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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA


MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

WILLIAM RONE VIEIRA

O TRABALHO E AS CONTRIBUIÇÕES DE CAROLINE HERSCHEL NA


ASTRONOMIA

SÃO PAULO
2021
WILLIAM RONE VIEIRA

O TRABALHO E AS CONTRIBUIÇÕES DE CAROLINE HERSCHEL NA


ASTRONOMIA

Dissertação apresentada ao Programa de Estudos


Pós-Graduados em História da Ciência como
requisito para a obtenção do título de Mestre em
História da Ciência, pela Pontifica Universidade
Católica de São Paulo.

Aluno: William Rone Vieira

Orientadora: Dra. Maria Helena Roxo Beltran

SÃO PAULO
2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

FOLHA DE APROVAÇÃO

WILLIAM RONE VIEIRA

O TRABALHO E AS CONTRIBUIÇÕES DE CAROLINE HERSCHEL NA


ASTRONOMIA

Dissertação apresentada ao Programa de Estudos


Pós-Graduados em História da Ciência como
requisito para a obtenção do título de Mestre em
História da Ciência, pela Pontifica Universidade
Católica de São Paulo.

Aprovado em: de de 2021.

Banca Examinadora

Dra. Maria Helena Roxo Beltran

Prof. Dr. Fumikazu Saito

Profa. Dra. Ivone Freitas-Reis


Ao meu Pai José Vieira
Perpétuo e a minha irmã
Suzana Vieira.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001, n do processo 88887.314256/2019-00.
O presente trabalho foi realizado com apoio FUNDASP.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe Rosária, minha esposa Cristiane e minha filha Kalinca que
acompanharam a minha trajetória.

Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –


Capes pelo apoio financeiro sem o qual eu não teria conseguido realizar este
trabalho.

Agradeço a minha orientadora Profa. Dra. Maria Helena Roxo Beltran que muito me
auxiliou com seu conhecimento, obrigado pela dedicação durante essa trajetória.
Minha especial admiração e gratidão.

Agradeço ao Prof. Dr. Fumikazu Saito e Prof. Dr. José Luiz Goldfarb pelas
importantes contribuições durante a qualificação. Muito obrigado.

Agradeço às professoras Ana Maria Alfonso-Goldfarb, Marcia Helena Mendes Ferraz


e Vera Cecília Machline, pela contribuição para o desenvolvimento deste trabalho.

Agradeço à Assistente de Coordenação do PEPG em História da Ciência Camila


Fernandes C. Vicentino, pelo auxílio em todos os momentos de dúvidas.

Aos meus queridos colegas do Mestrado em História da Ciência, pelos momentos de


convívio, trocas e afetos. Com muita saudade, obrigado.
Carta de Caroline Herschel para sua irmã:

William está fora e eu estou vigiando o céu.


Descobri oito novos cometas e três
nebulosas nunca vistas pelo homem antes
e estou preparando um Índice para as
observações de Flamsteed, junto com um
catálogo de 560 estrelas omitidas do
Catálogo Britânico e mais uma lista de
erratas dessa publicação. William diz que
eu tenho um jeito com números, que eu
manipulo bem todas as reduções e
cálculos necessários. Eu também faço o
planejamento das observações de cada
noite, ele diz que minha intuição me ajuda
a virar o telescópio para conseguir
descobrir um aglomerado de estrelas após
o outro.

Eu o ajudei a polir os espelhos e lentes de


nosso novo telescópio. É o maior que
existe. Você consegue imaginar a emoção
de apontá-lo para algum canto do céu para
poder ver algo que nunca tinha sido visto
antes da Terra? Eu, na verdade, gosto que
ele esteja ocupado com a Royal Society e
seu clube, porque quando eu termino meus
outros afazeres posso passar a noite toda
varrendo o céu.

Às vezes quando estou sozinha no escuro


e o universo revela ainda mais um segredo
eu digo o nome de minhas distantes,
perdidas irmãs, esquecidas nos livros que
registram nossa ciência –

Aganice da Tessáliaof Thessaly,


Hypatia,
Hildegard,
Catherina Hevelius,

– como se as estrelas mesmo pudessem


se lembrar delas. Você sabia que
Hildegarda propôs um universo
heliocêntrico 300 anos antes de
Copérnico? Que ela escreveu a lei de
gravitação universal 500 anos antes de
Newton? Mas quem daria ouvidos a ela?
Ela era apenas uma freira, uma mulher.

O que é a nossa era se aquela foi a era das


Trevas? Quanto ao meu nome, também
será esquecido, mas não sou acusada de
ser uma feiticeira, como Aganice, e os
cristãos não ameaçam me arrastar para a
igreja para me assassinar, como fizeram
com Hypatia de Alexandria, a eloquente
jovem que idealizou instrumentos para
medir precisamente a posição e o
movimento de corpos celestes.

Não importa o quanto vivamos, a vida é


curta, então eu trabalho. E por mais que o
homem se torne importante, ele não é
nada comparado às estrelas. Existem
segredos, querida irmã, e nós devemos
revelá-los. Seu nome, como o meu, é uma
canção.

Caroline.

Herschel, Caroline apud Selmo, Denise


(2010).
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas contribuições para a


Astronomia realizadas por Caroline Herschel (1750-1848), tendo por base a análise
de trechos de suas cartas publicadas por seu sobrinho John Herschel em 1876, bem
como bibliografia secundária pertinente. O primeiro capítulo volta-se à biografia de
Caroline e sua jornada na Astronomia. O segundo trata de suas contribuições para os
catálogos estelares, dos telescópios que fizeram parte de suas descobertas e da
repercussão de sua obra na História da Ciência.

Palavras-chave: História da Ciência, Mulheres na Ciência. Caroline Herschel,


Catálogos Estelares.
ABSTRACT

The present thesis aims to present some contributions to Astronomy made by Caroline
Herschel (1750-1848), based on the analysis of excerpts from her letters published by
her nephew John Herschel in 1876, as well as relevant secondary bibliography. The
first chapter turns to Caroline's biography and her journey through Astronomy. The
second deals with her contributions to the star catalogs, the telescopes that were part
of her discoveries, and the impact of her work on the History of Science.

Keywords: History of Science, Women in Science. Caroline Herschel, Star Atlas.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Caroline Herschel.................................................................... 16


Figura 2 – Cartaz de divulgação da apresentação de Caroline Herschel
no Concerto Messiah de Handel.............................................. 22
Figura 3 – Notas feitas por Caroline das instruções dadas por seu irmão
no outono de 1782, quando ela iniciou suas buscas por
objetos de interesse no céu noturno........................................ 25
Figura 4 – Desenho do primeiro telescópio de Caroline Herschel............ 26
Figura 5 – A ótica do "varredor de cometa" que William idealizou e fez
para Caroline em 1783............................................................ 27
Figura 6 – Parte de um dos registros de Caroline de suas “varreduras”
em 26 de fevereiro de 1783. Das quatro nebulosas que ela
encontrou, as duas últimas (M46 e M41) estavam no
Catálogo de Nebulosas de 1780 de Charles Messier que
William Watson enviou como presente à William Herschel em
7 de dezembro de 1781. No entanto, a primeira nebulosa não
estava e, então, Caroline escreveu “Messier não tem”. A
nebulosa desconhecida para William e Caroline, era de fato
a M93 no catálogo ampliado que Messier publicou em 1781... 29
Figura 7 – A casa de William à esquerda e a pequena casa de Caroline
com o telhado que ela usava para observar............................. 31
Figura 8 – Anotação de Caroline em seu caderno de observação sobre
a descoberta de seu primeiro cometa: “Eu calculei 100
nebulosas hoje, e essa noite eu vi um objeto que eu acredito
que amanhã de noite provarei ser um cometa” ....................... 32
Figura 9 – Desenho datado de fevereiro de 1790 mostrando “a filósofa
farejando o cometa” ................................................................ 35
Figura 10 – Cópia de trabalho do Atlas Coelestis de Caroline Herschel 41
Figura 11 – Telescópio de 7 pés de William Herschel................................. 46
Figura 12 – Um dos numerosos refletores de 7 pés que William fez para
venda comercial...................................................................... 47
Figura 13 – Telescópio de 10 pés de William Herschel............................... 48
Figura 14 – Um dos refletores de 10 pés encomendados de William pelo
rei George em outubro de 1783............................................... 48
Figura 15 – Telescópio de 20 pés de William Herschel............................... 49
Figura 16 – O telescópio de 20 pés construído por William Herschel em
Datchet, com o qual ele e Caroline descobriram 2.500
nebulosas e transformaram a Astronomia............................... 50
Figura 17 – Telescópio de 40 pés de William Herschel............................... 51
Figura 18 – Medalha de Ouro dada à Caroline Herschel pela Royal
Astronomical Society em reconhecimento de seu trabalho em
serviço da Astronomia............................................................. 54
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 – A BIOGRAFIA DE CAROLINE HERSCHEL E SUA JORNADA NA
ASTRONOMIA .......................................................................................................... 15
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 15
1.1 A EVOLUÇÃO DE UMA ASTRÔNOMA .............................................................. 16
1.2 TREINAMENTO, OBSERVAÇÕES E DESCOBERTAS...................................... 23
1.3 A RELAÇÃO ENTRE CAROLINE E WILLIAM HERSCHEL ................................ 37
CAPÍTULO 2 – CAROLINE HERSCHEL: CATÁLOGOS ESTELARES,
INSTRUMENTOS E REPERCURSÃO DE SEU TRABALHO NA HISTÓRIA DA
CIÊNCIA.................................................................................................................... 39
2 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 39
2.1 CATÁLOGOS DE ESTRELAS ............................................................................ 40
2.2 OS TELESCÓPIOS ............................................................................................. 44
2.3 REPERCUSSÃO DO TRABALHO DE CAROLINE HERSCHEL ......................... 51
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 61
13

INTRODUÇÃO

Caroline Herschel (1750-1848) foi uma astrônoma que teve destacado papel
para essa Ciência. Suas realizações abrangem novas descobertas observacionais e
habilidosos registros de dados astronômicos precisos. Caroline foi famosa em sua
época pela descoberta de oito cometas, enquanto trabalhava junto a seu irmão,
William Herschel (1738-1822), na “construção dos céus”1. Ela atuou como sua
assistente durante as vigílias noturnas, escreveu cópias ordenadas de seus registros
de observação e preparou seus textos para publicação.
Caroline também compilou um índice para o Catálogo de John Flamsteed,
publicado pela Royal Society. Depois da morte de William, reorganizou seus catálogos
de nebulosas para que seu sobrinho, John Herschel (1792-1871), filho de William,
pudesse reexaminar as nebulosas observadas por seu pai, trabalho que levou ao
Novo Catálogo Geral (NGC) que é usado até hoje2.
A descoberta de seu primeiro cometa, na primeira noite de agosto no de 1786,
levou Caroline a escrever uma carta endereçada a Charles Blagden, então secretário
da Royal Society. O texto dessa carta viria a ser posteriormente publicado na
Philosophical Transactions3. Pouco mais de um ano depois, em outubro de 1787,
Caroline passou a receber pagamento de cinquenta libras por ano por sua atividade
em Astronomia. Por esse fato, atribui-se a ela o feito de ser a primeira mulher a receber
um salário pelos seus trabalhos científicos na Inglaterra do século XVIII, o que é visto
como um marco na História da Ciência.
No entanto, embora tenha apresentado grande relevância na construção da
História da Ciência, em especial, da Astronomia, Caroline Herschel até hoje não
obteve uma visibilidade proporcional à sua histórica relevância. De fato, como mulher
de sua época, ficava à sombra de seu irmão, William Herschel, como será visto mais
adiante.
Dessa forma, considerando o contexto que pouco creditou as contribuições e a
importância de Caroline Herschel para a Astronomia, o presente trabalho teve como
objetivo apresentar suas descobertas e contribuições para a Astronomia, como
àquelas que ajudaram a compor o Novo Catálogo Geral de Nebulosas e Aglomerados

1 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.


2 Hoskin, “Caroline Herschel: Gazing at the starry heavens”.
3 Clair Brock, The Comet Sweeper.
14

de Estrelas, no qual apresentou papel primordial, bem como e outros diversosachados


científicos, os instrumentos utilizados e a repercussão de seu trabalho. Para atingir
esse objetivo, essa dissertação foi dividida em dois capítulos.
No primeiro capítulo, tratou-se da biografia de Caroline, tendo como propósito
compreender os contextos que a levaram a se tornar astrônoma assistente de William
Herschel, suas observações e descobertas, bem como a repercussão do seu trabalho
na comunidade científica da época. No segundo capítulo, foram analisadas as
observações de céu profundo feitas por Caroline, o papel dos instrumentos utilizados
em suas observações e seu trabalho na compilação dos catálogos estelares.
A elaboração desta dissertação se deu a partir do método de revisão
bibliográfica, na qual foram estudados a natureza dos documentos originais,
fundamentando-os a partir da literatura secundária levantada. Seguindo as trêsesferas
de análise, para uma melhor compreensão da realidade social e intelectual em que
vivia Caroline, foram consultadas obras de historiadores e filósofos que se dedicaram
ao período de interesse. No que diz respeito à História da Ciência, são apontados na
bibliografia estudos que abordam diretamente a vida e a obra de Caroline Herschel,
publicados em livros e revistas de maior relevância para a Históriada Ciência.
15

CAPÍTULO 1 – A BIOGRAFIA DE CAROLINE HERSCHEL E SUA JORNADA NA


ASTRONOMIA

1 INTRODUÇÃO

Caroline Herschel nasceu em uma família de musicistas no século XVIII. Ela é


descrita como uma mulher de pequena estatura, com a face desfigurada em razão da
varíola contraída durante sua infância. As mulheres da época tinham poucas
perspectivas de futuro, das quais o casamento era a mais certa. Para Caroline, no
entanto, em razão de sua aparência, de acordo com seu próprio pai, Isaac, suas
chances eram ínfimas.
Em vista disso, Caroline foi criada pela mãe, Anna, para uma vida de afazeres
domésticos. Por outro lado, ela também recebeu certa educação de seu pai,
juntamente aos seus irmãos, e mostrava-se sempre encantada com os ensinamentos
apresentados. Anos após a morte do pai, quando não lhe restava mais nenhuma
perspectiva de mudança de vida, seu irmão, William, conseguiu levá-la para morar
com ele temporariamente em Bath, transformando completamente a história de vida
de Caroline.
Treinada pelo irmão William para atuar como música, a vida de Caroline sofreu
outra reviravolta quando William começou a desenvolver um certo gosto pelas
ciências astronômicas. Foi, então, que Caroline também começou sua jornada na
Astronomia, inicialmente com o objetivo de auxiliar William, mas que, posteriormente,
seria marcada por suas próprias descobertas e muitas contribuições, garantindo a
permanência de Caroline junto a seu irmão, William, além de um reconhecimento que,
até então, nenhuma mulher havia conseguido como astrônoma.
Para conhecer e compreender o contexto que levou Caroline Herschel de uma
mera servente de sua família em Hanover, a ser a primeira mulher na história da
Astronomia a receber pagamentos por seus serviços, neste capítulo, são
apresentados alguns traços da sua vida e obra, especialmente no sentido de
contextualizar sua biografia. Na sequência do capítulo, são apontados os
aprendizados e descobertas de Caroline, junto a seu irmão, além de seus próprios
achados, que marcaram permanentemente sua história de vida e a História da
Ciência.
16

1.1 A EVOLUÇÃO DE UMA ASTRÔNOMA

Caroline Lucretia Herschel nasceu em Hanover, Reino da Prússia (atual


Alemanha), em 16 de março de 1750 (Figura 1), sendo a oitava de dez filhos, dos
quais seis sobreviveram até a idade adulta4. Um de seus irmãos morreu em
consequência de varíola, infectado ao mesmo tempo que Caroline, que na época tinha
quatro anos de idade. Apesar de ter sobrevivido, Caroline relata que teve como
sequela a desfiguração de seu olho esquerdo 5. Seu pai, Isaac Herschel, músico da
Guarda de Hanover, não teve acesso ao ensino formal, entretanto, preocupava-se
com a instrução de seus filhos. Por isso, a conversa na casa da família Herschel
muitas vezes era centrada em temas da cultura de seus dias 6. Além disso, com
exceção da sua filha mais velha, Sophia, todos tinham herdado seu talento para a
música7.

Figura 1 – Caroline Herschel.

Encyclopædia Britannica (2021, on-line).

4 Clair Brock, The Comet Sweeper.


5 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
6 Clair Brock, The Comet Sweeper.
7 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
17

Sem dúvida, Caroline era fascinada pelos assuntos discutidos entre pai e
irmãos8. Em sua autobiografia, ela relata que:

Muitas vezes, eu me mantinha acordada para ouvir sua conversa sobre


assuntos filosóficos, em que meu irmão William e meu pai discutiam com
tanto calor, que a interferência da minha mãe se tornava necessária, quando
os nomes Leibntz, Newton e Euler pareciam altos demais para o descanso
de seus filhos.9

Sempre que possível, Isaac Herschel incluía Caroline no quadro intelectual de


discussões, bem como nas instruções musicais que deu aos meninos10. Inclusive, o
primeiro contato de Caroline com astronomia ocorreu quando seu pai, que era um
grande admirador dessa ciência e tinha algum conhecimento, a levou em uma noite
clara e gelada para a rua, segundo Caroline, “a fim de me familiarizar com várias das
mais belas constelações, depois de olharmos para um cometa que era então visível”11.
No entanto, a sociedade da época considerava a mulher como mera servente
do homem12. Assim, embora seu pai buscasse constantemente inseri-la entre seus
irmãos durante seus ensinamentos, a mãe de Caroline, Anna, que era analfabeta,
hesitava sobre esse modo de educar uma mulher. Da mesma forma como a sociedade
pregava, Anna via sua filha destinada aos afazeres domésticos, como uma servente
não paga de seus irmãos e uma governanta para a casa13.
O pai de Caroline, frequentemente ficava fora por longos períodos, pois fazia
parte do exército, no qual servia como músico. Por isso, os filhos cresciam aos
cuidados da mãe, Anna14. A família se mudava de casa com frequência por motivos
financeiros, e Anna, ocasionalmente trabalhava como costureira, para complementar
a renda familiar15. A educação de Caroline, durante os períodos de ausência de seu
pai, era voltada aos afazeres domésticos16. É nesse contexto que o comportamento
do casal Herschel deve ser considerado. Segundo Anthony Turner, “Graças à

8 Clair Brock, The Comet Sweeper.


9 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
10 Moore, “Caroline Herschel”.
11 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
12 Ibid.
13 Glenis Moore, “Caroline Herschel”.
14 Ibid.
15 Anthony John Turner, Science and Music in Eighteenth Century Bath.
16 Moore, “Caroline Herschel”.
18

oposição de sua mãe, anulando os desejos de seu pai, foi negado qualquer tipo de
educação a Caroline”17.
Em 1760, Isac retornou à sua família quase inválido. Mesmo assim, mantinha
seus esforços para inserir Caroline em seus ensinamentos musicais e educacionais18.
Algum tempo depois, em 1767, o pai de Caroline faleceu, deixando a adolescente de
17 anos aos cuidados de sua mãe Anna e o irmão mais velho Jacob, como chefe da
família19. Caroline, mais uma vez, encontrava-se como servente de sua própria
família20.
A vida de Caroline na casa Herschel não era fácil. Segundo ela, era seu destino
ser a Cinderela da família21. Não obstante a infância de Caroline em Hanover tenha
sido relatada muitas vezes, pouco foi dito sobre a atuação de Caroline ou sobre como
sua situação pode ser compreendida historicamente. Em vez disso, esses relatos
colocam ênfase desproporcional nas personalidades de seus pais, a partir de
informações extrapoladas de um pequeno número de referências feitas por Caroline
na velhice, como será visto a seguir.
De acordo com Michael Hoskin, a mãe de Caroline a via “como uma fonte
permanente de ajuda barata em casa”22. Segundo o autor, Caroline era "o único
suprimento restante de mão de obra barata em casa" e assim permaneceria para
sempre se Anna (sua mãe) fizesse o que queria 23. Os termos 'mão de obra barata' e
'trabalho doméstico' são usados frequentemente para transmitir uma qualidade de
madrasta perversa, mas não são termos encontrados nas fontes primárias
consultadas para a realização da presente pesquisa.
Considerações sobre o contexto daquela época sugerem que a situação de
Caroline não era muito diferente da de muitas outras mulheres solteiras de classe
média baixa da região24. A própria Caroline simplesmente fornece relatos das várias
tarefas domésticas que ela e sua mãe realizavam juntas. Ela usa a palavra 'trabalho
enfadonho' uma vez, alegando que seu pai nunca quis que ela perdesse seu tempo
com 'trabalhos penosos e trabalhosos', mas em nenhum lugar isso está

17 Anthony John Turner, Science and Music in Eighteenth Century Bath.


18 Moore, “Caroline Herschel”.
19 Anthony John Turner, Science and Music in Eighteenth Century Bath.
20 Moore, “Caroline Herschel”.
21 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies.
22 Hoskin, “Alexander Herschel: the forgotten partner,”.
23 Ibid., 11.
24 Marilyn Bailey Ogilvie, Searching the Stars.
19

especificamente ligado ao trabalho doméstico25. A declaração está aberta à


interpretação e, no contexto da educação dentro desta família de forma mais ampla,
ela poderia estar se referindo ao desejo do pai de ver todos os seus filhos acima de
sua classe social.
Contudo, isso não inibiu a “mãe malvada” de perseguir Caroline, conforme
muitos relatos biográficos. Richard Holmes afirma que “Isaac era um professor
paciente e bem-humorado; enquanto Anna era temperamental, teimosa e
desdenhosa”26. Claire Brock afirma que as "tentativas de Caroline para melhorar a si
mesma foram bloqueadas por Anna, que queria manter sua governanta não
remunerada"27 e que o "fraco e gentil Isaac foi rudemente rejeitado por sua esposa
vulgar e Caroline teve permissão apenas para melhorar elementos ‘úteis’ de sua
educação”28.
Essas afirmações contundentes mostram uma certa falta de percepção aos
detalhes históricos. Todos insistem que Anna estava agindo por crueldade, enquanto
Isaac era incansavelmente bom e encorajador, conduzindo à conclusão de que, se
não fosse pelas personalidades dos pais, a educação de William e Caroline teria sido
idêntica. Essas descrições, no entanto, não dão nenhuma noção do contexto histórico
para as escolhas desse casal.
O estudo aprofundado de Marilyn Bailey Ogilvie sobre a vida das mulheres nos
primórdios da modernidade, particularmente em terras germânicas, mostra que,
embora os pais fossem obrigados por lei a mandar suas filhas à escola, eles não eram
obrigados a fornecer-lhes uma educação igual à de seus irmãos Muitos grupos
proibiam expressamente seus membros de treinar ou empregar filhas em seu ofício,
e não era incomum que mulheres solteiras permanecessem na casa dos pais até os
quarenta anos. Além disso, mulheres que pretendiam emprego fora de casa, tinham
opções limitadas, das quais tornar-se empregada doméstica era o mais comum 29. As
mulheres descritas por Ogilvie falam em ganhar 'a vida amarga', dentro ou fora de
casa.
É neste contexto, de escolhas limitadas e desagradáveis, que é necessário
entender Caroline, isto é, considerando a realidade da vida na Europa do século XVIII

25 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies, 29.


26 Richard Holmes, The Age of Wonder.
27 Clair Brock, The Comet Sweeper.
28 Ibid.
29 Marilyn Bailey Ogilvie, Searching the Stars.
20

para uma jovem solteira que, de acordo com as normas aceitas na época, deveria
sacrificar sua própria ambição para ajudar e apoiar nos deveres do lar, participando
na administração da casa. Por isso, o ensino infantil de Caroline foi muito diferente do
vivenciado por seus irmãos, não apenas nas matérias que ela estudou, mas em como
foi efetivamente ensinada. Enquanto William e seus outros irmãos aprenderam a
dominar um único assunto (música), com prática intensiva e concentrada, Caroline
aprendeu a adquirir habilidades muito rapidamente e a colocá-las em uso de uma
maneira útil para sua família. Esse pensamento parece ter moldado a atitude de
Caroline em relação ao aprendizado ao longo de sua vida30.
Ao mesmo tempo, é possível ver a ambição de Caroline emergindo. As lições
que buscou eram aquelas que poderiam fazer com que ela e, por associação, sua
família, parecesse ter uma posição social mais elevada do que a da geração anterior.
Essas lições poderiam, em algumas famílias, ter levado a empregos remunerados.
Entretanto, na casa de Herschel, tais ambições não eram incentivadas31, uma vez que
treinar meninas para trabalhar fora de casa era considerado uma atividade da classe
baixa, e esse, ao que parece, não era o objetivo dos Herschels32.
Mas, como no conto de fadas, o Príncipe Encantado logo iria resgatá-la,
assumindo a figura de seu irmão. William, que era 12 anos mais velho e o irmão
favorito de Caroline, juntamente a outro irmão, Alexander, tinha um plano para buscar
a irmã mais nova33. William Herschel tinha se estabelecido na Inglaterra em 1757,
mudança realizada com o objetivo de fugir de Hanover durante a Guerra dos Sete
Anos. Quando o pai de Caroline faleceu, William havia alcançado posição de organista
na Capela Octagon, em Bath. Uma vez estabelecido, em 1770, mandou chamar seu
irmão mais novo, Alexander34.
Ao saber da situação à qual Caroline era submetida pelo relato de seu irmão
Alexander, no outono de 1771, William escreveu à sua mãe Anna e irmão mais velho,
Jacob, sugerindo que Caroline se juntasse a ele para que pudesse treinar como
cantora. A proposta era de que, se em até dois anos sua voz não fosse considerada
suficientemente boa, ela retornaria para casa35. Na época, William já cantava como

30 Winterburn, “Caroline Herschel,”.


31 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies, 11.
32 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
33 Ibid.
34 Moore, “Caroline Herschel”.
35 Ibid.
21

solista nos oratórios36 de Handel que montava. Além disso, ele era solteiro e precisava
de alguém para cuidar de sua casa. Alexander comentara que a irmã mais nova tinha
uma bela voz, William presumiu então que Caroline sabia cantar e, portanto, poderia
acompanhá-lo nos concertos37.
Inicialmente, Jacob, o irmão mais velho, pareceu concordar com a proposta,
porém, com o passar do tempo, mudou seu pensamento. Segundo Glenis Moore,
“Jacob passou a considerar a proposta uma ideia ridícula”38. William, por sua vez, não
aceitou ser dissuadido39. Assim, no verão seguinte, em 1772, foi buscá-la40. Ele viajou
para Hanover no começo de agosto, período em que sabia que Jacob não estaria
presente, aproveitando a ausência do irmão para convencer sua mãe, Anna, a deixar
Caroline acompanhá-lo. Após uma longa insistência e um acordo de contribuir com
uma soma anual para que Anna pudesse manter uma governanta, Caroline foi
autorizada pela mãe a ir para a Inglaterra41.
Entre 1772 e 1781, Caroline viveu com seu irmão em Bath. Apesar de ter tido
uma vida dura em Hanover, vez ou outra, ela se sentia saudades de casa. Entretanto,
William tratou de mantê-la ocupada com lições de música, inglês e matemática 42. A
intenção inicial era que Caroline pudesse se formar como professora de música ou
como cantora para atuar nos concertos de William43.
Enquanto estava em Bath, Caroline também recebeu aulas para aprender as
regras de comportamento feminino apropriado e a como se apresentar diante dos
clientes que procuravam contratar músicos. Para esse fim, William a apresentou a
duas senhoras que eram consideradas ótimas críticas de cantores e músicos e
providenciou para que elas a levassem para Londres. Elas lá ficaram por seis
semanas, durante as quais Caroline foi levada várias vezes à ópera, ao teatro, a leilões
e a compras. Embora um pouco sobrecarregada com a experiência e feliz por estar de
volta a Bath, ela anotou em sua autobiografia que "a ela (Sra. Colbrook) e à marquesa
de Lothian, estou em dívida por tudo que já vi do mundo da moda"44.

36 Gênero musical dramático, apresentado em forma de concerto.


37 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
38 Moore, “Caroline Herschel”.
39 Hoskin, Michael. Discoverers of the Universe.
40 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
41 Moore, “Caroline Herschel”.
42 Ibid.
43 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
44 Constance A. Lubbock, The Herschel Chronicle.
22

Caroline perseverou com seu canto e, em 1777, devido ao seu sucesso, sua
mãe permitiu que ela residisse definitivamente na Inglaterra45. Logo depois, em 1778,
apareceu como primeira solista no Concerto Messias de Handel (Figura 2). Em quinze
de abril desse mesmo ano, após uma apresentação, Caroline foi convidada para
cantar em Birmingham. O convite para ser solista em Birmingham foi uma
oportunidade sem precedentes para Caroline construir uma carreira musical para si
mesma, no entanto, ela recusou 46.

Figura 2 – Cartaz de divulgação da apresentação de Caroline Herschel no Concerto Messiah de


Handel em Bath, em 15 de abril de 1778.

Arquivos da família Herschel, disponível em Michael Hoskin (2013, p. 39).

45 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.


46 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
23

Caroline não queria abandonar o irmão. William foi busca-la em Hanover e ela
sabia que ele dificilmente alcançaria suas ambições sem sua ajuda: “mas como nunca
tive a intenção de cantar em lugar nenhum, mas apenas onde meu irmão era maestro,
recusei a oferta”47. Após recusar a oferta, Caroline ainda permaneceu por mais um
ano cantando em público, porém, o tempo que ela tinha para praticar foi sendo
reduzido gradualmente à medida que ficava cada vez mais ocupada auxiliando seu
irmão em suas muitas ocupações diárias48.
Portanto, a lealdade de Caroline ao irmão a privou de uma possível carreira
grandiosa, por meio da qual poderia tirar o seu próprio sustento. Contudo, para
Constance Lubbock, é duvidoso que uma carreira puramente musical a teria
satisfeito49. Além disso, Caroline teria que frequentar uma sociedade à qual não
pertencia, enquanto sua sede por conhecimento nunca seria saciada. E foi assim,
então, que sua decisão teve consequências importantes para a história da
Astronomia50.

1.2 TREINAMENTO, OBSERVAÇÕES E DESCOBERTAS

Logo após sua chegada, no outono de 1772, Caroline descobriu que sua vinda
coincidira, por acaso, com o desenvolvimento de uma paixão amadora pela
Astronomia por parte de seu irmão William. Inclusive, por essa razão, durante os anos
iniciais que passou na Inglaterra, Caroline viu seu interesse pela ciência e matemática,
que havia surgido durante a infância, ser revivido e desenvolvido. Por isso, a maioria
dos historiadores acredita que foi William que ensinou a irmã grande parte dos
conhecimentos em ciências e matemática que a permitiram participar dasobservações
astronômicas51.
Em decorrência do fato de seu irmão, William, passar a dedicar grande parte
de seu tempo à Astronomia, ocupando seus dias em tarefas como polir espelhos, não
tinha muito tempo para dar aulas de música à Caroline. Assim, para os deveres
musicais, ela foi forçada a improvisar, inventando suas próprias lições. Caroline,
então, começou a usar esse tempo para se tornar mais indispensável para sua família:

47 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


48 Constance A. Lubbock, The Herschel Chronicle.
49 Ibid.
50 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
51 Moore, “Caroline Herschel”.
24

“Comecei a pensar em como aquelas horas que agora deveria ser deixada para mim
mesma poderiam ser mais bem gastas, aprendendo o que seria necessário saber para
uma governanta de uma pequena família”52.
Portanto, durante esse período William e Caroline usaram sua capacidade de
absorver habilidades e conhecimentos para desenvolver novos papéis para si
próprios. Enquanto William estava gradualmente se tornando mais astrônomo do que
músico, Caroline estava ocupada em tornar-se indispensável em todas as áreas da
vida de William. Primeiro, ela se tornou assistente de William, o músico, não apenas
como cantora (como havia sido originalmente sugerido), mas em todos os aspectos
de sua vida musical. Ela aprendeu as regras de apresentação e modéstia feminina,
mas, o mais importante, ela as aprendeu no contexto da performance. Essas lições
não foram planejadas para desencorajar a participação na esfera pública, mas sim
para ensiná-la que, como mulher, ela deveria administrar sua aparência e reputação53.
Em relação ao seu comprometimento com a Astronomia, de início, o
envolvimento de Caroline era restrito a ajudar em tudo o que seu irmão precisasse
enquanto trabalhava em suas descobertas. Contudo, gradualmente, ela se tornou uma
assistente leal tanto em suas diversas noites de observação astronômica quanto
durante a construção de seus telescópios. Foi então, em 1781, que William, durante
uma de suas longas noites de observação através de seu telescópio feito à mão,
alcançou sua fama como astrônomo, com a descoberta de um novo cometa, que seria
posteriormente reconhecido como o planeta Urano, ou como ele mesmo chamava:
Georgium sidus54.
Além de ganhar a Medalha de Copley e se tornar um membro da Royal Society,
a descoberta do planeta Urano rendeu à William uma Pensão Real concedida por
George III no valor de £200 anuais, com a exigência de que abandonasse a música e
se mudasse para perto do Castelo de Windsor. Nos padrões do século XVIII, embora
não fosse uma vasta quantia de dinheiro, a pensão concedida possibilitaria que
William deixasse a música e se dedicasse exclusivamente à Astronomia 55. Sem
consultar a irmã, William aceitou a oferta do rei. Dessa forma, eles se mudaram para
Datchet, próximo a Windsor, uma aldeia tranquila muito diferente da animada Bath56.

52 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


53 Winterburn, “Learned modesty and the first lady’s comet,”.
54 Moore, “Caroline Herschel”.
55 Ibid.
56 Caroline Herschel apud Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
25

Com essa mudança, as aspirações musicais de Caroline tiveram fim e, então,


com o incentivo de seu irmão, ela começou a treinar, aprendendo habilidades para de
imediato começar a atuar como assistente e escrevente para seu irmão 57. Assim,
Caroline chegou em Datchet, no outono de 1782, como forma de a encorajar (Figura
3), William deu-lhe seu primeiro telescópio adaptado para fazer varreduras. Nas
palavras de Caroline58:

Figura 3 – Notas feitas por Caroline das instruções dadas por seu irmão William no outono de 1782,
quando ela iniciou suas buscas no céu noturno.

Royal Astronomic Society, disponível em Michael Hoskin (2013).

57 Moore, “Caroline Herschel”.


58 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
26

Na ausência de meu irmão em casa, eu fiquei, é claro, apenas com meus


próprios pensamentos, que eram tudo menos alegres. Descobri que deveria
ser treinada para ser um astrônomo assistente; e como forma de incentivo,
um telescópio adaptado para varredura [...] foi dado a mim. Eu deveria
procurar cometas. […] Comecei em 22 de agosto de 1782 […], mas não foi
até os últimos dois meses do mesmo ano que senti o mínimo incentivo por
passar as noites à luz das estrelas em um gramado coberto de orvalho ou
geada sem um ser humano perto o suficiente [...].59

O telescópio era simples, composto por um tubo e duas lentes, que


normalmente eram usadas em um localizador (Figura 4). Apresentava rotação em um
eixo vertical e era movido por uma alça que enrolava uma corda60.

Figura 4 – Desenho do primeiro telescópio varredor de cometas de Caroline Herschel.

Michael Hoskin (2005, p. 374).

Caroline também começou a aprender mais matemática, interrogando o irmão


sempre que tinha oportunidade. Como ela disse ao sobrinho, essas lições tomaram
principalmente a forma de “respostas de seus pais às perguntas que eu costumava
fazer quando no café da manhã, antes de nos separarmos, cada um para nossas
tarefas diárias”. Como fizera ao longo de sua vida, Caroline usava todo o tempo livre

59 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


60 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
27

que tinha para ajudar outras pessoas, buscar aulas particulares e depois praticar
sozinha61
Em 1783, Caroline teve que dar prioridade ao trabalho de escrevente para
William, enquanto ele buscava nebulosas e aglomerados. Nesse mesmo ano, sempre
que surgia a oportunidade, ela dedicava seu tempo para observar por conta própria,
primeiro com o pequeno refrator62, também conhecido como luneta (Figura 5).
Caroline foi explicitamente instruída pelo irmão a procurar por uma ampla gama de
objetos: estrelas duplas, aglomerados, nebulosas e cometas63. Em fevereiro, seus
esforços foram recompensados com a descoberta de sua primeira nebulosa, ainda
não registrada64. Esse achado fez com que William presenteasse a irmã com um
instrumento muito melhor feito por ele: o engenhoso varredor newtoniano, com um
comprimento focal de 27 polegadas e um poder de 3065.

Figura 5 – A ótica do "varredor de cometa" que William idealizou e fez para Caroline em 1783.

Imagem fornecida e reproduzida com permissão do Museu Histórico de Hanover, Alemanha, em


Michael Hoskin (2005).

61 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


62 Telescópio refrator funciona com a refração da luminosa, possui uma lente objetiva (convergente)
que capta a luz dos objetos.
63 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
64 Moore, “Caroline Herschel”.
65 Telescópio newtoniano funciona com espelho esférico ou parabólico para captar a luz.
28

Usando esse varredor, durante aquele mesmo ano, ela encontrou algumas
estrelas duplas. Seus principais interesses eram nebulosas e aglomerados (Figura 6),
procurando aqueles listados por Charles Messier, astrônomo francês, pioneiro em
compilar um catálogo sistemático de nebulosas e aglomerados de estrelas enquanto,
ao mesmo tempo, procurava novos66. Caroline ainda encontrou, utilizando seu
varredor newtoniano, mais duas nebulosas, uma em agosto e outra em setembro de
1783. Ambas foram inseridas no “Catálogo das Mil Novas Nebulosas” de William,
publicado em 178667.
Essas descobertas realizadas por Caroline não constituem um feito fácil. Isso
porque, ao contrário de William, seu conhecimento sobre as posições das estrelas no
momento das descobertas ainda era mínimo. Durante todas essas observações, o
irmão estava por perto. Porém, para Caroline, sua presença era mais considerada
como um obstáculo do que uma ajuda, uma vez que ela normalmente era forçada a
reduzir seu tempo de observação para auxiliá-lo. Já quando o irmão estava ausente,
ela passava longos períodos dedicando-se a seu próprio trabalho, o que significava
ficar procurando por muito tempo por objetos em um atlas. Mas foi essa devoção e
esse tempo dedicados que foram primordiais para desenvolver seus conhecimentos
astronômicos posteriores68.
A partir da análise de seus livros de observação, bem como de seu catálogo de
nebulosas e aglomerados de estrelas, é possível verificar que Caroline encontrou, de
fato, 11 novas nebulosas e aglomerados ao longo do ano de 1793, um em 1784 e
outro em 1787, os quais ainda eram desconhecidos pelos astrônomos. Desses 13
achados, duas eram efetivamente galáxias. Uma delas foi a referida M110, a segunda
companheira da nebulosa Andromeda, a qual já havia sido anteriormente observada
por Messier, porém não tinha sido publicada até o momento. A outra era a brilhante
espiral de ponta NGC253. Essas foram excelentes conquistas realizadas por Caroline,
apresentando grande relevância e contribuição para a lista de Messier que, no total,
consistia em 103 objetos, dos quais 13 foram descobertas de Caroline69.

66 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies.


67 Moore, “Caroline Herschel”.
68 Ibid.
69 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies.
29

Figura 6 – Parte de um dos registros de Caroline de suas “varreduras” em 26 de fevereiro de 1783.


Das quatro nebulosas que ela encontrou, as duas últimas (M46 e M41) estavam no Catálogo de
Nebulosas de 1780 de Charles Messier que William Watson enviou como presente à William Herschel
em 7 de dezembro de 1781. No entanto, a primeira nebulosa não estava e, então, Caroline escreveu
“Messier não tem”. A nebulosa desconhecida para William e Caroline, era de fato a M93 no catálogo
ampliado que Messier publicou em 1781.

Royal Astronomic Society, disponível em Michael Hoskin (2013).

A entrada desses novos astros no catálogo de William levaria as iniciais CH


para identificar as descobertas de sua irmã. Todas as nebulosas de Caroline
publicadas foram redescobertas de forma independente por William, e a inclusão das
iniciais CH não fez diferença no valor científico de seus catálogos. Coletivamente, seu
significado era imenso, nada menos que o início da “construção do céu”. Nesse
30

contexto, William teve que interromper suas próprias pesquisas sobre estrelas duplas
para examinar dois clusters que sua irmã tinha encontrado70.
Até então, os livros de observação de William eram principalmente preenchidos
com observações de estrelas duplas. Mas em 4 de março de 1783, ele tomou a
decisão importante de “varrer o céu em busca de nebulosas e aglomerados de
estrelas”. Assim, as anotações em seus livros de observação mudam repentinamente:
as estrelas duplas desaparecem em grande parte e nebulosas e aglomerados tomam
seu lugar71.
No verão de 1783, William finalizou seu novo refletor de 20 pés, incluindo um
espelho de 18,7 polegadas, o que possibilitou que ele prosseguisse em sua busca por
nebulosas desconhecidas. Inicialmente, essas buscas foram feitas por conta própria,
porém, o astrônomo teve algumas dificuldades com o novo equipamento. Para testar
sua efetividade, William então convidou Caroline para usá-lo para observações e
atribuiu a ela duas tarefas: reexaminar suas estrelas duplas, uma por uma, para ver
se elas tinham alterado sua posição relativa; e pediu que ela direcionasse o
equipamento para uma estrela dupla em particular para medir o ângulo da linha de
junção de seus dois componentes. Na primeira tarefa, Caroline não obteve sucesso.
Já na segunda, os resultados foram satisfatórios72.
Em dezembro desse mesmo ano, William reconheceu que a técnica de
varredura que ele havia adotado para o refletor de 20 pés tinha muitas falhas. Além
disso, considerando as habilidades desenvolvidas por Caroline, decidiu que deveria
trabalhar em parceria, com sua irmã como sua amanuense. Essa decisão culminou
na varredura do céu visível de Windsor durante as próximas duas décadas e resultou
na descoberta de 2507 nebulosas73. Nos primeiros anos, eles trabalharam
intensamente, por isso Caroline não teve tempo para suas próprias observações 74.
Em fevereiro/março de 1984, ela encontrou sua 15° nebulosa e, em maio, sua 16°.
Contudo, no decorrer dos dois anos seguintes, ela conseguiu observar em apenas
uma única noite75.

70 Hoskin, “Caroline Herschel: the unquiet heart,”.


71 Ibid.
72 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
73 Ibid.
74 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
75 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
31

Em 1786, William decidiu mudar-se com sua família e equipamentos para


Slough. Então, escolheu uma casa na Estrada Windsor (Figura 7), com um acre de
jardim, cercada de estábulos e dependências externas. Foi em uma dessas
dependências que William estabeleceu um observatório para Caroline. Os quartos
conectados com o estábulo foram convertidos em uma residência, a sala de arreios
tornou-se a sala de escrita e o varredor newtoniano foi instalado no telhado do plano
superior. Pouco tempo após a chegada na nova residência, o rei solicitou à William
que construísse e entregasse pessoalmente um microscópio para a Universidade de
Göttingen, na Alemanha. Foi então, durante e ausência de seu irmão, que Caroline
teve a primeira oportunidade de colocar suas novas instalações em uso76.

Figura 7 – A casa de William à esquerda e a pequena casa de Caroline com o telhado que ela usava
para observar.

Michael Hoskin (2005, p. 385).

Assim, no final do verão de 1786, enquanto William estava no exterior, Caroline


teve tempo para observar mais uma vez por conta própria. Em 1° de agosto, às 9:50
p.m., ela encontrou um objeto “como uma estrela fora de foco” que, em algumas horas,
passou a suspeitar que fosse um cometa, como registrou em seu diário (Figura 8)77.
Observações realizadas na noite seguinte confirmaram suas suspeitas78. Na
observação da primeira noite ela estava utilizando um telescópio ocular simples. Já

76 Moore, “Caroline Herschel”.


77 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
78 Ibid.
32

na segunda, para uma observação mais avançada, utilizou um telescópio


‘scrutinizer”79. Confirmada sua suspeita, na ausência de William, cabia a ela notificar
sua descoberta. Caroline então enviou uma carta com detalhes ao Dr. Charles
Blagden, secretário da Royal Society80 e outra, mais pessoal, a Alexander Aubert, um
conhecido astrônomo amador amigo de William81. Em sua carta para Blagden,
Caroline usou as seguintes palavras: “Em consequência da amizade que sei existir
entre você e meu irmão, em sua ausência, atrevo-me a lhe incomodar com o seguinte
relato imperfeito de um cometa”82.

Figura 8 – Anotação de Caroline em seu caderno de observação sobre a descoberta de seu primeiro
cometa: “Eu calculei 100 nebulosas hoje, e essa noite eu vi um objeto que eu acredito que amanhã
de noite provarei ser um cometa”.

Glenis Moore (1987, p. 178).

Alguns dias depois, os amigos astrônomos de William, o presidente da Royal


Society e Lorde Palmerston, chegaram à casa de Herschel e pediram para ver o
cometa83. A carta de Caroline ao Dr. Blagden foi lida perante a Royal Society em 9
novembro de 1786 e mais tarde publicada na Philosophical Transactions84. Quando
William voltou, foi convocado ao Castelo de Windsor para demonstrar o cometa de
Caroline à Família Real. A romancista Fanny Burney, dama de companhia da rainha

79 Telescópio utilizado por Caroline Herschel durante a descoberta de seu primeiro cometa, em 1786.
Também conhecido como “Vassoura Newtoniana”, o objeto levava esse nome porque foi construído
por William Herschel com o objetivo de que Caroline pudesse movimentá-lo na vertical durante suas
observações, o que dava a ideia de o movimento de uma vassoura. A vassoura newtoniana tinha uma
distância focal de 27 polegadas e uma potência de cerca de 20, enquanto o campo de visão era de 2°
12’. (Caroline Herschel apud Michael Hoskin, “Caroline Herschel as observer”).
80 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
81 Moore, “Caroline Herschel”.
82 Ibid.
83 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
84 Herschel, “An account of a new comet,”.
33

Charlotte estava lá e relatou que “o cometa era muito pequeno e não tinha nada de
grandioso em sua aparência; mas é o cometa da primeira-dama [...]”85.
Para a surpresa de Caroline, a descoberta não apenas levou à sua aceitação
pela comunidade astronômica, mas também, pouco mais de um ano depois, em
agosto de 1787, ela foi elevada à posição de Astrônoma Assistente pelo rei George III
e passou a receber uma pensão de 50 libras por ano. Naquele momento, Caroline se
tornara a primeira mulher a alcançar tal posição e a pioneira em receber um salário
por seus serviços86,. Caroline ficou entusiasmada com o cargo que recebeu, mas a
emoção foi ainda maior com o salário que lhe foi concedido87.

[...] um salário de 50 libras por ano foi estabelecido para mim como assistente
de meu irmão, e em outubro eu recebi 12 libras, sendo o primeiro pagamento
trimestral do meu salário. É o primeiro dinheiro que já pensei receber em toda
a minha vida, para gastar do meu jeito.88

Ao primeiro anúncio publicado seguiu-se uma série, relatando todos os oito


cometas descobertos por Caroline. Sua primeira descoberta veio depois de
aproximadamente 5 anos de prática de observação e vários anos auxiliando William
em suas observações e escrevendo suas memórias. Ao ajudar William, ela aprendera
o que era exigido em uma publicação. Ela também se familiarizou o suficiente com o
céu noturno para que o aparecimento de um cometa parecesse notável e fora do
comum.
Entre o final de 1786 e a data de casamento de seu irmão, dia 8 de maio de
1788, foram encontrados somente três registros (muito breves) de observações
realizadas por ela89. Em 1788, completaram-se 16 anos que Caroline havia se mudado
para casa de seu irmão, alimentando-lhe, ajudando-lhe na construção de seus
telescópios e acompanhando-lhe em muitas noites de observação. William casou-se
com Mary Pitt, o que deixou a irmã, de certa forma, com um sentimento de rejeição.
Em razão do casamento, Caroline foi obrigada a se mudar para a residência de campo
de sua cunhada. No entanto, o casamento de William, apesar das aparentes

85 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


86 Clair Brock, The Comet Sweeper.
87 Moore, “Caroline Herschel”.
88 Caroline Herschel apud Clair Brock, The Comet Sweeper.
89 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
34

perturbações causadas à irmã, foi um dos períodos mais produtivos desde que a
carreira astronômica de Caroline teve início90.
O casamento de William fez com que ele ocupasse menos o tempo de Caroline,
tanto com a gestão de sua casa, que passou para sua esposa, quanto nas
observações, uma vez que seu irmão passou a se preocupar com um novo refletor de
40 pés91. Além disso, durante os meses de verão, William criou o hábito de levar sua
família para passeios. Assim, Caroline tinha muito tempo livre para se dedicar à
Astronomia no observatório do irmão, utilizando-se de seus equipamentos. O
casamento do irmão levou-a a se dedicar ainda mais ao trabalho astronômico,
possivelmente para aliviar o sentimento de ser deixada de lado. De fato, com esse
maior tempo disponível para a Astronomia, sete meses após o casamento de William,
Caroline descobriria seu segundo cometa92 e, assim como em 1786, quando descobriu
seu primeiro cometa, seu irmão também estava fora93.
Na época, Caroline tentava localizar um cometa que tinha sido recentemente
descoberto por Messier, o qual William havia calculado estar perto do Polo Norte. Sem
sucesso, Caroline passou a procurar por um outro cometa visto em 1661, com retorno
previsto para o período. Em 18 de dezembro, seus esforços foram interrompidos por
William para que ajudasse nas observações com o refletor de 20 pés. No dia 21 ela
visualizou seu segundo cometa94. A carta comunicando a descoberta do segundo
cometa levou 48 horas para viajar as 30 milhas de Windsor, a oeste de Londres, ao
Observatório Real de Greenwich, a leste. Vários dias se passaram antes que Nevil
Maskelyne, astrônomo real, pudesse verificar seu achado95.
Por todo o ano de 1789, foram registradas apenas nove observações no livro
de anotações de Caroline96. Isto porque a observação e o desenho dos satélites de
Saturno e Urano ocuparam a maioria do seu tempo durante o ano de 178997. Segundo
Hoskin, talvez ela estivesse fazendo suas observações periódicas, mas não as
estivesse registrando pois não havia encontrado nada que valesse a pena98. Em 7 de
janeiro de 1790, entretanto, ela observou seu terceiro cometa, bem pequeno e que

90 Moore, “Caroline Herschel”.


91 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
92 Moore, “Caroline Herschel”.
93 Clair Brock, The Comet Sweeper.
94 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
95 Clair Brock, The Comet Sweeper.
96 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
97 Moore, “Caroline Herschel”.
98 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
35

logo desapareceu99. Essa descoberta foi o que possivelmente fez com que William a
visse como uma observadora melhor (Figura 9). Assim, ampliou a versão do seu
instrumento de trabalho, construindo para ela um telescópio newtoniano maior e
melhor do que os anteriores, agora com 9,2 polegadas100.

Figura 9 – Desenho datado de fevereiro de 1790 mostrando “a filósofa farejando o cometa”.

Michael Hoskin (2005, p. 387).

99 Moore, “Caroline Herschel”.


100 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.
36

Em 17 de abril de 1790, quando examinava a lua com seu novo instrumento,


Caroline descobriu o seu quarto cometa. Mais uma vez, o irmão estava ausente. Ela,
então, escreveu para Alexander Aubert. No entanto, no momento da observação, seu
telescópio estava com a alça do movimento perpendicular quebrada, além disso, o
dispositivo que ela utilizava para medir as diferenças entre as coordenadas da
ascensão reta e declinação também apresentava problemas. No dia seguinte, as
limitações de observação incomodaram seu grande admirador, o Astrônomo Real
Nevil Maskelyne, que não conseguiu observar o cometa. Isso só foi possível, seis dias
após a descoberta de Caroline101.
Em 15 de dezembro de 1791, Caroline descobriu seu quinto cometa. Em 7 de
outubro de 1793 encontrou o sexto, que, na verdade, já tinha sido visto por Messier
em 27 de setembro102. Em 7 de novembro de 1795 descobriu o sétimo cometa:

A primeira vez que eu o percebi (o cometa), duas pequenas estrelas estavam


inteiramente cobertas por ele, o que me pareceu inicialmente ser um
aglomerado de estrelas misturado com nebulosidade, mas não sabendo de
tal objeto naquele lugar, eu me mantive observando e percebi ser um cometa
por ter se movido das duas pequenas estrelas de modo a deixá-las
inteiramente livres de nebulosidade.103

Esse cometa provou ser o mais relevante dentre os descobertos pro Caroline.
Em 1819, Johann Franz Encke demonstrou que era idêntico com um previamente
observado por Méchain em 1786, e subsequentemente visto em 1805 e 1818. Isso foi
confirmado quando ele reapareceu em 1822. Desde então, passou a ser conhecido
como o cometa de Encke,104.
Entre novembro de 1795 e o início de agosto de 1797, embora estivesse
trabalhando em suas observações, não existem anotações nos registros de
observações de Caroline. Foi, então, em 14 de agosto de 1797, quando ela se
preparava para “varrer os céus da maneira que comumente fazia a olho nu”, que
imediatamente avistou um cometa105, registrando seu oitavo e último cometa106. Na

101 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.


102 Ibid.
103 Ibid.
104 Ibid.
105 Ibid.
106 Moore, “Caroline Herschel”.
37

mesma noite, Stephen Lee e Alexis Bouvard, do observatório de Paris, também


conseguiram observar o cometa de Caroline107.
Curiosamente, todas as oito descobertas de seus cometas foram feitas
enquanto ela vivia na casa de seu irmão, mas nos dias em que ele estava ocupado ou
ausente. Em cada caso, ela garantiu que sua descoberta fosse anunciada o mais
rápido possível e para um amigo influente. Essas ações minam suas afirmações
autodepreciativas de desejar que seus cometas fossem anunciados apenas em favor
da astronomia108.

1.3 A RELAÇÃO ENTRE CAROLINE E WILLIAM HERSCHEL

Os laços afetivos familiares na família Herschel eram difíceis de encontrar,


especialmente aqueles que se formaram entre William e Caroline. A própria Caroline
descreve seu irmão como “o melhor e mais querido dos irmãos”. Suas vidas eram tão
entrelaçadas que a biografia de um deles precisa necessariamente ser uma extensão
da biografia do outro109. Essa relação de colaboração nas observações astronômicas
existente entre ela e seu irmão constituiu a segunda parceria entre um homem e uma
mulher na história da Astronomia. A primeira delas foi entre Elisabetha e seu esposo,
Johannes Hevelius (1611-1687), na qual Elisabetha auxiliou o marido a medir a
separação angular de pares de estrelas110.
No entanto, a admiração de Caroline pelo irmão William aparenta ter surgido
desde a infância111. A gentileza de seu irmão mais velho que inspirou o
reconhecimento de Caroline é recordada em um pequeno incidente de sua infância:

Minha mãe, muito ocupada preparando o jantar, permitiu que eu fosse até o
desfile encontrar meu pai, mas eu o perdi, e continuei minha busca até que
fiquei exausta com frio e fadiga; e ao voltar para casa eu os encontrei todos
à mesa; ninguém me cumprimentou, mas meu irmão William veio correndo
até mim e se agachou, o que me fez esquecer todas as minhas queixas. Eu
menciono este exemplo da atenção do meu irmão porque essa seria a última
vez que eu receberia essa gentileza dele nos próximos anos que viriam.112

107 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.


108 Constance A. Lubbock, The Herschel Chronicle.
109 H. Spencer Jones, “The Herschel Chronicle,”.
110 Hoskin, “Caroline Herschel: assistant astronomer or astronomical assistant?,”.
111 Dent, “Caroline Herschel,“.
112 Caroline Herschel apud Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies apud Constance A

Lubbock, The Herschel Chronicle.


38

Após a mudança para a residência de William em Bath no ano de 1772, a vida


de Caroline girou em torno de seus serviços ao irmão mais velho. Ela dirigiu a
residência de William, atuou como sua amanuense e compartilhou muitas noites de
observação com o irmão, permanecendo junto a ele e sua família como sua fiel
companheira até a morte de William, em 1822. Com a perda do querido e amado
irmão, a amargura de Caroline foi tanta que ela acabou retornando a Hanover113.

113 Hoskin, “Caroline Herschel as observer”.


39

CAPÍTULO 2 – CAROLINE HERSCHEL: CATÁLOGOS ESTELARES,


INSTRUMENTOS E REPERCURSÃO DE SEU TRABALHO NA HISTÓRIA DA
CIÊNCIA

2 INTRODUÇÃO

Como visto no capítulo anterior, Caroline Herschel é admirada pelos


historiadores da Astronomia como a devota assistente de seu irmão William. De fato,
ela e o irmão apresentaram grandes contribuições para a Astronomia, especialmente
por suas observações que resultaram em cerca de 2500 descobertas de novas
nebulosas.
No entanto, a relevância de seus trabalhos foi tamanha que ela foi reconhecida
e muito estimada em toda a Europa. Contudo, considerando o contexto social em que
vivia, o fato de ter conseguido obter destaque no mundo científico não era tido como
algo comum. Por essa razão, os fatores que fizeram com que seu trabalho pudesse
ser reconhecido a ponto de que Caroline fosse vista como muito mais do que a irmã
e mera assistente de William Herschel levantam muito interesse.
Deve-se ainda levar em conta que todas as observações de Caroline foram
realizadas por meio de telescópios construídos por seu irmão William, apresentado ao
longo da literatura como o astrônomo que abriu as fronteiras para a exploração do
telescópica do céu profundo. O acesso a instrumentos considerados tão potentes na
época, associado à devoção de Caroline pelo irmão e sua vontade de se fazer
necessária, foram possivelmente fatores que contribuíram para seus feitos. Por isso,
conhecer, mesmo que brevemente, os instrumentos utilizados pelos irmãos Herschel
em suas observações, pode explicar uma parte de seu sucesso ao longo de anos de
varreduras do céu noturno.
As contribuições de Caroline Herschel, sejam àquelas realizadas como
assistente de seu irmão ou àquelas feitas de forma independente, tiveram grande
repercussão na comunidade astronômica, levando a um reconhecimento que
Caroline, em sua modéstia, jamais poderia ter imaginado receber.
Dessa forma, neste capítulo foram analisadas as descobertas e contribuições
de Caroline Herschel nos Catálogos de Estrelas, em especial, na compilação de um
índice do Catálogo de Estrelas de John Flamsteed, adicionando a série de catálogos
que levaram ao NGC; os instrumentos utilizados em suas observações construídos
40

por seu irmão William; e os impactos e a repercussão do trabalho de Caroline para a


Astronomia e para a História da Ciência.

2.1 CATÁLOGOS DE ESTRELAS

Os catálogos ou atlas de estrelas possuem uma longa história. Desde a


antiguidade, culturas e civilizações em todo o mundo têm dado nomes às estrelas
mais brilhantes e proeminentes do céu noturno. Ao longo dos séculos, surgiu na
Astronomia a necessidade de um sistema de catalogação no qual as estrelas mais
brilhantes e mais estudadas, tivessem a mesma identificação independentemente do
país ou cultura de origem dos astrônomos. Por isso, na Renascença, os astrônomos
tentaram produzir catálogos estelares recorrendo a um conjunto de regras.
O pioneiro, que é popular até os dias de hoje, foi apresentado por Johann Bayer
no seu atlas Uranometria de 1603114. Esse catálogo foi baseado no trabalho de Tycho
Brahe junto com o atlas de 1540 estrelas de Alessandro Piccolomini, De le stelle fisse
(“Das estrelas Fixas”), embora Bayer incluísse 1000 estrelas adicionais. O catálogo
introduziu um novo sistema de designação de estrelas que ficou conhecido como
designação Bayer ou sistema de letras gregas de Bayer, que foi uma forma de
identificação das estrelas realizada a partir da classificação de cada constelação
utilizando uma letra grega. O atlas de Bayer acrescentou doze novas constelações
para preencher o extremo sul do céu noturno, desconhecido na Grécia e Roma
antigas115. Assim, o Uranometria introduziu a convenção de rotular estrelas por letras
gregas, um sistema que ainda é usado nos dias de hoje.
Prodromus Astronomiae é um catálogo de estrelas criado por Johannes
Hevelius e publicado postumamente por sua esposa e auxiliar de pesquisa Elisabeth
Hevelius, em 1690. O catálogo consiste na localização de 1564 estrelas listadas por
constelação. No Prodromus, o autor descreve os procedimentos usados na criação do
catálogo estelar. Ele fornece exemplos do uso do sextante e do quadrante por

114 O monumental atlas estelar de Johann Bayer, Uranometria, é comumente considerado o primeiro
atlas celestial moderno, e é um dos mais famosos. Por toda uma era, seu design e apelo estético
estabeleceram um padrão para a cartografia celestial. Porém, ainda mais do que seu valor artístico, as
representações do céu estrelado contidas no Uranometria foram as primeiras a serem consideradas
cientificamente utilizáveis em termos astrométricos e fotométricos, mesmo que sua precisão tenha sido
qualificada por pesquisas posteriores. (Hildesheim Arndt Latusseck, “The milky way in Johann Bayer’s
Uranometria, 1603,” Journal of the History of Astronomy 45,2 (2014): 161-181.)
115 Kilburn et al., “The forgotten Star Atlas,”.
41

Johannes Hevelius, em conjunto com as posições conhecidas do Sol, no cálculo da


longitude e latitude de cada estrela.
Aproximadamente 200 anos depois da introdução do sistema de letras gregas
de Bayer (designação de Bayer), surgiu outro sistema popular conhecido por números
de Flamsteed, nome dado em homenagem ao astrônomo Real Britânico, John
Flamsteed. A partir de suas observações no telescópio de Greenwich, ele elaborou o
primeiro grande catálogo estelar, como será visto a seguir.
Durante suas varreduras do céu noturno, o Atlas Flamsteed foi o companheiro
constante de Caroline Herschel. O catálogo Flamsteed, Stellarum Inerrantium
Catalogus Britannicus, contendo quase 3000 mil estrelas até a sétima magnitude, foi
publicado postumamente em 1725. O Atlas Coelistis surgiu quatro anos depois. Foi
impresso duas vezes, em 1753 e 1781. A edição 116 que os Herschel’s possuíam era
a de 1781(Figura 10)117.

Figura 10 – Cópia de trabalho do Atlas Coelestis usada por Caroline Herschel.

Biblioteca da Royal Astronomical Society.

Durante seus registros das posições das nebulosas tendo como referência
estrelas próximas, William descobriu, para sua surpresa, que algumas das estrelas

116 Dos muitos tesouros da Biblioteca da Royal Astronomical Society, talvez o mais evocativo seja
encontrado nos arquivos Herschel no porão da Burlington House, encerrados em uma caixa de
conservação marrom. Abra a caixa e você encontrará um atlas estelar de grande formato com uma
encadernação em cartolina, manchado e danificado pelo tempo e pelo uso extensivo. Esta é a cópia
de trabalho do Atlas Coelestis de John Flamsteed usado por William e Caroline Herschel, e
posteriormente por John Herschel, em suas redes de arrasto do céu.” Ridpath, “Caroline Herschel's star
atlas,”.
117 Ridpath, “Caroline Herschel's star atlas,”.
42

do Catálogo Britânico de Estrelas de Flamsteed não eram mais vistas. De início,


William supôs que essas estrelas poderiam ter sido vítimas de catástrofes celestiais,
porém, posteriormente passou a questionar se não seriam erros cometidos por
Flamsteed. As observações nas quais o catálogo se baseava também foram
publicadas pelo autor, mas a obra não continha nenhum índice que permitisse obter
uma referência direta de uma entrada do catálogo com as observações relevantes.
Assim, no outono de 1795, William incumbiu Caroline de elaborar um índice para
correlacionar as entradas do catálogo com as observações118.
Além do índice, Caroline também reorganizou todo o catálogo por zonas 119, pois
sua organização original foi realizada com base em constelações, o que Carolinenão
achou viável para as varreduras do céu realizadas pelo irmão120. Este era, comoela
mesmo disse, um projeto que lhe daria algo útil para fazer quando William estivesse
ocupado: "Sempre tive em mãos algum tipo de trabalho com o qual poderiaprosseguir
sem incomodá-lo com perguntas, como o Índice Temporário121, quecomecei em junho
de 1787, e alguns anos depois, o Índice das observações de Flamsteed"122.
A tarefa levou vinte meses de trabalho metódico e meticuloso123, o qualCaroline
publicou às suas próprias custas. No volume publicado, foram listados os erros de
Flamsteed, além de mais de 500 estrelas que ele havia observado, mas não tinha
incluído em seu catálogo original. Em 1798, a Royal Society teceu elogios a Caroline
por seu trabalho124. Ainda assim, por sugestão de Maskelyne de que o trabalho
deveria ser publicado, ela escreveu:

Pensei que as dores que me haviam custado fossem suficientemente


recompensadas pelo uso que já fora e poderá ser no futuro para meu irmão.
Mas o fato de o senhor ter pensado que era digna de reconhecimento pela
imprensa bajula minha vaidade. Veja bem senhor, sou vaidosa, porque não
gostaria de ser singular; e existe mulher sem vaidade?125

118 Hoskin, “Caroline Herschel: the unquiet heart,”.


119 A classificação por zonas utiliza como base as estrelas de uma determinada zona estando todas à
mesma distância do Pólo Norte, assim como os objetos em uma determinada varredura. (Hoskin,
“Caroline Herschel: the unquiet heart,”).
120 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
121 Índice elaborado por Caroline Herschel para compor o Catálogo Britânico de Estrelas de Flamsteed,

que não possuía tal conteúdo, a fim de inserir as correções e informações coletadas durante suas
observações.
122 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
123 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
124 Hoskin, “Caroline Herschel: the unquiet heart,”.
125 Caroline Herschel apud John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
43

Em junho de 1799, Caroline começou a recalcular todas as varreduras. Ela


havia encontrado inconsistências, uma delas foi a de uma varredura em que a posição
de uma nebulosa usava como referência uma estrela que não estava mais presente
no Catálogo Britânico. Era possível que a mesma estrela ainda lá estivesse citada,
mas com coordenadas diferentes, em uma varredura sobreposta. No entanto, era
desejável que as posições fossem iguais. Os erros no Catálogo Britânico que a própria
Caroline tinha identificado, influenciaram registros.
O empenho de Caroline na preparação da segunda edição de varreduras foi
extraordinário. Cada estrela dupla teve que ser identificada a partir de um dos
catálogos anteriores, ou então, anotado como uma nova descoberta. Cada referência
de estrela desconhecida teve que ser verificada, cada nebulosa tinha que ser
analisada para ver se já havia sido observada em uma varredura de sobreposição
anterior, e se não tivesse, era atribuída no próximo número de série 126. Sua nova
edição dos dados de 1112 varreduras foi concluída no dia 16 de março de 1804127.
Uma outra de suas tarefas, dessa vez para John Herschel, filho de William,
realizada em seu retiro em Hanover, é considerada como um dos maiores serviços à
Astronomia. Para revisar e completar o legado de seu pai no catálogo de nebulosas,
John precisava que fosse reformulado em zonas de distância polar norte e em ordem
de ascensão de reta, de forma a permitir realizar varreduras com maior precisão do
que ele poderia fazer sem essas modificações. Em Slough, Caroline completou o
primeiro estágio da tarefa, montando as estrelas de referência por zona. A segunda
etapa era substituir as estrelas de referência pelas nebulosas relevantes, um
empreendimento gigantesco.
A tarefa levou mais de um ano, e ocupou seu tempo sua vida em Hanover. O
catálogo de Caroline chegou a seu sobrinho John Herschel em abril de 1825, com 104
páginas. David Brewster, estudioso escocês, descreveu-o como, “um extraordinário
monumento do ardor inextinguível de uma senhora de 75 anos pela causa da
Ciência”128. John, mais tarde, escreveria: “Aprendi plenamente a apreciar a habilidade,

126 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.


127 Ibid.
128 Ibid.
44

precisão e diligência que apenas a devoção mais ilimitada poderia a ter induzido para
empreender, e a permitiu realizar”129.
Utilizando um catálogo de Caroline, em 1825, John começou a trabalhar para
varrer os céus, “um dever sagrado que não posso adiar por qualquer consideração”130.
Em 1833, o sobrinho de Caroline publicou o catálogo resultante de 2306 nebulosas e
aglomerados, e finalmente as nebulosas verificadas de William (junto com 525 de
John) tornaram-se acessíveis ao conhecimento de astrônomos em todo o mundo.
Trinta anos depois, em sua velhice, John iria reunir todas as nebulosas até agora
conhecidas, fossem as descobertas de um Herschel ou de outro observador, e
publicar em um único Catálogo Geral. Esse catálogo seria revisado no final do século,
resultando no Novo Catálogo Geral (NGC), que os astrônomos usam hoje. O trabalho
de escritório de Caroline, primeiro em Slough e depois em Hanover, foi o que permitiu
que esta cadeia de eventos fosse colocada em movimento131.

2.2 OS TELESCÓPIOS

Foi a partir da realização de experimentos com pequenos refratores que William


Herschel iniciou sua carreira fabricando telescópios, em meados de 1773. No entanto,
mesmo naquela época, equipamentos como esses já eram considerados opticamente
primitivos, por isso, logo William mudou seu foco para refletores. Ao contrário dos
refratores, que eram elaborados com lentes e em tamanhos relativamente pequenos,
os refletores podiam ser construídos em tamanhos muito maiores e faziam uso de
espelhos. Contudo esses também não eram os telescópios conhecidos hoje em dia.
Isso porque, foi somente após a morte dos Herschels que surgiram os equipamentos
que tem como base a ótica de metal-sobre-vidro. Inicialmente, utilizavam-se como
base espéculos de metal, caracterizados como uma fundição dura e quebradiça,
composta basicamente por cobre e estanho132.
Os poderes dos telescópios aumentaram muito com as modificações
introduzidas por William Herschel. Até então, as vantagens das grandes aberturas que
William identificou não haviam sido verificadas. Ninguém parecia se lembrar de que a

129 Michael Hoskin, William and Caroline Herschel.


130 Ibid.
131 Agnes Mary Clerke, A Popular History of Astronomy.
132 James Mullaney & Wil Tirion. The Cambridge Atlas.
45

função principal de um instrumento projetado para auxiliar a visão é coletar luz. Coube
a ele, portanto, apontar que as distâncias de objetos semelhantes são exatamente
proporcionais ao tamanho dos telescópios que mal bastam para mostrá-los. Assim,
William Herschel não foi apenas um grande observador e teórico, mas também o
indiscutível mestre-artesão na construção de grandes refletores, tanto para usopróprio
como para venda. Para os maiores instrumentos, ele concebeu uma configuração não
ortodoxa de espelho e ocular, conhecida como ‘Herscheliana’.
A imagem criada em um telescópio refrator simples sofre de "aberração
cromática", isto é, um borrão das cores. Newton mostrou que isso acontecia porque
as cores diferentes, à medida que passavam pela lente objetiva na extremidade
superior do tubo, eram dobradas ("refratadas") em quantidades ligeiramente
diferentes e, assim, chegavam a um foco a distâncias ligeiramente diferentes da
objetiva. Sua solução foi substituir a lente por um espelho de formato parabólico ou
quase parabólico posicionado na parte inferior do tubo do telescópio; as diferentes
cores eram todas refletidas igualmente no espelho e, dessa maneira, chegavam a um
foco único e consistente mais acima no tubo133.
Percebeu-se, então, que havia maneiras alternativas de fazer com que a
imagem assim formada fosse examinada na ocular. Nos refletores ‘Gregorianos’ ou
‘Cassegrain’, um segundo espelho muito menor localizado mais acima no tubo reflete
a imagem de volta para baixo do tubo e através de um orifício no espelho primário
para onde a ocular está localizada. Mas em refletores ‘Newtonianos’, um espelho
simples é posicionado próximo ao topo do tubo, colocado em um ângulo de 45 graus,
e isso reflete a imagem lateralmente através de um orifício no tubo para onde a ocular
está localizada. Em um refletor newtoniano, portanto, o observador se posiciona
próximo ao topo do tubo e olhando de lado na direção do corpo celestial134.
Um defeito de todas essas configurações é que grande parte da luz se perde
no reflexo do espelho secundário e, em 1728, o fabricante de instrumentos de Paris
Jacques Lemaire propôs, em vez disso, que o espelho secundário fosse inteiramente
dispensado e que a ocular do observador olhar deveria se dirigir diretamente para
baixo da boca do tubo. A desvantagem desse arranjo é que a própria cabeça do
observador obstrui parte da luz que entra, a menos que o tubo e o espelho sejam tão
grandes em diâmetro que a perda de luz causada pela cabeça do observador seja

133 Hoskin, “William Herschel and Herschelian Reflectors,”.


134 Ibid.
46

limitada. Grandes refletores são necessários quando os objetos sob investigação são
fracos; e o primeiro observador a se dedicar à investigação das distantes e, portanto,
tênues nebulosas e aglomerados de estrelas foi William Herschel135.
Como músico e astrônomo amador na estância termal inglesa de Bath no final
da década de 1770, William Herschel construiu, de início, vários espelhos para um
refletor Gregoriano de 5.5 pés. Contudo, logo passou a fabricar refletores newtonianos
de distância focal de 7, 10 e 20 pés, com espelhos de cerca de 6, 8 e 12 polegadas,
respectivamente. O refletor favorito de William foi o de 7 pés (Figura 11 e 12), que ele
utilizou para sua primeira revisão dos céus e na descoberta do planeta Urano. Esse
equipamento continha um espéculo muito importante de 6.2 polegadas de abertura136.

Figura 11 – Telescópio de 7 pés de William Herschel.

Desenho realizado por William Watson, disponível em Bennet (1976).

135 Hoskin, “William Herschel and Herschelian Reflectors,”.


136 James Mullaney & Wil Tirion. The Cambridge Atlas.
47

Figura 12 – Um dos numerosos refletores de 7 pés que William fez para venda comercial.

Royal Astronomic Society (2021, on-line).

O telescópio de 7 pés apresentava um tubo sustentado por uma dobradiça na


parte da frente, enquanto a parte de trás repousava em um rolo dentro de uma moldura
de madeira, que era possível movimentar para cima e para baixo ao longo da
estrutura. A partir da roda inferior operava-se o movimento, além de mais dois
movimentos, um vertical e um lateral. Também era possível abrir a parte de trás do
tubo para inserir ou remover o espelho grande, que era segurado por parafusos, ou
sua cobertura137. Já o telescópio de 10 pés (Figura 13 e 14) tinha uma montagem
estável de madeira138 e normalmente continha uma abertura de 9 polegadas. Em 28
de maio de 1776, William Herschel fez o seguinte registro: “tentei um espelho de 10
pés sem o pequeno, olhando para a frente do tubo e segurando o vidro do olho na
minha mão. Gostei muito do método”139.

137 Bennett, “On the power of penetrating into space,”.


138 James Mullaney & Wil Tirion. The Cambridge Atlas.
139 Hoskin, “William Herschel and Herschelian Reflectors,”.
48

Figura 13 – Telescópio de 10 pés de William Herschel.

Desenho realizado por William Watson, disponível em Bennet (1976).

Figura 14 – Um dos refletores de 10 pés encomendados de William pelo rei George em outubro de
1783.

Royal Astronomic Society (2021, on-line).


49

O telescópio de 20 pés (Figura 15 e 16) é descrito por William Herschel da


seguinte forma: “Eu uso uma vara comprida no topo da qual está presa a um braço
muito curto segurando um conjunto de roldanas, e quando o telescópio é elevado por
elas eu uso uma escada móvel com um encosto para montar no ocular” 140. A vertical
do equipamento foi trabalhada a partir da roda dentada na parte superior do tubo,
enquanto a base lateral foi projetada para um movimento lateral fino141
Os refletores de 20 pés dos Herschels foram os mais utilizados ao longo de
suas várias observações do céu noturno. Em termos de abertura, o primeiro e menor
deles foi um espelho de abertura de 12 polegadas, enquanto o último e maior foi um
espelho de 18.7 polegadas. Dentre os refletores de 20 pés, o de 18.7 polegadas foi o
mais útil, pois era de fácil manuseio e seus espelhos tinham um melhor desempenho.
Por isso, em suas últimas observações, William preferiu fazer uso desse ao invés do
telescópio de 40 pés, sendo constantemente empregado nas noites claras do
anoitecer ao amanhecer, contribuindo para a descoberta de mais de 2000 nebulosas
e aglomerados de estrelas.

Figura 15 – Telescópio de 20 pés de William Herschel.

Disponível em Bennet (1976).

140 Bennett, “On the power of penetrating into space,”.


141 Ibid.
50

Figura 16 – O telescópio de 20 pés construído por William Herschel em Datchet, com o qual ele e
Caroline descobriram 2.500 nebulosas e transformaram a Astronomia.

Pintura de posse privada, disponível em Hoskin (2005).

Apesar das descobertas realizadas com os telescópios de 20 pés, sem dúvidas,


o projeto mais ambicioso de William foi o telescópio de 40 pés (Figura 17), que
continha um espelho de 48 polegadas. Para sua construção e manutenção, o rei
concedeu suporte financeiro. O polimento do espéculo, assim como o dispositivo, foi
resultado de anos de experiência na construção de telescópios. O início do trabalho
se deu em 1786, logo após sua mudança para Slough, sendo uma das justificativas
da mudança, a necessidade de um espaço maior para dispor o novo aparelho142.
O primeiro teste foi realizado em março de 1787, porém, William não
considerou o telescópio totalmente finalizado até agosto de 1789, quando começou a
usar o novo equipamento em suas observações. Mesmo assim, William nunca estava
satisfeito com seus resultados. Por isso, o refletor de 40 pés foi responsável por
poucos objetos encontrados contidos no catálogo de William. Mesmo assim, muitos
turistas, incluindo a realeza, dignatários de todos os níveis e cientistas notáveis
vinham de diversos lugares para conhecer o novo refletor143.

142 Bennett, “On the power of penetrating into space,”.


143 Ibid.
51

Figura 17 – Telescópio de 40 pés de William Herschel.

Disponível em Bennet (1976).

2.3 REPERCUSSÃO DO TRABALHO DE CAROLINE HERSCHEL

Entre 1786 e 1797, Caroline Herschel descobriu vários cometas e trabalhou na


reorganização do catálogo de estrelas de John Flamsteed. Ambos os projetos
ganharam reconhecimento público e elogios dentro da comunidade astronômica 144,.
Caroline era tida na mais alta consideração pelos astrônomos da Europa. Pierre
François André Méchain, astrônomo e geógrafo francês, disse que “sua fama será
honrada ao longo dos tempos”. Karl Felix von Seyffer, astrônomo alemão, a aclamou
como “a mais nobre e digna sacerdotisa dos novos céus”. Jerôme de Lalande,
astrônomo francês, endereçou uma carta a “Mademoiselle Caroline Herschel,
astronome célébre, de Slough”145.

144 Constance A. Lubbock, The Herschel Chronicle.


145 Clair Brock, The Comet Sweeper.
52

Como já mencionado, Caroline Herschel descobriu seu primeiro cometa em 1°


de agosto de 1786. É significativo que essa observação tenha sido feita quando
William estava ausente. A casa de Slough recebeu muitas cartas de parabéns e
visitantes importantes, depois que Caroline anunciou sua descoberta. Entre 3 e 16 de
agosto, ela foi visitada pelo presidente Sr. Joseph Banks e o secretário, por Charles
Blagden, da Royal Society, pelo físico napolitano e membro da Royal Society Tiberius
Cavallo, e por Christian Gottlieb Kratzenstein, professor de física e medicina da
Universidade de Copenhague146.
A conquista de Caroline Herschel, escreveu Nevil Maskelyne a William em
1786, foi um triunfo para a astronomia britânica: “Espero que, por meio de nossos
esforços conjuntos, superemos este ramo dos negócios astronômicos dos franceses,
vendo cometas mais cedo e observando-os mais tarde”147. Alexander Aubert, que
achou os telescópios de William mais poderosos que qualquer um, elogiou a conquista
de fama duradora:

Você imortalizou seu nome e merece um presente do Ser que ordenou que
todas essas coisas se movessem conforme as encontramos, por sua
assiduidade nos negócios da astronomia e por seu amor por um irmão tão
celebrado e tão merecedor”.148

Enquanto os astrônomos amadores e profissionais se regozijavam, o público


em geral expressava intenso interesse pela descoberta de Caroline. Já foi acima
mencionado que quando William foi convocado ao Castelo de Windsor para
demonstrar a descoberta da irmã mais nova, a romancista Fanny Burney estava
presente. Burney ficou orgulhosa quando conheceu Caroline alguns meses após sua
descoberta. Por suas contribuições, em agosto de 1787, o rei concedeu a William duas
mil libras para a construção do refletor de 40 pés e também acrescentou uma pensão
para que Caroline Herschel recebesse um salário por sua assistência ao irmão.
Antes da crescente profissionalização das Ciências a partir da década de 1830,
a busca pela filosofia natural raramente era recompensada. Caroline Herschel
alcançou, portanto, dupla distinção ao ser paga por seus serviços em Astronomia e ao
ser uma pioneira a ganhar dinheiro com descobertas cientificas149. Em uma carta

146 Agnes Mary Clerke, The Herschel’s and Modern Astronomy.


147 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.
148 Ibid.
149 Clair Brock, The Comet Sweeper.
53

escrita aos 74 anos, Caroline refletiu sobre sua decisão: “Eu desejava que William
pedisse ao rei um pequeno salário para permitir-me continuar a ser sua assistente.
Foram-me concedidas 50 libras, com as quais eu estava decidida a viver sem a
assistência do meu irmão”150.
No outono de 1787, Caroline Herschel alcançara uma distinção considerável,
tanto no mundo como na comunidade científica menor. A garotinha que sonhava em
escapar das tarefas domésticas tediosas alcançara suas ambições, aos 37 anos de
idade, e agora ganhava seu próprio dinheiro. Embora ela não tenha sido paga
diretamente por suas próprias descobertas astronômicas, sua reputação como uma
‘astrônoma feminina’ e a publicidade de suas descobertas garantiram que outros
soubessem e aplaudissem suas realizações independentes.
Outra contribuição vital feita por Caroline para a busca da Astronomia foi
finalmente publicada em 1798 e representou dezesseis anos de dedicação à Ciência
que ela aprendera do zero. Já nessa década, ela foi uma pioneira a publicar notícias
de suas descobertas originais no prestigioso jornal da Royal Society, o Philosophical
Transactions. Seu trabalho científico foi publicado e reconhecido em seu próprio
nome, uma conquista única para uma mulher nesse período. William Herschel havia
sugerido com antecedência em seus próprios artigos publicados que sua irmã estava
prestes a produzir algo de grande valor para a Astronomia151.
Caroline reconheceu a magnitude de sua própria realização e o mesmo
aconteceu com a comunidade científica europeia. Fundada em 1820, a Astronomical
Society of London era parte da explosão de interesse pelas Ciências no início do
século XIX, tornando-se, mais tarde, a Royal Astronomical Society152. Como mulher,
Caroline não tinha permissão para se tornar um membro da Sociedade Astronômica
de Londres, mas ela poderia tornar-se medalhista e, em fevereiro 1828 o conselho
resolveu:

Que uma medalha de Ouro seja desta sociedade seja dada a Srta. Caroline
Herschel por sua recente compilação, até janeiro de 1800, das Nebulosas
descobertas por seu ilustre irmão, que por ser considerado como a conclusão
e uma série de esforços provavelmente incomparáveis em magnitude ou
importância nos anais do trabalho astronômico.153

150 John Herschel, Memoir and Correspondence of Caroline Herschel.


151 Michael Hoskin, Discoverers of the Universe.
152 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies.
153 Ibid.
54

Assim, a Sociedade concedeu a Caroline Herschel sua Medalha de Ouro por


seu catálogo recentemente concluído (Figura 18). Os vencedores anteriores da
medalha incluíram os grandes astrônomos da época: James South e o próprio John
Herschel (ambos em 1826) e Francis Baily (1827).
Em 1834, em uma revisão de On the Connexion of the Sciences, de Somerville,
William Whewell havia proposto, pela primeira vez na imprensa, o termo "cientista"154.
Em sua carta de agradecimento à Sociedade Astronômica de Londres pelo prêmio de
membro honorário, Caroline expressou uma "grande honra" ver seu nome unido à
"muito ilustre senhora Somerville". Para Somerville, no entanto, a honra era toda dela.
Ela admirava os "talentos" da mulher mais velha e escreveu quase exatamente o
mesmo que Caroline escreveu sobre ela155.

Figura 18 – Medalha de Ouro dada à Caroline Herschel pela Royal Astronomical Society em
reconhecimento de seu trabalho em serviço da Astronomia.

Disponível na coleção da Girton College Cambridge.

Os relatos de Caroline anunciaram a existência de cometas até então


desconhecidos. Seus artigos não faziam nenhuma tentativa de analisar a órbita dos
cometas, ou fazer previsões sobre suas posições futuras ou datas de retorno.
Também não consideravam a composição do cometa ou sua origem. Porém estavam
dentro do que era esperado na época156.

154 Clair Brock, The Comet Sweeper.


155 Ibid, 89.
156 Winterburn, “Caroline Herschel,”.
55

Muito se diz que Caroline teria sido a primeira mulher a descobrir um cometa.
Entretanto, nas pesquisas realizadas para o presente estudo, encontraram-se
menções a outras mulheres astrônomas anteriores a. Assim, por exemplo, Maria
Margarethe Winckelmann, chamada nas fontes históricas como Maria Kirch, nasceu
em 25 de fevereiro de 1670, em Panitsch, Reino da Prússia. Maria conheceu Gottfried
Kirch, um renomado astrônomo, com quem se casou. Em 1700, Gottfried Kirch foi
nomeado astrônomo real por Frederick III, eleitor de Brandemburgo. Durante
observações realizadas junto ao esposo, Maria Kirch encontrou um cometa
anteriormente desconhecido em 21 de abril de 1702. Portanto, ela seria a primeira
mulher a fazê-lo, e não Caroline Herschel, como muitos ainda acreditam157.
Esse fato ainda é pouco conhecido porque Maria Kirch não recebeu o devido
reconhecimento por essa descoberta, pois quando as notícias do cometa foram
publicadas pela primeira vez, Gottfried Kirch assumiu o crédito pela descoberta.
Os estudos sobre cometas passaram por várias fases distintas desde as
descobertas de Maria Kirch e Caroline. O século XVIII, no qual todos os oito cometas
de Caroline foram descobertos, foi um período dominado pela Astronomia posicional.
Cometas foram identificados e observados, suas posições anotadas e suas órbitas
calculadas. Em 1705, Edmund Halley previu com sucesso o retorno do cometa que
agora leva seu nome usando as novas leis de Isaac Newton e registros históricos de
observações de cometas. Como ele sugeriu, o cometa retornou em 1758, mostrando
que os cometas faziam parte do sistema solar e tinham órbitas previsíveis. O sétimo
cometa de Caroline, encontrado por ela em 1795 e previamente avistado pelo caçador
de cometas francês Pierre Méchain, em 1786, foi o segundo cometa a ter sua órbita
calculada com sucesso158.
A primeira onda da longa história que marca os descobrimentos dos comentas
tem Caroline Herschel como uma das suas mais importantes contribuintes. Ao longo
de suas muitas noites de observação varrendo o céu em busca de cometas para
adicionar às listas existentes, assim como vários de seus contemporâneos, Caroline
fez descobertas que jamais poderia ter imaginado antes. Seus achados constituem
uma pequena parte do conhecimento astronômico produzido no decorrer dos séculos
que permitiram com que fosse construído um entendimento sobre o comportamento
desses corpos celestes que habitam o universo. Todavia, ao contrário da maioria das

157 Erik Gregersen, Encyclopaedia Britannica. 1768.


158 Winterburn, “Caroline Herschel,”.
56

descobertas, àquelas feitas por Caroline Herschel se destacam em relação as de seus


contemporâneos por terem sido realizadas por uma mulher159.
A história das mulheres na Ciência é um campo que se desenvolveu
consideravelmente no último século. Por isso, a relevância de Caroline Herschel e de
seus anúncios sobre suas descobertas de cometas têm tido compreensões sutilmente
diferentes a cada nova geração. Nos dias atuais, o interesse sobre as contribuições
feitas por mulheres e de seus papéis desempenhados na história da Ciência é cada
vez maior, por isso, existe um trabalho considerável de análise e redescoberta dessas
informações160.
Atualmente, já existe o reconhecimento de que muitas descobertas que
ocorreram no século XVIII atribuídas à homens, na verdade, foram realizadas ou
tiveram grandes contribuições de mulheres, como Caroline Herschel. No entanto, no
caso de Caroline, foi sua capacidade de fazer com que seu trabalho fosse reconhecido
que a tornou singular em sua época, e não seus conhecimentos e habilidades
incomuns. Da mesma forma que servos, técnicos e fabricantes de instrumentos
desempenhavam um papel no trabalho científico, mas raramente eram nomeados ou
oficialmente reconhecidos, o mesmo acontecia com muitas esposas, irmãs e filhas
envolvidas, mas muitas vezes deixadas sem crédito161.
O papel feminino incomum assumido por Caroline na História da Ciência pode
ser justificado a partir de suas ações. Seu trabalho publicado é uma das evidências
que proporciona uma ideia de como ela incorporou esse papel. Caroline fazia um uso
cuidadoso da linguagem, das amizades dela ou de seus irmãos e de suas pretensões
inovadoras, pois tinha grande ciência de como suas palavras poderiam ser
interpretadas no contexto social ao qual estava inserida. Por isso, utilizou o poder de
apresentação como uma estratégia em seu próprio benefício. Foi assim, então, que a
reputação de Caroline Herschel foi historicamente construída a partir de suas
contribuições feitas para o trabalho astronômico do irmão e de suas próprias
descobertas de cometas, diferente de muitas outras mulheres, que não tiveram a
mesma visibilidade162.

159 Winterburn, “Learned modesty and the first lady’s comet,”.


160 Ibid.
161 Ibid.
162 Ibid.
57

No início do século XX, histórias de mulheres na Ciência tendem à ênfase do


primeiro, incluindo-a em títulos como “irmãs famosas de grandes homens”163. Em anos
mais recentes, essa abordagem produziu alguns estudos inovadores de pares de
homens e mulheres na Ciência, dos quais William e Caroline são exemplos
frequentemente apresentados. Esses estudos permitiram ver padrões na maneira
como as famílias dividiam as tarefas164. É por meio dessa abordagem, para entender
a Ciência como um exercício colaborativo com muitas participantes historicamente
não creditadas, que muitas mulheres anteriormente esquecidas foram recuperadas.
Quando se tornou popular, no final do século XX, encontrar contribuições
tangíveis feitas por mulheres na Ciência para que pudessem sentar-se ao lado dos
"grandes homens", Caroline e seus cometas se tornou candidata óbvia165. Vários são
os problemas com essa abordagem para retornar as mulheres à História da Ciência,
entretanto, começaram a surgir nos últimos anos e, novamente, a discussão sobre
Caroline e seus cometas desempenhou seu papel. Um dos problemas é que as
mulheres, por uma variedade de razões educacionais, sociais e culturais,
historicamente assumiram papéis diferentes dos homens na Ciência.
Os valores que são atribuídos a esses diferentes papéis muitas vezes têm
tendências sociais, então, tarefas realizadas por mulheres e outros grupos de baixo
status, por exemplo, foram historicamente rotuladas de menos "científicas" do que
aquelas realizadas por homens brancos de classe alta. Nesse contexto para fazer com
que os papéis das mulheres se encaixem neste modelo de Ciência, algumas vezes
foram feitas alegações exageradas de sua contribuição, enquanto as barreiras que
elas enfrentavam foram derrubadas. Algumas dessas tensões podem ser vistas nas
diferentes interpretações da contribuição de Caroline para a Ciência: enquanto
Michael Hoskin, por exemplo, considerava Caroline uma 'mera assistente', Claire
Brock, baseando sua avaliação nas mesmas evidências, preferiu caracterizá-la como
'uma astrônoma praticante por seus próprios méritos'166.
Ao revisar a literatura sobre Caroline Herschel até 2002, Patrícia Fara alertou
contra essa tendência de exagerar as realizações científicas independentes de
Caroline. Em vez disso, ela sugeriu que era a compreensão do que constitui uma

163 Marianne Kirlew, Famous Sisters of Great Men (1909).


164 Patrícia Fara, Pandora's Breeches.
165 Ogilvie, “Caroline Herschel's contributions to Astronomy,”.
166 Michael Hoskin, Caroline Herschel’s Autobiographies.
58

contribuição científica adequada que precisava mudar167. Esse debate é mais bem
compreendido no contexto de uma discussão mais ampla. Durante as décadas de
1980 e 1990, historiadoras feministas da Ciência começaram a olhar para as origens
culturais das questões de pesquisa, terminologia e analogias na Ciência e o que isso
significava para a produção de novos conhecimentos168. Isso foi visto com mais nitidez
na análise de modelos biológicos, mas começou a mostrar que nenhuma pergunta ou
escolha poderia ser considerada inteiramente neutra.
Ao mesmo tempo, feministas e, historiadoras que examinaram outros grupos
historicamente marginalizados, começaram a examinar como são definidos e
atribuídos diferentes status aos vários papéis dentro do processo científico. Ao fazer
isso, elas começaram a ver o que isso significou para a recuperação de participantes
ocultos, como mulheres e auxiliares. O trabalho neste campo continua até hoje com
estudos sobre os 'círculos' que cercam e ajudam a tornar possível o trabalho de figuras
históricas célebres. Por meio desse trabalho, tornou-se aparente que a definição do
que constitui Ciência tem sido historica e fortemente dependente das noções de
hierarquia social do homem169.
As histórias feministas da Ciência agora avançaram em muitas direções
diferentes. Uma vertente que talvez seja mais interessante e relevante para a
interpretação do trabalho e reconhecimento de Caroline Herschel diz respeito à
compreensão da auto apresentação dentro da comunidade científica. O artigo de
Caroline se encaixa muito bem nessa narrativa. Isto pois, Caroline aprendeu as regras
da etiqueta feminina apropriada e depois as aplicou ao mundo científico 170. Essa
abordagem ajuda a entender como os mundos social e científico do século XVIII
interagiam e pode até ajudar a entender como essas regras sociais de linguagem e
auto apresentação continuam a sustentar o desequilíbrio de gênero na ciência hoje.

167 Fara, “Portraying Caroline Herschel,”.


168 Fox Keller, Gênero e ciência.
169 Winterburn, “Caroline Herschel,”.
170 Schiebinger, “Maria Winkelmann at the Berlin Academy,”.
59

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caroline Herschel foi marcada por suas contribuições para a Astronomia,


alcançando um patamar que, segundo seus humildes relatos, jamais imaginara
chegar. Suas descobertas englobam desde trabalhos realizados como assistente de
seu irmão William Herschel, até observações feitas de forma independente. Essas
realizações evidenciam a importância de Caroline para a construção dos céus ao lado
de muitos outros astrônomos ao longo dos séculos.
No entanto, Caroline não teve uma vida fácil. Inserida em uma família composta
majoritariamente por homens e com uma mãe com visão de futuro delimitada no
contexto social da época, Caroline tinha tudo para passar o restante de seus dias
dedicada aos deveres domésticos. Isto pois, sua principal perspectiva de futuro como
mulher, o casamento, foi arruinada por sequelas da doença que a acometeu durante
a infância.
Seu pai, por outro lado, sempre tentou inseri-la com seus irmãos nos
ensinamentos e discussões, o que contribuiu para o florescimento de um interesse em
assuntos pelos quais a mulher também não tinha acesso na época. Para sua surpresa,
o “resgate” viria a partir de seu irmão mais querido, William, que além de ensiná-la a
profissão que marcara sua família, a música, também a apresentaria para a
Astronomia, na qual Caroline gravaria eternamente seu nome.
Os diversos trabalhos publicados que abordam a vida e história de Caroline
Herschel mostram que ela era uma mulher inteligente, esforçada e humilde, que soube
aproveitar as oportunidades e utilizar de seus conhecimentos e de suas relações para
dar visibilidade a seu trabalho. Assim, durante suas descobertas, na ausência de
William, Caroline soube o que falar, com quem falar e como falar, para que seu
trabalho pudesse alcançar aqueles que tinham voz. Contudo, ela não poderia imaginar
como esses feitos se prolongariam ao longo dos séculos.
Entretanto, mesmo que Caroline tenha ganhado um reconhecimento público, a
sua própria personalidade como assistente de seu irmão William fez com que suas
realizações pessoais fossem ofuscadas. Dessa maneira, a visão de Caroline sobre si
mesma e sobre seu trabalho direcionam suas descobertas e contribuições, realizadas
a partir de sua dedicação, interesse e perspicácia, mesmo que inconscientemente, à
influência de seu irmão William, de forma que, levam a uma interpretação de que sem
ele, ela não teria tido sucesso em suas varreduras do céu noturno.
60

De fato, William contribuiu significativamente para as conquistas de Caroline.


Foi ele quem a tirou da condição de servente de sua família e a levou para Bath. Ele
também a ensinou sobre a língua, a música, a matemática e a Astronomia. Todavia,
as conquistas de Caroline só ocorreram porque ela soube aproveitar as
oportunidades, mesmo que sempre justificasse suas escolhas com base nas
necessidades do irmão. Assim, embora muitos ainda a vejam como uma mera
assistente de astrônomo, ela transformou-se em uma grande astrônoma.
Como mulher, o impacto de Caroline Herschel na História da Ciência
representa um feito inédito, alcançando a partir de seu trabalho, um reconhecimento
que, até onde se sabe, somente homens haviam conseguido: receber um pagamento
periódico para incentivar suas pesquisas. Sabe-se que Caroline não foi a primeira
mulher a realizar descobertas desse tipo ou a apresentar conhecimentos avançados
sobre uma Ciência, porém, ela foi uma das primeiras a ter reconhecimento por isso.
Parece evidente que esse sucesso não teria sido alcançado se ela não se valesse dos
aprendizados que obteve, principalmente aquele relacionado ao comportamento
social.
Portanto, Caroline Herschel deixou seu legado na História da Ciência como
uma importante astrônoma que trouxe grandes contribuições para a construção do
céu, merecendo destaque por sua capacidade de se fazer ser vista, habilidade esta
muito incomum em mulheres que viveram em seu contexto histórico. Assim, sua
história continuará a se perpetuar ao longo de gerações e inspirar o desenvolvimento
cada vez maior de novas cientistas.
61

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