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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA


MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

Carolina Peres de Lima

GESTÃO DO PROCESSO DO MORRER E SEDAÇÃO PALIATIVA: DEBATE EM


TORNO DA PRESCRIÇÃO

Rio de Janeiro-RJ
2016

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Carolina Peres de Lima

GESTÃO DO PROCESSO DO MORRER E SEDAÇÃO PALIATIVA: DEBATE EM


TORNO DA PRESCRIÇÃO

Projeto apresentado ao Instituto de Estudos em


Saúde Coletiva, como requisito para o
desenvolvimento da Dissertação de Mestrado
em Saúde Coletiva.

Orientadora: Rachel Aisengart Menezes

Rio de Janeiro-RJ
2016

1
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 3

1. OBJETO DE INVESTIGAÇÃO ..................................................................................... 4

1.1. Perspectivas sobre as atitudes diante da morte .......................................................... 4

1.2. A gestão do morrer e o modelo de uma “boa morte” .................................................. 10

1.3. Sedação paliativa ...................................................................................................... 14

2. OBJETIVOS ................................................................................................................. 20

2.1. Objetivo Geral ........................................................................................................... 20

2.2. Objetivos Específicos ................................................................................................ 20

3. METODOLOGIA ......................................................................................................... 21

3.1. Descrição do objeto de estudo ................................................................................... 21

3.2. Análise Documental .................................................................................................. 24

4. CRONOGRAMA ......................................................................................................... 27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 28

ANEXO I ............................................................................................................................. 32

1. Tabela de artigos do levantamento bibliográfico ........................................................ 32

ANEXO II ........................................................................................................................... 33

2. Cronograma .............................................................................................................. 33

2
INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema dos Cuidados Paliativos surgiu a partir de minha experiência
como psicóloga residente do Instituto Nacional de Câncer, onde fui alocada na unidade
destinada especificamente aos doentes considerados “fora de possibilidade terapêutica de
cura” (FPTC), o Hospital do Câncer IV (HC IV). Em um ano acompanhei situações críticas
no cotidiano da assistência, o que consistiu em estímulo ao aprofundamento do tema. Dilemas
em torno do tratamento, abordagem medicamentosa e gestão dos últimos momentos de vida
do doente eram frequentes na rotina hospitalar, suscitando discussões em equipe, com a
participação do doente e seus familiares, em algumas situações. Desta experiência profissional
surgiram inúmeras indagações: Até que ponto a equipe de saúde pode administrar o fim da
vida? Como possibilitar que o doente exerça sua autonomia quando este não se encontra
lúcido? A família deve participar do processo decisório? Após o término da residência,
ingressei no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva (IESC/UFRJ), na área de concentração Ciências Sociais e Humanas em
Saúde, na linha de pesquisa Abordagens Sociológicas dos Processos Saúde-Doença, sob a
orientação da Professora Rachel Aisengart Menezes. Decidi então, empreender pesquisa sobre
o tema da sedação paliativa, seus dilemas e prescrições.
Os debates em torno do fim da vida enfocam as intervenções do aparato médico sobre
corpo, vida, sofrimento e morte. Tais discussões têm se tornado cada vez mais frequentes, não
só no âmbito médico, como na sociedade em geral, na contemporaneidade. A proposta
assistencial dos Cuidados Paliativos consiste em um modelo recente de gestão do período
final da vida, com o objetivo principal de propiciar qualidade de vida ao enfermo, com
controle dos sintomas, para produzir uma boa morte. Pautada neste ideário, a sedação
paliativa constitui uma opção para alcançar esta finalidade.
A sedação paliativa é definida como a redução intencional do nível de consciência do
doente, com o objetivo de controlar sintomas causadores de grave desconforto em
consequência da evolução de doenças incuráveis e progressivas, na qual a morte é iminente
(SOUSA; ESPADA; POSSO, 2010, p. 617). Neste sentido, os profissionais que atuam nesta
área afirmam que a intenção principal da sedação não é acelerar a morte, mas proporcionar
alívio do sofrimento causado pela impossibilidade de controle dos sintomas (FERREIRA,
2008; SOUSA; ESPADA; POSSO, 2010; KIRA, 2012). Apesar de ser uma prática legal no
Brasil e em outros países, a sedação paliativa é capaz de gerar questionamentos no processo

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decisório, principalmente no que tange à participação do doente e seus familiares, e também
propiciar uma comparação equivocada da sedação, com as práticas da eutanásia e do suicídio
assistido. A partir de um estudo inicial sobre o tema foi possível observar a relevância de uma
análise aprofundada sobre a sedação paliativa. Este projeto de pesquisa tem como objetivo
apreender as prescrições em torno da sedação paliativa, em manuais e livros-texto sobre o
tema.

1. OBJETO DE INVESTIGAÇÃO

1.1. Perspectivas sobre as atitudes diante da morte

O processo do morrer, como outros fenômenos sociais, pode ser vivenciado de


diferentes formas, de acordo com o contexto histórico e social (MENEZES, 2004, p.24). Os
significados atribuídos à morte variam historicamente. A morte constitui objeto de estudo das
ciências sociais desde o início do século XX, com expressivo desenvolvimento a partir dos
anos 1960, quando pesquisadores notaram mudanças nas atitudes diante da morte
(MENEZES, 2004, p. 24). Ariès (2012) empreendeu pesquisa histórica pioneira, para
compreender as mudanças nas atitudes sociais frente à morte, desde a Idade Média até o
século XX. Segundo este autor, o modelo de “morte tradicional”, presente na sociedade até o
século XIX, é caracterizado pela participação da comunidade nos últimos momentos de vida
do moribundo. O aviso da proximidade da morte era dado por intermédio de signos naturais
ou por convicção íntima, do próprio indivíduo adoecido (ARIÈS, 2012, p. 33). A partir desta
percepção, o moribundo tomava decisões acerca de sua vida e delegava aos familiares funções
e tarefas a serem cumpridas após sua partida. Assim, a pessoa participava ativamente do
processo de morrer, e era o protagonista de sua própria história. De acordo com o autor, “a
morte era uma cerimônia pública e organizada pelo próprio moribundo, que preside e conhece
seu protocolo” (ARIÈS, 2012, p. 39).
Neste período, a morte fazia parte do ambiente doméstico: familiares, vizinhos e,
inclusive, crianças participavam dos rituais fúnebres, portanto era uma experiência familiar e
onipresente. Os ritos da morte eram vividos de forma dramática e expressiva, pois havia
espaço para expressão de sentimentos. A morte era considerada um processo inevitável da

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vida. O homem não cogitava evitá-la nem exaltá-la, simplesmente a aceitava, “com a
solenidade necessária para marcar a importância desta etapa” (ARIÈS, 2012, p. 50).
Para Elias (2001, p. 19), Ariès (2012) considerou o modelo de “morte tradicional” de
forma idealizada. De acordo com este autor, é certo que a morte era tema mais aberto e
frequente na sociedade tradicional, um evento menos oculto, contudo, o que não significava
que se tratasse de uma experiência tranquila e pacífica (ELIAS, 2001, p. 21). Com o
crescimento das cidades e a proliferação de moléstias infecciosas, o medo da morte era
constante na rotina da população, o que tornava esta experiência temida por todos. Segundo
Elias (2001, p. 20), a transformação do comportamento social, em especial entre os séculos
XVIII e XX, em relação à morte é um dos aspectos do processo civilizador.
Em seu estudo histórico, Ariès (2012) retrata a degradação da relação do homem com
a morte e apresenta uma visão crítica com relação ao período moderno, marcado pelo
afastamento da morte do cotidiano da sociedade. Até o século XVIII, o hospital era uma
instituição essencialmente voltada para a assistência dos pobres, sendo também um local de
separação e exclusão. Neste período, o hospital era administrado por religiosos ou leigos que
buscavam a salvação divina através da caridade aos pobres (FOUCAULT, 1981, p. 102).
Segundo Foucault (1981, p. 101), “o personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é
o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo”.
O hospital como instrumento terapêutico surgiu no final do século XVIII, juntamente à
transformação do conhecimento que instituiu a racionalidade anatomoclínica como
fundamento da medicina (MENEZES, 2004, p. 28). Passou-se a morrer no hospital, local no
qual eram prestados os cuidados que já não poderiam mais ser ofertados em casa. O hospital
não era visto como um espaço para a cura, mas para morrer, pois tornou-se inconveniente
morrer em casa (ARIÈS, 2012, p. 86).
Com as mudanças nos conhecimentos sobre o corpo, o médico passou a ser um
importante personagem, para o qual a sociedade ocidental moderna delegou os cuidados dos
doentes e moribundos (MENEZES, 2004, p. 28). Ao longo deste processo, os rituais
associados ao fim da vida também se modificaram. Segundo Ariès (2012, p. 87), algumas
formalidades foram mantidas, como a cerimônia que marca a partida do enfermo, porém esta
deveria ocorrer discretamente, evitando a expressão de qualquer emoção mais intensa. A
demonstração de dor e pesar não inspirava pena por parte da sociedade da época, mas
repugnância, era entendida como uma perturbação mental ou um sinal de má educação. “Só se

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tem o direito de chorar quando ninguém vê nem escuta: o luto solitário e envergonhado é o
único recurso” (ARIÈS, 2012, p. 87).
Após a segunda metade do século XX, a gestão do processo do morrer se modifica,
com a criação e o desenvolvimento de tecnologia voltada à manutenção da vida, como o
respirador artificial. A ampliação tecnológica para o campo da medicina tornou-se um dos
fatores para a mudança nos limites entre a vida e a morte, além da passagem para uma prática
médica racionalizada e tecnologizada (MENEZES, 2003, p. 105). Com o deslocamento do
local da morte – da residência, como era no modelo de “morte tradicional” – para o hospital,
além da crescente normatização e institucionalização da assistência em saúde, instaura-se uma
forma de gestão do processo do morrer denominado como modelo de “morte moderna”. Nele,
o moribundo encontra-se submetido a regras e rotinas institucionalizadas, sem acesso a
informações acerca de seu estado clínico e opções terapêuticas. Há, portanto, uma exclusão do
doente – e de seus familiares – de seu processo de morrer. Neste modelo, o poder de decisão é
do médico, sem diálogo com pacientes e seus familiares.
O modelo de “morte moderna” é caracterizado por uma assistência em saúde
impessoal, mecânica e asséptica, onde a morte no hospital torna-se monitorada, controlada,
inconsciente e silenciosa (MENEZES, 2004, p. 33). O doente é submetido a regras e rotinas
institucionais, que privilegiam a eficácia médica. Neste cenário, o moribundo encontra-se
subordinado ao poder médico, com pouco ou quase nenhum acesso a informações acerca de
seu estado de saúde (MENEZES, 2003, p. 131). Para Menezes (2011, p. 1434), o ocultamento
de informações neste cenário reordena as relações de poder entre médico, doente e família, o
que coloca estes diferentes atores sociais em posições hierárquicas desiguais, interferindo
diretamente o processo de tomada de decisão.
Este modelo de gestão da morte pode ser exemplificado por meio da descrição
realizada por Menezes (2006) em seu estudo etnográfico em um Centro de Terapia Intensiva,
no qual buscou apreender as práticas e lógicas que perpassam tal contexto:
“Os pacientes internados no CTI permanecem deitados, pessoas
imóveis, aparentemente dormindo, com fios e tubos conectados a seus
corpos. A maior parte respira por aparelhos. Assemelhavam-se, por
vezes, a corpos inanimados” (MENEZES, 2006, p. 33).

Segundo Elias (2001, p. 36), as rotinas institucionalizadas dos hospitais dão alguma
estruturação social para o processo de morrer, contudo, estas são em sua grande maioria,
destituídas de sentimentos e emoções, o que acaba por contribuir para o afastamento do
moribundo. O conceito de “morte moderna”, portanto, abrange o crescente afastamento do

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doente da cena da morte, que não encontra mais espaço para a expressão de seus desejos e
escolhas.
Diante do crescimento do poder médico e a consequente exclusão do doente da
dinâmica de cuidado e do processo de morrer, surgem na década de 1970 movimentos que
reivindicavam os direitos destes doentes, emergindo um novo discurso que propunha um
olhar diferenciado para estas questões (MENEZES, 2004, p. 36). As críticas centrais ao
modelo de “morte moderna” apontavam para o processo de despersonalização e objetivação
dos internados em hospitais, especialmente daqueles em estágio terminal da doença
(MENEZES, 2003, p. 131).
Neste contexto surgem propostas de uma nova forma de assistência ao último período
de vida de doentes graves, como a filosofia hospice e os Cuidados Paliativos. Esta modalidade
de assistência postula um atendimento à “totalidade bio-psico-social-espiritual” do doente
categorizado como “fora de possibilidades terapêuticas de cura” (FPTC) e de seus familiares.
Moulin (2009, p. 50) afirma que a criação de centros de Cuidados Paliativos coincidiu com o
momento em que “a medicina aceitou o luto da intenção curativa”, onde os profissionais se
voltaram para o enriquecimento dos instantes finais da vida do paciente. O ideário paliativista
propõe uma transformação na relação entre médico e doente, por meio do resgate da
autonomia e do direito a uma “morte com dignidade”.
Em contraste com o modelo de “morte moderna”, eminentemente curativo e tido como
frio e direcionado apenas ao órgão e à doença, sem espaço para a expressão do doente,
configura-se o modelo de “morte contemporânea”, que busca propiciar “qualidade de vida” ao
enfermo no tempo restante. Assim, o paciente deve expressar seus desejos e escolhas, para
uma equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos.
A pioneira deste movimento na Inglaterra foi a assistente social, enfermeira e médica
Cicely Saunders, que fundou em Londres o St. Christopher Hospice1, em 1967. Esta foi a
primeira instituição exemplar da filosofia Hospice que tem como objetivo o alívio da dor e
outros sintomas de doentes em fase final de vida e, simultaneamente, o resgate da autonomia e
independência dos mesmos (MENEZES, 2004, p. 36). A experiência de cuidar de um
paciente com um câncer avançado até sua morte estimulou Cicely Saunders a questionar os
cuidados que vinham sendo oferecidos aos moribundos (MATSUMOTO, 2012, p. 24).
Saunders criou o termo “dor total”, para designar um tipo de sofrimento que abrange as

1
De acordo com o Manual de Cuidados Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, a história dos
Cuidados Paliativos se confunde com o termo hospice, que diz respeito a um abrigo destinado a receber e abrigar
peregrinos e viajantes no século V (MATSUMOTO, 2012, p. 24).
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dimensões físicas, sociais, psicológicas e espirituais envolvidas no processo do morrer
decorrente de doença degenerativa, como, por exemplo, o câncer. Para Cicely Saunders, a dor
deixou de ser apenas mais um sinal indicativo de doença, tornando-se um problema a ser
tratado. Ela rompe com a ideia de dependência relacionada ao uso de morfina, passando a usar
este medicamento por via oral, de forma preventiva e regular (MENEZES, 2004, p. 59).
Saunders tornou-se uma militante em prol dos direitos aos moribundos e reivindicava
a necessidade de uma medicina voltada especificamente para essa etapa da vida, centrada no
controle da dor e dos sintomas (MENEZES; HEILBORN, 2007, p. 567). Os movimentos que
apontavam o abandono de enfermos com doenças avançadas pelo sistema de saúde inglês se
expandiram e, em 1985, foi fundada a Associação de Medicina Paliativa da Grã-Bretanha e
Irlanda, sendo a Inglaterra o primeiro país a reconhecer a Medicina Paliativa como uma
especialidade médica (MENEZES, 2004, p. 54).
O conceito de “dor total” de Cicely Saunders, associado às pesquisas farmacológicas
desenvolvidas por estímulo desta médica inglesa, foram fundamentais para o desenvolvimento
da proposta de cuidados ao doente terminal. Cabe acrescentar a apropriação dos estudos e da
teoria elaborada por Elizabeth Kübler-Ross na assistência psicológica ao doente diagnosticado
como “fora de possibilidades terapêuticas de cura” (FPTC). Kübler-Ross (2008), psiquiatra
suíça radicada nos Estados Unidos, empreendeu pesquisas em um hospital americano,
acompanhando e entrevistando pacientes com doença avançada, acerca de sua vivência. Ela
formulou uma teoria sobre os estágios psicológicos pelos quais o doente terminal passa, ao
tomar conhecimento do diagnóstico e do prognóstico do avanço inexorável da enfermidade,
na direção da morte. Apesar de a autora afirmar que seu trabalho não se caracteriza como um
“manual sobre a maneira de tratar moribundos, tampouco um estudo exaustivo da psicologia
do moribundo” (KÜBLER-ROSS, 2008, p.3), sua produção foi apropriada pelas equipes
médicas como um modelo no qual os pacientes deveriam ser classificados, e não como um
apelo à escuta de suas demandas (MENEZES, 2003, p. 105). Os cinco estágios formulados
por Kübler-Ross são: a negação, que serviria como proteção depois de notícias inesperadas ou
difíceis; a raiva, acompanhada por sentimentos de ressentimento, ódio, desgosto, revolta; a
barganha, fase na qual o paciente busca “negociar” seu desfecho inevitável; a depressão,
caracterizada por um quadro de intensa tristeza, juntamente com um sentimento de perda; por
fim, a etapa da aceitação, quando o doente aceita seu estado e vivencia este período de forma
mais tranquila e serena (KÜBLER-ROSS, 2008, p. 117).

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Diferentemente do Reino Unido, o movimento dos Cuidados Paliativos nos Estados
Unidos partiu de uma organização popular e comunitária, com pouca participação dos
médicos. O primeiro hospice norte-americano foi criado em 1974, pela oncologista filipina
Josefina Magno (MENEZES, 2004, p. 54). Em 1975, o cirurgião canadense Balfour Mount
inaugura a primeira unidade de Cuidados Paliativos no Canadá. O termo palliative care2 é
criado por ele, sendo utilizado para nomear a disciplina voltada para o cuidado a doentes em
final de vida (MENEZES, 2004, p. 54).
O movimento dos Cuidados Paliativos se expandiu pela Europa e América Latina. Em
1982, o comitê de Câncer da Organização Mundial de Saúde criou um grupo de trabalho para
definir políticas que tivessem como objetivos o alívio da dor e outros sintomas e os cuidados
aos doentes com câncer (MACIEL, 2008, p. 18).
De acordo com Menezes (2004, p. 37) este modelo recente de assistência ao processo
de morrer vem se difundindo em três planos. O primeiro é o da produção social e divulgação
em meios de comunicação, como jornais, revistas de grande circulação, filmes, peças de
teatro, sites, entre outras possibilidades. O segundo plano diz respeito à criação dos Cuidados
Paliativos como disciplina científica, por meio da publicação de guias e manuais técnicos, da
realização de eventos, congressos e cursos, além da criação de entidades voltadas para esta
área de atuação. O terceiro plano refere-se à implementação de serviços específicos de
Cuidados Paliativos, voltados para assistência hospitalar, ambulatorial ou domiciliar
dependendo da demanda de cada indivíduo.
A história dos Cuidados Paliativos no Brasil se iniciou na década de 1980. No Rio de
Janeiro, o movimento dos Cuidados Paliativos partiu da iniciativa de alguns profissionais do
Instituto Nacional de Câncer (INCA) que perceberam a necessidade de oferecer aos pacientes
considerados fora de possibilidades terapêuticas (FPT) um acompanhamento digno e
acolhedor ao longo de seu processo de morrer. Em 1986, foi implantado no Hospital do
Câncer II o Programa de Atendimento ao Paciente Fora de Possibilidade Terapêutica. Devido
à crescente demanda de pacientes, em 1989 o programa foi transformado no Serviço de
Suporte Terapêutico Oncológico (STO) e ampliou suas atividades para um programa de
visitas domiciliares. Em 1990 foi criado o Grupo Especial de Suporte Terapêutico Oncológico
(Gesto), entidade filantrópica que dava apoio financeiro ao STO. Em 1991, o INCA
inaugurou o primeiro serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Câncer I, e em 1998,

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De acordo com o Livro de Cuidados Paliativos do Conselho Regional de Medicina, o termo paliar tem origem
no latim palliare e tem como significado aliviar, atenuar, remediar provisoriamente, entreter e prolongar,
enquanto paliação (ALCÂNTARA, 2008, p. 310).
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houve a inauguração da Unidade de Cuidados Paliativos do INCA, inicialmente
denominada Centro de Suporte Terapêutico Oncológico (CSTO). Em 2004, a unidade passou
a ser chamada de HC IV. A mudança no nome serviu para unificar a terminologia utilizada
em todas as unidades (MENEZES, 2004, p. 57).
A partir deste breve histórico foi possível observar a construção desta nova
especialidade médica que, de acordo com os militantes desta proposta, surgiu em resposta às
críticas contra o poder médico e a expropriação do sujeito de seu processo de tratamento, cura
e morte. Em sua filosofia, os Cuidados Paliativos apresentam um viés multidimensional da
experiência do adoecer, enfatizando a importância do olhar para os aspectos sociais,
psicológicos e espirituais desta vivência. Segundo a Organização Mundial de Saúde (2004),
os Cuidados Paliativos têm como objetivo:
(...) “promover a qualidade de vida de pacientes e seus familiares
diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da
prevenção e alívio do sofrimento, o que requer a identificação
precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas
de natureza física, psicossocial e espiritual”.

Os princípios que regem os Cuidados Paliativos e servem de base para o trabalho


desenvolvido pela equipe de saúde são: promover o alívio da dor e de outros sintomas
estressantes; reafirmar a vida, entendendo a morte como um processo natural; não antecipação
ou postergação da vida; integração de aspectos psicossociais e espirituais ao cuidado; oferta
de suporte que auxilie o paciente a viver tão ativamente quanto possível até sua morte; oferta
de suporte aos familiares para que se sintam amparados ao longo do processo da doença; deve
ser iniciado o mais precocemente possível, não estando circunscrito somente à fase final de
vida (WHO, 2004). Trata-se de uma proposta com objetivos definidos e critérios que devem
ser seguidos, para que se alcance o desfecho ideal, a produção de uma boa morte, aceita, com
o mínimo de sofrimento possível.

1.2. A gestão do morrer e o modelo de uma “boa morte”

Sob a perspectiva dos Cuidados Paliativos, o conceito de uma “boa morte” passa a ser
utilizado para expressar “uma morte tranquila” ou “sem sofrimento”, “com dignidade”. No
ideário dos Cuidados Paliativos, para se alcançar uma “boa morte” é preciso atingir a etapa de
aceitação da própria morte, o que significa uma elaboração subjetiva em torno da finitude da
existência humana (MENEZES, 2013, p. 327). Desta forma, a experiência da morte passa a
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ser entendida como uma oportunidade de autorreflexão e para a resolução de pendências
materiais, legais, sociais e afetivas. Enquanto no modelo de “morte moderna”, o doente tem
um papel passivo diante da inevitabilidade da morte, com restrita possibilidade de atuação e
de decisões neste cenário, no modelo contemporâneo de “boa morte”, o ideal é que o enfermo
tenha controle sobre o processo de morrer, realizando escolhas a partir das informações que
recebe do médico e da equipe de saúde (MENEZES, 2003, p. 132). Segundo militantes desta
causa:
“trata-se da esperança de não sofrer (controle da dor e dos sintomas),
de não morrer só (presença da equipe e de pessoas próximas), de
efetuar uma “boa conclusão da vida” (“resgate”, expressão dos
paliativistas brasileiros), com “despedidas”, e, talvez, “de passagem a
outra esfera espiritual” (crença na existência de outra vida, após a
morte).” (MENEZES, 2013, p.341).

A categoria “boa morte” está associada a uma reflexão interna do doente, que deve ser
externalizada, para propiciar seu crescimento pessoal e de todos que o cercam e acompanham
o processo do morrer. Neste sentido, o modelo contemporâneo do “morrer produtivo” indica
uma ênfase no estreitamento de laços sociais entre os envolvidos neste processo (MENEZES,
2004, p. 47), há uma busca de resgate de antigas relações, para que pendências ou possíveis
mágoas possam ser resolvidas. Além disto, a assistência paliativa valoriza a inserção dos
familiares no tratamento e acompanhamento do doente, fazendo que estes atores tornem-se
parte integrante da equipe de saúde. Assim, o familiar também é objeto da atenção e
intervenção dos profissionais (MENEZES, 2004, p. 98).
O modelo de “morte contemporânea” é pautado na busca por uma “boa morte”, que
contém as ideias de autonomia e dignidade no morrer. De acordo com Menezes e Ventura
(2013, p. 225), as categorias sofrimento e dignidade (no viver e no morrer) estão intimamente
relacionadas nesta discussão em torno do fim da vida, onde o direito do indivíduo a não sofrer
encontra-se vinculado à ideia de uma morte digna e autônoma. Entretanto, as autoras pontuam
a necessidade de reflexão aprofundada sobre tais conceitos, já que a análise dos discursos dos
atores sociais envolvidos no processo de morrer evidencia atribuição de diferentes sentidos e
significados para as categorias apontadas (MENEZES; VENTURA, 2013, p. 225).
Inserido neste modelo, surge na Inglaterra o movimento em prol da “morte natural”,
com o objetivo de tornar a morte socialmente aceita e vivida o mais “naturalmente” possível,
como um evento circunscrito no ciclo da vida (MENEZES, 2003, p. 133). Segundo o ideário
da morte natural, é possível uma preparação para a morte, à semelhança do parto natural, no
qual são utilizados meios e técnicas para controle do sofrimento. Tal proposta é apresentada
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por seus defensores como anti-tecnológica, o que significa que uma “morte digna” estaria
diretamente relacionada à suspensão do uso de qualquer tipo de tecnologia que pudesse
intervir no que seria o curso “natural” deste processo. Os militantes da causa da “morte
natural” apresentam propostas para que a meta da “boa morte” seja alcançada, dentre elas, a
manutenção de leito compartilhado entre o doente e um familiar de sua escolha, e a utilização
de recursos alternativos, como exercícios de respiração, meditação e massagem (MENEZES,
2003, p. 135).
Jane Seymour (1999) empreendeu pesquisa etnográfica em uma Unidade de Terapia
Intensiva para adultos na Inglaterra, com o objetivo de investigar as representações acerca da
“boa morte” e “morte natural” neste contexto, que conta com forte presença de aparelhagem e
tecnologia complexas. Esta autora observou que a intervenção tecnológica era compreendida
de maneiras distintas, dependendo do prognóstico e expectativa de vida do enfermo. No caso
em que a morte já era esperada devido à progressão da doença crônica, o aparato médico era
entendido pelos familiares e equipe como um meio de proporcionar uma morte tranquila e
“ideal”. Seymour (1999, p. 697) nomeia esta dinâmica de “morte tecnologicamente
controlada”, caracterizada por uma trajetória que não é tão longa nem tão curta, ocorrendo
“no tempo certo”. Além disto, é uma morte que ocorre após uso de todas as tentativas
possíveis de reversão do quadro. Neste cenário, a morte é considerada “natural”, inclusive
sob controle da tecnologia médica. Já no caso em que a morte é inesperada e súbita, a
intervenção tecnológica é compreendida como uma ruptura do curso natural da doença, sendo
a morte vista como “não natural”. A autora conclui que a percepção de “morte natural” é
influenciada pelas expectativas relacionadas à trajetória da doença, e pela compreensão do
processo de morte (SEYMOUR, 1999, p. 699). Este estudo apontou que a tecnologia médica
pode garantir a construção de uma “boa morte”, modificando a trajetória do morrer para que
este processo se torne aceitável para os atores sociais envolvidos (SEYMOUR, 1999, p. 694),
o que é incongruente com a relação entre “morte tecnológica” e “desumanidade”.
É possível empreender um paralelo entre os movimentos pela “morte natural” e pelo
“parto humanizado”, que consideram estes eventos segundo a ótica de uma trajetória natural,
que não deve ser modificada pelo aparato médico. O movimento social pela humanização do
parto e do nascimento no Brasil se iniciou no final da década de 1980, com propostas e
incentivo ao parto vaginal, a redução de intervenções médicas consideradas “desnecessárias”
e o estímulo ao parto não medicalizado e tecnológico, além da valorização da natureza
(TORNQUIST, 2002, p. 484).

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Hirsch (2015) buscou apreender os significados atribuídos ao “parto humanizado”, por
mulheres provenientes de distintas classes sociais. A pesquisadora observou que a valorização
e classificação acerca da intervenção médica no parto varia entre as camadas sociais.
Enquanto para o grupo de classe social mais elevada, com maior nível de escolaridade, o parto
sem qualquer tipo de intervenção é valorizado como experiência física, com uma
ressignificação das sensações e emoções (HIRSCH, 2015, p. 239), para o grupo de mulheres
de camadas populares, a intervenção médica é tida como “cuidado” por parte da equipe, com
busca do mínimo de sofrimento possível para a grávida (HIRSCH, 2015, p. 244). Portanto,
apresentam-se diferentes perspectivas e significados em torno das categorias “natural” e
“humanizado”.
Tornquist (2002, p. 487) afirma que a recusa e as críticas ao modelo tecnocrático de
atenção ao parto implica nos questionamentos do predomínio da técnica e da cultura sobre
procedimentos entendidos como naturais. Assim, os defensores do parto natural, postulam
um retorno a uma vida mais natural e o encontro com o instinto. A autora aponta alguns
paradoxos neste modelo, que também podem ser indicados na proposta da “morte natural”.
Para Tornquist (2002, p. 490), faz-se necessário refletir sobre as categorias “natural” e
“instinto”, utilizadas por estes movimentos, já que a produção de regras e conceitos em
manuais e guias para eventos considerados “naturais” posicionam os sujeitos envolvidos nesta
dinâmica, novamente diante de prescrições ditadas pelo saber médico (TORNQUIST, 2002, p.
490).
Por meio da aproximação destes dois movimentos sociais, é possível observar
paradoxos nestas propostas, que priorizam o resgaste a uma suposta “naturalidade” perdida,
na expansão do aparato médico. Contudo, ambos os movimentos estipulam novas categorias e
normas para processos tidos como “naturais”.
Menezes (2003, p. 135), ao analisar as concepções de “morte natural” e de “morrer
bem”, destaca que a ideia da impossibilidade de coexistência da tecnologia médica com a
“naturalização” do morrer pode ser compreendida como uma conclusão normativa, uma vez
que a difusão dos Cuidados Paliativos foi impulsionada pelo desenvolvimento de pesquisas
voltadas ao alívio da dor e outros sintomas presentes em quadros terminais. Este dado aponta
contradições presentes neste modelo, que enfatiza a busca pela humanização do morrer com a
consequente não tecnologização deste processo, mas, ao mesmo tempo, faz uso de tecnologias
médicas para alívio do sofrimento. Baseada nesta lógica de controle dos sintomas e de gestão

13
do processo de morrer, a sedação paliativa torna-se uma possibilidade de intervenção médica,
que visa à atenuação do sofrimento do doente por meio do rebaixamento da consciência.

1.3. Sedação paliativa

De acordo com o Conselho Federal de Medicina do Brasil, um dos alicerces


fundamentais em Cuidados Paliativos é um bom controle de sintomas. Dentre os sintomas
mais presentes no estágio final da vida constam a dor, náuseas, constipação, delirium3,
ansiedade, insônia, depressão dentro outros, que causam intenso sofrimento, no caso de não
haver controle clínico adequado (CHIBA, 2008, p. 366).
Conforme o Manual da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (2012)4, o sintoma
de difícil controle é conceituado como aquele que, para ser adequadamente controlado,
precisa de uma intervenção terapêutica intensiva (farmacológica e não farmacológica), além
das medidas habituais e de suporte psicológico. Já o sintoma refratário é entendido como todo
sintoma que não pode ser controlado apesar de repetidas e intensivas tentativas, não havendo
o alívio adequado para o paciente (KIRA, 2012, p. 518). De acordo com profissionais de
Cuidados Paliativos, quando há refratariedade no controle dos sintomas, e quando todas as
tentativas foram utilizadas sem resultado, a sedação paliativa torna-se uma intervenção
possível (KIRA, 2012, p. 517).
A Academia Nacional de Cuidados Paliativos conceitua sedação paliativa como a
administração de medicamentos sedativos para reduzir o nível de consciência, visando o
alívio de sintomas refratários, em pacientes fora de possibilidades terapêuticas curativas. Para
tanto, são utilizados medicamentos sedativos e não analgésicos (KIRA, 2012, p. 518).
Inicialmente utilizava-se o termo “sedação terminal”, entretanto nos últimos anos este termo
vem sendo substituído por “sedação paliativa”. Segundo Babarro e Bueno (2008, p. 282), a
palavra “terminal” associada à sedação pode gerar confusão quanto à compreensão, pois pode

3
De acordo com a quinta revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V-TR), o
delirium consiste em um quadro transitório e geralmente reversível de alteração do nível de consciência, que
manifesta-se com uma gama de sintomas neuropsiquiátricos, como dificuldade de focar a atenção, desorientação,
ilusões e alucinações, alterações motoras, entre outros. Disponível em: <
http://emedicine.medscape.com/article/288890-overview> . Acesso em: 14 nov. 2015.
4
A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) foi fundada em fevereiro de 2005 por médicos e
profissionais de saúde, tendo como objetivos reunir e coordenar profissionais da área da saúde e de outras áreas
de conhecimento interessados na pesquisa, estudo e implementação dos Cuidados Paliativos. Busca-se, portanto,
a divulgação do conhecimento científico na área descrita, bem como a capacitação de seus associados e
profissionais de saúde.
Disponível em: < http://www.paliativo.org.br/ancp.php?p=historia>. Acesso em: 18 out. 2015.
14
indicar que tal procedimento estaria induzindo o término da vida, não dando conta da
principal finalidade da sedação paliativa, que é o alívio do sofrimento, pelo rebaixamento do
nível de consciência.
A sedação paliativa pode ser classificada com relação ao objetivo, a temporalidade e a
intensidade. A sedação primária tem como finalidade a diminuição do nível de consciência,
enquanto na sedação secundária o rebaixamento do nível de consciência ocorre como
consequência do efeito farmacológico de alguma medicação usada para o controle de
sintomas (ex: uso de opioides para o controle de dor). De acordo com a duração, ela pode ser
classificada como intermitente, quando o indivíduo tem alguns momentos de alerta, ou
contínua, quando ele permanece inconsciente até a morte. Quanto à intensidade, a sedação
pode ser superficial, no qual o indivíduo é capaz de comunicar-se quando estimulado; ou
profunda, quando o mesmo se mantém inconsciente, apesar de alguma estimulação externa
(NOGUEIRA; SAKATA, 2008; KIRA, 2012).
Babarro e Bueno (2008, p. 283) afirmam que as indicações para a sedação paliativa
devem seguir uma série de condições: 1) prognóstico, quando a expectativa de vida do doente
é curta, geralmente de dias ou horas; 2) presença de sintoma refratário com a utilização de
todas as intervenções possíveis para seu controle, sem alcançar o resultado esperado; 3) busca
de uma segunda opinião, de preferência de profissional paliativista; 4) consentimento
informado, no qual o indivíduo é estimulado a participar do processo de decisão após
esclarecimento das implicações da sedação e possíveis alternativas; 5) participação dos
familiares no processo decisório. É possível observar, portanto, que o processo de tomada de
decisão quanto ao uso da sedação envolve não somente questões clínicas, como, também,
éticas e morais, o que demonstra a complexidade envolvida neste procedimento.
Conforme referido, a presença de sintomas refratários é uma das principais indicações
para o uso da sedação paliativa em doentes terminais. Os sintomas mais encontrados na
literatura com estas características são: dor, dispneia, delirium agitado e sofrimento
psicológico ou existencial refratário à intervenção apropriada (BABARRO; BUENO, 2008;
NOGUEIRA; SAKATA, 2008; KIRA, 2012; RUBIALES; DUARTE; RIVERO, 2015). Este
último sintoma é entendido por Babarro e Bueno (2008, p. 283) como um dos mais
complexos para ser identificado, por sua associação com questões subjetivas individuais. Os
autores enfatizam que este sofrimento intolerável deve ser determinado pelo próprio sujeito,
de acordo com suas crenças e perspectivas, e não deve ser confundido com a angústia da
equipe, frente à impossibilidade de controle do sintoma.

15
Dentre os sintomas mais frequentes em doentes em final da vida encontra-se o
delirium. Rubiales, Duarte e Rivero (2015, p. 112) discutem as questões éticas envolvidas
especificamente no uso da sedação paliativa, para controle deste sintoma. Segundo estes
autores, uma das questões principais a ser considerada para a deliberação da sedação é o
consentimento do doente. Entretanto, na prática clínica observa-se com frequência que nos
momentos finais de vida, enfermos apresentam capacidade limitada de resposta, devido ao
rebaixamento do nível de consciência ou confusão mental, como no caso do delirium
hiperativo. Menezes (2004, p. 188), em pesquisa realizada com equipe de Cuidados
Paliativos, observou que, na maior parte das vezes, a negociação acerca da deliberação quanto
à sedação paliativa era efetuada entre os profissionais e os familiares do doente, pois o mesmo
encontrava-se com a consciência alterada, impossibilitado de exercer seu direito de escolha.
Este fato aponta a dificuldade de exercício do princípio da autonomia neste contexto, o que
pode gerar questionamentos éticos (RUBIALES; DUARTE; RIVERO, 2015, p. 114).
De acordo com Menezes (2013, p. 339), na tomada de decisão acerca do final da vida
estão envolvidos atores sociais distintos, como o médico, a equipe de saúde, a família e o
próprio enfermo, que, por sua vez, possuem diferentes percepções acerca do “morrer bem”.
Para Menezes (2004, p. 151), a oposição entre os conhecimentos técnicos da equipe e o
envolvimento emocional de familiares e doentes pode criar posições divergentes neste
contexto, o que pode gerar conflitos. Para que qualquer modelo de “boa morte” seja
considerado eficaz são necessárias diversas negociações em torno destas percepções e dos
sentidos atribuídos ao processo de morrer (MENEZES, 2013, p. 339).
Como forma de legitimar o direito à autonomia do doente, em 2012, a Resolução
1.995, do Conselho Federal de Medicina (CFM) 5 normatizou a diretiva antecipada da vontade
do doente ou testamento vital, que estabelece os critérios para que qualquer pessoa – desde
que maior de idade e plenamente consciente – possa definir junto ao seu médico quais os
limites terapêuticos, em caso de fase terminal. Deste modo, o indivíduo pode deixar
registrado, em forma de documento, os procedimentos que considera pertinente e aqueles aos
quais não deseja ser submetido, na terminalidade da vida. Este documento, além de assegurar
o respeito ao desejo do doente, também oferece suporte legal à equipe de saúde, para cumprir
esta determinação. Pela Resolução 1.995/2012, o registro da diretiva antecipada de vontade
pode ser feita pelo médico assistente em sua ficha médica ou no prontuário do doente, desde
que expressamente autorizado por ele. Não são exigidas testemunhas ou assinaturas, pois o
5
Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf. Acesso em: 22 jan.
2016.
16
médico, de acordo com o Conselho Federal de Medicina, possui fé pública e seus atos têm
efeito legal e jurídico. Apesar de a resolução oferecer ao médico respaldo para cumprir os
desejos registrados pelo doente, o Código de Ética Médica explicita que é vedado ao médico
abreviar a vida, ainda que por pedido do doente ou de seu representante legal, o que é
considerado eutanásia. O profissional só está autorizado a prestar Cuidados Paliativos aos
casos de doenças incuráveis e terminais.
A criação de tal resolução está intimamente ligada à Resolução 1805/2006 6, publicada
pelo Conselho Federal de Medicina, que objetivou regulamentar a ortotanásia, que permite ao
médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente
em fase terminal de vida, sendo respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal
(MENEZES; VENTURA, 2013, p. 213). As resoluções citadas suscitam questionamentos
acerca do direito à autonomia do doente quanto às decisões sobre seu corpo, versus a ideia de
sacralidade da vida, que neste sentido deve ser valorizada a todo custo. O surgimento de tais
resoluções demonstra o esforço por parte da comunidade médica e jurídica de responder à
demanda crescente de discussões relacionadas aos limites entre a vida e a morte.
É possível observar o crescimento dos debates em torno da gestão do fim da vida nos
últimos anos. A possibilidade de registro das diretivas antecipadas de vontade já existe em
diversos países, como Espanha e Portugal. Na Holanda, Bélgica e Luxemburgo a eutanásia
ativa é considerada legal, sendo uma prática autorizada, caso este seja o desejo do doente ou
de seus familiares. Nestes países, os debates ocorreram não apenas entre os profissionais de
saúde e do direito, mas também na sociedade de forma mais ampla, o que indica a existência
de distintas percepções e entendimentos acerca da produção de uma “boa morte” (MENEZES;
VENTURA, 2013, p. 223). Recentemente foi aprovada na França uma lei que prevê a sedação
profunda e contínua para alívio do sofrimento de doentes em fase terminal. O surgimento de
leis como estas apontam para um campo ainda em construção, mas que tem produzido
discussões importantes na sociedade contemporânea.
Uma questão importante relacionada ao tema é a associação equivocada entre sedação
paliativa e eutanásia. Esta última é definida como a interrupção da vida, causando a morte do
paciente com doença terminal ou incurável. A eutanásia ativa envolve uma ação médica,
como administração de injeção letal; e a passiva usualmente se refere à omissão de recursos,
tais como medicamentos, hidratação e alimentação (GOMES; MENEZES, 2008, p. 84). A
eutanásia voluntária é a morte provocada consentida pelo doente, enquanto a eutanásia
6
Disponível em:< http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 22 jan.
2016.
17
involuntária corresponde à morte provocada sem o consentimento do mesmo (GIROND;
WATERKEMPER, 2006, p. 261). A discussão sobre a temática é ampla e complexa, porém é
possível observar diferenças cruciais entre as duas intervenções. A principal delas é a intenção
de cada uma, na eutanásia o objetivo é acelerar a morte do paciente, contrapondo-se à sedação
paliativa que busca o alívio do sofrimento pelo uso de medicamentos sedativos para
diminuição do nível de consciência. Forde et al (2015, p. 221) afirmam que, apesar de a
sedação envolver um risco de morte prematura, esta não é a intenção. Já no caso da eutanásia,
por outro lado, a morte mais rápida possível é o objetivo final.
Os militantes paliativistas utilizam, em seus manuais e guias, o princípio do duplo
efeito, para assegurar que a sedação paliativa é a melhor opção de tratamento, apesar do risco
de acelerar a morte do doente. Esta tese foi formulada por teólogos católicos no século XIX e
demonstra que, em determinadas circunstâncias, é permitido agir, com, ao mesmo tempo,
consequências positivas e negativas (SOUSA; ESPADA; POSSO, 2010, p. 620). Neste
sentido, a sedação paliativa possui dois efeitos: o desejado é atenuar o sofrimento físico e
psicológico, e o indesejado é o risco de reduzir o tempo de vida do paciente (FERREIRA,
2008, p. 359). De acordo com o Livro de Cuidados Paliativos do Conselho Regional de
Medicina: “o princípio do duplo efeito torna a sedação paliativa moralmente aceita, já que a
intenção (alívio do sofrimento) tem maior importância que a consequência (diminuição do
tempo de vida, privação da consciência) no julgamento ético deste procedimento.”
(FERREIRA, 2008, p. 359).
A ideia de que a sedação paliativa proporciona uma “morte tranquila” e “pacífica” está
presente no ideário dos Cuidados Paliativos, e também é utilizada como justificativa para tal
abordagem. Raus, Sterckx e Mortier (2012, p. 329) discutem o tema da sedação profunda no
final da vida, e analisam a concepção de que esta intervenção estaria relacionada ao conceito
de “morte natural”. Segundo estes autores, a “morte natural” possui algumas características:
1) morte ocorre durante o sono profundo; 2) morte como processo gradual; 3) morte causada
por causas internas, relacionadas à doença e não a uma intervenção externa; 4) o tempo do
processo de morte determinado pela evolução da doença (RAUS; STERCKX; MORTIER,
2012, p. 331). Os autores questionam a relação entre sedação paliativa e “morte natural”, e
afirmam que o sono profundo que ocorre durante a sedação é causado por medicamentos que
induzem gradualmente o estado de inconsciência, o que contrapõe a ideia de “não
intervenção” médica. Além disto, os autores entendem que, ao propor que a “morte natural”
ocorre sem a agência da equipe médica, este modelo retira a responsabilidade de deliberação

18
da equipe, do doente e da família, que estariam a sujeitos a determinação do “curso natural da
doença” (RAUS; STERCKX; MORTIER, 2012, p.332). Observa-se, assim, que a cena da
morte é perpassada pelo aparato médico para se tornar uma imagem pacífica e tranquila,
facilitando a aceitação por parte dos atores envolvidos.
No movimento paliativista se apresentam distintas posições: por um lado, os
defensores de uma “morte consciente”, tida como passível de proporcionar um trabalho
subjetivo e intersubjetivo nos últimos momentos de vida, além de uma “iluminação” acerca
dos sentidos da vida e da morte (MENEZES, 2013, p. 331). A partir deste pressuposto, os
medicamentos utilizados para o rebaixamento do nível de consciência poderiam impossibilitar
este processo de elaboração, interferindo na trajetória do “morrer bem”. Por outro lado, os
defensores do direito a não sofrer reivindicam amplo uso de medicação analgésica e sedativa
no período final da vida.
Dilemas estão associados à sedação paliativa, pois uma vez que se trata de um
procedimento prescrito para pacientes em estado terminal, seu objetivo final é proporcionar
alívio dos sintomas, por meio de rebaixamento do nível de consciência, conduzindo a uma
“morte tranquila”, sem sofrimento. Configura-se uma cena pacífica, na qual aparentemente o
enfermo dorme, e, ao mesmo tempo, o ideário paliativista recomenda atenção e respeito à
autonomia individual do doente, à preservação de sua lucidez e consciência, se possível, até
seus últimos momentos de vida. Contradições estão implicadas nesta intervenção que institui,
baseada em normas e prescrições, que uma “boa morte” somente é alcançada por meio do
maior controle dos sintomas, para evitar sofrimento.

19
2. OBJETIVOS

2.1. Objetivo Geral

• Apreender as prescrições em torno do uso da sedação paliativa para doentes assistidos


em Cuidados Paliativos, em manuais e guias destinados a profissionais de saúde.

2.2. Objetivos Específicos

• Identificar semelhanças e diferenças nos textos analisados.


• Identificar as polêmicas em torno da sedação paliativa em publicações sobre o tema.

20
3. METODOLOGIA

3.1. Descrição do objeto de estudo

Como forma de investigar e compreender as prescrições em torno do uso da sedação e


dos questionamentos envolvidos neste contexto será realizada análise documental em livros-
texto e manuais, tanto nacionais quanto internacionais de Cuidados Paliativos, destinados a
equipes de saúde, além de artigos científicos e de notícias veiculadas em meios de
comunicação de massa, como jornais e revistas de grande circulação. A construção desta
especialidade de assistência contou com a divulgação de uma vasta produção científica, o que,
segundo Barbosa (2013, p. 32), indica um processo de legitimação deste campo na área da
saúde. A opção pela análise documental se justifica por considerar-se que, por meio do exame
deste material seja possível apreender tanto os posicionamentos quanto os questionamentos
referentes ao uso da sedação paliativa, da parte dos diferentes atores sociais envolvidos no
processo de morrer, como médicos, equipe de saúde, pacientes e seus familiares.
Esta pesquisa utilizará manuais e guias de Cuidados Paliativos, tanto nacionais quanto
internacionais. Entretanto, o foco de investigação será voltado para as prescrições brasileiras.
Esta delimitação se deu a partir da divulgação de um relatório sobre “qualidade de morte”,
desenvolvido por uma organização não governamental, no qual foram avaliados 80 países,
inclusive o Brasil. O relatório levou em conta aspectos como a qualidade dos sistemas de
saúde e de Cuidados Paliativos disponibilizados pelos países, o acesso da população aos
serviços de saúde, e o envolvimento da sociedade de forma geral, no processo de cuidado e
saúde7.
Em primeiro lugar no ranking está o Reino Unido que, segundo o relatório, possui
ampla política nacional voltada para a assistência em Cuidados Paliativos, que foi integrada
no sistema nacional de saúde. Cabe ressaltar que o movimento hospice foi amplamente
difundido neste país, com a liderança e militância de Cicely Saunders, que propiciou a
expansão desta proposta assistencial. Em segundo e terceiro lugares estão Austrália e Nova
Zelândia. Observou-se que os países europeus estão posicionados entre os 20 primeiros
colocados, com exceção dos Estados Unidos e Canadá, posicionados respectivamente em 9º e
11º lugares. O Brasil encontra-se em 42º na lista, abaixo de países como Mongólia, Costa

7
O relatório “Quality of Death Index 2015: Ranking palliative care across the world”, elaborado pela consultoria
britânica The Economist Intelligence Unit (EIU), foi baseado em uma extensa pesquisa com mais de 120
especialistas em cuidados paliativos de todo o mundo. Disponível em: <
http://www.economistinsights.com/healthcare/analysis/quality-death-index-2015>. Acesso em: 17 nov. 2015.
21
Rica e Lituânia. De acordo com o relatório, o Brasil integra um grupo de países que conta
com número limitado de subsídios governamentais para o acesso de pacientes aos serviços
especializados em Cuidados Paliativos. Além disto, foi observada dificuldade de acesso a
medicamentos opioides, devido a questões burocráticas e legais, o que consistem em
obstáculo para a intervenção medicamentosa em pacientes terminais.
O relatório aponta algumas características comuns entre os países que possuem melhor
qualidade de morte, como: política nacional de implementação dos Cuidados Paliativos forte e
efetiva; investimento público nos sistemas de saúde; oferta de treinamento para profissionais
especializados em Cuidados Paliativos; busca pela redução dos encargos financeiros de
pacientes em Cuidados Paliativos; maior conscientização da população sobre a proposta; e
maior disponibilidade de opioides para o controle da dor. Foi observado que somente 33
países dos 80 avaliados possuem amplo acesso aos opioides para controle da dor, o que é
explicado pela existência de barreiras legais, além do estigma relacionado a tais
medicamentos e a falta de treinamento dos profissionais e acesso a informação. Percebe-se,
portanto, que o acesso a medicamentos para controle de sintomas constitui fator crucial para
que se alcance uma boa qualidade de morte.
Estes dados servem como ponto de partida para uma investigação acerca da ideia de
qualidade de morte que, especificamente no Brasil, encontra-se em posição indicativa de
problemas e carência na atenção ao final da vida.
A partir do panorama apresentado, faz-se necessário aprofundamento da problemática
em nosso país, de modo que a presente investigação pretende utilizar principalmente os guias,
manuais e livros-texto nacionais, para analisar as prescrições em torno da sedação paliativa,
intervenção utilizada nos últimos momentos de vida do doente.
A etapa inicial para o desenvolvimento deste projeto de pesquisa consistiu em
levantamento bibliográfico em bases de dados (Biblioteca Virtual de Saúde, Google
Acadêmico), utilizando os seguintes descritores: “Sedação profunda”, “Doente terminal”,
“Assistência Terminal”, “Cuidados Paliativos na terminalidade da vida”, “Tomada de
decisões”, “Sedação Paliativa” e “Sedação Terminal”. Foram encontrados 102 artigos, após a
exclusão de artigos duplicados. A maioria dos artigos (99) foi publicado nos últimos 10 anos,
o que demonstra que o tema da sedação paliativa é recente e requer aprofundamento. Os
artigos foram agrupados em uma tabela de acordo com os descritores, para melhor
organização e visualização8.

8
Ver Anexo I.
22
A escolha dos livros-texto e manuais pautou-se pela presença da expressão “Cuidados
Paliativos”, associada aos seguintes termos: sedação paliativa, sedação profunda ao final da
vida, e derivados. Foram encontrados dois manuais nacionais de Cuidados Paliativos, o
primeiro desenvolvido pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos 9, fundada por médicos
e outros profissionais de saúde em 2005, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento
científico dos Cuidados Paliativos, por meio de eventos, congressos e publicações científicas.
O segundo livro-texto nacional foi desenvolvido pelo Conselho Regional de Medicina de São
Paulo, com a finalidade de discutir temas associados ao cuidado ao paciente “fora de
possibilidade terapêutica de cura” (FPTC).
Apesar de o estudo se centrar nas prescrições nacionais, também serão analisados
manuais internacionais, uma vez que a proposta dos Cuidados Paliativos surgiu na Inglaterra e
Estados Unidos, países responsáveis pela difusão deste modelo de assistência ao processo do
morrer. A principal associação internacional da área é a Internacional Association for Hospice
and Palliative Care (IAHPC)10, composta por profissionais de diferentes especialidades, com
o objetivo de difundir o ideário e proporcionar acesso universal aos Cuidados Paliativos. Esta
associação divulga diretrizes internacionais para a prática, produzindo vasto material, como o
IAHPC Manual of Palliative Care, que aborda os princípios dos Cuidados Paliativos, com
prescrições específicas para cada sintoma, inclusive a sedação paliativa. Além disto, será
analisado o Guía de Cuidados Paliativos, elaborado pela Sociedad Española de Cuidados
Paliativos11, que também é composta por médicos e profissionais de saúde, visando à
expansão do conhecimento dos Cuidados Paliativos.
Os manuais nacionais foram desenvolvidos por profissionais da área da saúde, em sua
maioria médicos, mas também por enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais
e padres. Este viés multiprofissional está em concordância com a proposta dos Cuidados
Paliativos, que pressupõe um cuidado integral ao doente, abrangendo as dimensões física,
social, psicológica e espiritual do indivíduo, baseado no conceito de “dor total”, formulado
pela militante Cicely Saunders.
Os temas abordados pelos manuais e livros-texto brasileiros são semelhantes, e podem
ser agrupados nos seguintes tópicos: 1) definições e princípios dos Cuidados Paliativos, com
descrições detalhadas sobre a construção da especialidade; 2) prescrições para o controle dos
sintomas presentes no período final de vida; 3) papel das diversas profissões na atenção ao

9
Disponível em: < http://www.paliativo.org.br/home.php>. Acesso em: 04 de fev. de 2016.
10
Disponível em:< http://www.hospicecare.com/.> Acesso em: 22 jan. 2016.
11
Disponível em: < http://www.secpal.com/inicio> Acesso em: 04 fev. 2016.
23
paciente terminal; 4) abordagem aos familiares, que neste modelo de assistência passam a ser
também parte da “equipe de cuidado”; 5) aspectos espirituais e éticos ligados ao final da vida.
Os manuais e guias nacionais possuem capítulos específicos sobre o tema da sedação
paliativa e apontam esta intervenção como um meio passível de proporcionar alívio dos
sintomas do doente e, consequentemente, atenuação do sofrimento. Estes manuais descrevem
critérios e indicações para a proposta; os medicamentos mais indicados, segundo estudos
científicos; e pontuam os aspectos éticos relacionados à sedação. Há, também, uma listagem
de questões que devem ser respondidas, para assegurar que a sedação paliativa é a “melhor
opção”, como: “Foram feitos todos os esforços para identificar e tratar as causas reversíveis
geradoras do sofrimento?”; “Foram feitas interconsultas com consultor em Cuidados
Paliativos e/ou outros especialistas?”; “Todas as abordagens não-farmacológicas já foram
aplicadas?”; “Todos os outros tratamentos farmacológicos foram aplicados?”; “Sedação
intermitente foi considerada nos casos de delirium potencialmente reversíveis ou nos casos de
sofrimento psicoexistencial extremo?”; “Os objetivos da sedação foram explicados e
discutidos com o paciente e seus familiares?”; “A sedação foi consensual (paciente, família e
equipe)?” (FERREIRA, 2008, p. 360).
Os manuais nacionais enfatizam que a sedação paliativa deve ser uma abordagem
individualizada, de acordo com o estado clínico do doente, levando-se em consideração suas
crenças, percepções e desejos relacionados aos seus últimos momentos de vida. Pontua-se que
a sedação paliativa “não é receita de bolo” (FERREIRA, 2008, p. 357), pois cada paciente
deve receber o sedativo e a dose adequados para aliviar o sintoma refratário específico. Este
aspecto é paradoxal, já que o objetivo da produção de tais manuais é normatizar a abordagem
ao doente, criando padronizações e regras que devem ser seguidas para garantia de um bom
atendimento. Considero que a análise deste material possibilita acesso às percepções e ideias
associadas ao ideário paliativista, especificamente em torno da sedação paliativa.

3.2. Análise Documental

Victora, Knauth e Hassen (2000, p. 71) apontam que, apesar de ser pouco utilizada na
pesquisa qualitativa, a análise de documentos é uma boa fonte de informações, e pode ser
utilizada em conjunto com outras técnicas de forma complementar, ou de forma exclusiva,
podendo assim evidenciar fatos novos. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009, p. 2), o
uso de documentos em pesquisa deve ser valorizado e apreciado, pois proporciona uma
24
ampliação no entendimento de objetos cuja compreensão necessita de contextualização
histórica e sociocultural.
Mendonza (2000, p. 98) considera fonte como qualquer documento científico ou
histórico, que possibilite a reconstrução racional de um processo de pesquisa. As fontes
podem ser primárias ou secundárias, sendo as primeiras aquelas que emanam diretamente do
sujeito estudado ou são coletâneas dele, quando se trata de descrever o sujeito em questão. Já
as fontes secundárias são todas aquelas que não se enquadram na definição de fontes
primárias (MENDONZA, 2000, p. 98).
De acordo com Cellard (2012, p. 296), documento ou fonte não se restringe somente a
textos escritos, mas também documentos de natureza iconográfica (imagens, obras de arte,
etc.) e cinematográfica ou de qualquer outro tipo de testemunho registrado, objetos do
cotidiano, elementos folclóricos, entre outros. Deste modo, percebe-se uma ampliação do
conceito de documento, que ultrapassa a ideia de registro escrito e oficial. A fonte documental
pode expressar valores de uma sociedade, posicionamentos e opiniões, modos de vida, o que
possibilita uma compreensão profunda do objeto estudado.
Por se tratar de uma investigação qualitativa que busca apreender os discursos dos
atores sociais envolvidos no tema da sedação paliativa, faz-se necessária uma leitura
aprofundada do material de estudo, levando-se em conta o contexto histórico e social no qual
os documentos foram produzidos. Para Bacellar (2006, p. 63), é de grande importância o
conhecimento a fundo da história do documento, sob quais condições ele foi redigido e com
que propósito. Baseado neste pressuposto, o estudo levará em conta o caráter do grupo ou das
pessoas envolvidas na dinâmica acerca do uso da sedação paliativa: difusores da proposta dos
Cuidados Paliativos, profissionais de saúde especializados no campo, entre outros. Entende-
se, portanto, que todo o documento é considerado um ator social em potencial, visto que
comporta uma intencionalidade, passível de ser revelada ao longo do processo de análise
(BARBOSA, 2013, p. 34).
Cellard (2012, p. 299) aponta algumas etapas necessárias para o desenvolvimento da
análise documental que servirão de base para o estudo proposto. Segundo este autor, esta
análise ocorre em cinco dimensões: 1) Exame do contexto global no qual foi produzido o
documento, pois é por meio desta observação que o pesquisador poderá ter condições de
compreender as particularidades do grupo ou objeto em estudo; 2) Conhecer e caracterizar os
autores dos documentos, isto é, analisar se eles representam um determinado grupo e quais as
razões que os levaram a desenvolver tais materiais; 3) Assegurar-se da autenticidade e

25
confiabilidade dos documentos; 4) Investigar a natureza do documento, pois isto pode facilitar
a compreensão da estrutura do texto e para que público ele se destina; 5) Observação dos
conceitos-chave e da lógica interna do texto, onde o pesquisador deve ficar atento à
linguagem específica usada por cada autor ao longo de sua escrita.
Bacellar (2006, p. 64) enfatiza a importância do olhar crítico do pesquisador ao
analisar o material coletado. Segundo este autor, o documento não deve ser interpretado como
uma verdade absoluta, mas estudado de forma crítica e contextualizada (BACELLAR, 2006,
p. 64).
Segundo Victora, Knauth e Hassen (2000, p. 54), para desvendar o arcabouço da
constituição de uma sociedade, é importante investigar suas leis e regularidades, as diferentes
instituições e tudo mais que compõe sua organização social. Para tanto, os documentos
escritos sobre o grupo a ser estudado são fundamentais por expressarem modos de
pensamento e estruturação social. Nas palavras de Bacellar (2006, p. 63), “documento algum
é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou do órgão que o escreveu”. Neste
sentido, é possível concluir que a análise dos manuais e guias que fundamentam a prática dos
Cuidados Paliativos e o uso da sedação possibilita o acesso às representações atribuídas pelos
atores sociais envolvidos na assistência ao morrer.

26
4. CRONOGRAMA

A primeira etapa do desenvolvimento do projeto foi o levantamento bibliográfico de


artigos científicos que tratam da sedação paliativa, além de notícias veiculadas em revistas,
jornais e sites, nos quais são abordadas questões relativas ao tema. Esta etapa teve início em
julho de 2015 e se estende durante o ano de 2016. Neste período será realizada leitura dos
resumos de artigos.
A análise do material oriundo de manuais e guias de Cuidados Paliativos será
realizada a partir de março de 2016. A qualificação do projeto de pesquisa ocorrerá em março
de 2016. De março a dezembro de 2016 a análise dos dados será realizada, juntamente com a
redação da dissertação. A defesa da dissertação é planejada para março de 201712.

12
Ver Anexo II.
27
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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pdf>. Acesso em: 16 jul. 2015.

31
ANEXO I

1. Tabela de artigos do levantamento bibliográfico

Descritores Artigos Artigos Artigos Artigos Total de


Utilizados publicados publicados Nacionais Internacionais Artigos
entre entre
2000/2005 2006/2015
Sedação 0 27 1 26 27
Profunda AND
Doente terminal
Sedação 0 46 0 46 46
Profunda AND
Assistência
Terminal
Sedação 0 9 0 9 9
Profunda AND
Tomada de
Decisões
Cuidados 1 1 2 0 2
Paliativos na
terminalidade da
vida AND NOT
Enfermagem
Tomada de 0 2 2 0 2
Decisões AND
Assistência
Terminal
Sedação 2 14 1 15 16
Paliativa/
Sedação
Terminal
(Google
Acadêmico)

32
ANEXO II

2. Cronograma
Ano 2015 2016 2017

Mês 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 1 2 3

Levantamento
Bibliográfico

Coleta de dados

Redação do projeto

Análise dos dados

Redação da dissertação

Defesa da dissertação

33

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