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Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom carrego d’ordenar estórias,
mormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam, e u forom nados seus
antigos avoos, sendo-lhe muito favoravees no recontamento de seus feitos; e tal
favoreza como esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade
dalgũa cousa ao entendimento do homem. Assi que a terra em que os hom ẽes
per longo costume e tempo forom criados, geera ũa tal conformidade antre o seu
entendimento e ela, que havendo de julgar algũa sua cousa, assi em louvor como
per contrairo, nunca per eles é dereitamente recontada; porque louvando-a,
dezem sempre mais daquelo que é; e se doutro modo, nom escrevem suas
perdas tam minguadamente como acontecerom.2
Outra cousa geera ainda esta conformidade e natural inclinaçom, segundo
sentença dalgũus, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fame, recebendo
refeiçom pera o corpo, o sangue e spritos gerados de taes viandas tem ũa tal
semelhança3 antre si, que causa esta conformidade. Algũus outros teverom que
esto decia na semente, no tempo da geeraçom; a qual despõe per tal guisa
aquelo que dela é gerado, que lhe fica esta conformidade, tam bem acerca da
terra, como de seus dívidos.
E assi parece que o sentio Tulio, quando veo a dizer: «Nós nom somos nados a
nós mesmos, porque ũa parte de nós tem a terra, e outra os parentes 4». E porem
o joizo do homem acerca de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre
çopega.
Esta mundanal afeiçom fez a algũus historiadores, que os feitos de Castela com
os de Portugal escreverom, posto que home ẽs de boa autoridade fossem, desviar
da dereita estrada, e correr per semideiros escusos, por as minguas das terras de
que eram, em certos passos claramente nom serem vistas; e espicialmente no
1
Fernão Lopes, Crónica de D. João I [apreciação crítica de Teresa Amado], Lisboa, Comunicação, 1992,
pp. 75-79.
2
Se não a louvam, não escrevem toda a extensão das suas falhas.
3
O sangue e o espírito (isto é, a matéria orgânica, corporal, e as faculdades e atividade psíquicas) têm
uma tão grande correspondência. «Tem» na terceira pessoa do plural é frequente em textos da época,
sendo portanto homófona e homógrafa da forma da terceira pessoa do singular.
4
«… nom somos nados somente pera nós, mas em nossa vida a nossa terra quer que a sirvamos em
algũa parte, e parte querem de nós os nossos amigos» (Cícero, Livro dos Ofícios, tradução do infante D.
Pedro, Ed. Piel, 1948, p. 18) é uma tradução mais fiel e mais clara. De qualquer modo, no seu contexto
original, a frase de Cícero, citada de Platão, refere-se mais ao direito social que a terra e os amigos (e
não «os parentes») têm de exigir uma parte de nós mesmos, que à sua possível influência nos nossos
juízos, parecendo ser neste sentido, no entanto, que Fernão Lopes a interpreta.
5
Não louvando alguns dos seus grandes feitos quanto mereciam.
6
O nosso desejo era nada dizer de falso, quer por mentira voluntária, quer por ignorância (ou erro
involuntário). Fernão Lopes, longe de restringir a sua responsabilidade por qualquer advertência prévia
quanto a possíveis erros, reafirma-a, exigindo uma credibilidade absoluta para a totalidade do que
escreveu.
7
Perseverando no erro por ignorar.
8
Não nos foi possível reunir mais provas, maior evidência, do que as que se acham.
9
Comprovadas, certificadas.