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Rodrigues, D. 2019. Não Existe o Bem da Espécie. UFRJ, Departamento de Ecologia.

Disponível em
http://graduacao.cederj.edu.br/ava/login/index.php

NÃO EXISTE O BEM DA ESPÉCIE

Daniela Rodrigues
Departamento de Ecologia, UFRJ

Fazemos parte de uma espécie social e dotada de mente e consciência – características ainda incertas
se existentes em outras espécies. Deste modo, temos a tendência de achar que os indivíduos das espécies em
geral tendem a agir para o bem comum e para a perpetuação da espécie. Esta ideia é equivocada. Conforme o
texto complementar sobre ecologia e seleção natural, os indivíduos são alvos da seleção natural, e a população
é quem evolui. Assim sendo, se espera que os indivíduos ajam para aumentar a sua própria aptidão, e não a dos
seus coespecíficos (ou seja, indivíduos da mesma espécie). Um exemplo emblemático é o dos lêmingues do
ártico, cujo “suicídio coletivo” ocorre quando a população encontra-se muito densa em uma determinada área.
Este suicídio consta de indivíduos “se jogando ao mar” em situações de grande adensamento populacional, o
que conferiria uma vantagem aos indivíduos que permanecerem na área devido à diminuição da competição por
recursos. Em realidade, o que ocorre é que alguns indivíduos, frente a situações de intensa competição devido à
acentuada densidade populacional, abandonam o local natal e dispersam na busca de locais com mais recursos.
Em outras palavras, dispersam para outros locais potenciais ao invés de permanecerem em um local altamente
depauperado e com baixa probabilidade de sobrevivência. Como se pode constatar, o indivíduo age para
aumentar a sua própria aptidão, e não a dos outros indivíduos da mesma espécie.
Permanecer em grupos pode ser vantajoso em escala individual dentro de vários contextos. No contexto
da alimentação, gaivotas coletam, em média, cerca de 10 peixes quando estão solitárias, 20 peixes per capita
quando estão em bandos de três indivíduos e 30 peixes per capita quando o bando é composto por seis
indivíduos. Em outras palavras, a caça coletiva é mais vantajosa para cada indivíduo do que a solitária. No
contexto da defesa, a probabilidade de predação de um inseto aquático da ordem Ephemeroptera baixa de cerca
de 100% quando os indivíduos estão solitários para cerca de 50% quando o agrupamento excede 200 insetos.
No contexto da dispersão, o voo em “V” em pelicanos (composto por cerca de sete indivíduos) é menos
desgastante para cada indivíduo do que o voo solitário. Por fim, pavões-machos agregados em territórios
coletivos de acasalamento apresentam maiores chances de acasalar quando comparados com indivíduos
solitários. Estes e demais exemplos levaram ao surgimento do termo “grupo egoísta”, onde estar em grupo
confere mais benefícios para o indivíduo do que estar isolado.
Podemos nos perguntar o que ocorre então em uma colônia de formigas ou de abelhas, onde as
operárias não se reproduzem e trabalham para a manutenção da colônia. Neste caso, ocorre a seleção de
parentesco, a qual tem princípios semelhantes aos da seleção individual. Em tese, cada operária tem alta
semelhança genética com sua irmã (cerca de 75%), o que supera a semelhança genética que teria com a sua
prole caso fosse fértil e acasalasse (cerca de 50%). Novamente, vemos claros ganhos na escala do indivíduo.
Isto não quer dizer que não há, na natureza, a seleção atuando na escala de grupos de indivíduos não
aparentados, ou seja, seleção de grupo. Contudo, os exemplos não são abundantes como os existentes na
seleção no nível do indivíduo, e o tema ainda é alvo de controvérsias na comunidade científica.
A ausência de boas intenções para com os demais seres também ocorre nas interações entre indivíduos
de diferentes espécies. Um visitante floral que poliniza uma flor não está fazendo nem o bem e nem o mal,
tampouco visa a perpetuar a espécie a qual aquela planta pertence. Este visitante visa a obter recursos para si, e
as consequências para a planta são acidentais. O mesmo ocorre em diversos casos envolvendo mutualismos
entre espécies envolvidas em grandes redes tróficas.
Nossa espécie, na condição de criadora da ciência, de detentora da prática científica dentro de limites
éticos, e ciente da importância de conservar as espécies e os ambientes ameaçados, visa conscientemente ao
bem da nossa espécie e das demais. Contudo, a natureza é desprovida de tais intenções, não sendo moral nem
imoral, mas sim amoral, como já salientou o paleontólogo Stephen Jay Gould. Como consequência, é importante
nos atermos aos fenômenos biológicos desassociados das ideias de moralidade, intenção e bem comum, tão
particulares da nossa espécie.

Literatura de suporte:
a
Alcock, J. 2010. Comportamento animal: uma abordagem evolutiva. 9 ed. Porto Alegre, Artmed Editora, 624p.
a
Begon, M., Harper, J.L. & Townsend, C.R. 2007. Ecologia: de indivíduos a ecossistemas. 4 ed. Porto Alegre,
Artmed Editora. 752p.
Gould, S.J. 1992. A galinha e seus dentes. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 404p.

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