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FÓRUM FORUM 1755

A finitude humana e a saúde pública

Human finitude and public health

Sergio Rego 1
Marisa Palácios 2

Abstract Introdução

1 Escola Nacional de Saúde Death is an implicit subject in both health prac- A morte é um tema presente, explicitamente
Pública Sergio Arouca,
tice and health professionals’ training. There is ou não, nas discussões sobre a assistência e
Fundação Oswaldo Cruz,
Rio de Janeiro, Brasil. a tendency by health professionals to reduce this promoção da saúde e organização de serviços.
2 Faculdade de Medicina, analysis merely to technical aspects. This paper Mas é também um assunto a não ser nomina-
Universidade Federal
analyzes the importance of adopting quality do, seja no âmbito familiar, seja no profissio-
do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. care at the end of life as a guide for public health nal. A morte ainda é vista, por muitos profissio-
care. We highlight relevant aspects for training nais de saúde, como um fracasso, incapacida-
Correspondência
health professionals to respect moral differences de ou incompetência, uma vez que eles foram
S. Rego
Departamento de Ciências and to be prepared to discuss their own points formados para combatê-la. A incerteza, parcei-
Sociais, Escola Nacional de of view. ra constante no exercício profissional, é uma
Saúde Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz.
coadjuvante da insegurança e um estímulo pa-
Rua Leopoldo Bulhões 1480, Hospice Care; Health Policy; Quality of Life; ra a resistência ao “êxito letal”. Mas, como diz o
Rio de Janeiro, RJ Bioethics dito popular, a morte é a única coisa certa na
21041-210, Brasil.
rego@ensp.fiocruz.br
vida, de tal forma que se pode considerar que é
a consciência da própria morte o que nos hu-
maniza. O morrer deixou de ser um fenômeno
doméstico e passou a ser público 1, passando a
morte do ambiente familiar ao hospitalar. Se os
indivíduos passaram a morrer no hospital, pois
sua medicalização levou os enfermos para lá
na esperança de cura, nos dias atuais, a depen-
dência tecnológica e a pressão dos custos de
internação tensionam essa decisão. Não obs-
tante haver claramente um movimento inter-
nacional de (re)valorização da morte na resi-
dência do enfermo, é razoável levantar-se dú-
vidas sobre qual dos benefícios de tal posição
seja seu principal fundamento: se a desejada
“humanização” do processo de morrer 2 ou se
a redução de custos a ele relacionados.

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O desenvolvimento biotecnológico e a re- sim, não é relevante também definir objetiva-


volução cultural ética 3 tornaram obsoletas as mente o início desse “caminho”.
tradicionais respostas baseadas no princípio O cuidado emerge como uma questão na
da sacralidade da vida. Assim, outros princí- qualidade do fim da vida nos anos 90 7. Cuida-
pios passaram a ser levados em consideração dos no fim da vida englobam um conjunto de
na tomada de decisões, assumindo especial teorias e práticas que têm por objeto central o
importância a discussão sobre a qualidade da processo de morrer. Não deve ser uma prática
vida. Entendemos com Schramm 4 que, consi- restrita a especialistas, mas um dos marcos
derando seriamente o pluralismo moral e ético principais no processo de formação da equipe
vigente nas sociedades complexas, não cabe de saúde. A qualidade do fim da vida demanda
fazer uma tentativa de síntese entre os princí- cuidados específicos de diversos profissionais,
pios da sacralidade da vida e da qualidade da que lidam com o “caminho sem volta” e que é
vida. “Repensar a vida em termos de suas ‘qua- impossível precisar a duração ou mesmo o mo-
lidades’ e ‘nudez’ ou ‘desamparo’ constitui uma mento de início. Doenças graves/crônicas que
condição para começar a pensar também, em levam à morte também acometem crianças e
âmbito crítico, os desafios que a biotecnociên- adolescentes. O processo de morrer também
cia parece colocar para a Bioética” 4 (p. 21), en- deve ser objeto de cuidado nesse caso. E que ti-
tendida como uma ferramenta que pode de- po de cuidado é esse? Em uma pesquisa 7, es-
fender tanto “‘a vida nua’ quanto a vida consi- pecialistas em cuidados paliativos identifica-
derada do ponto de vista da ‘sacralidade’ e/ou ram seis elementos considerados chaves: qua-
da ‘qualidade’” 4 (p. 21). Entendendo que a pro- lidade de vida geral; desempenho e bem-estar
teção do bem-estar de populações é uma das físico; desempenho e bem-estar psicossocial;
preocupações essenciais do campo da Saúde bem-estar espiritual; a percepção do paciente
Coletiva, a Bioética inscreve, no campo, tam- acerca do cuidado; as percepções e o bem-es-
bém a preocupação com o bem-estar do indiví- tar da família. Pesquisas posteriores mostra-
duo, lembrando que não se deve perder de vis- ram que há diferenças significativas quando a
ta a individualidade quando se observa a cole- pergunta é dirigida a especialistas em cuidados
tividade e nem a coletividade quando se ob- paliativos, a outros profissionais de saúde ou
serva o indivíduo 5. pacientes 7. É que a perspectiva do cuidado de-
Trata-se aqui de propor e entender o cuida- ve ser uma perspectiva dialógica. O cuidado é
do como norteador da assistência aos indiví- algo a ser compartilhado. Pressupõe o respeito
duos no final de suas vidas. Para tal, discutire- à autonomia dos sujeitos na perspectiva da
mos o próprio conceito de cuidado no âmbito proteção e em seu contexto social e familiar:
da assistência à saúde para, em seguida, bus- considerando o estado de destituição no qual
car delinear de que forma a questão do cuida- uma considerável parte da população se en-
do no final da vida é e precisa ser tomada co- contra, há que haver, por parte dos profissio-
mo objeto da Saúde Coletiva, além das profis- nais e do sistema de saúde, ações que possam
sões diretamente envolvidas com a prestação minimizar ou corrigir algumas das circunstân-
dos serviços. Procuraremos identificar de que cias que tornam essas pessoas especialmente
forma os profissionais da Saúde Coletiva têm vulneráveis.
considerado e se posicionado em relação às Cabe ao campo da Saúde Coletiva/Saúde
questões relacionadas ao fim da vida para de- Pública contribuir para o planejamento de ser-
fendermos medidas estratégicas e urgentes na viços e sistemas de saúde que contemplem a
preparação de profissionais e técnicos de saú- questão do cuidado no fim da vida, assim como
de aptos a discutirem o cuidado não só em uma formular e contribuir na implementação de po-
perspectiva de assistência multidisciplinar, líticas setoriais específicas, inclusive na forma-
mas também com o compromisso do diálogo ção de recursos humanos em saúde. Mas essa
como eixo condutor na tomada de decisões. discussão não pode dar-se em um vazio moral,
fundamentado apenas na hegemonia técnica.
Nela, não se incluem, de fato, as diferentes ques-
Fim da vida e assistência à saúde tões morais e nem o conjunto de temas que são
mantidos camuflados no cotidiano da assistên-
É preciso encarar não a morte como evento, cia, deixados, muitas vezes, apenas ao arbítrio
mas o processo de morrer, como afirmaram, de um ou outro profissional de saúde.
entre outros, Siqueira-Batista & Schramm 6 (p. Císio Brandão destacou que está cada vez
38): “não é a morte o que realmente importa, mais clara a idéia que ele chamou de “cuidado
mas sim o seu processo, a certeza de que a vida total aos pacientes”, assinalando que “cuidados
se enveredou por um ‘caminho’ sem volta”. As- paliativos não são apenas uma opção terapêu-

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tica, mas sim um direito de todos que objetivam ria subestimar o erro, e a maior ilusão seria su-
uma melhor qualidade de vida diante de situa- bestimar a ilusão. O reconhecimento do erro e
ções potencialmente ameaçadoras (...), não ape- da ilusão, entretanto, é o mais difícil, já que eles
nas no final da vida, mas em todas as fases da não se reconhecem como tal. Entendendo a ra-
vida e no transcurso de doenças ainda ditas co- cionalidade como corretiva da percepção dos
mo incuráveis, como a grande maioria dos cân- sentidos, deve-se, contudo, aceitar a idéia de
ceres, HIV/AIDS, DPOC, insuficiência cardíaca, que a racionalização é a perversão da raciona-
doenças neurológicas degenerativas, em geria- lidade, uma vez que se crê perfeita por ser fun-
tria e outras, onde o foco principal do tratamen- damentada em deduções e induções e é fecha-
to é a qualidade de vida” 8. A maioria das uni- da, enquanto a racionalidade é aberta. Para Mo-
dades hospitalares brasileiras não apenas não rin 14, a racionalidade dialoga com o real e não
possui uma diretriz sobre como cuidar de seus é uma exclusividade da ciência ou do dito “Oci-
pacientes que estejam com um quadro termi- dente”. Daí que se deve reconhecer um princí-
nal, mas também não há informações sistema- pio de incerteza racional, que é uma prevenção
tizadas sobre como esses últimos momentos contra o erro e a ilusão.
são vividos, seja pelos pacientes, seja por seus A tecnificação do conceito de futilidade te-
familiares, com as exceções de praxe 9. rapêutica e a tentativa de reduzir o processo de
Destaca-se também a Política Nacional de decisão sobre o tipo de cuidado que deve ser
Humanização que, nos últimos três anos, orien- oferecido aos pacientes compõem um modo
ta esforços pela valorização dos sujeitos envol- de evitar as difíceis questões morais relaciona-
vidos no processo de produção de saúde e fo- das, que não desaparecem nem são respondi-
menta a autonomia e o protagonismo desses das com a sua tecnificação. Até porque as evi-
sujeitos 10. As ações de humanização promovi- dências que confeririam certeza a esse tipo de
das pelo Ministério da Saúde têm ampliado as abordagem não são isentas de problemas de
discussões em torno do respeito ao usuário e método, que, eventualmente, contaminam os
aos trabalhadores dos serviços e, em alguns resultados finais 15. Além disso, há a impossibi-
hospitais, têm atuado fomentando atenção in- lidade de derivarmos valores de fatos, nos ter-
tegral ao fim de vida. Mas ainda estamos muito mos da Lei de Hume 6.
longe de atingirmos tais propósitos. A integra- Um exemplo da confusão entre argumen-
lidade preconizada é vista como imagem-obje- tos da ordem científica em contraposição a ar-
tivo 11 multifacetada, significando a integração gumentos morais é visto na discussão sobre fu-
das ações curativas, reabilitadoras, preventi- tilidade/obstinação terapêutica e distanásia,
vas, em benefício da qualidade de vida do su- marcada por uma certa devoção à tecnologia.
jeito em sua rede de apoio. Defende-se a introdução de “fundamentos ra-
cionais na alocação de recursos de cuidados de
saúde considerando a limitada disponibilidade
Racionalidade como ilusão deles, o que determina necessariamente que al-
gumas intervenções estão distantes de alguns
A formação em saúde prepara o indivíduo para indivíduos” 16 (p. 958). Um exemplo é a utiliza-
lidar com três tipos de incertezas 12: a incerte- ção de escores de avaliação do conjunto de si-
za sobre se o que o profissional não sabe é de- nais, sintomas e indicadores fisiológicos e, as-
corrente do pouco estudo e pequena experiên- sim, pretensamente tornar-se possível elaborar
cia ou se é uma ignorância geral da profissão. A um guia seguro quanto ao provável desenlace
terceira incerteza seria sobre como diferenciar da situação clínica. Algo assim tornaria o con-
entre as duas primeiras. Engelhardt 13 apontou ceito de futilidade terapêutica um conceito es-
o caráter probabilístico do conhecimento cien- sencialmente técnico, resultado da avaliação
tífico. Sendo probabilístico, as certezas tam- preditiva tornada possível com os estudos sis-
bém o seriam, guardando, portanto, sempre temáticos semelhantes aos que são desenvolvi-
uma margem de incerteza estrutural. Assim, dos na elaboração de diretrizes e protocolos
frente à tamanha incerteza, observa-se um pa- clínicos 17,18.
drão de resposta por parte dos responsáveis Não se discute o sofrimento dos pacientes
pela assistência à saúde quando consideram e das pessoas que lhes são afetivamente próxi-
que existem dilemas ou problemas morais re- mas, mas os recursos envolvidos nessa assis-
levantes envolvidos com seus objetos de traba- tência, em uma opção implicitamente econo-
lho: buscar aumentar os seus graus de certeza, micamente utilitarista. Assim, o atendimento
ancorando-se em suas bases científicas. ou não das necessidades dos pacientes no final
A educação do futuro deveria enfrentar o da vida passa a ser simplesmente uma questão
problema do erro e da ilusão 14. O maior erro se- econômica – até quando vale a pena, financei-

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ramente, investir? Essa opção, entretanto, tam- ética) ou tecnicistas. Por que não pensarmos no
bém é uma opção que deveria levar a uma re- bem que se faria a essas pessoas que provavel-
flexão ética – que, em geral, também não é feita. mente serão afetadas negativamente em seus
No campo da Saúde Pública, o legítimo es- interesses quando incluídas em algum grupo
forço para a maior racionalização e fundamen- que, na avaliação técnica, não “merece investi-
tação das decisões com indicadores com razoá- mentos para sobreviver ou ter sua qualidade de
vel grau de validade e precisão permeia os de- vida melhorada” de tomar a decisão que achar
bates no campo do planejamento há muitas dé- mais adequada para sua vida, inclusive abre-
cadas. Das experiências do planejamento nor- viá-la, se for o caso? Não se deve é permitir, por
mativo às modernas abordagens estratégicas, preconceito ou ignorância, que pessoas sejam
busca-se não só a racionalização desse proces- condenadas a um fim de vida sofrível e não lhes
so de alocação de recursos no sentido de maior sendo formalmente permitido optar sobre co-
eficácia como também no de maior justiça. Tais mo ele será.
esforços aproximaram os campos da Economia
e o da Saúde Pública. Foram construídos al-
guns indicadores que teriam utilidade promo- Processo de morrer e formação
vendo uma alocação mais racional dos recursos: do pessoal de saúde
o QALY (Quality-Adjusted Life Year) e o DALY
(Disability-Adjusted Life Year). Os fundamen- Não basta criar rotinas ou discutir formas efi-
tos e propósitos de ambos os indicadores são cazes de organizar os serviços se não atuamos
semelhantes: o QALY é a unidade de medida de na formação de quem estará nesses serviços. O
utilidade que combina anos de vida ganhos co- processo de trabalho em saúde se realiza na re-
mo resultado de intervenções de saúde ou pro- lação entre aquele que necessita de assistência
gramas de assistência à saúde com um julga- e o profissional. O trabalho não se expressa em
mento sobre a qualidade desses anos de vida, e um produto, ele é imediatamente consumido
o DALY “é um indicador que procura medir si- no momento de sua realização. O processo de
multaneamente o impacto da mortalidade e formação, necessariamente, deve contribuir
dos problemas de saúde que afetam a qualida- para o desenvolvimento de competências e ha-
de de vida dos indivíduos (…) mede os anos de bilidades específicas relacionadas com o cui-
vida perdidos seja por morte prematura ou in- dado em fim de vida. Ele deve considerar a com-
capacidade em relação a uma esperança de vi- preensão da morte como evento da vida, parte
da ideal” 19 (p. 899). integrante dela e não como algo que deva ser
A despeito das boas intenções que levaram combatido não importa em que condições.
à criação do QALY, do DALY e de outros tantos A medicina integra um conjunto de dispo-
indicadores econômicos destinados a orientar sitivos que visam controlar a vida, disciplinar
racionalmente a alocação de recursos, eles es- os corpos para o trabalho 23 e à acumulação de
tão longe de serem aceitos sem reservas pela capital. Construindo um discurso sobre o nor-
comunidade científica. As críticas mais signifi- mal e medicalizando o desviante, a medicina
cativas vêm do campo da ética, embora não só logrou estabelecer os padrões de funcionamen-
20, e derivam desde o reconhecimento de pro- to humano. Essa é a tônica das profissões de
blemas éticos decorrentes dos métodos de pes- saúde. Nessa perspectiva, a morte tem sido o
quisa utilizados para construir o indicador – o momento que lhe escapa algo que deve ser ab-
“time trade off” teria problemas teóricos de va- solutamente afastado. Nesse sentido, introdu-
lidade e de consistência interna, o que tornaria zir a morte e o processo de morrer como temá-
inapropriado seu uso como uma medida exa- tica para a formação dos profissionais de saú-
ta 21 – como até mesmo o fato de pressupor de pode parecer indevido, já que não atenderia
que a vida de alguém com incapacidade tem à lógica imposta por esse entendimento do pro-
menor valor/utilidade que a de alguém sem in- cesso de trabalho em saúde. Daí que, mesmo en-
capacidades, o que suscita, no mínimo, um lar- tre profissionais bem intencionados que atuam
go debate ético 22. no campo dos cuidados paliativos, já existe a
Nenhuma dessas questões é habitualmente discussão de se criar especialidades que foquem
discutida no âmbito dos cursos de graduação a assistência dos pacientes em fim de vida.
em saúde e só eventualmente surgem nos pro- Esse questionamento mostra, mais uma vez,
gramas de pós-graduação. Os profissionais de que é imperiosa a radicalização da transição
saúde não estão preparados e nem atentos a paradigmática na área da saúde – do combate
essas questões. Não é a toa que a reação mais à doença e à morte ao cuidado. Instituir o cui-
habitual seja a de negar a discussão, buscando dado como paradigma das profissões de saúde
saídas já predefinidas (como são os códigos de implica na emergência do sujeito, autônomo,

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senhor de sua história construída de forma para a realização de uma relação eticamente
compartilhada. Assim deve ser a história do fundamentada.
fim da vida de cada um: dirigida pelo titular da É nessa perspectiva que se insere o cuidado
vida ou a quem o poder de decidir for legitima- no fim da vida: é algo que é pensado e realiza-
mente atribuído, história construída de forma do, em cada caso concreto, de forma comparti-
compartilhada com os profissionais de saúde lhada, entre seres autônomos que se respeitam
que o assistem e com as pessoas mais próximas e que constroem um processo de morrer no
afetivamente. Nessa perspectiva, todas as op- qual os profissionais, por meio de um conheci-
ções devem estar legítima e legalmente dispo- mento técnico, podem contribuir para que es-
níveis para os indivíduos, desde o cuidado in- se processo seja vivido dignamente com o mí-
tensivo até a eutanásia e o suicídio assistido. nimo de sofrimento para o próprio e seus cui-
A atitude de tomar a realidade nas mãos e dadores. No nível social, é uma opção radical
de assumir o papel e a responsabilidade cabida na construção de um mundo mais justo e soli-
na construção de uma história compartilhada dário.
significa conhecer, refletir sobre os melhores É difícil, entretanto, afirmar que as refor-
caminhos e agir no sentido de contribuir para mas que vêm sendo implementadas no ensino
um mundo mais saudável. Isso faz de cada pes- das profissões de saúde já trilhem o caminho
soa envolvida no processo de trabalho em saú- desejado de despertar a consciência e a sensi-
de um agente na construção de uma sociedade bilidade moral e o compromisso com o respei-
mais justa, na concretização do direito à saúde. to ao outro e com o diálogo, embora seja possí-
Assumir essa responsabilidade implica em uma vel identificar, nos documentos oficiais que
defesa sistemática da dignidade, não só da po- amparam os processos de reforma, a intenção
pulação que busca os serviços de saúde, mas de conferir à formação um forte componente
também das pessoas envolvidas na prática pro- humanístico 24. Falta, entretanto, a compreen-
fissional. Ocupar o papel e a responsabilidade são que sem o enfrentamento das questões mo-
de estar no mundo significa pensar na inclusão rais relacionadas com o processo de formação
da humanidade como objeto de nossas preo- e a preocupação com a formação de pessoas
cupações morais, assumindo, para além do dis- autônomas e comprometidas com o respeito
curso retórico, o compromisso com o bem-es- aos direitos humanos e com o diálogo não che-
tar dos indivíduos e das populações que po- garemos a mudanças mais sustentáveis na qua-
dem ter (e freqüentemente têm) valores dife- lidade da assistência e no respeito aos indiví-
rentes que os dos profissionais que o assistem, duos que procuram assistência profissional no
tornando o diálogo respeitoso como premissa sistema de saúde brasileiro.

Resumo Colaboradores

A morte é uma questão implícita na prática e na for- Ambos os autores tiveram participação em todas as
mação dos profissionais da saúde. Há, todavia, uma fases do artigo.
tendência dos profissionais de saúde de restringir sua
discussão aos aspectos meramente técnicos, seja na as-
sistência à saúde, seja nas ações de saúde pública. Este
artigo analisa a importância da adoção do cuidado de
qualidade no fim de vida como norteador das práticas
assistenciais e a necessidade de que o campo da Saúde
Pública tome esses cuidados como objeto de reflexão e
de pesquisas. Por fim, aponta-se para aspectos rele-
vantes para a formação de profissionais de saúde para
que sejam respeitadores das diferenças e comprometi-
dos com o diálogo.

Cuidados Paliativos; Política de Saúde; Qualidade de


Vida; Bioética

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