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PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo.

São Paulo: Boi


Tempo, 2017. Tradução: Paula Vaz de Almeida.

Sem dúvida, há que se reconhecer um grande mérito de Kelsen. Com sua corajosa
coerência, ele levou ao absurdo a metodologia do neokantismo com seus dois
princípios. De fato, verifica-se que o “puro” princípio do dever-ser, livre de todas as
impurezas do ser, do factual, de todas as “escórias” psicológicas e sociológicas, em
geral não tem nem pode ter definições racionais. Pois, para o dever-ser puramente
jurídico, ou seja, incondicionalmente heterônomo heterônomo, até mesmo fim é algo
estranho e indiferente. O “tu deves afim de que”, de acordo com Kelsen, já não é o “tu
deves” jurídico. – pág. 70.

[...] um conceito como o do direito não pode ser exaustivamente compreendido por uma
definição que segue as regras da lógica escolásticas per genus et differentia specifica. –
pág. 73

Não há fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação
social. A norma de caráter geral não se distingue de sua aplicação concreta;
consequentemente, isso acaba por confundir as ações do juiz e do legislador. – pág. 76.

Marx, portanto, concebi a transição para o comunismo desenvolvido não como uma
transição para novas formas de direito, mas como a extinção da forma jurídica em geral,
como uma extinção dessa herança da época burguesia que se destina a sobreviver à
própria burguesia. – pág. 79.

[...] o direito, considerado em suas determinações gerais, como forma, não existe
somente na cabeça e nas teorias dos juristas especialistas. Ele tem, paralelamente, uma
história real, que se desenvolve não como um sistema de ideias, mas como um sistema
específico de relações, no qual as pessoas entram não porque o escolheram
conscientemente, mas porque foram compelidas pelas condições de produção. O homem
se transforma em sujeito de direito por força daquela mesma necessidade em virtude da
qual o produto natural se transforma em mercadoria dotada da enigmática qualidade do
valor. – pág. 83.

Para o pensamento que não extrapola os limites das condições de existência burguesa,
essa é uma necessidade que não pode ser percebida de outro modo que não o da
necessidade natural; é por isso que a doutrina do direito natural, conscientemente ou
inconscientemente, está na base da teorias burguesas do direito. A escola do direito
natural é não apenas a mais viva expressão da ideologia burguesa, em uma época em
que a burguesia surgia como classe revolucionária, formulando de maneira aberta e
clara suas demandas, mas também é a escola que oferece a mais profunda e nítida
compreensão da forma jurídica. Não é por acaso que o florescer das doutrinas de direito
natural quase coincide com o advento dos grandes clássicos da economia política
burguesa. – pág. 83

A sociedade burguesa tem sede de estabilidade e de poder fonte. No centro da teoria


jurídica, portanto, já não está a análise da forma jurídica, mas o problema da
fundamentação da força coercitiva dos preceitos jurídicos. Cria-se um peculiar mistura
de historicismo e positivismo jurídico que se reduz à negação de qualquer direito além
do oficial. – pág. 84

Finalmente, o extremo formalismo da escola normativista (Kelsen) expressa, sem


dúvida, a decadência geral do pensamento científico burguês corrente, que, ansioso por
esgotar-se em métodos estéreis e artifícios lógicos formais, flerta com sua completa
ruptura diante da realidade da vida. Na teoria econômica, ocupam um lugar
correspondente os representantes da escola matemática. – pág. 85.

A relação jurídica é, para usar um termo de Marx, uma relação abstrata, unilateral; nessa
unilateralidade, ela se revela não como um resultado do trabalho racional da mente deu
m sujeito, mas como um produto do desenvolvimento da sociedade. – pág. 85.

O que Marx diz aqui de categorias econômicas é totalmente aplicável às categorias


jurídicas, - pág. 85.

[...] temos duas épocas de ápice do desenvolvimento dos conceitos jurídicos gerais:
Roma, com seu sistema de direito privado, e os séculos XVII-XVIII da Europa, quando
o pensamento filosófico descobriu o significado universal da forma jurídica como uma
oportunidade de realizar a vocação da democracia burguesa. – pág. 86.

[...] os conceitos jurídicos gerais podem entrar, e de fato entram, como parte de
processos ideológicos e de sistema ideológico – e isso não é alvo de nenhuma
controversa -, mas, para eles, para esses conceitos, é de certo modo impossível revelar a
realidade social mistificada. – pág. 88

Podemos entender o último neokantiano Kelsen, que sustenta a objetividade normativa,


ou seja, puramente ideal, do Estado, descartando não apenas os elementos substanciais
materiais, mas, ainda, a psique humana real. – pág.91.

[...] o direito regula as relações sociais. Ao excluir dessa formulação certo


antropomorfismo que lhe é inerente, encontra-se a seguinte proposição: a regulação das
relações sociais em determinadas condições assume um caráter jurídico. Essa
formulação, não se pode negar, é a mais correta e, historicamente, mais justa. Não
podemos contestar o fato de que a vida coletiva está presente também na vida dos
animais e que igualmente ali, de dada maneira, existe um tipo de regulamentação. Mas
jamais passaria por nossa cabeça afirmar que a relação entre formigas e as abelhas é
regulada pelo direito. Se passarmos para os povos primitivos, podemos notar um germe
do direito; contudo, parte significativa das relações é regulada de maneira extrajurídica,
por exemplo, pelas prescrições religiosas. Por fim, até mesmo na sociedade burguesa,
atividades como a organização dos serviço postais, das estradas de ferro, do Exército
etc. podem ser atribuídas integralmente à regulamentação jurídica apenas sob um olhar
extremamente superficial, que se deixa enganar pela forma externa das leis, dos
estatutos e dos decretos. – pág. 92.
[...] o núcleo mais consolidado do universo jurídico (s eé possível expressar-se dessa
maneira) repousa precisamente sobre o domínio das relações de direito privado. É
justamente aí que o sujeito de direito, a “persona”, encontra sua encarnação mais
adequada na personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário
detentor dos interesses privados. É justamente o direito privado que o pensamento
jurídico age com mais liberdade e segurança; sua construção adquire o aspecto maios
acabado e harmonioso. [...] O dogma do direito privado não é nada além de uma série
infinita de considerações pro et contra reivindicações imaginárias e possíveis
demandas. Em cada parágrafo do sistema, oculta-se um cliente abstrato disposto a
utilizar as disposições pertinentes como aconselhamento jurídico. Os debates jurídico-
científicos sobre o significado do erro ou da repartição do ônus da prova em nada
diferem dos debates que se travam perante os tribunais. A diferença aqui não é maior
que aquela existente entre os torneios de cavalaria e a guerra feudal. Os torneios, como
se sabe, eram travados com maior obstinação e neles se despendia não menos energia e
sofrimento do que no combate real. Apenas a substituição da economia individualista
pela produção e distribuição social planificada dará fim a esse gasto improdutivo das
forças intelectuais do homem. – pág. 93

Uma das premissas fundamentais da regulamentação jurídica é, portanto, o antagonismo


dos interesses privados. – pág. 94

[...] o direito, enquanto conjunto de normas, não é nada além de uma abstração sem
vida. – pág. 97.

Na realidade material, a relação prevalece sobre a norma. Se nenhum devedor pagasse


suas dívidas, a regra correspondete deveria, então, ser considerada realmente
inexistente, e se quiséssemos, a qualquer custo, sustentar sua existência, deveríamos, de
uma maneira ou de outra, fetichizar essa norma. Fetichizações assim são abundantes nas
diversas teorias do direito e se baseiam em reflexões metodológicas extremamente sutis.
– pág. 98.

O direito como um fenômeno social objetivo não pode esgotar-se na norma nem na
regra, seja ela escrita ou não. A norma como tal, ou seja, o conteúdo lógico, ou deriva
diretamente de uma relação já existente ou, se é dada na forma de uma lei do Estado,
representa apenas um sintoma por meio do qual é possível prever com certa
probabilidade o surgimento em um futuro próximo das relações correspondentes. Mas,
para afirmar a existência objetiva do direito, não basta conhecer seu conteúdo
normativo, é necessário, antes, saber se o conteúdo normativo tem lugar na vida, ou
seja, nas relações sociais. – pág. 98 e 99.

O estudo científico, ou seja, teórico, pode se basear apenas nos fatos. Se as relações se
formarem realmente, significa que se criou um direito correspondente; se uma lei ou
decreto forem apenas promulgados, mas as relações correspondentes não surgirem na
prática, significa que houve uma tentativa de criar o direito, mas essa tentativa não foi
bem-sucedida. – pág. 99.

O direito, historicamente, começou com o litígio, i.e., com a ação judicial [...] A
dogmática jurídica se esquece dessa sucessão histórica e começa de repente com o
resultado pronto, com a snormas abstratas, com as quais o Estado, por assim dizer,
preenche todos os espaços sociais, atribuindo características jurídicas a todas as
condutas aí existentes. – pág. 104.

O poder estatal confere clareza e estabilidade à estrutura jurídica, mas não cria seus
pressupostos, os quais estão arraigados nas relações jurídicas, ou seja, de produção. –
pág. 104.

Se a tentativa de reduzir o direito de propriedade a uma proibição diretamente


endereçada a terceiros não é mais que um procedimento lógico, uma construção
deformada, virada do avesso, então a representação do direito burguês de propriedade
como um dever social não passa de hipocrisia. - pág. 108.

De forma mais filosófica, o problema do direito subjetivo e do direito objetivo é o


problema do homem burguês e do homem membro do Estado, do citoyen. – pág. 111.

Como marxista, não coloquei nem poderia colocar a tarefa de formular uma teoria da
“dogmática jurídica pura”. – pág. 115.

Toda relação é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o
elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto. – pág. 117.

O fechismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico. – pág. 124.

[...] a propriedade tem pouco em comum, do ponto de vista lógica, com o principio
orgânico e natural da apropriação privada como um desdobramento da força pessoal ou
como condição de consumo e de uso pessoal. [...] A propriedade capitalista da terra não
pressupõe nenhum tipo de ligação orgânica entre a terra e o proprietário; aliás, ela é
concebível apenas se estiver sujeita à livre transmissão de uma mão para a outra, à livre
transação da terra. – pág. 132.

A tomada do poder político pelo proletariado é a premissa fundamental do socialismo.


Contudo, como a experiência demonstrou, a produção e a distribuição plenamente
organizadas não podem substituir, de um dia para o outro, as trocas mercantis e as
ligações mercantis entre unidades econômicas distintas. Se isso fosse possível, a forma
jurídica da propriedade já teria sido historicamente superada. – pág. 135.

A relação jurídica não pressupõe por sua própria “natureza” um estado de paz, assim
como o comércio, a princípio, não exclui o assalto à mão armada, mas anda de mãos
dadas com ele. – pág. 139

A diferença entre a doutrina do direito natural e o mais novo positivismo jurídico está
apenas no fato de que o primeiro percebe com mais clareza as conexões lógicas entre o
poder abstrato do Estado e o sujeito abstrato. – pág. 148.

O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem totalmente conveniente para a
burguesia, pois substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde das massas o
domínio da burguesia. A ideologia do Estado jurídico é mais conveniente que a
religiosa, porque ela, além de não refletir a totalidade da realidade objetiva, ainda se
apóia nela. A autoridade como “vontade geral”, como “força do direito”, na medida em
que se realiza na sociedade burguesa representa um mercado. – pág. 148.
Se um homem se encontra em poder de outro, se é um escravo, seu trabalho deixa de ser
criador e substância de valor. A força de trabalho de um escravo, assim como a de um
animal doméstico, transfere para um produto apenas determinada parte dos custos de
sua própria produção e reprodução. – pág. 152 e 153.

A ideia de valor supremo e de igualdade entre pessoas humanas tem uma longa história:
da filosofia estóica, ela chegou ao cotidiano dos juristas romanos, aos dogmas das
igrejas cristã e, em seguida, às doutrinas do direito natural. [...] Mas qualquer que seja a
roupagem que essa ideia assuma, nela não é possível descobrir nada além da expressão
do fato de que diferentes tipos concretos de trabalho socialmente úteis se reduzem ao
trabalho em geral, uma vez que os produtos do trabalho, começam a ser comercializados
como mercadorias. – pág. 154 e 155.

O imperativo categórico de Kant reúne essas exigências contraditórias. Ele é


supraindividual, porque não tem nenhuma relação com qualquer motivação natural,
como paixão, simpatia, compaixão, sentimento de solidariedade etc. Ele, a expressão de
Kant, não ameaça, não convence, não bajula. Está situado, em geral fora de quaisquer
motivos empíricos, ou seja, puramente humanos. – pág. 155 e 156.

Assim, chega-se a conclusão de que a moral, o direito e o Estado são formas da


sociedade burguesa. [...] Se o proletariado necessita usá-las, isso não significa de modo
nenhum a possibilidade do desenvolvimento futuro dessas formas recheadas com um
conteúdo socialista. Elas não têm condições de acomodar esse conteúdo e devem
perecer na medida de sua realização. Mas, por enquanto, na atual época de transição, o
proletariado tem o dever de usar segundo seus interesses de classe tais heranças das
formas da sociedade burguesa e, assim, esgotá-las completamente. – pág. 160.

O dever jurídico, não sendo capaz de encontrar para si um significado autônomo, oscila
eternamente entre dois limites extremos: a imposição externa e o dever moral “livre”. –
pág. 164

A origem do direito penal está ligada historicamente ao costume da vingança de sangue.


– pág. 167.

A jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado que apenas em


certo grau diferencia-se das assim chamadas medidas excepcionais aplicadas no
momento da guerra civil. – pág. 172.

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