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CARACTERIZAÇÃO ANATÔMICA DO LENHO CARBONIZADO DE

ESPÉCIES COMUNS DO CERRADO: SUBSÍDIO A ESTUDOS


ANTRACOLÓGICOS E CONSERVACIONISTAS - I
Thaís A. P. Gonçalves1,2, Alisson Rangel2, Rita Scheel-Ybert2(1UNESP/FCA, Botucatu,
SP. 2Museu Nacional/UFRJ, Departamento de Geologia e Paleontologia. Quinta da
Boa Vista, São Cristóvão, 20940-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail:
th_goncalves@yahoo.com.br)

Termos para indexação: antracologia, lenho carbonizado, Annonaceae


Introdução
O cerrado é um domínio fitogeográfico do tipo savana que ocorre no Brasil e em
partes do Paraguai e na Bolívia. No Brasil, onde abrange uma área de 20% do território
nacional, é reconhecido como a savana mais rica do mundo em biodiversidade. Este
bioma tem uma forte e antiga associação com o fogo, que é um fator de extrema
importância na sobrevivência deste ecossistema (Coutinho, 1990).
O cerrado encontra-se ameaçado pelo crescimento das monoculturas, como a
soja, a pecuária extensiva, a carvoaria e o desmatamento (Goodland e Ferri, 1979;
IBAMA, 2008). Além disso, o Brasil é o maior produtor mundial de carvão vegetal.
Mesmo havendo um aumento significativo do uso de madeira de espécies de
reflorestamento para a obtenção desta matéria-prima no país, uma grande parte do
carvão vegetal utilizado (80%) ainda é proveniente de cerrados e derrubadas ilegais
(World Wide Foundation Brasil, 2007).
Antracologia é a caracterização, interpretação e análise dos restos de madeira
carbonizados, testemunhos de incêndios, naturais ou de origem antrópica, ou diversos
aspectos da atividade humana (Scheel-Ybert 2004). A utilização da microscopia de luz
refletida (Western, 1963; Vernet, 1973) possibilitou a multiplicação das análises
antracológicas, facilitando o estudo dos carvões e propiciando tanto o desenvolvimento
de abordagens ecológicas (reconstituição da vegetação e do clima), quanto a
identificação de carvões de procedência irregular (Scheel-Ybert, 2004).
Considerando a escassez de estudos antracológicos ou mesmo de dados de referência
com espécies de cerrado e a importância que estas espécies apresentam pelo seu
potencial lenheiro, este trabalho analisa a anatomia do lenho carbonizado de espécies da
família Annonaceae (Duguetia lanceolata, Rollinia sylvatica, Xylopia aromatica,
Xylopia brasliensis, Xylopia frutescens e Xylopia sericea). Este tipo de estudo, pioneiro
no Brasil (Scheel-Ybert, 2004), pode fornecer subsídios para a identificação de
madeiras carbonizadas, auxiliando no controle de carvão ilegal, para os estudos
antracológicos, e para o conhecimento de espécies da flora (Gonçalves, 2006).

Material e Métodos
As amostras analisadas são provenientes de doações de xilotecas (Jardim
Botânico do Rio de Janeiro [RBw]; Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de
São Paulo [BCTw]; Instituto Florestal de São Paulo [SPSFw]) e estão depositadas na
coleção de referência de madeiras atuais carbonizadas (Antracoteca) do setor de
Paleobotânica e Paleopalinologia do Departamento de Geologia e Paleontologia do
Museu Nacional, UFRJ (Scheel-Ybert et al., 2006).
As amostras de madeira foram carbonizadas em forno mufla a temperatura de
400 oC por 40 minutos. A observação e mensuração das características anatômicas
foram feitas em microscópio Zeiss de luz refletida, a partir da quebra manual dos
carvões segundo os três planos fundamentais da madeira. As descrições anatômicas dos
lenhos seguiram as normas estabelecidas pela Associação Internacional de Anatomistas
(IAWA Committe, 1989). Micrografias das amostras foram obtidas por microscopia
eletrônica de varredura no laboratório de microscopia da Universidade Montpellier-II,
França. Os dados quantitativos foram obtidos com utilização de uma lente ocular
micrométrica e os resultados representados pela média entre 25 medições de cada
parâmetro (Vm), apresentados no texto seguidos pelos valores mínimo (x) e máximo
(X) entre parênteses: Vm (x-X).

Resultados
1 - Duguetia lanceolata ST. Hil. (N. P: Pindaíba, Pindabuna-preta, Pindauvuna,
Biriba): Anéis de crescimento indistintos. Porosidade difusa, vasos dispersos, solitários
(30%) e múltiplos de 2 (45%), 3 (17%) e 4 (8%); freqüência 35 (15-45) vasos por mm2.
Diâmetro tangencial dos vasos 65 (40-110) µm. Tiloses presentes. Placas de perfuração
simples, horizontais e obliquas. Pontoações intervasculares alternas, simples, com 2 (1-
3) µm, apresentam aberturas coalescentes. Pontoações radiovasculares similares às
intervasculares. Parênquima paratraqueal escasso em linhas podendo formar faixas.
Raios 3-7 seriados homogêneos, eventualmente com células procumbentes de espessura
variável ou sub-homogêneos; freqüência 8 (4-10) raios por mm². Fibras com pontoações
areoladas, apresentam parede fina e fina a espessa em RBw 1822. Canais radiais em
SPSFw 1145, com diâmetro tangencial 40 (30-50) µm. Presença de células oleíferas ou
mucilaginosas nos raios.
Material examinado: BRASIL: SÃO PAULO. (SPSFw 1145). BRASIL: SANTA
CATARINA. Itajaí. R. Reitz (27/VI/1949) (BCTw 5392). BRASIL: MARANHÃO. M.
Tomazello (BCTw 17428). BRASIL: SÃO PAULO. Rio do Sul (RBw 1822).

Figura 1. Duguetia lanceolata (SPSFw 1145). Plano transversal (A), plano longitudinal
tangencial (B) e plano longitudinal radial (C).

2 - Rollinia sylvatica (ST. Hil.) Mart. (N. P.: Araticum-do-mato): Anéis de crescimento
distintos. Porosidade difusa, vasos dispersos, solitários (55%) e múltiplos de 2 (38%) e
3 (7%); freqüência 30 (25-40) vasos por mm2. Diâmetro tangencial dos vasos 65 (50-
80) µm. Tiloses ausentes. Placas de perfuração simples, horizontais e obliquas.
Pontoações intervasculares alternas, simples, 3,5 (2-5) µm, eventualmente com
aberturas inclusas e coalescentes. Pontoações radiovasculares similares às
intervasculares. Parênquima paratraqueal escasso e em linhas, escalariforme. Raios
(2)3-(5)6-seriados, raros unicelulares, homogêneos; freqüência 8 (6-10) raios por mm.
Fibras não septadas com pontoações simples a levemente areoladas e parede fina.
Material examinado: BRASIL: SÃO PAULO. Jardim Botânico. O. Handro (III.1936).
det. R.E. Fries (SPw 1102).

Figura 2. Rollinia sylvatica (SPw 1102). Plano transversal (A), plano longitudinal
tangencial (B) e plano longitudinal radial (C).
3 - Xylopia aromatica (Lam.) Mart., Xylopia brasiliensis Spreng., Xylopia frutescens
Aubl., Xylopia sericea A.St.-Hil.: (N. P.: Pimenta-de-negro (X.aromatica); Pindaíba,
Cortiça, Pau-de-mastro (X. brasiliensis); Envira, Embira, Pindaíba (X. frutescens);
Embiriba (X. sericea)). Anéis de crescimento com limites ausentes ou indistintos.
Porosidade difusa, vasos dispersos, solitários (20%; exceto em X. sericea, 65%) e vasos
múltiplos de 2 (25% em X. aromatica e X. frutescens; 50% em X. brasiliensis e X.
sericea), 3 (40% em X. aromatica e X. frutescens; 18% em X. brasiliensis e X. sericea)
e 4 (15% em X. aromatica e X. frutescens; 12% em X. brasiliensis e X. sericea);
freqüência de 20 (10-30) vasos por mm2. Diâmetro tangencial dos vasos 135 (60-180)
µm. Tiloses presentes. Placas de perfuração simples, horizontais e obliquas. Pontoações
intervasculares alternas, não guarnecidas, 2 (1-3) µm, com aberturas coalescentes e
inclusa. Pontoações radiovasculares similares às intervasculares. Parênquima em linhas
unicelulares ou de até 3 células, reticulado a escalariforme; 2 a 5 células por fila de
parênquima. Raios 2-3 seriados (RBw 6361) ou 4-5 seriados (BCTw 10148),
homogêneos; freqüência de 8 (6-10) raios por mm². Fibras não septadas com pontoações
simples a levemente areoladas e parede fina a espessa. Eventuais células oleíferas ou
mucilaginosas nos raios.
Material examinado: GUIANA. New York Botanical Garden. (BCTw 10148).
BRASIL: BAHIA. Feira de Santana, km 35. José Pereira de Souza (11.XI.1979) (RBw
6361). BRASIL: SÃO PAULO. Serra da Cantareira (SPSFw 2859). BRASIL: BAHIA.
Catu. UFBA, prox. Ginásio Hening, IB. José Pereira de Souza (RBw 6360).

Figura 4. Xylopia brasiliensis (SPSFw 2859). Plano transversal (A), plano longitudinal
tangencial (B) e plano longitudinal radial (C).

Discussão e Conclusão
Os resultados obtidos neste trabalho concordam com as descrições gerais para o
lenho da família Annonaceae e com as descrições genéricas e específicas previamente
publicadas (Metcalfe e Chalk 1950; Détienne e Jacquet, 1983; Sosef et al. 1998). Este
resultado é particularmente interessante, uma vez que se tratam de amostras
carbonizadas. Apesar das mudanças morfométricas, geralmente atribuídas ao processo
de carbonização (Prior e Alvin, 1986), as características anatômicas gerais da madeira
são diretamente comparáveis entre amostras carbonizadas e não-carbonizadas. Isto é
particularmente importante para facilitar a identificação de espécies em estudos
paleoambientais ou na determinação de amostras de proveniência ilegal. Embora a
determinação seja indiscutivelmente facilitada pelo uso de amostras similares (Scheel-
Ybert et al., 2006), o estudo anatômico de amostras carbonizadas no Brasil ainda é
incipiente.
Com relação às variações morfométricas observadas, tem-se que o diâmetro
tangencial dos vasos e das pontoações intervasculares são freqüentemente menores que
o descrito na literatura para amostras de madeira não carbonizadas, por exemplo em
Duguetia (Détienne e Jacquet, 1983).
O processo de carbonização poderia explicar estas variações, mas elas também
podem ser atribuídas à variabilidade intraespecífica ou a fatores ecológicos. Realmente,
em muitos casos, o diâmetro tangencial e a freqüência dos vasos são semelhantes aos
descritos na literatura para madeira não-carbonizada (Détienne e Jacquet, 1983; Richter
e Dallwitz 2002), enquanto às vezes o diâmetro dos vasos é equivalente aos resultados
obtidos neste trabalho, embora a freqüência seja mais baixa (Détienne e Jacquet, 1983;
Richter e Dallwitz 2002).
A descrição anatômica de lenhos carbonizados é uma ferramenta eficaz que pode
ser utilizada para diversos fins e em estudos de áreas variadas (p.ex. Botânica, Ecologia,
Arqueologia, Paleontologia). Além de facilitar a identificação taxonômica, que pode ser
utilizada tanto para fins conservacionistas, como prover meios para estudos
antracológicos nos trópicos e propiciar estudos paleoambientais e paleoclimáticos. Este
trabalho também contribui para um melhor conhecimento da anatomia do lenho de
espécies nativas, pois a anatomia da madeira de espécies tropicais é pobremente
conhecida.

Referências Bibliográficas

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