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José Mattoso

Fragtnentos
de utna Cotnposição
Medieval

EDITORIAL ESTAMPA
1993
FICHA TÉCNICA:
Capa: José Antunes
Ilustração: Afonso Henriques, estátua procedente da Igreja de Santa Maria da Alcáçova
de Santarém. Fotografia de A. Sequeira.
1.• edição: Setembro de 1987.
Depósito Legal n~ 68231/93
ISBN 972-33-0909-2
Impressão e Acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.
Copyright: © José João da Conceição Gonçalves Mattoso
© Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1987
para a língua portuguesa
6. O FEUDALISMO PORTUGUÊS (*)

Tratar do feudalismo em Portugal, nesta Academia, para tentar di-


zer alguma coisa de novo é, devo reconhecê-lo, uma grande temeridade.
Como se sabe, foi considerado, praticamente por todos os medievalis-
tas portugueses desde Herculano, como não tendo existido entre nós.
Ora eu atrevo-me a dizer o contrário. Com não pequenas atenuantes,
como se verá, mas, de toda a maneira, o contrário. Não por espírito po-
lémico, que não tenho, nem por prurido de novidade, que é mau conse-
lheiro, mas porque me parece que o conceito é indispensável. A sua uti-
lização permite coordenar melhor, do que negando-o, os dados que ca-
racterizam as estruturas mentais, políticas, sociais c económicas da nos-
sa Idade Média. Permite também relacioná-las melhor, em termos de
identidade ou de diferença, com as correspondentes estruturas euro-
peias da mesma época.
Devo começar por prestar a minha homenagem aos autores que me
precederam no tratamento deste tema, e cuja competência, erudição e
perspicácia não posso deixar de admirar. Quero-me referir, além de
Herculano, que já mencionei, a Gama Barros, a Paulo Merêa, a Marce-
lo Caetano e ao nosso confrade, felizmente ainda vivo, o Professor
Torquato de Sousa Soares. As suas contribuições foram, naturalmente,
da maior importância para desbravar um terreno difícil e para delimitar
melhor em que condições e de que pontos de vista podemos falar de um
feudalismo português. Apontam, desde logo, para não poucas reservas
importantes à minha afirmação que, a meu ver, não esvaziam, mas con-
tribuem para precisar.
Não me parece necessário começar por discutir uma a uma as posi-
ções dos Autores que ponho em causa, porque tenciono fazer uma ex-

(*) Conferência pronunciada na Academia Portuguesa de História em 19 de Julho de


1985.

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posição de carácter conceptual. Parece-me preferível expor o tema em si
mesmo. Aquilo em que me distancio dos meus predecessores ficará, por
isso mesmo, evidente e poderá ser objecto de debates posteriores, mas
que me parecem deslocados neste momento.
Como é de regra em questões deste género, tenho, antes de mais, de
definir palavras e conceitos. Que é, afinal, o feudalismo? Pergunta já
mil vezes feita e mil vezes respondida, mas à qual nem sempre corres-
pondem noções precisas. Creio que a disparidade das soluções propos-
tas deriva de geralmente se não distinguirem os campos a que a noção se
aplica, isto é de saber se falamos de questões institucionais bem precisas
ou de um sistema de civilização com manifestações muito variadas nos
diversos níveis da vida humana. Não que estes dois níveis sejam inde-
pendentes entre si. Mas porque só temos o direito estrito de falar de feu-
dalismo quando as suas formas peculiares de vida derivam directa ou
indirectamente das instituições feudais e se baseiam no mesmo espírito
de que elas resultam. Temos, portanto, de partir da noção institucional,
para ver até que ponto ela impregna os outros níveis.
De facto, o feudalismo institucional ou estrito baseia-se numa for-
ma peculiar de relações humanas, ou seja, no acordo contratual entre
dois homens livres para efeitos de exercício do poder ou de autoridade
jurisdicional. A sua peculiaridade resulta também da relação assimétri-
ca entre eles, quer dizer, se nesse contrato se partir do princípio que um
tem maior poder ou autoridade do que o outro. Daí resulta a protecção
que o primeiro assegura ao segundo e a fidelidade que este deve àquele.
Para garantir o cumprimento dos respectivos deveres e direitos, o con-
trato é normalmente selado por um juramento a que se chama homena-
gem, embora esta possa, em alguns casos e países, ser apenas tácita ou
implícita. Convém precisar que as tentativas para definir com grande ri-
gor os direitos e deveres dos contraentes, como tendem a fazer os auto-
res imbuídos de um certo jurisdicismo, se arriscam a criar falsos proble-
mas. Pelo contrário, a consideração em termos morais ou ideológicos é
geralmente mais fecunda.
Deve-se notar também que este tipo de contratos produz modalida-
des e situações extremamente diversas. Por isso, convém não considerar
uma determinada solução institucional, como seja a do feudalismo
francês, como o protótipo a partir do qual se definiriam os outros, co-
mo um modelo teórico, abstracto, que serviria para analisar todas as
variantes e modalidades. Assim, as características próprias de determi-
nados tipos históricos não se devem considerar como deturpações ou re-
sultados de influências alheias, mas como concretizações cujas peculia-
ridades derivam do seu desenvolvimento próprio dentro da lógica de
determinadas condições materiais e mentais. Por isso os autores actuais
tendem a distinguir um feudalismo próprio do centro e norte da Euro-
pa, diferente do que vigorou nas regiões mediterrânicas. Dentro destes
dois grandes tipos podem-se ainda distinguir várias espécies.
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De facto, as modalidades podem ser muito diversas. Assim, se o
feudo ou benefício é, nuns lugares, quase sempre, uma terra, noutros
pode ser uma função, como o governo de uma circunscrição territorial,
ou honor, com o respectivo rendimento material, ou o domínio fundiá-
rio que lhe está adscrito (também chamado honor). Mas pode também
ser uma compensação periódica em bens móveis, como panos ou di-
nheiro. É o que acontece com as confias dadas em Portugal. Se numas
regiões a hereditariedade do feudo é de regra, noutras mantém-se com
maior vigor a precaridade quer do vínculo real (estabelecido pelo bene-
fício), quer do vínculo pessoal, ou seja do dever da fidelidade. Se em
certos países se soleniza cuidadosamente o juramento feudal, em rituais
pormenorizados e de acentuada forma sagrada, noutros a homenagem
consiste num gesto quase anódino como o beija-mão, ou pode até ser
puramente implícito. Se aqui o contrato tende a materializar-se num
documento escrito, ali só excepcionalmente deixa de ser um acordo
oral. Se nos países do Norte se chega a criar um minucioso código feu-
dal, de carácter jurídico, onde se prevê~m cuidadosamente em que con-
dições se Yào exigir de parte a parte deveres ou direitos, nos países do
Sul tudo é muito mais vago, e o que prevalece é um certo consenso so-
cial, um simples sistema de valores morais que impõem uma prática ex-
tremamente fluida e variável. Enfim, se em algumas zonas as institui-
ções feudais conduzem à criação de uma armadura que tende a modelar
e hierarquizar as relações entre os diversos poderes políticos, na chama-
da «pirâmide feudal», noutras nunca chega a estabelecer-se nenhuma
rede coerente e lógica. E no entanto, apesar desta diversidade, o concei-
to de contrato feudal é indispensável e a sua influência sobre toda a vida
humana, universal.
Abrirei um breve parêntesis para observar que estes factos se podem
observar da maneira mais evidente ao ler a monumental obra de Hilda
Grassotti publicada em 1968, acerca das instituições feudo-vassálicas
nos reinos de Leão e Castela, cujas conclusões em termos institucionais
creio se podem aplicar ao caso português, com algumas variantes relati-
vamente secundárias. Esta discípula de Sánchez Albornoz completa as
investigações do grande mestre, que, não se pode esquecer, se dedicou
neste domínio a dois grandes problemas específicos: as instituições da
época visigótica a que ele chama pré-feudais e as derivadas do benefício
ou encomendação que antecedem e envolvem o caso peculiar das bee-
trias e que, por isso mesmo, se incluem naquilo que se deve considerar
propriamente o regime senhorial, como explicarei mais adiante. Não
posso deixar de lamentar que a obra de Hilda Grassotti, tão esclarece-
dora, seja muito pouco conhecida entre nós e não tenha suscitado qual-
quer reacção notória por parte dos autores portugueses que seguem as
teorias de Herculano.
Dizia mais acima que era necessário distinguir os campos institucio-
nal e civilizacional. Comecei pelo primeiro, para tentar definir a noção

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de contrato feudal e apontar brevemente a enorme variedade das suas
modalidades concretas. Afirmei também que só se pode chamar feudal
a uma civilização na medida em que as instituições feudais, isto é, aque-
las que se baseiam no contrato vassálico, determinam formas globais
das relações económicas, políticas, sociais e mentais. Veremos agora
como se estabelece esta articulação.
Estou persuadido, com efeito, que a importância do contrato vassá-
lico resulta de ele constituir, para os homens da Idade Média portugue-
sa e europeia, um verdadeiro modelo das relações sociais e particular-
mente daquelas em que se estabelecem toda a espécie de compromissos
entre detentores do poder e aqueles que com eles de alguma maneira co-
laboram. Este carácter exemplar advém-lhe de se considerar o exercício
do poder, seja de que espécie for, como uma prerrogativa pessoal,
quando não como um carisma intransmissível ou hereditário; e em se-
gundo lugar, de as relações sociais se estruturarem igualmente a partir
de relações pessoais. cuja maior ou menor solenidade e estabilidade se
sela por meio do juramento que as sacraliza.
Assim, todas as relações pessoais assimétricas, entre detentores de
poderes desiguais, tendem a imaginar-se a partir deste modelo. Por
exemplo, as que unem o senhor de um domínio com os seus cultivado-
res; ou um chefe militar e os cavaleiros do seu séquito; ou o abade de
um mosteiro e os leigos que se acolhem à sua protecção; ou o papa e os
reis que com ele estabelecem um pacto; e até as relações que unem o
santo patrono aos fiéis que frequentam a sua igreja.
Tão certo isto é que o vocabulário feudal, de origem técnica, institu-
cional, impregna a vida quotidiana. Criado para designar aspectos do
contrato propriamente dito, rapidamente se aplica a toda a espécie de
situações, o que, obviamente, incomoda os historiadores do Direito,
desconcertados por um vocabulário impreciso, fluido e cujos termos se
usam para as situações mais diversas. Em termos mentais, no entanto,
não há análise mais elucidativa do que o exame da evolução e do campo
semântico de termos hoje muito correntes. Sirvam de exemplo manter
ou pertencer, que derivam do verbo ter de ou ter da mão de enquanto
designa a concessão feudal; ou então recomendar e encomendar, não
menos correntes, e derivadas de comenda, enquanto concessão ou dele-
gação de poderes; ou mesino uma palavra que aos nossos ouvidos já só
evoca ressonâncias sentimentais, como amor, e que em muitos contex-
tos, incluindo as cantigas de amor e de amigo, tem conotações expressa-
mente feudais. A lista é grande e significativa. Limito-me a apontar es-
tes exemplos, porque trato da questão num artigo que será publicado
em breve, e que seria demasiado fastidioso resumir aqui.
Neste caso, como é evidente, já não estamos no domínio das insti-
tuições, mas no da mentalidade. De facto, como mostrou Georges Du-
by, o feudalismo não é apenas uma questão de instituições mas uma
forma de ver e de pensar a realidade, particularmente nos seus aspectos

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sociais. Mas a mentalidade está longe de ser qualquer coisa de vago ou
arbitrário. Baseia-se numa hierarquia de valores, em conceitos estrutu-
rais e em esquemas e mecanismos que orientam os comportamentos co-
lectivos. Ora, quando as relações sociais supõem um modelo preciso,
como é o contrato feudal e, com base nele, atribuem uma importância
tão grande aos valores do serviço, da protecção e da fidelidade, não ve-
jo outra possibilidade senão recorrer à noção de feudalismo para defi-
nir a civilização no seu conjunto.
Assim, mesmo quando vários aspectos da realidade desmentem o
modelo, isto é, quando a rede de relações pessoais comummente estabe-
lecida pelos contactos feudais propriamente ditos é ténue, pouco coe-
rente, fragmentária ou fluida, como de facto acontece em Portugal, a
referência lá está, apesar de tudo, constantemente presente. Para ela se
apela explicitamente ou se supõe implicitamente como aquilo que pode
estruturar a sociedade, impor a ordem, trazer a coerência, ditar as pre-
cedências, orientar as opiniões. Afonso X e os seus trovadores conta-
vam com isso ao censurarem asperamente os traidores dos castelos que
quebraram a homenagem a Sancho II durante a guerra civil de 1245 a
1248. João Soares Coelho também, ao atribuir ao seu antepassado Egas
Moniz as virtudes máximas do vassalo capaz de sacrificar a vida pelo
seu senhor. O conde D. Pedro igualmente, ao propor aos leitores do
seu Nobiliário o ideal do amor que é para ele sinónimo de solidariedade
feudal. De maneira ainda mais interiorizada, não são outros os valores
e concepções subjacentes à maioria das cantigas de amor e de amigo, ou
dos cronistas quando contam as suas «estórias» de fidelidade e de trai-
ção. Devo reconhecer, é verdade, que o código da fidelidade é mais ex-
plícito no século XIII do que no anterior. Todavia esta evolução resulta
justamente de uma extensão de relações de solidariedade entre os se-
nhores e os cavaleiros dos seus séquitos, que no século XII têm um ca-
rácter mais militar e depois são contaminadas pelos ideais da cortesia.
Passamos, porém, a campos distintos quando transitamos para o ní-
vel político do poder régio ou o nível económico das relações sociais de
produção. São os dois problemas que temos de examinar agora. Um
preocupou, evidentemente, os nossos historiadores do Direito. O outro
tornou-se o ponto de fixação dos autores marxistas. Em ambos os casos
se usa o adjectivo «feudal» para designar instituições próprias da Idade
Média. Penso no entanto que nem as formas peculiares do exercício do
poder régio nem as das relações sociais de produção derivam própria e
directamente do feudalismo, tal como o defini. Só enquanto, num e
noutro caso, o poder régio e o poder senhorial implicam relações sociais
assimétricas é que são contaminados pelas concepções vassálicas. Mas
em si mesmos derivam de concepções do poder que não implicam neces-
sariamente modelos contratuais. Quero-me referir àquilo que vários au-
tores designam como privatização do poder. Ou seja, uma forma de o
exercer e transmitir que conf\lnde por completo e de maneira insepará-

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vel o público e o privado, ao contrário do que acontece no Império Ro-
mano e na época moderna. Ao aplicar-lhe o adjectivo «feudal», porém,
os historiadores esvaziam-no muitas vezes do seu sentido próprio: de-
signam a época e não a natureza. Vejamos, porém, cada um destes ní-
veis separadamente - o político e o econórnico -, mesmo com os ris-
cos de introduzir distinções artificiais numa realidade que escapa cons-
tantemente às definições lógicas .e racionais do nosso tempo.
Em primeiro lugar, o político. O que caracteriza a monarquia cha-
mada impropriamente «feudal» é, corno disse, a apropriação pessoal
do poder ao contrário do que acontece nos regimes políticos em que a
autoridade depende da função e não da pessoa. Nem por isso o poder
régio da época feudal deixa de ser um poder superior. Implica urna es-
pecial responsabilidade de assegurar a paz e a justiça, num âmbito vasto
e acima dos senhores, ainda quando, na prática, essa responsabilidade é
puramente teórica ou ideal. Os que falam na autoridade do rei, mesmo
os escribas da chancelaria, não têm urna noção clara da sua especifici-
dade. Consideram-na mais corno urna autoridade superlativa do que de
natureza diferente da dos senhores. Esperam do rei que ele a exerça co-
rno um carisma, que não corresponde automaticamente à função, mas é
transmitido aos chefes de determinada família ou se manifesta de ma-
neira eminente em casos pessoais, corno é, por exemplo, o de Afonso
Henriques. Neste caso, corno em tantos outros, as concepções jurídicas
não podem exprimir com exactidão as concepções habituais anteriores
ao fim do século XII.
Estas noções não têm em si mesmo nada que ver com as formas pe-
culiares de relacionamento e solidariedade social derivadas do contrato
vassálico. Mas é evidente que, enquanto o rei, corno todos os detentores
de poder, o exerce com ajuda de auxiliares, com os quais estabelecere-
lações pessoais, não pode, então, deixar de as estruturar segundo o mo-
delo feudal, aí sim, no sentido pleno da palavra. De facto, em Portugal,
corno noutros países, o rei é o maior e mais poderoso dos senhores,
aquele que tem mais vassalos, o que os nobres tornam corno modelo e
exemplo. Por outro lado, não há dúvida que, na Península Ibérica, co-
rno têm salientado todos os medievalistas hispânicos, a superioridade
do rei se mantém mais claramente do que noutros lugares e se preserva,
até certo ponto, urna certa noção de poder público. Estes factores no
entanto coexistem com o carácter feudal que o rei imprime às relações
com os seus delegados, corno os tenentes das terras, a que ele chama os
seus ricos-homens, os alcaides dos castelos que lhe prestam homenagem
explícita, os vassalos da corte a que chama os seus cavaleiros, os senho-
res que ele recompensa com contias para os poder convocar de maneira
especial, ou mesmo os cavaleiros vilãos que, por terem de préstarno ter-
ras chamadas cavalarias, servem igualmente na guerra a título pessoal.
Em todos estes casos, e não são poucos nem excepcionais, se pode dizer
que o rei de Portugal molda a sua autoridade em termos feudais.

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A superioridade que se reconhece à figura do rei também não exclui
uma real e efectiva fragmentação do poder público nos séculos XI a
XIII, sob a forma que chamarei «senhorial>> e que queria agora expor.
Passo assim directamente à segunda questão a que me referi há pouco e
que está relacionada com as posições marxistas acerca do chamado
«modo de produção feudal».
Convém aqui, mais do que em qualquer outra matéria, evitar as po-
sições polémicas, que viriam deturpar a análise dos problemas. Quero
com isto afastar a imagem de um rei impotente perante os senhores que
o ameaçam ou desprezam, e que repugna em geral aos nossos historia-
dores do Direito. Quero também afastar a imagem panfletária dos se-
nhores que passam o tempo a esmagar os camponeses com as suas exi-
gências, brutalidades e abusos. Fraquezas, violências e excessos, houve-
-os sempre. Não há regime social ou económico que consiga evitá-los,
ou que sirva só para os justificar. E no entanto fazer disto a história sig-
nifica apenas exprimir posições ideológicas, obviamente legítimas, mas
cuja utilização deturpante do passado não posso deixar de considerar
abusiva.
Afastados, portanto, os fantasmas que alimentam tais polémicas,
tentemos ver o que de facto estrutura a sociedade medieval. Com a ób-
via mas nem sempre usada precaução de não ver a Idade Média como
um todo. De facto, os séculos XI e XII são muito diferentes dos dois
seguintes. Não é legítimo aplicar àqueles a imagem que se colhe da mo-
narquia dionisina ou fernandina. Também não é defensável fazer re-
cuar ao tempo de Afonso Henriques a teoria política criada por Afon-
so X, o Sábio, nem sequer explicar as ambiguidades dos séculos obscu-
ros pelas clarezas dos Jus commune.
Munidos, pois, de todas estas advertências, teremos, então, de reco-
nhecer que a autoridade régia, mesmo superior, não contestava o exer-
cício de poderes a que hoje chamamos estatais por parte de senhores no-
bres e eclesiásticos e ou por parte dos concelhos. Até meados do sé-
culo XIII, nem sequer se apresenta a si mesma como a fonte ou a ins-
tância responsável pelo controle e coordenação de tais poderes. Os ho-
mens da Idade Média estavam longe de pensar segundo a lógica e a ca-
pacidade de abstracção que hoje usamos. Concebiam as prerrogativas
judiciais, militares e fiscais dentro dos territórios que os senhores domi-
navam como poderes próprios, transmissíveis aos descendentes e não
condicionados. Os detentores das honras haviam perdido completa-
mente a noção de que o direito de julgar, policiar ou exigir tributos nes-
sas honras derivasse do poder régio. A tal ponto que se consideravam
pessoalmente ofendidos se nelas entrava o meirinho régio ou o juiz do
julgado, e não hesitavam em os matar, cegar ou mutilar se eles a tal se
atreviam. Do seu lado, o rei respeitava normalmente este direito.
Limitou-se, desde Afonso Il, a pôr um obstáculo à sua usurpação das
terras reguengas; com Afonso IH, e mesmo este em casos excepcionais
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como aconteceu no cauto do bispo do Porto, a reivindicar o direito de
suprir os defeitos da justiça dos juízes locais; e com D. Dinis a exercer o
direito de perseguir dentro dos territórios imunes, os criminosos que
caíam sob a alçada dos juízes régios. A prerrogativa, de facto exercida
frequentamente pelos reis, de julgar os senhores, quer por infracções à
fidelidade, em virtude dos princípios feudais, quer como árbitros nas
questões que os opunham entre si, não foi normalmente invocada antes
do século XIV para intervir ou contestar a aplicação da justiça nos cau-
tos e nas honras. A própria distinção entre justiça cível e crime ou justi-
ça de sangue só surge na época de Afonso IV.
Deve-se observar, porém, que o reconhecimento das prerrogativas
que os senhores exercem nos territórios imunes das honras e dos cautos
não significa automaticamente a confusão com um )!loder propriamente
político, e que não são frequentes revoltas armadas de senhores contra
o rei, ao contrário do que tantas vezes acontece em Castela. Este facto
não resulta, no entanto, de uma estrutura diferente, mas de não se te-
rem chegado a constituir entre nós grandes casas senhoriais, compará-
veis, por exemplo, às dos Laras, dos Haras ou dos Castras, à de
D. João Manuel ou às de vários dos outros infantes da mesma época.
Passemos, finalmente, aos problemas mais relacionados com o nível
económico, que tanto interessam aos autores marxistas e do qual, se-
gundo eles, derivam as próprias instituições feudais. Não discutirei este
problema. Direi apenas que não se podem confundir as articulações
reais com as mentais. Ou seja, as instituições feudais, como de resto to-
das as outras da época medieval, poderão derivar, em termos estrutu-
rais, de uma determinada forma de organizar a produção (usando, nes-
te caso, conceitos fortemente abstractos), mas a linguagem que as defi-
ne pode organizar-se segundo uma hierarquia inversa.
Por outro lado, convém também observar que os medievalistas ata-
cados pelos autores marxistas não negaram, em geral, que entre nós vi-
gorasse um determinado tipo de relações sociais de produção. Apenas
lhes davam outro nome. De facto sempre admitiram que essas relações
se concretizavam por meio de exacções como a manaria, a carraria, a
anúduva, a ramada, as osas, as jeiras e tantas outras corveias, ou seja,
pelas prestações características do regime senhorial.
O que me parece, porém, duvidoso é que as relações sociais de produ-
ção ou o regime senhorial denvem propriamente do contrato feudo-
-vassálico. Com efeito, as relações entre senhores e dependentes que tais
exacções concretizam não resultam de vinculas contratuais, mas da sim-
ples privatização do poder, que, como creio ter mostrado, é um fenó-
meno de natureza diferente. Em termos muito esquemáticos, diria que
o feudalismo propriamente dito estrutura a classe nobre (digamos, para
simplificar, a classe dominante), criando as formas peculiares da sua
solidariedade e hierarquia. O regime senhorial, pelo contrário, regula as
rclaçôes entre classes sociais diferentes. Um une membros da mesma

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classe, o outro opõe membros de classes diferentes. Por isso, são rela-
ções de natureza diferente. A ·aplicação das noções de carácter contra-
tual às relações entre senhores e dependentes é puramente ilusória. E se,
como tenho de reconhecer, alastra também sobre elas a terminologia
propriamente feudal, isto resulta apenas de a ideologia da época, criada
para inculcar nos vassalos atitudes de submissão e de fidelidade, se apli-
car também, com a mesma intenção, aos dependentes dos domínios ru-
rais e dos cautos urbanos sujeitos a senhorio. É, pois, um problema de
linguagem e não de estrutura o que faz chamar aos camponeses do do-
mínio vassalos, às concessões agrárias, préstamos, aos proprietários de
um domínio, senhores, ao juramento de submissão da gente dos conce-
lhos, homenagem, e assim sucessivamente. Também não creio que os
poderes de mandar, supostos pelas referidas exacções se justifiquem
principalmente, e em última análise, por delegação baseada em contra-
tos feudais, mas em virtude das noções que levam a confundir a autori-
dade pública com a privada.
Estas noções parecem-me suficientes para justificar a minha opinião
acerca do que eu chamo o feudalismo português. Como é evidente, só
pude explicar noções gerais e a sua lógica, dentro das perspectivas me-
dievais. Seria agora necessário passar ao concreto e exemplificar com
pormenores e referências documentais aquilo que acabo de afirmar.
Como creio ter feito esta demonstração num livro que acaba de ser pu-
blicado, para ele remeto os meus ouvintes desejosos de obterem infor-
mações detalhadas. Não poderia descer a tais pormenores sem prolon-
gar desmesuradamente estas palavras. De resto trata-se, como é eviden-
te, de uma questão complexa, e, em muitos pontos, discutível. Se a mi-
nha exposição serviu para reabrir um debate que me parece necessário,
já me consideraria muito satisfeito. O que posso explicar nesta última
sessão do corrente ano académico, é o desejo de ver as questões aqui le-
vantadas discutidas de novo nesta Academia, depois de os meus ilustres
confrades poderem meditar no que tentei aqui explicar. Há ainda muita
coisa por esclarecer. Creio ser a Academia da História o lugar onde a
discussão científica desta natureza deveria ter o seu quadro mais ade-
quado e mais exigente.

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7. SOBRE O PROBLEMA DO FEUDALISMO
EM PORTUGAL (*)
(RESPOSTA A ROBERT DURA NO)

A delicada simpatia e a amizade que há muito devo a Robert Du-


rand levaram-no a enviar-me o texto do seu comentário crítico ao meu
pequeno livro Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros, antes de o publi-
car nesta Revista. Tenho assim a ocasião de apresentar de seguida as
minhas respostas, para os leitores poderem fazer acerca dele um juízo
adequado. É claro que não posso deixar de começar por lhe agradecer o
ensejo que me dá de poder esclarecer algumas ideias que terão porven-
tura ficado pouco claras numa obra destinada à divulgação. Convida-
-me também a exprimir a minha opinião acerca das suas afirmações,
com as quais, na verdade, não concordo inteiramente.
Começarei por explicar que não tomei de modo tão ligeiro como is-
so a decisão de naquele livro não fundamentar a minha ideia de ter exis-
tido feudalismo em Portugal. Depois de a questão ter sido longamente
debatida por Herculano, Gama Barros, Paulo Merêa e Armando Cas-
tro, entre outros, não podia discutir o problema e apresentar sobre ele
uma interpretação bem diferente, sem para isso desenvolver uma de-
monstração cuidadosa, com as devidas referências e um verdadeiro ri-
gor técnico. Ora este tipo de argumentação ficaria obviamente desloca-
do naquele livro. Sempre tencionei tratar da questão em termos científi-
cos, e é isso o que farei noutro livro de características diferentes e já en-
trado no prelo (1). Agrada-me poder contar desde já com a concordân-
cia do meu estimado interlocutor, pelo menos nos pontos que ele expli-
cita no seu artigo.
Devo dizer, em seguida, que não posso aceitar alguns dos pressupos-
tos apontados por ele como base das suas interpretações. A minha no-
ção de modelo é, na verdade, bem diferente. Para mim não é o descrito

(*) Publicado in Revista Portuguesa de História, tomo XXI. I 984, pp. 13-19.
(1) Identificação de um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325).

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por Ganshof, Boutruche ou qualquer outro, muito menos o feudalismo
francês, mas um modelo teórico, a priori, resultante da própria função,
desempenhada pelos seus diversos elementos nos planos político, social
e económico. Este considero-o rigorosamente indispensável, por duas
razões: primeiro, porque só assim se pode averiguar o sentido dos me-
canismos pressupostos pelas relações materiais e mentais dentro do cor-
po social; segundo, porque só por comparação com o modelo teórico se
podem apreender as variantes reais numa situação histórica concreta.
O modelo é, de facto, o ponto de referência, o fio condutor na análise
dos vestígios deixados pela documentação, e aquilo que permite atribuir
funções específicas aos dados aí encontrados.
Em nome deste princípio, não posso deixar de atribuir uma diferen-
ça estrutural aos mecanismos de natureza senhorial, por comparação
com os de natureza feudal. De facto aqueles não se baseiam em nenhu-
ma espécie de contrato: são o resultado da apropriação de poderes espe-
cíficos, que pela sua natureza fundamental se devem classificar como
públicos e de origem extra-económica, mas com a possibilidade de se
usarem para fins privados, isto é, para fins económicos e para a manu-
tenção da superioridade da classe dominante, em termos de relações so-
ciais de produção. É evidente que, quando os autores marxistas falam
de «modo de produção feudal», se referem principalmente a este tipo
de relações, desprezando normalmente as outras. Estas, as feudais, pelo
contrário, baseiam-se em relações contratuais, estabelecem-se entre ho-
mens livres, implicam a reciprocidade. A sua função não consiste em
assegurar a posição alcançada pela classe dominante, mas em criar la-
ços de solidariedade dentro dela, de modo a distribuir hierarquicamente
os poderes e a estruturar a colaboração dos seus componentes entre si.
Esta distinção é por um lado negada, por outro aceite, pelo meu in-
terlocutor. Negada, quando recusa a pertinência da noção de «senho-
rialização», e quando considera automaticamente definida uma socie-
dade «feudal» desde que se estabelecem poderes senhoriais. Aceite,
quando atribui a uns função essencial e a outros secundária: «la féoda-
lité, c'est-à-dire cet ensemble de liens ... qui constituent la texture du tis-
su social aristocratique, n'est qu'une des composantes, pas nécessaire-
ment essentielle, des sociétés»; e ainda quando distingue as obrigações
decorrentes da sujeição «natural» das de natureza contratual. Na mi-
nha opinião, trata-se de uma distinção fundamental porque, enquanto
que as estruturas senhoriais são fundamentalmente idênticas em todo o
Ocidente medieval, as feudais variam muito de região para região.
Além disso, a lógica que preside ao funcionamento destas não resulta
apenas e directamente daquelas, mas de componentes mais variadas.
Em segundo lugar, parece-me necessário também distinguir com ri-
gor o feudalismo institucional, codificável, jurídico, tal como o definiu
recentemente R. Fossier, no passo citado por R. D., da mentalidade
feudal, igualmente definida com a suficiente clareza, mas por G. Duby,
126
também citado pelo meu interlocutor. Não sei, porém, se ele tira desta
distinção as necessárias consequências. Não é pelo facto de averiguar-
mos a fluidez, a debilidade ou a incoerência do primeiro, tal como ele se
revela em Portugal quando se encara deste ponto de vista, que podemos
negar a importância determinante do segundo ou a necessidade de o de-
finir com rigor. De facto, a frase de Boutruche citada por Fossier, «il
n'y a pas de féodalité» (p. 952) não passa de uma «boutade» ou de um
paradoxo. Tomá-la à letra, equivaleria a proclamar o absurdo. Foi o
que fez certa historiografia vulgar portuguesa que insistiu em difundir o
princípio da não existência do feudalismo, pela mão de autores que, das
obras especializadas, só leram os títulos. Proclamá-lo fora do contexto,
equivale a tornar absurda a parte de verdade nele contida.
Referindo-me agora a problemas específicos, lamento ter de classifi-
car de apriorística e sem fundamento a argumentação de R. D. ao con-
testar a pertinência da obra de H. Grassotti, como base ou termo de
comparação para averiguar a existência entre nós de instituições seme-
lhantes às que vigoraram em Leão e Castela. Corresponde isso a ignorar
que ela conhece como ninguém e analisa com impecável rigor a docu-
mentação galega Uá que a ela se refere expressamente R. D.), sem se li-
mitar, de modo algum, a utilizar frases isoladas da Historia Composte-
lana, como ele insinua. Conheço poucas obras com uma fundamenta-
ção documental tão abundante e tão rigorosa como a dela. O aproveita-
mento do imenso material que ela fornece, e no qual não faltam dados
referentes a Portugal, é constantemente facilitado pela meticulosa loca-
lização e datação dos textos; estes são interpretados sempre com os ne-
cessários cuidados e distinções. A recente tese doutoral de Isabel Pérez
de Tudela sobre infanções e cavaleiros (z), pretendendo de certo modo
contestá-la, não fez mais do que carrear novos argumentos para as suas
interpretações. A afirmação de R. D. ·parece-me tão injusta que creio
poder convidá-lo a reler H. Grassotti com mais atenção.
É claro que adiro da melhor vontade ao princípio de que as diversas
regiões da Península se comportam de maneira diferente, o que põe em
causa as generalizações. Creio ter dado bastantes provas de que não es-
queço facilmente tal princípio, tanto em Ricos-Homens como noutros
trabalhos meus. Ele não me faz esquecer também, por outro lado, uma
constatação não menos verdadeira, isto é, que as instituições senhoriais
e políticas portuguesas da época em causa se assemelham de facto, na
sua generalidade, às castelhano-leonesas (de que trata H. Grassotti). Is-
to é tanto verdade que nenhum medievalista português ignora que a
parte do compêndio de L. G. de Valdeavellano que descreve as institui-
ções desta zona da Península constitui uma iniciação mais útil e mais
correcta à história institucional portuguesa do que, por exemplo, a obra
( 2 ) Infazones y caballeros. Su proyección en la esfera nobiliaria castellano-leonesa
(siglos IX-XI). Madrid, Facultad de Geografia e Historia, Univ. Complutense, 1979.

127
de Gama Barros. É evidente que não diria o mesmo da zona navarra,
aragonesa, catalã ou valenciana.
É também claro que esta semelhança global não dispensa uma de-
monstração de que se podem interpretar no mesmo sentido os dados
fornecidos pela nossa documentação. Foi o que não pude fazer com o
necessário rigor, dado o carácter do meu livro, mas espero fique sufi-
cientemente esclarecido com a publicação do outro a que já aludi.
A dúvida acerca da pertinência do quadro traçado por aquela auto-
ra para Leão e Castela destinava-se, na opinião de R. D., a pôr em cau-
sa a hipótese por mim levantada, de terem existido vínculos vassálicos
em Portugal nos séculos X e XI. Seria necessário, pergunta ele, recorrer
a ela, para explicar a ascensão dos infanções de Entre-Douro e Minha e
a sua obtenção de poderes senhoriais? Aqui, porém, encontro nas pala-
vras de R. D. um equívoco com duas ou três vertentes.
Em primeiro lugar, o meu interlocutor refere-se várias vezes ao aces-
so de várias famílias ou mesmo «d'une nouvelle strate sociale» à nobre-
za. Ora eu não me lembro de ter dito em parte alguma que os infanções
vinham de uma classe social não nobre. Aquilo de que se trata é de·sa-
ber como eles adquiriram poderes senhoriais, e não como passaram a
outra classe social. Em segundo lugar, creio não ter generalizado a hi-
pótese de haver um possível vínculo pessoal entre alguns deles e os con-
des e de estes lhes terem talvez atribuído poderes especiais em virtude
das zonas onde os teriam colocado. Admiti-o apenas no caso dos senho-
res da Maia, Riba Douro, Paiva, Sousa e Bragança, estabelecidos perto
das margens do Douro numa época em que elas sofriam ataques muçul-
manos. Em terceiro lugar, não duvido que os magnates, pelo menos,
possuíssem os seus séquitos armados e que existissem vínculos pessoais
entre eles e os seus membros, que até meados ou fins do século XI se de-
signam por infanções. Não duvido que o significado deste termo seja,
até esta altura, diferente do que veio a adquirir depois, ao desaparecer a
característica da pertença a um grupo armado e a relação pessoal com o
respectivo magnate. Se estas relações são verdadeiramente vassálicas,
ou apenas a prefiguração delas, é coisa discutível. Mas acho perfeita-
mente verosímil que os condes e magnates muitas vezes os compensas-
sem com terras ou lhes confiassem funções delegadas. Por último
R. Durand escorrega do plano da vassalidade para o dos direitos senho-
riais. Depois de ter admitido a apropriação de poderes judiciais e milita-
res por parte dos senhores de categoria inferior, trata de minimizar o
facto, ao afirmar que a sua independência para com o soberano era
«discreta», que só no século XII se assiste a um progresso mais nítido
do poder senhorial, e que este movimento é, até ao segundo quartel do
século XIII, controlado pelos soberanos. Afirmações que creio total-
mente infundadas. Na minha opinião, pelo contrário, os poderes se-
nhoriais da nobreza local estão perfeitamente estabelecidos no princípio
do século XII. Os próprios soberanos colaboram na sua generalização
128
ao multiplicarem as cartas de couto, cuja maior quantidade é dada até
1150. Estas concessões supõem que o sistema já estava profundamente
implantado. A intervenção dos reis e a limitação dos poderes- mas so-
bretudo o esforço para paralisar a sua extensão espacial (não a natureza
nem mesmo a arbitrariedade dos poderes) é um movimento iniciado em
Portugal, como toda a gente sabe, com Afonso 11, posto em causa com
Sancho 11 e depois retomado por Afonso 111. Se a plenitude dos pode-
res senhoriais fez brotar rapidamente práticas feudais é uma outra ques-
tão. Mas que o rei e pelo menos· alguns grandes senhores na segunda
metade do século XII tinham os seus vassalos, os compensavam com
benefícios fundiários, rendas e funções, e que se começava a praticar a
homenagem (1) é, creio eu, questão segura. Duvido, no entanto, de que
estas práticas se possam relacionar directamente ou predominantemen-
te com a difusão dos poderes senhoriais.
A argumentação de R. D. baseia-se, portanto, num equívoco, gene-
raliza uma hipótese que eu circunscrevi rigorosamente, utiliza argumen-
tos que só posso classificar de erróneos.
O artigo de R. Durand mereceria ainda um comentário acerca da
ideia de que sem homenagem não existe verdadeiro compromisso vassá-
lico. Este problema, no entanto, é mais escorregadio. Prefiro remeter
os leitores interessados para a obra que em breve publicarei e à qual já
aludi. De resto o próprio R. D. não parece estar totalmente seguro de
que o juramento fosse indispensável para a entrada em vassalagem.
Finalmente, não é o facto de haver cavaleiros que prestam serviço
militar em virtude da sujeição «natural» e outros em virtude de obriga-
ção contratual que torna o feudalismo português de contornos indeci-
sos. A «indecisão» vem-lhe de outros factores. Aqui, a distinção é cla-
ra: os primeiros, se não prestam o serviço militar efectivo, pagam a fos-
sadeira. Os segundos não só estão dispensados dela, mas são dotados de
préstamos claramente definidos como «cavalarias».
Seja como for, não posso deixar de agradecer ao meu querido amigo
R. Durand as amáveis palavras com que se refere aos aspectos do meu
pequeno livro que mereceram a sua concordância. Volto ainda a agra-
decer-lhe os seus comentários. De facto, sempre lamentei a falta de dis-
cussão científica de que enferma o nosso país, mesmo quando surgem
obras inovadoras. É às vezes preciso esperar dezenas de anos para ver
surgir as primeiras contestações. Os resultados adquiridos, frequente-

(3) A afirmação de R. Durand de que não se encontram menções da prestação da ho-


menagem antes de 1237 não é correcta. Veja-se o tratado de Sancho I com Fernando II de
Leão em 1194, onde se fala expressamente da homenagem dos tenentes de castelos (DS
74), assim como a concórdia entre Sancho II e as infantas suas tias, em 1223, com refe-
rências análogas. Mesmo no primeiro testamento de Sancho I, de 1188, se fala do ius et
hominium do rei que lhe suceder (DS 30), o que pressupõe também, provavelmente, que
já se praticasse a homenagem dos alcaides e vassalos.

129
mente à custa de imensos e penosos esforços, caem no meio de um pesa-
do silêncio. Foi também para romper com este hábito desencorajante
que quis responder ao meu contestador parcial. Espero assim ter desfei-
to alguns equívocos, explicado algumas afirmações porventura obscu-
ras e aberto caminhos para o aprofundamento de questões na verdade
bem controversas.

130
8. FEUDALISMO E HISTÓRIA
DAS INSTITUIÇÕES (*)

Só agora, decorridos mais de dois anos sobre o seu aparecimento,


tenho a possibilidade de comentar, embora de maneira bastante parcial,
a História das Instituições. Época Medieval e Moderna, de António
Manuel Hespanha (1), texto do curso que deu na Faculdade de Direiro
de Lisboa durante alguns anos. Pretendi fazê-lo logo que apareceu, da-
da a importância que me pareceu ter no panorama actual da historio-
grafia portuguesa, mas só agora me foi possível.
Constitui, não há dúvida, uma contribuição decisiva para a renova-
ção da História jurídica em Portugal. Torna acessível a um público vas-
to um manual de que carecia por completo, e que teve o seu último an-
tecedente no brevíssimo compêndio escolar de Fortunato de Almeida,
que só é possível citar para acentuar o contraste entre uma coisa e ou-
tra. A novidade não decorre apenas de a História das Instituições ser
entre nós tão mal estudada, facto estranho num país com uma notável
plêiade de historiadores do Direito. Brota igualmente de os estudos que
antecederam a obra de A. Hespanha se encontrarem sobretudo em ma-
nuais de História do Direito, onde as instituições surgem geralmente
sem relação com o contexto económico, social e mental que lhes dão
sentido. Com efeito, o seu livro aborda, pela primeira vez, aquele cam-
po, partindo do princípio que não se deve interpretar tanto a partir das
normas que regulam as instituições, mas da prática jurídica e dos factos
sociais que as condicionam. O que não exclui, acentua o Autor, a relati-
va autonomia das instituições jurídicas para com a história social.
Novidade, ainda, o facto de se apresentar a matéria histórica enqua-
drada por uma justificação teórica vigorosa que se inscreve numa linha
interpretativa marxista, e surge, por isso, dotada de uma grande coerên-

(*) Publicado in Estudos Medievais, n. 0 5/6, 1984/85, pp. 129-137.


(1) António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e Moder-
na, Coimbra, Livraria Almedina, 1982.

131
cia. A facilidade e a segurança com que o Autor maneja o aparelho
conceptual em que se baseia imprimem ao livro uma poderosa armadu-
ra e ajudam-no a conjugar, numa exposição dotada de grande unidade,
o tratamento das questões mais diversas e até, por vezes, bem minucio-
sas, mas sempre integradas num sistema fortemente hierarquizado.
Citarei enfim, como característica notável, a enorme erudição do
Autor, esta já tradicional na escola de historiadores do Direito do nosso
país; abrange não só o campo da sua especialidade em Portugal e no es-
trangeiro, mas também o da História propriamente dita; não só produ-
ção habitual, mas também a mais antiga e a mais recente, alguma dela
bem pouco utilizada pela maioria dos autores. Embora correndo o risco
de com esta afirmação emitir um juízo de valor pouco cómodo, não
posso deixar de exprimir a opinião de que se trata de uma das poucas
obras históricas marxistas de nível verdadeiramente universitário que
até agora foram publicadas entre nós. De facto, o sistema interpretativo
do Autor, apesar de, em certos pontos, revestir uma rigidez discutível,
como direi mais adiante, nada tem, no seu conjunto, do tom mecani-
cista redutor ou panfletário que em outras obras com o mesmo rótulo
se encontra.
Não pretendo comentar a segunda parte da obra (quase dois terços
do conjunto), acerca do «período do sistema corporativo», de meados
do século XIV a meados do século XVIII, mas ainda dominado, segun-
do o Autor, pelo modo de produção feudal. Nem por isso deixarei de
sublinhar o considerável avanço que ele imprime, em termos historio-
gráficos, ao conhecimento de assuntos até hoje tão pouco estudados,
como a regulamentação jurídica das actividades económicas
(pp. 192-199), a teoria jurídica em geral (pp. 206-216), as teorias da
época sobre as hierarquias sociais (pp. 220-230), a regulamentação ins-
titucional da cidade (pp. 230-251), a concepção dos cargos públicos co-
mo ofícios feudais ou como funções (pp. 385-398), a prática dogmática
dos juristas da Baixa Idade Média (pp. 439-489) e da época moderna
(pp. 503-524). Para além disso, o autor renova, por exemplo, uma
questão até agora abundantemente tratada, como é a das cortes
(pp. 367-384). O que quer dizer que, a partir deste momento, não será
mais possível ignorar a importante contribuição de A. M. Hespanha
para o esclarecimento destas questões fundamentais, até agora tão pou-
co tratadas entre nós, e que ele expõe com o maior rigor, clareza, com-
petência e abundância de informações.
O meu entusiasmo é menor quanto à primeira parte. Não porque
pretenda contestar a validade do sistema interpretativo marxista, mas
porque posso apontar uma considerável quantidade de pontos concre-
tos em que a sua aplicação rígida ao caso português (como ao ocidente
da Península) me parece trazer consequências tão funestas como as que,
há alguns anos, procederam do princípio adaptado pela historiografia
oficial, de que em Portugal não teria havido feudalismo. O modelo des-
132
crito, apesar do rigor teórico e nível científico com que é exposto, não
me parece adequado, tal como se apresenta, para definir ou compreen-
der os mecanismos concretos das instituições medievais portuguesas
(mesmo depois do século XIV, apesar de a este respeito, como disse,
não pretender levantar objecções, como se pode ver da falta de relação
entre tal modelo e as instituições urbanas e uma parte das que depen-
dem da centralização estatal). De facto, na minha opinião,
A. M. Hespanha não escapa ao defeito que se pode apontar aos autores
marxistas que até aqui têm tratado do feudalismo português (2). Agru-
parei a minha crítica sob os seguintes pontos: 1) distorção das relações
sociais de produção nos concelhos; 2) ignorância ou desprezo da neces-
sidade de caracterização das relações feudo-vassãlicas propriamente di-
tas; 3) deficiente reconstituição do processo de apropriação do poder
senhorial por parte da aristocracia nobre e eclesiãstica. Vejamos cada
um deles por sua vez.
Parece-me, com efeito, que o modelo do modo de produção feudal
não só como é descrito, mas mesmo com as eventuais adaptações que se
lhe possam fazer é inadequado, só por si, para explicar as relações de
produção vigentes nos concelhos. Aqui, vigora a propriedade alodial,
existe e tem poderes efectivos uma classe dominante não nobre, que re-
siste tenazmente à senhorialização do seu território, que mantém for-
mas colectivas de decisão política apesar de certas concessões ao poder
senhorial do rei ou do detentor da autoridade a que estã sujeito, que de-
fende eficazmente a capacidade electiva dos seus habitantes, que preser-
va noções de direito público incompatíveis com o sistema feudal. Estas
características parecem-me de tal modo opostas ao feudalismo que têm
de se explicar por factores externos ao sistema. Sendo assim, impõe-se
uma investigação aprofundada acerca das suas origens. Ora é aqui que
a maneira como normalmente se apresenta a sequência dos três modos
de produção esclavagista, feudal e capitalista me parece incapaz de re-
solver o problema. A organização concelhia não se integra no primeiro
nem no segundo. Na minha opinião, que exporei mais longamente num
livro em vias de publicação, devem-se procurar as suas origens nas co-
munidades primitivas, que nunca chegaram a ser totalmente absorvidas
pela dominação romana, ressurgiram com o desmantelamento do Im-

(2) Parece-me encontrar-se em menor grau em António Borges Coelho, A Revolução


de 1383, como ele diz mais claramente no prólogo à 5.• ed. (Lisboa, ed. Caminho, 1984,
pp. 20-40) ao insistir, divergindo de Armando de Castro, nas formas «protocapitalistas»
que em Portugal coexistem com o feudalismo. Sem se atrever a admitir a coexistência de
dois modos de produção diferentes, as concepções de Borges Coelho podem-se inserir sem
dificuldade no esquema de M. Godelier, «A teoria da transição em Marx», in Ler Histó-
ria, n.o 2, 1983, pp. 99-142, dada a forma como interpreta o conceito de «formação eco-
nómica e social», «destinado a evidenciar e explorar os factos de articulação de vários
modos de produção que caracterizam um grande número de sociedades concretas»
(p. 103).

133
pério, persistiram através da ocupação visigótica e reencontraram novo
vigor nas terras de ninguém, entre as suas fronteiras cristã e muçulma-
na, aproveitando a possibilidade de negociação da sua adesão a um ou
outro campo, para aperfeiçoamento das suas instituições autonómicas.
Esta ideia parece-me encontrar uma base científica nos estudos sobre as
comunidades rurais, desde os de Rodney Hilton (l), e, mais recentemen-
te para o ocidente peninsular, de Reyna Pastor de Togneri, que tratou
da sua resistência ao processo de senhorialização (4).
Esta interpretação tem alguma coisa a ver com a tese de A. Borges
Coelho (s), que o Autor nega sem a citar (p. 151). Com a diferença que
Borges Coelho, ao afirmar a origem revolucionária dos concelhos, pres-
supõe que a luta é posterior à formação feudal, enquanto a mim me pa-
rece que a organização comunitária lhe é anterior. A situação de capa-
cidade de negociação é expressa com a maior clareza no foral de Tava-
res de 1112, que, ao invocar uma circunstância absolutamente genérica,
não pode deixar de se considerar significativo: «et non exeant de illis
(foribus) pro tali actio que est illo castro inter mauros et christianos et
uolent ingenuos esse et querent bonosjoros prenominatos» (DR 27).
Sendo assim, o que se impõe é averiguar a compatibilidade do siste-
ma concelhio com o feudal e o peso que a preservação automática da-
quele tem sobre a evolução da formação social e económica no caso
concreto português.
Posso apontar algumas incongruências decorrentes do facto de não
se ter considerado suficientemente a autonomia das relações de produ-
ção nos concelhos. Assim, por exemplo, ao afirmar que a concessão de
forais se destina a impedir a fuga dos servos da gleba para o sul
(p. 151). Esta explicação só seria possível se os forais fossem concedi-
dos sobretudo na zona de organização verdadeiramente senhorial, que é
o Entre Douro e Minho. Ora aqui os forais são raros e outorgados ape-
nas a burgos comerciais (Guimarães, Porto, Famalicão, Barcelos, Pon-
te de Lima, Viana do Castelo) e a povoações militares da fronteira gale-
ga (Valença, Caminha, Monção), isto é, aos lugares para onde os de-
pendentes podiam emigrar, mas não donde partiam. Eram também lu-
gar de chegada e não de partida as zonas pouco povoadas ou perto da
fronteira, fora de Entre Douro e Minho.
Outra consequência é a errónea periodização tipológica que faria
das cartas do povoamento antecedentes dos forais (pp. 151-152). Ora a
realidade desmente-o. As concessões mais antigas em território portu-
guês são as de Fernando o Magno na Beira Alta, então em zona frontei-

(3) Rodney Hilton, Siervos liberados. Los movimientos campesinos medievales y ellevanta-
miento inglés de 138/, Madrid, Siglo Veintiuno, 1978 (trad. do original inglês de 1973).
(4) Reyna Pastor de Togneri, Resistencias y luchas campesinas en la época de/ creci-
miento y consolidación de la formación feudal. Castilla y León, siglas X-XIII, Madrid,
Siglo Veintiuno, 1980.
(S) António Borges Coelho, Comunas ou Concelhos, Lisboa, Prelo, 1973.

134
riça, e depois renovadas por Afonso Henriques como forais «urbanos»
ou «perfeitos». Vêm a seguir as de Santarém por Afonso VI, de Guima-
rães, Constantim de Panoias, Coimbra, etc. pelo Conde D. Henrique,
de Ponte de Lima, Ferreira de Aves e outros por D. Teresa. Todos fo-
rais «urbanos» ou «perfeitos». Ora as cartas de povoamento são raras
até meados do século XII. Quando se faz a sua cartografia verifica-se
situarem-se nas franjas das zonas mais fortemente senhorializadas. Na
minha interpretação, constituem formas de pactuação com comunida-
des rurais, autónomas, mas débeis, ou de extensão dos poderes senho-
riais sobre zonas que até então se organizavam de maneira diferente.
Uma terceira consequência, decorrente, suponho, da ideia de que o
concelho resulta de uma evolução do próprio sistema feudal, é a de que
eles viessem a constituir uma «quadrícula regular» sobre todo o territó-
rio português (p. 154). Nada mais falso. A organização concelhia não
atinge nunca, até ao fim da Idade Média, as terras dos senhores leigos e
eclesiásticos nem mesmo os próprios reguengos de Entre Douro e Mi-
nha. O fenómeno de uniformização das instituições administrativas lo-
cais é tardio e resulta do processo de centralização régia. O Entre Dou-
ro e Minha resiste tanto à organização concelhia como esta à senhorial.
Quanto ao segundo ponto, o da ignorância ou desprezo das formas
típicas das relações feudo-vassálicas, é menos grave em A. M. Hes-
panha que noutros autores marxistas. Aquele faz mesmo uma certa ten-
tativa para especificar as formas da vassalidade. A meu ver, não se
podem compreender, no caso do ocidente peninsular, sem distinguir
claramente relações senhoriais e relações feudais. Alio-me consciente-
mente, nesse ponto, à maioria dos autores «burgueses». Com efeito,
considero-as de natureza diferente porque umas determinam as relações
entre senhores e dependentes e baseiam-se na capacidade de dominação
daqueles; outras regulam as relações entre membros da classe dominan-
te e baseiam-se em contratos bilaterais que implicam direitos e deveres
recíprocos. É evidente que existe uma articulação entre umas e outras;
mas a sua função social é diferente: o que os autores marxistas, mais in-
teressados na luta de classes do que no estudo da estrutura da classe no-
bre, tendem a esquecer, é que o objectivo próprio do contrato feudo-
-vassálico é criar laços de solidariedade no seio da nobreza e não trans-
mitir poderes estatais sobre os dependentes. Aliá-las de tal modo que
não possam existir uma sem a outra é condenar-se a negar uma se as ou-
tras não existem, ou cair em incongruências se as segundas são ténues,
incoerentes e fluidas, como acontece nas relações feudo-vassálicas em
Portugal. Sucede entre nós, de resto, o mesmo que em toda a Europa
mediterrânica, onde os poderes senhoriais se desenvolvem num plano
diferente e independente dos feudais (s).

(&) Robert Fossier, Enfance de I'Europe. X•-Xl!• siecles. Aspects économiques et so-
ciaux, Paris, P.U.F., 1981, v. 11, p. 952, ao dar conta dos resultados do colóquio de Ro-

135
Sendo assim, é importante estudar as relações feudo-vassálicas em si
mesmas, questão para a qual os marxistas portugueses até aqui nada
contribuíram, e que a historiografia oficial tentou suprimir, negando o
seu fundamento. Não é aqui o lugar para desenvolver os resultados das
minhas investigações a este respeito, e que se incluirão também na obra
em vias de publicação a que já me referi. Bastará dizer que se filia nesta
problemática a dificuldade que A. M. Hespanha manifestamente en-
contra em definir correctamente as formas do serviço militar (p. 146) e
a revisão completa a que será necessário submeter o que diz sobre a te-
nência beneficiai (pp. 155-156). São obviamente insuficientes as infor-
mações sobre as instituições feudo-vassálicas no seio da nobreza.
Em relação com esta questão, referirei apenas um ponto concreto
mas significativo onde se reproduz um equívoco, aliás frequente na nos-
sa historiografia jurídica, desde Gama Barros, que faz das «cavalarias»
e da obrigação da fossadeira variantes do mesmo instituto (p. 135). Ora
aquelas são concessões beneficiais de carácter pessoal a cavaleiros vi-
lãos com a correspondente obrigação de serviço militar efectivo
- verdadeiros feudos não nobres. Esta é a prestação que decorre da
obrigação que outrora tinham os homens livres de prestar serviço mili-
tar e que por isso o senhor exige sem qualquer espécie de retribuição.
Um deriva de contrato, outro de dominação pura e simples. Um é feu-
dal, outro senhorial. O facto de aquela envolver um vilão é um fenóme-
no típico da Península Ibérica, resultante justamente da persistência de
comunidades rurais autónomas organizadas em concelhos, o que levou
a criar situações tão «híbridas» como esta.
A não distinção entre regime feudal e regime senhorial leva, por
exemplo, a afirmar que feudalismo se caracteriza pela concessão de ter-
ras pelo senhor em retribuição dos serviços prestados (p. 84). De facto,
na lógica do funcionamento do modo de produção feudal em Marx, a
terra era essencial. Só uma concessão beneficiai permitiria ao senhor
exercer poderes de carácter económico sobre os respectivos habitantes.
A entrega da terra seria a base da titularidade do poder.
Todavia nada me parece mais claro do que o funcionamento dos po-
deres senhoriais e da hierarquia vassálica em estruturas autónomas, pe-
lo menos no caso peninsular. De facto, entre nós, o exercício de poderes
de coacção (senhoriais) resulta muito menos de concessões superiores
do que da apropriação e extensão da autoridade por incapacidade dos
delegados régios. Resulta, a meu ver, do verdadeiro atrofiamento dos
poderes públicos e da sua capacidade administrativa, o que conduz ne-
cessariamente ao fortalecimento de todas as formas de organização lo-

ma de 1980 sobre o feudalismo mediterrânico: <<on n'a guere avancé dans les définitions:
pirc, on a dérapé vers le "féodalisme", mode de production ou de domination des hom-
mcs d'un grande intérêt, qu'on peut répérer un peut partout sous les habits d' Arlequin,
mais qui n'a qu'un rapport ténu avec le service de fief ou la cérémonie de l'hommage».

136
cal: as concelhias, já referidas, e as senhoriais, de que agora trato.
Além disso, qualquer que seja a origem dqs poderes, a concessão de
terras ou poderes senhoriais por parte do rei não implica necessaria-
mente a relação vassálica; pode ser meramente gratuita. Em terceiro lu-
gar, nada obsta a que a vassalidade se baseie na concessão de bens mó-
veis, rendas ou funções, o que retira a essencialidade à concessão de
bens fundiários no contrato feudal. Ora o benefício em bens móveis ou
funções é justamente o mais típico vínculo «real» da vassalidade portu-
guesa. Refiro-me às tenências de circunscrições territoriais pelos ricos-
-homens, às alcaidarias e às contias. Pelo contrário, os préstamos sem-
pre criaram entre nós relações precárias e atípicas. Enfim, a indepen-
dência entre o sistema feudal e o senhorial é atestada pelas doações pro
bono et fideli servitio que retribuem serviços vassálicos, mas são doa-
ções plenas e irrevogáveis.
Por último, a aplicação rígida do modelo de produção feudal criado
a partir de dados não peninsulares leva a interpretações, a meu ver mui-
to discutíveis, acerca do processo de apropriação do poder senhorial
por parte de militares e de eclesiásticos. O que acabo de dizer acerca da
distinção entre feudalismo e regime senhorial já o mostra claramente.
O que disse mais atrás sobre feudalismo e concelhos, igualmente. Impe-
de, além disso, o Autor de ver que o facto de considerar os poderes se-
nhoriais como fundamentalmente derivados de concessões expressas ou
tácitas do soberano (p. 85) é uma concepção jurisdicista que não tem
em conta os factos sociais. Ou que se pode classificar da mesma manei-
ra a afirmação, impossível de provar, que o rei reservou sempre para si
a punição de crimes graves e que sempre se considerou instância de ape-
lo da justiça inferior (p. 141), como dizem, é verdade, alguns dos nos-
sos historiadores do Direito, sem poderem também prová-lo para o pe-
ríodo anterior ao século XIII. Basta uma leitura descuidada da obra
acima referida de Reyna Pastor de Togneri para verificar que a realida-
de peninsular é bem diferente.
Não queria terminar sem referir mais duas ou três questões pon-
tuais. Uma resulta, como os três pontos mais gerais que mencionei, de
uma dedução apriorística do modelo teórico, como é o caso quando o
Autor afirma que a titularidade do poder senhorial confere aos senho-
res a direcção efectiva do processo produtivo (pp. 92-95). Quando se
verifica a pronunciada tendência para o alheamento dos senhores no-
bres e mesmo da maioria dos eclesiásticos de uma efectiva intervenção
administrativa, como demonstra a habitual exiguidade da reserva, o fe-
nómeno do seu loteamento no fim do século X e princípio do seguinte e
a raridade das prestações em trabalho, pode-se perguntar se o que defi-
ne a intervenção dos senhores não é muito mais a sua situação de consu-
midores do que a de reguladores do processo produtivo. Uma afirma-
ção desse género levaria a desprezar a diferença fundamental que existe
entre a efectiva intervenção económica dos cistercienses, de algumas or-
137
dens militares e de certos senhores, a exemplo daqueles, e a maioria de-
les, que se limitam a aperfeiçoar as modalidades de percepção das pres-
tações senhoriais.
Outras questões podem-se isolar facilmente. Não queria deixar de
apontar aqui o uso de um documento falso e já denunciado como tal
por Herculano, que é o que contém as supostas declarações do bispo de
Lisboa em defesa de Sancho 11 em 1245 (p. 145). Já tive ocasião de de-
nunciar um lapso idêntico numa História de Portugal amplamente di-
fundida, e lamento ter de o repetir aqui. Por último, apontarei, de carác-
ter muito diferente, a adesão do Autor à opinião de Nuno Espinosa Go-
mes da Silva acerca da subordinação do ·Direito civil ao canónico por
força das cortes de 1211 (p. 178). Esta opinião resulta, creio, de uma in-
correcta crítica textual e de um deficiente estudo da política de Afon-
so 11. Tem, todavia, demasiadas ramificações para poder aqui apre-
sentá-la com a necessária evidência, o que farei na obra já referida.
Limito-me, aqui, portanto, a manifestar a minha discordância.
Resta-me concluir, voltando a afirmar tudo quanto disse no princí-
pio acerca das excepcionais qualidades desta obra. Ela representa, na
minha opinião, uma das mais válidas contribuições da historiografia
actual para o estudo das instituições portuguesas da Idade Média e do
começo da Idade Moderna. Lamento não poder dizer o mesmo acerca
das outras questões a que me referi e que, como se viu, se situam apenas
no período da Alta Idade Média. As minhas críticas e discordâncias
arriscam-se também a ocultar o facto de que, mesmo nessa parte, se en-
contra muito material válido, conjugado numa exposição rigorosa e
bem fundamentada, e à qual adiro inteiramente.
Como se vê, o meu sistema interpretativo é diferente. Mas sempre
considerei o exame das hipóteses marxistas uma das formas mais fecun-
das de aperfeiçoar o meu trabalho histórico. O menos que poderia dizer
acerca desta parte do livro de A. M. Hespanha é que ele me obrigou a
reflectir e a estudar melhor muita coisa a que me dedico com paixão.

/38
9. FEUDALISMO E CONCELHOS. A PROPÓSITO DE
UMA NOVA INTERPRETAÇÃO (*)

Não há dúvida que os medievalistas actuais dificilmente se enten-


dem quando procuram interpretar globalmente o fenómeno dos conce-
lhos na Península Ibérica. Considerados por Herculano e pelos liberais
da época romântica e pós-romântica como o paraíso da classe média e
da democracia popular, ao mesmo tempo que espaço onde vigoravam
as instituições produzidas pelo Vo/ksgeist na sua pureza originária, vie-
ram depois a ser considerados pela escola institucionalista espanhola e
depois por Sánchez Albornoz como o lugar onde tinham reinado a li-
berdade e as instituições derivadas dos costumes germânicos, por opo-
sição com as regiões europeias onde dominava o feudalismo. Apesar de
todas as atenuações feitas à tese do carácter propriamente germânico de
tais instituições a ideia de liberdade ficou, até aos tempos de hoje, vigo-
rosamente defendida pelo mesmo Sánchez Albornoz. Ultimamente, os
autores marxistas, inclinados a integrar o caso peninsular no esquema
europeu dos modos de produção e da sua sucessão, procuraram encon-
trar no passado medieval ibérico os dados que permitissem incluir tam-
bém os concelhos no modo de produção feudal e na dialéctica da luta de
classes. Para eles a existência de um espaço de liberdade no Ocidente,
não atingido pelo mesmo tipo de relações sociais de produção que vigo-
rou além-Pirenéus, seria uma verdadeira aberração, que só poderia nas-
cer de preconceitos ideológicos. São disto exemplo, entre nós, Arman-
do Castro e Borges Coelho; e na vizinha Espanha, Reyna Pastor de
Togneri, José Maria Mínguez e agora Angel Barrios García (1). O que,

(*) Publicado in Estudos Medievais, n. 0 7, 1986, pp. 199-209.


, (1) Ange1 Barrios García, Estructuras agrárias y de poder en Castilla: e/ ejemplo de
A vila (1085-1320). (Acta Sa1manticensia, Filosofia y Letras, n. o 147 e 157. Documentos y
estudios para la historia del Occidente peninsular durante la Edad Media, n. 8 e 9). Ed.
Universidad de Salamanca, lnstitución «Grand Duque de Alba», 2 vols. de 299 e de 270
páginas.

139
porém, tinha sido equacionado em Portugal, em termos um tanto vagos
e com base em dados parciais, foi agora estabelecido de maneira siste-
mática e com uma poderosa bagagem erudita que não deixará de im-
pressionar mesmo quem não concorde com a tese interpretativa, pelo
último daqueles autores. A obra de Angel Barrios que aqui tentarei co-
mentar ficará, portanto, durante bastante tempo, creio eu, como ponto
de referência e como paradigma de uma tese que se pode formular em
termos extremamente simples e, por isso mesmo, propícia às simplifica-
ções sumárias tanto do agrado do grande público. Ao mesmo tempo, é
estabelecida com todos os requisitos da argumentação erudita, e até
académica, que são necessários para a sua credibilidade. A tese é, pois,
a seguinte: nos concelhos vigorou, como em todo o Ocidente, o modo
de produção feudal. Os seus beneficiários foram os cavaleiros vilãos e
os cónegos da catedral que, em pouco tempo, com auxílio da coroa, se
apropriaram da mais-valia do compesinato e monopolizaram todos os
meios de coacção extra-económica, tal como fez além-Pirenéus a nobre-
za feudal.
Começarei por dizer, independentemente do problema de carácter
geral que aqui tenciono discutir, que a tese de doutoramento de Angel
Barrios constitui um dos trabalhos mais sólidos, de visão mais ampla e
com material mais rico daqueles que conheço entre os que ultimamente
se têm publicado em Espanha, no âmbito da história medieval. O mé-
todo com que selecciona e aproveita os dados significativos pode ser
considerado exemplar para quem realiza uma investigação de amplitude
regional. É efectivamente notável a solidez da sua reconstituição das es-
truturas económicas, da paisagem (nos seus mais amplos aspectos, ou
seja os recursos naturais, a cobertura vegetal, a implantação das povoa-
ções, as vias de comunicação, a distribuição da propriedade) e das es-
tratégias de domínio. A riqueza da sua informação é, mesmo, de tal
modo abundante, que me parece inútil tentar dar aqui um resumo da
obra. De resto, mais válido ainda do que as conclusões é o método de
aproveitamento dos dados significativos.
Dito isto, queria comentar três questões acerca das quais a minha
concordância é muito menor: o processo de povoamento, o processo de
implantação e a natureza da supremacia da classe dominante concelhia
e o grau de identificação do clero com os leigos da mesma classe.
Quanto ao primeiro ponto, não posso deixar de exprimir a minha
admiração pela notável segurança e originalidade com que Angel Bar-
rios utiliza os dados da toponímia (dados também usados com a maior
perícia para reconstituir a paisagem, no sentido mencionado há pouco),
para resolver de uma maneira, a meu ver, definitiva, a estafada e inter-
minável questão do ermamento do vale do Douro, um dos pontos mais
quentes do medievalismo ibérico. Como se sabe, este problema, tratado
de maneira apaixonada e quase dramática por Sánchez Albornoz, foi
quase sempre minimizado pelos investigadores portugueses. Aplicado
140
aqui o método toponímico para a diocese de Ávila, foi depois estendido
às de Segóvia, Salamanca e Ciudad Rodrigo, com resultados verdadei-
ramente notáveis (z).
Baseado nestes dados, Angel Barrios pôde afirmar que não houve
nunca os desertos de que tanto falava Sánchez Albornoz, nem perma-
nência completa das ryopulações. Mais do que isso, conseguiu estabele-
cer uma cartografia pc rmenorizada do esvaziamento, do seu grau, e até
datar as fases de reconstituição demográfica nas diversas regiões daque-
las dioceses. Graças aos minuciosos estudos do Autor, conhecemos
agora uma nutrida lista de povoações que, apesar das duras condições
de guerra a que o vale do Douro ficou sujeito, nunca chegaram a ser to-
talmente abandonadas ou o foram apenas por períodos curtos. E uma
lista ainda maior de topónimos moçárabes ou de núcleos habitacionais
criados principalmente durante o século X, que não resultaram tanto
da ocupação de centros fortificados durante esta época pelos cristãos,
mas da proliferação de lugares em locais estratégicos, cuja existência a
guerra frequente e a passagem dos exércitos não afectou, embora tives-
se, obviamente, influenciado a sua maneira de viver.
Tendo chamado a atenção para este notável trabalho, devo dizer
que não partilho por completo a opinião de Angel Barrios segundo a
qual o repovoamento seria normalmente dirigido, programado e enqua-
drado pelas autoridades oficiais, principalmente o rei de Leão e o conde
de Castela, e só excepcionalmente resultaria da expansão espontânea de
comunidades não orientadas directa nem indirectamente pelo poder
central. Pela minha parte considero verosímil a frequência da emigra-
ção espontânea de grupos importantes, tanto no sentido norte-sul (ou
seja, de galegos, leoneses, castelhanos ou navarros), como no sentido
sul-norte (ou seja de moçárabes), independentemente da fixação de dis-
positivos fortificados pelo rei. Acredito na capacidade militar das pró-
prias comunidades. Custa-me, pelo contrário, acreditar na efectiva ca-
pacidade dos reis e condes para dirigirem voluntariamente tão ampla
operação de transferência populacional. Vejo nela mais um movimento
de carácter demográfico do que uma manobra estratégica. O próprio
autor reconhece, de resto, que aquilo a que as fontes oficiais chamam
«repovoamento» (como acontece em Ciudad Rodrigo) não é geralmen-
te mais do que a colocação das autoridades régias num local já habitado
e mesmo com uma organização local anterior. Pergunto-me se a rele-
vância dada pelo Autor ao papel do rei e dos seus delegados não resulta-
rá, afinal, de uma tendência apriorística para enquadrar o processo de
povoamento no esquema feudal, e até nas discutíveis teses de perma-
nência do Direito Público desde a época visigótica, do que verdadeira-

(2) Angel Barrios Garcia, <<Repoblación de la zona meridional dei Duero. Fase~ de
ocupación, procedencias y distribución espacial de los grupos repobladores», in Studia
Historica. Historia Medieval, v. Ill, n. 0 2 (1985), pp. 33-82.

141
mente de uma conclusão dos documentos disponíveis. Ou será que as
minhas reticências se devem antes à minha propensão para prolongar
até épocas demasiado tardias as manifestações de autonomia local, co-
mo veículo de formas de organização primitiva, independentemente da
apropriação do poder público por parte da aristocracia feudal?
Esta questão conduz-me directamente ao segundo ponto, onde se si-
tuam as minhas mais graves divergências interpretativas. De facto, mes-
mo estando quase constantemente de acordo com a reconstituição que
Angel Barrios faz das estruturas produtivas e da sua mecânica, per-
gunto-me se é tão simples como ele pretende a sua reconstituição do
processo pelo qual se fixam as relações sociais de produção. De facto
quando passamos do campo da história económica para o da história
social logo surgem as minhas dúvidas e perplexidades.
Uma delas diz respeito ao pressuposto, constantemente presente,
mas nunca provado, de que existe à partida, num momento inicial (teó-
rico, é claro), uma situação de Direito, sujeita ao poder público (o ré-
gio) cujos protagonistas são homens livres. Na sua opinião, o poder pú-
blico seria o criador da comunidade (t. I, p. 182), distribuiria aproprie-
dade (ib., p. 183) e a renda social (ib., p. 188). Tal estado de Direito se-
ria hipoteticamente retratado pelofuero (perdido) de Ávila, onde esta-
riam consignadas as liberdades individuais e políticas dos povos (ib.,
p. 202). Num segundo tempo, tudo se teria alterado: às promessas des-
tinadas a atrair povoadores sucederia a espoliação (ib., p. 182), à liber-
dade, a servidão dos camponeses (ib., p. 185), à fiscalidade régia, a
apropriação dos impostos pelos cavaleiros-vilãos (ib., p. 209) e a recusa
aos peões do direito de participarem nos espólios de guerra (ib.,
pp. 198, 210). Da solidariedade étnica ter-se-ia passado à homogeneida-
de dos blocos sociais (ib., p. 212). Nesta alteração teria colaborado a
coroa, que investiria os cavaleiros-vilãos no mando local, que imporia
ao campesinato pesadas cargas e reduziria alguns à servidão, que elimi-
naria a autonomia dos concelhos rurais, tornados dependentes dos po-
deres estabelecidos nas respectivas vilas urbanas (ib., p. 188). Ou seja,
o Autor restaura, assim, inconscientemente, a ideia do primitivo iguali-
tarismo concelhio sob a égide do soberano, igualitarismo que ele, com
toda a razão, considera um puro mito, noutros pontos do seu livro.
Ora nada me parece menos seguro do que esta reconstituição sim-
plista do processo de forma_s:ão do concelho, na sua fase inicial. Não es-
tá aqui em causa saber se Avila foi ou não fundada directamente pela
coroa. O que importa é a aplicação ao meio local de um modelo de or-
ganização social e económica que exige como suporte o poder régio. De
facto não creio, como penso ter mostrado mais amplamente noutro lu-
gar (l), que a estrutura social concelhia resulte propriamente da promul-
(l) José Mattoso, Identificação de um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal
fiiiCJf>-1325). v. I. Lisboa, ed. Estampa, 1985, pp. 333-345.

142
gação de um foral, nem que vigore normalmente nela, ao menos em
centros de alguma amplitude, uma verdadeira igualdade entre peões e
cavaleiros, ou que as liberdades hipoteticamente consignadas em tais
fontes beneficiem de facto a peonagem. Não acredito em sociedades
igualitárias nem antes nem depois de qualquer foral. Não creio que a
distinção entre guerreiros e camponeses só surgisse num segundo tem-
po, nem que aqueles só se tivessem apropriado de direitos de tipo estatal
numa fase posterior da evolução da sociedade concelhia. A repartição
de funções estava profundamente interiorizada em todas as sociedades
indo-europeias. A função militar dos guerreiros sempre os dotou de po-
deres de carácter público, como braços armados que eram dos chefes,
aceites por todos, e indispensáveis para a formação das comunidades,
como se pode deduzir dos trabalhos de Dumézil, de Benveniste e dos
que têm tratado da antropologia política, desde Balandier a Chanzon e
a Eisenstadt. Na minha opinião, o aparente nivelamento que os forais
consagraram é o da igualdade entre os guerreiros, não entre eles e os
restantes homens livres do concelho. Trata-se de uma forma de equili-
brar e até de manter as tensões entre eles, isto é, de equilibrar os respec-
tivos bandos armados e as parentelas que os sustentam (•). Penso, ainda
como tento mostrar mais longamente noutro lugar (s), que aquilo que
cria o Direito nos concelhos autónomos da fronteira não é o sanciona-
menta dos forais e costumes pela coroa (acto que considero simples
pacto ou repartição de poderes e de impostos: os que se destinam à co-
roa e os que são administrados pelo concelho, por intermédio dos ma-
gistrados), mas justamente o equilíbrio que a própria comunidade tem
de assegurar entre as efectivas forças existentes no seu seio, para elas
não se destruírem umas às outras em virtude do princípio da vingança
privada, e também para assegurarem um lugar próprio aos clérigos co-
mo detentores das forças sagradas e autores das representações mentais
acerca da ordem do mundo e da sociedade. De facto não me convence a
argumentação de Angel Barrios, aqui nem nos estudos posteriores acer-
ca do povoamento, no sentido de provar que o criador das comunida-
des, o planificador do povoamento e a força sem a qual ele não poderia
existir, é o poder régio.
Também me parece gratuita a afirmação de que o «poder municipal
se arroga direitos que, ao menos em teoria, eram exclusivos do monar-
ca», ao ceder «aldeias e tributos que lhe pertenciam» (v. 11, p. 162),
pois a teoria referida é, decerto, imaginária. Na realidade, pelo menos

( 4 ) A importância dos bandos e os seus contlitos transparecem também das indica-


ções dadas por Barrios García para Ávila (cf. v. li, pp. 152-153 e noutros lugares), mas
interpretados por ele apenas em termos de lutas de classes, o que provavelmente altera o
seu significado.
(S) José Mattoso, «Da Comunidade Primitiva ao Município. O exemplo de Alfaia-
tes», comunicação apresentada às I.• Jornadas sobre o Município Ibérico. Santo Tirso,
Fevereiro de 1985 e publicado também ne,ta colectãnea.

143
em Portugal, os bens do monarca e os dos concelhos não se confun-
diam. O que o concelho cede são bens e impostos seus, e não do rei.
A não ser que se pretenda confundir jurisdição com propriedade. De
facto, em termos de jurisdição, a do rei sobrepunha-se à do concelho.
Mas não creio que na Idade Média as duas noções se identificassem tão
facilmente como julgam muitos autores, pelo menos em áreas de orga-
nização municipal. Foi o processo de centralização estatal que a partir
de meados do século XIII difundiu a ideia de que todos os bens sem do-
no eram do rei, e que o rei era senhor de todo o reino (no sentido de ju-
risdição senhorial). Sendo assim, duvido se justifique a ideia do Autor
de que realengo e senhorio urbano coincidem (v. I, p. 165), e, pior ain-
da, que o verdadeiro proprietário das comunidades de aldeia fosse o rei
(ib., p. 167).
Está relacionada com tudo isto a tendência constantemente revelada
por Angel Barrios para considerar a cavalaria vilã à imagem e seme-
lhança da aristocracia de sangue. Em termos de relações sociais de pro-
dução, as diferenças entre elas seriam irrelevantes. Apenas haveria, em
termos históricos, que reconstituir o processo pelo qual eles teriam
emergido da igualdade inicial e se teriam apropriado dos poderes de na-
tureza não-económica usados para espoliar o campesinato. Mas, segun-
do ele, a função militar e o apoio da coroa, interessada em intensificar
tal função, seriam factores suficientes para explicar o fenómeno. Have-
ria como que uma transferência do poder público da coroa para a classe
militar.
Ideias com as quais não posso concordar. Na minha opinião, são
muito diferentes a configuração social e o exercício do poder por parte
da cavalaria vilã e da aristocracia de sangue. A segunda consegue fazer
do nascimento a justificação dos seus poderes, e estes são fundamental-
mente de natureza extra-económica, mas exercidos individualmente,
como direitos pessoais, transmissíveis aos descendentes. A cavalaria vi-
lã, pelo contrário, não exerce poderes pessoais, mas por intermédio da
apropriação colectiva das magistraturas e do poder económico a nível
local, nas comunidades que domina e apenas nelas. Individualmente ne-
nhum cavaleiro vilão enquanto tal tem qualquer direito a exercer pode-
res senhoriais, nem dentro nem fora do concelho. Se há alguns que aca-
bam por fazê-lo, é justamente porque conseguem, individualmente, in-
gressar na classe nobre, de facto e de direito, como mostram as linha-
gens que o Autor reconstitui no vol. 11 da sua obra. A lógica da reparti-
ção de poderes nas comunidades vilãs consiste justamente em assegurar
o seu exercício pela colectividade evitando a sua apropriação indivi-
dual. A emergência das linhagens é um facto tardio (são os casos referi-
dos no v. 11, pp. 142-143) que resulta já da deterioração do sistema
concelhio. Fora das suas próprias comunidades também não é reco-
nhecido aos cavaleiros-vilãos qualquer capacidade, nem sequer virtual,
para exercer direitos senhoriais ou estarem isentos de impostos, nem pe-
144
lo rei nem, obviamente, pela nobreza de sangue, nem mesmo pelos ou-
tros concelhos. Transpor os factos do plano colectivo para o individual,
ao nível do concelho, e depois abstrair da relação do cavaleiro com a
sua própria comunidade, parecem-me pressupostos extremamente dis-
cutíveis.
Passo a outra ordem de ideias, abordando agora problemas demo-
gráficos. O Autor inscreve-se ainda na linha habitual dos autores mar-
xistas ao minimizar a incidência de um hipotético sobrepovoamento na
crise do século XIV (v. I, p. 109), particularmente sobre a crise demo-
gráfica, acusando esta interpretação de neomalthusiana. Sem querer
negar os exageros do neomalthusianismo, não posso também deixar de
notar que a argumentação de Angel Barrios me parece demasiado sim-
plista. Com efeito, foram os próprios autores marxistas que mostra-
ram, com toda a razão, a precaridade e os limites dos recursos técnicos
durante a Idade Média. A consequente dependência da produtividade
para com os fenómenos naturais e a fragilidade demográfica são disso a
inevitável resultante. O mesmo se diga da concentração da população
em zonas mais produtivas. É, pois, ilusório negar o sobrepovoamento
com base na existência de regiões desabitadas. Na Idade Média uma das
consequências da exiguidade dos recursos técnicos é justamente a inca-
pacidade para fazer produzir certas terras e a consequente acumulação
populacional nas mais férteis. Daí os fenómenos de emigração e a fuga
em massa causada por fomes em regiões relativamente restritas. Não
acontece isto mesmo, ainda hoje, a uma escala já muito vasta, com as
multidões que abandonam o Sudão e tentam encontrar a subsistência
na Etiópia? Em Portugal, o facto é inegável: houve regiões que foram
parcialmente ocupadas no século XIII, mas cuja cobertura mal se che-
gou a fazer. Os recursos técnicos não permitiam o seu aproveitamento.
Qualquer ano mau expulsava rapidamente os seus habitantes. Pelo con-
trário as zonas férteis perto do litoral foram de facto sobrepovoadas,
tendo em conta a capacidade relativa da produtividade medieval.
Será preciso, naturalmente, ver como se podem conciliar estas ob-
servações com o esquema interpretativo marxista. Tarefa que compete,
naturalmente, aos seus adeptos, mas que, na minha opinião, só terá
possibilidade de êxito se for realizada com uma certa flexibilidade. Pela
minha parte não tenho a ingenuidade de pensar que estas observações
põem o sistema em causa ou afectam, sequer, a sua operacionalidade
em determinadas zonas de análise histórica.
Deixando agora as questões que se prendem com a interpretação
marxista, farei uma pequena observação acerca da estrutura do paren-
tesco, antes ainda de passar aos problemas de história religiosa, que in-
diquei como terceiro ponto deste comentário. De facto, Angel Barrios
aborda rapidamente os problemas do parentesco no v. 11, pp. 151-153,
embora com uma problemática e um tratamento um tanto curto. Não
me admiraria que a documentação disponível não lhe permitisse ir mui-
145
to mais longe. Um ponto, porém, me chamou a atenção: a afirmação de
que o sistema do dote da mulher era frequente. Todavia, dá dele um
único exemplo (v. I, p. 151). Fico, pois, na dúvida: trata-se de uma ge-
neralização abusiva ou os exemplos são efectivamente numerosos? Pela
minha parte posso afirmar que os casos claros de dote parecem ser ex-
tremamente raros em Portugal até ao século XV, ao contrário dos de
arras, que são frequentes, pelo menos até ao século XIII. Mas não são
uns e outros exclusivos das classes possidentes? Que se passa no casa-
mento dos peões? Não haverá meio, igualmente, de averiguar a fre-
quência relativa das famílias nucleares e de agregados múltiplos? De re-
constituir o sistema sucessório predominante? De averiguar o papel da
mulher na gestão dos bens e na transmissão do património? De verificar
a solidariedade ou as tensões entre os clãs? Será tão seguro como diz o
autor que da solidariedade étnica se passou à homogeneidade dos blo-
cos sociais (v. I, p. 212)?
Resta-me fazer algumas observações no domínio da história religio-
sa. Trata-se, aqui, de reparos mais fragmentados, mas cujo conjunto
revela da parte do Autor uma certa falta de sensibilidade neste domínio
e um propósito deliberado de acentuar a identidade social entre os cava-
leiros e os cónegos da catedral. De facto, não creio que tivesse jamais
havido uma comunidade canonical sem hierarquia interna, da qual se
teria transitado para outra onde reinariam as desigualdades (v. I,
p. 247), nem que o bispo tivesse jamais consultado os párocos e fregue-
ses da diocese para tomar as suas decisões (ib., p. 231). Todas as regras
monásticas e canonicais definem comunidades hierarquizadas, e os sí-
nodos diocesanos não constituem assembleias democráticas. Fora des-
tes sínodos não existiu nunca, na Cristandade, desde o século 11, qual-
quer mecanismo eclesiástico que atenuasse a «monarquia)) episcopal.
Também não vejo qualquer verosimilhança nos dados apresentados na
p. 247 para afirmar que em época mais recuada se encontra uma inter-
venção dos leigos no cabido. De facto, toda a reorganização da Igreja
Peninsular desde os fins do século XI se fez sob o signo dos princípios
gregorianos, para os quais a separação, quando não a oposição entre
clérigos e leigos, constituía o mais importante de todos. Nenhum dos
testemunhos alegados prova a inclusão de leigos no cabido. Os traditi
ligavam-se às comunidades religiosas, mas na sua dependência e à par-
te delas. Os socii de que se fala na p. 259 eram simplesmente, creio,
os clérigos coadjutores dos párocos.
Pelas mesmas razões não sigo A. Barrios na sua interpretação dos
testemunhos que aponta para afirmar que os bispos e clérigos tomavam
parte activa na guerra, ou mesmo para afirmar que «a guerra era a fun-
ção prejerente da hierarquia eclesiástica)) (v. I, p. 255). Efectivamente
também era um princípio importante na reforma gregoriana proibir aos
clérigos usar armas. Não tenho a ingenuidade de pensar que ele fosse
sistematicamente respeitado. Mas não se pode também esquecer que vi-
146
nha ao encontro de uma convicção profundamente arreigada, na men-
talidade popular, isto é, de que a efusão de sangue constituía um acto
que profanava a função sagrada. Assim, o facto de os principais mem-
bros do clero pertencerem por laços familiares ao grupo dos cavaleiros
vilãos, o que é certamente normal, não se segue daí que assumissem in-
teiramente os seus interesses. Em Portugal, onde o entendimento entre
os cavaleiros da pequena nobreza e os cónegos regrantes é manifesto na
segunda metade do século XII, nem por isso estes deixam de exigir aos
seus patronos a carta de liberdade que lhes garante a sua independência.
Assim, quando o foral de Ávila diz que os clérigos «habeant mores mili-
tum», não quer de modo algum dizer que pratiquem o seu modo de vida
(v. I, pp. 199, 245), mas que tinham o mesmo estatuto jurídico, e por-
tanto os mesmos direitos em matéria de impostos, de valor do testemu-
nho e de tratamento nos tribunais. Quanto ao costume de cada cónego
sustentar quatro homens de armas (ib.), trata-se, evidentemente, da
contrapartida da sua isenção militar. Duvido que eles preferissem ou
mesmo lhes fosse permitida a prestação efectiva do serviço de guerra
para serem dispensados do tributo.
Quero finalmente referir alguns pormenores de menor importância,
mas que mesmo assim não me parece dever deixar passar em claro. As-
sim, faço notar a tradução de conventus por «convento» (v. I, p. 249),
quando o contexto dos documentos referidos mostra que se trata do
«capítulo» ou «reunião» conventual. Creio gratuita a afirmação de que
no início o cabido geria directamente os seus bens dominiais (v. I,
p. 291), o que tecnicamente significa que esse domínio só tinha reserva
senhorial. Coisa incompatível com a entrega de porções a colonos, cuja
existência o Autor ao mesmo tempo admite. Não menos gratuita é a
afirmação de que os cónegos estavam na inteira dependência do bispo
(v. I, p. 248). De facto, a tendência geral observada não só na Penínsu-
la, mas em muitas outras regiões, é a de se verificarem períodos relati-
vamente curtos de entendimento, ao lado de frequentes conflitos entre
eles. A divisão entre os bens da mesa episcopal e os da mesa capitular
constitui, justamente, um processo de tentar evitá-los.
Como se vê, para além das questões de pormenor, as minhas diver-
gências a respeito da importante tese de Angel Barrios situam-se quase
sempre nos domínios da história social. Sinal de que não é tão simples
como isso passar das estruturas económicas para as sociais, como ten-
dem a pensar geralmente os autores marxistas, mesmo quando aquelas
se reconstituem com o maior rigor e objectividade, como é aqui o caso.
É evidente que as nossas diferentes opiniões derivam de um diferente
processo interpretativo. Pela minha parte não tenho a pretensão de con-
vencer Angel Barrios a deixar de lado o esquema marxista. Quero ape-
nas perguntar-lhe, com o respeito que o seu trabalho merece, se não se-
ria vantajoso aplicá-lo com um pouco mais de maleabilidade.

147
10. A DIFUSÃO DA MENTALIDADE VASSÁLICA
NA LINGUAGEM QUOTIDIANA (*)

Ao aceitar falar-vos sobre a difusão da mentalidade vassálica na lin-


guagem quotidiana optei necessariamente por uma opinião que não é
partilhada por todos os medievalistas hispânicos. Admitia que nos rei-
nos de Leão, Castela e Portugal (pois será nesta área geográfica da Pe-
nínsula Ibérica que terão alguma validade os elementos e considerações
que a seguir apresento) vigorou efectivamente um sistema de organiza-
ção económico-social a que só se pode chamar «feudalismo». Trata-se
de um pressuposto que está longe de ser aceite pela historiografia hispâ-
nica tradicional. Segundo a maioria dos autores da escola jurídico-ins-
titucional, não teria havido no ocidente hispânico verdadeiro feudalis-
mo. Faltar-lhe-iam os caracteres fundamentais que o definem além-
-Pirenéus; não teria havido senão uma ténue privatização do poder polí-
tico; e o Direito Público não teria sido entre nós tão afectado pela desa-
gregação do conceito de autoridade como na França ou na
Alemanha (t).

(*) Publicado em castelhano in Studia Historica, IV-2, 1986, pp. 171-183.


(!) Como se sabe, estes caracteres foram densamente expressos na definição de
C. Sánchez Albornoz, como «inmadurez dei feudalismo espafiol» Espanã, um enigma
historico, Buenos Aires, 1966, Il, pp. 7-103. A ausência dos caracteres essenciais foi ex-
pressa por L. G. Valdeavellano, in E/ feudalismo hispánico y otros estudios de Historio
medieval, Barcelona, ed. Ariel, 1981, pp. 7-162. Em Portugal, onde a tradição da recusa
de feudalismo vem desde Herculano, teve prestigiosos defensores em Gama Barros e Tor-
quato de Sousa Soares, encontra-se expressa mais recentemente em Marcelo Caetano,
História do Direito Português, Lisboa, ed. Verbo, 1981, pp. 149-174. Na minha opinião
convém não confundir esta questão com as teses marxistas acerca do feudalismo, pois es-
tas tendem a demonstrar a vigência peninsular do modo de produção feudal, ou seja nas
relações de produção que tornam o campesinato dependente dos senhores feudais. Estas
relações, a que os historiadores tradicionais chamam «senhoriais», não são negadas por
eles. Em última análise, a polémica é, a este nível, de carácter terminológico. A verdadei-
ra questão situa-se, portanto, ao nível das instituições e não ao nível das relações de pro-
dução.

149
Devo dizer que não perderei tempo a contestar estes autores. Quan-
do se colocam as questões em termos estritamente jurídicos, a área do
feudalismo propriamente dito, isto é, aquela onde vigorou no seu pleno
rigor o contrato feudo-vassálico, torna-se extremamente reduzida, co-
mo Robert Fossier mostrou ainda recentemente, para a França (2). A tal
ponto que outro autor, Robert Boutrouche, ousava afirmar, em tom de
paradoxo: «11 n'a pas eu de féodalité» (3). Mas se passamos do plano
das instituições para o da mentalidade, inspirando-nos em Georges Du-
by (4), então o feudalismo surge por toda a parte. Efectivamente, uma
coisa é a relação contratual típica, juridicamente definível e identificá-
vel, com as suas consequências para os contraentes, outra, a relação en-
tre senhor e vassalo, ou benfeitor e beneficiado, relação essa baseada
numa aceitação voluntária da dependência de um lado e de protecção
do outro. Mesmo quando aquela é relativamente rara, esta pode ser
muito difundida. A pequena difusão do contrato propriamente dito
não o impede de constituir a própria base do ordenamento social e polí-
tico, ou o modelo a partir do qual este se concebe. Creio que os historia-
dores do Direito Hispânico nunca previram esta objecção.
Antecipando-me às conclusões, que se tornarão evidentes no decur-
so desta exposição, creio poder afirmar que o feudalismo hispânico,
embora se possa efectivamente considerar, em termos jurídicos, fluido,
mal estruturado e pouco coerente, tem uma enorme influência sobre a
vida quotidiana. É o que se verifica ao estudar a difusão da terminolo-
gia vassálica. Com efeito, os seus termos técnicos penetram nos espaços
e ocasiões mais correntes e os seus conceitos utilizam-se para designar,
ainda que por aproximação, uma grande quantidade de situações. Este
fenómeno só se pode explicar admitindo os seguintes princípios: 1) que
foi efectivamente a aplicação do modelo estabelecido pelos compromis-
sos pessoais entre o senhor e o vassalo ou o benfeitor e o protegido o
que inspirou o próprio ordenamento da vida social; 2) que a enorme
importância atribuída aos compromissos pessoais constitui a contrapar-
tida do atrofiamento do poder político e se explica pela sua efectiva in-
capacidade para garantir a segurança pública; 3) que o modelo de rela-
ções próprio da aristocracia guerreira se propagou a todo o corpo so-
cial, embora eventualmente com alterações de significado e de conteúdo
ideológico que o estudo semântico dos vocábulos típicos poderá reve-
lar (s).
Efectivamente, a desagregação do Estado a que se assistiu no início

( 2) Robert Fossier, Enfance de I'Europe. X•-XII• siecles. Aspects économiques et so-


ciaux, Paris, P.U.F., 11, p. 952.
(3) Robert Boutrouche, cit. por Robert Fossier, ibid.
( 4) Georges Duby, Hommes et structures du moyen âge, La Haye, Mouton éd., 1973,
p. 103 e segs.
(S) ld., «La vulgarisation des modeles culturels dans la société féodale», ibid., p. 299
e segs.

150
da Idade Média levou, como se sabe, a substituir por garantias pessoais
o sistema de segurança que ele antes comandava. Voltou assim à super-
fície todo o vasto sistema da fidelidade pessoal que os povos indo-
-germânicos nunca tinham esquecido por completo e que misturava in-
timamente os domínios do público e do privado('). A situação mais tí-
pica era, certamente, a do contrato entre homens livres, pelo qual um se
comprometia a servir o outro, particularmente na vida militar ou no
exercício da autoridade, e este lhe assegurava o sustento a ele e à sua fa-
mília. Mas a terminologia que se adoptou para designar este acto, a si-
tuação dos contraentes, os principais elementos do ritual que o subli-
nhava, os bens entregues, os compromissos assumidos, a eventual in-
fracção e os actos daí decorrentes, aplicou-se também a situações de ou-
tra natureza. Este fenómeno explica-se, por um lado, em virtude da mi-
lenária tradição que o atrofiamento do Estado revigora e, por outro,
porque surgem outros casos aos quais se pretende aplicar a valoração
ideológica que envolve os compromissos vassálicos. Estes casos são to-
dos aqueles em que se dá uma relação entre dois indivíduos, que se pode
considerar simétrica ou assimétrica conforme o ponto de vista. De fac-
to, sempre que existe um compromisso, ao menos tácito, entre dois ho-
mens de poder desigual, mas de categoria semelhante e teoricamente li-
vres, tende a envolver-se a relação num sistema de valores que preten-
dem garantir a estabilidade do vínculo e assegurar o equilíbrio entre os
aspectos que ao mesmo tempo unem e separam os seus actores.
Para isso, apela-se para a sacralidade do compromisso, explicitam-
-se os direitos e deveres dos contraentes, prevê-se a infracção mas
atribui-se-lhe um valor altamente negativo, cria-se toda uma ideologia
dQs valores vassálicos. De facto, o vínculo que, assim, se torna a pró-
pria base da vida social, como forma de preencher as lacunas deixadas
pela desagregação do Estado, tinha necessariamente de ser estável e du-
radoiro. Por isso se envolve num discurso com uma carga ideológica
tão acentuada.
Estas noções muito genéricas parecem-me suficientes para atribuir
um significado histórico ao que a seguir direi, quando enumerar os
principais termos do vocabulário feudal, cuja evolução semântica se
torna, assim, extremamente reveladora. O próprio exame de cada um
deles mostra com clareza como se exprime a mentalidade subjacente à
relação vassálica e a sua aplicação às mais variadas situações da vida
corrente.
Dividiremos este vocabulário em três grupos de palavras: 1) aquelas
que têm mais tradições na Hispânia e que procedem já da época a que
Sánchez Albornoz chamou pré-feudal, embora nem sempre se situem

(') Émile Benveniste, Le vocabulaire des institutions indo-européennes, Paris, éd. de


Minuit, 1969, pp. 103-121.

151
rigorosamente no período visigótico (7 ); 2) aquelas que se podem consi-
derar mais estritamente feudais e que, na sua maioria, pelo menos as
mais significativas, procedem da França; 3) finalmente, os termos que
pertencem à linguagem vulgar, mas podem assumir em determinados
contextos um significado feudal preciso.

Fazem parte do primeiro grupo as palavras fidelis, préstamo, aton-


do e benfeitoria.
A primeira,Jide/is, cujo uso na época visigótica é bem conhecido, (a)
insere-se num conjunto de derivados da mesma raiz (/ides), cuja simples
enumeração é só por si significativa, pelo largo conjunto de situações a
que se aplica. Assim o português medievalfiz, «seguro», ejiuza, «con-
fiança», acabaram por se perder. Mas o verbo fiar, que era sinónimo de
«estar seguro de alguém ou de alguma coisa», tornou-se extremamente
corrente até hoje, com o sentido de «ceder qualquer coisa ao compra-
dor, mediante simples promessa de pagamento», e no derivado confiar,
como «entregar à protecção de alguém». Mas já na Idade Média fiador
era, como hoje, o que se apresentava a si próprio ou aos seus bens como
garante de um compromisso. O étimo está ainda presente em compos-
tos de significado divergente, pelo facto de supor a situação oposta à da
fidelidade e que conduz ou desencadeia o combate, como em desafiar e
talvez mesmo em perjiar que significa «insistir num acto, apesar da
oposição de alguém».
Não se pode deixar de notar que a mentalidade vassálica influi até
na própria palavra de base, /ides, «fé», que, apesar de significar pro-
priamente o «crédito ou qualidade própria de um ser que atrai a con-
fiança, e se exerce sob a forma de autoridade protectora sobre quem se
fia nele», veio a assumir uma acepção predominantemente religiosa por
influência do Cristianismo, evoluindo para «crença ou adesão a
Deus» (9), De facto, a generalização das práticas vassálicas e do ideal de
fidelidade ao senhor feudal fizeram com que a palavra, mesmo num
contexto religioso, significasse muitas vezes «fidelidade aos compro-
missos dos cristãos». Esta acepção era facilitada por uma locução que
se tornou muito corrente em português medieval, a boa fé, no sentido
de «com sinceridade, com lealdade». Esta remetia precisamente para o
juramento feudal.
O segundo termo que queria comentar era préstamo, lat. prestimo-
nium. Tem uma história bem conhecida, traçada por Garcia de Valdea-
vellano e por Hilda Grassotti (to). Como se sabe, usava-se para designar
(7) O pensamento de Sánchez Albornoz a este respeito foi exprc"o .>ohretudo em En
torno a los orígenes de/ Feudalismo, 3 vols., Mendonza, 1942.
(•) Ver Hilda Grassotti, Las institucionesjeudo-vassal/áticas en Léon y Castilla, Spo-
leto, 1969, vol. I, pp. 25-29.
(9) É. Benveniste, ob. cit., pp. 115-121.
(ID) Hilda Grassotti, ob. cit., pp. 562-565; L. Garcia de Valdeavellano, «EI presti-

152
a concessão precária de um bem, normalmente um bem fundiário.
Aqueles autores procuravam sobretudo estudar até que ponto equivaleu
ao termo «feudo». Da comparação ressalta a amplidão da área semân-
tica da palavra peninsular: se é fácil verificar o carácter precário da con-
cessão e, muitas vezes, que ela é a contrapartida do serviço vassálico,
encontram-se também numerosos exemplos do seu emprego para fins
meramente económitos quando o bem se entrega a dependentes do
campesinato ou a protegidos não nobres. A tal ponto que não se pode
ter a certeza de o termo ter efectivamente na origem um significado feu-
dal. De qualquer maneira, veio a entrar na linguagem corrente como si-
nóilimo de «terra cedida a título precário». Como se sabe está na ori-
gem do actual «empréstimo».
Atondo é também um termo já explorado. Significa propriamente
um conjunto de bens móveis cedidos condicionalmente; pode tratar-se
geralmente do equipamento militar, incluindo o cavalo, e implicar a
obrigação do serviço vassálico (u). Não parece, no en,tanto, que a sua
concessão obrigue a juramento de homenagem. Mas também ele se apli-
cou a situações não vassálicas, como concessões a clérigos (u). De resto
o seu uso foi-se reduzindo até desaparecer quase por completo já no sé-
culo XII.
A última palavra do primeiro grupo é. benfeitoria, que está associa-
da propriamente à prática da protecção pelo senhor. Veio a dar, como
se sabe por um estudo célebre de Sánchez Albornoz, a palavra beetria,
cujo significado de «território cujos habitantes tinham o direito de es-
colher o seu próprio senhor ou benfeitor» tem uma configuração insti-
tucional precisa (u). Não entrou, porém, na linguagem quotidiana. Mas
a palavra de origem, com a sua forma muito próxima do latim, benfei-
toria, com o sentido de «protecção» e o verbo correspondente bem fa-
zer= «protegen> entraram no vocabulário corrente, aplicando-se às SI-
tuações mais variadas, paralelamente a termos como mercê e amor, que
também podem ter uma conotação feudal, como veremos mais adiante.
A larga progenitura do termo verifica-se nos vocábulos actuais, com
um significado derivado, que são «beneficência» e «benfeitor». O mais
importante, porém, é que a evocação do contexto feudal confere um

monio. Contribución ai estudio de las manifestaciones de feudalismo en los Reinos de


Léon y Castilla durante la Edad Media, in Anuario de Historio de/ Derecho Espaífol, 25
(1955), p. 122.
(") M. Paulo Merêa, «Sobre a palavra 'atondo'» in Novos Estudos de Hislória do
Direito, Barcelos, 1937, pp. 5-18; Hilda Grassotti, ob. cit., pp. 558-559.
(12) DC 420, p. 259, de 1059. Alguns documentos portugueses usam o termo para a
concessão de bens imóveis: o já citado, de 1059; uma herdade: DC 770, de 1092; e duas
villae: DC, in fine, do fim do século XI. J. Mattoso, Identificação de um País, vol. I,
Lisboa, ed. Estampa, pp. 216-218.
(ll) C. Sánchez Albornoz, «Las Behetrías. La encomendación en Asturias, Léon y
Castilla», in Id., Estudios sobre las instituciones medievales espanõlas, México, Universi-
dad Nacional, 1965, pp. 9-481 (reimpressão da I.• ed., de 1924).

153
sentido preciso e mais intenso do que muitos leitores modernos pensam,
a cantigas de trovadores, onde a palavra bem fazer se aplica, por exem-
plo, ao favor ou aos dons concedidos pela dama ao seu amigo. Aqui o
sentido é rigorosamente vassálico, pois toda a relação entre eles se ex-
prime em termos feudais. A aplicação da terminologia feudal a esta si-
tuação não contribuiu pouco para a difundir na vida quotidiana.

Passemos ao segundo grupo, de origem francesa, cujo carácter mais


especificamente feudal tem sido sempre reconhecido. A importação
destes termos em Leão, Castela e Portugal (14) mostra bem que a cultura
franca tendia a enqulidrar as relações de dependência em termos institu-
cionais mais precisos do que os referidos até aqui. Não é menos signifi-
cativo que este vocabulário importado perca aqui rapidamente o seu
sentido técnico para se diluir em acepções mais vastas e variadas.
Quero-me aqui referir aos termos homagium, comendatio, p/acitum,
vassalus, tenentia e honor. Não comentarei o termo feudo, que tanto
interessou os autores que tratam desta matéria, porque não chega a ser
assimilado na linguagem vulgar antes da época moderna, o que não dei-
xa de ser também significativo.
Homagium e o seu sinónimo hominium aplica-se propriamente ao
acto ritual pelo qual o vassalo se torna «homem» do senhor, mas veio a
designar desde cedo o juramento de vassalidade e conservou frequente-
mente este significado. Mas já no século XII, pelo menos em Portugal,
a palavra directamente importada da Provença, «homenagem», se apli-
ca a outros juramentos solenes e públicos que apoiam compromissos
graves, como por exemplo em acordos bilaterais entre príncipes de na-
ções diferentes (15). Ainda em Portugal, veio a usar-se no acto de reco-
nhecimento da autoridade do senhor do castelo, por parte do respectivo
alcaide, mas também por parte dos concelhos para com o rei ou o res-
pectivo senhor. Os concelhos prestavam então a homenagem ao rei por
ocasião da primeira entrada que ele fazia nesse lugar, depois do ~cu co-
roamento (16). Como se sabe, o termo veio depois a aplicar-se a cerimó-
nias em honra de alguém cujo valor se pretende reconhecer publicamen-
te.
O segundo termo, commendatio, significa, enquanto termo técnico,
o acto pelo qual alguém se entrega à protecção de um senhor; ou então

(14) Ver L. G. de Valdeavellano, E/feudalismo, cit., pp. !16-87. .


(15) Hilda Grassotti, ob. cit., pp. 176-178, 216 e segs. E este o sentido que assume
também nas suas primeiras aplicações em Portugal: DS 30, de 1188: reconhecimento da
autoridade do rei. Nos Annales Domini Alfonsi Portugallensium regis, do fim do sé-
culo XII, usa-se homagium para designar o reconhecimento da autoridade de Afon~o
Henriques pelos reis das taifas que lhe entregavam parias ou tributos pelos castelos de Lis-
boa e Santarém (ed. M. Blõcker-Walter, 1966, p. 156).
(1&) Ver vários testemunhos desta prática em Hilda Grassotti, ob. cit., p. 195 e segs.;
e para Portugal em J. Mattoso, ob. cit., vol. li, pp. 170-171.

154
a própria protecção que ele concede em virtude desse acto. Tem uma
larga difusão, conforme se impõe um ou outro destes dois sentidos.
O primeiro associa-se às formas reflexas encomendar-se, acomendar-se
ou recomendar-se, e o segundo aparece com os mesmos verbos utiliza-
dos como transitivos, sobretudo em encomendar. Em comenda e enco-
menda passa a designar também a «delegação de poderes» ou a «juris-
dição» (11). A ambiguidade da relação estabelecida pela «encomenda»
entre o senhor e o vassalo surge num provérbio atestado para a região
aragonesa no século XIV: «qui sse te comienda caro sse te vende)) (18),
Quer dizer, o senhor que recebe alguém como vassalo adquire sobre ele
uma espécie de propriedade, mas tem de a pagar muito cara.
Mencionemos também a propósito deste vocábulo outros que expri-
mem o mesmo conceito de protecção feudal, mas com um uso técnico
menos claro, em amparar ou emDarar (com o antónimo desamparar) e
ainda ajudar e avidar. Neste último caso a palavra pode alargar o seu
sentido a «favorecer» ou «engrandecem, o que pressupõe igualmente o
poder do sujeito que o faz (n).
Passemos agora a placitum, que veio a dar preito e cujo sentido téc-
nico se nota claramente quando se usa na locução «preito e homena-
gem». Mas a acepção primitiva de «reunião deliberativa» não se perde
totalmente. Associa-se ao significado de «compromisso vassálico» ou
de «reconhecimento expresso da autoridade do senhor>) que tem no
contexto feudal, para vir a usar-se nas situações mais variadas. Assim,
Rodrigues Lapa atribui-lhe, apenas a partir das cantigas de escárnio e
de maldizer dos séculos XIII e XIV, os seguintes sentidos: «questão ju-
dicial», «disputa», «pacto», «acordo», «caso», «negócio», «questão»,
«maneira», «procedimento», «coisa», «acto». O seu amplo espectro
semântico surge com não menos evidência quando se verifica a lista de
locuções reunida pelo mesmo autor e cuja simples enunciação é elo-
quente: «juntar o preito», «talhar preito», «sair a preito», «andar em
preito de», «mover preito», «por seu preito», «a preito que» e «a preito
tal» (2o). Esta amplidão de sentidos mostra uma enorme difusão da pa-
lavra, apesar do seu sentido institucional de origem. Este, de resto, não
oferece dúvidas, porque os filólogos estão de acordo para considerar a
palavra como introduzida na Península por via francesa através do ter-
(17) Sobre a commendatio peninsular, ver C. Sánchez Albornoz, «Las Behetrias»,
cit., pp. 55-88. Para os sentidos vulgares do «comendan> na Idade Média, ver J. P. Ma-
chado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3.• ed. vol. ll, Lisboa, 1977,
p. 190.
(18) Eleanor S. O'Kane, Refranes y frases proverbiales espano/as de la Edad Media,
Madrid, Real Academia Espailola, 1959, p. 108. O refrão é tirado da Romancea prover-
biorum, publicado por A. Ríus Serra, na Revista de Filologia Espaflola, 13 (1926),
p. 368.
(19) M. Rodrigues Lapa, Cantigas d'escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medie-
vais galego-portugueses, Coimbra, ed. Galaxia, 2 1970. Vocabulário, p. 13.
(2°) lbid.• p. 83.

155
mo plaid (21). É verdade, porém, que os múltiplos sentidos acima referi-
dos procedem mais da acepção de «reunião deliberativa ou judicial» do
que de «compromisso vassálico».
Vassa/lus é uma palavra muito conhecida e bem estudada. Hilda
Grassotti pensa que no ocidente da Península se introduz com o sentido
inicial de vassalo propriamente dito, isto é, de «nobre ou homem livre
comprometido para com o senhor por meio de um juramento tácito ou
expresso» (22). Mas em Portugal as primeiras vezes em que aparece pode
já usar-se para designar o dependente não nobre e mesmo o
camponês (23). Isto não impede, porém, de implicar quase sempre, so-
bretudo nos documentos anteriores ao século XIII, uma relação pessoal
bastante forte com o senhor, e, além disso, de se usar frequentemente
no sentido estrito de nobre de linhagem obrigado a deveres militares ou
de serviço pessoal, principalmente para com o rei (24). No entanto, a pe-
culiaridade dos usos feudais peninsulares explica que a palavra tenha
tomado na linguagem vulgar um significado de grande dependência e
mesmo de verdadeira subserviência.
A semântica de ter e dos seus derivados é mais complexa. Como se
sabe, este verbo, com um significado tão genérico como o de «possuir»,
assume um sentido feudal em locuções como «ter de», ou «ter da mão
de», ou «ter por concessão de» e, isolado, quando significa «receber».
Alguns dos seus derivados estão também associados às instituições feu-
dais como por exemplo em manter, que vem a significar «sustentar» e
cujo contexto institucional se pressente ainda no amplo leque dos seus
derivados: «mantença», «mantenedor», «mantedor», «mantenente»,
«manteúdo», «mantieiro» e «mantimento». Com o mesmo étimo, e um
significado técnico e jurídico bem preciso, cite-se tenencia, «a proprie-
dade ou o cargo que se tem por concessão de alguém», e que veio a dar
teença e tença, ou seja um benefício em dinheiro ou bens móveis entre-
gues periodicamente. O seu detentor é obviamente o tenente. Mas a
apropriação pessoal dos cargos públicos explica que tenha tomado, pe-
lo menos em português, o sentido de posto militar, depois de ter signifi-
cado nos séculos XI a XIII o de governador de uma circunscrição terri-
torial. A própria palavra pertencer, que veio rapidamente a perder a co-
notação feudal, tem ainda um uso próximo dela nas primeiras acepções
em que se usa, onde tem o sentido de «ter jurisdição sobre alguém ou

( 21 ) J. P. Machado, ob. cit., vb. «preito», 3.• ed., v. IV, p. 44; J. Corominas, Dic-
cionario crítico etimológico de la lengua castellana, Madrid, ed. Gredos, 1954, v. 111,
p. 819.
(22) Hilda Grassotti, ob. cit., v. I, pp. 33-47.
(23) Tem provavelmente o sentido de vassalos do séquito em DC 914, de 1100; mas de
vassalos de condição inferior em 1125 e 1135 DR 71, 150; ver referências em J. Mattoso,
ob. cit., vol. 11, p. 139.
(24) Sobre a vassalidade em Portugal, ver J. Mattoso, ob. cit., vol. I, pp. 212-225;
vol. 11, pp. 138-151.

156
sobre alguma coisa» (2s), o que supõe a delegação de poderes que se dá
com a concessão de um cargo de tenência. O substantivo detentor
inclui-se também na mesma família vocabular.
Passemos agora a honor. Como se sabe, tinha o significado primiti-
vo de cargo ou função pública, em representação da autoridade supre-
ma (26). Assim se explica que venha a designar o próprio benefício dado
pela mesma autoridade como recompensa, pagamento ou meio de sus-
tento do respectivo detentor. Daí que em Portugal, pelo menos, se use o
termo honra para o domínio nobre, possuído em propriedade plena e
transmitido hereditariamente aos descendentes da mesma linhagem e do
qual se tem, muitas vezes, o próprio nome de família (21). O uso corren-
te na Península de recompensar serviços vassálicos com doações plenas
pro bono et fideli servitio (2a), explica a inteira apropriação destes bens.
A posse patrimonial das funções de autoridade pública pelos nobres,
tão típica dos usos feudais, explica, creio eu, que a palavra honra se te-
nha, por outro lado, convertido na mais típica expressão ideológica da
superioridade aristocrática, no sentido de «dignidade», «prestígio»,
«força», «autoridade» ou «valon>, e só por derivação viesse a tomar o
(25) Embora não seja essa a evolução semântica pressuposta por J. P. Machado,
ob. cit., v. IV, p. 353, que lhe dá o sentido original de «estender-se até», «atingir», «che-
gar a», «ser relativo a», parece-me que a relação semântica entre ter, na acepção indicada
no texto, e as próprias abonações indicadas por aquele Autor exigem o sentido original de
«ter jurisdição sobre alguém ou alguma coisa»: «Mando uos que todolos derectos da~
cousas que a esse Porto perteençem que per i entrarem ... » (1287); « ... e a outros quaacs-
quer oficiaes a que desto o conhicimento perteencer per qualquer guisa que seja a que esta
carta for mostrada ... » (s. XV);« ... pero se aquelle a que pertencesse de aleguar essa ex-
cepçam ... e posta depois da lide contestada, pois que a parte, a que pertencia nom a pode
aleguar antes da lide contestada» (s. XV). O mesmo se diga de pertença: «e estes açougues
vos damos con todas sas perteenças en cambio polo que tiades en Alenquer de nos»
(1257).
(2&) Hilda Grassotti, ob. cit., p. 569, citando Ganshof. Vejam-se as numerosas abo-
nações apresentadas por J. F. Niermeyer, Mediae latinitatis lexicon minus, Leiden, E. J.
Brill, 1958, pp. 495-496, na acepção 8, «charge publique élevée», com citações sobretudo
das épocas merovíngia e carolíngia; na acepção 14, «bénéfice, fief», pp. 496-497, com ci-
tações entre os anos 811 e 1040; e ainda na acepção 20, «seigneurie», pp. 497-498, com ci-
tações entre 1033 e 1139. Os dados reunidos por Grassotti levam a crer que estes significa-
dos se mantivessem para a palavra, ao ser introduzida na Península no século XI. As dú-
vidas apresentadas por esta Autora na interpretação dos elementos que apresenta pare-
cem resultar de considerar principalmente o tipo de bem e o seu detentor «actual». Dado
que a maioria se refere a benefícios concedidos directamente pelo rei, tendo em conta a
origem do termo, pode-se perguntar se o traço comum que os une não é justamente o fac-
to de haverem sido, na origem, concedidos por ele para recompensar serviços de autorida-
de, embora em casos concretos se tivesse perdido a memória de tal origem.
(27) Sobre as «honras» em Portugal, ver H. da Gama Barros, História da Adminis-
tração Pública em Portugal nos Séculos Xll a XV, 2.• ed., v. li, Lisboa, Sá da Costa,
1945, pp. 430-433, onde se nota uma certa perplexidade na explicação do termo, quando
aplicado a terra imune, e sobretudo no facto de se usar também couto para designar terras
imunes.
(21) Sobre as doações pro bono et fideli servitio, ver Hilda Grassotti, ob. cit., pp.480-
-552.

/57
sentido de «honestidade». Assim, veio a opor-se a «vergonha», mesmo
em meios não nobres, e a implicar um determinado conjunto de regras
comportamentais variáveis, conforme o sujeito do qual se exigem. As
suas sucessivas derivações semânticas, no entanto, só se podem explicar
quando se verifica o significado primitivo do termo e a mentalidade
feudal, que permite a comunicação da autoridade ou da superioridade
do senhor ao vassalo a quem ele delega o poder, mediante o contrato
feudal (29).
Resta, do segundo grupo de palavras consideradas, o vocábulo tra-
ditio, «traição». Já no latim do Baixo Império, o verbo Irado podia ter
o sentido de «trair». A sua fortuna na área semântica do feudalismo
explica-se, decerto, porque a forma mais reprovável e mais típica da in-
fracção da homenagem era a entrega (a traditio) ao inimigo do senhor
do benefício dele recebido para compensar os respectivos serviços. Foi
certamente por um alargamento de sentido a qualquer espécie de infrac-
ção ou aliança com o inimigo, e não tanto, talvez, por persistência do
termo latino, que a traição adquiriu um sentido fortemente pejorativo,
para exprimir o acto mais reprovável que um homem podia praticar, se
tornar, no derivado traidor, o maior dos insultos. Compreende-se que
fosse este o conceito antitético postulado pelo ideal de fidelidade, que
valoriza tão fortemente o respeito pelos compromissos tomados no ju-
ramento feudal. Assim, o homem da Idade Média, que chamava a Ju-
das «traidor», não evocava apenas o acto de entrega, traditio, de Jesus
aos fariseus, mas a quebra da fidelidade pessoal ao Senhor, e via nele o
protótipo de vassalo infiel e desleal (lo).
Na Península, no entanto, encontra-se um sinónimo de origem ger-
mânica, aleive (u), com uma evolução curiosa, pois, tendo significado
na origem a traição propriamente dita, já no século XII se usava no
sentido derivado de «fraude» ou «perfídia», vindo a dar, em aleivoso, a
acepção de «impostor», e no feminino a de «mulher infiel» ou «adúlte-
ra». Assim, os ouvintes que, no século XIII, ouviam o Cantar dos In-
fantes de Lara, onde se chamava «aleivosa» a D. Lambra, pois ela le-
vou o marido a infringir o compromisso que tinha para com os infan-
tes, seus vassalos, podiam pensar mais na sua perfídia ou mesmo consi-
derá-la adúltera. Assim, o termo importado de «traidor» veio a suplan-

(29) Sobre a evolução do conceito de honra e as suas conotações ideológicas, ver


J. Mattoso, «Problemas sobre a estrutura da família na Idade Média», in Brocara Augus-
ta, 36 (1982), reproduzido em Portugal Medieval. Novas Interpretações, Lisboa, Impren-
sa Nacional, 1985, pp. 241-258.
(lO) A figura de Judas como protótipo do traidor aparece já nas fórmulas visigóticas
das sanctiones ou maldições dos escatocolos dos documentos. É um dos elementos destas
fórmulas que se mantém durante mais tempo e com o mesmo sentido: J. Mattoso, «Sane-
tio, (875-1100)», in Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, Imprensa Na-
cional, 1982, pp. 417-418.
(31) Ver J. Corominas, ob. cit. v. I, pp.108-109; J. P. Machado, ob. cit., I, p. 186.

158
tar o autóctone de origem germânica que deixou de se usar depois do sé-
culo XV (32).

O último grupo de termos que queria comentar é constituído por se-


nhor, serviço, ajuda e conselho. A sua característica comum é, como
disse, a de pertencerem à linguagem vulgar, mas adquirirem em contex-
to feudal um significado institucional preciso. A vulgaridade e a difu-
são que têm na vida corrente, e hoje, o desaparecimento das instituições
vassálicas, faz-nos perder o sentido que nesse caso certamente tinham.
É preciso evocá-las para lhes restituir a sua força própria.
De facto, embora senhor se use para designar tanto o proprietário
do servo como o do vassalo, tem sentido feudal quando se emprega em
relação ao homem livre. O sentido primitivo da palavra, senior, o
«mais velho», inspira-se na idade do chefe da casa ou da família, opa-
triarca. Tanto podia indicar a autoridade sobre os dependentes livres
como sobre os servos. Mas a conotação doméstica mostra que se usou
inicialmente para designar o que tinha autoridade sobre os vassalos do
séquito, que habitavam com ele, e sobre os escravos. Não há dúvida que
o seu sentido evolui para designar o nobre que pode exercer poderes se-
nhoriais, isto é de carácter público, apesar de exercidos a título pessoal.
Quem se lembra, hoje, desta origem, ao usá-lo quase como sinónimo de
«homem», embora com um conteúdo de certo respeito?
Voltando, porém, à Idade Média, durante a qual a ambivalência do
sentido «senhor de vassalos» ou «proprietário de servos» não se tinha
perdido, pode-se apontar a fortuna do termo na poesia lírica, para de-
signar a dama cortejada. Só a qualidade de homem livre, e mesmo, de
nobre que geralmente era o trovador, pode explicar que se dirigisse à
dama chamando-lhe «senhora» (aliás, até ao século XIII, sob a forma
única de «senhor»). Todavia, a polissemia do termo era de molde a su-
gerir que quem o usava para com ela exprimia ao mesmo tempo o in-
condicional serviço, e se apresentava ficticiamente também como servo.
O termo acentua, portanto, a ficção lírica e o carácter lúdico das canti-
gas de amor ou de amigo.
Servir é o verbo que exprime propriamente o trabalho e as obriga-
ções do servo, isto é, do homem não livre. Mas, por alargamento,
aplica-se também às obrigações do vassalo, que, de alguma maneira, ce-
de uma parte da sua liberdade; por isso designa igualmente o serviço
vassálico. Trata-se, portanto, de um termo correlativo de senhor e com
conotações semânticas paralelas. Assim, só o contexto pode ajudar a
decidir se designa o trabalho do servo ou a obrigação do vassalo.
A mesma ambiguidade que se verificava antes acerca de senhor,
encontra-se também aqui. Também os trovadores usam a palavra servir
e os seus derivados, o que quer dizer que se apresentam como vassalos
(32) J. Corominas, ob. cit., v. I, p. 109.

/59
da senhora amada, mas sugerindo ao mesmo tempo que se fazem seus
servos.
Assim é de facto o tipo de relações pessoais determinado pelos cos-
tumes vassálicos o que inspira muitas cantigas de amor ou de amigo.
Para exemplificar citarei apenas uma, em que os termos mais precisos
de preito e de lealdade permitem atribuir ao verbo servir o sentido preci-
so de serviço vassálico. Pertence a João de Guilhade, trovador de ori-
gem modesta que viveu em meados do século XIII, na dependência de
grandes senhores, mas que frequentou também as cortes de Afonso 111
de Portugal e de Afonso X de Castela.

Mai-la donzela que muit'á servida


o seu amigo, esto lh'é mester,
dê-lhi sa cinta, se lhi dar quiser,
se entender que a muito á servida
mais, se x'el quer outro preito maior,
maldita seja quen lh'amiga for
e quen se d'el tever por [ben] servido.
E de tal preito non sei end' eu ren,
mais, se o ela por amigo ten,
non lhi trag'ellealdade comprida (33).

Passemos a ajuda e conselho, dois termos que exprimem as obriga-


ções decorrentes da homenagem, mas se usam principalmente para ex-
primir o auxilium por parte do senhor e o consilium por parte do vassa-
lo. Aplicam-se também aos deveres recíprocos de igual natureza por
parte do outro contraente da homenagem. Ajudar, no entanto, embora
possa usar-se no sentido feudal é, com esta acepção, menos usado do
que amparar ou benfazer, que já comentámos. Não acontece o mesmo
com o conselho, e os termos com a mesma raiz, que, na linguagem feu-
dal, não têm qualquer equivalente. Embora o termo se use em muitas si-
tuações, creio ser o sentido feudal, aquilo que o seu uso evoca na mente
de quem o utiliza e o ouve. Ao ouvir os termos conselho e aconselhar o
homem medieval pensava provavelmente na assembleia de vassalos ou
membros do séquito com quem o senhor deliberava e cuja reunião ex-
primia publicamente a sua autoridade. Por isso aparece associado a vá-
rios outros termos do mesmo vocabulário, por exemplo numa cantiga
do rei D. Dinis de Portugal, em que uma dama se queixa do seu namo-
rado:

(33) J. J. Nunes, Cantigas de Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, v. li,


Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, n. 0 191.

160
Amigo fals'e desleal
que prol á de vos trabalhar
de na mia mercee cobrar?
ca tanto o trouxestes mal
que non ei de vos benfazer,
pera m'eu quisesse, poder.

Vos trouxestes o preit 'as si


come quen non é sabedor
de ben, nen de prez, nen d'amor
e por en creede per mi
quenonei...

Caestes en tal [o]cajom


que sol conselho non vos dei
ca já vos en desemparei
en guisa, se Deus mi perdon
que non ei... (34).

Aqui o sentido de conselho apoia-se no uso de mercee, ben fazer,


preito e desamparar. Ao «desamparar» o vassalo desleal, o senhor dei-
xa de estar obrigado a prestar-lhe «conselho» e «bem fazer».
Para terminar, não posso deixar de notar que termos tão correntes
como amor e amigo podem significar as relações de benevolência e de
fidelidade que devem unir o senhor e o vassalo. Encontram-se numero-
sos exemplos do seu uso neste sentido (n). Assim se compreende o senti-
do propriamente vassálico do ideal de amor invocado pelo conde
D. Pedro de Barcelos, filho do rei D. Dinis, no prólogo ao seu célebre
Livro de Linhagens:

«Compuge este livro[ ... ] por meter amor e amizade antre os nobres
fidalgos da Espanha, e como que entre eles deve haver amizade se-
gundo seu ordinamento antigo, em dando-se fe pera nom fazerem
mal üus aos outros, a meos de torvarem a este amor e amizade por
desfiarem-se.»

E diz, de maneira ainda mais precisa, que o nobre necessitado, àquele

(34) ld., ibid., n. o 34.


(35) Assim, por exemplo no acordo entre D. Teresa e D. Urraca, entre 1112 e 1126:
«qui li sedeat amica per fed sine maio engano» (DR 31); na carta do rei Sancho I ao rico-
-homem, ao alcaide e aos homens bons de Lisboa, em 1210, a quem chama «amicos et va-
sallos naturales» (DS 195); na maneira como Pedro Fernandes de Castro se refere ao con-
selho dos seus vassalos, em 1224: «ego habito consilio cum uiris prudentibus et amicis et
uassalis meis»: Maria H. da Cruz Coelho, O Mosteiro de Arouca do Século X ao Sé-
culo Xlll, Coimbra, Universidade, 1977. p. 237.

161
que «é de gram poder deve-o servir porque vem de seu sangue. E se é
seu igual deve-o d'ajudar. E se é mais pequeno que si deve de lhe fazer
bem, e todos devem seer de üu coraçom (3&).
A relação de benevolência ou de fidelidade estabelecida pelo com-
promisso vassálico serve, portanto, de modelo para conceber um ideal
de solidariedade fundado no «amor» que impõe a entre-ajuda, o servi-
ço ou a protecção feudal.
Era necessária esta explicação para mostrar que os sentidos vassáli-
cos de amor e amigo dão uma ressonância diferente da que hoje se atri-
bui às cantigas designadas justamente por estes termos. Não se trata
apenas, ou talvez nem sequer se trate aí propriamente de uma relação
sentimental ou passional, mas de uma atitude de benevolência, de uma
disposição para conceder dons e favores ou para prestar serviços, com
um verdadeiro compromisso de fidelidade baseado na promessa ou no
juramento (37). Como é evidente, o modelo institucional desta relação é
a homenagem feudal. Não se pode esquecer este significado do vocabu-
lário para se apreender o sentido da poesia lírica onde se usam expre-
sões que hoje têm apenas uma ressonância sentimental.

Esta enumeração já vai longa, mas poderia ainda continuar com a


análise de termos como dizer verdade, amo, dom e dona, mercê ou cria-
do; dos vocábulos relacionados com a vida da corte, como cortesia, ou
mesura, ou donzel e ainda das palavras associadas à vida militar como
mesnada, gente, cavaleiro, escudeiro, infanção, etc. Todos eles podem
assumir conotações feudais em determinados contextos. Os exemplos
que apontei, no entanto, já são mais do que suficientes para revelar,
através do léxico medieval, a enorme e complexa rede de relações cria-
das pelos compromissos vassálicos, assim como os conceitos de interde-
pendência pessoal e a ideologia que o seu emprego revela.
A solidariedade feudal surge, assim, muito mais presente e difundi-
da do que parecia à primeira vista, e tendo em conta os argumentos pro-
duzidos pelos autores que negam a vigência do feudalismo no ocidente
da Hispânia. As análises jurídicas feitas pela historiografia positivista
mostraram, sem dúvida, a raridade de compromissos feudais estritos.
Mas ocultaram uma realidade extremamente fluida, rica e pluriforme,
que se exprime a partir do modelo do compromisso pessoal que neles es-
tá presente. De facto, é no quadro das instituições vassálicas que se ins-

(3&) Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (ed. J. Mattoso, Lisboa, Academia das
Ciências, 1980), v. I, pp. 55 e 57.
(37) Ver várias das abonações dos termos «amor» e «desamor» nas cantigas de escár-
nio e mal dizer, referidas por Rodrigues Lapa, ob. cit., vocabulário, pp. 8 e 33. Em al-
guns ·destes passos é evidente o sentido feudal destes dois termos. Um interessante estudo
consistiria em averiguar em que contexto é que a palavra adquire o sentido de sentimento
sexual.

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pira a terminologia para designar a maioria das relações pessoais basea-
das num compromisso que se pretende estável e no qual se inspira o
próprio ideal de solidariedade social.
Hoje ninguém se lembra da origem vassálica de expresões como
manter, benfeitor, pertencer, fé, fiador, confiança, pleito, e tantos ou-
tros que citei. Mas a sua enorme difusão mostra bem como a mentalida-
de feudal inspirou as formas mais vulgares das relações humanas, tanto
no domínio privado como no público. A relação feudo-vassálica é,
pois, verdadeiramente estruturante do ordenamento social. Não se po-
de negar que as formas jurídicas do contrato feudal típico sejam pouco
claras e se torne difícil distingui-las de compromissos mais vagos e até
impossíveis de definir no campo do Direito. Mas a redução dos casos tí-
picos talvez resulte muito mais de uma vã tentativa de aplicar à Idade
Média, sobretudo à época recuada que vai até ao século XIII, esquemas
mentais modernos e um sentido de rigor que de facto é inadequado para
julgar os hábitos sociais então vigentes.
De qualquer maneira, a mentalidade vassálica ajuda-nos a com-
preender com mais rigor as raízes da nossa sociedade. A visão do mun-
do que a linguagem actual revela está ainda profundamente marcada
pelas concepções de fidelidadé e de compromisso à palavra dada, nas
quais se baseava, afinal, desde os longínquos tempos das tribos
indo-germânicas, a própria sociedade.

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