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Uma articulação entre o Estado e as “Autoridades Tradicionais”?

Limites na congruência entre o Direito do Estado e os Direitos


“Tradicionais” em Angola

Armando Marques Guedes

Muitos dos Estados africanos contemporâneos têm sido diagnosticados como vítimas de
uma crise de legitimidade.1 Tal concepção não está desligada dos processos quantas vezes
turbulentos de State-building nos quais estão envolvidos: muito daquilo que provoca as crises
contemporâneas está enraizado na notória insegurança com que estes Estados, ainda
recentemente reconfigurados e, na maior parte dos casos, frágeis, mostram quando tentam
novamente adaptar-se – e tentam-no a um ritmo pouco saudavelmente veloz – a um mundo
rapidamente comprometido nas mudanças que acompanham os processos de transformação a
que chamamos globalização. Há, porém, outras razões, mais históricas, para um défice de
legitimidade que podemos facilmente detectar: parte dele está também indubitavelmente
ancorado nas normais dores de crescimento, um estado de coisas banal, ainda que transitório,
agravado por uma vulnerabilidade aos autênticos tours de force económicos da geração de
líderes africanos que sucederam aos carismáticos Founding Fathers do primeiro momento pós-
colonial.
Mais razões merecem ser sublinhadas, várias delas decifráveis num plano puramente
sincrónico. Parece claro, por exemplo, que muitas das actuais crises de legitimidade que com
facilidade detectamos em África devem ser associadas à presença de pluralismos jurídicos e
jurisdicionais hard, pluralismos esses que formam multiplicidades densas que tendem a cruzar-
se com pluralismos sociológicos ou institucionais – o que faz da governação uma actividade
arriscada, para dizer o mínimo, especialmente quando as entidades estatais se vêem
enfraquecidas pelas interacções incessantes de conjunturas externas e internas em mudança 2.
É possível que fenómenos de aparente incongruência não passem disso mesmo, simples
questões de aparência, e, portanto, possam ter uma solução. Tal parece no entanto bastante
improvável: uma boa quantidade dos estudos levados a cabo nas últimas duas décadas – se não
mesmo a maioria deles – alerta-nos para a presença de um número infindo de obstáculos que
travam esforços para alcançar qualquer tipo de compatibilidade (e, portanto, muito menos um
nível bom de integração efectiva) entre Estado e “direito costumeiro” nas comunidades políticas
africanas contemporâneas. O mais leve escrutínio de um século de modalidades diferentes de

1
Estou grato pelas leituras, discussões e comentários formulados por Rui Pinto Duarte, Stephen Ellis,
Albert Farre, David Henley Jan Michiel Otto, Ravi Afonso Pereira, e Maria Johanna Schouten. Largos
segmentos do presente texto não teriam vindo à luz sem o apoio de Jorge Azevedo Correia, Francisco
Corboz e João Pedro Pimenta, a quem agradeço a imediata disponibilidade. A responsabilidade por este
ensaio permanece inteiramente minha. O texto em inglês da apresentação em que se baseia o presente
trabalho – cujos conteúdos, embora formulados em termos diferentes, não diferem muito dos aqui
expostos – foi publicada em Armando Marques Guedes (2007).
2
É certo que amálgamas de pluralismos variados podem ser encontradas noutras instâncias; seria, por
conseguinte, injustificado tratá-las como um fenómeno especificamente africano. Em África, contudo,
estas amálgamas ganham expressão em múltiplos domínios; têm uma dimensão institucional; e, segundo
as experiências vividas, quaisquer formatos de harmonização normativa que possamos imaginar parecem
ser tudo menos possíveis. Numa perspectiva comparativa em vol d’oiseau e de largo espectro, o
pluralismo na África sub-Sahariana, não só é quantitativamente, como é também, em certo sentido,
qualitativamente mais intenso que em quase todos os outros locais. Para uma discussão mais desenvolvida
destes pontos e dúvidas que lhes são associadas acerca da possibilidade de formular generalizações sobre
“África” ver a minha monografia Armando Marques Guedes (2004), em especial a primeira secção.

1
experiências e práticas coloniais tende a corroborar a impressão de que se existe uma solução,
ela, de facto, nunca foi encontrada. Procurarei, no que segue, defender que há, efectivamente,
boas e sólidas razões para dúvidas mais robustas, quanto a eventuais articulações
“democráticas” entre o Direito estadual e os “tradicionais”, do que aquelas que avulsamente têm
sido fornecidas: dúvidas essas decorrentes de meras questões de congruência.
Explorarei alguns casos angolanos recentes que escolhi pela sua relevância, tentando
esboçar algumas das questões principais suscitadas pelo que Jeffrey Herbst celebremente
caracterizou como “the complicated dance between States and Chiefs”3. Não é minha intenção,
de forma alguma, esgotar o tema; quero apenas esclarecer aquilo que considero recantos
insuficientemente iluminados. Fazê-lo, permitir-me-á – espero-o – reconduzir assuntos a
molduras mais amplas e equacionar eventuais soluções. Mesmo que finalidades normativas
sejam abandonadas, esta estratégia oferece-nos uma vantagem óbvia. Na pior das hipóteses, o
esforço cartográfico que proponho levar a cabo possibilita a delimitação das possíveis formas de
congruência e harmonização entre Estado e sistemas normativos legais e políticos “tradicionais”
em Angola. Ao longo do meu argumento, procurarei manter a postura do que considero ser uma
saudável equidistância relativamente às várias escolhas que confrontam os líderes angolanos,
não indo muito além da delineação daquilo a que podemos chamar uma topografia geral de
matérias4. Mais do que a maioria, se não do que todos os países africanos, Angola 5 sofreu
profundamente com a Guerra Fria e as convulsões civis que implicou. É também densamente
plural, em todos os sentidos do termo, e este pluralismo tem sido muito afectado pela sua
trajectória nos últimos cerca de cento e cinquenta anos. Como iremos ver, em casos como os
que temos em mão as duas tendências frequentemente convergem, e por via de regra reforçam-
se mutuamente. Em termos políticos e jurídicos Angola é, de facto, complexa. Não será
excessivo afirmar que as três palavras-chave que a podem delimitar enquanto objecto são
pluralidade, disseminação e volatilidade 6. Grupos “autóctones” exibem não só diferenças etno-
linguísticas marcantes, como também diversos níveis de integração política 7.
3
Jeffrey Herbst (2000: 174). Uma coreografia que bem merece ser compreendida. Como o próprio Herbst
escreveu numa página antes de usar a belíssima imagem, “one of the most contentious issues in the
politics of the continent has been the relationship between central authorities and leaders”. A bibliografia
que trata estas questões é extensa.
4
O caminho oposto, escolhido por Ineke van Kessel e Barbara Ooman (1999) e por eles explorado num
paper sobre a estrutura e evolução de chefias tradicionais na África do Sul moderna, parece mais
preocupado com as árvores que com a floresta, com todas as vantagens e desvantagens que tal estratégia
implica. Não creio que mais conhecimento acerca dos factos mudasse a essência desta análise, ainda que
lhe conferisse, certamente, uma maior complexidade, uma base empírica mais ampla e, portanto, uma
melhor resolução. Kessel e Ooman dedicaram-se a estabelecer história e genealogia; tento, ao invés,
identificar incompatibilidades inultrapassáveis.
5
Angola é o exemplo que tratarei neste breve estudo; acredito, contudo, que vários outros casos poderiam
ilustrar o fenómeno. Uma maior resolução de imagens, para usar uma metáfora, revela claramente razões
de fundo para a minha convicção: não é certamente difícil vislumbrar vários avanços e retrocessos na
operação das grelhas sistémicas que, ao longo dos anos, têm exercido fortes pressões nos árduos e mal
sucedidos processos de reconhecimento de fontes de Direito locais em África. Um dos mais icónicos
destes fluxos e refluxos foi certamente aquele a que os avanços e retrocessos nos domínios de “jurisdição
subsidiária” dão corpo, ao ligar Estados africanos embrionários com as chamadas “autoridades
tradicionais”. De facto, delineiam, por um lado, uma das arenas nas quais pressões externas formais e
informais (ambas provindas do sistema de Estados internacional e das comunidades doadoras e de ONGs)
se fazem mais directamente sentir. O âmbito formalmente atribuído a “autoridades tradicionais” parece-
me, por outro lado, sujeito a uma das flutuações mais significativas e interessantes de entre todas as que
podemos analisar – e essa centralidade advém não só da abundância de implicações jurídicas e políticas
que estes movimentos podem gerar, mas também do facto de que estas formas emblemáticas de
“devolução” redundam num dos ingredientes mais activos no plano da disseminação efectiva de uma
consciência política constitutiva das complexidades do pluralismo legal e institucional patente em África.
6
Para uma discussão mais detalhada da aplicabilidade destas ideias-chave a realidades contemporâneas
angolanas, ver o meu Armando Marques Guedes (2005), sobretudo a sua terceira parte.
7
Um breve esboço. No enclave nortenho de Cabinda, por exemplo, há vários “reinos” matrilineares com
hierarquias sociais íngremes. Em todo o caso, este tende a ser o padrão em quase todo o Norte de Angola,
mesmo que nas províncias do Nordeste, “nativos” mistos Lunda e Tschokwe que chegaram do Leste

2
O ponto que quero sublinhar – o arco narrativo deste ensaio, se assim se quiser – é
simples e linear. Procurarei defender que o Estado e “leis tradicionais” se tornam mais
facilmente congruentes a longo do que a curto prazo, especialmente em casos, como o de
Angola, nos quais ao pluralismo legal é somada uma camada de pluralismo institucional ou
sociológico densos, gerando uma espécie de versão em alta intensidade de pluralismo que tem
de ser cuidadosamente cartografada se a quisermos politicamente viável. O que quero,
sobretudo, enfatizar é que, em última instância, parece inevitável que o arranjo geral irá ter de
ser, em última análise, um de subalternidade diacrónica das “tradições”, na senda do que foi
defendido por entidades políticas e administrativas oficiais durante muito tempo, apesar de o
terem feito por razões de estato-centrismo e não por razões lógico-formais implícitas; com isto
quero dizer que o ascendente hierárquico do Direito estatal tem de ser claramente afirmado e
que os limites devem ser desenhados desde o início. Outros modelos, muito diferentes, são,
decerto, nocionalmente possíveis, envolvendo, por exemplo, acomodações normativas não-
hierárquicas, sobretudo se em múltiplas camadas. É plausível que muitos destes modelos
funcionem bem, nomeadamente na Europa e Canadá; não funcionarão, contudo, de maneira
aceitável em Angola, dadas as incompatibilidades radicais encontradas.
Usando case-stories como exemplos, procurarei demonstrar as razões pelas quais creio
ser este o caso. Apesar de não me parecer de descontar a possibilidade de processos laboriosos
de “acomodação política” poderem mitigar tensões parcial e temporariamente, estou convencido
que uma harmonização efectiva e estável apenas poderá derivar de uma consciência lúcida
daquilo que está efectivamente em causa, associada uma gestão ponderada de implicações
politicas e jurídicas de quaisquer escolhas feitas no que toca aos mecanismos de articulação
prática – e depois (e só depois) da cautelosa gestão de uma convergência progressiva de práticas
costumeiras com práticas estatais. Boa ou má, uma orientação geral deste tipo parece-me ser
inevitável, quanto mais não seja pela via de considerações “democráticas clássicas”. Em termos
puramente formais, uma convergência na direcção oposta – isto é, uma que leve o Estado
angolano a uma “nativização” – lograria a mesma compatibilidade; mas o resultado não seria
um Estado moderno, e muito provavelmente nem sequer teria, num qualquer sentido
reconhecível, um produto identificável como um Estado. Neste sentido, é essencial aquilo a que
chamamos – com alguma falta de clareza acerca do que exactamente queremos dizer – State-
building, um termo demasiadas vezes utilizado com uma notória imprecisão 8.

mostrem padrões sócio-políticos substancialmente diferentes. No Noroeste vivem grupos Bakongo que
durante muitos séculos se associaram dentro do “Reino Kongo”. Todos estes grupos vivem
tradicionalmente da agricultura. Numa linha que corre a Leste da capital, Luanda, e, abaixo, pela cidade
costeira de Benguela, vivem os Kimbundu, agricultores cum comerciantes, que incluem alguns subgrupos
dedicados a economias piscatórias mistas. A faixa central do imenso território angolano, composta
maioritariamente pelo Planalto Central, é habitada por agricultores Mbundu, que tendem a organizar-se
localmente em clãs e linhagens num modo “clássico” centro-africano. As suas franjas cruzam-se no Sul
com falantes de Ovimbundu, essencialmente pastores semi-nómadas, divididos em numerosas entidades
com fronteiras ou limites, tanto socialmente como territorialmente fluidos. O Sul de Angola tem
tradicionalmente sido habitado por Hotentotes não-Bantu, alguns dos quais pastores e alguns
Bosquímanos caçadores, recoletores e comerciantes, com níveis fracos de integração política para além da
dos acampamentos. A urbanização em Angola é avassaladora e a guerra levou a maciças e rápidas vagas
de êxodo rural. Uma população considerável de mestiços vive nas cidades principais e nalgumas áreas
rurais também. Algumas centenas de milhares de portugueses (alguns deles, agricultores, muitos homens
de negócios, e um vasto número de staff de suporte técnico) ainda vivem em Angola. cubanos e soviéticos
saíram de Angola mas, actualmente, muitos chineses começaram a chegar e vários estão, aparentemente,
a instalar-se no Planalto Central, o lugar histórico Mbundu da UNITA – apesar de na maior parte dos
anos 70 e 80, o extremo da província Sudeste de Kuando-Kubango, onde se encontra a mítica Jamba,
tenha servido como seu quartel-general. Com a indizível brutalidade da guerra e as mudanças profundas
que esta induziu, rápidos processos de hibridização social e cultural diluíram fronteiras que, de qualquer
forma, nunca foram muito nítidas.
8
Não tento aqui definir o que é State-building, dado que tal excederia, obviamente, o âmbito limitado
deste ensaio. Para garantir que não sou mal compreendido, reformularei, por conseguinte, o ponto que
enunciei no parágrafo anterior a partir de um ângulo ligeiramente diferente: o que estou a sugerir é que é
possível interpretar a acomodação como um mecanismo, ou processo, constitutivo e construtivista. Para

3
O presente ensaio divide-se em três secções principais. Forneço, primeiro, informação
que penso ser essencial para o esforço de perspectivar algum do pano sociopolítico de fundo que
faço questão de tomar em linha de conta; não pretendo ir além de um muito breve e leve esboço
da progressão conjunta da articulação entre estruturas político-administrativas centrais e locais
em Angola e a mudança nos papéis atribuídos às comunidades politicas locais e às suas
lideranças. Aliterando Herbst, chamo a esta progressão conjunta uma forma de “dança
sincronizada”. A ideia que quero defender é a de que cada uma destas duas séries só pode ser
plenamente compreendida se e quando posta no contexto com a outra. Qualquer alternativa a
isso releva do mais puro essencialismo; quero, designadamente, mostrar que a prática corrente
de acomodação de “autoridades tradicionais” é melhor decifrada como uma forma conveniente
de gesticulação politica, uma postura arriscada e populista que envolve perigos muito reais,
infelizmente nem sempre reconhecidos em Angola.
Numa segunda secção, trato quatro “histórias de caso” que conferirem substância ao
ponto anterior. Interessar-me-ei, especialmente, pelo traçar de limites. Três dos exemplos
incidem sobre o Planalto Central, a mais densamente populada área do País, onde o Huambo, a
segunda cidade angolana, está localizada, e onde a maior parte dos locais são falantes de
Mbundu – a base clássica de recrutamento para a UNITA; não é surpreendente que esta área
seja, em muitos sentidos, problemática no que toca aos assuntos mencionados. O meu outro
exemplo, o quarto e último, é tirado de Cuando-Cubango, a maior das províncias angolanas,
aquela que ocupa toda a faixa do Sudeste angolano.
A terceira e derradeira secção é mais interpretativa, e daí resulta que seja menos
verificável e, portanto, mais lassa. Nessa última secção abordo o que, em última análise, não é
mais que um conjunto de projecções especulativas, apesar de constituirem – ou assim quero
acreditar – um exercício do que os anglo-saxónicos apelidam de educated guesswork.

1.

Começo por algumas generalidades e depois, progressivamente, circunscrevo um


âmbito. Antes do mais, todavia, algum pano de fundo. Decorridos dois ou três séculos durante
os quais influências europeias foram escassas, muitas vezes rudes, bastante localizadas, por via
de regra cirúrgicas e variáveis, de 1884-1885 em diante (ou seja, após a Conferencia de Berlim)
toda a África se sujeitou ao domínio colonial europeu; a única excepção foi, evidentemente, a
Libéria9 que James Monroe criou em 1822. É interessante notar que já nessa altura vários
sistemas jurídico-legais operavam simultaneamente em virtualmente todos os territórios e
unidades populacionais distribuídos no Continente. No Magreb, bem como na África sub-
Sahariana, o pluralismo legal, como agora o chamamos, era a regra.

UNIDADE E DIVERSIDADE NOS FORMATOS POLÍTICO-ADMINISTRATIVOS

A atitude formal das recém-chegadas administrações coloniais – que, quer o quisessem


quer não, tinham de se confrontar com esse facto - não foi, de forma alguma, unitária, ou, em

tal é, em última análise, suficiente assumir uma visão das coisas sociais menos “clássica” e talvez mais
“comunitarista”, na senda, por exemplo, de Charles Taylor, Michael Walzer, Jeffrey Alexander ou Will
Kymlicka, para mencionar apenas alguns nomes. Não ficaria, certamente, surpreendido se tal ocorresse no
terreno, visto que a maior parte dos actores políticos angolanos assume uma perspectiva comunitarista.
Ainda assim, defenderei que soluções comunitaristas só funcionam realmente se a supremacia estatal for
garantida. Os resultados, mesmo neste caso, poderão ser inferiores àquilo que é por norma considerado
como constituindo um Estado, e o seu funcionamento será sempre certamente menos que democrático.
9
A Etiópia constituiu um caso diferente, um caso de colonização tardia. Talvez protegida pelo mito do
governante cristão Prestes João, a Etiópia foi poupada da conquista europeia até à investida de Benito
Mussolini, que se seguiu às fracassadas tentativas italianas de invasão militar (com 10.000 soldados) em
1896, às quais o Imperador Menelik conseguiu resistir.

4
algum sentido relevante, uniforme. É certo que, tal como Edward Keene escreveu há cinco anos
atrás10, a postura jurídica genérica assumida pelos Estados europeus face a não-europeus
manteve-se sempre bastante homogénea e evoluiu em contraste com a que ostentaram nas
relações que tinham entre si: enquanto no último caso era a “tolerância” que predominava, no
caso das interacções com África a regra foi a de sobre forçar sobre os autóctones –
frequentemente de forma vigorosa – a “civilização”. Mas a uniformidade dessa postura escondia
muitos traços heterogéneos: os meandros desta propensão colonial europeia (e os vectores
segundo os quais normalmente são interpretados) foram variados e muito sinuosos.
Não vale a pena entrar em muito pormenor sobre tal sinuosidade e variedade. É
suficiente mencionar que René David, o famoso juscomparatista, provavelmente teve razão
quando contrastou “l’attitude jurídico-coloniale” dos britânicos com a dos “latinos”, referindo-
se com este termo aos franceses, portugueses, espanhóis e belgas 11. Apesar de demasiado
genérico– é escusado insistir que distinções mais finas deveriam ser nele apuradas – o contraste
continua a ser útil. Segundo R. David, o último “grupo” tendeu a preferir manter a sua
administração pública sob a égide da figura de “colónias” e, mesmo quando defendiam ideais
liberais – o que fizeram frequentemente –, os Estados europeus adoptaram politicas de
assimilação baseadas no duplo implícito de que os Homens tinham valor igual enquanto,
curiosamente, a “civilização europeia” era considerada como sendo claramente superior aos
“costumes africanos”.
Os britânicos, pelo contrário, favoreceram, por norma, a utilização de figuras
administrativas como as dos “protectorados”; e, portanto, tenderam a preferir políticas de
“domínio indirecto” [traduzo indirect rule]. Como é bem conhecido, tanto foi robustamente
teorizado logo no princípio do século XIX por Edmund Burke, em relação à Índia,
essencialmente em termos de um marcado realismo político, e implicou a noção – pelo menos
como um princípio geral – de que “nativos” podiam e, de facto, deviam permanecer largamente
sob auto-governo, sendo preferível que se administrassem a si próprios de acordo com os seus
próprios “costumes” e que seguissem as “formas tradicionais” que decidissem escolher. Tal não
deixava, contudo, de implicar uma submissão “imperial”: deviam, evidentemente, fazê-lo sob
supervisão e controlo últimos por parte da Grã-Bretanha12.
Na prática, porém, as semelhanças efectivas patentes na “administração” concreta
levada a cabo por “latinos” e “britânicos” superavam largamente as diferenças patentes entre
elas: distinções entre as implicações concretas da “Common Law” e as modelizações “romano-
germânicas” idealizadas, revelaram-se como pouco mais do que meras disparidades estilísticas
nestes e noutros domínios. Um simples “thought-experiment” clarifica-o ad absurdum: seria
impensável imaginar que as populações subordinadas ao domínio colonial britânico pudessem
fazer valer de alguma forma relevante os seus costumes contra leis imperiais, tal como seria
ingénuo acreditar numa hegemonia total e não-questionada do Direito Colonial “latino” sobre
populações para as quais este era quase totalmente estranho.
Para desenvencilhar este contraste, será útil olhar para as realidades político-
administrativas empíricas de um ângulo histórico-legal. O “domínio indirecto” constituiu,
evidentemente, uma estratégia de controlo essencialmente baseada em teorizações, não
10
Edward Keene (2002), sobretudo pp.60-120.
11
René David (1984): 570-571.
12
Sejam quais forem os méritos da dicotomia de R. David, quero enfatizar um ponto óbvio – óbvio, em
todo o caso, se pensarmos nele por um segundo – de que britânicos e “latinos” parecem ter transposto, de
forma espontânea e muito directamente, às relações coloniais em que estavam envolvidos, simples
variantes das concepções descentralistas e centralistas e modelos que aplicaram às suas próprias
comunidades locais. Tal foi porém, na prática, pouco mais do que uma declaração de intenções.; é
fascinante notar que a distinção do comparatista francês – no que toca à sua referência às relações
empíricas evidentes entre europeus e africanos, ou governantes e governados, se se quiser – redundava em
pouco mais do que numa fórmula. O que, como veremos, teve consequências inevitáveis nos mecanismos
e estratégias para a consolidação do estatuto político, e até cosmológico, daquelas pessoas que mais tarde
foram chamadas de “chefes locais”. P. Geschiere (1993), designadamente, compara neste último plano os
exemplos francês e britânico. Seria um exercício fascinante levar a cabo um estudo semelhante sobre os
casos coloniais portugueses (Angola e Moçambique, designadamente), que poderiam então ser
comparados a equivalentes laterais pós-coloniais.

5
realizadas, de Henry Sumner Maine e, no que toca ao exercício actual da administração
colonial, formatadas por Lord Lugard13 – muito graças às dificuldades que este último
enfrentou ao se ver na contingência de ter de governar dez milhões de norte-nigerianos com um
total irrisório de nove administradores ao seu lado. Independentemente de considerações
políticas pragmáticas, a solução estratégica que Lugard gizou assentou, sobretudo, na
convicção, liberal e muito romantizada, de Maine: a ideia segundo a qual o pluralismo jurídico
devia ser cuidadosamente respeitado, uma vez que as sociedades nativas tradicionais eram tidas
como estáveis, internamente coerentes, mas ao mesmo tempo frágeis e, portanto, altamente
susceptíveis de serem irreversivelmente destruídas caso o Estado colonial britânico nelas
interferisse directamente. Na prática, a versão britânica de domínio indirecto começou na Índia
e, no fim do século XIX, foi transplantada para a África.
As doutrinas coloniais portuguesas (uso a expressão por comodidade, já que
evidentemente estas variaram muito, ou melhor talvez, oscilaram, ao longo dos séculos XIX e
XX) assentaram em premissas e ideias bastante diferentes destas. Nas colónias portuguesas – e
nomeadamente em Angola – os africanos podiam, se assim o desejassem, abandonar os seus
universos e afiliações normativas, desde que o fizessem definitivamente e alinhassem com o
sistema político e jurídico do governo colonial 14. O que era visto como um dos meios de
realização da “missão civilizadora” portuguesa: acreditava-se (e os Códigos coloniais
reflectiam-no explicitamente) que de forma lenta, mas sólida, os africanos escolheriam
ultrapassar a fronteira civilizacional que os separava dos portugueses “originários” – a
progressiva eliminação de usos e costumes tradicionais era, de facto, tida como uma
consequência natural e mecânica dos nossos esforços coloniais. Numa auto-representação que
tinha vindo para ficar, a colonização portuguesa assumiu desde cedo vestes messiânico-
evolucionistas não completamente conformes à “mission civilisatrice” francesa, ao “white
man’s burden” britânico, ou ao “manifest destiny” dos norte-americanos.

A INDIRECT RULE E A “DANÇA SINCRONIZADA” ENTRE ESTADOS E ‘CHEFES’

De um ponto de vista empírico, as questões políticas e administrativas mais


problemáticas que levaram a tal convergência objectiva, só começaram a ser realmente
suscitados após a Conferencia de Berlim de 1884-1885. O condicionamento internacional – para
o propósito de reconhecimento de direitos de colonização – para uma ocupação territorial
efectiva e para um controlo eficaz pelo aspirante a colonizador era decisivo. Em África (e
África era, de facto, o foco principal da Conferência), isto queria dizer que se tinha tornado útil
e interessante15 equacionar, uns com os outros, os assuntos que relevantes à criação e
manutenção de laços de independência entre Estados coloniais embrionários e chefias locais,
fossem elas “reinos” ou unidades de natureza tribal.
O que em resultado se tornou tão necessário quão activamente procurado foi a forma
como se poderia torná-los viáveis. Num estilo verdadeiramente modernista, tal significava
enveredar em trabalhos preparatórios de investigação. Como resultado, começando no fim do
13
Para uma discussão deste ponto e de outros com ele relacionados, será útil ver o “clássico” estudo de T.
W. Bennett (1981) sobre o Zimbabwe, Martin Chanock (1985) e o seu trabalho intemporal sobre o
Malawi e Zâmbia, L. Benton (2002), e o pequeno texto de por Cristina Nogueira da Silva (2005) sobre a
especificidade da doutrina colonial portuguesa. Há estudos numerosos e relativamente acessíveis sobre
Frederick (Lord) Lugard.
14
Cristina Nogueira da Silva (2005) op cit. : 918-919.
15
Esta “primeira vaga” de estudos foi levada a cabo (sobretudo em África) por académicos britânicos e
franceses. Investigadores como Isaac Shapiro e E.E. Evans-Pritchard foram nela preponderantes.
Provavelmente podemos ver na colectânea de artigos intitulada African Political Systems, de Meyer
Fortes e E. E. Evans-Pritchard, publicada em 1940 – baseada em trabalhos de pesquisa levados a cabo por
vários investigadores na década de 30 – o pico deste período inicial. Seguindo um padrão parcialmente
davidiano, numerosos investigadores franceses e portugueses tenderam a preocupar-se, no decurso deste
período, com a produção de manuais jurídicos sobre administração colonial, em detrimento de um foco na
organização local. Os primeiros grandes manuais jurídico-administrativos portugueses, nomeadamente –
muito influentes no que toca à administração colonial – foram produzidos neste intervalo.

6
século XIX, e sobretudo do princípio do século XX em diante, começaram a ganhar forma
estudos sobre sistemas jurídicos e políticos locais bem como monografias sobre formas de
liderança africanas, em trabalhos frequentemente produzidos por uma nova geração de cientistas
sociais, os antropólogos. Estes primeiros passos continuaram até ao século passado. A evolução
dos horizontes de problematização gizados, ainda que conjunturalmente bem sustentada, não
foi, de forma alguma, uniforme: como veremos, mudanças no próprio xadrez em que eles se
tiveram de inscrever: inevitavelmente levaram a algumas alterações radicais na sua natureza,
âmbito e temas. Ainda assim, uma espécie de dança analítica sincronizada tinha começado. A
“primeira geração” da coreografia escolhida deu-se em duas etapas, duas fases que, dada a
fluidez dos seus limites, me parece devemos conceber como “vagas”.
Se a Grande Guerra de 1914-1918 chegou a África – e muito obviamente chegou – a
Segunda Guerra Mundial teve um impacto profundo no continente. Os Estados coloniais foram
abalados. Os africanos nativos começaram a vir para a Europa para obter instrução. A nova
ordem internacional desenhada pelos vencedores foi abertamente favorável aos novos ventos da
auto-determinação que, como consequência, se faziam sentir. Talvez não surpreendentemente,
no período imediatamente posterior a 1945, em conjunturas marcadas por tentativas de
reafirmação de um “normal” exercício de poder, um primeiro pico foi alcançado no que toca a
estudos jurídicos e políticos sobre chefias africanas e comunidades politicas associadas 16.
Para Angola este foi o período germinal em que (com um atraso comparativo de pelo
menos uma geração relativamente a outras colónias) se lançaram os primeiros estudos
“etnográficos” de grupos autóctones, escritos por académicos e missionários: os nomes que me
vêm à cabeça são os de Cordeiro da Matta e Héli Chatelain, seguidos de Óscar Ribas, Carlos
Estermann, José Martins Vaz e José Redinha.
À imagem do que se verificou por toda a África, também em Angola a formatação de
estudos produzidos não variou muito, enquanto esta “segunda vaga” de análises durou; o
modelo subjacente do seu design, por assim dizer, torna-se, por tanto, fácil de esboçar. Nalguns
casos, líderes locais, bem como o tipo de liderança pelo qual enveredaram, tenderam a ser vistos
como incorporando o que eram consideradas formas políticas e jurídicas “costumeiras” sui
generis. As monografias produzidas propenderam a limitar-se a “grupos” africanos, grupos que,
para o efeito, eram tratados como entidades “tribais” ou “culturais” virtualmente autónomas 17.
Alguns desses trabalhos visavam muito explicitamente uma delineação politica e administrativa
que pudesse vir a ser útil para as futuras administrações coloniais. A maioria não o era, contudo:
a grande massa dos estudos foi antes desenvolvida como investigação básica, como lhe
chamaríamos hoje em dia.

16
Estudos detalhados acerca desta “segunda vaga” de trabalhos de investigação (mas incluindo-se ainda
na “primeira vaga” segundo a minha taxonomia) infelizmente são escassos e seriam benvindos. Este foi,
de facto, um período fascinante, como o mostra claramente a investigação levada a cabo nas colónias
lateralmente equivalentes do Sudeste asiático (em particular as que eram ocupadas pelo Japão, que
abertamente fomentaram a emergência de movimentos nacionalistas lá). Foram pontos altos Max
Gluckman (1955), o clássico trabalho sobre o sistema jurídico de Barotse (Lozi) do Norte da Rodésia,
Paul Bohannan (1957) sobre o sistema judicial dual dos Tiv nigerianos, e a colecção de A. R. Radcliffe-
Brown e Darryl Forde (1950) sobre African Systems of Kinship an Marriage, uma espécie de volume par
do de Meyer Fortes e E.E. Evans-Pritchard. Foi o tom político – frequentemente associado a um arriére
gout pragmático – dos trabalhos publicados durante esta “segunda vaga” aquilo que possivelmente deu
azo ás imputações radicais de uma cumplicidade entre “conhecimento” antropológico e “poder” colonial
em Talal Asad (1975) e George Stocking Jr. (1991). Uma leitura como essa constitui porém, obviamente,
de um exagero. Para uma discussão crítica destas posições, ver Armando Marques Guedes (2003),
sobretudo a nota 15.
17
É interessante e significante notar que estas eram encaradas como tipos de organização pensadas, de
uma forma durkheimiana, como reflexos de estruturais e arranjos locais de parentesco, em “sociedades”
cujas “solidariedades” e coesão eram tidas como inseparáveis de laços de consanguinidade e afinidade; ou
então, numa veia mais weberiana, enquanto manifestações de “tipos-ideais” de “poder” e expressões do
que em última instância seriam estádios de formas de “liderança carismática”. Como iremos ver, o
modelo weberiano iria prevalecer nos últimos anos, quando numerosos “neo-chefes”, como os apelido –
com pouca “legitimidade consanguínea” – começaram a multiplicar-se em África.

7
Esta fase inicial não perdurou, dado que os próprios cenários africanos mudaram. Em
sincronização com a catadupa generalizada de independências que surgiram nos anos 60 e (no
caso português) 70, levando à libertação de África e da ascensão de uma parcela africana do
sistema de Estados internacional, a primeira grande “geração” de estudos teve um final abrupto.
O número de projectos dedicados a objectos de estudo jurídicos “tradicionais” muito
rapidamente caiu e, a passadas rápidas, “o Estado tornou-se no centro de todas as atenções
analíticas”18. Esforços entusiásticos (e, frequentemente, um forte compromisso político e
programático) de investigadores envolvidos na ajuda dos processos íntimos de State e nation-
building – duas expressões que na altura ainda não são usadas – exigiram-no. Uma “segunda
geração” analítica de trabalhos emergiu como resultado. Os horizontes tinham como que sido
redesenhados: seguiu-se a convicção forte de que Estados africanos recentemente independentes
eram agentes reais de coisas tão distintas quanto “desenvolvimento”, “tradição” e
“modernização”.
Em retrospectiva, parece claro que tenha ocorrido uma espécie de convergência de
agendas. Formas políticas locais perderam a atracção que tinham. Instalaram-se novos tipos de
poder. No entanto, os estudos etnográficos levados a cabo em moldes “clássicos” não
desapareceram: viram-se ultrapassados. Talvez assumindo uma importância superior, a
dissolução de impérios coloniais pareceu ditar o fim da disjunção entre “formas políticas
indígenas” e o poder estatal que sobre elas agia. A retórica dos líderes africanos nacionalistas,
veementemente modernizadora, pesou na reificação (justificada como politicamente correcta)
de convergências putativas nas agendas políticas de Estados e “chefes”.
Pelo menos, assim o pareceu. Na realidade, no entanto, as divergências tinham sido
acentuadas: as minudências da mudança mostravam, para observadores mais atentos, que a
relação entre Estados e “chefes” se estava a tornar cada vez mais problemática. Não é necessária
uma grande contextualização histórica e sociológica para evidenciar a raison d’être última para
tanto. Em África, para a maioria de jovens nacionalistas “ilustrados” (e frequentemente
educados no Ocidente) que visavam a emancipação – como regra, eram pessoas associadas a
grupos em ascensão social e ligados a missões religiosas ou a elites urbanas dos “velhos
tempos” – as atitudes e aspirações rotineiras de muitas das “autoridades locais” tendiam a ser
incompatíveis com as inovações revolucionárias frequentemente sonhadas com idealismo
voluntarista19. Em resultado, emergiu uma forte desconfiança, relativamente imune às opções
político-ideológicas do Estado: como E.A. Van Nieuwaal escreveu, “most head of state,
revolutionary or reactionary, were suspicious of the chief”20.
Em muitos casos, a incongruência ao nível dos princípios da ordenação para a
comunidade política viu-se amplificada pela publicitação da atitude ambivalente que muitas
“autoridades locais” tinham assumido durante o período colonial e, em particular, pela
ambiguidade das suas lealdades, posturas, e “enfeudamentos”, durante os processos – quantas
vezes tão turbulentos – que levaram às independências africanas. Do ponto de vista dos “chefes
tradicionais”, o cenário não teve contornos mais pacíficos. Em muitos casos os chefes locais –
sem realmente compreender os métodos ou motivos e o impulso dos jovens gerações afro-
nacionalistas – hesitaram e, consequentemente, recusaram (quando não se lhes opuseram
abertamente) as agendas revolucionárias das elites urbanas instruídas apostadas num controlo
rápido e decisivo do poder do Estado. Em muitos casos, a tensão emergente descambou numa
situação geral de desconfiança mútua. Na maior parte das vezes, contudo, a situação ainda foi
muito mais “esquizofrénica”, para usar a tão gráfica caracterização de Jeffrey Herbst 21.
Enquanto jovens líderes nacionalistas tendiam a ver nos chefes locais e estruturas políticas
“espontâneas” competidores perigosos para as suas agendas de engenharia social, a verdade é
que precisavam deles: enquanto, por um lado, aspiravam a substitui-los nos interiores rurais,
pelo outro, era precisamente essa extensão de poder para áreas remotas não-urbanas que eles
18
Eduardo Costa Dias (2001): 29 num texto fascinante em que alude aos “notáveis” e “chefes” da Guiné-
Bissau, no contexto da região de África.
19
Dois livros são essenciais para uma compreensão deste período em África. O de Jeffrey Herbst (op. cit.)
e também o de Christopher Clapham (1996), neste último ver especialmente entre as pp. 31 e 40.
20
E.A. Van Nieuwaal (1987): 20-21.
21
Jeffrey Herbst, op. cit.: 176.

8
procuravam, e que precisavam para os seus chefes – não só como autênticas condutas de poder,
mas também por razões ligadas à sua legitimidade local.
Angola é aqui, mais uma vez, um bom exemplo. Tal como fora o caso, uma geração
antes, um pouco por toda a África sub-Sahariana, o jovem Estado soberano angolano aceitou
desde cedo reconhecer a eficácia das “autoridades tradicionais” no seu papel como
intermediários face aos vários grupos locais e regionais distribuídos ao longo do extenso
território nacional. Essa aceitação foi, de início, contudo, hesitante e, de certo modo, renitente. É
bastante fácil compreender porquê: das perspectivas ideológica e nacionalista (e as duas
dimensões eram ingredientes absolutamente essenciais para a edificação das elites que
controlaram o Estado durante a 1ª República), o mero facto de a sua própria premissa de poder,
enquanto “representantes” do “povo” e dos “angolanos”, em larga medida não condenar
automaticamente as “autoridades tradicionais” à irrelevância, tornou-se num claro factor de
desconforto. Por outro lado – e isto foi efectivamente um corolário da reacção instintiva anterior
– aceitar a evidência de que “autoridades” continuavam a assumir papéis importantes, e se viam
alimentadas por mecanismos de legitimidade local, parecia equivalente a reconhecer que
espaços políticos autónomos se viam mantidos (e, de facto, esse era o caso) no que era
veementemente desejado como um controlo político e administrativo meticuloso e uniforme
sobre toda a população e território nacionais.
Estas desconfianças reflectiam mais do que meras convicções ideológicas: exprimiam
um real medo de alguns vácuos, no contexto de uma crescente e muito dura guerra civil
empreendida em várias frentes – uma contenda na qual a UNITA, o grupo insurgente, competia
com o Governo precisamente pelo controlo territorial e populacional monopolístico. Como se
para piorar as coisas, nos círculos governamentais, era comum acreditar-se que muitos dos
“chefes”, (e em muitos casos tal era mesmo verdade), tinham colaborado activamente com o
poder colonial português, e que teriam recebido benefícios indevidos desse conluio – uma
afirmação por norma mais exagerada. Para os militantes do MPLA, os chefes tradicionais
representavam também entidades “politicamente retrógradas”, que o partido “vanguardista” no
poder se sentia historicamente obrigado a erradicar. Uma boa dose de Realpolitik impôs-se
todavia rapidamente: os “chefes tradicionais” eram precisos, pelo menos numa primeira fase,
para um exercício eficaz do poder estadual. Como consequência, durante a 1ª República (uma 1ª
República que formalmente terminou em 1991), mesmo se os sobas não fossem excluídos
(como o foram, por exemplo, em Moçambique), a verdade é que iriam ser certamente alvos de
muita desconfiança. Como noutras partes de África, a situação em Angola foi vivida numa
dualidade complexa de distanciação e oportunismo. Esta necessidade filtrou lenta mas
seguramente, em Angola como noutras paragens em África – e fê-lo com ou sem guerras civis.
Pelos anos oitenta adentro tais necessidades foram difíceis de ignorar, e com o correr do
tempo a situação piorou: as rupturas que se deram no fim da década de oitenta e no início da de
noventa causaram uma autêntica mudança tectónica. Foi-se tornando evidente em meados dos
anos oitenta, que uma “terceira geração” de análises estava como que destinada a surgir, se de
facto tivesse vindo para ficar o modelo bem testado de uma emergência – firmemente
coordenada – de um suporte teórico para factos empíricos. O desastre generalizado para o qual
muitas experiências de Estados pós-coloniais caminharam fizeram-se indubitavelmente sentir de
forma muito pesada e dolorosa. Não será exagero afirmar que os Estados africanos tiveram de
começar a fazer frente, pela primeira vez desde a sua criação, uma geração antes, a uma
profunda crise de legitimidade. E viram também empurrados, em termos puramente funcionais,
para uma crise de eficácia aparentemente insuperável: em geral, e por vezes de forma dramática,
tornaram-se flagrantemente incapazes de fazer aquilo que tinham como propósito – governar.
As dificuldades fizeram-se sentir principalmente nas terras do interior. Um pouco por toda a
parte, como seria de esperar, as chefias locais, até então muito significativamente chamados em
todo o continente de “autoridades locais”, tornaram-se novamente foco de interesse analítico –
tanto por líderes políticos como académicos. Durante toda a década de oitenta, na realidade, no
plano político normativo, as tentativas de codificar as relações entre os Estados e as
“autoridades locais” complicaram-se em África. Em Angola o processo (re)começou algures em
meados dos anos oitenta; aconteceu sempre naqueles casos – Moçambique, por exemplo – nos
quais a repressão foi desde o início a palavra de ordem. No contexto de um fracasso crescente

9
do Estado, não é decerto surpreendentemente que os políticos e as entidades locais se tenham
rapidamente tornado parceiros essenciais no jogo da política nacional, regional, e local.
O “Renascimento Africano” (um termo alardeado por John Harbeson), ou seja a retoma
de um continente torturado – uma recuperação largamente conseguida pela via de “transições
democráticas” e que teve lugar no início dos anos noventa – reconfigurou relacionamentos
centrais-locais segundo as novas bíblias políticas que aterraram a sul do Sahara. O
reposicionamento de “autoridades locais” (de preferência crismadas, desde então, “autoridades
tradicionais”, como começaram a ser conhecidas em fora analíticos), respondia a uma
variedade de pressões, provindas de diferentes quadrantes. Empiricamente, os “chefes”
renasceram devido em larga escala à ineficácia do Estado. Política e administrativamente,
recuperaram centralidade em Estados empurrados, em muitos casos, para a fronteira do caos.
Programaticamente, os líderes locais passaram a ser considerados essenciais para uma fruição
efectiva do novo dogma da Boa Governação.
Em Angola, esta plétora de restrições uniu mãos com as novas e dramáticas conjunturas
que resultaram do regresso da UNITA à guerra – este movimento ocupando, pela primeira vez,
cidades, nos anos 90 e retirando efectivamente ao controlo governamental muito do território e
ainda mais população. Em muitas regiões, a presença do Estado angolano simplesmente
desvaneceu. Mesmo em regiões sob controlo nominal do Estado, o Governo tornou-se
rapidamente incapaz de exercer o poder, ou pelo menos de manter uma boa parte do seu papel
governamental, em todo o caso já escasso; uma dívida militar com rápido crescimento, uma
corrupção local desenfreada e incontrolável, e uma forte irracionalidade da gestão tornou-o
inevitável. Seguiu-se-lhes um marcado enfraquecimento dos laços de interdependência até aí
existentes entre largas porções e camadas da sociedade “nacional”. Com o esbatimento de uma
presença estadual, muitos “clientes periféricos habituais” viram os seus relacionamentos com o
centro esvaziar-se a par e passo de conteúdo.
Amplamente como uma reacção a tais desenvolvimentos o Estado angolano decidiu, em
199922, reorganizar-se – especialmente no que respeitou a relações entre o “centro” e a
“periferia”. As “autoridades tradicionais” receberam uniformes 23, em muitos casos jipes de
tracção às quatro rodas, e um salário mensal. O resultado foi o esperado. Por 2002, havia em
Angola 25.000 “autoridades tradicionais” na folha de pagamento do Estado. Em 2004, o número
tinha subido para 35.000. Estamos de momento (no ano de 2007) acima dos 40.00024.
Os chefes locais voltaram deste modo a Angola com estrépito, desta feita designados
como “autoridades tradicionais” – um rótulo politicamente correcto a que voltarei na minha
última secção. À primeira vista, podia parecer estarmos a testemunhar um renascer de uma
longa e oportuna reiteração de um interesse, e de uma precaução, por entidades esquecidas e
injustamente submergidas pelos ventos da história. Tratou-se porém de tudo menos isso. Os
“chefes” tinham sido estudados por investigadores preparados para “laboratórios de
descobertas”. De meados dos anos noventa em diante, novas chefaturas (e novos tipos de
22
O diploma essencial foi neste caso o Decreto-Lei 17/99, de 29 de Novembro de 1999, que reestruturou
as relações entre a administração “central” e “periférica”, garantindo, em confronto com o “centralismo
democrático” de outrora, uma rápida “desconcentração” e “descentralização” das funções do Estado. Em
Fevereiro de 2002, o Conselho de Ministros angolano aprovou um “plano estratégico” para regulá-lo e
realizá-lo. No nível mais baixo, eram criadas, pelo menos no papel, “autarquias” (Municípios, Comunas,
Bairros (urbanos) e Povoações (rurais). Tirando algumas Povoações, tudo estava sob “directa
administração do Estado”. Para as Povoações com “autoridades tradicionais” o desenho administrativo
está ainda no projecto. Será provavelmente um composto de “administração directa” e “indirecta”, mesmo
se formalmente acabar expressa constitucionalmente como totalmente “directa”. Para uma descrição e
análise correctamente detalhada, ver Armando Marques Guedes et al. (2003).
23
Algo que vinha dos tempos coloniais. Em meados dos anos oitenta, o Estado angolano independente
redesenhou os uniformes até ao mais ínfimo detalhe. É o Decreto-Lei 2/86, de 27 de Dezembro aquele
que pormenoriza os uniformes a utilizar pelas “autoridades tradicionais”; quanto aos salários que estas
recebem, o diploma relevante é o Decreto Executivo Conjunto 37/92, de 21 de Agosto.
24
Os números são os oficiais que me foram dados pelo Ministro e pelo Vice-Ministro angolano dos
Assuntos Internos e que foram por mim confirmados através do Gabinete do Presidente da República
angolano. Na folha de pagamentos do Estado, os “Chefes” eram nomeados pelo ordenado que recebiam
pelos seus papéis preenchidos enquanto “autoridade tradicional”.

10
chefaturas) foram sendo criadas e sustentadas pelos vários poderes de um Estado Central que
esperava (e lutava) por uma expansão das suas próprias clientelas. Um segundo passo (ou
“vaga”, para manter a minha terminologia inicial) da “terceira geração” de análises estava
rapidamente a ser dado. A posição das “autoridades tradicionais” como intermediários na
ligação com o Estado é aparentemente a sua mais forte característica de marca; de um outro
ângulo, ligeiramente diferente, será todavia porventura melhor encará-las como entidades que
foram assumindo um papel a meio caminho entre o “central” e o “local”. O que é claro, a todos
os títulos, foi que nesta tardia “terceira geração” já não era o “local”, nem o Estado, aquilo que
atraía a atenção dos analistas, mas antes a modelização intricada das múltiplas relações
estabelecidas entre os dois, entendidas como um nexo constitutivo de ambos. O que, de novo,
reflectia circunstâncias profundamente alteradas no chão.
As consequências são bem conhecidas, e valem para Angola como para muitos outros
países de África. Os estudos típicos dos dias de hoje tratam as velhas dicotomias como
problemas – a entre o “local” e o “nacional”, a que opõe “modernidade” e “tradição”, ou os
mais difusos contrapontos propostos, ou assumidos, entre “desenvolvimento” e “estagnação”
(ou talvez “depressão”, ou até “regressão”), remoldando-as como no essencial entidades
relacionais e inter-constitutivas. Na grande maioria dos casos contemporâneos, o olhar algo
irónico dos autores para as “autoridades tradicionais” imagina-as como uma espécie curiosa de
agentes políticos locais incrustados numa rede, compacta e cada vez maior, de comunicações –
agentes que competem pelo ascensão e dominação jogando as cartas dos seus relacionamentos
privilegiados com o centro, em conjunturas cujas coordenadas político-culturais se encontram
sujeitas a constantes mudanças. Mesmo de uma perspectiva estritamente etnográfica tal não
constitui, de modo algum, um desenvolvimento que possamos qualificar como surpresa. As
novas “autoridades tradicionais” emergentes são na realidade “agentes locais organizados”,
intermediários cujo perfil é muitas vezes totalmente atípico. Assumem diversas facetas,
simplesmente porque são pouco mais do que “actores políticos locais”; e hoje em dia, na África
pós-bipolar, tais actores surgem sob várias guisas. Muitos analistas têm tido como regra, nos
últimos anos, reconhecê-lo de forma tão exaustiva quanto possível. De início, os investigadores
verificaram que os diferentes tipos de actores políticos são cada vez mais rápidos a multiplicar-
se nos enredamentos locais contemporâneos – por vezes instalados por motivações económicas,
e outras vezes guiados por habilidades políticas, noutros casos guiados por finalidades religiosas
ou místicas, numas poucas situações enquanto portadores de agendas médico-sanitárias. Alguns
são jovens e uns poucos são mulheres, o que também é uma novidade. Estão todos a começar a
ser reconhecidos como agentes eficazes, por mérito próprio, na ligação-articulação entre o nível
central e o local, proliferando nas redes sociais profundamente alteradas que se vão instalando.
Respostas pró-activas do Estado estão em curso e ajudam a mudar ainda mais estes cenários – e
as mudanças induzidas são muitas vezes inesperadas.
Em resultado de todas estas reconfigurações sócio-políticas e sócio-económicas temos
agora, como “chefes”, uma plétora do que poderemos talvez chamar “neo-chefes”, entidades
que dificilmente encaixam em moldes clássicos. Os “chefes” com que hoje em dia deparamos
são de facto entidades bastante diferentes – e em muitos casos até antitéticos, ou antinómicos –
das “tradicionais” do passado. O poder que têm não é muitas vezes bem definido, como no caso
de líderes carismáticos, sendo um resultado da sua posição como nexo entre as cidades e as
áreas rurais, ou entre as gerações dos dias passados e as vindouras. Impõem-se muitas vezes –
por uma espécie de efeito mecânico – como interlocutores do Estado e mediadores dos centros
para as periferias e das periferias para os centros. Muitas vezes são entes criados, na totalidade,
pelo Estado. Não raras vezes, através de curiosos processos de bricolage, os novos notables25
25
Um termo colhido na África francófona, inicialmente aplicado a millieux muçulmanos, mas com uma
crescente adequação aplicável a outros palcos africanos. Em Angola, como na maior parte de África,
muitos dos novos chefes, na verdade, emergiram ou dessa curiosamente “espace de notabilité” weberiana
– ou para ela passaram rapidamente. Efectivamente, os estudos modernos tendem a apostar nas filiações
múltiplas e estruturações conjunturais destes novos mediadores políticos, ou “agentes de mudança”, e
tendem a dar realce aos meios pelos quais transcendem criativamente a natureza informal dos poderes
difusos que retêm como resultado de serem precisamente isso, intermediários criativos. Concepções-
chave nas novas agendas teóricas e metodológicas dos investigadores contemporâneos são, por exemplo,

11
emergentes manipulam abertamente velhos símbolos prestigiados e dessa forma adquirem
suplementos imensos de legitimidade. É curiosamente paradoxal – mas torna-se inteiramente
compreensível nos termos de imagem de Herbst de uma dança entre local e central, e em termos
de um estreitar de relações entre as análises realizadas e as agendas políticas da nova geração de
analistas (as do Estado e das ONGs) – que estas muitas vezes novas entidades sejam apelidadas
de “autoridades tradicionais” pelos Chefes de Estado africanos do início do século XXI. Um
ponto ao qual regressarei na última etapa do presente trabalho.
Antes disso queria porém enfatizar que nada há de particularmente novo na minha
leitura da situação: aquilo que afirmo não está muito longe do que Rijk van Dijk e E. Adriaan
van Nieuwaal escreveram26. Nos cenários da África contemporânea, os novos papéis dos chefes
foram observados de forma notável por J.F. Bayart como forma de “mediação” e Pierre
Bourdieu denota-os como mecanismos de “trabalho transformado”. No entanto as mudanças são
lentas: na Angola pós-Unita, para usar as palavras de Trutz von Trotha 27, a verdade é que uma
“liderança civil” para-estatal foi acrescentada à “liderança administrativa”, na qual, em muitos
casos, os líderes estão ainda em processo de incorporação num aparelho do Estado em
crescimento. Para Dijk and van Nieuwaal, há de facto “um novo panorama” no mundo
transformado das “chefaturas”28. O que muda tudo; para van Dijk e van Nieuwaal, “a questão é
que não só devíamos parar de enfatizar o legado das chefaturas africanas e a sua dependência
em relação a uma política de nostalgia, mas não devíamos sequer considerá-las como
‘tradicionais’, o resíduo de algo autêntico”29. Tasty food for thought.

2.

Como segundo passo, quero rascunhar e discutir algumas imagens de maior resolução
destes novos cenários da Angola contemporânea. Eis então as quatro “histórias de caso” que
escolhi expor e analisar. As primeiras três foram recolhidas em Angola, no Huambo e seus
arredores, nomeadamente num campo de refugiados, Casseque 3, em 2002 (História 2) e noutro
local em 2003 (a História 1, bem como a 3). Situo a quarta (a História 4) entre 2004 e 2005,
baseado em conversas, referências jornalísticas e um longo Acórdão do Tribunal Supremo
Angolano. Os “dramas sociais” que se desenrolam, como Victor Turner os apelida e como
certamente o eram na realidade, e as histórias que, embora sob uma espécie de foco jurídico,
envolvem um grau de contextualização que me permite articular assuntos no quadro
sociopolítico local em que os eventos tomaram lugar e foram vividos, interpretados e
compreendidos.

História de Caso 1

Em Novembro de 2002, em Cabata, um pequeno agregado de aldeias situado na


Comuna do Sambo, no Planalto Central, um residente viu-se acusado de feitiçaria e foi
severamente agredido pela população local. Não presenciámos as agressões físicas ao feiticeiro;
mas o que presumivelmente ocorreu (repito, a informação é tão escassa quanto indirecta a este
respeito) foi uma intervenção de último segundo pelo soma local, ou de alguém com autoridade

as de “arena”, “campo político”, “espaços de interacção”, “espace de notabilité”, multiplicidade de


laços”, “informalidade”, “redes de comunicação”, e, claro, a sempre presente bricolage, essa venerável
trouvaille terminológica de Lévi-Strauss para denotar processos-patchwork de invenção conceptual.
26
Rijk van Dijk e E. Adriaan van Nieuwaal (1997): 7, in E. Adriaan van Nieuwaal and Rijk van Dijk
(1999), African Chieftaincy in a new socio Political Llandscape, African Studies Centre, Leiden.
27
Trutz vom Trotha (1996), “From administrative to civil chieftaincy. Some problems and prospects of
African chieftaincy”, Journal of Legal Plurslism (37-38): 79-107.
28
Rijk van Dijk and E. Adriaan van Nieuwaal, idem.
29
Ibid.. de novo tradução minha.

12
substancial sobre a turba o que, in extremis, evitou o golpe fatal. Foi-nos dada uma razão
pragmática para essa contenção: havia um medo generalizado de que o Estado angolano visse o
sucedido como um caso de homicídio e, em resultado disso, os envolvidos pudessem vir a ser
condenados como assassinos.
O que se seguiu foi tanto curioso como edificante. O “bruxo” foi levado perante o
representante mais próximo do Estado, o Administrador da Comuna, por um grupo de residentes
liderado pelo soma, e viu-se aí formalmente acusado de feitiçaria. Face a este “dilema” – o
termo é do próprio – o Administrador como que tregiversou, declarando-se “incompetente”
perante um crime (feitiçaria) não tipificado pela lei angolana e recusou-se por isso a tomar
conhecimento da matéria. Não pôs, contudo, fim ao assunto e não assacou a responsabilidade
pelo sucedido aos habitantes de Cabata, nem tomou qualquer outra medida que pudesse resolver
a contenda – tendo-nos afirmado que “não soube o que fazer” e preferiu por isso “deixar as
coisas seguirem o seu próprio curso”. Mesmo quando colocado perante a possibilidade de
enviar o agredido para tratamento médico, decidiu que fazê-lo seria “enviar ao povo o sinal
errado”, e assim, nada fez.
O assunto não terminou por aqui. Visando uma solução, o soma e os seus seguidores
decidiram deslocar-se em seguida andando durante alguns dias, arrastando consigo o feiticeiro
para o apresentarem, e ao seu caso, ao Rei do Sambo, Cipriano Kaningi, o grande soma inene da
região. Cipriano Kaningi controla (ou controlava à altura) quarenta e oito ombalas (côrtes, em
português, talvez seja a melhor tradução), e tinha então vinte e um “conselheiros” (os sekulos).
De algum modo história repetiu-se: Kaningi, o soma inene, tal como o Administrador antes
dele, foi cauteloso e declarou-se incompetente para avaliar a matéria. Deu como razão a origem
do homem acusado. Era nativo de outro Reino, contíguo ao Huambo e esse, sim, era “o lugar
apropriado”, para ser “levado à justiça”.
Quando, após outra longa viagem, a procissão chegou ao aldeamento do Rei do
Huambo, este último decidiu que o homem deveria ser enviado para a Comuna do Chipeio, no
Município de Ecunha, um local assaz remoto sob a jurisdição do Reino Huambo, onde, por
decisão régia, seria perpetuamente ostracizado pelos crimes de feitiçaria de que era acusado.
Tanto quanto se sabe ainda lá se encontra.

História de Caso 2

O segundo caso teve lugar há alguns anos, em 1999, também no Planalto Central onde
se encontra o Huambo – um altiplano habitado sobretudo por Mbundu – mas desta feita na zona
então ocupada pela UNITA. O soma local, um chefe menor, um reputado apoiante do governo e
do MPLA, partiu para Luanda assim que as suas terras foram ocupadas pelos insurgentes.
Seguiu-se o que os envolvidos nos caracterizaram como “um perigoso vazio de poder”.
Num ambiente local profundamente dividido, com a maioria dos habitantes leais às
autoridades governamentais recentemente depostas, e com novos “homens fortes na terra” – os
líderes da UNITA – foi sentido como urgente que houvesse uma solução política que garantisse
alguma estabilidade e um patamar mínimo de controlo sobre a população local. Em resposta a
esse imperativo, foi dado um passo raro e excepcional: na ausência de homens de confiança, três
mulheres ascenderam à posição de soma com o apoio da UNITA, algo que aparentemente nunca
havia acontecido ou de que, pelo menos, “não havia memória”.
Com os benefícios da retrospecção o que sucedeu em seguida teria sido previsível. A
morte de Jonas Savimbi, a assinatura do Memorando de Entendimento para a Paz e o efectivo
fim das hostilidades, permitiram que o soma regressasse a casa em 2002, tendo para o efeito
viajado de jipe de Luanda para o Mungo. À chegada deparou com o cenário inesperado. A
solução foi rápida e necessária. Com a ajuda preciosa do Administrador António Cavindi,
recém-nomeado pelo Governo, as três mulheres foram sumariamente desinvestidas dos seus
poderes. O velho soma foi reinstalado na liderança e novos ombalas e sekulos (todos “homens e
de correcta ascendência”, e também com “a filiação política nacional certa”) foram rapidamente
investidos como sucessores das senhoras. As razões invocadas para este acto político foram
bastante interessantes: alegou-se – e isto foi recebido com forte apoio local no Mungo – que

13
mulheres tendiam a ser incorrigivelmente defensoras do seu interesses particulares e que
potencialmente seriam feiticeiras poderosas com acesso a perigosas fontes de poder místico;
eram, portanto, somas indesejáveis, mesmo que em cargos menores em ombalas de pouca
importância.
Como curiosa nota lateral, é de interesse destacar que a substituição levada a cabo,
embora (como assim parece) sendo bem recebida em Mungo, não foi unanimemente aceite nos
círculos governamentais afectos ao MPLA: o Administrador Municipal, por exemplo, que na
longa conversa que comigo teve se me apresentou como “um progressista moderno”, opôs-se à
destituição e substituição, considerando-a eivada de “actos politicamente abusivos” e
“retrógrados”. Foi tacticamente vencido, e como resultado recebeu uma rápida recolocação fora
do território onde se havia desenrolado a contenda.

História de Caso 3

Como terceiro caso, escolho uma “forma judicial” com que deparámos num campo
governamental de refugiados, Casseque 3, também no Planalto Central de Angola, desta vez
apenas a cerca de 40 quilómetros da capital de província, o Huambo. Trata-se de um caso que já
discuti noutros locais em maior pormenor 30, pelo que o resumirei muito sumariamente. Até ao
Verão de 2002, o Casseque 3 albergava cerca de 2500 refugiados. Em Agosto, o número tinha
diminuído para umas escassas centenas, tendo a maior parte das pessoas saído com destino aos
seus locais de origem – alguns, porém, preferiram calcorrear durante alguns meses o caminho
até Luanda.
No campo conhecemos um rapaz, António Pinto, nomeado pelo Governador Provincial
do MPLA como “coordenador do Partido para a cultura”. Era o chefe de facto do campo, capaz
de mobilizar as autoridades através da sua filiação política, sendo reconhecido como tal pelos
outros habitantes em virtude das relações de parentesco com o anterior soma que tinha partido
para um subúrbio de Luanda “em busca de vida melhor”. António Pinto, uma “autoridade
tradicional” em gestação na ausência do seu familiar, assegurava com aparente destreza as
ligações entre os residentes do campo e as autoridades governamentais locais – nomeadamente
os Delegados Provinciais para os vários Ministérios e os Administradores locais. Internamente
desempenhava também um papel fundamental como líder geral de um grupo disperso de
pessoas congregadas em condições muito difíceis.
Vale a pena que me detenhamos um pouco neste último ponto. Talvez
compreensivelmente os conflitos não eram raros no campo Casseque 3, dada a severidade e
atipicidade da situação em que as pessoas se encontravam, nas quais gente sem relações de
parentesco entre si, ou apenas pessoas remotamente ligadas umas à outras, se viram forçadas a
coabitar em espaços confinados, em condições de extrema escassez, e o no meio de estranhos
locais, os residentes nas redondezas do campo. De acordo com estes residentes locais (e
segundo me foi confirmado por António Pinto), a massa de assuntos contenciosos que
ocorreram estavam centrados em disputas conjugais, que emergiam de infidelidades
generalizadas, em acusações de feitiçaria entre vizinhos acidentais, em casos de embriaguez e
em discussões associadas e furtos menores nos aldeamentos vizinhos e nos campos agrícolas da
vizinhança. Encontrar soluções para casos que emergiam destas “frentes” formava o núcleo
duro da “liderança judicial” de António Pinto – e constituía, em última análise, o core business
das suas funções de “governação local”. Implicavam habitualmente a tomada de decisões em
julgamentos, assumindo assim o jovem “coordenador cultural” o papel de pacificador local.
Curiosamente, quando os casos eram demasiado complexos, ou envolviam mortes ou outras
consequências especialmente gravosas, António Pinto via-se relegado a pouco mais do que ao
papel de um intermediário reconhecido, dado que o mecanismo habitual então desencadeado era
simplesmente o apelo às nunca demasiado distantes autoridades estatais angolanas para que
estas tomassem conta da ocorrência.

30
Ver Armando Marques Guedes et al (2003) e Armando Marques Guedes (2005).

14
A forma muito sui generis como o nosso jovem “chefe” desempenhava as suas funções
judiciais e políticas, quando o conheci, parece-me no entanto fascinante. Relatá-la-ei,
sumariamente. De acordo com as narrativas locais, o soma, residente em Luanda – o homem
que Pinto substituiu – sempre operara judicialmente de acordo com os cânones tradicionais, se
tal me é permitido como descrição, no que respeita a “instituições de disputa” (dispute
institutions) Umbundo. Permitam-me que realce o modus operandi “clássico”. Quando
emergiam conflitos o soma local convocava os sekulos para um tête-à-tête num django aberto, e
aí ouvia o relato da disputa da boca dos “anciãos” que, segundo é dito, “representam as partes”.
Tal era sempre realizado na presença dos “litigantes” (que nunca intervinham directamente), e
na presença do maior número de “vizinhos” que pretendessem assistir. Após a primeira ronda,
as “testemunhas de defesa” (traduzo aqui, abusiva e muito aproximadamente, o termo local de
ocyane) eram ouvidas, seguidas das de acusação (conhecidas por epindikisio). O soma, com o
intuito de cumprir o papel designado de “lídere supremo” do “tribunal” (no vernáculo
muenlekanga) decidia então o que havia a fazer para resolver o caso em apreço – normalmente,
como me foi afirmado, tentando uma fórmula negociada que as partes pudessem aceitar
livremente como solução.
Este foi o modelo que António Pinto escolheu para a resolução de disputas com que
passou a ter de lidar quando o soma partiu para a capital. De moto próprio, decidiu, contudo,
introduzir algumas modificações no formato herdado. As mais importantes são sáceis de
resumir: após a audição das “testemunhas” (os ocyame e os epindikiso), António Pinto, talvez
dando expressão às suas próprias concepções daquilo em que deveria consistir uma boa
participação política – ou talvez ávido de assegurar a legitimidade da sua decisão eventual,
qualquer que ela fosse – procedia invariavelmente a uma espécie de votação popular. Após as
intervenções formalizadas dos ocyame e epindikiso, todos os presentes no django eram por ele
convidadas a falar sobre a matéria em questão e, em resultado disso, seguia-se um fogo cerrado
de “defesas, ataques e críticas” no decurso do qual ele e “o povo presente” se envolviam
animadamente. Só após essas discussões generalizadas chegava António Pinto a uma decisão –
então anunciada “de imediato”.
Na minha conversa com ele, o muenlekanga temporário – que obviamente considerava a
solução que inventara ser justificada e necessária – foi evidente o orgulho que A. Pinto tinha no
método de adição que improvisara, que considerava, ao mesmo tempo, como politicamente
correcta. e como um contributo para uma maior eficácia jurídica das decisões que tomava.
Explicou-me que, em virtude das suas “consultas populares” alargadas e do seu cunho informal,
era possível a tomada em linha de conta de “considerandos de fundo”, uma contextualização
que permitia uma melhor atenção aos pormenores dos assuntos em deliberação. Parece-me claro
que Pinto tomava as inovações como posicionadas a meio caminho entre uma forma de consulta
pública popular e uma sessão de “crítica revolucionária”; quando, em todo o caso, lhe sugeri
este diagnóstico, concordou entusiasticamente.
Como resultado desse “alargamento democrático” – o termo é meu e não dele – as suas
sentenças, afirmou-me repetidamente, eram sempre acatadas pelos residentes do Casseque 3.
Não tive meios de confirmar este último diagnóstico de António Pinto.

História de Caso 4

Esta é possivelmente a história mais interessante das que apresentei. De qualquer das
formas é, certamente, a que tem um maior raio de implicações. Ocorreu no Sudeste de Angola,
nos últimos dias de Agosto de 2002, na enorme e muito remota – para além de escassamente
povoada – Província do Kuando-Kubango, cujo epíteto, na época colonial era o de “Terras do
Fim do Mundo”. Os acontecimentos desenrolaram-se alguns meses apenas depois da morte de
Jonas Savimbi e imediatamente após a assinatura do Memorando de Entendimento para a Paz
que pôs fim à longa e brutal Guerra Civil angolana. A sequência de acontecimentos é, como
iremos ver, paradigmática e edificante.
Em fins de Agosto de 2002 alguns chefes locais (geralmente conhecidos por sobas,
embora não seja esse o nome por que localmente são conhecidos), falantes de Ngangela

15
liderados pelo “Rei” Bingo-Bingo, pediram para ser recebidos pelo Governador, Fernando
Biwango, na capital provincial, Menongue. Com eles traziam outros oito sobas locais, que
acusavam de feitiçaria. Os acusados vinham amarrados e patenteavam sinais nítidos de
agressões violentas. A delegação das “autoridades tradicionais” requereu ao Governador o
imediato aprisionamento dos oito acusados e pretendia que o grupo fosse enviado para o campo
prisional de Bentiaba – um campo isolado na parte norte do deserto do Kalahari, no Namibe, no
Sudoeste angolano.
De acordo com os chefes que acompanhavam a expedição de Bingo-Bingo, havia
numerosas testemunhas de que os oito homens tinham como prática comum o assassinato de
pessoas, posteriormente usando-as (ou melhor, aos seus “espíritos”) como “escravos” nos seus
próprios terrenos agrícolas e nas suas actividades piscatórias. Isto significava, alegadamente,
que os “bruxos” (de acordo com os registos do Tribunal Supremo de Fevereiro de 2005, o termo
usado, em Ngangela, foi o de kamutukuleni, que, à falta de melhor, o tribunal decidiu traduzir
por “feitiçaria”) prosperavam, contra a indigência dos outros habitantes da região 31.
Naturalmente, tanto as práticas como as suas consequências eram localmente consideradas
inaceitáveis e os sobas queriam por isso que os oito homens fossem removidos da região de
uma vez por todas.
Porventura sentindo algum desconforto, o Governador Biwango recusou o pedido de
enviar os homens para Bentiaba, invocando uma “inconformidade das acusações com a lei em
vigor32”. O Governador declarou, contudo, “compreender” a questão e o seu alcance e
implicações. Como resultado decidiu, através de um memorando escrito, que neste e noutros
casos de kamutukuleni, medidas severas e imediatas deveriam ser tomadas, com recurso às
forças de Defesa Civil – o contingente militar local – “se necessário” 33. Com esse propósito em
vista, Fernando Biwango criou para a questão em apreço uma Comissão, que incluía alguns dos
sobas de Menongue, o Regedor, bem como um representante do Governo Provincial. A
Comissão reuniu, teve lugar um julgamento, e os oito homens foram sentenciados e condenados
à morte por fuzilamento, a ser levado a cabo pelos militares locais. Foi para além disso decidido
que os corpos seriam rapidamente lançados ao rio, para assim garantir que os seus “espíritos”,
considerados malévolos e perigosos, não continuariam a assombrar a vizinhança.
A data para a execução foi marcada para alguns meses depois, presumivelmente porque
o Governador Biwango decidiu retirar dividendos políticos da situação. No período que se
seguiu, os oito acusados foram levados em parada um pouco por toso o Kuando-Kubango e
mostrados como exemplo em comícios políticos convocados para o efeito. Quando a data final
chegou, os homens foram devidamente executados. Sete deles foram amarrados e sumariamente
abatidos, pelas costas, por um pelotão militar de fuzilamento. O oitavo foi, por sua vez, morto
por um oficial que o atingiu a tiro no estômago quando o infeliz tentou escapar, mal o grupo
começou a ser conduzido para o local da execução da pena; o texto do Acórdão do Tribunal
Supremo é bastante gráfico e detalhado, nestas como noutras matérias de facto.
Como era inevitável, a história acabou por chegou Luanda e às autoridades centrais. A
resposta estatal foi rápida. Os membros da Comissão, assim como os vários representantes do
Governo envolvidos (incluindo alguns militares), foram julgados e, na sua maior parte,
condenados, nalguns casos a penas acumuladas de vinte anos de prisão, noutros a menos, mas
ainda assim sempre a penas de prisão substanciais e a sanções pecuniárias pesadas. Seguindo
uma disposição constitucional que assim o exige, o Governador e o Vice-Governador foram
julgados pelo Tribunal Supremo, única entidade considerada competente para tal, ambos tendo
recebido sentenças de doze anos de cadeia, segundo Acórdão de Fevereiro de 2005.

31
Sigo aqui, de perto, os registos judiciais relativos ao caso e que correspondem ao Processo nº3.146, do
Tribunal Supremo de Angola. O Tribunal Supremo, na sua decisão de Fevereiro de 2005, mencionou o
uso de “pessoas já falecidas,“como escravos”, “progredindo assim” os feiticeiros “a olhos vistos,
perante a indigência dos demais habitantes da região”.
32
Nos termos do Acórdão do Tribunal Supremo angolano, “esta proposta (do “rei” Bingo-Bingo e dos
seus acompanhantes) não encontrou acolhimento do senhor Governador Provincial, por alegada não-
conformação com as leis vigentes”.
33
Mais uma vez do Acórdão: a decisão defendia que deviam ser “tomadas medidas duras e urgentes, com
recurso à Defesa Civil em caso de resistência dos acusados.

16
DISCUSSÃO

Começo por notar que cada um destes casos toca em pontos diferentes – no que respeita
aos meus objectivos – apesar da complementaridade dos assuntos versados. Mais ainda, fica
decerto claro, pelos traços gerais das “histórias”, que as mesmas não foram escolhidas por
serem genericamente representativas. Não o são. A maior parte das interacções entre os Estados
e os “chefes”, em Angola – e nos restantes locais de África – tendem ver-se focadas em
questões simples de disputas territoriais. Os meus quatro casos foram seleccionados
precisamente por serem problemáticos e difíceis. O que todos eles fazem, ao que creio, é realçar
e sublinhar os limites da congruência entre, por um lado, os imperativos normativos, de
diferentes tipos, do Estado e, por outro lado, as constrições criadas pelas estruturas e práticas
“costumeiras” – práticas e estruturas que nem sempre são fáceis de discernir, com os seus
avatares contemporâneos, e que se manifestam, muitas vezes, como formas híbridas. Escolhi
estas quatro histórias de caso porque elas me permitem um mapear exaustivo dos problemas
patentes entre as necessidades estatais e os Leitmotif das comunidades locais na Angola
moderna e pós-colonial – problemas esses, em grande parte, suscitados pelas tentativas de tornar
estes dois planos congruentes entre si. Irei sumariamente reentrar nos quatro casos, primeiro um
a um, e posteriormente no seu conjunto.
Entre outras questões, a História de Caso 1 suscita certamente uma complexa questão
político-jurídica, ou jurídico-política, e não apenas uma questão técnico-legislativa. De facto,
face a opções plurais, a primeira questão que se pôs aos vários líderes por cujas mãos o caso
passou não foi uma questão puramente normativa; parece antes ter sido a da determinação da
jurisdição competente – isto é, aquilo que foi tido como mais premente dizia respeito à
percepção concreta da correlação das forças que, de facto, estavam em presença. O soma inene
do Sambo, o Rei Cipriano Kaningi, compreendeu visivelmente e de forma perspicaz que, caso
decidisse agir segundo a prática costumeira, o Estado angolano, recém-chegado à região, muito
possivelmente iria abrir uma investigação que poderia culminar numa acusação de homicídio.
Tratava-se de um risco que não estava disposto a correr. Por outro lado, a simples abertura de
uma investigação estatal, independentemente da forma como ela pudesse terminar, levantaria
dúvidas sobre o carácter soberano do seu poder de decisão enquanto soma grande. A
colaboração com o Estado, nesta como noutras questões, apresentou-se como um mal menor –
uma hipótese particularmente convincente se assumirmos (como provavelmente devemos,
embora não tenhamos em boa verdade forma de o confirmar) que o nosso soma inene foi capaz
de antecipar a decisão cuidadosa do Administrador, que preferiu protelar, ao invés de dar ao
caso uma solução imediata. Tanto quanto sabemos, um e outro podem mesmo ter orquestrado
uma resposta conjunta; tanto não seria, de forma alguma, novidade, dada a história de conluio
entre as duas entidades, uma história que eventualmente conduziria Kaningi ao Comité Central
do partido do poder em Luanda.
Note-se que, a menos que façamos um “desvio” do tipo do que aqui sugiro, a nossa
reconstrução do que realmente se ocorreu está condenada a falhar: a sequência de eventos torna-
se ininteligível. Numa visão mais pormenorizada, de facto, a decisão do Administrador de
protelar o assunto – em vez de o fechar de imediato – é difícil de compreender até que
assumamos que o fez nos termos de um cálculo político: uma vez que a “feitiçaria” não é uma
categoria legal do Estado angolano, o Administrador teria normalmente rejeitado a acusação,
em vez de ter recusado tomar conhecimento dela. Ao colocar-se, prudentemente, na posição
expectável das autoridades estatais, o soma inene, Cipriano Kaningi mostrou preferir como
caminho uma dose de hibridismo jurídico – ao passo que o Administrador, talvez
desafortunadamente, se mostrou, por seu turno, profundamente hibridizado: não só admitiu
implicitamente, contra legem, que a matéria tinha de facto relevância jurídica – se não a
“feitiçaria” em si própria, pelo menos a necessidade de uma certa pacificação social através da
reparação de um valor normativo transgredido; mas decidiu também que o destino dos acusados
deveria ser determinado por uma sentença do “Rei” – um Rei que ele sabia ir aplicar um
conjunto de princípios judiciais e regras inexistentes na lei do Estado angolano e,

17
provavelmente, incompatíveis com esta. De uma perspectiva estatal, o próprio violou dois
princípios constitucionais, o nullo criminem sine lege e da nulla poena sine lege. O
Administrador fez, de facto, mais que isso: do seu próprio ponto de vista, não permitiu aos
acusados o processo devido; e apesar da sua decisão lograr seguramente uma pacificação da
comunidade local, esta resultou numa constrição dos direitos de circulação do homem acusado
de “feitiçaria”.
Não devemos porém, dito isto, subestimar o aspecto político das acções do
Administrador. Tanto se torna claro uma vez que notemos a preferência que o Administrador
manifestou pela solução jurídico-estatal simples (o não reconhecimento de um crime, uma vez
que a feitiçaria não é uma categoria legal) não foi óbvia, imperativa, nem talvez, sequer, a
melhor escolha. Embora os Estados modernos não vejam, certamente, na “feitiçaria” uma
matéria jurídica, pode dar-se o caso de que reconheçam (como é usual em Angola) que as
populações locais o fazem e que em torno disso existe uma regra de reconhecimento
comunitária e constitutiva, que lhes permite ordenar a sua vida social – uma forma de
reconhecimento local relativa à forma como a comunidade por norma reage a tais acções; e que,
por conseguinte, os Estados reconheçam que, sem tais reacções, esta regulae agenda perderia
muita da sua eficácia normativa e, portanto, capacidade de ordenar as relações sociais nas
unidades sociais nas quais age – tornando-se incapazes, assim, de manter a ordem social.
Se este for o caso – e tudo indica que foi – então, de uma perspectiva política, o
Administrador, uma vez confrontado com a acusação e o indiciado, poderá ter sentido que
deveria fazer alguma coisa. A questão torna-se, se assim for, uma questão de política criminal:
isto é, se recusarmos olhar para os acontecimentos como estando situados ao nível das questões
jurídicas privadas, mas encararmos o caso antes no plano dos assuntos jurídico-constitucionais,
daí decorre que algo semelhante a um Direito “Estrangeiro” Criminal – mais do que um
verdadeiro Direito Internacional Privado – deveria ser aplicado, uma vez que os dilemas passam
a constituir um “conflito de leis” linear, que tem lugar ao nível das regras de reconhecimento de
Hart. Note-se que esta interpretação redefine totalmente a moldura analítica, num sentido forte
repondo o caso ao iluminá-lo de um ângulo diferente. Ao deferir uma decisão para o eventual
julgamento do “Rei” do Huambo – para quem efectivamente empurrou o acusado, aquilo que o
Administrador fez, na realidade, foi reconhecer a existência, em Angola, de competências
próprias a comunidades políticas originárias, autónomas, e auto-reguladas. Um problema ao
qual quererei, naturalmente, regressar.
A segunda história de caso, relativa a mulheres-soma, é interessante por outras razões
mais “pontiagudas”. Como o Administrador do Mungo, António Cavindi, nos disse de uma
forma muito linear, no Huambo, “as autoridades tradicionais são o braço direito da
governação”. Este caso mostra-no-lo, entre outras coisas, e fá-lo independentemente de
qualquer tipo de governação em que possamos pensar, quer a da UNITA, quer a do Governo
liderado pelo MPLA. Da perspectiva da UNITA, a partida apressada do soma simpatizante do
MPLA criou um indesejado vácuo de poder, um vácuo que a deixou sem meio de controlo
(salvo um meio directo custoso e árduo) sobre a população local. Administrar e controlar
politicamente os grupos locais em questão implicou um recurso indesejado à violência, algo a
evitar por motivos de hard bem como de soft power; esse recurso desviou recursos e gerou má
publicidade, tanto pela sua agitação e propaganda, quanto pelo seu impulso de “recrutamento de
corações e almas”. As lealdades de parentesco não conseguiram encontrar apoio local adequado
no grupo de linhagem do soma, e por isso, sem alternativa, o Administrador viu-se na
contingência de ter de recorrer à invenção de somas mulheres.
Neste sentido, os oficiais da UNITA induziram os líderes locais a ensaiar uma forma
atípica de co-optação, sendo este o meio disponível para a concretização do propósito de
assegurar a concessão de poderes políticos a dependentes funcionais. Podemos ser tentados a
considerar uma surpresa o facto do grupo local ter, efectivamente, consentido a inovação levada
a cabo; mas talvez a “cedência” possa ser explicada pelas circunstâncias político-militares
extremas então sofridas, ampliadas por laços transversais de fidelidade a um agrupamento
político Mbundu em aflição, bem como por um mecanismo recíproco para a maximização do
impacto político do grupo militar insurgente sobre os locais – ambos confrontados por algo
vislumbrado como um “inimigo” exterior que tinha já contado com a “colaboração” do anterior

18
soma. Por outras palavras e em termos pura e simplesmente contrafactuais: se não fosse o stress
da guerra, seria improvável que mulheres tivessem ascendido a posições de poder. O que torna
compreensível a razão pela qual, quando a guerra acabou e o soma regressou a Luanda, ele
rapidamente tenha reassumido as rédeas do poder, destituindo-as sem aparente resistência local:
o poder tinha novamente mudado para outras mãos, e os devidos realinhamentos deram-se
naturalmente de forma rápida através de uma reafirmação simbólica do status quo ante.
Se esta leitura de sequências de facto e de motivações está, pelo menos, parcialmente
correcta (e foi esta a essência da interpretação oferecida pelos vários participantes com quem
falámos sobre os eventos), a História de Caso 2 não é realmente acerca de mulheres e relações
de afinidade, ou até entre conceitos de poder e os de género: consiste numa narrativa pragmática
sobre power politics numa situação excepcional de necessidade. Seguindo a minha linha
anterior de raciocínio, podemos talvez ir mais longe e especular que talvez não houvesse no
agrupamento local, em boa verdade, uma especial desvalorização positiva da ascensão de
mulheres ao papel de soma (dado que, de qualquer das formas, tal aconteceu sem grande
turbulência); antes, uma desvalorização positiva foi criada como um facto normativo, ou seja
pela destituição desencadeada pelo regresso do soma. Se a primeira História parece indiciar que
estamos, em Angola, face a um autêntico “sistema internacional” em miniatura, no qual vemos
esboçar a germinação de proto-soluções normativas “internacionais”, a segunda sugere decerto,
de maneira complementar, que os mecanismos de fertilização cruzada observáveis são
complexos e intrincados.
A terceira História de Caso, acerca de António Pinto e das suas inovações judiciais no
eufemisticamente chamado Campo de Deslocados Casseque 3, parece prestar-se a uma muito
mais fácil leitura e dá, de facto, corpo a uma sequência de acontecimentos mais linear do que as
duas anteriores. Trata-se de um simples caso de hibridismo jurídico e judicial. Envolve
mediação de conflito com “consulta popular” num campo de refugiados e é, por conseguinte,
um contra-exemplo mais transparente que aponta para condições sob as quais congruências se
tornam possíveis; acredito, por isso, que são muitas as lições que podemos retirar de histórias
como esta. A verdade é que casos como este nos mostram uma parcela da capacidade que o
Estado angolano tem de fundir as suas formas legais com as locais: exibem mecanismos que
operam em parte da capacidade local para absorver e integrar, em formas canónicas
“tradicionais” e aparentemente de forma suave, dispositivos e práticas advenientes de outras
instâncias.
Podemos ir mais longe. A um determinado nível, a terceira História de Caso contradiz a
segunda, ao mostrar que existem reais alternativas às soluções “internacionalistas” esgrimidas
face a “conflitos de leis”. A um nível porventura mais profundo, a terceira História aponta na
direcção de eventuais soluções integradoras; salienta também, contudo, as tensões imprevisíveis
– e, portanto, de difícil controlo – induzidas por justaposições de mecanismos que estão
desenhados de acordo com lógicas diferentes. O modelo “tradicional” Mbundu para resolução
de conflitos enfatiza o equilibrar de poder das linhagens locais através de modos de
“representação judicial”, na qual todos os grupos corporativos locais participam. Por outro lado,
as inovações de António Pinto tendem a fomentar um consentimento público colectivo baseado
em expressões e preferências mais individualizadas. Serão decisões ancoradas nestas duas
lógicas e mecanismos realmente sempre compatíveis entre si? Ou seja, em generalizando mais
uma vez, são de facto complexos e intrincados os mecanismos de fertilização cruzada
observáveis – são-no a ponto de a interacção dos vários sistemas normativos em presença alterar
profundamente o patamar em que co-existem e se manifestam.
Por último, a quarta História de Caso, a que considero a pièce de resistance. A história
fala amplamente por si e, portanto, não vale a pena perder muito mais tempo com ela. É
suficiente dizer que nos mostra, de uma forma muito nítida e explícita, a enorme ambivalência
que o Governo angolano exibe nas suas relações com as “autoridades tradicionais” e o “Direito
tradicional” com que tem de lidar. Considerações político-programáticas e finalidades político-
administrativas, como lhes chamei, constituem seguramente a fracção mais substancial da série
de motivos que levaram as elites do Estado angolano a apoiar e capacitar [no sentido de lhes
disponibilizar algum empowerment] as “autoridades tradicionais”. Todo processo continua,
porém, marcado por uma enorme ambiguidade. Uma vez que restrições materiais (e

19
nomeadamente logísticas) às capacidades estatais foram reconhecidas pela 2ª República, a
lógica mais macro da progressão que se deu ficou bastante transparente; mas o porquê dessa
propensão torna-se particularmente claro se tomarmos em conta as constantes invocações de
africanidade e autenticidade tradicional que a UNITA anunciou e assumiu como uma das suas
principais bandeiras, especialmente numa das suas áreas essenciais para recrutamento e
mobilização, o Planalto Central – face à ameaça criada para a sua própria legitimidade relativa,
o Estado sentiu-se, compreensivelmente, na necessidade de lhes fazer frente; et pour cause –
invocações de africanidade nunca deixaram de ser bem aceites entre os angolanos que, em geral,
tendem a orgulhar-se dessa identidade e pertença. É também indubitável que,
independentemente da forma como algumas elites urbanas possam professar desprezo ou
mostrar sobranceria, face às “autoridades tradicionais”, estas tendem a ser romanticamente
vistas como entidades pré-existentes, de alguma forma mais antigas que o Estado, entidades que
escaparam à colonização e cujas implantação e legitimidade estão, por essa mesma razão,
ancoradas em formas históricas de organização social na qual a “angolanidade” está enraizada.
Os processos de formação e consolidação de uma opinião pública após a “transição
democrática” do início dos anos noventa cristalizaram tais imagens, e propagaram-as,
implantando-as distante e amplamente.
Para melhor ancorar uma visão de conjunto, quero deter-me um pouco num ponto que
considero essencial: olhar as coisas da perspectiva das representações locais é um exercício
proveitoso. A recuperação e capacitação das “autoridades tradicionais” pelo Estado angolano é
uma atitude encarada por ambas as partes como conveniente. Da perspectiva dos Estados, o
reconhecimento-integração de figuras do poder local cumpre duas funções principais: permite,
por um lado, uma extensão da sua implantação, mesmo que apenas em termos indirectos; e, por
outro, gera, e põe em circulação, imagens de um retorno às tradicionais formas de organização
que incorpora esperanças num regresso a uma comunidade perdida no tempo que o colonialismo
teria destruído e a cuja busca a brutal experiência de guerra não pode deixar de conduzir. Do
ponto de vista das “autoridades tradicionais” elas próprias, um tal reconhecimento-integração
também preenche várias funções – amplia o seu território e implantação, aumenta os seus meios
para o exercício do poder, e, especificamente, a viabiliza a aquisição das muito convenientes e
variadas comissões que o novo status lhes confere; o crescimento meteórico no número dessas
autoridades atesta-o.
Mas a evidência de que estamos perante algo que é mutuamente conveniente de modo
nenhum neutraliza a ambivalência sentida. Pode, ao invés, torná-la mais patente. Grosso modo,
o discurso angolano estandartizado sobre o “Direito tradicional” e as “autoridades tradicionais”
tem duas linhas de força. Uma delas é política num sentido pragmática: liga-se a uma
intencionalidade e a um decifrar da realidade social com que os angolanos se confrontam. A
outra trave-mestra manifesta uma posição mais profunda de pressuposições sobre a própria
realidade social, cultural, e histórica, para a qual olha. Mais do que duas atitudes diferentes,
comuns mas irredutíveis uma à outra, estas duas linhas de força parecem ser pensadas em
Angola enquanto dois pólos de uma sequência contínua e a regra que fundamenta o jogo
conceptual que subtendem é fácil de apurar. Na medida em que há uma formatação nocional,
esta decorre, entre a elite dos detentores do poder, de uma tensão que tende a tornar-se cada vez
mais visível entre, por um lado, uma ambição política e administrativa “modernizadora”, que
aponta para uma cobertura geral e hegemónica de Angola e, por outro, uma expectativa
nacionalista grosseira (em muitos casos com fortes sugestões “nativistas) que insiste numa re-
visitação das “formas tradicionais políticas”, entendidas como “autónomas e espontâneas” –
com a conotação de não contaminadas pelo domínio colonial.
Não será talvez excessivo dizer que a tensão está na realidade entre State-building numa
extremidade da rampa, e nation-building, na outra. Muitas das pessoas com quem falei em
Angola tentaram em vão reconciliar os dois pólos do que constitui, essencialmente, dois
extremos, no fim de contas irredutíveis, de um gradiente. Mas serão capazes de substituir a
construção de uma identidade mítica? Casos como os do Kuando-Kubango (a minha História 4),
no final contrariam a possibilidade dessa harmonização...

20
3.

Nesta última secção, quero colocar as questões que suscitei num quadro ainda mais
alargado, desmontando primeiro do meu horizonte de problematização e depois nele re-
ingressando. Basicamente, fá-lo-ei pondo em ressonância recíproca o que foi adiantado nas
primeiras duas partes deste estudo. O que significa ao mesmo tempo re-contextualizar e delinear
conclusões – ou pelo menos formular hipóteses tal como o possível desdobramento de situações
complexas e contínuas de interacção entre os sistemas políticos e administrativos centrais e
locais que são uma parcela do “projecto-Angola”. O objectivo é o de reformular os problemas
que fiz questão de ir suscitando num cenário maior e mais dinâmico. Uma re-perspectivação de
conjunto das quatro Histórias de Caso que esquissei na minha última secção permite-nos, com
efeito, dar uma resposta satisfatória a tudo o que discutimos. É bom notar que os motivos e
agendas dos actores sociais, sejam eles do Estado ou actores locais, se situam num plano
diferente do das realidades jurídico-políticas nuas e cruas: o wishful thinking, por mais bem
intencionado que seja, nunca vai muito longe.
Quaisquer que sejam as motivações dos actores sociais, independentemente das
ambições nacionalistas e ideológicas neles embutidas, a verdade é que da perspectiva da teoria
da democracia, a articulação entre Estados e sistemas normativos locais esbarra contra vários
tipos de obstáculos – e isto é sabido há muito tempo e demasiadas vezes esquecido. Num
derradeiro passo deste estudo, vale a pena apontar as principais frentes abertas por tentativas
ambiciosas de harmonização linear e não-problemática entre sistemas normativos “tradicionais”
e estaduais. Estou a pensar em frentes – como as chamei – diferentes, algo semelhantes àquilo
que Antonio Gramsci celebremente apelidou de “trincheiras”: essencialmente, linhas
conceptuais de batalha para uma “hegemonia” programática.

MODALIDADES DE INCONGRUÊNCIA: OS LIMITES DO LÈGER-DE-MAIN JURÍDICO-


POLÍTICO

Quero descer ao concreto, neste ponto. De entre estas “trincheiras”, antes do mais
certamente colocaria a questão da possibilidade de integrar umas com as outras – ou até de
conseguir um nível de articulação menos denso entre elas – entidades não-eleitas e muitas vezes
autocráticas e outras que tenham sido livremente sufragadas e que podem ver-se destituídas se e
quando (se não mesmo como) os eleitores quiserem. Desta frente problemática, várias
consequências decorrem que dela são espécies: como, por exemplo, as dificuldades técnicas na
delimitação das competências de entidades que não só não reconhecem uma forma de separação
de poderes semelhante aquela incorporada em “guiões” democráticos formais, mas também
tendem a nem sequer estabelecer distinções, mais difusas, entre domínios como os que
chamamos de jurídico, político, religioso, ou familiar. A tudo isto podemos adicionar mais uma
camada: as potenciais incongruências que derivam de delimitações e circunscrições, que desde
há muito sabemos serem assaz diferentes entre si, de domínios “privados” e “públicos” – uma
lacuna que não pode senão lesar gravemente muitos dos esforços feitos em eventuais tentativas
para um aporcionamento de atributos estruturais e competências funcionais entre as chamadas
“autoridades tradicionais” e o que é visto como o Estado angolano. Ao nível estritamente
político, os riscos incorridos por insucessos deste tipo já nos foram há muito tornados claros
pela dureza brutal da nossa própria experiência histórica34.

34
Como Joel Migdal (2001: 128) escreveu, aludindo a um contexto diferente mas com óbvia pertinência,
“in parts of colonial Africa […] the British attempted to extend the scope of the colonial state by
incorporating tribal chiefs as paid officials. Many chiefs, for their part, gladly accepted the salary and
any other perquisites that they could garner but often ignored the directives from their superiors in the
state hierarchy. The demarcation between the state and other parts of society in such instances was
difficult to locate and was in constant flux. Chiefs were state officials but sometimes – indeed, many times
– simply used their state office and its resources to strengthen their rule as chiefs”. Migdal sintetizou as
suas considerações acerca das implicações disto na página seguinte: “in arena after arena […] social
forces have reorganized to deal with the new reality of ambitious sates. Where those forces have created

21
Vou querer retomar este tema, mas de momento pretendo tratar estas questões de
incongruência em moldes mais jurídicos, designadamente aqueles ligados aos ideais liberais-
democráticos de Boa Governação que a 2* República angolana professa defender. A afirmação
de que formas políticas e jurídicas africanas tradicionais têm, por regra, pouco em comum com
aquelasoutras essenciais ao Rechtsstaat, não dá certamente corpo a uma real generalização: por
mais que simpatizemos com as categorias socioculturais envolvidas – ou por mais lassamente
que as definamos – na África sub-Sahariana tradicional a legitimidade dos detentores do poder e
dos seus actos não se encontra sob o espectro de um qualquer “Império do Direito”. Em vez de
Constituições, as chefias locais negociam as suas agendas políticas dentro dos quadros de
repertórios – repertórios frequentemente muito ricos, mas também comparativamente
indiferenciados – de preceitos morais, pela via sinuosa de interpretações e reinterpretações
dinâmicas e recorrentemente muito variáveis de “costumes”, ou por intermédio de provérbios e
dizeres ou adágios. A autoridade que exibem (ou melhor, o poder que têm) tende a ser tão vaga
e difusa como ampla; normalmente é, para todos os efeitos, imensa. Como um publicista sul-
africano liberal, T.W. Bennett35, recentemente asseverou, “the inclusion of traditional rulers in
a Constitution dedicated to democracy is a conspicuous anomaly”. Algumas das facetas mais
flagrantes desta anomalia são de fácil identificação. Indiferentemente da perspectiva que
queiramos preferir, parece-me indiscutível que olhar para realidades como estas de um ângulo
Iluminista “clássico” é interessante e frutuoso.
Para efeitos operacionais, pretendo tratar separadamente as questões constitucionais de
congruência das jurídicas. Irei começar pelo primeiro tipo: questões constitucionais. No que
toca às “autoridades tradicionais” note-se que, como regra, o exercício daquilo a que podemos
chamar “funções legislativas” não é, na Angola tradicional, dependente de um qualquer sufrágio
popular periódico; resulta, antes, da operação de regras hereditárias. De uma perspectiva
normativa fundamental, uma questão que pode (e, de facto, deve) ser levantada refere-se a
eventuais contradições – ou seja, a incongruências radicais – entre tais sistemas hereditários e
disposições constitucionais anti-discriminatórias angolanas. Uma questão semelhante viu-se
suscitada na nossa História de Caso 2: pode uma mulher, no quadro dos formatos políticos
“tradicionais” que o Estado reconhece e integra no seu seio, ocupar um lugar de liderança
política? Deveria podê-lo, em nome da lógica não-discriminatória política e jurídica oficial
angolana. Poderá, contudo, fazê-lo de acordo com as regras e processos “tribais” comuns no
Planalto Central? Poderá alguma forma de “acomodação” funcionar aqui?
Ainda ao nível do que o Estado considera como poderes públicos executivos, as
“autoridades tradicionais” tendem, em Angola, a exercer um controlo extensivo e intensivo –
muitas vezes legitimado por uma espécie de ligação directa aos antepassados do grupo –quanto
à escolha e distribuição de terra ou do seu uso, sobre a alocação de direitos residenciais naquilo
a que poderíamos chamar (com pouca distorção) expropriações de propriedade, na mobilização
de trabalho, ou no que diz respeito a vários tipos de taxação e tributação. Tudo isto, por norma,
dá-se no quadro do que não podemos deixar de encarar como um espaço normativo rarefeito:
com efeito, como é habitual um pouco por toda a África sub-Sahariana, poucas regras ou
or found the spaces and methods to sustain, sometimes even augment, their own social and economic
power outside the framework of the state’s moral order and its rules, the society comes to be
characterized by dispersed domination. Here, neither the state nor any other social force has established
an overarching hegemony; by any one social force takes place within an arena or even across a limited
number of arenas but does not encompass the society as a whole. Social life is then marked by struggles
or standoffs among social forces over questions ranging from personal and collective identity and the
saliency of symbols to property rights and the right to use force. People’s mattering maps remain
remarkably diverse in such a society”. Independentemente da forma como a “acomodação” for levada a
cabo, poderá uma comunidade política ser imaginada em tal cenário?
35
T.W. Bennett (1998): 16. A citação foi tirada de um estudo muito interessante (ainda que, infelizmente,
curto) sobre a constitucionalidade dos processos de reconhecimento de “autoridades tradicionais” na
Namíbia e África do Sul contemporâneas. Para uma leitura diferente, ver, por exemplo, M.O. Hinz
(1995), que defendeu a possibilidade de uma integração do que chama sistemas de legitimação
“tradicionais” e “democráticos”, desde que estes sejam colocados numa relação “não hierárquica”; tal
torna-se possível, segundo ele, através da definição cuidadosa dos limites do que são questões “públicas”
e “privadas”.

22
normas são habitualmente invocadas por “autoridades tradicionais” em nome daquilo a que
chamaríamos a regulação das funções administrativas que preenchem. Tanto ao nível normativo
burocrático, como ao nível constitucional ou jurídico – a mais leve das comparações demonstra-
o – da perspectiva da teoria democrática está patente em África um claro deficit de checks and
balances. Com o intuito de evitar o abandono do bebé na água da banheira, podemos,
evidentemente, insistir numa solução “constitucionalmente pluralista”, sendo-lhe adstrito um
“dever de cooperação” e um “dever de informar” acerca das diferentes regras de
reconhecimento. Será que, todavia, tal resulta num Estado? E se sim, será ele democrático36?
Até que ponto podem princípios democráticos ser “acomodados” sem que se transformem em
formas retóricas vazias37?
Deixando para trás o domínio constitucional, quero agora olhar brevemente a questões
mais propriamente jurídicas. Continuarei a ater-me a uma perspectiva “clássica”. Apenas um ou
dois exemplos são suficientes. O mesmo tipo de pontos que defendi relativamente a questões
constitucionais pode, evidentemente, ser levantado novamente como uma vaga generalização,
no que toca aos poderes judiciais “tradicionais” angolanos. Nas determinações enunciadas perto
das respectivas fronteiras jurisdicionais, bem como no plano processual e, claro está, no que
alude a multas e outras sanções, o funcionamento das “autoridades tradicionais” dificilmente é
compatibilizável com o que é possível que legalmente aceitemos. Podemos, aqui, aprofundar e,
analiticamente, esgravatar mais. Será realmente possível harmonizar noções “tradicionais” de
“propriedade” com as entretidas pelo Estado? E, se assim for, quais das várias noções em
evolução em Angola? Será algum modelo geral aplicável a todas? E como tratar o direito sobre
a vida e a morte, que muitos dos líderes “tradicionais” exercem sobre os seus subordinados? O
que significa “acomodação” em conjunturas como as existentes?
Questões constitucionais e jurídicas como estas não são, evidentemente, as únicas a ser
levantadas e podem nem sequer constituir as mais sérias de todas – a não ser para juristas de
convicções formalistas empedernidas. Questões político-pragmáticas, ligadas ao mundo real,
acrescem às anteriores. Não irei aprofundar o ponto, mas não quero perder a oportunidade de
retomar as intuições de Joel Migdal e de levar os seus comentários um pouco mais longe. Nesse
sentido, gostaria de começar por enfatizar o que Migdal escreveu acerca do reforço de regras
[the strengthening of rules]. Em primeiro lugar, note-se que um tal reforço funciona em ambos
os sentidos: por um lado, confere um quantas vezes urgente suplemento de força e legitimidade
aos “chefes”, enquanto, por outro, torna possível ao Estado alcançar áreas e povos que de outro

36
A “acomodação”, a meu ver, funciona bem em contextos como os da União Europeia contemporânea
ou na dimensão internacional mais ampla, na qual um State-building ostensivo e sistemático não faz parte
intrínseca das regras de jogo. Quando faz, acho desejável que se encontre aí uma solução. Como N’Gunu
Tiny (2007) muito bem nos mostrou, vai neste sentido o esforço tentativo que está a ser feito em Angola.
37
Pretendo tratar isto num registo teórico mais denso. O que afirmo, poder-se-á dizer, é que a
“democracia constitucional”, como Isaiah Berlin (1958) celebremente escreveu, é um modelo para
“institucionalizar conflitos”; ela implica conflito e luta, mesmo quando estes últimos são atenuados por
serem levados a cabo pela via de, por exemplo, o exercício de uma “livre expressão” sem restrições.
Como é bem conhecido, é neste ponto que radica o que Isaiah Berlin chamou “liberdade negativa”: aquela
que todos partilhamos como simples resultado das restrições constitucionais (ou outras) impostos ao
poder estatal e que ele contrastou com a “positiva”, que encarou como muitíssimo mais construtiva.
Obviamente, todavia, o facto de reconhecer que o constitucionalismo é um meio de institucionalização de
conflitos não permite, de forma alguma, a conclusão de que tenhamos como seu inevitável resultado uma
comunidade política na qual um Bem Comum (ou qualquer que seja o seu equivalente) seja, de facto,
procurado. Ás vezes as coisas funcionam desta forma, outras não – para uma excelente discussão teórica
sobre estas questões, ver o recente Zeev Sternhell, 2006: sobretudo nas pp. 516-528, que foca sobretudo o
“desconstruir” do que é encarado como a abordagem “reaccionária” de Berlin. Torna-se relativamente
fácil encontrar aqui um padrão: exercícios de “liberdade” entre agrupamentos sócio-políticos
radicalmente incompatíveis raramente criam “espaços públicos” nos quais “contratos sociais”, ou
“compactos” com algum conteúdo substancial, possam vir a ser desenvolvidos. Por regra, a ampliação de
comunidades políticas não é possível, a menos que emirja uma forma de “pluralismo constitucional”
mutualmente aceite; a União Europeia pode bem ser um exemplo disto. Todavia, a resultante não é
realmente um Estado, mas antes um novo formato para uma quase-comunidade política – um resultado
dificilmente compatível com aquele que está patente no actual blueprint pensado para Angola.

23
modo não este conseguiria atingir, e permite fazê-lo com um melhor nível de aceitação local –
ao que chamarei também legitimidade. De facto, o “domínio indirecto” [indirect rule] reforça
ambos os lados da equação de poder, indiferentemente da sua densidade normativa. Mas
também faz com que as suas fronteiras se tornem mais fluidas, e este é um ponto demasiadas
vezes olhado e tratado sem a devida atenção a detalhes e às suas implicações.
Angola oferece-nos, seguramente, um estupendo terreno de testes e uma magnífica
ilustração para que consigamos traçar os limites com que esbarram os modelos jurídicos e
políticos ocidentais canónicos tal como estes tendem a ser projectados pelas vontades políticas e
pelas forças cegas da globalização – e quando são expendidos esforços para uma transposição
sistemática dos mesmos. Em várias áreas, o exemplo angolano fornece-nos com um paradigma
diacrítico que muitas das limitações reais com que se confrontam tentativas de engenharia social
de larga escala. Pelo menos três traços distintivos da do caso angolano lhe atribuem esse
estatuto. Primeiro, a história recente do país – um território e o seu povo destruídos por uma
dolorosa guerra colonial de trinta e três anos urdida em três frentes distintas, seguida de quinze
extensos anos de combate entre facções que envolviam uma horrenda guerra civil que por seu
turno sobreviveram a doze anos que foram terríveis cicatrizes – maldições, para muitos wishful
thinkers, independentemente de quão devotas, ingénuas, bem intencionadas, ou messiânicas,
pudessem ser as suas intenções. O número oficial de meio milhão de mortos é provavelmente
uma subestimação grosseira. Dos dez ou doze milhões de angolanos de hoje, cinco milhões
vivem em Luanda e uns quatro [os números são de 2004] estão concentrados em campos de
refugiados semi-permanentes. A consequência é o que se pode ser esperar: dificilmente
qualquer estrutura social em Angola tem algo de puro, e muito menos intacto em qualquer
sentido.
Em segundo lugar, e isto não está desligado do meu primeiro traço, o pluralismo legal e
sociológico angolano é particularmente marcado; mais do que a incubadora de uma sociedade
civil emergente, Angola (na realidade um pouco menos do que um projecto político promissor)
apenas alberga uma colecção de sociedades civis bastante pequenas que se aglutinam, afinal,
apenas parcialmente, negativamente, ou em termos de uma coabitação que de forma constante
choca com a agonia de ter de lutar com dificuldades dificilmente superáveis. Pululam, em
Angola, formas híbridas de toda a espécie, sem qualquer profundidade comunicacional entre
elas que prometa poder ver-se intensificada.
Terceiro – e isto está de novo estreitamente ligado aos dois pontos que assinalei – o
modelo político regional e nacional angolano de facto – um sistema tão claramente “neo-
patrimonialista” quanto é possível existir – milita total e obviamente contra quaisquer soluções
claras, lineares, ou fáceis de integração limpa, do centro com níveis locais em constante
mudança; apesar do centro lhes estar ligado através de teias de superordenação-dependência, e
por vezes por o que com alguma boa vontade podemos ver como laços de fidelidade ou
lealdade. O espaço entre as elites em Angola (económicas e militares) e o mainstream urbano é
grande, e está a crescer. Além disso, tal panorama – em particular dada a presença de forças
armadas poderosíssimas – é dificilmente favorável à consolidação laços horizontais de qualquer
espécie entre os grupos locais. No cimo das diferenças sociais (por exemplo, as que separam as
populações urbanas das rurais) a resultante é um dualismo, uma linha divisória visível entre o
que podemos estar tentados a chamar “cidadãos angolanos” e “sujeitos locais” – para reformular
uma velha dicotomia, ou bifurcação, tornada famosa por Mahmood Mandani. As estruturas
sociais que restaram depois da guerra, e quaisquer referenciais dialógico-comunicacionais
mínimos, vivem um mau momento num tal ambiente38.
Quero aqui proceder a um alargamento de âmbitos, recontextualizando aquilo que tenho
vindo a defender e teorizando-o. Como tem sido muitas vezes notado, desde o início dos anos
noventa que a “comunidade internacional” insiste (tipicamente através das instituições de
Bretton Woods e das inúmeras novas comunidades doadoras que se têm vindo a estabelecer) em
mudanças de fundo, por forma a permitir uma verdadeira “descentralização” em África –
incluindo quase invariavelmente na noção a ideia de que alguma atenção (e um eventual
“reconhecimento”) devia ser concedida aos chefes locais. Os ecos comunitaristas neste tipo de
38
Para um estudo monográfico de precisamente isso, ver Armando Marques Guedes (2006), em que estes
pontos (e alguns mais) são enquadrados e discutidos.

24
discurso, são, acredito, prontamente audíveis. A Boa Governação e as agendas de
democratização, clama-se repetidamente, estão em larga medida dependentes de uma tal
“representação da comunidade”, o que assenta bem no clima neo-liberal que andou de mãos
dadas com a implosão da União Soviética. Tal como foi antes o caso na Europa, reza esta visão,
uma “devolução subsidiária do poder” – considerada no Velho Continente como sendo muito
benéfica para o desenvolvimento, responsabilidade, e o desejável sentimento de pertença – é
algo de que uma verdadeira democracia realmente precisa e exige.
Não é especialmente necessária uma aversão ao pensamento comunitarista para se
conseguir apontar algumas das fraquezas patentes em semelhantes narrativas; basta ter algum
senso ao comparar. O que, logo na primeira linha, parece realmente descabido em tais
esperanças é a avaliação positiva acrítica das potenciais implicações do impacto e das
consequências políticas de uma intrusão-embutimento das “autoridades tradicionais” em
quaisquer tentativas sérias e sinceras de um State-building e de uma nation-building eficazes em
África. Esta ausência é conjugada com um paralelismo hipotético e insuficientemente pensado
entre a experiência africana e a europeia. Parece-me difícil evitar admitir que aquilo que
aconteceu na Europa (tal como em África, o que ocorreu foi um desdobramento simultâneo de
uma desconcentração política e administrativa, e de um reconhecimento de entidades e
estruturas de poder local) só funcionou, em boa verdade, por causa da existência de um “léxico”
e de uma “gramática” sócio-cultural comuns nos alvos visados: os agrupamentos e territórios
que se pretendia controlar; quando tais “gramáticas” e “léxicos” não eram partilhados, o
processo não correu bem39.
Independentemente do que possamos desejar ou esperar, este tipo de considerandos
obriga-nos a tomar consciência do facto de que há, efectivamente, limites empíricos na eficácia
de quaisquer formatos de power-sharing, e aliás de quaisquer modalidades de “acomodação”
que possamos querer testar – ou, se se preferir, há que constatar que existem condicionalidades
implícitas. Partições de águas e acomodações, como processos desenhados para confluir num
projecto político conjunto, podem talvez ter algum sucesso quando ensaiadas em situações de
alteridade radical, ou no contexto do que James Tully apelidou de formas de agonistic pluralism
– no sentido em que se trata de conjunturas marcadas por “irreducible disagreements”40.
Podemos, de facto, afirmar, com N´gunu Tiny 41, que Constituições são, na sua própria essência,
dispositivos precisamente criados para dar conta este tipo de coisas; podemos também
hipotetizar que por as inevitáveis tensões emergentes se verão resolvidas pelos esforços
conjuntos de transferências do onde para o como nas resoluções de conflitos, ou nas mediações
que teremos inevitavelmente de empreender – e que tudo isto será eventualmente tornado
possível através da aplicação judiciosa de meios de princípios como aqueles que N. Tiny
chamou the duty of cooperation, e the duty of informed divergence. Mas note-se que, mesmo
com uma receita como esta, uma solução hierárquica é sempre em última análise pressuposta e
seguida: quaisquer soluções só se tornam possíveis se tiver lugar um traçar prévio de fronteiras,
se forem desenhadas “linhas na areia” que garantam o sacrifício, por subalternização de uma das
parcelas, daquilo que o Estado considere irreconciliável para que uma comunidade política
abrangente possa prevalecer.
O ponto em que estou a querer insistir é o seguinte: em muitos casos, a intensidade do
qui pro quo necessário para uma solução efectiva atingida por meios deste género é tal que o
resultado nunca logra ser realmente democrático bum qualquer sentido útil, independentemente
de quão democrático o processo que utilizemos para chegar aos “pontos de equilíbrio” que
logremos atingir. Angola é disso um bom exemplo. Nas condições densas do pluralismo de alta

39
Com efeito, onde os traços comuns eram mais ténues, um pouco como nos Balcãs, ou, num ângulo mais
aberto, entre a Europa do Norte e a do Sul, o projecto de comunidade política vacilou. Mesmo quando
formas limitadas de reconhecimento estiveram envolvidas, as linhas com as quais esta se desenhou eram
tais que o resultado final esteve longe de edificar um sistema. No que a qualquer tipo de convivência
participativa “contratual” dizia respeito, o resultado final foi de certa forma uma espécie de separação
incómoda, vivida lado a lado com declarações de intenção residuais.
40
J. Tully (2000 e 2002). Para uma discussão interessante, facilmente aplicável ao caso angolano, ver
Emilios Chistodoulidis (2003).
41
N´gunu Tiny (2007)., op. cit.

25
intensidade existente em Angola, a exequibilidade da gestão de “conflitos de leis e princípios”
depende largamente de uma definição de numerosíssimos padrões mínimos com que os
subsistemas presentes têm de se conformar para serem capazes de se integrar num sistema
generalizado – seja contratualmente, seja de qualquer outra forma.
Estará alguma coisa deste género a acontecer em Angola? Cabe ainda outra pergunta:
fora da retórica instrumental nacionalista, e a grande postura central reconhecidamente
“democrática”, por uma vez, tendo atenção aos agrupamentos locais, haverá realmente um
espaço público angolano partilhado ao largo, e haverá realmente uma comunidade política
abrangente imaginada em Angola que abranja tudo o que é necessário para a emergência de um
tal espaço42? Nada é menos certo. Em Angola, certamente como em muitos outros lugares, tal
significa que o Estado tem de ser a entidade que traça a “line in the sand” decisiva. Em todo o
caso, consequências democráticas e modernas só resultarão se os padrões utilizados para a
edificação desse espaço comum partilhado aderirem aos minima modernos e democráticos.
Presumir uma conversão democrática do Estado angolano – uma proposição menos do que
óbvia – não é fácil de imaginar, mas nem sequer é uma questão necessariamente conclusiva.
Para que essa conversão ocorra e produza eficácia, o Estado tem certamente de ser capaz de usar
tanto a força como várias doses de soft power: tem de impor limites para o que considera
aceitável e tem de agir por dentro, por assim dizer, por forma a levar a carta a Garcia. Por outras
palavras, o Estado, para ser eficaz nessas mudanças tectónicas de fundo, tem de actuam com
robustez através do sistema de educação, por exemplo, por forma a tentar chegar, num longo-
médio prazo, às várias convergências que são imprescindíveis para o estabelecimento de
numerosos referenciais de comunicação que, eventualmente, possam tornar possível a
construção de uma verdadeira comunidade política – e, inevitavelmente, uma comunidade muito
intensamente multicultural43.

42
Como em muito do resto de África, as elites políticas parecem em Angola estar totalmente
inconscientes de tais assuntos. Para uma discussão comparativa detalhada e compreensível dos Leitmotivs
governamentais africanos no processo contemporâneo de “descentralização”, ver, por exemplo, Catherine
Boone (2003). Segundo Boone (op. cit. 355 e 377-380), as variações actuais que podemos detectar em
África devem ser indexadas ao equilíbrio instável que é alcançado entre as capacidades e os interesses das
populações locais, por um lado e, por outro, os dos “notáveis rurais” nos quais as elites do Estado
decidam investir as suas esperanças. São estes interesses e não quaisquer “ideais”, argumenta Boone, que
“formam as estratégias de institution building que os governos escolhem tentando entrincheirar o seu
poder”. Para uma equação paralela francófona de precisamente este tipo de problemas – em particular do
que chamaram as “leurres indigenisantes” – e dos riscos, para as elites, destas estratégias de recurso ao
legados dos poderes do Estado e no que diz respeito à legitimidade local dos Estados africanos, é útil ler o
curto mas muito rico artigo de Étienne Le Roy (1997).
43
A “Angola-Projecto” apenas o faz (na medida em que está de facto a avançar) dada a óbvia vontade do
Estado angolano em usar da violência para garantir as suas oportunidades de sucesso. Para tornar o meu
ponto o mais claro e inequívoco possível: é muito bonito esgrimir a noção de que “irredutibilidades”
podem ser “acomodadas” num pluralismo ao nível constitucional, desde que os “princípios fundamentais”
das várias partes não estejam comprometidos. Mas e quando (como é muitas vezes o caso de Angola,
como as minhas quatro histórias mostram) a irredutibilidade acontece precisamente ao nível dos
princípios fundamentais? Para casos como este, estou em crer que é necessária uma perspectivação
diacrónica; independentemente de nos permitir uma visão dinâmica das coisas, só esse tipo de perspectiva
toma em boa conta a dimensão temporal existente, e apenas ela nos permite compreender que é apenas
por intermédio de uma convergência progressiva que as irredutibilidades ao nível dos princípios
fundamentais podem ser “ultrapassadas”. Apesar de, em boa verdade, o que se alcança através de tais
operações diacrónicas não ser em boa verdade uma harmonização, mas antes uma redução do “direito
tradicional” para o do Estado – ou vice-versa. Esta via envolve processos genéricos de (re-)educação e
imposição, como os teóricos da nation-building defenderam durante muitos anos ser inevitável. Por outras
palavras, em tais processos a violência e a persuasão tornaram-se ingredientes indissociável da acção
estatal, sempre que, no processo de State-building, o pluralismo se torna não-banal; ou, por outras
palavras ainda, se o nosso objectivo for o de erguer um Estado, a junção de formas de hard e soft power é
inevitável, caso estejamos perante um tipo de pluralismo de alta intensidade.

26
OS LIMITES E RISCOS DE UMA ACOMODAÇÂO PLURALISTA NÃO-SELECTIVA

Recuando um pouco, gostaria, para terminar, de regressar a questões de acomodação


pluralista, abordando-as desta vez de cima para baixo e de modo diacrónico. Sejamos realistas:
para um pais como Angola no qual, desde 2002, o Governo passou a poder atingir todos os seus
nacionais, em qualquer lugar do que em que eles estivessem, tal significou que o Estado se
dispersou – e que, portanto, na realidade, passou a não chegar a ninguém, nem que fosse por
razões “logísticas”, a não ser aquelas que acontecesse encontrarem-se na sua imediata
vizinhança, ou em situações de prioridade extrema. Daí a urgência do recurso pelo Estado
angolano, em finais dos anos 90, a formas de indirect rule Tratou-se e trata-se ainda,
certamente, de um caso no qual os mecanismos de “domínio indirecto” permitem, de facto, que
o Estado alcance recantos do território e do povo sob sua governação – gentes e lugares que de
outro modo seriam inalcançáveis.. O “domínio indirecto” amplia, de facto, as capacidades
estatais ao nível do reconhecimento local num sentido burkeano, ou hartiano, no qual, por assim
dizer, amplifica a sua legitimidade por alargamento. Do mesmo modo, os mecanismos de
“domínio indirecto” oferecem também aos chefes locais um suplemento de força e de
legitimidade; e, o seu poder de facto acaba, efectivamente, por lhes dar uma maior influência e
algum “reconhecimento” local e regional.
A perspectivação que tenho vindo a assumir é, contudo, demasiado estática e linear.
Tanto o Estado como os actores sociais locais têm agendas político-sociais nítidas e
constantemente agem sobre elas: seria, por conseguinte, imprudente descontar as implicações
disso a médio e longo-prazo. Como vimos, Cipriano Kaningi, o muito amigável “Rei” de Sambo
e um todo-poderoso soma inene local, viu-se cooptado como membro de pleno direito do
Comité Central do MPLA, o partido hegemónico no poder em Luanda. Não foi, de forma
alguma, o único a ter essa possibilidade; muitos outros houve. Tal como no período colonial
tardio, está hoje implantada em Angola uma autêntica via de dois sentidos: da perspectiva dos
chefes locais, ou dos notáveis, aquilo que do ponto de vista dos governantes é desejado como
conduta para o exercício do poder local, tende a ser vislumbrado como pouco mais do que uma
“escadaria de acesso” ao próprio aparelho governamental, um meio de penetrar profundamente,
por dentro, o centro44.

44
A História mostra-nos que, no que respeita a África, não há nada realmente novo no que a isto diz
respeito. É verdade que, em muitos casos históricos, o Estado impõe as suas próprias regras e vontade.
Mas num sentido bastante forte, a relação foi construída passo a passo, como resultado errático das
interacções e das motivações activas das partes na relação local-centro e local-local. Para estes e outros
pontos relacionados, ver Martin Chanock (1985), op. cit., Mahmood Mamdani (1996), op.cit., e L. Benton
(2002), op.cit. A compilação clássica de tais assuntos é, evidentemente, a de (ed) A. Allot (1971). Claro
está que o pluralismo jurídico, enquanto envolver um sistema de tipo central e estatal de tipo ocidental,
não foi, de forma alguma, um mecanismo desenhado com intencionalidade política pelos poderes
existentes em Africa, quer tenham estes sido portugueses, britânicos, franceses, alemães, italianos ou
espanhóis; resulta, pelo contrário, de um “encontro” em que os africanos não foram somente parte
passiva. Esta percepção histórica é ainda hoje útil se pretendermos compreender as elites angolanas e a
recolonização do hinterland do território. A hibridação então, como hoje, era a norma, e as fronteiras
difusas, muitas vezes esbatidas – as relações hierárquicas de subordinação e superordinação legal e
política eram abertas e negociadas em áreas bastante concretas. Não é difícil cartografá-lo: a capacidade
local para acção pró-activa desenrolou-se sobre ambiguidades jurisdicionais, não raras vezes mobilizadas
pelos sistemas estatais, e nalguns casos insistia em estatutos autónomos e semi-autónomos; em muitos
outros casos os locais positivamente e forçosamente decidiram utilizar as normatividades coloniais,
simplesmente porque, na sua perspectiva, fazê-lo era contextualmente mais conveniente. Para uma visão
geral das questões teórico-metodológicas suscitadas pelo pluralismo, ver Joel Moret-Bailly (2002). Para
constatar uma interactividade essa em África, é suficiente o escrutínio das várias mecânicas das
independências africanas, aTerceira Vaga de “transições democráticas”, ou as frequentes tomadas de
poder hostis das estruturas estatais por notáveis islâmicos, marabouts e outros, na Senegâmbia – o que
começou como um expediente político de cooptação, levado a cabo com a finalidade de aumentar o poder
do Estado por dentro, através do uso das “power conduits” existentes, muitas vezes termina com o
esvaziamento, por dentro, dos Estados “modernos”.

27
Não deve, contudo, ser surpresa a constatação de que tantos dos intelectuais angolanos
mais vanguardistas e “modernizantes”45 reagem com veemência à nova movimentação
constitucional pragmática (alguns dirão oportunista) levada a cabo pelo Estado angolano em
formação com vista à integração dos líderes locais no processo de State-building em que está
embrenhado. Como analistas não nos devemos deixar ser levados por significados implícitos.
Quando ouvimos uma expressão como “autoridades tradicionais”, o que nos vem à cabeça são
imagens de líderes de comunidades locais imersos numa das formas de poder que Max Weber
qualificou de forma eloquente – neste caso “lideranças carismáticas”, em grupos sociais nos
quais a religião e a política se entrecruzam livremente e onde o poder e as relações de afinidade
largamente se sobrepõem. Quando permitimos que tais significados implícitos se esgueirem
sub-repticiamente nas nossas representações dos factos, tendemos a descurar a evidência de que
as autoridades tradicionais não são um termo inventado por cientistas sociais weberianos, mas
sim uma expressão cunhada por políticos nacionalistas africanos 46.
A ansiedade sentida não é nova, sendo até bastante compreensível num território tão
extenso, vítima de uma tão profunda disseminação demográfica, se vê na contingência de abrir a
senda para que a volatilidade, provinda da guerra e da modernização, e que marca a definição da
identidade dos grupos, tudo isto viabilizado pelas características de fraqueza Estado já
implantado. No caso angolano, muito disto é evidente desde meados do século XX, no período
colonial tardio, nomeadamente no conjunto de medidas tomadas para fazer face à revogação do
famoso (ou infame, se se preferir) Estatuto do Indigenato. Julgo que as lições que daqui
poderemos extrair são bastante edificantes. O Estato do Indigenato, que, segundo linhas
mamdanianas, inequivocamente estabeleceu um dualismo societal nas colónias portuguesas, foi
revogado em 1961, pelo Decreto-Lei 43.893, de 6 de Setembro. Com a sua abolição – pelo
menos de acordo com a letra da lei – todos os habitantes se tornaram cidadãos iguais, sob a
mesma regra. Evidentemente pouco mudou na prática. Talvez mais interessante para o nosso
propósito seja o facto de que Angola se tenha tornado uma excepção parcial, por Decreto
posterior publicado nesse mesmo dia (o Decreto-Lei 43.896, também de 6 de Setembro). O
próprio texto deste Decreto é interessante. Nele é dito que em Angola “não era necessário dar
forma e expressão a certas formas de institucionalismo local, que se podem articular elas
próprias, com um respeito manifesto pela tradição e hábitos das populações”. Em termos
práticos e programáticos – e num característico “para-burkeanismo-juridês” marcado por uma
curiosa indirecção negativa assumida em matizes positivas, o discreto segundo Decreto de 1961
estipulava que as comunidades locais deveriam organizar os seus próprios interesses segundo
procedimentos e instituições tradicionais. Com a intenção evidente de garantir uma parte
efectiva de controlo estatal – ao invés de qualquer espécie de devolução, e talvez em
45
Existem bastantes casos, de facto: Maria da Conceição Neto (2002 e 2002ª) e Fernando Pacheco (2002),
são apenas dois exemplos.
46
A expressão, no seu conjunto, constitui uma fórmula brilhante de propaganda política. O termo
“tradicionais” não se refere a um exercício de poder passé ou intemporal, talvez de certa forma estranho,
ou até benevolente, mas antes a uma evidente tentativa de legitimação histórica de um presente (e futuro)
desejado, alegando indirectamente que os poderes das pessoas em questão não estão contaminados pelo
colonialismo, mas que são “puros” (originariamente primitivos). Mutatis mutandis, o mesmo poderia ser
dito acerca das “autoridades”: o termo evoca ecos de que estaríamos na presença de formato de poder
soft, incontestado. É, contudo, na realidade, um inteligente double entendre: a tónica é antes colocada na
indicação de entidades que agem em nome do poder estatal. Tomada como um todo, a expressão
“autoridades tradicionais” é tudo menos técnica, no sentido de neutral. Parece ter antes uma intenção
instrumental, ao regredir paradoxalmente para o futuro com uma nostalgia messiânica. A escutar a frase
“autoridades tradicionais”, muitas vezes ouvimos “liderança carismática”; mas esta última expressão é
mais adequada a “agentes assépticos” – aponta para uma aceitação obediente da transformação, e
certamente não é entendida como construída com o intuito de despertar reacções combativas que levem a
uma mudança; A própria frase “autoridades tradicionais”, quero insistir, é parte e parcela de um
mecanismo de controlo social. Um mecanismo que pode facilmente ser virado contra si próprio, como
tem sido muitas vezes o caso em África. O que os líderes governamentais angolanos estão a fazer, quando
usam a expressão, não é “recognition” ou “accomodation”. Estão, pelo contrário, indirectamente a
afirmar a ascensão hierárquica do Estado central “moderno” sobre formas de “pré-Estado”, de ou “poder
local”, para usar a sua própria terminologia constitucional.

28
reconhecimento da elevada intensidade do seu pluralismo, tanto jurídico como sociológico, e a
disseminação das entidades que a compõem – Angola foi tomada como um caso especial, onde
algum dualismo sobreviveu, Interessantemente, como anteriormente notado, nos tempos da
colonização portuguesa tal tendia a ser emparelhado com o proviso evolucionista de que os
indígenas poderiam optar pela lei portuguesa, se o desejassem, mas que assim que o fizessem se
tornariam, irreversivelmente “assimilados” e portanto “civilizados”.
A primeira sugestão que decorre da recontextualização mais teórica e comparativa que
enunciei parece ser a de que, apesar de sob um novo disfarce, o processo tem ultimamente vindo
a conquistar um novo alento – agora pós-colonial – em Angola. A bifurcação está de volta. As
provisões administrativas revistas, distinguindo as áreas urbanas das rurais do hinterland e as
que se transmutaram em autarquias, dão-lhe corpo. Não é, porém, tudo igual ao que foi: trata-se
de um dualismo escondido pela obliquidade e falta de direcção de um reconhecimento formal,
agora sob roupagens “tradicionais” e “fraternais”, tão características dos modelos africanos de
“pluralismo real”. Recolocar as coisas em perspectiva é sempre útil. É verdade que um
simulacro público de “africanização” tem, de há alguns anos a esta parte, tido lugar em Angola.
A morte de Jonas Savimbi e o fim da longa Guerra Civil que se seguiu aos desaparecimento da
UNITA militar, aceleraram o processo. Durante esse tempo esse simulacro enxertou-se nos
projectos de poder dos líderes do Estado angolanos. Tornou-se, de alguma forma, vulnerável ao
escopo (sempre em mudança) dos poderes estatais, abalou a implementação de novas e velhas
políticas públicas, e, sobretudo, reformulou a alçada das elites na sociedade. A “africanização”,
se não a redefiniu, foi pelo menos reconfigurada pela nova relação Estado-sociedade, e ao fazê-
lo alterou-se o equilíbrio de poderes entre os dois. Tornou-se numa ideologia de eleição para os
líderes estatais, facto não raro em Estados pós-coloniais fracos que de outra maneira não
possuiriam ferramentas ideológicas fortes e gozariam apenas, por isso, de uma hegemonia
precária sobre a sociedade. Neste sentido limitado e superficial, a “Africanização” está, de facto,
a tornar-se numa nova fase na vida do Estado angolano pós-colonial.
No fim de contas, a coreografia de “africanização” angolana não tem sido tanto uma
reinvenção do Estado, tem sido mais um instrumento desenhado para permitir que ele se
alcandore acima das limitações com que depara; como tal, não deve ser sobrestimada. As
dimensões culturais dos gestos de africanização são reais, embora o seu impacto nas
instituições, lei, e políticas públicas, não coalesçam ao ponto de criar um novo Estado a partir de
novas premissas. Pelo contrário, o Estado angolano durante esta sua fase “africanização” tem-se
mantido como sempre foi, apesar de agora disfarçado numa democracia de feição
“autenticamente africana”. Tal como a partir de 1961, é difícil ver como o futuro afectará esta
charada – barrando uma sempre possível ruptura político-militar radical (interna, externa ou
compósita). Os notáveis locais serão provavelmente cooptados para o sistema que lhes inventou
lugares de primazia. Decerto que, a longo prazo, o Estado pós-colonial em Angola emergirá
desta provação contemporânea, desta “africanização”, ostentando, perfeitamente intactos, o seu
desenho institucional anterior, a sua habitual estrutura de poder, e a sua visão venerável do
papel que preenche face à sociedade. Pela via da globalização e das forças centrípetas a que ela
dá corpo, não parece implausível que algumas pressões “africanizantes” se venham a fazer
sentir em Angola. Mas isso ocorrerá através de um processo silencioso. O que estamos de
momento a ver desenrolar constitui, apesar de o fazer em circunstâncias diferentes, um
fascinante replay em fast forward das estratégias coloniais tardias, em resposta a problemas
concretos que vão surgindo no quadro do processo de construção do Estado.
Uma vez mais, o risco – e o risco é sério – é o de estarmos a assistir, na Angola pós-
colonial, ao desencadear de uma bifurcação – a criação de “cidadãos” por um lado e, por outro,
de “súbditos”. De novo e tal como foi antes o caso na época colonial tardia, a finalidade tácita
do poder central é a gestação progressiva de uma regra de reconhecimento uniforme e
homogeneamente partilhada, numa pan-Angola unificada. Mesmo que isso se venha a revelar
possível, sê-lo-á decerto apenas no final de um processo lento. Dois planos, a duas velocidades:
State-building oblige.

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