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Aula 8 - Roma e o direito.

a) A tradição jurídica e a identidade da cultura ocidental.

O direito é, ao lado da filosofia, a linguagem que com mais sucesso foi trasladada
e maior influência exerceu na história do Ocidente posterior ao período que chamamos
de “antiguidade”. Podemos dizer que a Europa só é herdeira da antiguidade clássica em
um sentido que realmente importa quanto à filosofia e ao direito. Não fosse por eles, o
que hoje conhecemos por Europa Moderna – e nós, América, com ela – seria ainda a
portadora de peças desconexas da tradição da civilização do mediterrâneo mas, incapaz
de integrá-los em instituições eficazes, seria já outra civilização. É a estes dois discursos
que ela deve o fato de que ela seja uma continuação da antiguidade e também sua
singularidade perante as outras grandes civilizações mundiais.

b) A recepção da tradição jurídica comparada à recepção da tradição literária.

Para se ter clareza quanto à importância da tradição jurídica para a tradição


intelectual européia, basta compará-la com a recepção da tradição literária. A recepção da
tradição literária, pela qual os humanistas do Renascimento tanto se congratulavam, e em
nome da qual tanto menosprezavam com bárbaros seus antecessores medievais, foi um
processo muito mais incompleto que a do direito e da filosofia. A poesia épica e a poesia
trágica eram demasiadamente políticos (no sentido de dependentes da instituição da pólis)
para sobreviverem depois de seu desaparecimento como outra coisa que não literatura.
As encenações de Édipo Rei do século XV, as primeiras de que se tem notícia desde a
antiguidade, não são mais podem ser consideradas um exemplo de poesia trágica, embora
o texto seja quase o mesmo. Já a filosofia, exatamente por não ser dependente do ambiente
específico da pólis (entre outras razões por que a escola filosófica foi concebida como
uma síntese dela, capaz de existência independente), pôde ser trasladada para outros
ambientes, com outras formas de organização do poder, outras religiões, outros idiomas
sem se desconfigurar.
Por mais que um historicismo dogmático possa querer diferente, as tragédias
modernas não são mais tragédias e não podem ser compreendidas como uma continuação
do antigo gênero. A translatio neste caso, é muito mais virtual que real. A academia
platônica de Florença, por outro lado, pode e deve ser considerada uma continuação da
antiga Academia. Nem uma nem outro gênero permanecem na mesma forma original,
mas as diferenças entre as diferentes versões da filosofia são acidentais enquanto as que
existem entre as diferentes versões do teatro são essenciais.
A razão da maior capacidade de persistência da prática filosófica está no tipo de
hábito sobre o qual ela está fundada. Ambas, a poesia e a filosofia, são operações mentais
que se seguem se certos hábitos da percepção. Mas os hábitos de percepção sobre os que
se funda a segunda são mais internalizados, o que quer dizer, mais intelectuais, que os
hábitos de que dependem a primeira; e, portanto, menos dependentes do contexto social
original. É difícil atingir a disposição de espírito necessária para se purificar e aterrorizar
com uma peça trágica sem ser um ateniense do século V. c C. Estes efeitos dependem da
adesão a costumes coletivos tácitos – entre estes o costume de levar a sério certos ritos e
tomar certas histórias como reais – aos quais é difícil fazer seu sem uma longa
experiência. O mesmo não se poderia dizer de um diálogo platônico, para seguir a lógica
do qual dependemos muito menos de hábitos da sensibilidade e mais de hábitos da
inteligência.
Como a filosofia, o direito sobreviveu de maneira alterada mas não
desconfigurada ao desaparecimento do sistema institucional que lhe deu origem, a saber,
a república romana. Como os diálogos de Platão e as notas de aula de Aristóteles, as leis
do digesto e as exposições de Gaio são apreensíveis de um modo que a tragédia e o épico
não mais fazem. O direito ocidental, medieval e moderno, é ainda o direito romano.
Apesar das não pequenas diferenças – quem poderia negá-las – existe entre ambos uma
relação de continuidade que não existe, por exemplo, no teatro e na poesia.
Não é, note-se, que tenhamos um direito inspirado no direito romano, mais ou
menos como Os Lusíadas são inspirados em Virgílio. Que simplesmente tenhamos um
direito, em si mesmo atesta o caráter consumado da herança dos antigos nesta área.
Devemos lembrar que o direito romano não é um direito entre outros, como as vezes o
uso impróprio do vocábulo nos faz pensar. Só existe direito romano. E quando falamos
em direito grego ou hebraico, estamos usando de analogia. Nenhum destes sistemas de
regulação social é propriamente direito pois indiscerníveis de outros gêneros de discurso,
como a retórica ou a teologia. A autonomia do discurso racional a respeito “do que cabe
a cada um” é uma criação singular do gênio romano, assim como a tragédia é uma criação
singular do gênio ateniense.

c) Continuidade e descontinuidade na história do direito.


O que nos leva a perguntar: qual a fórmula desta continuidade? Se, tanto quanto a
da filosofia, a persistência histórica do discurso jurídico é um fato que merece ser
afirmado contra um historicismo dogmático, trata-se de uma persistência talvez mais
difícil de explicar. Não é, na verdade, difícil aceitar, a continuidade do empreendimento
filosófico. Mesmo para o historicista mais empedernido é difícil livrar-se do silogismo de
que se as questões de tratam os filósofos modernos são as mesmas de que tratam os
antigos (entre estes, seus continuadores “medievais”); e estas não possuem equivalentes
em tradições não marcadas pela herança grega, alguma continuidade deve existir, embora
não se saiba exatamente em que nível. Além disso, o próprio fato de que uma escola
filosófica nunca é mais que um pequeno círculo de pessoas inserido em uma sociedade
mais ampla, torna mais plausível a ideia da continuidade subterrânea de uma prática, por
sob grandes e inegáveis descontinuidades institucionais.
Nada disso se dá com a tradição jurídica. Em primeiro lugar esta possui análogos
funcionais em outras civilizações. Não existe ordem política de certa complexidade sem
um discurso regulador capaz de invocar os poderes do estado. Mesmo que nenhum destes
seja de fato, um direito, sua função é a mesma. O mesmo não se poderia dizer das escolas
filosóficas, cujo ensino e relação com o poder político é característico do ocidente.
Segundo, ao contrário do que ocorre com a tradição filosófica, a tradição jurídica não se
manifesta principalmente como um hábito mental pessoal mas também um habito
coletivo das instituições. Ora, é inegável que não existe uma continuidade nesse plano.
Quem poderia afirmar que o império medieval é uma continuidade do Império Romano
em outra coisa a não ser no nome? E se é assim, como se poderia falar em uma
continuidade de fato? Não seria mais apropriado dizer que o direito moderno, tal como o
drama moderno, vale-se dos termos, das figuras de pensamento do direito antigo sendo,
porém, outra coisa?
Aqui, mais importante que a resposta, é seu fundamento. A resposta a esta questão
depende da resposta a outra: o que é o direito? Do ponto de vista da moderna concepção
do direito (que não é obra de juristas mas de filósofos, é bom lembrar) a resposta é
negativa. Isto é: não existe continuidade histórica pois o direito, de acordo com esta
concepção, manifesta-se, principalmente, na legislação. Ora a lei é, precisamente, o
aspecto da realidade jurídica que mais profundamente modificou-se com a passagem do
tempo, como não poderia deixar de ser. Além de se manifestar principalmente na forma
da lei, o direito, tal como os filósofos modernos o concebem, expressa o poder do estado.
É possível discutir qual poder é legítimo ou ilegítimo mas não que o direito seja uma
legislação que expressa uma potestas. Esta é a concepção que está patente ou latente em
toda a filosofia política moderna desde Hobbes.
Nada mais distinto da concepção antiga para a qual o direito não manifesta-se nas
leis e éditos emitidos pelos magistrados mas nas soluções achadas graças a certa maneira
de pensar pelos juristas, aos quais as leis servem de instrumento. Para os antigos, o direito,
o jus, é um fenômeno natural, uma certa relação de equilíbrio entre os patrimônios de
duas partes, a qual por não ser sempre clara (embora o seja na maioria das vezes) pode
dar causa a disputas, para a solução das quais convida-se um arbitro que também é um
perito: o jurisprudente. Cabe a este descobrir este equilíbrio para as partes, com a ajuda
mas não com fundamento na lei. Esta não existe para ser cegamente cumprida. A vontade
da lei não importa a não ser que leve ao desvelamento do jus no caso concreto. Caso não
sirva, deve ser ignorada pelo jurista encarregado de opinar sobre o caso. Nada mais
absurdo, de acordo com esta maneira de ver as coisas, que a ideia hobbesiana de que o
direito é a expressão do poder político. Este não é legítimo ou ilegítimo mas justo ou
injusto.
De acordo com esta concepção a resposta é a pergunta sobre a continuidade
histórica do direito é positiva, embora com ressalvas que não existem no caso da tradição
filosófica. Tanto quanto esta última, o direito é um repertório de hábitos mentais cuja
incorporação independe de uma longa experiência sensível, o que torna o seu translado
entre culturas distintas uma operação mais eficaz que a de gêneros literários. As leis, é
verdade, mudaram mas o raciocínio, isto é, o hábito mental, que fundamenta as decisões
permanece muito semelhante, como se pode ver, aliás, pelo próprio modo como é
estruturado o processo, que imita a dialética antiga. Por outro lado, ao contrário do que
ocorre com a filosofia, os hábitos mentais próprios da tradição jurídica são próprios de
um segmento social específico, os juristas. Para que o ofício de jurista exista, não basta
que certas pessoas saibam pensar como tais. Elas precisam, também, ter condições de ser
ouvidas, para que suas soluções possam circular entre as instituições. Esta última
necessidade não existe para a tradição filosófica.
Assim, é possível afirmar que no caso do direito como no da filosofia, estamos
diante de continuidades históricas reais, distintas da continuidade virtual da tradição
literária. Porém, a continuidade do direito depende de uma condição política, a autoridade
dos juristas, de que a da filosofia não depende. É possível afirmar que esta existiu até o
século XIX e existe até hoje de forma inercial. Afinal, basta uma simples olhada pelo
vocabulário do pensamento político moderno oriundo da Revolução Francesa, para
encontrar a forma mentis jurídica, que pensa em “contratos”, ‘direitos”, “propriedade”,
Estados, Constituições, etc. A política moderna é ainda pensada em termos de direito.
Porém, com a ascensão, de um lado, da autoridade dos cientistas, por outro, dos ideólogos
(que são os cientistas sociais: economistas, linguistas, sociólogos etc) a partir do século
XIX e durante todo o século XX esta autoridade está em vias de ser substituída.

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