadania. 4. Sistemas de governo. I. Lazzari, Kellen Cristina


Varisco. II. Matta, Ludmila Gonçalves da. III. Mayer, Rodrigo Ricardo. IV. Série.
CDU: 32

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APRESENTAÇÃO
Prezado estudante,

A equipe de gestão da EaD Unilasalle sente-se honrada em entregar a você este material
didático. Ele foi produzido com muito cuidado para que cada Unidade de estudos possa
contribuir com seu aprendizado da maneira mais adequada possível à modalidade que você
escolheu para estudar: a modalidade a distância. Temos certeza de que o conteúdo apresen-
tado será uma excelente base para o seu conhecimento e para sua formação. Por isso, indica-
mos que, conforme as orientações de seus professores e tutores, você reserve tempo sema-
nalmente para realizar a leitura detalhada dos textos deste livro, buscando sempre realizar
as atividades com esmero a fim de alcançar o melhor resultado possível em seus estudos.
Destacamos também a importância de questionar, de participar de todas as atividades pro-
postas no ambiente virtual e de buscar, para além de todo o conteúdo aqui disponibilizado,
o conhecimento relacionado a esta disciplina que está disponível por meio de outras biblio-
grafias e por meio da navegação online.

Desejamos a você um excelente módulo e um produtivo ano letivo. Bons estudos!

Gestão de EaD Unilasalle


Ciência
Política
APRESENTANDO OS ORGANIZADORES

Kellen Lazzari
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (1993), especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), Mestre em Memória Social e
Bens Culturais pela Universidade La Salle (2014). Doutora em Memória Social e Bens
Culturais pela Universidade La Salle (2019). Participa do Grupo de Pesquisa do CNPq de
Estratégias Regionais. Atuação nos seguintes temas: políticas públicas, gestão pública,
cultura, gênero, bem como, áreas correlatas multidisciplinares. Presta consultorias e
capacitações sobre violência contra as mulheres, violência de gênero e políticas públicas
para as mulheres.

Ludmila Gonçalves da Matta


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro (2002) e Serviço Social pela Universidade Norte do Paraná. Mestre em
Políticas Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2005) e Doutora em Sociologia
Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (2012).
Atualmente é professora do Mestrado e Doutorado em Planejamento Regional e Gestão
da Cidade da Universidade Cândido Mendes e Coordenadora do curso de Serviço
Social. Tem experiência na área de políticas públicas com ênfase em educação, atuando
principalmente nos seguintes temas: política de cotas, desenvolvimento e educação,
dinâmica regional e participação social na elaboração de políticas públicas.Atualmente
coordena o grupo de pesquisa do CNPq “Observatório de Políticas Públicas nas Regiões
Norte e Noroeste Fluminense”.

Rodrigo Ricardo Mayer

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2008),


mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (2011) e doutorado
em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2017). Tem
experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Estudos Eleitorais e Partidos
Políticos, atuando principalmente nos seguintes temas: Partidos Políticos, Política
Comparada e América Latina.
APRESENTANDO A DISCIPLINA

Seja bem-vindo à disciplina de Ciência Política. Neste livro iremos estudar as estrutu-
ras da sociedade e do Estado; compreender a formação e aplicação do Estado moderno
e do constitucionalismo; compreender o princípio da democracia e a dinâmica legal e
social da cidadania; estudar os fundamentos da teoria política, as formas de governo,
sua composição e normatização; e analisar a questão social e a responsabilidade do
Estado frente às mudanças contemporâneas na sociedade e no Estado.

Ao longo de nossa caminhada, vamos compreender os fatores que levaram a constru-


ção dos Estados modernos; analisar a construção da cidadania, seu desenvolvimento e
relacionar com o avanço da democracia e dos Estados modernos; aprender e comparar
as diferentes interpretações sobre o Estado; entender a teoria de separação dos poderes
e os principais sistemas de governo.

Na Unidade 1 (A formação do Estado Moderno), você irá estudar as origens dos Esta-
dos Modernos. Na Unidade 2 (Estado Moderno como facilitador da cidadania), você
irá conhecer a relação do Estado com a construção dos direitos. Na Unidade 3 (O Fun-
cionamento do Estado: separação dos poderes e sistemas de governo), você irá com-
preender as formas de governo e seus impactos na organização estatal. E, por fim, na
Unidade 4 (Os diferentes tipos de Estado: do Estado Liberal às críticas neomarxistas),
você irá conhecer o Estado Liberal, o Estado de Bem-Estar Social e as críticas formu-
ladas pelos autores neomarxistas.

Bons estudos!
Sumário
UNIDADE 1
A Formação do Estado Moderno.................................................................................................................................9
Objetivo Geral .............................................................................................................................................................9
Objetivos Específicos .................................................................................................................................................9
Questões contextuais..................................................................................................................................................9
1.1 Estado e Poder...................................................................................................................................................... 10
1.2 Concepções sobre a Origem do Estado: o Contratualismo................................................................................. 13
1.3 O Contrato de Thomas Hobbes............................................................................................................................. 14
1.4 O Contrato de John Locke.................................................................................................................................... 17
1.5 O Contrato de Jean Jacques Rousseau............................................................................................................... 20
1.6 Comparando os Contratualistas........................................................................................................................... 22
1.7 O Conceito de Estado por Max Weber.................................................................................................................. 23
1.8 O Conceito de Estado por Norbert Elias............................................................................................................... 27
1.9 O Conceito de Estado por Charles Tilly................................................................................................................ 29
Síntese da Unidade....................................................................................................................................................31
Referências................................................................................................................................................................32

UNIDADE 2
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania......................................................................................................33
Objetivo Geral ...........................................................................................................................................................33
Objetivos Específicos ...............................................................................................................................................33
Questões Contextuais................................................................................................................................................33
2.1 Cidadania: um Conceito Histórico........................................................................................................................ 34
2.2 Direitos Civis......................................................................................................................................................... 40
2.3 Direitos Políticos................................................................................................................................................... 42
2.4 Direitos Sociais..................................................................................................................................................... 45
2.5 Entre a Cidadania e o Estado................................................................................................................................ 47
2.6 Aspectos Sobre a Cidadania Brasileira................................................................................................................ 51
Síntese da Unidade....................................................................................................................................................53
Referências................................................................................................................................................................54
UNIDADE 3
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo......................................................55
Objetivo Geral ...........................................................................................................................................................55
Objetivos Específicos ...............................................................................................................................................55
Questões Contextuais................................................................................................................................................55
3.1 Estado Moderno, seus Elementos e Organização................................................................................................ 56
3.2 Formas de Estado................................................................................................................................................. 59
3.3 Formas de Governo............................................................................................................................................... 63
3.4 Sistemas de Governo............................................................................................................................................ 68
3.4.1 Sistema Parlamentar................................................................................................................................................68
3.4.2 Sistema Presidencialista...........................................................................................................................................71
3.4.3 Semipresidencialismo..............................................................................................................................................72
3.5 Separação dos Poderes........................................................................................................................................ 75
3.6 Regimes de Governo............................................................................................................................................. 81
3.6.1 Regime Democrático................................................................................................................................................82
3.6.2 Regime Autoritário....................................................................................................................................................83
3.6.3 Regime Totalitário.....................................................................................................................................................83
Síntese da Unidade....................................................................................................................................................84
Referências................................................................................................................................................................85

UNIDADE 4
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas.........................................................87
Objetivo Geral ...........................................................................................................................................................87
Objetivos Específicos ...............................................................................................................................................87
Questões Contextuais................................................................................................................................................87
4.1 Surgimento do Estado Liberal e suas Características ....................................................................................... 88
4.2 Estado de Bem-Estar Social: Características e Variações.................................................................................. 97
4.3 Os Neomarxistas e suas Características........................................................................................................... 103
Síntese da Unidade..................................................................................................................................................111
Referências..............................................................................................................................................................112
unidade

1
A Formação do Estado Moderno
Prezado(a) estudante.

Estamos começando uma unidade desta disciplina. Os textos que a compõem foram
organizados com cuidado e atenção, para que você tenha contato com um conteúdo
completo e atualizado tanto quanto possível. Leia com dedicação, realize as atividades e
tire suas dúvidas com os tutores. Dessa forma, você, com certeza, alcançará os objetivos
propostos para essa disciplina.

OBJETIVO GERAL
Conceitualizar as origens dos Estados Modernos.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Apresentar as diferentes definições do Estado Moderno;

• Apresentar e desenvolver os fenômenos e características que possibilitaram a


emergência do Estado;

• Dialogar com os autores contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau e


apresentar as suas contribuições para a formação estatal;

• Contextualizar o período de formação estatal.

QUESTÕES CONTEXTUAIS
• Qual a origem do Estado?

• É possível viver sem o Estado?

• Qual o seu papel?

• Como se dá a presença do Estado em nossa vida?


10 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

1.1 Estado e Poder


Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, uma nova realidade começa
a se delinear na Europa Ocidental: a centralização do poder político origina os Estados
Modernos. Embora a existência do Estado remonte o período da antiguidade, será a
partir da Idade Moderna que surgirá a consolidação de uma Constituição racionalmente
dirigida, de um direito racionalmente ordenado e de uma administração orientada por
leis, regras racionais e funcionários especializados.

De acordo com Max Weber (1999), será a partir da consolidação de um sistema


burocrático conduzido pela racionalização técnico-formal e amparado na dominação
racional-legal que os Estados Modernos se consolidam. Para esse autor, o ritmo da
racionalização, compreendendo todas as esferas da vida (econômica, política, religiosa),
será decisivo para o aparecimento do Estado Moderno.

O capitalismo, nesse contexto, já buscando a sua expansão como o sistema


econômico mais racional, exigirá um amplo aparato burocrático para o seu
desenvolvimento. Além disso, já estava se formando um movimento de contestação do
poder hegemônico da Igreja Católica Apostólica Romana.

Não se pode considerar um único evento como decisivo para formação do Estado
Moderno, mas podemos avaliar que sua criação possui forte relação com a expansão do
sistema capitalista. No final da Idade Média, a partir do século XVI, houve o renascimento
das atividades econômicas e a expansão do comércio, deslocando a economia agrária
(feudal) para o incipiente capitalismo, conclamando uma nova forma de organização
social, com a necessária construção dos Estados.

DESTAQUE

A palavra Estado é utilizada para designar uma sociedade política que


partilha interesses gerais e individuais, na medida em que proporciona, a
um só tempo, a consecução de fins próprios e de objetivos comuns para
todos os seus integrantes. De acordo com Max Weber (1999), o Estado é o
detentor do monopólio legítimo do uso da força.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 11

Figura 1.1 - Nicolau Maquiavel.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

O escritor italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi um dos primeiros teóricos


a refletir sobre o Estado Moderno e ficou muito conhecido pela obra “O príncipe”,
publicada pela primeira vez em 1532. Nesta obra, o autor expõe as características que
um governante deve ter para chegar e se manter no poder. Apesar da atualidade do
pensamento de Maquiavel, é necessário contextualizar a sua escrita.

Ele escreve em um período do Renascimento, na Itália, em que a disputa pelo


poder era muito acirrada e que a forma mais comum de obter o domínio era por meio de
guerras. Sua obra tinha o objetivo de contribuir para estabilidade do poder e unificação
da Itália, sendo que, nesse período, ela era uma península dividida.

A Itália era marcada por constantes conflitos, conspirações e assassinatos. Com


o fim do Império Romano, a Itália se tornou um conjunto de Estados autônomos como
os Romanos, Florentinos, Milaneses, Genoveses, Lombardos, Venezianos, Sicilianos e
outros. Com fim da Idade Média e início do Renascimento, a disputa por poder se acentua
nesses diferentes Estados e será com o objetivo de apaziguar os conflitos e fortalecer o
Estado que Maquiavel irá propor a sua obra.
12 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Como ele mesmo descreve, muitos já haviam escrito sobre como um príncipe deve
proceder. Entretanto, o seu objetivo era com a verdade efetiva e não com a aparência,
idealizando repúblicas e principados que nunca existiram (MAQUIAVEL, 1955). O
autor propunha uma República a partir dos fatos que ele observava e das circunstâncias
históricas do momento em que ele vivia.

Dessa forma, há a necessidade de elucidar certas categorias associadas ao


pensamento desse autor. A citação “os fins justificam os meios” é atribuída a Maquiavel,
apesar dele nunca ter escrito essa frase. Isso ocorre em razão de várias passagens em que
ele justifica certos comportamentos imorais (para os padrões cristãos da época) como
medida necessária para manutenção do poder como, por exemplo, na passagem: “Não é
necessário a um príncipe ter todas as qualidades mencionadas, mas é indispensável que
pareça tê-las (...) daí a conveniência de parecer clemente, leal, humano, religioso, íntegro
e, ainda se ter tudo isso, contanto que, em caso de necessidade, saiba tornar-se o inverso”
(MAQUIAVEL, 1955, p. 39).

Entretanto, Maquiavel, ao descrever um comportamento a ser seguido pelo


príncipe, não desconsidera a moral do cidadão comum, já que apenas enfatiza que a
política possui uma moral própria. Portanto, ele separa a moral do homem político
da moral do cidadão, por causa da necessária manutenção do poder no contexto da
instabilidade na qual passava a Itália.

Maquiavel descreve que o príncipe deve agir com esperteza, astúcia, virilidade e
flexibilidade. Essas seriam características pessoais, a virtú. A partir da virtú, o príncipe
poderia controlar a fortuna, que são aspectos circunstanciais e pouco previsíveis.

O termo fortuna na época de Maquiavel era utilizado para designar uma


imprevisível deusa, que deveria ser temida mesmo quando trouxesse muitas graças.
Entretanto, para Maquiavel, a fortuna “é uma mulher, seduzível e influenciável, como
a dos antigos, mas não só. A fortuna de Maquiavel é dominável, conduzível, domável
(WOLKMER, 2003, p. 81).

E como se pode domar, controlar a fortuna? Para Maquiavel, isso seria possível
através do agir do princípe. “Como Maquiavel está a tratar de homens com poder
político, a fortuna, o destino, pode ser compreendida como a insegurança da vida
política em situações onde o poder não conta com legitimação tradicional e costumeira”
(WOLKMER, 2003, p. 81).
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 13

Nicolau Maquiavel sabia que as decisões dependiam do contexto, em razão da


sua vivência como secretário que cuidava dos assuntos externos (serviço equivalente
hoje ao de um diplomata) na Cidade-Estado de Florença. Ele entendia a necessidade da
negociação, da habilidade em saber agir no momento certo e de recuar quando necessário.

Entretanto, por muito tempo, a obra de Maquiavel foi interpretada como um


manual do político astuto, sendo chamada de maquiavélica a ação direcionada a este fim.
Por isso, a importância de contextualizá-la e compreender que ela traduz um contexto
político de muita instabilidade, em que, segundo Maquiavel, era necessário separar a
moral do cidadão comum da do governante para se obter a manutenção do poder,
visto que seu objetivo era de deixar um legado sobre a arte de governar.

1.2 Concepções sobre a Origem do Estado:


o Contratualismo
Não podemos afirmar, ao certo, o momento de formação do Estado. Na literatura
encontramos variadas definições e causas para o surgimento dessa sociedade política.
Compreender essa estrutura pressupõe apreender alguns aspectos fundamentais como:
a relação do ser humano com a natureza e o desenvolvimento das forças produtivas; as
relações de produção que desvendam o nível de desenvolvimento e estruturação das
relações sociais de produção e o estágio de desenvolvimento das forças produtivas.

Ao teorizar sobre a natureza do Estado, devemos nos reportar, também, à própria


natureza do homem e da sociedade. Nesse sentido, nos deparamos com os seguintes
questionamentos: o homem, por natureza, é bom, social e racional? Ou mau, egoísta e
destruidor? E quanto à sociedade? Ela é o meio de realização humana? Ou uma realidade
fictícia resultado de um acordo de vontades? E o Estado? É um ente todo poderoso?
Opressor? Ou representa a vontade geral?

Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau são conhecidos como
contratualistas por questionarem a natureza da sociedade e do Estado. Os autores
afirmam que existe um momento tácito ou expresso em que a maioria dos indivíduos
firmam um contrato para saída do estado de natureza e a passagem para o estado civil.
14 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

1.3 O Contrato de Thomas Hobbes


Figura 1.2 - Thomas Hobbes.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

Thomas Hobbes (1588-1679) foi teórico político e filósofo inglês, autor de


“Leviatã” e “Do cidadão”, além de outras importantes obras. Assim como Maquiavel,
também viveu em um período de intensa luta pelo poder travada entre Monarquias rivais,
disputas internas na Inglaterra e também pela Igreja. Ele nasceu no ano da batalha
naval entre Inglaterra e Espanha. Nesse período, a Inglaterra era uma Monarquia
Parlamentarista, entretanto, o Parlamento era constantemente ameaçado pela autoridade
real. Hobbes presenciou o constante enfrentamento entre os parlamentaristas e os
defensores da supremacia real, o que culminou com a decapitação do Rei Charles I em
1649 (WOLKMER, 2003).

Apesar de não fazer parte da nobreza, foi criado junto à casa da família Cavendish,
o que lhe propiciou certa estabilidade e tranquilidade para chegar até a Universidade de
Oxford, onde se formou bacharel em Artes (um curso que envolvia o estudo de lógica e
física aristotélica) (WOLKMER, 2003).

Hobbes sempre esteve muito próximo aos reis e à defesa de seus interesses. Ele
propôs um método de investigação que se opõe à visão aristotélica de descrição da
realidade, ao considerar que é possível conhecer a realidade tomando não os objetos em
si, mas a percepção que se tem destes objetos (WOLKMER, 2003). Sua obra é marcada
pela defesa do Estado Absolutista.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 15

Ele é considerado um dos expoentes do contratualismo, ou seja, faz parte daqueles


filósofos que, entre o século XVI e o XVIII, afirmaram que a origem do Estado e/ou da
sociedade está em um contrato que afirma que “os homens viveriam, naturalmente, sem poder
e sem organização - que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo
as regras de convívio social e de subordinação política” (RIBEIRO, 1991, p. 53).

Na concepção de Hobbes, antes do contrato social os homens viviam em um


estado de natureza (estado de guerra) que prevalecia as características físicas, como a
força e sua capacidade de agir para sua própria preservação. Ele descreve um homem
movido pelo cálculo racional e egoísta, como na seguinte passagem: “Se dois homens
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos,
eles tornam-se inimigos” (HOBBES apud RIBEIRO, 1991, p. 55).

Daí deriva a citação clássica que expressa a visão do homem em estado natural: “O
homem é o lobo do homem”. Com essa frase, Hobbes rompe com a visão aristotélica de
que o homem é bom ao retratar um homem mau. Portanto, no estado de natureza guiado
pelos instintos naturais egoístas, os homens eram levados à própria destruição e a uma
guerra de todos contra todos. Como conter esse estado de incerteza e constante guerra?

Segundo Hobbes, em razão dessa insegurança, os homens resolvem firmar um


contrato. Assim, com o intuito de preservar a própria vida, o ser humano lança mão de
um pacto em que se priva dos seus direitos em detrimento da segurança, fazendo surgir,
assim, o Leviatã (metade monstro e metade Deus mortal), a entidade capaz de garantir
a paz e a defesa dos seus súditos.

O Leviatã foi o nome dado por Hobbes a essa entidade que hoje chamamos de
Estado, o qual o homem renuncia a todos os seus direitos, com exceção do direito à vida,
para delegar a essa criatura soberana. Como afirma Diniz (2001, p. 158), “O Estado em
Hobbes já nasce com poderes supremos. Nem poderia ser de outra forma, pois a seu ver
o poder do Estado ou é absoluto ou não existe”. O que devemos destacar, também, é
que com o Leviatã nasce a sociedade, porque em estado natural não havia sociabilidade.

Portanto, a partir de um pacto de submissão, os homens acolhem o Estado como


a necessidade de ter um terceiro para garantir a paz, a ordem e a segurança. Esse
pacto somente poderia ser rompido em caso de autopreservação da vida, o que antes era
um princípio natural da conduta humana a partir do Estado converte-se em um direito
(WOLKMER, 2003).
16 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

De acordo com o pensamento de Hobbes, sobre a passagem do estado de natureza


ao estado civil em uma terra sem leis, qualquer um poderia ser agredido ou morto por
qualquer outro. Uma vez que o homem encontra na preservação de sua própria vida
o bem fundamental, caberia a cada um proteger-se de todas as maneiras possíveis -
sendo o ataque a melhor defesa. Mas esta guerra permanente se tornaria insuportável.
Justifica-se, assim, o estabelecimento de um Estado soberano, o qual deve mediar os
conflitos, garantindo a paz e a segurança. Em razão desta proteção, os indivíduos devem
obediência às leis (SANTOS, 2017).

De acordo com Hobbes, o Estado foi instituído quando uma multidão de homens
concordaram e pactuaram que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja
atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser
representante), todos, sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram
contra, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens,
tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os
outros e serem protegidos dos restantes homens (HOBBES apud RIBEIRO, 1991, p. 63).

Para Hobbes, a submissão absoluta é o preço a ser pago pelo súdito pela proteção
trazida pelo Estado. Por essa razão, o seu pensamento é inspiração do modelo absolutista
em que os reis exercem o poder absoluto, constituindo o Estado Absolutista.

DESTAQUE

Estado Absolutista (ou simplesmente Absolutismo) é um regime político em


que o poder se concentra na figura do rei. Esse modelo predominou nos países
europeus a partir da Idade Moderna. Nele a figura do rei se confunde com a do
Estado, o rei exerce um poder absoluto legitimado pela Igreja (o rei seria um
escolhido de Deus), cabendo aos súditos a fidelidade a esse monarca.

REFLETINDO

Nesse Estado, o qual o Leviatã concentra todo o poder, podemos nos


perguntar: qual o papel da liberdade e igualdade? Para Hobbes, não temos
escolha: ou vivemos livres e iguais e nos matamos ou vivemos sob a proteção
do Estado. Devemos ressaltar que ele defendia essa ideia a partir do contexto
de conflitos do século em que vivia e percebia.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 17

1.4 O Contrato de John Locke


Figura 1.3 - John Locke.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

O pensador inglês John Locke (1632-1704), autor de “Os Dois Tratados sobre
Governo Civil”, além de “Ensaios sobre a Inteligência Humana” e “Cartas sobre
a Tolerância”, é considerado o pai do liberalismo clássico. Seus escritos buscam
contrapor o direito divino dos reis, sendo um grande defensor das liberdades religiosas.

Locke nasceu numa família puritana da pequena burguesia. Ele, assim como
Hobbes, vivenciou a Guerra Civil, considerado um dos momentos mais conturbados da
história da Inglaterra (WOLKMER, 2003).

Para ele, no estado de natureza, o homem já possuía um domínio racional de


suas paixões e seus interesses, de modo que não se pode afirmar que viviam numa guerra
permanente como relatado no estado de natureza hobbesiano. Pelo contrário, ele afirma
que nesse estágio inicial da sociedade, havia uma paz relativa que permitia ao homem
identificar os seus limites e reconhecer a existência de alguns direitos.
18 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

É certo que Hobbes tinha conhecido uma única natureza, dominada


pelas paixões, os instintos, o egoísmo, ou seja, a má; e pensava que para
o homem a única razão residia no Estado. A maioria dos escritores,
porém, menos radical do que o rigoroso e despachado autor do Leviatã,
não perdia de vista a primeira natureza - ideal -, enquanto estudava a
segunda - real. Se os homens fossem como deveriam ser, o estado de
natureza seria o estado perfeito; não necessitaríamos de outro. Mas como
os homens são como são, o estado de natureza degenera-se em estado de
convivência miserável e precária, sendo necessário, se não extingui-lo,
pelo menos corrigi-lo (BOBBIO apud WOLKMER, 2003, p. 139).

O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente


determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade
e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-americanas. Esse
estado de natureza divergia do estado de guerra hobbesiano, baseado na insegurança e na
violência, por ser estado de relativa paz, concórdia e harmonia (MELLO, 1991, p. 84-85).
De acordo com o pensamento de Locke no estado de natureza, há jurisdição recíproca,
pois cada um é juiz de si mesmo. Entretanto, os indivíduos não estão livres de conflitos
no estado natural e, sendo cada um juiz de si mesmo, há a tendência de atuar em causa
própria. Dessa forma, Locke demonstra o inconveniente do estado de natureza pela falta
de um juiz imparcial (WOLKMER, 2003).
Se para Hobbes, o problema do estado de natureza era a falta de leis, o que o
torna um estado de guerra total e permanente. De outro lado, para Locke, o problema
não é a falta de lei, porque existe a lei natural, mas sim o fato de que diante da violação
de uma dessas leis, falta uma instituição capaz de proporcionar a reparação dos danos e
a punição dos culpados (WOLKMER, 2003).
Juntamente com Hobbes e Rousseau, Locke também é um representante do
jusnaturalismo - aqueles que defendem a existência de direitos naturais. No entanto,
Locke, diferentemente de Hobbes, considera outros direitos inatos ao homem além da
vida, como a liberdade e a propriedade. A criação do Estado se justificaria para garantir
esses direitos naturais, uma força coercitiva capaz de assegurar os direitos inatos que
seria firmada entre os homens. Surge, então, o contrato social como ferramenta de
legitimação do poder e de manutenção dos direitos naturais.
O contrato social de Locke difere substancialmente ao de Hobbes no qual os
homens firmam, entre si, um pacto de submissão que visa a preservação da vida em troca
de proteção. Para Locke, o contrato social é um pacto de consentimento “em que os
homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar
ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza” (MELLO,
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 19

1991, p. 86). Todavia, esse ente teria poder delimitado, visto que Locke defende que
os sujeitos do contrato podem se opor ao Estado quando houver violação aos direitos
naturais, principalmente o direito à propriedade privada ao qual ele dedicou um espaço
considerável de suas análises.
Na concepção de Locke, como a terra foi dada por Deus em comum a todos os
homens, assim também como a capacidade de trabalho, ao empregar trabalho à terra ele
se torna proprietário dela.
Para Locke, o surgimento do Estado civil passa por dois momentos distintos: o
contrato social e a instituição do governo civil. O primeiro é o momento em que os homens
fazem o pacto mediante consentimento de todos a se submeter ao poder político e o segundo
é o da formação do governo mediante a decisão da maioria (WOLKMER, 2003).
O governo civil de Locke prevê uma separação entre os poderes. Na teoria de
Locke, o poder Judiciário não é autônomo e enfatiza a supremacia do Legislativo. A sua
separação comporta o Poder Legislativo, Poder Federativo e Poder Executivo, sendo que
esses últimos devem ser ocupados pela mesma pessoa. Vale lembrar que, apesar disso,
o poder Legislativo como poder supremo deve ser limitado. Ele propõe as seguintes
limitações:
1. as leis devem ser estabelecidas para todos igualmente, e não devem
ser modificadas em benefício próprio;
2. as leis “só devem ter uma finalidade:o bem do povo”;
3. não deve haver imposição “de impostos sobre a propriedade do
povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou
através de seus representantes”;
4. a competência para legislar não pode ser transferida para outras
mãos que não aquelas a quem o povo confiou (LOCKE 1994, p. 169
apud PELICIOLI, 2006, p. 25).

Ao propor os limites do poder, Locke estabelece a possibilidade de resistência e


da alternativa de desobediência, o que deve ocorrer contra os maus governantes, aqueles
que não exercem o poder para o bem comum (WOLKMER, 2003).

SAIBA MAIS

Para compreender melhor a separação dos poderes e suas funções nos


Estados Constitucionais, recomendamos a leitura do artigo de Angela
Cristina Pelicioli: “A atualidade da reflexão sobre a separação dos poderes”.
Disponível em: http://gg.gg/ip6gn.
20 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

1.5 O Contrato de Jean Jacques Rousseau


Figura 1.4 - Jean Jacques Rousseau.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo iluminista, autor das obras “O
contrato social” e “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade
Entre os Homens”. Rousseau, assim como os demais pensadores apresentados, irá tratar
de temas como estado de natureza, contrato social, estado civil, liberdade, soberania e
propriedade privada.

O homem em estado de natureza, retratado pelo filósofo, era um homem bom e


vivia em liberdade até o surgimento da propriedade privada. Será a partir do processo
de socialização que o homem será conduzido à dependência de outros homens. Como
nas palavras de Rousseau, “o homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros”
(NASCIMENTO, 1991, p. 194), ou seja, encontra-se escravizado.

Para Rousseau, a propriedade privada surge quando o primeiro homem cerca


o primeiro pedaço de terra e deixa os demais de fora. Sendo assim, aquele que não
possui terra é obrigado a trabalhar para quem tem, instalando-se, assim, a escravidão e
a desigualdade entre os homens.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 21

Dessa forma, Rousseau propõe um pacto social legítimo que liberte o homem da
escravidão, através do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural,
ganhem, em troca, a liberdade civil.

Nas palavras de Rousseau, o Estado deve representar a vontade geral, um modelo


em que liberdade e igualdade se articulam indissociavelmente, tendo o povo como
soberano, sendo o único a determinar o modo de funcionamento da máquina política,
inclusive determinar a forma de distribuição da propriedade privada.

Na concepção de Rousseau, a vontade geral não representa apenas um momento


inicial de legitimidade, é necessário que ela permaneça ou então que ela se refaça a cada
instante “para que o corpo político se desenvolva, não basta o ato de vontade fundador
da associação, é preciso que essa vontade se realize” (NASCIMENTO, 1991, p. 197).

Na compreensão de Rousseau, para manter a liberdade e a igualdade do indivíduo,


o contrato social representa a entrega do particular (vontade individual) para o geral
(vontade geral), de modo que, quando ocorre a incursão no estado civil, não há uma
abdicação da liberdade, mas sim uma entrega dela para toda a comunidade, o homem ao
obedecer ao soberano obedece a si mesmo.

O pensamento de Rousseau é particularmente importante porque faz uma


distinção entre Estado e Governo, sendo este último o corpo administrativo do Estado,
como funcionário do soberano, um órgão limitado pelo poder do povo e não como um
corpo autônomo, ou então como o próprio poder máximo (NASCIMENTO, 1991).

Observamos, nessa concepção, os princípios democráticos no qual o respeito à


vontade geral está encarnada na maioria das pessoas. O poder não mais pertence a um
príncipe ou oligarca, mas à própria comunidade.

Para Rousseau, a representação política é dada no nível de Governo e jamais


do Estado, sendo a soberania inalienável. Para Rousseau, qualquer forma de Governo
que venha a ser adotada como monarquia, aristocracia ou democracia teria um papel
secundário dentro do Estado, porque a soberania sempre será do povo. “Mesmo sob um
regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se como soberano, desde
que o monarca se caracterize como funcionário do povo” (NASCIMENTO, 1991, p. 197).

Quanto ao soberano, ele se apresenta na forma da Constituição, lei máxima


instituída pela vontade geral. Dessa forma, o pensamento de Rousseau se opõe ao de
22 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Hobbes e Locke, pois propõe um Estado limitado pelo povo e que a propriedade seja o
caminho para igualdade e não para opressão, o que se aproxima muito dos estados
democráticos da atualidade.

REFLETINDO

Você já parou para pensar por que o pensamento de Rousseau, apesar de


ser um idealista, está presente no modelo de Estado atual? Ele teve forte
influência na Revolução Francesa, movimento que destituiu o poder soberano
dos reis e abriu caminho à democracia.

1.6 Comparando os Contratualistas


No quadro a seguir, podemos observar que, apesar dos contratualistas destacarem
um percurso semelhante em relação a chegada do estado civil, eles diferem em relação
às características desses estágios.

Quadro 1.1 – Comparativo entre os autores contratualistas.

CONCEITO THOMAS HOBBES JOHN LOCKE J.J. ROUSSEAU


Estado de O homem era guiado pelo O homem já possuía O homem retratado por Rousseau
natureza instinto egoísta - direito um domínio racional não é bom nem mau, a maldade
natural à vida. de suas paixões e seus se instala com a propriedade
interesses. privada.
Contrato Social O homem renuncia a Um pacto de Um pacto social que liberta
todos os seus direitos, consentimento em que o homem da escravidão, um
com exceção do direito os homens concordam pacto legítimo, através do qual
à vida, para delegar a livremente em formar a os homens, depois de terem
esse ente soberano - sociedade civil. perdido sua liberdade natural,
ganhem, em troca, a liberdade
submissão.
civil prevalecendo a vontade
geral.
Estado Civil Garantir a paz, a ordem e Para preservar e Para manter a liberdade e
a segurança. consolidar ainda mais a igualdade do indivíduo, o
os direito que possuíam contrato social representa a
originalmente no estado entrega do particular (vontade
de natureza como a individual) para o geral (vontade
vida, a liberdade e a geral), de modo que, quando
propriedade. ocorre a incursão no estado
civil, não há uma abdicação da
liberdade, mas sim uma entrega
dela para toda a comunidade.

Fonte: Elaborado pelo autor (2020).


A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 23

SAIBA MAIS

Para compreender melhor a relação entre o pensamento de Thomas Hobbes


e John Locke, sugerimos a leitura do artigo “Direito, Estado e Contrato
Social no pensamento de Hobbes e Locke: uma abordagem comparativa”,
de Antonio Carlos de Almeida Diniz. Disponível em: http://gg.gg/ip72r.

Como já foi dito, o modelo do Estado moderno se inicia a partir do renascimento


comercial e, posteriormente, com a Revolução Industrial. Torna-se evidente a importância
da economia e do comércio para as relações entre os Estados. O primeiro passo para
consolidação do Estado foi a dominação e unificação territorial, como bem demonstrado
por Maquiavel (1955). Por isso a presença constante de guerras e conflitos. Um segundo
passo foi o fortalecimento das instituições e a organização do aparato administrativo
do Estado, já que é por meio dele que se exerce o domínio. Em relação a organização
administrativa do Estado veremos o que descreve um dos mais importantes pensadores
desse campo no tópico a seguir.

1.7 O Conceito de Estado por Max Weber


Figura 1.5 - Max Weber.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).


24 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Max Weber (1864-1920) é um sociologo alemão conhecido pela sua obra “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”, em que descreve a influência da religião para o
desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos. Entretanto, os principais elementos de
sua teoria são encontrados em “Economia e Sociedade”, considerada a obra mais importante
desse autor, que reúne escritos de Weber organizado pela sua companheira e publicado após
a sua morte. Nessa obra ele desenvolve uma análise do Estado enquanto entidade política
baseada numa estrutura de poder e dominação. Weber apresenta uma visão positiva do
Estado Moderno ao relacioná-lo com o processo de dominação racional legal (burocracia) e,
em última instância, como o detentor do monopólio legítimo da violência.

Esse pensador nos traz uma análise institucional do Estado, demonstrando


a formação do aparato burocrático do Estado e da estrutura de dominação. Bianchi
(2014) analisa que a sociologia política weberiana é uma sociologia da dominação, que
considera a força e a violência como momentos essenciais do processo político e da
própria existência e funcionamento das instituições políticas

Segundo Weber (1999, p. 139), dominação é a “probabilidade de encontrar


obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinados grupos de
pessoas”. E porque os indivíduos concedem a dominação? Segundo ele, é porque em toda
dominação associa-se uma pretensão de legitimação. A dominação “pode basear-se nos
mais diversos motivos de submissão: desde os hábitos inconscientes até considerações
puramente racionais” (WEBER, 1999, p. 139).

Weber (1999) utiliza em suas análises os tipos ideais, classificados como


aproximações do real. Os tipos ideais são instrumentos de análise são categorias
criadas pelo pesquisador para apreender o real, é uma construção teórica, um modelo
abstrato desenvolvido para que se possa estabelecer comparações.

Dessa forma, ele classifica os três tipos puros de dominação legítima, segundo a
vigência de sua legitimação (WEBER, 1999. p. 141):

Dominação racional-legal: baseada na crença na legitimidade das ordens


estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão
nomeados para exercer a dominação legal

Dominação tradicional: baseada na crença cotidiana na santidade das tradições


vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições
representam a autoridade.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 25

Dominação carismática: baseada na veneração extracotidiana da santidade,


do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
reveladas ou criadas.

O filósofo alemão acrescenta:

No caso da dominação baseada em estatutos, obedece-se à ordem


impessoal, objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela
determinados, em virtude da legalidade formal de suas disposições e
dentro do âmbito da vigência destas. No caso da dominação tradicional,
obedece-se à pessoa do senhor nomeado pela tradição e vinculada a
esta (dentro do âmbito da vigência dela), em virtude de devoção aos
hábitos costumeiros. No caso da dominação carismática, obedece-se ao
líder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiança
pessoal em revelação, heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito de
crença nesse seu carisma (WEBER, 1999, p. 141).

Segundo Weber, a burocracia seria o tipo mais puro da dominação racional,


pois essa tem como princípios fundamentais a hierarquia funcional e a administração
baseada em documentos e em qualificações profissionais específicas. Nesse caso, a
obediência se presta não à pessoa, em virtude do próprio direito, mas à norma, à regra e
à competência. Um tipo de dominação estável.

O patriarcalismo seria o tipo mais puro da dominação tradicional em que se


presta obediência à pessoa por respeito em virtude da tradição de uma dignidade pessoal
que se julga sagrada. Todo o comando se prende intrinsecamente a normas tradicionais
(não legais).

Os profetas, os heróis e os demagogos expressam representações da dominação


carismática em suas ações e o papel e o reconhecimento que possuem diante dos
indivíduos. A obediência, nesse caso, se dá devido às suas qualidades pessoais, um “dom”
nato, uma capacidade de encantar as pessoas. Nesse tipo não há nenhum procedimento
ordenado para a nomeação e substituição. Não há carreiras e não é requerida formação
profissional por parte do “portador” (aquele que detém o dom) do carisma e de seus
assessores. Weber classifica essa dominação como instável, pois nada há que assegure a
perpetuidade da devoção afetiva a essa pessoa (dominador) por parte dos seus seguidores
(dominados).

Relembrando que Weber define o Estado como uma comunidade humana que,
nos limites de um território, reivindica com sucesso para si próprio o monopólio da
violência física (BIANCHI, 2014).
26 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Dessa forma, encontramos na sua definição três características do Estado: a


burocracia, o domínio sobre um território e o controle da força.

O controle da força física pode ser considerado o ponto mais emblemático dessa
definição. Ao falar sobre o surgimento do Estado Civil, o pensador Thomas Hobbes
destaca que, no Estado Civil, abrimos mão da nossa força física para delegá-la ao
Estado. Isso não significa que o Estado seja necessariamente violento, mas que somente
ele pode fazer uso da força. Ou seja, detém o monopólio. Dessa forma, quando temos
algum conflito interpessoal, temos que recorrer ao Estado para resolvê-lo. É ele quem
decide sobre propriedade, direitos e deveres e penalidades de todos que estão sob o seu
domínio, além de fornecer serviços essenciais à população.

O funcionamento do Estado Moderno é garantido por um amplo sistema de


regras e normas, caracterizado como administração racional-legal. Um exemplo claro do
funcionamento burocrático do Estado são as repartições públicas, espaço de atendimento
à população por parte do Estado. Nelas, a sociedade tem acesso aos serviços ofertados
pelo Estado. Como podemos observar na Figura 1.6, o atendimento feito num posto do
Instituto Nacional de Seguro Social - INSS

Figura 1.6 - Posto de atendimento do INSS.

Fonte: Divulgação INSS (2020).


A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 27

1.8 O Conceito de Estado por Norbert Elias


Assim como Max Weber, o pensador alemão Norbert Elias (1897-1990), autor de
“O processo Civilizador”, a “Sociedade da Corte” e “Os estabelecidos e os outsiders”,
irá contribuir para a compreensão do Estado Moderno. Sua análise sobre a consolidação
do Estado Moderno supera tanto as análises centradas no indivíduo (o papel ocupado
pelos reis, clero, representantes da burguesia e outros) como as centradas nas instituições
(monarquia, igreja e outras).

Na teoria sociológica de Elias, a relação entre o indivíduo e a sociedade é


concebida de outro modo. Ele não aceita qualquer tipo de concepção social totalizadora
e nem mesmo individualista dos processos sociais. Conforme Leão e Faria (2012):

Sua compreensão dos processos de civilização não concebe os objetos a


partir de mera localização em cronologias específicas ou reconstituições
de experiências sociais, políticas e culturais fixadas no “passado”. A
abordagem processual privilegia a análise do desenvolvimento e da
mudança (p. 458-459).

Elias recorre à história de boas maneiras analisadas a partir da observação da


sociedade da corte europeia, principalmente de um estudo realizado sobre a sociedade
europeia do século XVII e XVIII. Tudo o que vinha das vastas extensões do reino tinha
antes que passar pela corte até chegar ao rei, e tudo que vinha do rei tinha antes que
passar pela corte até chegar ao país. Deste modo, a corte constituía o local de origem
de toda a experiência e toda a compreensão do homem e do mundo no Antigo Regime
(ELIAS, 2001).

De acordo com o método desenvolvido pelo autor, a observação da sociedade da


corte seria necessária porque não se refere apenas à questão da etiqueta, mas também
diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e aos aspectos externos que
se revelam nas suas relações com os outros (ELIAS, 2001).

Para ele, essas regras precedem a existência do Estado. Todas as sociedades, ao


longo da história, criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações
entre grupos e pessoas. Alguns desses princípios impunham regras que, se não fossem
seguidas, estariam sujeitas a penalidades, que iam da desaprovação à exclusão daqueles
que não as respeitassem (ELIAS, 2001).
28 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

De acordo com a análise feita por Renato Janine Ribeiro, no prefácio de


“O processo Civilizador”:

Se não articularmos cada elemento da cultura humana, se não


engatamos o absurdo, jamais entenderemos o que os homens produzem
e como eles vivem. Norbert Elias adota, assim com ideias-chave, a tese
de que a condição humana é uma lenta e prolongada construção do
próprio homem (RIBEIRO apud ELIAS, 1993, p. 9).

Para Elias, os processos sociais que dão origem a configurações do tipo: família,
aldeia, cidade, estado e nações, que se formam a partir das atividades dos indivíduos
que, por meio de suas necessidades, são orientados uns para os outros e construindo
teias de interdependência.

O conceito de configuração pode ser aplicado onde quer que se formem conexões
e teias de interdependência humana, isto é, em grupos relativamente pequenos ou em
agrupamentos maiores.

A relação social entre os homens, compreendida como configuração, permite,


para Elias, entender o passado também como uma rede de interdependências e, assim,
ligarmos o presente ao passado e, nesse processo, compreendermo-nos a nós próprios
(COSTA; MENEZES, 2013).

Civilidade, civilização e civilizador são conceitos que expressaram o


desenvolvimento do que Elias chama de sociedade monopolizada, que se inicia com
a Sociedade de Corte, e que ganhou novas feições com a burguesia, a qual refinou a
existência dos monopólios, de estatais para supranacionais (COSTA; MENEZES, 2013).

O processo civilizador compreende, na visão de Elias, “as mudanças sociais,


que caracterizam-se, basicamente, pela existência e refinamento de monopólios, e as
mudanças individuais, que representam as mudanças ocorridas na concepção do próprio
indivíduo” (COSTA; MENEZES,2013, p. 250).

Sendo assim, o Estado Moderno pode ser entendido como uma configuração
social que se formou a partir da interação entre os diferentes agentes e o ambiente.

Em síntese, podemos, considerar sobre o pensamento de Norbert Elias (1993) que:

• O termo “civilização” configura-se como um conjunto de hábitos, valores e


costumes internalizados pelos indivíduos que lhes dão o caráter “social” ou
“humano”. Os seres humanos, por natureza, não possuem aspectos civilizados,
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 29

porém possuem um potencial que lhes permite adquirir e aprender os modos


civilizados de existência.

• Um aspecto vital da civilização, para Elias, é a autorregulação dos impulsos e


pulsões, o autocontrole das energias instintivas que brotam dos seres humanos.
Importante frisar que se trata de um “autocontrole”, ou seja, diferentemente de
coações externas que eram antes necessárias para a convivência humana.

• Os modos civilizados de ser têm relação estreita com o refinamento dos costumes,
que passam a caracterizar os indivíduos ocidentais modernos. A limpeza e a
higiene pessoal são exemplos básicos desse refinamento dos costumes.

1.9 O Conceito de Estado por Charles Tilly


A obra do cientista social norte-americano Charles Tilly (1929-2008) “Coerção,
capital e Estados europeus”, publicada em 1990, é considerada um dos estudos mais
abrangentes sobre a formação dos Estados nacionais.

Ele explica como essa entidade política se tornou dominante em relação às


organizações políticas anteriores. A formação dos Estados nacionais não foi um
processo uniforme, mas exigiu um elevado nível de coerção e de capital em diferentes
configurações.

Quanto mais meios de guerra os governantes e outras empresas coercivas


extraíram das suas economias locais, mais as classes principais dentro
dessas economias lograram exigir a intervenção do estado fora do
domínio da coerção e da guerra” (TILLY, 1996, p. 159).

O ponto chave para entender o desenvolvimento dos estados nacionais, na visão


de Tilly (1996), está na análise da acumulação do capital e na capacidade de coerção,
ou seja, a capacidade de impor a sua vontade sobre os demais. A conjugação desses dois
fatores resulta em “onde prosperaram os fidalgos, houve Estados ricos em coerção. Onde,
todavia, prosperaram capitalistas, preponderavam Estados ricos em capital” (TILLY,
1996, p. 224).

Tilly compreende capital como “pensemos no capital com generosidade,


englobando alguns recursos móveis tangíveis e os direitos legítimos sobre esses recursos”
(TILLY, 1996, p.64) e coerção como “coerção compreende toda aplicação combinada -
30 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

ameaçada ou real - de uma ação que comumente causa perda ou dano às pessoas ou
às posses de indivíduos ou grupos, os quais estão conscientes tanto da ação quanto do
possível dano” (TILLY, 1996, p. 67).

Ele observa, ainda, que as variações em diferentes tipos de organização dos


estados e seu êxito são resultantes das variações na distribuição de coerção e de capital.
Esse autor frisa uma análise centrada no conflito, em que é um fenômeno estruturador
da vida social. Ele acrescenta que a necessidade da guerra produziu e modificou os
aparatos estatais, além das variáveis coerção e capital, em que preparação para guerra
e a guerra em si contribuíram para configuração dos estados modernos (TILLY, 1996).

SAIBA MAIS

Vamos aprofundar um pouco mais sobre as origens e o desenvolvimento


do Estado Moderno. No artigo “Sobre as origens e o desenvolvimento do
Estado Moderno no Ocidente”, de Modesto Florenzano, você encontrará
outras visões da historiografia sobre a formação do Estado Moderno.
Disponível em: http://gg.gg/ip81g.
A Formação do Estado Moderno | UNIDADE 1 31

SÍNTESE DA UNIDADE
Iniciamos nossa Unidade demonstrando a relação entre Estado e Poder e
nesse tópico destacamos o pensamento de Nicolau Maquiavel. Vimos como o termo
“maquiavélico” está presente no nosso cotidiano e, como destaque, descrevemos o
Estado Absolutista. Apresentamos, também, o pensamento dos contratualistas: Thomas
Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau e como esses autores teorizaram sobre a
formação do Estado e o tipo de Estado que defendem. Por fim, apresentamos os autores
que escreveram sobre o funcionamento do Estado, dando destaque para Max Weber e
seu conceito de burocracia.
32 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

REFERÊNCIAS
BIANCHI, A. O conceito de Estado em Max Weber. Lua Nova, São Paulo, 92: 79-104, 2014.
Disponível em: http://gg.gg/ip859. Acesso em: 19 abr. 2020.
COSTA, C. J; MENEZES, S. L. Norbert Elias e a teoria dos processos civilizadores. Revista
HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 238-262, out 2013. Disponível em: http://gg.gg/ip84k.
Acesso em: 20 abr. 2020.
DINIZ, A. C. de A. Direito, Estado e contrato social no pensamento de Hobbes e Locke:uma
abordagem comparativa. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 29, n. 152, out. /dez. 2001.
ELIAS, N. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia da
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
ELIAS, N. O processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
LEÃO, A. B, FARIAS, E. Apresentação. Soc. estado, Brasília, v. 27, n. 3, p. 458-468, 2012.
Disponível em http://gg.gg/ip88d. Acesso em: 24 mar. 2020.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Vecchi, 1955.
MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C.
Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1991. p. 79-110.
OLIVEIRA, M. “Maquiavel”; Brasil Escola. Disponível em: http://gg.gg/ip88u.
Acesso em: 16 abr. 2020.
PELICIOLI, A. C. P. A atualidade da reflexão sobre a separação dos poderes. Revista de
Informação Legislativa. Brasília a. 43 n. 169 jan./mar. 2006. Disponível em: http://gg.gg/ip898.
Acesso em: 17 abr. 2020.
RIBEIRO, R. J. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da
política. São Paulo: Ática, 1991. p. 51-77.
SANTOS, R. P. Hobbes e a filosofia do poder: os “princípios” antipolíticos do leviatã na leitura
de Hannah Arendt. Kriterion, Belo Horizonte , v. 58, n. 136, p. 203-220, Apr. 2017. Disponível
em: http://gg.gg/ip89r . Acesso em: 17 abr. 2020.
SARAT, M. S; SANTOS, R. S. Sobre Processos Civilizadores:diálogos com Norbert Elias.
Dourados : Ed. UFGD, 2012.
TILLY, C. Coerção, capital e estados europeus. São Paulo: EDUSP, 1996.
WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:
UNB, 1999.
WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática. 1991.
WOLKMER, A. C. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revista dos tribunais, 2000.
WOLKMER, A. C. Introdução a História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
unidade

2
Estado Moderno como Facilitador da
Cidadania
Prezado(a) estudante.

Estamos começando uma unidade desta disciplina. Os textos que a compõem foram
organizados com cuidado e atenção, para que você tenha contato com um conteúdo
completo e atualizado tanto quanto possível. Leia com dedicação, realize as atividades e
tire suas dúvidas com os tutores. Dessa forma, você, com certeza, alcançará os objetivos
propostos para essa disciplina.

OBJETIVO GERAL
Apresentar a relação do Estado com a construção dos direitos (cidadania).

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Contextualizar os ambientes social, político e econômico da construção da cidadania
(Revolução Francesa, Estadunidense, Industrial);

• Apresentar os diferentes conceitos de cidadania;

• Relacionar as definições e a construção da cidadania com a formação do Estado.

QUESTÕES CONTEXTUAIS
• Como se constrói a cidadania?

• O que é cidadania?

• O que é ser cidadão?

• Como se exerce a cidadania?

• Existe cidadania no Brasil?


34 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

2.1 Cidadania: um Conceito Histórico


No contexto atual, o conceito de cidadania e democracia estão constantemente no
debate público. Entretanto, temos que compreender que ambos se tratam de um conceito
histórico. Ou seja, a sua consecução está ligada a um conjunto de fatores que, ao longo da
história, foram se consolidando para chegarmos ao exercício pleno da cidadania. Ideias
sobre justiça, liberdade, igualdade e participação política fazem parte desse processo.

Muitas pessoas associam a cidadania ao direito de votar, mas ela não se limita a
ele. O direito à vida, à liberdade, à moradia digna, à saúde, à educação e à participação
política fazem parte da cidadania.

A Grécia antiga é considerada o berço da cidadania e da democracia. Na polis


grega, com as Cidades-Estados (que significa cidade independente, com governo próprio
e autônomo), os homens livres tomavam decisões administrativas e jurídicas sobre a
vida na cidade. Esse espaço era destinado ao exercício de direitos e deveres perante a
coletividade e a cidade era, por excelência, o lugar do exercício da cidadania. Entretanto,
devemos ressaltar que a participação na polis era restrita, ficando de fora mulheres,
crianças e escravos (COVRE, 1991).

Com o domínio espartano sobre Atenas, a democracia grega entrou em um longo


período de adormecimento. Entre os séculos V e XV, o modo de organização feudal,
cuja atividade era predominantemente rural colocou as cidades em um plano secundário.
Lembrando que: cidadania e democracia estavam fortemente relacionadas à vida na
cidade. A cidade e a vida urbana só retomará sua importância com a transição do sistema
feudal para o sistema capitalista (COVRE, 1991).

A partir da emersão da burguesia (classe de pequenos comerciantes formada nos


burgos), o capitalismo como sistema econômico baseado na mão de obra livre tomou
impulso. Para o seu pleno desenvolvimento, a classe burguesa requisitou o domínio
do poder. Em um contexto dominado pelos Absolutistas, a burguesia, enquanto classe,
movida pelos interesses da expansão capitalista, instaurou movimentos revolucionários
contra esse sistema. Ideais como liberdade e igualdade foram os motores dessa luta
(COVRE, 1991).
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 35

O desenvolvimento do comércio e do processo fabril solicitava mão de obra livre e


evidenciava a importância dos direitos civis, fazendo insurgir, liderados pela burguesia,
as Revoluções Burguesas, movimentos que lutavam contra as monarquias absolutistas e
clamavam por direitos civis e políticos.

O movimento mais emblemático dessa luta foi a Revolução Francesa, o que


representou, também, além da derrocada do absolutismo, um importante passo na
construção da cidadania moderna. A declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
promulgada na França, no dia 26 de agosto de 1789, significou a consagração da
Revolução Francesa contra o imperativo da Monarquia Absolutista (COVRE, 1991).

DESTAQUE

Revolução Francesa: foi um movimento iniciado na França (1789-1799)


responsável pelo fim da monarquia e por inspirar ideais republicanos em
todo o mundo. Marcou a história pela disputa no campo das ideias e do
poder, em que muitas pessoas morreram e importantes figuras da monarquia
foram decapitadas em praça pública. A tomada da Bastilha, em 14 de julho
de 1789, marcou o início do movimento que teve impacto duradouro que se
faz presente até hoje.

Com a declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a temática da cidadania


ganhou destaque, já que representou o reconhecimento da liberdade e igualdade perante
a lei e a ideia do homem como sujeito de direitos e deveres se confirmou.

A expressão “a cada direito corresponde um dever” representa a constituição


do cidadão, aquele que tem direitos e deveres perante uma sociedade política. A
sociedade política em questão é o Estado-Nação, uma organização política e territorial.
Como afirma Carvalho (2008), a luta pelos direitos sempre se deu dentro das fronteiras
geográficas e políticas do Estado-Nação. Assim, o cidadão também era o nacional. As
pessoas passam a ser cidadãos à medida que começam a se sentir parte de uma nação e
de um Estado (CARVALHO, 2008).
36 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Figura 2.1 - Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789 (óleo sobre tela).

Fonte: Domínio Público (2020).

Outro fato histórico relevante para consagração dos direitos do homem foi a
Independência Americana, que ocorreu no dia 04 de julho de 1776, cuja declaração
expõe sobre as injustiças políticas e a proclamação dos direitos humanos. Thomas Jefferson
expõe: “Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados
iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a
vida, a liberdade e a busca da felicidade” (JEFFERSON apud HUNT, 2009, p. 13).

Observamos que a dimensão da cidadania está intimamente relacionada com


o período histórico e a sociedade vigente, e dentre esses fatores devemos considerar
também as relações políticas, econômicas e sociais.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 37

VÍDEO

Apesar dos Estados Unidos terem declarado a igualdade na sua carta


de independência, a prática da discriminação racial contra os negros
permaneceu até 1964, quando foi assinada a Lei de Direitos Civis que
colocou fim a segregação racial. Para compreender a luta por direitos civis
nos Estados Unidos vale a pena ler o livro de Harper Lee “O Sol é para
todos” ou assistir ao filme baseado na obra. Assista ao comentário de
Rubens Ewald Filho sobre o filme. Disponível em: http://gg.gg/ip8y2

Observamos que, até então, a luta estava centrada na liberdade civil (direitos
civis). Entretanto, a história da cidadania moderna compreende o conjunto dos direitos
civis, políticos e sociais. Thomas Marshall, em 1950, publicou um livro intitulado
“Cidadania e Classe Social”, que se tornou uma obra clássica, na qual ele apresenta
uma análise da conquista da cidadania na Inglaterra através de uma cronologia da
geração dos direitos.

Apesar dos estudos de Marshall terem tido como foco o caso da Inglaterra, uma
sociedade que tem uma trajetória política e social diferente de outros países europeus,
há, também o fato de ter passado pela Reforma Protestante, o que não foi impeditivo
para que suas análises servissem de modelo para estudar a conquista da cidadania em
outros países (VIEIRA, 2009).

Marshall classifica os direitos civis e políticos como sendo direitos de primeira


geração e os direitos sociais como de segunda geração (VIEIRA, 2009). De acordo com
ele, os direitos civis se consolidaram no século XVIII a partir dos movimentos de luta
por independência e autonomia da classe burguesa frente às monarquias absolutistas, os
direitos políticos no século XIX e os direitos sociais no século XX (VIEIRA, 2009).
38 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Os direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade


privada e à igualdade perante a lei. É o direito de ir e vir e de liberdade de expressão e
pensamento. Para Marshall, os tribunais de justiça são as instituições mais intimamente
associadas com os direitos civis (OLIVEIRA, 2010).

Os direitos políticos, como o de participação nas decisões políticas e o de votar e


ser votado, ampliado a toda a sociedade, foram conquistados a partir da batalha travada
entre a classe trabalhadora, além dos grupos excluídos desses direitos, como as mulheres
e os negros, contra as elites econômicas e políticas.

Inicialmente, a atividade política era uma função de poucos, restrita à participação


das elites dominantes. A ampliação desse direito percorreu um longo período de lutas
históricas e, ainda assim, se mantém inoperante para grande parcela do globo que está
submetida a regimes ditatoriais.

Os direitos sociais que tratam dos direitos de bem-estar social como saúde,
educação, moradia, trabalho, aposentadoria etc. têm início nas lutas travadas pelos
trabalhadores no período da Revolução Industrial, quando estes eram submetidos a
jornadas de trabalho desumanas e a condições precárias de salubridade. De acordo com
Weis (1999), as primeiras conquistas dos direitos sociais se limitavam a proteger os
trabalhadores e se consolidaram em resposta ao tratamento predatório oferecido pelo
capitalismo industrial em meados do século XIX.

DESTAQUE

Revolução Industrial: foi um movimento ocorrido a partir da segunda metade


do século XVIII, tendo a Inglaterra como berço e a invenção da máquina a
vapor como motor. A partir dessa invenção, os teares manuais passaram
a ser movidos por máquinas, o que levou ao aumento da produtividade e
necessidade de escoar mais mercadorias. Esse movimento se espalhou por
todo mundo, revolucionando a forma de produzir e imprimindo uma nova
forma nas relações de trabalho.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 39

Com a crise econômica ocasionada pela queda da bolsa de Nova York, em


1929, a vulnerabilidade da classe trabalhadora se evidenciou e os movimentos sociais e
sindicais se intensificam, aumentando o conflito social. A necessidade de atendimento
a essas demandas conduziu o Estado para um modelo de Estado de Bem-Estar Social,
também chamado de Welfare State, em que esse se compromete gradualmente com o
atendimento das demandas sociais.

A partir dos anos 1970, nos países de capitalismo central, surgiram os Novos
Movimentos Sociais demandando os chamados direitos difusos ou direitos de terceira
geração como: direito de proteção aos animais, direito ambiental, direito das mulheres,
homossexuais e outros. A característica principal desses movimentos é que eles se
desvinculam dos tradicionais movimentos das classes trabalhadoras.

Figura 2.2 - Direito Ambiental é um exemplo de Direito Difuso.

Fonte: Freepik (2020).


40 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

2.2 Direitos Civis


Os direitos civis referem-se ao direito de domínio sobre o próprio corpo, direito
de ir e vir, de se expressar, de professar uma fé, direito de propriedade, direito de
associação e acesso à justiça (COVRE, 1991). Apesar de parecer natural esse domínio,
encontramos constantemente situações em que os direitos civis são cerceados, como, por
exemplo, a imposição de governos autoritários, de ditaduras.

Esses direitos são efetivados na Constituição, documento destinado a delimitar


os direitos e deveres do cidadão. A Declaração Universal dos Direitos Humanos,
proclamada em 1948, após a Segunda Guerra Mundial, também condensa os direitos
civis. Essa Declaração representou um movimento dos países no pós-guerra em evitar
que atrocidades como a perseguição e assassinato de milhares de judeus (holocausto)
nunca mais ocorresse.

DESTAQUE

Constituição: são documentos que limitam o poder dos governantes, que


impedem a tirania e o arbítrio deles contra o povo. Na constituição estão
condensados os direitos e deveres dos cidadãos (COVRE, 1991).

Quem nunca ouviu falar dos órgãos de censura instaurados durante a Ditadura
Militar no Brasil? As músicas, as peças teatrais, os livros e outras formas de expressão
artística eram obrigadas a passar por esses órgãos a fim de obter autorização para serem
publicadas.

Na contemporaneidade podemos citar ainda o trabalho forçado, análogo à


escravidão, que ainda persiste na sociedade capitalista contemporânea, a intolerância
religiosa e a dominação de estados paralelos.

Um exemplo de estados paralelos são as milícias que cerceiam os direitos dos


cidadãos e impõem penalidades. Como demonstrado por diversos estudos, as milícias
atuam cobrando serviços (como gás, internet, tv a cabo) a moradores de regiões periféricas
nos grandes centros urbanos como suposta troca de proteção contra os traficantes de drogas.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 41

DESTAQUE

Milícias, segundo Zaluar e Conceição (2007), é uma palavra comumente


usada para designar uma força militar de cidadãos ou civis que pegam em
armas para garantir sua defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar
em situações de emergência.

Historicamente o papel das milícias eram de atuar contra um monarca


tirano em defesa das liberdades civis. Atualmente, no Brasil, o termo milícia
refere-se a policiais e ex-policiais (principalmente militares), uns poucos
bombeiros e uns poucos agentes penitenciários, todos com treinamento
militar e pertencentes a instituições do Estado que tomam para si a função
de proteger e dar “segurança” em vizinhanças, supostamente ameaçadas
por traficantes predadores (ZALUAR; CONCEIÇÃO, 2007, p. 90).

Como podemos observar, a realização desse direito encontra diversas barreiras


como as do próprio sistema capitalista ao imprimir a exploração do trabalho sem a justa
compensação da classe trabalhadora, a inoperância do Estado em garantir a segurança e
os serviços básicos além da arbitrariedade dos governos autoritários.

SAIBA MAIS

Diversos estudos têm sido publicados a respeito da dominação das milícias


nas favelas cariocas. O estudo apresentado no artigo “Favelas sob o
controle das Milícias no Rio de Janeiro: que paz?” analisa o surgimento e
expansão das milícias no Rio de Janeiro que controlam territórios de favelas,
comparando este poder militar com o domínio exercido por facções de
traficantes em outras favelas. Disponível em: http://gg.gg/ip99m.

Figura 2.3 - Vida cotidiana na Rocinha, a maior favela do Rio de Janeiro,


entre tentativas de pacificação e explosões de violência.

Fonte: Tierras de América (2020).


42 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

2.3 Direitos Políticos


Os direitos políticos consistem no direito de participação nas decisões políticas
do país, como o direito de votar e ser votado num processo eleitoral de escolha de
representantes políticos, assim como o direito de associação, seja ela sindical, comunitária,
participação em conselhos, partidos políticos e outros.

A democracia é o principal meio de concretização desse direito. Os estados


democráticos são instituições que apareceram na história a partir da luta de determinados
grupos pela possibilidade de participar das decisões políticas do território. Por vezes, não
estão totalmente consolidados e vivem por ameaças constantes de governos autoritários
e totalitários que se impõe sobre a vontade da maioria (VIEIRA, 2009).

A democracia representativa – modelo em que se delega a um representante


o direito de decidir em nome do representado – é exercida, principalmente, pela forma
do sufrágio (voto), sendo este o instrumento pelo qual se autoriza essa representação
(BESTER, 2016).

De acordo com Bester (2016), simbolicamente as pessoas passam uma procuração


para que ajam em seus nomes. Sendo assim, “cada indivíduo transfere uma fração de
poder, frações essas que, somadas, constituem a soberania popular, neste caso exercida
por meio dos representantes eleitos” (BESTER, 2016. p. 330).

Entretanto, como afirma Vieira (2009), a democracia não é apenas um regime


político com partidos e eleições livres. É, sobretudo, uma forma de existência social.

Figura 2.4 - Uma Sessão Eleitoral em Dia de Votação.

Fonte: Divulgação TSE (2020).


Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 43

REFLETINDO

Há um forte debate no Brasil em que se evoca o fato de jovens a partir de 16


anos poderem votar. Qual a idade ideal para exercer o direito ao voto? Não
seria interessante colocar nossos jovens o quanto antes a par das questões
políticas para que eles possam contribuir para o avanço democrático?

Um outro debate também muito evocado é o fato de pessoas não alfabetizadas


poderem votar. Qual a sua opinião sobre esse tema? Será que essa pergunta
não deveria ser invertida? Porque existem analfabetos no Brasil?

Os direitos políticos inicialmente eram reservados a uma pequena parcela


da população, geralmente restritos aos homens brancos e proprietários (ricos), era o
chamado voto censitário que limitam o direito ao voto a pessoas com determinadas
características de gênero e poder aquisitivo. A França foi o primeiro país do mundo a
adotar o sufrágio universal, em 1848, quando foi abolido o voto censitário e o direito de
ser eleitor deixou de estar atrelado a exigências monetárias (BESTER, 2016). Entretanto,
apesar de abolir exigências monetários o voto universal ficou restrito ao homem.

A abolição do sufrágio censitário afirmou uma cidadania que desvelou


uma visibilidade sem precedentes até então na separação política
entre homens e mulheres. E foi justamente a partir dessa época que se
começou a pensar a situação política das mulheres como efetivamente
uma exclusão deliberada (BESTER, 2016, p. 332).

A partir dessa exclusão deliberada ficou explícito o papel delegado às mulheres,


que deveriam se dedicar às atividades da casa, pois a política era destinada aos homens.
Entretanto, as mulheres não se contentaram com essa posição e o movimento feminista
começou a ganhar corpo (BESTER, 2016).

As mulheres que lutavam pelo direito ao voto ficaram conhecidas como


sufragistas, e esse direito foi sendo conquistado lentamente nas diferentes partes do
mundo. Na Arábia Saudita, por exemplo, as mulheres só conquistaram esse direito em
2011. Os primeiros países a reconhecerem o direito das mulheres ao voto foi a Nova
Zelândia, em 1893, e a Finlândia, em 1906.

No Brasil, a luta sufrágica foi longa e árdua, sendo que as primeiras manifestações,
isoladas, por parte de mulheres, teriam aparecido por volta de 1832 (BESTER, 2016).
“Destaque é dado, nos relatos históricos, à atuação da feminista e ativista política Bertha
44 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Lutz, que foi a grande líder do movimento sufragista brasileiro em seus últimos anos”
(BESTER, 2016, p. 336).

Após inúmeros prós e contras, avanços e retrocessos na luta, por fim o direito ao
voto feminino no Brasil foi assegurado, em âmbito nacional, no Código Eleitoral de
1932, cem anos após as primeiras manifestações (BESTER, 2016).

SAIBA MAIS

No artigo “A luta sufrágica feminina e a conquista do voto pelas mulheres


brasileiras: aspectos históricos de uma caminhada”, a autora Gisela Maria
Bester analisa a luta feminina pelo direito ao voto e como isso significou a
emancipação política da mulher. Disponível em: http://gg.gg/ip9f7.

Figura 2.5 - Estátua da sufragista Millicent Garrett Fawcett – primeira estátua


de uma mulher colocada na Praça do Parlamento em Londres, em 2018.

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2020).

A possibilidade de participação sobre as decisões políticas, que deveria ser


estendido de forma representativa e proporcional a toda a população, ainda não é uma
realidade para muitos indivíduos, principalmente se olharmos pelo aspecto do gênero,
da raça e da classe social. A presença dos segmentos populares, de mulheres e de negros
nos postos de decisão política ainda não são proporcionais a número deles na sociedade
como um todo. Como apontado nos estudos de Biroli e Miguel (2015) sobre o caso
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 45

brasileiro, observa-se que as desvantagens incidem sobre determinadas grupos sociais


com clivagem de gênero, raça e classe, sendo o grupo das mulheres negras em posição
de maior desvantagem em relação aos demais.

A convergência entre essas variáveis estabelece uma pirâmide na qual


a base é formada por mulheres negras, com o posicionamento em
sequência de homens negros, mulheres brancas e, por fim, no topo,
homens brancos. As posições mais elevadas conjugam patamares
superiores de rendimento médio e ocupações mais valorizadas (o que
define posições que não se esgotam no salário recebido, desdobrando-se
no acesso a espaços, contato, respeito) (BIROLI; MIGUEL, 2015, p. 42).

Portanto, no caso brasileiro a efetivação dos direitos políticos está limitado pelas reais
possibilidades enfrentadas pela classe trabalhadora nas suas dimensões de raça e gênero.

2.4 Direitos Sociais


Por fim, o direito social se liga ao elemento social e relaciona-se aos direitos de
bem-estar. A visão de que o bem-estar do cidadão é um dever do Estado é bem recente
na história da humanidade. Somente no século XX, o Estado passou a se responsabilizar
com a reprodução social dos indivíduos. Primeiro foi necessário instituir o direito civil.
Sem ele não se poderia lutar pelos direitos políticos e, graças a eles, que os indivíduos,
por meio de associações, movimentos sociais, partidos e entidades, vem lutando para
implementação dos direitos sociais. Se enquadram em direitos sociais: o direito à
saúde, à educação, à moradia, ao trabalho em condições dignas e remuneração adequada
às necessidades básicas, direito a aposentadoria etc (VIEIRA, 2009).

Figura 2.6 - Pessoa em situação de rua.

Fonte: Divulgação MP Bahia (2020).


46 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

A consolidação dos direitos sociais ainda não é uma realidade para milhões de
pessoas em todo planeta. Segundo o relatório da Organização Mundial da Saúde de 2018,
menos da metade da população mundial recebe todos os serviços de saúde essenciais.
Em 2010, por exemplo, quase 100 milhões de pessoas foram levadas à pobreza extrema
por terem que pagar pelos serviços de saúde com dinheiro do próprio bolso (ASBRAN,
2020).

Segundo levantamento da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias


(Abrainc) em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), o déficit habitacional no
Brasil chegou a 7,78 milhões de moradias em 2017 (MCMV, 2019).

A não realização dos direitos sociais comprometem os demais direitos, com a


precariedade de vida, a falta de acesso ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação
deixando milhares de pessoas à margem da cidadania.

A cidadania é um exercício mediado pelo Estado, mas que se realiza na luta


social, como expõe Geaquinto (2002, p. 15):

Cidadania é a mola mestra do desenvolvimento da pessoa humana,


como agente realizador de transformações históricas, na busca do
aprimoramento das instituições políticas e sociais e do resgate dos
ideais de igualdade e fraternidade; e por entender, também, que só o
homem atuando de forma consciente e solidária pode mudar a realidade
tal qual ela se nos apresenta nos dias de hoje.

A realização humana, como exposto no pensamento de Geaquinto (2002), se


constitui na luta histórica pela transformação social. A busca pela cidadania é uma
questão de sobrevivência mesmo para aqueles que nunca souberam o que é cidadania.

Eu, por experiência própria, como trabalhador braçal que já fui, bóia-
fria, servente de tudo, peão, mão-de-obra barata e desqualificada,
sem carteira assinada e outros direitos básicos, quase nada sabia de
cidadania, apesar de praticamente ter passado uma vida toda tentando
ser cidadão (GEAQUINTO, 2002, p. 14).

O reconhecimento formal dos direitos (garantidos por lei) não é suficiente para se
instituir a cidadania. Para efetividade dos direitos sociais é necessário, primordialmente,
a regulação e intervenção do Estado para sua realização. A principal forma de realização
dos direitos sociais ocorrem por meio das políticas públicas e ações direcionadas pelo
Estado para solução dos conflitos sociais. Os direitos sociais permitem às sociedades
politicamente organizadas reduzir as desigualdades produzidas pelo capitalismo através
do princípio de justiça social (CARVALHO, 2008).
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 47

REFLETINDO

Será que um trabalhador que vive na informalidade, que não teve acesso
à educação, saúde e moradia dignas pode ser considerado um cidadão?
Observamos que a realização dos direitos e o exercício da cidadania não
se dá de forma completa para todas as pessoas, colocando pessoas na
condição de subcidadãos ou cidadãos incompletos.

SAIBA MAIS

No livro “Cidadania o direito de ser feliz”, Willes S. Geaquinto propõe, como


mesmo afirma, uma contribuição, um ato de fé na possibilidade da evolução
humana e realização cidadã. Disponível em: http://gg.gg/ip9mq.

2.5 Entre a Cidadania e o Estado


A partir do que foi apresentado, podemos afirmar que a cidadania busca, por
meio dos direitos individuais e coletivos, exercer controle sobre o Estado. Entretanto,
podemos observar que o conjunto de direitos impõe tensões entre cidadania versus
Estado, visto que os direitos de primeira geração (civis e políticos) requerem uma
maior liberdade do indivíduo. Ou seja, menos intervenção do Estado (estado mínimo)
substrato do chamado Estado Liberal, enquanto que os direitos de segunda geração
(sociais) demandam uma presença maior do Estado (estado de providência) substrato
para modelos como o socialismo e a social democracia (VIEIRA, 2009).

Em razão dessa dualidade e da possibilidade de se pensar diferentes modelos de


intervenção e mediação do Estado na sociedade, observamos uma constante disputa entre
esses modelos. Por um lado, os Estados Unidos, como berço do liberalismo, adepto das
concepções desenvolvidas pelo economista Adam Smith da “mão invisível do mercado”,
e na crença numa auto regulação do mercado sem a necessidade de intervenção do
Estado, e por outro os países do bloco socialista (antiga União Soviética – atualmente
liderado pela Rússia) e países que fizeram a Revolução Comunista como Cuba, China,
Coreia do Norte e outros.

Os países socialistas foram influenciados pelas teorias desenvolvidas por Karl


Marx (1818-1883), que se opõe ao liberalismo, denunciando a falácia dos direitos formais dos
48 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

liberais. “Para Marx, os direitos do homem não eram universais, eram direitos históricos da
classe burguesa ascendente em sua luta contra a aristocracia” (VIEIRA, 2009, p. 33).

À medida que a divisão de classe fosse superada, não necessitaria mais do


Estado. Entretanto, numa perspectiva real, as Revoluções Socialistas não suplantaram o
Estado e mantiveram essa estrutura, como foi o caso da Rússia. No Estado Socialista,
a propriedade privada é suplantada e o Estado passa a ser o detentor dos meios de
produção e a produção é centrada na satisfação da população e não na obtenção de lucro,
como no capitalismo. Diferentemente, o foco centra-se nos direitos sociais.

DESTAQUE

Socialismo: De acordo com o pensamento de Karl Marx (1818-1883),


o socialismo seria uma etapa para se chegar ao comunismo (sociedade
sem Estado), um estágio em que a classe trabalhadora toma o Estado e
implementa a coletivização dos meios de produção.

Nesse meio, ainda temos os países que, após a queda na bolsa de 1929 e
posteriormente no pós Segunda Guerra Mundial, inspirados na teoria de John Maynard
Keynes (1883-1946), criaram um modelo de proteção social chamado de Welfare State
ou keynesianismo, em que o Estado tem uma ampla atuação na sociedade a fim de
garantir o bem-estar social. Nessa linha temos países como Inglaterra, Alemanha e
outros modelo chamados de social democracia.

Nesse modelo, o papel do Estado é ampliado e esse passa ser o principal provedor
dos serviços básicos. O Estado é considerado eficiente no atendimento a esses serviços
em contrapartida aos serviços privados que passam a ser focalizados. Você tem um
amplo atendimento público nas áreas de saúde, educação, seja básica ou superior,
habitação, proteção ao trabalhador como licença maternidade e paternidade, auxílio
financeiro em diversas situações, aposentadorias etc.

DESTAQUE

Keynesianismo é um modelo inspirado na teoria de John Maynard Keynes


(1883-1946) que defende a máxima intervenção do Estado na economia.
Como forma de impulsionar o desenvolvimento econômico, nesse modelo
o Estado garante os mínimos sociais, liberando recursos dos trabalhadores
para o consumo. Assim as fábricas produzem mais porque têm potenciais
consumidores.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 49

Além desse modelo há também o modelo implementado nos países escandinavos


como: Dinamarca, Islândia, Noruega, Suécia e Finlândia. Também chamado de capitalismo
nórdico, esses países implementaram um conjunto ainda mais amplo de políticas sociais,
conhecido como sistema de proteção do nascimento à morte (ABRAHAMSON, 2012). A
característica principal desse modelo é o seu universalismo. Ele cobre toda a população
e o caráter de elegibilidade é universal e não seletivo ou contributivo, como ocorre em
outros sistemas. Como expõe Abrahamson (2012, p. 9):

Em outras palavras e com algumas limitações, o modelo escandinavo:


é universal e (portanto) caro; é financiado por impostos; é baseado na
provisão pública de transferências e serviços; tem ênfase em trabalhos
sociais pessoais em vez de transferências; fornece serviços de alta
qualidade; possui altos índices de compensação, por isso é igualitário;
é baseado num alto grau de participação no mercado de trabalho de
ambos os sexos.

Como exposto na passagem, esse sistema é caro, o que requer uma grande despesa
de recursos por parte do Estado. E de onde vêm os recursos do Estado? Do pagamento
de impostos. Portanto, o Estado de bem-estar social, em geral, traz um custo elevado
para o Estado e uma alta carga tributária, o que encontra constantemente opositores.

SAIBA MAIS

O modelo escandinavo é apontado como um modelo a ser seguido. Se você


tem interesse em conhecer um pouco mais sobre esse modelo e como
ele se consolidou, recomendo o artigo de Peter Abrahamson “O modelo
escandinavo de proteção social”. Disponível em: http://gg.gg/ip9xy.

A partir dos anos de 1970, opositores desse sistema, inicialmente na Inglaterra


e nos Estados Unidos, clamaram por reformas que limitassem a atuação do Estado de
bem-estar social. Esse movimento foi inspirado nas teorias desenvolvidas na Escola de
Chicago (como ficou conhecido um grupo de professores que trabalhavam na Universidade
de Chicago nos Estados Unidos), comandada pelo professor Milton Friedman, dando
origem ao neoliberalismo, que você verá de maneira mais aprofundada na Unidade 4.

O neoliberalismo é um modelo inspirado na teoria liberal clássica que preconiza


que o Estado deve limitar a garantir os direitos civis e políticos e evitar intrometer-se na
atividade econômica. Esse pensamento também teve influência da teoria desenvolvida
por Hayek, que vê o mercado como única solução para o problema da produção e
distribuição de riqueza (VIEIRA, 2009).
50 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Na Europa, as primeiras medidas nesse sentido foram implementadas pela


Primeira Ministra da Inglaterra, Margareth Tatcher. Na América Latina, o Chile é
considerado pioneiro no neoliberalismo. Lá, as reformas foram comandadas na década
de 1970 pelo ditador Augusto Pinochet que, dentre outras medidas, privatizou as
universidades públicas, o sistema previdenciário e de saúde.

DESTAQUE

Neoliberalismo: é uma corrente desenvolvida na Escola de Chicago por meio


do pesquisador Milton Friedman e de seus colegas que retoma os princípios
do liberalismo clássico, preconizando a mínima intervenção do Estado. É
também conhecido como modelo privatista porque defende que o mercado
é mais eficiente no provimento de serviços.

Entretanto, como destaca Vieira (2009, p. 33), “com seu desprezo pelos direitos
sociais e pelo Welfare State, o liberalismo não resolveu o problema social, econômico e
político da desigualdade”.

REFLETINDO

Como testemunha ocular da história, observamos o impacto que o


coronavírus (pandemia que assolou o mundo em 2020) trouxe na relação do
Estado com as empresas e com a classe trabalhadora. Mesmo os modelos
mais liberais (estado mínimo) entraram em socorro da economia. Será que
o papel do Estado será novamente redefinido? Podemos encontrar uma
reflexão na publicação do escritor português Boaventura de Sousa Santos
chamada “A cruel pedagogia do Vírus”. O link está aqui: http://gg.gg/ipa1g.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 51

2.6 Aspectos Sobre a Cidadania Brasileira


Depois de um longo período sob domínio militar (1964-1985), período em
que o exercício da escolha direta dos representantes ficou suspenso, a restituição da
democracia foi amplamente comemorada no Brasil. A Constituição, promulgada em
1988, ficou conhecida como “Constituição Cidadã”, porque, além de restituir a liberdade
civil e política, ela também se comprometeu com os direitos sociais.

As mazelas sociais no Brasil não são nenhuma novidade, como a falta de moradia,
falta de acesso à saúde e a precarização do trabalho. Alguns atribuem a elas um vício
de origem, como colocado pelo pensador Oliveira Vianna ao analisar a formação do
Brasil. “Sob esse aspecto, é de desolante miserabilidade a condição do nosso campônio.
O homem que não tem latifúndio é, no interior, um homem permanentemente indefeso.
É, de todo em todo, um desprotegido. Nenhuma instituição, de caráter social, o ampara”
(VIANNA, 2005, p. 222).

A situação do Brasil colônia e, mesmo depois da Independência, como retratado


por Oliveira Vianna (2005), não era muito favorável ao desenvolvimento da cidadania.

A sociedade era formada, em sua imensa maioria, por escravos subjugados aos
ditames de seus senhores, uma mercadoria de troca. Outro aspecto do período era ausência
de acesso à educação. Estima-se que, em 1872, apenas 16% da população brasileira sabia
ler e escrever (CARVALHO, 2008).

A educação no Brasil ficou por muito tempo adormecida e, quando passou a


existir, estava restrita a um pequeno grupo da elite. Dentre os países colonizados da
América, o Brasil foi o último a ter instituição de ensino superior, que só se iniciou
com a vinda da família real, em 1808, quase duzentos anos depois da Fundação da
Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, por exemplo, que ocorreu em 1613.

Ainda com a presença da escravidão, o movimento da Independência pactuou


uma Monarquia Constitucional. E, para que essa existisse, era necessário um governo
representativo baseado no voto, fazendo com que os direitos políticos viessem antes do
civis (CARVALHO, 2008). A Constituição definiu o direito ao voto e quem poderia votar
e ser votado: homens a partir de 25 anos com renda superior a 100 mil réis, deixando
de fora as mulheres e os escravos. O voto de analfabetos também era permitido, o que
acabou sendo revogado em 1881 com a mudança das regras.
52 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

Compreendendo que a cidadania se faz pela conquista de direitos e esses envolvem


um movimento tanto por parte da sociedade, em seus diferentes grupos, quanto pelo
Estado. De acordo com os estudos de Marshall, esses deram em sequência: primeiro
os direitos civis, depois direitos políticos e por fim direitos sociais. Entretanto, em
análise do caso brasileiro, José Murilo de Carvalho (2008) expõe que aqui a ordem se
inverteu. Tivemos direitos políticos no Império sem ter direitos civis; tivemos direitos
sociais durante a ditadura militar sem direitos civis e políticos.

Carvalho (2008), ao analisar esses aspectos, infere que, no Brasil, a cidadania


não se consolida por meio de uma luta do povo (de baixo para cima), e sim como uma
concessão do Estado (de cima para baixo), chamando a cidadania no Brasil de Estadania.

A tutela do Estado, em relação aos direitos sociais, é o caso mais emblemático


de nossa Estadania. A barganha política que se realiza por meio do clientelismo (troca
de bens ou serviços pelo voto) com as classes populares, reforça as categorias de sub
cidadãos ou cidadãos incompletos. O direito ao voto é utilizado como moeda de barganha
em troca dos direitos sociais nos pleitos eleitorais. O sentimento de gratidão ao político
que intermediou o acesso aos direitos sociais como, por exemplo, aos serviços médicos,
é a face mais marcante da nossa democracia.

A falta de serviços sociais básicos como saúde, educação, moradia e renda


mínima efetivados pelas políticas públicas faz com que a classe política estabeleça um
jogo interminável de negociação desses direitos.

Podemos afirmar, assim, que a cidadania no Brasil é um projeto inacabado.


Avançamos e retrocedemos ao longo da história, na qual participamos de uma sociedade
em que convivem cidadãos plenos com cidadãos incompletos.

DESTAQUE

Estadania: o Estado concede direitos como forma de cooptação e dominação


da sociedade e não como forma de reivindicação da sociedade como ocorreu
em outros países.

A lógica em que a cidadania se submete à política deve ser invertida ao exercício


pleno da cidadania que deve nortear o fazer político e o seu resultado. Em suma, a
ação da cidadania é que deverá ser a condutora do poder político. Entretanto, esse é um
caminho ainda a ser percorrido no Brasil.
Estado Moderno como Facilitador da Cidadania | UNIDADE 2 53

SÍNTESE DA UNIDADE
Iniciamos nossa Unidade apresentando a evolução histórica da conquista da
cidadania. Neste tópico destacamos a cidadania exercida na Grécia Antiga e a construção
da cidadania moderna a partir das Revoluções Burguesas com o protagonismo da
burguesia para conquista dos direitos civis.

Também ficou demonstrada que a cidadania se constitui do conjunto dos direitos


civis, políticos e sociais e que esses se consolidaram de forma diferente e envolveram
distintas lutas e organização da sociedade.

Apresentamos o papel do Estado para realização da cidadania e os seus diferentes


arranjos, que possibilitaram avanços e retrocessos em relação a plena realização dos
direitos.

Por fim, apresentamos os aspectos da cidadania no Brasil, o jogo político, o legado


da escravidão e a constante ameaça aos direitos.
54 CIÊNCIA POLÍTICA | Ludmila Gonçalves da Matta

REFERÊNCIAS
ABRAHAMSON, P. O modelo escandinavo de proteção social. Argumentum, Vitória (ES), v. 4,
n.1, p. 7-36, jan./jun. 2012.

ASBRAN. Associação Brasileira de Nutrição. Disponível em: http://gg.gg/ipa67.


Acesso em: 10 abr. 2020.

BESTER. G. M. A luta sufrágica feminina e a conquista do voto pelas mulheres brasileiras:


aspectos históricos de uma caminhada. Argumenta Journal Law n. 25 - jul/dez 2016. Disponível
em: http://gg.gg/ipa6j. Acesso em: 10 abr. 2020

BIROLI, F.; MIGUEL, L. F.; Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na
reprodução das desigualdades. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p. 27-55, jul/dez. 2015. Disponível
em: http://gg.gg/ipa6q/1. Acesso em: 2 mai. 2020.

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2008.

COMPARATO. F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

COVRE, M. L. M. O que é Cidadania? Coleção Primeiros Passos. São Paulo-SP. Editora


Brasiliense, 1991.

DAGNINO, E. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: MATO, D.
(Coord.). Políticas de ciudadania y sociedade civil en tiempos de globalización. Caracas: Faces;
Universidad Central de la Venezuela, 2004. p. 95-110.

GEAQUINTO, W.S. Cidadania o direito de ser feliz. São paulo: Scortecci, 2002.

HUNT, L. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.

MCMV desacelerou aumento do déficit habitacional do Brasil, que bateu recorde em 2017. FGV,
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OLIVEIRA, P. J. J. de. A Cidadania é para todos Direitos, Deveres e Solidariedade.


Caderno Virtual Nº 21, v. 1 – Jan-Jun/2010. Disponível em: http://gg.gg/ipa8m.
Acesso em: 01 mai.2020

VIANNA, O. Populações Meridionais do Brasil: Populações Rurais do Centro Sul


(Paulistas-Fluminenses-Mineiros). Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005.
Disponível em: http://gg.gg/ipa93. Acesso em: 10 abr. 2020.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Record, 2009

WEIS, C. Os direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999.

ZALUAR, A; CONCEIÇÃO, I. S. Favelas sob o controle das Milícias no Rio de Janeiro que paz?
São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, jul./dez. 2007.
unidade

3
O Funcionamento do Estado:
Separação dos Poderes e Sistemas
de Governo
Prezado(a) estudante.

Estamos começando uma unidade desta disciplina. Os textos que a compõem foram
organizados com cuidado e atenção, para que você tenha contato com um conteúdo
completo e atualizado tanto quanto possível. Leia com dedicação, realize as atividades e
tire suas dúvidas com os tutores. Dessa forma, você, com certeza, alcançará os objetivos
propostos para essa disciplina.

OBJETIVO GERAL
Discutir as formas de governo e seus impactos na organização estatal.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Tratar da formação dos parlamentos modernos;

• Discutir a questão da separação de poderes;

• Apresentar as principais características e comparar os regimes presidencialistas e


parlamentaristas.

QUESTÕES CONTEXTUAIS
• Sabemos que Estado é uma organização social detentora de poder que influi na vida
da sociedade, com objetivo de atingir o bem comum. Você já parou para pensar o
quanto a organização do Estado afeta a nossa vida?

• Já ouvimos falar em separação dos poderes, mas você sabe dizer por que ela existe,
por que um poder não pode intervir no outro? Será que isso acontece de forma
absoluta?

• De que forma você como cidadão pode contribuir para um Estado melhor?
56 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

3.1 Estado Moderno, seus Elementos e Organização


Com o surgimento de uma nova classe dominante - a burguesia -, e a sua
aproximação com a monarquia e o capitalismo mercantil, que se insurgiram contra
o poder feudal, no século XV surgiram os Estados modernos da Europa. Assim,
podemos constatar que houve uma transformação não apenas na sociedade daquela
época, mas também no Estado, o qual modificou suas condições econômicas e religiosa
(HABERMAS, 2002).

Vale ressaltar que Estado é o desejo de reunir componentes de um grupo social


com o objetivo de atingir o bem comum. Conforme Silva (2005, p. 216): “O Estado
seria uma organização social, dotada de poder e com autoridade para determinar o
comportamento de todo o grupo”. Nesta unidade vamos observar de que forma o Estado
se organiza e como funciona, para compreendermos sua importância e influência em
nosso dia a dia.

O Estado é detentor de um poder em que há a obediência do seu povo. Antes de


nascermos, por exemplo, já temos a intervenção dele, que assegura os nossos direitos ao
proteger os direitos do nascituro. Ele, inclusive, faz valer a vontade de uma pessoa após
sua morte, por meio das disposições de última vontade consignadas num testamento.

GLOSSÁRIO

Nascituro é o feto, o ser que poderá vir a nascer. Trata-se de uma palavra que
provém do latim nasciturus, “o que há de nascer; o ser humano já concebido,
cujo nascimento se espera como fato futuro e certo” (FERREIRA, 1999). O
Código Civil brasileiro assegura a esse feto alguns direitos, como o próprio
direito à vida, no entanto a prática do aborto é proibida no Brasil, com raras
exceções.

O Estado, então, faz valer o seu poder por meio de leis, normas e instituições
que são reflexos de seus processos políticos, econômicos e sociais, de tal forma que a
organização de um Estado reflete a imagem do país. Esses processos fazem reverberar a
história do povo ao qual o Estado deve servir.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 57

REFLETINDO

Tirando a possibilidade de sermos presos, você já parou para pensar o que


motiva a população obedecer ao poder do Estado, os limites impostos por
ele e suas leis?

Após essa breve contextualização, vamos entender como pode se organizar e


atuar um Estado. Como conceituado, o Estado possui um poder que é exercido sobre
sua população e é limitado a um âmbito geográfico. Mas, além do poder, o que mais
possui um Estado? A maioria da doutrina menciona que há, basicamente, três elementos
que compõem o Estado. São eles: povo, território e soberania (governo soberano).
Por outro lado, existem alguns autores que mencionam um quarto elemento, que seria
a finalidade, em que o Estado teria que ser responsável em preservar o bem comum do
povo, de forma a amparar as necessidades básicas das pessoas.

Pode-se definir povo como a população integrada numa ordem estatal, submetido às
mesmas normas e leis. São súditos, cidadãos de um mesmo Estado (AZAMBUJA, 2008),
além de um conjunto de pessoas interligadas com o objetivo de organizar e fiscalizar um
determinado território.

É essencial que também se conceitue Nação e sua diferença para Estado. Nação é o
conjunto de pessoas ligadas por características culturais, tradições e língua. Ou seja, vários
valores socioculturais que esses indivíduos se identificam e sentem-se que fazem parte do
mesmo grupo. Diferencia-se de Estado, pois a Nação não necessita de um território, de
uma limitação territorial. Uma mesma Nação pode existir em diversos Estados, e um
Estado pode ser constituído por várias Nações. Para complementar:

Nação é um grupo de indivíduos que se sentem unidos pela origem


comum, pelos interesses comuns e, principalmente, por ideais e
aspirações comuns. Povo é uma entidade jurídica; nação é uma
entidade moral no sentido rigoroso da palavra. Nação é muita coisa
mais do que povo, é uma comunidade de consciências, unidas por
um sentimento complexo, indefinível e poderosíssimo: o patriotismo
(AZAMBUJA, 2008, p. 19).

Território, segundo elemento essencial que constitui o Estado, é a base física que
delimita o seu poder e que restringe a atuação da soberania do Estado. Portanto, é a base
geográfica onde o Estado exerce seu poder coercivo sobre seu povo.
58 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

A soberania é o poder supremo do Estado, a capacidade de se autodeterminar e


auto-organizar, estabelecendo competências dentro do seu território e limitando a invasão de
outro Estado. Pode-se, também, entender soberania como a vontade do povo. Dessa forma, a
soberania provém do povo que cede ao Estado. Ela é caracterizada pela supremacia do poder
estatal, o qual está garantido pela Constitucional Federal (MALUF, 2019). De tal forma que
o povo possui direitos que se reconhecem contra o Estado, como direito à vida, à liberdade
de fazer tudo o que não estiver proibido em lei, à propriedade privada, mas também tem
obrigações com o Estado como: pagar impostos e obedecer suas leis.

Cabe destacar que soberania não se confunde com autonomia. Além de terem
conceitos diferentes, são de grande importância no estudo do funcionamento do Estado.
Como visto, soberania é o poder supremo concedido ao Estado e, por outro lado,
autonomia é a competência para elaborar atividades dentro de limites previamente
estabelecidos pelo poder soberano. Portanto:

[...] a margem de discrição de que uma pessoa goza para decidir sobre
os seus negócios, mas sempre delimitada essa margem pelo próprio
direito. Daí porque se falar que os Estados-Membros são autônomos,
ou que os municípios são autônomos: ambos atuam dentro de um
quadro ou de uma moldura jurídica definida pela Constituição Federal.
Autonomia, pois, não é uma amplitude incondicionada ou ilimitada de
atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre
certas matérias, respeitados, sempre, princípios fixados na Constituição
(BASTOS, 2010, p. 474).

Quadro 3.1 – Elementos do Estado e seus conceitos.

ELEMENTO CONCEITO
É seu componente humano, demográfico. O conjunto de pessoas que se situam em
Povo um determinado território e poder usufruir dos direitos provenientes do Estado, como
direitos de cidadania.

É a base física, geográfica, onde se exerce a soberania, limite físico da atuação do


Território
Estado.

É o poder supremo e independente que o Estado tem de não estar limitado e submetido
Soberania
a nenhum outro poder interno ou externamente. É o poder de autodeterminação e auto-
(Governo)
organização.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

DESTAQUE

Não se pode falar em Estado se faltar qualquer um desses elementos: povo,


território e soberania. Esses elementos são cumulativos e obrigatórios.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 59

Deve-se salientar, ainda, que a autonomia é um elemento fundamental ao conceito de


federação, uma das formas possíveis de Estado. Trata-se de uma conceituação diretamente
associada à formação e organização dos Estados, que abarca, ainda, as formas, os sistemas e
os regimes de governo. A seguir vamos estudar as formas de Estado.

3.2 Formas de Estado


Após analisar os elementos que compõem o Estado, veremos como o poder do
Estado é distribuído pelo seu espaço geográfico. No momento da formação do Estado,
o poder político pode ser distribuído de diferentes formas no seu território. Alguns
Estados foram organizados unicamente com um núcleo de poder em todo a sua extensão.
Em outros, ocorreu uma cisão, em que passou a existir vários núcleos de poder dentro do
mesmo território, variedades que ensejaram o conceito de formas de estado.

Assim, o Estado pode ser uma federação, um Estado único ou uma confederação.
Federação, por exemplo, é a forma federativa de Estado e pode ocorrer quando alguns
Estados fazem um pacto de colaboração entre eles. Um exemplo de federação são os
Estados Unidos, que surgiu da união de colônias britânicas que decidiram se unir, com
a finalidade de se protegerem de ameaças externas. Desse modo, cada colônia cedeu
parte da sua soberania a um ente central, formando assim os EUA. Para Stepan (1999),
no sistema político federativo, a garantia democrática estaria de forma equivalente ligada
ao grau de lealdade dos cidadãos em relação a cada esfera de poder.

SAIBA MAIS

Aprofunde seu conhecimento sobre federalismo e democracia com o artigo


de Stepan (1999): Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo
e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do
Demos. Disponível em: http://gg.gg/ju1vx.

Contudo, a federação de um Estado também pode decorrer de maneira inversa.


Ou seja, quando um Estado centralizado é descentralizado, que é o caso do Brasil,
pois era um Estado unitário, que ao se separar em Estados, estes decidiram se unirem,
porém, preservando sua autonomia. Nesta situação, a soberania se mantém com o Estado
Nacional. Todavia, as unidades federadas, os Estados-membros, preservam parte da sua
autonomia política. Outros exemplos de países que são federações: Alemanha, Argentina,
Índia, México e Suíça.
60 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

SAIBA MAIS

Sobre o federalismo brasileiro, leia o artigo de Celina Souza (2019):


Coordenação, uniformidade e autonomia na formulação de políticas
públicas: experiências federativas no cenário internacional e nacional.
Disponível em: http://gg.gg/ju1wi.

REFLETINDO

Você se lembra do movimento que houve no Rio Grande do Sul para se


separar do resto do Brasil, formar um Estado independente e soberano –
ou seja, se dividir e tornar-se um país? Você já pensou por que isso nunca
aconteceu? Esse fato nunca aconteceu, justamente, porque o Brasil é uma
federação indissolúvel dos Estados, o que está previsto no artigo 1, da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Já a confederação, que não é propriamente uma forma de Estado, tendo em


vista que não tem uma ordem jurídica única, não tem uma Constituição comum, o
que existe é um Tratado Internacional. Neste caso, há uma pluralidade de Estados
independentes que decidem se unir como uma forma de proteção de alguns aspectos,
como o econômico. No entanto, conservam, cada um, sua soberania e o direito de
secessão, isto é, de desfazerem a associação existente quando pretenderem.

Por outro lado, existem os Estados unitários, outra forma de Estados, como por
exemplo: Grã-Bretanha, França, Colômbia, Chile, China. Estado unitário é quando há
apenas um centro do poder político, que age em todo o território desse Estado. Quer
dizer que existe apenas um núcleo que produz toda a legislação que será aplicada ao seu
povo. Ou seja, existe somente um órgão legislativo, executivo e judiciário.

SAIBA MAIS

Você já parou para pensar se a União Europeia pode ser considerada


um Estado? Acesse o artigo “União Europeia: uma nova forma de
Estado?”, de Déborah Barros Leal Farias, para entender melhor.
Disponível em: http://gg.gg/ipawz
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 61

Ao se estudar federação, é importante mencionar sobre seus entes federativos,


ou seja, do que ela é composta. Por exemplo, no caso do Brasil, a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), em seu título III, capítulo I: Da Organização Político-Administrativa,
art. 18 prescreve:

A organização político-administrativa da República Federativa


do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

§ 1º Brasília é a Capital Federal.

§ 2º Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação


em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei
complementar.

§ 3º Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-


se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios
Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada,
através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.

§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios,


far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar
federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações
dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade
Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.

Logo, os entes federativos são: a União, os Estados, o Distrito Federal e os


Municípios. Cada um desses entes possui autonomia administrativa, econômica
e política, mas todos devem observar as regras Constitucionais, tendo em vista que
eles não possuem soberania, e sim autonomia – poder limitado pela Constituição. Nem
mesmo a União possui soberania, pois apenas representa o Estado Federal nas relações
perante os outros Estados soberanos.

Diferentemente de muitas federações, a brasileira, assim como a belga,


é um sistema de três níveis (triplo federalismo) porque incorporou os
municípios, juntamente com os estados, como partes integrantes da
federação, ref letindo uma longa tradição de autonomia municipal e
de escasso controle dos estados sobre as questões locais (SOUZA,
2018, p. 110).

Os Estados-membros e o Distrito Federal têm suas Constituições Estaduais e os


Municípios suas Leis Orgânicas. Não existe hierarquia entre os entes políticos. O que
há são esferas de atuações diferentes. Porém, a Constituição Federal prevê intervenção
de um ente em outro de forma excepcional, da União nos Estados e dos Estados nos
Municípios.
62 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

A União poderá intervir nos Estados-membros. Por exemplo: para manter a


integridade nacional, colocar fim ao grave comprometimento da ordem pública e
assegurar a observância de princípios constitucionais, como: dos direitos da pessoa
humana e da autonomia municipal. Já cada Estado poderá intervir nos Municípios caso
eles não apresentarem a devida prestação de contas, ou não tiver sido aplicado o mínimo
exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e
serviços públicos de saúde, por exemplo.

Quadro 3.2 - Autonomia dos entes Federados.

Autonomia
Capacidade do ente de executar suas atividades, capacidade de administrar-se.
Administrativa

Autonomia Capacidade de cada ente criar leis, normas de acordo com seus interesses, mas
Legislativa sempre respeitando a Constituição Federal.

Auto- Capacidade do ente se organizar internamente, podendo, por exemplo, os


organização Estados criarem suas Constituições e os Municípios suas Leis Orgânicas.

Capacidade de cada ente ter seus próprios governantes. Governadores e


Autogoverno Prefeitos no Poder Executivo, Deputados Estaduais e Vereadores no Poder
Legislativo.
Fonte: Elaborado pela autora (2020).

Quanto às diferentes esferas de atuação dos entes federativos, no caso do Brasil


significa que há uma estrutura constitucional de repartição de competências entre os entes,
com matérias exclusivas, suplementares e comuns. Existem matérias de interesse nacional,
que ficam a cargo da União; as de interesse regionais, de responsabilidade dos Estados e as
que prevalecem o interesse local que são de responsabilidade dos Municípios.

Exemplos de competências privativas da União: legislar sobre matéria civil e


penal, transporte, água, energia. Competências comuns dos três entes: cuidar da saúde e
assistência pública; da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
preservar as florestas, a fauna e a flora; promover programas de construção de moradias
e proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

SAIBA MAIS

Aprenda mais sobre a repartição de competências dos entes federativos no


artigo “Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação
e autonomia”, de Marta Arretche. Disponível em: http://gg.gg/ipb0r
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 63

Depois de saber o que é Estado e as formas pelas quais ele pode se apresentar, é
necessário analisar como o Estado se manifesta, atua e exerce seu poder político. A seguir
veremos as formas de governo, tendo em vista que é por meio dele que o Estado procede.

3.3 Formas de Governo


Cabe salientar que, para a maior parte dos autores, forma de governo e regime
político são sinônimos. Porém, neste estudo, é feita a distinção entre esses dois termos,
com base no constitucionalista José Afonso da Silva (2019).

O Estado é formado por várias instituições públicas que possuem as funções de


representarem, organizarem e atenderem aos desejos e aspirações do povo que habita seu
território. Nesse sentido, entre as instituições encontra-se o governo, bem como outros
órgãos públicos como: forças armadas, instituições de ensino, Ministérios e Secretarias.
O governo é a esfera máxima da administração executiva do Estado, “(...) é a dinâmica
do poder (...) é ação” (ACQUAVIVA, 2010, p. 40), formado por indivíduos e instituições
pelas quais manifesta a vontade do Estado.

Em sua obra política, Aristóteles (2003) afirma que o Estado tem o dever de
proteger e agir para que o povo tenha uma vida melhor. Divide o governo de seis formas:
a monarquia, em que o governo é hereditário, de apenas um homem e visa o bem
comum; a aristocracia, na qual o Estado é dirigido e governado por um restrito número
de pessoas físicas e a democracia, governo que favorece a todos, conhecida como o
governo do povo. Essas formas seriam as puras, perfeitas, mas citou ainda três outras
consideradas impuras.

As formas impuras eram provenientes da degeneração das formas puras. São


elas: a tirania, que é a forma degenerativa da monarquia, ou seja, quando o governo
exercido por um só visa o próprio interesse, quando o monarca passa a agir de maneira
injusta, arbitrária e oprimindo seus governados; a oligarquia, que seria a degeneração
da aristocracia, a qual passa a atuar em seu próprio benefício sem se preocupar com o
bem comum e a demagogia, forma impura da democracia, que ocorre quando o governo
do povo também não pensa no bem de todos, preocupando-se somente com o bem de
quem está no poder ou com o bem da massa, deixando a elite à margem.
64 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Figura 3.1 – Aristóteles.

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

Com o decorrer da história, houve uma evolução no pensamento político. Maquiavel


(2017), em seu livro “O Príncipe”, refutou a classificação de Aristóteles das formas puras
e impura. “(...) Maquiavel não imagina um Estado perfeito, utópico. Sua visão política é
baseada na imperfeição da natureza humana” (SOUZA, 2018, p. 70). Assim, passou-se a ter
duas formas de governo: o principado e a república (ACQUAVIVA, 2010), respectivamente
governado por apenas uma pessoa e a que fazia referência à aristocracia e à democracia.

Por outro lado, para Montesquieu (2010), em seu livro “O Espírito das Leis”, as
espécies de governo são três: o republicano, o monárquico e o despótico. Que define da
seguinte forma:

Suponho três definições, ou melhor, três factos: um, que o governo


republicano é aquele em que o corpo do povo ou apenas uma parte
do povo detém a força suprema; o monárquico, aquele em que um
só governa, mas por meio de leis fixas e estáveis; ao passo que no
despotismo, um só sem lei e sem regra, tudo arrasta segundo a sua
vontade e os seus caprichos (MONTESQUIEU, 2010, p. 239).

Pode-se ver que, tanto a monarquia quanto o despotismo são formas de governo
com apenas um possuidor do poder, com a diferença que, na monarquia, esse detentor
único atua conforme leis fixas e estáveis, ao passo que no despotismo governa sem leis
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 65

e sem regras. Montesquieu (2010) afirma, ainda, que essas formas de governo estão
embasadas em três princípios que irão assegurar a estabilidade de cada governo: a
virtude para a república, a honra em relação à monarquia e o medo para o despotismo.

Nesse sentido, Montesquieu (2010) assegura que tanto a democracia quanto a


aristocracia fazem parte da forma republicana, diferentemente do que ponderava
Aristóteles, que considerava democracia e aristocracia como dois tipos distintos de
forma. Sendo assim, nas repúblicas aristocráticas a classe tida como popular é excluída
do direito de eleger os órgãos do poder, sendo esse direito reservado à classe privilegiada.
Já em relação à república democrática, não há essa diferenciação, havendo apenas a
necessidade de se observar os requisitos legais. Portanto, esse direito de eleger e ser
eleito é praticado por todos.

Atualmente, as formas clássicas de governo são a monarquia e a república.


Governo de um só, a monarquia, é o rei quem exerce esse poder, o qual é sucedido de
forma hereditária, ou seja, por descendência. Logo, trata-se de uma forma sem limite
temporal, na qual o monarca é perpetuado no poder até a sua morte ou abdicação.

Existem duas modalidades de monarquia: a absolutista e a constitucional.


Na monarquia absolutista, o rei reúne todos os poderes de forma ilimitada, pode-se
dizer, desse modo, que o Estado é o rei e que predomina a vontade dele. Por outro
lado, na monarquia constitucional, os poderes do monarca provêm e são limitados pela
Constituição. Segundo Acquaviva (2010), essa monarquia se subdivide em: monarquia
constitucional pura e monarquia constitucional parlamentar.

Na monarquia constitucional pura, “o rei exerce plenamente a função governamental,


na condição de Chefe de Estado e Chefe de Governo” (ACQUAVIVA, 2010, p. 111). Todavia,
existe a independência e separação dos poderes. Já na monarquia constitucional parlamentar,
o rei ou a rainha exerce apenas a função de chefe de Estado e dificilmente atua de forma
política. Neste caso, a função de Chefe de Governo é exercida pelo primeiro(a) ministro(a),
existindo ao seu lado uma assembleia constituída pelo povo – o Parlamento.

As pessoas que são favoráveis a essa forma de governo, a monarquia, alegam que
ela seria melhor pelos seguintes motivos:

• Não há disputas políticas e o rei ou a rainha podem interceder nos momentos de


crises, tendo em vista o governo ser vitalício e hereditário;
66 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

• Sendo o monarca alheio às disputas políticas, isso assegura a estabilidade das


instituições;

• O monarca é preparado desde sempre para governar, dessa forma não se corre o
risco de ter um governante destituído de conhecimento, despreparado;

• Todas as correntes políticas veem no rei ou na rainha uma figura comum a todos.

Por outro lado, há quem argumente contra, e afirme que a pessoa do monarca
sem governar é um agente de desperdício financeiro, ocasionando um custo elevado ao
povo. Caso ele governe, é muito perigoso deixar a direção do Estado e do povo nas mãos
apenas de uma pessoa e de sua família, mesmo que tenha tido desde cedo uma educação
direcionada para isso. Outro argumento relevante de quem é contra a monarquia sustenta
que ela é antidemocrática, já que o povo não tem o direito de escolher seu governante.
Por fim, a estabilidade das instituições do Estado deve estar embasada na ordem jurídica
e não decorrer de um fator pessoal.

A república, outra forma de governo, cuja palavra tem origem latina, composta
por res, que significa coisa, se trata da coisa pública – tudo o que é próprio da sociedade.
Esse termo apareceu pela primeira vez na Roma Antiga, no ano de 509 a.c., o qual visava
separar o que era privado, do monarca, daquilo que era público.

DESTAQUE

República, coisa do povo, a coisa comum, aquilo que é de todos. A forma


republicana representa que o poder estatal não é atribuído apenas a uma
pessoa, como na monarquia, mas a todo o povo, República Democrática, ou
a um grupo “privilegiado” da República Aristocrata.

Uma das principais diferenças em relação à monarquia é o fato da república não


ser vitalícia, pois o poder é exercido por meio de um mandato outorgado pela população,
cujo regime não é hereditário, isto é, o poder não é transferido de pai ou mãe para
filho(a). Somado a isso, os cargos políticos são preenchidos de forma periódica e segundo
a vontade do povo por meio de eleições e por um prazo determinado em lei.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 67

Resumindo, as características fundamentais da república são (LOPES, 2010):

• Temporariedade: o Chefe do Governo recebe um mandato, com o prazo de duração


predeterminado, e para que não se perpetue no poder como a monarquia, com eleições
reiteradas da mesma pessoa foi estabelecida a proibição de reeleições sucessivas;

• Eletividade: na república o Chefe do Governo é eleito pelo povo, portanto, não se


permite a sucessão hereditária ou por qualquer outra maneira que impossibilite o
povo de participar da escolha;

• Responsabilidade: o Chefe do Governo é responsável, ou seja, ele deve prestar


contas de sua atuação política, seja ao povo diretamente ou a um órgão de
representação popular.

Quadro 3.3 - Diferença entre Monarquia e República.

REPÚBLICA MONARQUIA

Eletividade (direta ou indireta) Hereditariedade

Temporalidade no exercício do poder Vitaliciedade

Representatividade popular Inexistência de representatividade popular

Responsabilidade do governante – dever de


Irresponsabilidade do governante
prestar contas
Fonte: Elaborado pela autora (2020).

A república pode ser classificada em república parlamentar e república


presidencialista. Veremos abaixo os sistemas de governo parlamentarista e presidencialista,
os quais constituem os modos pelos quais os poderes se relacionam – como é dividido e
estruturado o poder político.

VÍDEO

Agora que estudamos as formas


de governo de um Estado, saiba
mais assistindo ao vídeo
“História - Formas de Governo”,
do canal Ginga Videoaulas.
Disponível em: http://gg.gg/ipteh.
68 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

3.4 Sistemas de Governo


Os dois principais sistemas de governo são o parlamentarismo e o presidencialismo,
mas há autores, como Gicquel e Gicquel (2015); Sartori (2005); Duverger (1993), que
descrevem um terceiro sistema, o semipresidencialismo. Esses sistemas são divididos
segundo a essência e o nível da ligação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo.
Em outras palavras, conforme o modo pelo qual esses poderes se relacionam, tendo em
vista que o poder político do Estado é dividido entre esses dois poderes.

O sistema parlamentar pode ser aplicado tanto nas monarquias, quanto nas
repúblicas. Já o sistema presidencialista é admissível somente nos Estados republicanos.
Nesse mesmo entendimento, Dallari (2016) destaca:

“[...] não obstante ter nascido na Inglaterra, onde coexistem a monarquia


e o sistema bipartidário, o parlamentarismo foi implantado também
em Estados que têm governo republicano e sistema bipartidário, o
que obrigou a certas adaptações, indispensáveis para possibilitar o
funcionamento do sistema” (DALLARI, 2016, p. 198).

3.4.1 Sistema Parlamentar


Nesse sistema de governo, os Poderes Executivos e Legislativos são interdependentes,
sendo somente o Judiciário um poder autônomo. Executivo e Legislativo interdependentes
significa que, para o governo se manter no poder, depende da maioria parlamentar. Esta,
por sua vez, pode derrubar o governo por meio da votação de uma moção de desconfiança.
Por outro lado, o governo pode requerer ao Chefe de Estado que dissolva o Parlamento e
convoque novas eleições. O parlamentarismo é um sistema de governo democrático, em que
existe uma partilha de poder entre o Executivo e o Legislativo.

No parlamentarismo, a chefia de Estado e de Governo geralmente são feitas


por pessoas distintas. Assim, se um país tiver um sistema parlamentar baseado numa
monarquia constitucional, o Chefe de Estado será o monarca, enquanto o Chefe de
Governo (Primeiro Ministro) quase sempre é um dos membros do Parlamento, como é o
caso do Reino Unido, Espanha, Suíça e Japão.

Os sistemas parlamentaristas devem seu nome ao princípio


fundamental que os orienta: o parlamento é soberano. Assim, eles
não permitem a separação de poderes entre o parlamento e o governo:
esses dois braços do Estado baseiam-se na partilha do poder entre o
legislativo e o executivo. O que equivale a dizer que todos os sistemas
que chamamos de parlamentaristas requerem que os governos
sejam nomeados, apoiados e, se necessário, demitidos por votação
parlamentar (SARTORI, 1996, p. 115).
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 69

Caso o país seja parlamentarista alicerçado numa república constitucional, o


Chefe de Estado comumente é o Presidente da República e o Chefe de Governo (Primeiro
Ministro) normalmente é membro do parlamento, casos da Irlanda, Alemanha, Portugal,
Itália. Em alguns países, como África do Sul, Suriname e Botsuana, que são repúblicas
constitucionais parlamentaristas, o Chefe de Estado também é de Governo, eleito pelo
parlamento e responsável perante o Poder Legislativo.

O parlamento é eleito pelos cidadãos e o Primeiro Ministro, o Chefe do Executivo,


no caso da Grã-Bretanha, que adota uma dinâmica bipartidária, é escolhido pelos
parlamentares do partido vencedor. O partido que alcançar a maioria das cadeiras no
parlamento e nomeado pelo rei ou rainha num ato protocolar. Embora tenha eleições
periódicas, o mandato do Primeiro Ministro não tem um prazo fixo, pois se ele perder o
apoio das alianças que o conduziram ao cargo poderá ser destituído a qualquer momento
pelo voto da maioria do parlamento, ou também poderá ser destituído pela moção de
desconfiança, ou seja, por responsabilidade política.

Figura 3.2 – Parlamento Britânico.

Fonte: Divulgação UK (2020).

Já nos países que adotam o sistema pluripartidário, em que é muito difícil um


partido obter a maioria dos representantes no Parlamento, existe a necessidade de
coalizão para formar a maioria parlamentar. A partir desse acordo é que sairá a escolha
do primeiro ministro, que nem sempre será membro do maior partido.
70 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

SAIBA MAIS

Aprenda mais sobre o Parlamentarismo e sua vantagem para a América


Latina no artigo “A opção parlamentarista para a América Latina”, de Arturo
Valenzuela.

Disponível em: http://gg.gg/ju2ux.

O parlamentarismo já vigorou no Brasil por dois momentos: o primeiro foi durante


o Império, de 1847 a 1889, no período do governo de Dom Pedro II, em que foi chamado
de parlamentarismo às avessas, porque o imperador ainda conservava muito poder em
suas mãos. O outro momento foi em 1961, quando o Presidente Jânio Quadros renunciou
ao cargo de Presidente da República e o Congresso. Avesso ao Vice-Presidente João
Goulart, adotou o parlamentarismo a fim de diminuir seus poderes.

Figura 3.3 – Brasil Parlamentarista, 1961.

Fonte: Domínio Público (2020).


O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 71

3.4.2 Sistema Presidencialista


Esse sistema teve como objetivo se opor à monarquia absolutista, a fim de impedir
a centralização de poderes. De origem americana, a partir da Constituição de Filadélfia,
de 1787, estabeleceu-se a ideia da tripartição dos poderes, conforme aponta Montesquieu
(RANIERI, 2013).

O presidencialismo está diretamente ligado à forma republicana de Estado. Ou


seja, trata-se da forma típica das repúblicas. Ao contrário do sistema parlamentarista,
no presidencialismo não há a interdependência dos Poderes Executivos e Legislativos,
pois a independência dos poderes e a harmonia das funções do Estado, juntamente com
o controle recíproco entre os poderes são a base desse sistema.

Um sistema político presidencialista somente poderá assim ser


considerado se o presidente for escolhido por meio de eleição popular
– sem a possibilidade de ser demitido por votação parlamentar durante
o seu mandado – e se exercer o poder de chefia ou direção para com o
governo que nomeia (SARTORI, 1996, p. 99).

As Chefias de Estado e de Governo são realizadas pela mesma pessoa: o Presidente


da República, como próprio nome do sistema revela a hegemonia desse cargo. Porém,
desde que atue respeitando as leis. Para o Presidente ser eleito, seu partido não precisa
ser majoritário no Legislativo, pois ele é eleito por sufrágio direto ou indireto e com
mandato temporário. A ele é atribuída a gerência da política interna e externa do país e
exercerá o cargo mais alto do Poder Executivo, com o auxílio de Ministros de Estado,
livremente nomeados e exonerados por ele.

O Chefe de Governo é responsável por formular e executar o programa de governo,


coordenar a aplicação de políticas públicas e também tem o poder de vetar projetos de lei
provenientes do Poder Legislativo. No presidencialismo o Poder Executivo é um poder
autônomo.

O sistema presidencialista do Brasil tem um Poder Legislativo, chamado de


Congresso, que é bicameral, formado pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados,
responsáveis por fazerem as leis, o Presidente poderá sancionar ou vetar essas leis, mas
seu veto pode ser derrubado pelo Congresso. Faz parte desse sistema brasileiro um
Judiciário independente, mas que poderá intervir nos Poderes Executivo e Legislativo
caso produzam atos ilegais ou inconstitucionais.
72 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Segundo Ranieri (2013), o presidencialismo, em comparação com outras formas


de governo, assegura decisões mais rápidas e estabilidade governamental, mas chama
atenção para o desalinho que pode haver entre o Legislativo e o Executivo, tendo em
vista que, o Executivo para aprovar seus projetos de lei, encaminhados ao Congresso,
precisa que a maioria aprove. Surge, assim, o “Presidencialismo de coalizão”.

GLOSSÁRIO

Presidencialismo de coalizão foi um termo criado em 1988 pelo brasileiro


e cientista político Sérgio Abranches para descrever as características
do presidencialismo. Conforme Abranches, esse termo consiste no
ato de compor alianças e acordos entre as diversas forças políticas no
parlamento, com o intuito de exercer a governabilidade. Isso deve-se ao
fato do Congresso ser segmentado em vários partidos, como é o caso do
brasileiro, obrigando o Executivo fazer alianças interpartidárias mesmo com
partidos ideologicamente diferentes. “O fato de nosso presidencialismo ser
de coalizão, nasce da nossa diversidade social, das disparidades regionais
e das assimetrias de nosso federalismo, que são mais bem acomodadas
pelo multipartidarismo proporcional” (ABRANCHES, 2018, p. 14). Esse
fato resulta na distribuição de postos administrativos em troca de apoio
político e pode levar ao desapontamento de alguns eleitores desses partidos
envolvidos nas alianças.

VÍDEO

Para saber mais a respeito do


Presidencialismo, acesse o vídeo
“Presidencialismo: o que é?”, do
canal Politize!. Disponível em:
http://gg.gg/ipto0.

3.4.3 Semipresidencialismo
A República de Weimar (1919-1933) foi o primeiro sistema semipresidencial.
Termo criado pelo cientista político francês Maurice Duverger.

O Semipresidencialismo, também conhecido como Sistema Misto, foi usado na


França desde 1962 e em Portugal a partir de 1976 e reforça a autoridade do Presidente,
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 73

Chefe de Estado, a fim de compensar as manipulações partidárias dos esquemas


parlamentares. Nesse sistema há a desconcentração do poder e o compartilhamento
das decisões políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Embora seja uma
combinação dos sistemas parlamentar e presidencialista, sua organização de governo é
substancialmente parlamentarista.

Segundo Duverger (1993), existem basicamente dois tipos de Semipresidencialismo.


Um é sob o sistema premiê-presidente, no qual o presidente escolhe o primeiro-
ministro, mas apenas o Parlamento pode removê-lo do cargo. Países como França e
Portugal possuem esse modelo. Já sob o modelo presidente-premiê, o presidente escolhe
o primeiro-ministro, mas precisa de apoio parlamentar para isso. Para remover um
primeiro-ministro, tanto o presidente quanto a maioria parlamentar possuem poder para
isso. O maior país a adotar esse regime é a Rússia.

O Poder Executivo é, de certa forma, compartilhado por duas pessoas. O Presidente,


no semipresidencialismo, não acumula as funções de Chefe de Estado e de Governo. Ele
partilha suas funções com o Primeiro Ministro, mas diferentemente do parlamentarismo,
o Presidente tem sua atuação mais ativa e forte, já que pode nomear o Primeiro Ministro,
dissolver o Congresso ou Parlamento, propor leis, solicitar referendos, controlar a política
externa etc. Por outro lado, o Primeiro Ministro está subordinado ao Congresso e é por
ele escolhido. Tendo como função desempenhar as atribuições de Chefe de Governo como:
implantar políticas públicas, escolher e conduzir a atuação dos Ministros.

Quadro 3.3 - Diferenças entre Parlamentarismo e Presidencialismo.

PARLAMENTARISMO PRESIDENCIALISMO
Sistema de governo em que o Poder Sistema de governo em que o
Legislativo (parlamento) define o presidente é o Chefe de Estado e
representante do Poder Executivo. Chefe de Governo. Este presidente
Definição
Todos os projetos, leis e outras é o responsável pela escolha dos
decisões do governo são submetidos ministros e deve submeter seus
a votação do parlamento. projetos de lei ao parlamento.
Primeiro-Ministro (em alguns países é
chamado de Chanceler, Presidente do
Poder executivo Exercido pelo Presidente da República.
Conselho de Ministro, Presidente do
Governo).
Primeiro-Ministro é escolhido pelo
parlamento, por meio da maioria de
votos internos. Ele também pode ser Por meio de voto direto do povo. Nos
Escolha do
escolhido pelo Chefe de Estado através Estados Unidos, o presidente é eleito
representante de uma lista fornecida pelo parlamento. por um colegiado.
Por sua parte, o parlamento é escolhido
pelos cidadãos.
74 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

PARLAMENTARISMO PRESIDENCIALISMO
Depende do país. No Brasil, o mandato
Indefinido. é de 4 anos, já na França é de cinco
Tempo de mandato Em certos países há eleições a cada anos.
quatro ou cinco anos. A possibilidade de reeleição também
depende das leis de cada país.

Onde surgiu Inglaterra Medieval. Inglaterra Medieval.

Todas as decisões do governo passam


Fiscalizar, debater leis que sejam
pelo parlamento. Ele também é
Função do parlamento sugeridas pelo Executivo e ser um
responsável pela escolha do Chefe de
contrapeso aos atos do mesmo.
Governo.
O chefe de Estado (rei ou presidente)
Está concentrado na mesma pessoa
Chefia de Estado é exercido por outra pessoa e esta não
que exerce a chefia de governo.
possui responsabilidades políticas.
Em caso de falecimento ou por meio
O parlamento tem o poder de substituir do Impeachment. Este só acontece
Interrupção do o Chefe de Governo. Em caso de apenas em casos de crimes de
governo suspeita de corrupção, pode ser responsabilidade, cassação por crime
aprovado o voto de censura. eleitoral ou crime comum durante o
mandato.

Canadá, Inglaterra, Suécia, Itália, Brasil, Estados Unidos, Argentina,


Exemplos
Alemanha, Portugal. Uruguai.

Poder Executivo necessita da


aprovação do parlamento para ser No presidencialismo, o presidente
formado. exerce o Poder Executivo, enquanto
Divisão de Poderes
No entanto, há independência entre os outros dois poderes (Legislativo e
os poderes Executivo, Judiciário e Judiciário) possuem autonomia.
Legislativo.
Em qual regime de
governo pode ser Monarquia e República. República.
aplicado?
Fonte: Adaptado de Diferença - Juliana Bezerra (2020).

Vimos que uma das diferenças entre os Sistemas Parlamentaristas e


Presidencialistas é em relação aos poderes, no caso do Executivo e do Legislativo, sendo
o Presidencialismo muito fundamentado na separação dos poderes existentes no Estado:
Executivo, Legislativo e Judiciário.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 75

3.5 Separação dos Poderes


Segundo Souza (2018), muitos filósofos, sociólogos, juristas e cientistas políticos
sempre analisaram a melhor maneira de se ter um Estado eficiente, pois eles tinham
como preocupação iminente evitar que todas as funções do Estado caíssem nas mãos de
uma única pessoa, já que havia o risco de ser um governo tirano. Ou, ainda, se o poder
ficasse com um pequeno grupo que agisse com interesse próprio, gerando a oligarquia.
Outra demanda analisada era identificar as funções exercidas pelo governo e o jeito mais
eficiente de dividi-las entre os órgãos.

A teoria contratualista já apresentava um Estado limitado em seu poder e funções,


ideia que foi ampliada por outros autores, como Montesquieu. Embora Montesquieu
(2010) tenha criado a teoria da separação dos poderes, em seu livro “O Espírito das
Leis”, essa ideia já havia sido proposta por outros pensadores, como o grego Aristóteles
e o inglês John Locke.

Locke tratou da separação dos poderes na sua “Segundo Tratado do Governo


Civil”, onde previu a separação dos 3 poderes que eram Legislativo, o Executivo e o
Federativo. Para Locke, o Legislativo seria o poder supremo, já que foi eleito pelo povo,
porém tal poder estaria limitado pelos poderes naturais, isto é, o Legislativo, enquanto
função de publicar leis, deve sempre fazer no sentido de proteger a vida, a propriedade,
a liberdade - ficando limitado a essas matérias e devendo sempre visar o bem do povo
(GUEDES, 2015).

Segundo Guedes (2015, p. 40): “[...] não há, dentro do quadro delineado por Locke,
expressa referência a função jurisdicional a ser exercida independentemente dos demais
poderes tal qual hoje nós a conhecemos [...]”.

Portanto, as leis positivas (escritas) acabam incorporando as leis naturais. Já os


poderes Executivo e Federativo possuem existência perene, com função de executar as
leis positivas, função administrativa de manter a ordem por meio da execução dessas leis
escritas, ou seja, as leis naturais que foram absorvidas.

Antes de prosseguir na teoria de Montesquieu (2010), cabe lembrar que Dallari (1991)
chama atenção para o fato de que alguns autores alegam ser inadequado usar a expressão
“separação de poderes”, tendo em vista que o poder do Estado, na verdade, é uno e indivisível,
ponto pacífico para todos autores, pois o que se divide são as funções do Estado.
76 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Antigamente, as funções do Estado, legislativa, executiva e jurisdicional eram


exercidas por mais de um órgão. “O Senado tinha ingerência sobre a aprovação das leis
e sobre a justiça. Mas o povo também podia julgar e, por meio do tribuno da plebe, vetar
leis. Os cônsules também atuavam como juízes (...)” (SOUZA, 2018, p. 87).

Foi para evitar o abuso de poder, como o de governos absolutos, que Montesquieu
(2010) elaborou, em 1748, o princípio da separação dos poderes, com base na tripartição
dos poderes e suas correspondentes atribuições, a fim de não deixar em uma única mão
as tarefas de legislar, administrar e julgar, significando uma forma de descentralizar o
poder. Assim, com a tripartição dos poderes de forma equilibrada e com o sistema de
controles mútuos, isto é, o sistema de freios e contrapesos, surgiu a função na qual os
poderes analisam e limitam os atos uns dos outros como forma de evitar excessos e
sobreposição sobre os demais.

Logo depois, essa teoria foi considerada em diversas legislações, entre elas a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Da mesma forma, está nas
constituições de quase todos os Estados modernos, como uma forma de garantir os
direitos individuais e coletivos.

Figura 3.4 – Montesquieu (1689-1755).

Fonte: Adaptado por Universidade La Salle (2020).


O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 77

VÍDEO

Assista ao vídeo “O espírito das


leis, a tipologia dos regimes
políticos e a separação dos
poderes”, do canal Mateus
Salvadori, sobre o pensamento de
Montesquieu. Disponível em:
http://gg.gg/ipuww.

A seguir veremos a descrição de cada um dos três poderes, suas características e


funções. Não há uma separação estanque, impermeável entre os poderes, porque cada
um dos poderes exerce as três funções estatais. Porém, uma delas será principal, chamada
de típica e as demais, secundárias, chamadas de atípicas. Dessa forma, existe uma
interação entre eles (ACQUAVIVA, 2010).

SAIBA MAIS

Com o artigo “A separação de poderes em países presidencialistas: a


América Latina em perspectiva comparada”, de Luís Gustavo Mello
Grohmann, você poderá aprender um pouco mais a respeito da separação
dos poderes. Disponível em: http://gg.gg/ju54o.

O Poder Legislativo, cuja função principal é fazer as leis e reformá-las, tem


atribuição de editar as normas que serão aplicadas a toda população do território do
Estado. Devido a essa função típica, pode-se dizer que o Legislativo altera a ordem
jurídica. Além de legislar, tem a função de fiscalizar o Executivo, exercendo o controle
político-administrativo e o financeiro-orçamentário.

A função legislativa cabe a um órgão que pode receber a denominação de


Parlamento, Assembleia Nacional, Câmara e Congresso Nacional e dependerá de cada
país. Poderá, ainda, ser chamado de Assembleia Constituinte quando esse órgão for
encarregado da produção da Constituição do Estado.

No Brasil, esse órgão chama-se Congresso Nacional, que é um Legislativo bicameral,


ou seja, constituído por duas casas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, isso no
âmbito federal. Sendo os deputados representantes do povo, correspondendo em número
proporcional à população de cada Estado-membro da Federação. Os senadores representam
78 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

os Estados-membros, em número de três, independentemente do tamanho da população


que tiver. Na esfera estadual, há as Assembleias Legislativas por meio dos Deputados
Estaduais, e a Câmara Municipal, composta pelos Vereadores, no âmbito municipal.

Figura 3.5 – Congresso Nacional (Palácio Nereu Ramos).

Fonte: Wikimedia Commons (2020).

DESTAQUE

O prédio do Congresso Nacional, concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer,


projeto estrutural do engenheiro Joaquim Cardozo, foi inaugurado em 1960.
Niemeyer se inspirou nas duas cúpulas, uma representando a Câmara dos
Deputados e a outra o Senado Federal. A cúpula voltada para cima é a Câmara
dos Deputados, porque é aquela que acolhe toda a diversidade brasileira,
representa o povo. A cúpula menor, voltada para baixo representa o Senado
Federal. Entre as duas cúpulas se encontram duas torres de 28 andares:
uma delas pertence à Câmara e a outra ao Senado. Em 2007, o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) realizou o tombamento do
edifício do Congresso Nacional.

GLOSSÁRIO

Tombamento é um dos instrumentos legais que o poder público federal,


estadual, municipal possui para preservar a memória nacional. O tombamento
de um bem cultural significa proteção integral, sendo uma das ações mais
importantes relacionadas à preservação de um patrimônio de natureza
material ou imaterial.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 79

Como funções atípicas do Legislativo encontra-se a de administrar seus órgãos.


Neste caso, exerce a função típica do Executivo em relação à outra atuação secundária,
atípica, por parte desse poder, que tem a competência, por meio do Senado Federal, de
julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República e os ministros de Estado quanto
a crimes de responsabilidade. Exerce, assim, a função típica do Judiciário, disposição
prevista no artigo 52 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

O poder Legislativo não tem a capacidade exclusiva de iniciar o processo de


uma lei, apesar de que todas as propostas de leis novas devam passar pela avaliação dos
Deputados Federais e Senadores. Conforme o art. 61 da Constituição Federal (BRASIL,
1988), um projeto de lei pode ser proposto por qualquer parlamentar (deputado ou senador),
de forma individual ou coletiva, por qualquer comissão da Câmara dos Deputados, do
Senado Federal ou do Congresso Nacional, pelo Presidente da República, pelo Supremo
Tribunal Federal, pelos Tribunais Superiores e pelo Procurador-Geral da República.

A Constituição (BRASIL, 1988) ainda prevê a iniciativa popular de leis,


permitindo, aos cidadãos, apresentar à Câmara dos Deputados projeto de lei, desde
que cumpram as exigências estabelecidas no §2º do art. 61. A Lei da Ficha Limpa é
um exemplo e nasceu da iniciativa popular. Outra forma de participação popular que a
sociedade dispõe para propor projetos de lei é a apresentação de sugestões legislativas
(SUGs) à Comissão de Legislação Participativa (CLP).

O Poder Executivo, além de governar o povo, tem a função de administração


do Estado e dos interesses públicos. Para isso, ele utiliza seus poderes: regulamentar,
hierárquico, disciplinar e de polícia. Por exemplo, o Prefeito de Porto Alegre, ao publicar
um decreto que determina a restrição da circulação de pessoas acima de 60 anos pelas
ruas da cidade em função da pandemia do coronavírus, utiliza-se dos seus poderes
regulamentar e de polícia.

Como função atípica, por exemplo, em relação à atividade típica do Legislativo,


o Executivo pode editar de Medidas Provisórias, com força de Lei, conforme determina
o artigo 62 da Constituição Federal: “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da
República poderá adotar Medidas Provisórias, com força de lei, devendo submetê-las
de imediato ao Congresso Nacional”. Ao julgar defesas e recursos administrativos, o
Executivo atua de forma atípica, em relação à atividade típica do Judiciário.

Apesar de o Executivo ter esses poderes, ele também tem princípios que deve
seguir ao agir. São eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência,
80 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

o que demonstra que seu poder não é ilimitado. Em âmbito federal, o Poder Executivo é
exercido pelo Presidente da República e seus ministros, pelos governadores, prefeitos e
secretários estaduais e municipais.

O Poder Judiciário, independente e autônomo, tem a função de dizer o direito no


caso concreto, função de julgar os conflitos que chegam até ele e dirimir as divergências
em relação à aplicação das leis. Portanto, o Judiciário interpreta as leis e julga de acordo
com normas constitucionais e as leis criadas pelo Legislativo e promulgadas pelo
Executivo. Ao fazer o Regimento Interno de seus tribunais e conceder férias aos juízes e
servidores, atua de maneira atípica. No primeiro caso utiliza a natureza legislativa e no
segundo a natureza executiva ao administrar as férias de seus integrantes.

O Judiciário, composto por juízes e desembargadores, está estruturado em


vários órgãos que funcionam de maneira hierárquica, formado por instâncias ou graus
de jurisdição. Seu trabalho também é dividido por matérias: civis, penais, trabalhistas,
eleitorais, militares e federais. O Tribunal de Contas, apesar do seu nome, não faz parte
do Poder Judiciário e está atrelado ao Poder Legislativo. Os entes do Estado (Municípios
e Distrito Federal) não possuem Poder Judiciário. Já os Estados-membros possuem os
três poderes.

SAIBA MAIS

Leia o artigo “O Judiciário como poder político no século XXI”, de Antônio


de Pádua Ribeiro. Com ele você aprenderá um pouco mais sobre as formas
de governo, a teoria dos freios e contrapesos e sobre a estrutura do Poder
Judiciário brasileiro. Disponível em: http://gg.gg/ipv9s

Como vimos, a separação de poderes está prevista na Constituição de vários


Estados, e a Constituição brasileira de 1988, além de prever essa separação, estabeleceu
que se trata de cláusula pétrea. Ou seja, trata-se de cláusula que não pode ser abolida,
retirada do ordenamento jurídico brasileiro, nem por emenda constitucional. Embora
essa previsão, alguns autores alertam para o fato de que em algumas situações estão
ocorrendo a intervenção inadequada de um poder em outro.

O aumento expressivo de Medidas Provisórias por parte do Governo Federal e a


intervenção do Judiciário para impor a obrigação da administração pública (Executivo)
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 81

em atuar para atender os direitos fundamentais da população, como no caso de fornecer


algum medicamento, são exemplos dessa intervenção que chamam de inadequada sob
alegação de danificar o regime democrático.

SAIBA MAIS

Leia sobre a judicialização do Poder Judiciário no artigo: “A Judicialização


da Política” e a “Politização do Judiciário” no Brasil: Notas para uma
abordagem sociológica”, autoria de Fabiano Engelmann. Disponível em:
http://gg.gg/ipvad

REFLETINDO

Você acha correto a intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo no


caso de fornecimento de medicamento? Caso sim, como você justificaria
essa intervenção?

Após o estudo da teoria de Montesquieu, é possível afirmar que ela garante a


alternância no exercício do poder, tendo em vista que o poder não está restrito a um só
órgão ou pessoa. Portanto, não há como praticar ações que vise interesse próprio ou que
permaneça no poder de forma autoritária. Desse modo, levando em consideração o que é
o princípio da separação dos poderes, também pode-se dizer que ele está profundamente
associado ao princípio democrático, como regime republicano de governo.

3.6 Regimes de Governo


O regime de governo caracteriza-se pela forma que o governo se organiza para
exercer seu poder político sobre a população, seus governados. Nessa perspectiva,
os regimes podem ser divididos em democráticos, autoritários e totalitários, ou seja, o
poder pode ser exercido por parte dos governos de forma a considerar a participação
popular ou de forma mais sucinta, suprimindo a participação popular.
82 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

3.6.1 Regime Democrático


Esse regime de governo reconhece que o poder emana do povo, regime que
considera a participação popular, por dar voz ao povo, ao cidadão, de forma direta ou
indireta. Considera que todos os integrantes da sociedade possuem direitos políticos
iguais, fato que concebe a soberania popular.

A democracia direta, também chamada de soberania popular, é exercida pelo


povo principalmente por meio de alguns instrumentos como:

• Referendo: consulta popular realizada depois da elaboração de um projeto de lei


confeccionado pelo Congresso, sobre determinada matéria, cabendo à população
ratificar/sancionar ou rejeitar a medida. Exemplo: a consulta, em 2005, sobre a
inclusão do art. 35, sobre a comercialização de armas de fogo e munições, deveria
ser incluído no Estatuto do Desarmamento.

• Plebiscito: consulta prévia à opinião popular sobre uma determinada matéria


antes que o Congresso elabore o projeto de lei. Exemplo: a consulta feita, em
1993, a respeito se o Brasil deveria adotar a monarquia ou a república.

• Iniciativa Popular: apesar de não ser uma forma de consulta, ela possibilita ao
povo a iniciativa de propor um projeto de lei, art. 60, § 2° (BRASIL, 1988).

• Veto Popular: possibilidade dos eleitores, por um determinado prazo, após a


aprovação de um projeto de lei, pelo Legislativo, requererem a aprovação popular
da lei. A lei não entra em vigor antes de decorrido esse prazo e, desde que haja
a solicitação por um certo número de eleitores, ela continuará suspensa até as
próximas eleições, quando então o eleitorado decidirá se ela deve ser posta em
vigor ou não;

• Recall: direito de revogação, revogação popular. Trata-se de uma instituição


norte-americana que tem aplicação para revogar a eleição de um legislador
ou funcionário eletivo, espécie de arrependimento eleitoral, ou, para reformar
decisão judicial sobre constitucionalidade de lei.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 83

A democracia indireta, também conhecida como democracia representativa,


é a democracia pela qual o povo expressa sua vontade por meio da eleição dos seus
representantes, os quais irão decidir em nome dele, dos cidadãos que os elegeram. A
população concede um mandato para alguns cidadãos manifestarem a vontade popular
e tomarem decisões em seu nome, como se a própria população estivesse governando.

3.6.2 Regime Autoritário


Trata-se de um governo arbitrário, de poder absoluto, que governa em detrimento
das liberdades individuais. Neste sistema, quem (déspota ou ditador) está no governo
se excede no exercício da autoridade de que lhe foi investida. Pode se dar por meio do
poder econômico, financeiro ou por coação. Diferente do totalitarismo, nesse regime o
Governo não tenta controlar a vida privada do seu povo para que passem o resto de suas
vidas sob esse regime.

3.6.3 Regime Totalitário


Esse regime político está baseado na extensão do poder do Estado e abarca todos
os níveis da sociedade. Normalmente deriva de ideologias extremistas e da desintegração
da sociedade civil organizada. Trata-se de um regime de controle total, como o próprio
nome diz, fundamentado no controle absoluto de um partido ou de um líder sobre toda
nação. Regime fortemente baseado no militarismo e no terror, a fim de intimidar e
silenciar as vozes dissidentes. Exemplos desse regime aconteceram na Alemanha, entre
1933 e 1945, quando os nazistas, com Adolf Hitler, subiram ao poder, com ideias de
extrema direita e na então União Soviética, entre 1924 e 1953, com o Estalinismo, devido
à Josef Stalin, com espectro político de esquerda.

Portanto, assim como vimos, dentro dos tipos de regime de um governo, que a
democracia é o regime que mais respeita as liberdades individuais do povo de um Estado,
percebemos a importância que o regime de um governo tem sobre a vida da população.
Da mesma forma, pode-se compreender a importância que tem o estudo dessa unidade,
pois o funcionamento de um Estado, sua origem, formação, estrutura, organização estão
intimamente ligadas à sociedade, já que ele não existe sem nós, cidadãos. Por outro lado,
a forma pela qual o Estado age afeta diretamente nossas vidas.
84 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

SÍNTESE DA UNIDADE
Nesta Unidade aprendemos sobre o funcionamento do Estado: separação dos
poderes e sistemas de governo. Vimos, também, algumas questões importantes em
relação à organização e funcionamento do Estado Moderno. Assim, podemos destacar:

• O Estado como organização social, com objetivo de atingir o bem comum,


detentor de poder que influi na vida da sociedade por meio de leis e normas.
Enquanto o governo é o gestor de um Estado.

• Os elementos indispensáveis do Estado: povo, território, soberania (governo


soberano). A diferença entre povo, Nação e Estado.

• O poder político do Estado pode ser distribuído de maneiras diferentes, no


momento da sua formação. O Estado, desse modo, pode ser: uma federação, um
Estado único ou uma confederação.

• Como o Estado se manifesta, como ele exerce seu poder político. Atualmente, as
formas clássicas de governo, dele se manifestar, são: a monarquia e a república.

• Os dois principais sistemas de governo são o parlamentarismo e o presidencialismo,


mas que há autores que descrevem um terceiro sistema, o semipresidencialismo.
Esses sistemas são divididos segundo a essência e o nível da ligação entre o Poder
Executivo e o Poder Legislativo, o modo pelo qual esses poderes se relacionam.

• Foi para evitar o abuso de poder, como o de governos absolutos, que Montesquieu
elaborou, em 1748, a teoria da separação dos poderes, com base na tripartição dos
poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Princípio que vigora até hoje.

• O regime de governo caracteriza-se pela forma que o governo se organiza para


exercer seu poder político sobre a população, seus governados. Nessa perspectiva,
os regimes podem ser: democráticos, autoritários e totalitários.
O Funcionamento do Estado: Separação dos Poderes e Sistemas de Governo | UNIDADE 3 85

REFERÊNCIAS
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São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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AZAMBUJA, D. Teoria geral do estado. São Paulo: Globo, 2008.

BASTOS, C. R. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos editor, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília,


1988. Disponível em: http://gg.gg/ietrb. Acesso em: 25 abr. 2020.

DALLARI, D. de A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Saraiva, 1991.

DUVERGER, M. O regime semi-presidencialista de Maurice Duverger. São Paulo: Sumaré, 1993.

FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio século XXI – dicionário eletrônico. Rio de Janeiro: Editora
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HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

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MALUF, S. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2019.

MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret. 2010.

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SARTORI, G. Engenharia Constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.

SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada. Cidade do México: FCE, 2005.

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SOUZA, M. da C. E. Instituições e organização do Estado. Curitiba: InterSaberes, 2018.

STEPAN, A. Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que
Restringem ou Ampliam o Poder do Demos. Dados: Rio de Janeiro, vol. 42 n. 2., 1999. Disponível
em: http://gg.gg/ju717. Acesso em: 23 jun. 2020.
86 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

ANOTAÇÕES
unidade

4
Os Diferentes Tipos de Estado:
do Estado Liberal às Críticas
Neomarxistas
Prezado(a) estudante.

Estamos começando uma unidade desta disciplina. Os textos que a compõem foram
organizados com cuidado e atenção, para que você tenha contato com um conteúdo
completo e atualizado tanto quanto possível. Leia com dedicação, realize as atividades e
tire suas dúvidas com os tutores. Dessa forma, você, com certeza, alcançará os objetivos
propostos para essa disciplina.

OBJETIVO GERAL
Conceitualizar o Estado Liberal, o Estado de Bem-Estar Social e as críticas formuladas
pelos autores neomarxistas.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Contextualizar o surgimento do Estado Liberal e apresentar as suas principais
características (e autores);
• Descrever o surgimento do Estado de Bem-Estar Social, explicar as suas principais
características e variações;
• Apresentar as contribuições dos autores neomarxistas (Offe, Poulantzas) e suas
críticas aos Estados Liberais e de Bem-Estar.

QUESTÕES CONTEXTUAIS
• Você sabia que existem tipos diferentes de Estado e que uma das principais
características é em relação ao quanto ele interfere na vida da sua população?
• Você sabia que a liberdade que temos hoje deve-se ao tipo de Estado que existe no
Brasil à forma pela qual o poder é dividido?
• Você acha que a liberdade das pessoas depende apenas dos meios materiais?
Por que existem pessoas que, embora trabalhem muito, são pobres e outras que,
mesmo trabalhando pouco, são ricas?
88 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

4.1 Surgimento do Estado Liberal e suas


Características
O Estado, no que diz respeito aos países ocidentais, já assumiu algumas formas no
decorrer da história, entre elas: Estado Absolutista, Estado Liberal, Estado Socialista,
Estado Nazista e Fascista, Estado de Bem-Estar Social e Estado Neoliberal. Porém,
essas mudanças não ocorreram de forma abrupta, mas por meio de uma transição paulatina.

Havia, no Estado Absolutista, uma sociedade baseada no privilégio do nascimento,


ou seja, quem era nobre e da Igreja possuíam determinados privilégios. Nessa época
existiam basicamente três grupos: o clero, a nobreza, que possuía terras e tinha poder
político, e o resto da população, sem privilégios, que era composta por: camponeses e
burgueses.
Essas pessoas, que não eram nem nobres e nem da Igreja não possuíam nenhum
tipo de direito, e foi com o intuito de mudar essa situação que a Revolução Burguesa surge,
justamente como processo de garantir que essas pessoas tenham direitos iguais àqueles
que tinham terras ou àqueles que eram do Clero. As ideias que embasaram a Revolução
Burguesa tiveram a influência do Iluminismo, com noções como igualdade jurídica e
liberdade de expressão e, dessa forma, foi inaugurado o mundo contemporâneo.

GLOSSÁRIO

Iluminismo: O iluminismo, também conhecido como o “Século das Luzes”,


foi um movimento de revalorização da atividade intelectual por meio da razão
e da difusão do conhecimento científico. Sob esse aspecto, os filósofos
iluministas acreditavam que a humanidade estava emergindo de uma era de
obscurantismo e de ignorância para um novo tempo iluminado pela razão,
pela ciência e pelo respeito à humanidade. Na França os ideais Iluministas
tinham como lema a liberdade, a igualdade e a fraternidade, dentre seus mais
importantes formuladores podemos destacar Voltaire, Montesquieu, Diderot
e Rousseau.

Dessa forma, é a burguesia que lidera o processo dessa revolução e é quem vai
assumir o poder ao final dela, porque ela tinha o poder econômico, mas não possuía o poder
político, pois quem detinha esse poder político era a nobreza. De tal forma que, a burguesia,
passando a eliminar os poderes da nobreza, passa a ter os privilégios ou os direitos que a
nobreza possuía antes. Logo, o descontentamento dos burgueses com o feudalismo é que leva
à Revolução Burguesa, portanto, é nesse sentido que se fala de uma transição paulatina, já
que esse descontentamento não aconteceu da noite para o dia.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 89

Assim sendo, o que se chama de Revoluções Burguesas englobam: as Revoluções


Inglesas do século XVII, a Revolução Puritana e a Revolução Gloriosa, a Independência
dos EUA, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Foi com o desenvolvimento
da classe burguesa, entre os séculos XVI e XVII, devido ao crescimento da produção de
mercadorias e das práticas do mercantilismo que os burgueses conseguiram acumular
capitais. Dessa maneira, a burguesia passou a enriquecer e a dominar a economia
inglesa. Todavia, a intervenção do Estado Absolutista nos assuntos econômicos passou a
atrapalhar os interesses dessa classe, que começau a defender a liberdade comercial e se
opor ao absolutismo. A burguesia também se opôs ao Clero e houve conflitos religiosos,
pois a monarquia inglesa, que era anglicana, perseguia católicos, protestantes e outros.

Foi no decorrer dos séculos XVII e XVIII que a burguesia destrói a ordem feudal,
com a liberdade de expressão, liberdade religiosa, fortalecendo o capitalismo e gerando
o Estado Liberal. Um Estado no qual o cidadão é quem escolhe o governante, um Estado
no qual a lei está acima do Rei e não o contrário.

Neste momento, é necessário lembrar que, a partir desse período, se tem a valorização
da ciência, a liberdade individual e o incentivo de se criarem máquinas, devido à crença de
um progresso. Assim, com a criação das máquinas, a burguesia inglesa, com o intuito de
aumentar seus lucros, passa a aperfeiçoá-las e investe nas indústrias, resultando numa
produção de mercadorias e lucros maiores – essa fase é conhecida como Revolução Industrial.
A Revolução Industrial criou uma classe social, o proletariado, que era subjugado à rígida
disciplina e ao intenso trabalho. Foi um período que promoveu o progresso, porém aumentou
a exploração e acarretou uma aglutinação urbana e operária.

DESTAQUE

Estado Moderno: já apresentou algumas configurações, entre elas: Estado


Liberal, o Estado Socialista, o Estado de Bem-Estar Social e o Estado
Neoliberal. Teve origem com o desenvolvimento do mercantilismo, em
países como França, Portugal, Inglaterra e Espanha. Ocorreu a partir do
esfacelamento do sistema feudal.

Vimos, então, que o Estado Liberal nasce em oposição ao modelo centralizador e


controlador do Estado Absolutista, que tinha como objetivo acumular riquezas, controlar
as atividades econômicas, e se caracterizava por uma relação autoritária entre o governo
e o povo. Já a ideia principal do Estado Liberal era a liberdade.
90 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Para o filósofo e historiador Berlin (2002), há duas liberdades: a liberdade positiva,


que serve para governar, liberdade para autogovernar-se, liberdade de ser o instrumento
de seus próprios atos de vontade e não das outras pessoas, de ser sujeito e não objeto,
liberdade para participar da política; e a liberdade negativa, não no sentido ruim, mas
no sentido de uma liberdade de estar livre do Estado, livre das interferências, livre do
absolutismo, da tirania. Para Berlin (2002), as duas liberdades são complementares.

Os liberais, sendo a favor da liberdade, são contra qualquer pessoa ou grupo que
diga ao indivíduo o que ele deve fazer com a própria liberdade. Ou seja, as pessoas devem
ser livres para fazerem o que quiserem com sua liberdade. Nesse sentido, a política e as
leis vêm para evitar que a liberdade de uma pessoa viole a liberdade de outra.

Consequentemente, o Estado Liberal visava a não intervenção do Estado e a


liberdade econômica. Em síntese, o Liberalismo coloca a liberdade da pessoa em primeiro
lugar. Existe mais de um tipo de Liberalismo, mas em todos há três fatores comuns e
essenciais: a liberdade individual, a propriedade privada e a vida. Eles também são
conhecidos como direitos negativos, que é a liberdade de não sofrer coerção de terceiros
ou do próprio governo, pois os liberais entendem que as pessoas têm a liberdade de
viverem da forma que desejam, desde que não interfiram na vida dos outros.

John Locke, filósofo iluminista, considerado um dos pais do Liberalismo, elenca


esses direitos com base nos Direitos Naturais, que dizem dos limites das ações dos
indivíduos em relação aos outros indivíduos e do próprio Estado em relação aos seus
cidadãos (DALLARI, 2015). Os franceses chamaram esses direitos de direitos do homem
e do cidadão.

Os liberais afirmavam que, no Estado natural, o homem vive em harmonia


com esses três direitos básicos: a liberdade, a propriedade privada e o direito à vida,
e que a relação entre o Estado e a sociedade ocorreria por meio do contrato social que
determinava esses direitos básicos, isto é, o Estado teria apenas como única e principal
função proteger esses direitos naturais.

Outro pensador que contribuiu para o liberalismo foi Adam Smith. Este estudioso
acreditava numa economia livre, que deveria ser regulamentada e determinada pelo
próprio mercado e não por uma elite política (BENTO, 2003). O autor preconizava uma
economia sem intervenção estatal, cuja economia se regularia sozinha. Visava, ainda, a
defesa da propriedade privada e a livre concorrência.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 91

[...] o mercado pode dar conta de regular a si mesmo desde que não
sofra ingerências da parte de elementos extraeconômicos, de maneira
que o mercado possa promover a justiça assentada sobre o critério da
adequada remuneração do esforço individual (BENTO, 2003, p. 159).

O mercado seria, então, regulado por suas leis naturais e as garantias, preconizadas
por Smith (BENTO, 2003), deveriam acontecer com pouca ou nenhuma intervenção do
Estado, tanto na economia quanto na política, sendo a liberdade individual o limite de
atuação do Estado. Assim, o Estado Liberal, também conhecido como Estado Liberal de
Direito, é o oposto do Estado intervencionista, no qual há uma normatização exaustiva
em todas as áreas da economia e da esfera privada.

DESTAQUE

Figura 4.1 - Adam Smith.

Fonte: The Economist (2020).

Adam Smith nasceu na Escócia, em 1723 e morreu em 1790, economista e


filósofo do século XVIII. Principais obras: “Teoria dos Sentimentos Morais”
(1759) e “A Riqueza das Nações” (1776).

Há, portanto, dois tipos de Liberalismo principais: o liberalismo político e o


liberalismo econômico. O liberalismo político começou a se expandir com o desgaste do
modelo absolutista, que já não satisfazia mais a burguesia, porque, como já mencionado,
essa classe não tinha a liberdade política que desejava.
92 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

A burguesia estava sendo achatada, prejudicada pelo poder real, e com o liberalismo
político ela se desvencilharia do poder absolutista, de tal forma que os burgueses teriam
mais liberdade para exercer as atividades econômicas que almejavam, sem intervenção
do poder do Rei, sem interferência estatal. Os burgueses procuravam garantir os direitos
naturais, citados acima: além da liberdade, da propriedade privada e à vida, podemos
citar a liberdade política, liberdade de pensamento, a separação dos poderes, que também
está dentro do Estado Liberal, e a liberdade de escolher sua representatividade política.

O liberalismo econômico é o oposto do mercantilismo, em que estabelecia


monopólios. A economia era comandada pelo Rei, que estabelecia todas as regras
econômicas e tinha a exclusividade de explorar as atividades mais lucrativas. Os
burgueses, nessa época, para fazerem qualquer transação, precisavam de autorização do
Rei. Todos os privilégios e lucros ficavam concentrados nas mãos do Rei e dos grupos
que lhe davam apoio político, ou seja, o Clero e a nobreza eram os privilegiados no
Estado Absolutista, e foi contra isso que eles lutaram, na busca por uma economia sem
intervenção do poder real.

GLOSSÁRIO

Mercantilismo: os monarcas promoviam as ações da economia, baseadas


no comércio e na exploração de colônias, controlando tudo. A burguesia
apoiava os domínios políticos dos reis e, em troca, concediam favores e
privilégios para que a burguesia aumentasse suas divisas econômicas, pois
eles perceberam, com o passar do tempo, que o enriquecimento da classe
burguesa provocava de modo direto o fortalecimento de seu governo. Já
que, quanto mais os comerciantes mercantilizavam, mais impostos eram
pagos e, consequentemente, mais dinheiro era direcionado ao Estado.

Essa teoria colocava unicamente o cidadão como responsável pela sua riqueza e
sucesso, sem precisar do Estado. O filósofo Smith (BENTO, 2003) chamou de a “mão
invisível”, de tal forma que o Estado serviria apenas para garantir a ordem institucional
e administrar a justiça, porque a economia se desenvolveria livremente – a riqueza
nasceria da divisão do trabalho.

O Liberalismo econômico, também conhecido pela expressão francesa laissez


faire, que quer dizer: “deixar fazer”, isto é, a não intervenção do governo, a liberdade
negativa – o Estado mínimo. Conforme Reis (2019), a expressão completa em francês é:
“laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, que é traduzida
como “deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo”.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 93

Foi nesse contexto que surgiram os pensadores iluministas que defendiam a


liberdade nas práticas comerciais. Assim, o liberalismo econômico é contra a intervenção
do Estado na economia, defende a propriedade privada (nenhum homem, nem o Rei tem
o direito de tirar o patrimônio que foi construído com seu trabalho e mérito individual), o
livre mercado, a livre troca de mercadorias, a liberdade de escolha de quem vai comprar,
assim, o poder de escolha, a livre iniciativa, livre-cambismo (com a redução das taxas
alfandegárias), a livre concorrência, que é o contrário do monopólio. Para Smith (BENTO,
2003) a livre concorrência se auto sustenta com a oferta e procura, assim o Estado teria
um papel reduzido na economia, apenas garantindo o funcionamento dos bens públicos.

Os liberais, sob esse ângulo, defendem o comércio livre e o trabalho e afirmam


que o trabalho cria propriedade, cria riqueza e valores, sendo assim o trabalho é visto
como positivo pelos liberais e é a partir daí que vem a ideia de progresso, de que o
homem pode construir por meio do trabalho. Os liberais provam que o dinheiro é apenas
moeda de troca, que ele não cria riqueza, que provém do trabalho, contrariando o que os
mercantilistas diziam: que o dinheiro gera riqueza.

Com o pensamento liberal foi possível adotar uma política pautada no


parlamentarismo ou no republicanismo. Consequentemente, surgiu a divisão dos
poderes de Montesquieu, um dos filósofos que inspirou o liberalismo e a Revolução
Industrial. Assim, o poder foi tirado das mãos de uma única pessoa e começou a ser
instaurado no mundo o Estado de Direito. Contudo, o liberalismo teve alguns opositores,
entre eles Karl Marx, que foi um dos críticos desse “[...] modelo de Estado Liberal com
administração burocrática e demonstrou algumas das fragilidades desse estado de
coisas” (CLEMENTE; JULIANO, 2017, p. 71). Marx afirmava que o Estado estaria a
“serviço de uma classe economicamente dominante” (CLEMENTE; JULIANO, 2017, p.
71-72).

As ideias de Karl Marx influenciaram algumas revoluções, entre elas a Revolução


Russa, em 1917, a qual originou o Estado Socialista – uma sociedade sem desigualdade, em
que não seria mais necessária a existência do Estado. Era o caminho para o comunismo.
Porém, segundo Clemente e Juliano (2017, p. 81), na prática, o comunismo nunca existiu,
porque os países que passaram pelas revoluções socialistas “mantiveram um Estado
centralizador e altamente regulador da sociedade e da economia”.
94 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

DESTAQUE

O Estado Socialista é mais um exemplo de Estado Moderno. Ele surge como


uma reação ao Estado liberal e, portanto, parte-se de questionamentos acerca
da propriedade privada e dos meios de produção. Na concepção socialista,
a sociedade estaria dividida em duas classes principais: a burguesia e o
proletariado.

Quadro 4.1 – Características do Estado Liberal.

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO ESTADO LIBERAL

Pouca intervenção do Estado na economia e na política;

A economia se autorregula por meio de leis naturais;

Livre concorrência (“mão invisível” do Estado);

Valorização do trabalho humano;

Defesa da propriedade privada;

Lei da oferta e procura;

Garantia dos direitos individuais;

Oposição às medidas restritivas;

Oposição aos altos tributos;

Oposição ao protecionismo mercantil;

Oposição as barreiras econômicas.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).

A seguir veremos algumas das principais ideias desses pensadores e de outros


autores liberais, tendo em vista que o pensamento liberal foi evoluindo com o tempo e
é marcado por uma diversidade de convicções:

John Locke (1632-1704): defendeu os direitos naturais, a liberdade intelectual, a


tolerância e que o poder estatal deveria garantir a vida e o direito à propriedade privada
dos seus cidadãos. Filósofo inglês, conhecido como um dos “pais do liberalismo” e
teóricos do contrato social, foi um dos primeiros a sustentar o direito da população de
destituir o Chefe de Estado no caso dele agir contra os direitos fundamentais.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 95

Adam Smith (1723-1790): a base da sua teoria econômica estava na redução


do Estado, na limitação da atuação dele, o qual deveria apenas proteger os direitos
individuais, como a vida e a propriedade privada, manter a ordem pública e a produção
privada deveria ser facilitada com a autorregulamentação do mercado. Sendo o próprio
trabalho das pessoas o que alicerçaria o crescimento da sociedade.

Jeremy Bentham (1748-1832): filósofo e jurista inglês, suas ideias contribuíram


para embasar o liberalismo. Defendeu, dessa maneira, a iniciativa privada e o pensamento
de que o indivíduo com o seu trabalho contribui para o desenvolvimento e a riqueza de
toda a sociedade, na qual o Estado deveria furtar-se de interferir na economia e na
sociedade de um modo geral, restringindo-se apenas a garantir a segurança da riqueza
adquirida pelos seus cidadãos e a função judiciária.

Edmund Burke (1729-1797): filósofo, advogado, teórico político e orador


irlandês, apoiou a restrição dos poderes reais e considerou o Estado como inimigo
da sociedade, condenando qualquer intervenção do Estado na economia. Crítico da
Revolução Francesa, condenava o simplismo dos iluministas e foi considerado um ícone
tanto dos conservadores como dos liberais.

Thomas Malthus (1766-1834): o economista inglês foi considerado o “pai da


demografia” devido sua teoria do controle do crescimento da população. Conforme ele,
os meios de subsistências crescem em progressão aritmética e a população cresce em
progressão geométrica. Afirmava que o Estado deveria se limitar a proteger os mais
ricos e aos pobres não caberia nada, apenas aconselhava-os a não se reproduzirem.

Wilhelm Von Humboldt (1767-1835): alemão, teórico político, funcionário do


governo e filósofo, defendeu o Estado mínimo, ligava o mal ao crescimento do Estado,
cuja burocracia poderia gerar o fracasso dos cidadãos.

John Suart Mill (1806-1873): filósofo e economista britânico, contribuiu nas


áreas da Lógica, Psicologia, Direito, Economia e da Política. Sua principal obra na
área da economia foi “Princípios de Economia Política”, de 1848, período que iniciou
a defesa da constituição de propriedades para os camponeses. Não defendia muito o
princípio do laissez faire, pois defendia algumas esferas contrárias aos interesses privados
como, por exemplo, a ajuda aos pobres. Considerava que o Estado deveria proporcionar
oportunidades de desenvolvimento pessoal e social para todos os indivíduos por meio da
educação, mas que ele não deveria interferir em situações que os seus cidadãos fossem
capazes de administrar sozinhos.
96 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

REFLETINDO

Você já deve ter ouvido uma frase parecida com essa: “quem se esforça,
consegue, basta querer”. O que você pensa a respeito dela? Você acha que
se adequa com o pensamento liberal?

O Liberalismo, exaltou a garantia dos direitos individuais, a liberdade de


pensamento e a promoção da igualdade, pautou-se nos interesses da burguesia, pela
a livre concorrência econômica, e acabou por ocasionar como principais beneficiários
os ricos. Desse modo, a noção de direito à propriedade que embasou a ideia de pacto,
na realidade, favoreceu, prioritariamente, a atuação na política dos que detinham mais
patrimônio, ou seja, de quem já era abonado. Foi nesse período que ocorreu o início da
globalização da economia europeia (CLEMENTE; JULIANO, 2017).

Esse fato, portanto, aumentou o poder desse grupo econômico, a burguesia,


em detrimento do resto da população, gerando cada vez mais desigualdades sociais,
problemas públicos e financeiros, tudo pela pouca atuação do Estado. Com a pobreza da
população e a exploração por parte da burguesia da mão de obra de seus trabalhadores,
com jornadas exaustivas, surgiu, como já mencionado, uma nova classe social: o
proletariado, devido ao surgimento de inúmeras indústrias.

Somado a isso, teve ainda a falta de emprego, de direitos trabalhistas, o aumento da


violência e das doenças, como tifo e cólera, a destruição social ocasionada pela Primeira
Guerra Mundial (1914-1919) e a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, causando a
Grande Depressão dos anos de 1930. Isso tudo conduziu o liberalismo a entrar em crise.
Nesse sentido, Dallari (2015) afirma que:

A valorização do indivíduo chegou ao ultra individualismo, que ignorou


a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento
egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis, mais audaciosos ou
menos escrupulosos. Ao lado disso, a concepção individualista da
liberdade, impedindo o Estado de proteger os menos afortunados, foi
a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos
o direito de ser livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser
livre. Na verdade, sob pretexto de valorização do indivíduo e proteção
da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para
os que eram economicamente fortes. E, como acontece sempre que os
valores econômicos são colocados acima de todos os demais, homens
medíocres, sem nenhuma formação humanística e apenas preocupados
com o rápido aumento de suas riquezas, passaram a ter o domínio da
Sociedade (DALLARI, 2015, p. 100).
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 97

O liberalismo não desapareceu, porém foi justaposto por um regime que


caminhava para a democratização. A partir do momento que os trabalhadores tomaram
consciência da importância do seu papel para a sociedade, iniciaram diversas greves e
criaram-se sindicatos na busca por melhor condições de trabalho. Surgiu o Estado,
tentando “reequilibrar a sociedade, dando ênfase à igualdade e restringindo os excessos
de liberdade”, na “ânsia de correção dos desajustes sociais” (ACQUAVIVA, 2010, p. 66-
67), conforme o pensamento socialista de Karl Marx, um dos opositores do Estado
Liberal. Ocorreu, ainda, o fortalecimento do Poder Executivo, e o aparecimento do
“keynesianismo e o desenvolvimento posterior desse processo, o surgimento do Estado de
Bem-Estar social nos países da Europa ocidental” (CLEMENTE; JULIANO, 2017, p. 96).

SAIBA MAIS

Para saber mais sobre o Estado Liberal e seus fundamentos, leia o artigo: “Os
Fundamentos do Liberalismo Clássico - A relação entre estado, direito e
democracia”. Disponível em: http://gg.gg/jsrll.

4.2 Estado de Bem-Estar Social: Características e


Variações
O Estado de Bem-Estar Social, também conhecido como Welfare State, aparece
de formas diferentes em cada país. Porém, podemos afirmar que o Estado de Bem-Estar
Social é o modelo de Estado que promove demandas políticas e econômicas, é o agente
organizador da sociedade, é o Estado sendo fomentador do bem-estar, garantidor de
saúde e educação públicas de qualidade (CLEMENTE, JULIANO, 2017).

Esse modelo de Estado capitalista predominou a partir dos anos de 1930 até os
anos de 1970, em que há a expansão das políticas sociais, a partir da expansão do Estado
em suas funções políticas e econômicas. Segundo Esping-Andersen (1991, p. 242), “ele
(o Welfare State) envolve responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar
básico dos cidadãos”.
98 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Após a crise de 1929 (crise do Estado Liberal com a quebra da bolsa de valores
de Nova York), houve a necessidade da substituição desse modelo liberal de Estado.
O Welfare State vai acontecer, principalmente no seu início, sob os moldes do
economista John Maynard Keynes, que estrutura uma economia de bem-estar. A social-
democracia, criada pelo economista inglês Keynes, também conhecida como a doutrina
do keynesianismo, foi a alternativa para a ruína do Liberalismo, após a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Essa teoria foi baseada no seu livro “A Teoria Geral do Emprego,
do Juro e da Moeda”, a qual fundamenta-se na atuação do Estado na economia como
regulador das negociações do mercado.

Porém, o economista pensava que o capitalismo, apesar de suas deficiências,


ainda era o caminho para alcançar o crescimento das sociedades e propôs um novo
entendimento a respeito do capitalismo. Para Keynes, o Estado deveria atender diversas
normas que tivessem como objetivo a melhoria da vida dos seus cidadãos de um modo
geral. Só assim, mantendo um Estado de Bem-Estar Social, é que o governo, a economia e
a vida das pessoas funcionariam de forma adequada. O adjetivo “social”, dessa maneira,
refere-se “à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados
direitos sociais e realização de objetivos de justiça social” (SILVA, 1999, p. 119).

Esse modelo de Estado foi muito usado pelo governo do Presidente Franklin
Delano Roosevelt, em seu programa de recuperação econômica que foi chamado de o
New Deal (novo acordo). Nesse período, houve grandes obras, aumento de salários, foi
estabelecida jornada de 8 horas de trabalho, legalização de sindicatos, criação da
previdência social e preços de produtos fixados pelo governo.

VÍDEO

Para entender mais sobre o


Keynesianismo de uma forma
simplificada, assista ao vídeo
“Keynes”. Disponível em:
http://gg.gg/jsrms.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 99

Podemos citar quatro elementos que deram base para o surgimento do Estado de
Bem-Estar Social: a conquista de direitos políticos, no fim do século XIX, que permitiu
que a população participasse mais do Estado, o que ajudou a diminuir o Estado Liberal e
alargar a participação do Estado; a monopolização do capital, o Estado passou a intervir
mais na produção capitalista; a Revolução Socialista, em 1917, na Rússia, que fez com
que os trabalhadores aumentassem suas esperanças sobre a possibilidade da tomada
de poder e do Estado, o que levou o capitalismo do Ocidente a repensar suas práticas,
fazendo com que cedesse um pouco, já que havia o receio, o medo, de uma possível
revolução como a da Rússia; a crise de 1929, a quebra da bolsa de valores de Nova York,
que foi uma crise de superprodução cujas mercadorias não conseguiam ser vendidas, o
que reduziu a economia capitalista.

Além do Keysianismo, teve também o fordismo, que é o modo de produção em


massa, e recebeu esse nome devido à Henry Ford, que instalou a primeira linha de produção
semiautomatizada de automóveis, em 1914. Período no qual houve, além da produção em
massa, o consumo em massa, altos salários, muitos empregos e o Estado garantindo salários
indiretos, que são as políticas sociais. Isto é, o Estado atuando na reprodução da força de
trabalho, garantido a educação e a saúde públicas, incentivos a transportes, construção de
moradias, a própria previdência social, havendo assim a expansão das funções do Estado.

Sob esse aspecto, as empresas dariam os empregos, mas ao Estado caberia dar
toda uma estrutura às cidades para que as empresas se instalassem e conseguissem fazer
girar a economia. Resumindo, podemos citar três características dessa fase: o pleno
emprego, a produção e o consumo em massa.

Há dois modelos de Estado de Bem-Estar Social reconhecidos por Titmuss (1963):


os residuais, quando o Estado só assume o papel de provedor quando o mercado ou a
família não puderem desempenhar essa função. Dessa forma, como o Estado só atua
de forma residual, ele tem menos gastos sociais. No outro modelo, dos institucionais,
o Estado assume uma função universalista, provendo políticas sociais de uma maneira
geral, para a população como um todo.

Para Esping-Andersen (1991), as variações do Welfare State não são lineares, mas
o autor as agrupas conforme o tipo de regime: liberal, conservador e social-democrata.
O autor ainda adotou três critérios para identificar e distinguir os regimes: a relação
público ou privada da provisão social, o grau de desmercantilização dos bens e serviços
sociais e seus efeitos na estratificação social.
100 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

O regime do Welfare State liberal tem como base o mercado e apoia o pleno emprego
a todos, homens, mulheres e jovens. Neste modelo predomina a assistência comprovada
dos pobres. Podemos citar como exemplo: os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. O
modelo conservador do Estado de Bem-Estar Social, para Esping-Andersen (1991), é muito
corporativista e moldado pela Igreja e, portanto, compromissado em preservar a família. As
esposas que não trabalham fora são excluídas da previdência social, e o Estado atua de forma
subsidiária, ou seja, só interfere quando a família não tiver mais condições de prover sua
subsistência. Exemplos desse modelo: a Áustria, a França, a Alemanha e a Itália. O Welfare
State social-democrata é marcado pelo universalismo, isto é, abarca todos e não apenas suas
necessidades básicas, mas que todos os trabalhadores, conforme Esping-Andersen (1991),
tenham suas necessidades satisfeitas, de forma que todos possam usufruí-las como os ricos,
que todos tenham a mesma igualdade. Para o autor, uma das principais características desse
modelo é a fusão entre serviço social e trabalho e cita como exemplo os países escandinavos.
O autor afirma que não há um Estado de Bem-Estar Social que pertença a um único regime,
que não existem tipos puros.

Consequentemente, podemos dizer que, quando o Welfare State surgiu, o Estado


passou a intervir na vida econômica e social dos seus cidadãos para atingir o bem-
estar político e social do país, mas não mais de uma forma assistencialista, e sim como
investimento. Portanto, com a promoção de serviços em diversas áreas como: habitação,
saúde, renda e previdência social, no intuito de garantir a produção de riquezas materiais
e a diminuição das desigualdades sociais, pode-se conciliar capitalismo e democracia.

Baseado nos estudos do economista Gunnar Myrdal, que via essa atuação do Estado
como investimento a longo prazo e não como custo, pois ajudava a ativar a economia, foi que
o Estado de Bem-Estar Social se desenvolveu. Souza (2018) afirma que o Brasil adota, há
anos, várias ferramentas compatíveis com o Estado de Bem-Estar Social, como a seguridade
social e a saúde pública. Cita como exemplo de desenvolvimento e retorno do investimento
o caso dos trabalhadores rurais, que ao receberem suas aposentadorias ajudam a alavancar o
comércio de vários municípios brasileiros.

SAIBA MAIS

Tenha outra visão ao ler o artigo: “É Possível um Estado de Bem-Estar


Social no Brasil?”. Os autores discordam de Souza (2018) e afirmam
que o Brasil não teve e não tem um Estado de Bem-Estar Social.
Disponível em: http://gg.gg/ipwpk.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 101

Marshall também foi considerado um dos autores dos alicerces do Estado de


Bem-Estar Social, por meio de sua ideia a respeito de cidadania. Dessa maneira, somado
a tudo o que já foi exposto, podemos dizer que o Estado de Bem-estar social auxiliou
na instalação de uma democracia com uma natureza mais igualitária. Nesse sentido,
Bobbio (2013) afirma que: “um governo democrático não dá vida necessariamente a um
Estado liberal: ao contrário, o Estado liberal clássico foi posto em crise pelo progressivo
processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio
universal” (BOBBIO, 2013, p. 8).
O sucesso do Estado de Bem-Estar Social e a expansão dos direitos sociais seguiram
até o início da década de 1970, mas o aumento do preço do barril de petróleo, pela Organização
dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), fez com que começasse a sua crise – o declínio
desse modelo de Estado. Esse aumento ocasionou uma recessão nos Estados Unidos e na
Europa, o que abalou toda a economia mundial (CLEMENTE, JULIANO, 2017).
A recessão levou à redução da atividade econômica, propiciando a volta do
desemprego e a inflação em vários países, o que dificultou os Estados de continuarem zelando
pelos direitos adquiridos dos trabalhadores, já que suas receitas tributárias, que eram o que
financiavam os gastos sociais, diminuíram. Dessa forma, passou-se a pensar que o Estado
de Bem-Estar Social não seria economicamente um modelo de Estado viável de ser mantido.
Essa carência de recursos fez surgir tensões e conflitos sociais em relação a esse
modelo de Estado, o que implicaram no deterioramento da solidariedade social surgida
com o Welfare State. Muitas pessoas entendiam que esse sistema era a gênese da crise
econômica e que o Estado gastava demais com pessoas que não teriam como contribuir
com a sociedade, uma vez que estavam fora do mercado de trabalho. Por outro lado, os
trabalhadores pressionavam o Estado para que não perdessem seus direitos sociais, que
haviam sido penosamente conquistados (SOUZA, 2018).
Dessa forma, constata-se que a crise do Estado de Bem-Estar Social está
diretamente relacionada à crise fiscal, devido ao obstáculo de conciliar os gastos públicos
com o progresso da economia capitalista. Diante dessas circunstâncias, aconteceu a
desagregação entre o capital e o trabalho, em que a massa do proletariado e as empresas
capitalistas entraram em confronto no esforço de manter seus próprios interesses.
Na Europa, a eleição de Margareth Thatcher, Primeira-Ministra da Grã-Bretenha,
foi o marco histórico do declínio progressivo do Welfare State nesse país, devido a política
de privatização das empresas públicas, implementada por Thatcher. Essa política foi
seguida por outros países (SOUZA, 2018).
102 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Desse modo, surge o Neoliberalismo, ou seja, com o declínio do Estado do Bem-


Estar Social no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, aparece um novo
modelo de Estado. O Neoliberalismo tem como características: a mínimo intervenção do
Estado; a abertura da economia, sem grandes políticas protecionistas; as privatizações
(venda de empresas públicas, serviços estatais); a flexibilização das leis trabalhistas,
em que o Estado basicamente reduz direitos trabalhistas, altera a legislação para que a
iniciativa privada tenha mais poder de barganha junto aos trabalhadores, medidas que
visam a redução dos gastos públicos.

Assim, os neoliberais criaram um meio termo entre o Estado intervencionista e o


Estado não intervencionista, uma terceira via entre os dois. Visavam uma economia de
mercado, a livre interação entre os indivíduos e o direito de propriedade, porém que o
Estado pudesse promover esse arranjo de forma mais benéfica e funcional do que poderia
ser sozinho, como era no Estado Liberal. Defendem, os neoliberais, que as intervenções
estatais, se bem articuladas, podem corrigir os vícios do livre mercado e torná-lo mais
funcional e eficaz.

Quadro 4.2 – Características do Estado Liberal.

MODELOS DE ESTADO CARACTERÍSTICAS

Também chamado de Estado burguês, foi inspirado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução
Francesa. Baseia-se na ideia de não interferência do Estado e o economista e filósofo escocês Adam Smith (1723 –
Estado Liberal 1790) é seu principal teórico. Para Smith, as atividades econômicas se autorregulariam apenas através das ofertas
e das demandas existentes. Isso ocorre pois existiria uma “mão-invisível” que regula a quantidade e o preço das
mercadorias sem que o Estado precisasse intervir.

Surge como uma reação ao Estado liberal. Com questionamentos acerca da propriedade privada e dos meios de
produção, pois na sua concepção a sociedade estaria dividida em duas classes principais: a burguesia e o proletariado.
Estado Socialista
Portanto, seria necessária uma transformação das condições de produção para que houvesse apropriação da riqueza
por toda a sociedade. Uma das maiores referências do socialismo é o autor alemão Karl Marx.

Também conhecido como Welfare State, foi adotado pelas principais economias liberais do começo do século
XX. Mas, diferente da concepção liberal, o Estado de Bem-Estar Social tencionava a intervenção do Estado no
plano econômico visando à garantia de empregos, o que leva a ser chamado de Estado intervencionista. Previa
Estado de Bem-Estar Social
também, o estímulo da produção e do consumo, para a mediação das relações trabalhistas e para a ampliação
de políticas assistencialistas. Sofreu diversas críticas em relação aos altos gastos públicas e sobre sua real
efetividade em diminuir a pobreza e melhorar a renda da população.

Surge como uma crítica ao Estado de Bem-Estar Social, sua política parte de uma menor intervenção do Estado
na economia e da redução dos gastos públicos. Tem por base ideias como o livre mercado e a livre iniciativa. O
que leva a uma diminuição de investimentos em áreas sociais como a educação, a saúde, a previdência social
Estado Neoliberal
e a habitação, por exemplo, além da flexibilização das leis trabalhistas e privatização de empresas estatais. O
objetivo é a diminuição progressiva da participação do Estado nas questões econômicas, até o estabelecimento
do chamado Estado mínimo.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).


Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 103

4.3 Os Neomarxistas e suas Características


A separação entre o capital e o trabalho confirma que os trabalhadores (proletários)
que vivem apenas da força de seu trabalho terminam numa situação subordinada aos
demais integrantes da sociedade. Além disso, na proporção que aumenta o bem-estar dos
que utilizam os bens por eles vendidos, ou seja, a força de trabalho, que é basicamente
a sua própria vida, eles, os trabalhadores, terminam com seu bem-estar reduzido
proporcionalmente.

Nesse sentido, neomarxistas como o filósofo grego Nicos Poulantzas e o sociólogo


alemão Claus Offe, embasados nas ideias radicais e revolucionárias do pensamento
marxista, criticam o Estado de Bem-Estar Social. Relembrando um pouco, as ideias de
Marx eram de que o trabalhador não é proprietário do seu trabalho, porque, para ele, o
verdadeiro dono da força de trabalho do trabalhador é a classe que domina os meios de
produção.

Portanto, os contratos de trabalho não são realizados entre homens livres e iguais
como afirma o liberalismo e seria dessa forma que os proprietários dos meios de produção
enriquecem cada vez mais, ou seja, a partir da exploração do trabalho dos seus
empregados, o que Marx chama de mais-valia.

GLOSSÁRIO

Mais-valia: consiste na diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o


salário pago ao trabalhador sendo, então, a base de exploração do sistema
capitalista sobre o trabalhador. Pois corresponde a uma parcela do valor
da força de trabalho gasta por um trabalhador na produção e que não é
remunerada pelo empregador.

Poulantzas e Offe não acreditam que o capital e o trabalho pudessem ser combinados
diante do acordo que serviu de suporte ao Welfare State. Para os autores, que tinham uma
visão contemporânea da corrente marxista, o Estado, principalmente nesse modelo de
Bem-Estar Social, apresenta uma submissão econômica da sociedade, tendo em vista que
precisa socorrer-se da taxação para acumular capital, tanto para criar empresas estatais
como para financiar suas políticas públicas (CLEMENTE; JULIANO, 2017).
104 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Logo, as interferências do Estado na economia são consideradas pelos críticos


como constantemente protecionistas dos monopólios de capital e mantenedoras de
condições de suporte à acumulação de capital. Desse modo, com essa estrutura, seria
impossível sustentar o Estado de Bem-Estar Social, porque ele sempre estará em crise
devido ao seu dúplice caráter: o democrático e o classista.

O que há de comum entre o pensamento de Poulantzas e o pensamento de Offe


a respeito das características de Estado capitalista é que consideram o Estado capaz
de atuar de forma autônoma em relação à economia e às classes, mesmo estando em
uma constituição social capitalista. Demonstram que a política não é apenas reflexo
da economia e que, portanto, as alterações na economia não irão, necessariamente, se
refletirem, de modo automático, na política.

Outro ponto análogo entre os autores é quanto às funções do Estado capitalista.


Mesmo partindo de pontos diversos, eles concordam que o Estado, por meio de convenções
de seus interesses de longo prazo, organiza a classe dominante e desorganiza a classe
dominada, mas o Estado faz isso não porque é apoderado pela classe dominante. Para o
filósofo Poulantzas, isso acontece porque o Estado efetiva em suas instituições a luta de
classe. Já para o sociólogo Offe, o Estado faz a fim de que seja capaz de se reproduzir.

Para Poulantzas, que seguia a corrente estruturalista, era preciso, então, abandonar
a ideia de Estado como simples derivação do que se passa na economia ou como mero
dispositivo controlado pela classe economicamente dominante.

Para se entender o funcionamento do Estado era necessário percebê-lo como


responsável pela coesão social e consequentemente pela reprodução das relações de classe.
Nesse sentido, as ações do Estado beneficiaram a classe dominante, porque ele seria o
responsável por reproduzir o sistema social em que essa classe ocupa a posição dominante.
Essas práticas eram desenvolvidas principalmente por meio de leis e de suas políticas, o
que apresentavam um papel significativo na constituição do Estado capitalista.

O Estado organiza e reproduz a hegemonia de classe ao fixar um


campo variável de compromissos entre as classes dominantes e classes
dominadas, ao impor muitas vezes até às classes dominantes certos
sacrifícios materiais a curto prazo com o fim de permitir a reprodução
de sua dominação a longo termo (POULANTZAS, 1980, p. 213).
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 105

Assim, Poulantzas chama o Estado contemporâneo de Estado popular de classe,


tendo em vista sua permeabilidade diante da sociedade e seu grande grau de abertura
para todas as classes sociais, sendo a legitimidade do Estado baseada em dois efeitos
ideológicos: o fator de coesão e o fator de isolamento.

O primeiro como a ideia de Nação, ou seja, Estado nação como um representante


abstrato do todo social. O segundo, baseado na ideia de que os cidadãos são livres e
iguais, o que acaba por esconder a realidade desigual das condições de reprodução do
capital.

Também é importante, para o filósofo Poulantzas, quanto a perspectiva relacional


do Estado e do poder, a hipótese de que as lutas de classe, na qualidade de campo
das relações de poder, detêm a preferência sobre os aparelhos do Estado. Portanto, nas
palavras de Poulantzas, “é a luta de classes que determina as modificações dos aparelhos”
(POULANTZAS, 1980, p. 122). O Estado no capitalismo possui organizações objetivas
específicas e autônomas em relação à economia.

Poulantzas identifica a separação entre Estado e sociedade civil, economia e


política, no Estado capitalista. A autonomia da estrutura do Estado é constituída pela
universalidade do conjunto de valores constitutivos desse Estado, que são: liberdade e
igualdade. Assim, o Estado se apresenta como um “Estado popular de classe”, já que
se baseia nos princípios da igualdade e liberdade das pessoas. Essa universalidade dos
valores faz a interposição entre a base econômica e a superestrutura jurídico-política e
ideológica.

O filósofo considera como elementos basilares para o funcionamento do Estado


e para a mudança da luta de classes do âmbito econômico para a política: a separação
entre trabalho manual e intelectual, a individualização, o direito e a instituição da nação.
Nessa perspectiva, a validação do Estado estaria embasada “no conjunto dos indivíduos
cidadãos formalmente livres e iguais, na soberania popular e na responsabilidade laica
do Estado para com o povo” (POULANTZAS, 1980, p. 42).
106 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

DESTAQUE

Figura 4.2 - Nicos Poulantzas.

Fonte: Domínio Público (2020).

Nicos Poulantzas nasceu em Atenas, em 1936. O pensador grego passou


a maior parte dos anos 1960 e 1970 em Paris. Após um breve período de
estudos sobre Direito na Alemanha, Poulantzas foi para Paris, onde logo
começou a ensinar direito na Sorbonne e envolveu-se com a obra de
marxistas britânicos e italianos – entre eles, o teórico do Partido Comunista
Italiano, Antonio Gramsci.

O autor usa a definição de hegemonia para recobrir as praxes políticas das classes
dominantes no âmbito da disputa política. Nessa concepção de hegemonia há dois sentidos:
um que mostra a constituição dos interesses dessas classes como representativos do
“interesse geral” do povo-nação e o outro mostra o Estado capitalista e as características
próprias da luta de classes, o que possibilita o funcionamento do “bloco no poder”,
formado por várias classes politicamente dominantes. Dentre essas classes, uma terá o
papel hegemônico. Contudo, o Estado deverá manter uma autonomia relativa diante dessa
classe de poder “a fim de assumir seu papel de organizador político do interesse geral da
burguesia, sob a hegemonia de uma dessas frações” (POULANTZAS, 1980, p. 68).

Assim, para Poulantzas, se o Estado se destina a reproduzir as divisões de classes


e se estas estão inscritas em sua “ossatura material”, o Estado não pode ser um bloco
único sem rachaduras internas. Nesse sentido, o autor sustenta que as diferenças de
classe “revestem precisamente a forma de contradições internas entre os diversos ramos
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 107

e aparelhos do estado, e no interior de cada um deles” (POULANTZAS, 1980, p. 70). Por


essa lógica, seria a luta de classe que provocaria as mudanças dos aparelhos de Estado e
não as alterações institucionais, de tal forma que o Estado, ao fixar o interesse político e
em longo prazo do bloco no poder, pode também atender as preferências em curto prazo
das classes dominadas, sem que isso indique a hegemonia dessas classes no Estado.

SAIBA MAIS

Aprofunde as ideias de Poulantzas e veja como elas refletem nos


dias de hoje, lendo o artigo: “A atualidade das ideias de Nicos
Poulantzas no entendimento das Políticas sociais no século XXI”.
Disponível em: http://gg.gg/ipxu8.

Offe, ao analisar o Estado a partir de uma concepção mais abrangente, mais geral
da lógica da ação coletiva, demonstra que a diferença entre as lógicas de ação dos
capitalistas e trabalhadores gera uma desproporção na distribuição de poder na
sociedade, o que vem contribuir para que haja uma assimetria na representação dessas
classes no Estado. Entretanto, para Offe, a natureza de classe do Estado não é facultada
pelo fato da classe dominante ocupar pessoalmente o Estado, mas pelo vínculo estrutural
do Estado em relação à acumulação capitalista.

Desse modo, o autor busca demonstrar como o poder do Estado é limitado em


uma sociedade na qual os capitalistas controlam os meios de produção.

As relações estabelecidas entre Estado e capital, numa sociedade capitalista,


são associadas por Offe (1984) a quatro características da forma institucional do poder
público:

• Ao Estado está vedado, estruturalmente, a organização da produção material


conforme seus critérios políticos;

• O Estado depende dos impostos para a sua manutenção, ou seja, depende da


quantidade de arrecadação privada, que é feita por meio da tributação;

• A acumulação como sendo uma questão fundamental para o Estado em relação


a essa dependência de recursos, pois a longo prazo tem o objetivo de garantir
um desenvolvimento econômico saudável e a promoção do processo geral de
acumulação. Porém, para Offe, esse objetivo é fruto da complementariedade entre
108 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Estado e economia e não da determinação do Estado pelas relações de classe, que


para ele são externas ao Estado;

• O Estado deve buscar a legitimidade por meio de mecanismos de ocultação de seu


caráter de classe para que preserve a acumulação e que se legitime as atividades
dos burocratas.

Em síntese, o autor, além de conceituar o Estado capitalista caracterizado pelas


quatro definições acima, ainda o define como uma forma institucional do poder político
que se relaciona com a vida material. Offe também entende que o Estado não obedece
à lógica das classes sociais e da mesma forma não é formado por elas. Poulantzas
afirma que o Estado é quem define o interesse capitalista a longo prazo. Portanto ambos
divergem da compreensão de Estado neutro.

Segundo Offe, as estruturas do Estado são seletivas. Ou seja, possuem filtros


das demandas que são apresentadas ao Estado, o que também acaba por restringir as
oportunidades da ação política institucional. Essa seletividade é um processo de definição de
políticas públicas, que podem ser positivas, ao incentivar a acumulação por meio de políticas
de desenvolvimento, isenções e intervenções no mercado, ou políticas negativas, por meio
de medidas repressoras, que podem ser ou não violentas, desde que impeçam que demandas
anticapitalistas ingressem na agenda pública das instituições do Estado.

Em relação ao Estado de Bem-Estar Social, Offe (1995) afirma que ele se baseia em
três suportes: o Estado de Direito (componente liberal), a democracia representativa
(exigência de legitimidade) e as políticas públicas que garantem o bem-estar dos
cidadãos na vida civil. Com base nesses elementos, o autor aponta alguns problemas,
como as dificuldades em relação ao sistema econômico e moral quando se tenta combinar
o liberalismo com políticas de bem-estar social.

As dificuldades de natureza econômica demonstram que, mesmo com o


crescimento do setor privado ao gerar recursos para financiar os serviços sociais, a fuga
de capitais acaba por diminuir as perspectivas de emprego ao longo prazo. Junto a essa
fuga soma-se o desenvolvimento tecnológico que elimina a mão de obra. Quanto ao fato
desse sistema prover uma mão de obra qualificada, segurança e assistência de saúde aos
trabalhadores por meio de relações industriais pacíficas, o problema está, segundo Offe,
no crescimento do déficit orçamentário, na excessiva carga tributária e no alto custo da
força de trabalho.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 109

Em relação à área moral do Estado do Bem-Estar Social, o sociólogo aponta a


falta de responsabilidade social, a falta de solidariedade da sociedade, devido ao sistema
hierárquico e centralista. Acaba, portanto, por não incentivar a cooperação e tampouco
procura responsabilizar a sociedade civil pelos seus problemas, o que acaba por refletir
na eficiência econômica desse modelo de Estado e na sua competência para atender às
diversas demandas.
Figura 4.3 - Claus Offe.

Fonte: Estudando Sociologia Jurídica (2020).

Quadro 4.3 – Algumas diferenças entre Poulantzas e Offe.

POULANTZAS OFFE
Estado definido pelas relações de classe. Também é Estado é um sujeito político no sentido de que organiza
um fator de coesão e regulamentação do sistema social a acumulação do capital e é também o local das
no qual funciona. O Estado constitui a unidade política primeiras crises do capitalismo avançado. A política
das classes dominantes. Porém, possui autonomia está essencialmente dentro do Estado. Em regimes
relativa em relação a certos interesses particulares. Sua capitalistas democráticos, os governos promovem a
autonomia se destina a assegurar a organização do melhoria das condições materiais dos trabalhadores,
interesse geral da burguesia. por meio de políticas públicas e regulações do mercado,
dificultando o surgimento de uma verdadeira consciência
da exploração capitalista entre os trabalhadores.
Elementos: caráter verdadeiramente político, Elementos: aparelhos institucionais; organizações
composto por estruturas objetivas específicas, burocráticas; normas e códigos formais e informais
autônomas em relação à estrutura econômica, muito constitutivos e regulamentadores das esferas públicas
embora a autonomia seja relativa; e privadas da sociedade
Distinção entre sociedade civil e Estado; valores
universalizados: autonomia é constituída pelo caráter
de universalidade assumido por um conjunto de
valores centrados na ideia de liberdade e igualdade
formais.

Fonte: Elaborado pela autora (2020).


110 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

Sintetizando, o poder político do Estado capitalista está sujeito a uma dupla


definição: de acordo com a sua forma institucional, ele é determinado pelas regras do
jogo democrático-representativo; pelo seu conteúdo, é conceituado pelos requisitos e
desenvolvimento da acumulação capitalista.

O conceito de Estado capitalista elaborado por Offe se forma com base nas suas
relações de complementaridade e subordinação no tocante à acumulação de capital e
não em relação ao campo de luta de classes. Por sua vez, para Poulantzas, o conceito
de Estado se constitui a partir do campo da luta de classes, mais exatamente, como
expressão material das relações opostas entre as classes.

Para Clemente e Juliano (2017), os neomarxistas obtiveram grande sucesso em


suas análises do Estado contemporâneo. Porém, suas críticas não se preocuparam em
traçar uma solução para essa contradição intrínseca de um mundo ao mesmo tempo
capitalista e democrático.

VÍDEO

Entenda um pouco mais sobre


Mercantilismo, Liberalismo,
Keynesianismo e Neoliberalismo,
no vídeo “Doutrinas Econômicas”.
Disponível em: http://gg.gg/ipxl8.

Concluímos esta unidade destacando que cada um dos modelos de Estado, de


organização política e econômica, retratam o objetivo próprio de cada governo e seus
representantes com a sociedade. Foi possível constatar que, não importa o modelo de
Estado que for, ele sempre interferirá na conformação da sociedade.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 111

SÍNTESE DA UNIDADE
Nesta Unidade vimos os tipos de Estados existentes e suas características, bem
como seus autores. Assim, destacamos os principais pontos dessa Unidade:

• Estado Liberal nasce em oposição ao modelo centralizador e controlador do


Estado Absolutista, que tinha como objetivo acumular riquezas, controlar
as atividades econômicas. Já o Estado Liberal possuía como ideia principal a
liberdade. Ou seja, revela a própria ideia do Estado liberal, a não intervenção do
governo, liberdade negativa – Estado mínimo.
• Liberalismo político: os liberais defendem que o Estado é necessário como meio
de proteção dos direitos naturais, como: a liberdade, a propriedade privada e o
direito à vida, mas que não deve prejudicar e nem representar seus cidadãos.
Entendem que as pessoas têm a liberdade de viverem da forma que desejam,
desde que não interfiram na vida dos outros, é a liberdade de não sofrer coerção
de terceiros ou do próprio governo.
• O Liberalismo econômico, também conhecido pela expressão francesa laissez
faire, que quer dizer: “deixar fazer”, é contra a intervenção do Estado na economia,
defende a propriedade privada, o livre mercado, a livre troca de mercadorias, a
liberdade de escolha de quem vai comprar, a livre iniciativa, o livre-cambismo,
a livre concorrência.
• Estado de Bem-Estar Social predominou a partir dos anos de 1930 até os anos de
1970, em que há a expansão das políticas sociais, a partir da expansão do Estado
em suas funções políticas e econômicas. Há dois modelos de Estado de Bem-
Estar Social reconhecidos por Titmuss (1963): os residuais e os institucionais.
• O sucesso do Estado de Bem-Estar Social e a expansão dos direitos sociais
seguiram até o início da década de 1970, mas o aumento do preço do barril de
petróleo, pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), fez com
que começasse a sua crise – o declínio desse modelo de Estado.
• Poulantzas e Offe não acreditam que o capital e o trabalho pudessem ser
combinados diante do acordo que serviu de suporte ao welfare state.
• Offe define o Estado como uma forma institucional do poder político que se
relaciona com a vida material. Também entende que o Estado não obedece à
lógica das classes sociais e da mesma forma não é formado por elas. Poulantzas
afirma que o Estado é quem define o interesse capitalista no longo prazo, portanto
divergem da compreensão de Estado neutro.
112 CIÊNCIA POLÍTICA | Kellen Lazzari

REFERÊNCIAS
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BENTO, L. V. Governança e governabilidade na reforma do Estado: entre eficiência e


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18 mar. 2020.

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Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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CLEMENTE, A. J.; JULIANO, M. C. Do Estado moderno ao contemporâneo: reflexões


teóricas sobre sua trajetória. Curitiba: InterSaber, 2017. E-book. Disponível em:
http://gg.gg/ipxv6. Acesso em: 19 mar. 2020.

DALLARI, D. A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.

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IN: OFFE, C. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984.

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Desorganizado - transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense,
1995.

POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

REIS, T. Laissez faire: o que é a expressão fundamental do liberalismo. Disponível em: http://
gg.gg/ipxwn. Acesso em: 31.mar.2020.

SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1999.

SOUZA, M. C. Instituições e organização do Estado. Curitiba: InterSaberes, 2018. E-book.

TITMUSS, R. M. Essays on ‘the Welfare State’. Surrey, Unwin Brothers, 1963. Disponível em:
http://gg.gg/ipxx3. Acessado em: 2 mai. 2020.
Os Diferentes Tipos de Estado: do Estado Liberal às Críticas Neomarxistas | UNIDADE 4 113

ANOTAÇÕES
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