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Fernão Lopes e o conceito de História

A crónica é um comentário noticioso de factos, que vive do


quotidiano, mas não visa a informação. Pode ser uma espécie de
narração de acontecimentos, uma apreciação de situações ou, na
definição tradicional, assumir-se como relato histórico.
Antigamente, crónica era um relato histórico ou uma narração de
factos históricos redigida segundo a ordem do tempo (a palavra grega
cronos significa tempo; e em latim chronica dizia-se da narrativa de
factos de acordo com o decorrer dos tempos), daí a atribuição na
época medieval da designação 'crónica' à narração de factos
históricos de uma determinada época ou reinado, sendo que o sentido
de crónica equivale, pois, nesta época, ao de história ou relato
historiográfico.
Até Fernão Lopes, a crónica não vai muito além da recompilação de
registos anteriores que remetem, muitas vezes, para um antepassado
comum, a Crónica Geral de Espanha, de Alfonso X.
A partir de Fernão Lopes, com as crónicas de D. Pedro, D. Fernando e
D. João I, o registo cronístico decorre menos de uma reutilização de
escritos do que de uma investigação original e crítica, que
seleciona e revê os documentos que deverão concorrer para o relato
histórico, que reconstitui a sociedade portuguesa num panorama mais
amplo e dinâmico.
A crónica moderna é, muitas vezes, uma apreciação crítica, um
comentário ou uma narração de acontecimentos reais ou imaginários,
a que se exige oportunidade e carácter pessoal; alternando a
subjetividade literária com o relato dos factos.
Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom carrego
d’ordenar estórias, mormente dos senhores em cuja mercee e terra
viviam, e u forom nados seus antigos avoos, sendo-lhe muito
favoravees no recontamento de seus feitos; e tal favoreza como esta
nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade dalgũa
cousa ao entendimento do homem. Assi que a terra em que os homẽes
per longo costume e tempo forom criados, geera ũa tal conformidade
antre o seu entendimento e ela, que havendo de julgar algũa sua
cousa, assi em louvor como per contrairo, nunca per eles é
dereitamente recontada; porque louvando-a, dezem sempre mais
daquelo que é; e se doutro modo, nom escrevem suas perdas tam
minguadamente como acontecerom.
(…)
Esta mundanal afeiçom fez a algũus historiadores, que os feitos de
Castela com os de Portugal escreverom, posto que homeẽs de boa
autoridade fossem, desviar da dereita estrada, e correr per semideiros
escusos, por as minguas das terras de que eram, em certos passos
claramente nom serem vistas(…) Nós certamente levando outro
modo, posta adeparte toda afeiçom, que por aazo das ditas razões
haver podíamos, nosso desejo foi em esta obra escrever verdade
sem outra mestura, leixando nos boõs aquecimentos todo fingido
louvor, e nuamente mostrar ao poboo quaes quer contrairas cousas da
guisa que aveerom.
(…)
E nós engando per ignorancia de velhas scrituras e desvairados
autores, bem podíamos ditando errar; porque screvendo homem do
que nom é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo
do que deve; mas mentira em este volume é muito afastada da nossa
vontade. Ó! com quanto cuidado e diligencia vimos grandes volumes
de livros, de desvairadas linguageẽs e terras; e isso mesmo púbricas
escrituras de muitos cartários e outros logares, nas quaes depois de
longas vegilias e grandes trabalhos, mais certidom haver nom
podemos da conteúda em esta obra.
E sendo achado em alguũs livros o contrairo do que ela fala, cuidae
que nom sabedormente, mas errando muito, disserom taes cousas. Se
outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de
palavras, e nom a certidom das estórias, desprazer-lhe-á de nosso
razoado, muito ligeiro a eles d’ouvir, e nom sem gram trabalho a nós
de ordenar.
Mas nós, nom curando de seu juízo, leixados os compostos e afeitados
razoamentos que muito deleitom aqueles que ouvem, ante poemos a
simprez verdade, que a afremosentada falsidade. Nem entendaes
que certeficamos cousa, salvo de muitos aprovada, e per escrituras
vestidas de fé; doutra guisa, ante nos calariamos, que escrever cousas
falsas. Que logar nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das
palavras, pois todo nosso cuidado em isto despeso, nom abasta pera
ordenar a nua verdade? Porem apegando-nos a ela firme, os claros
feitos, dignos de grande renembrança, do mui famoso Rei dom Joam
sendo Meestre, de que guisa matou o Conde Joam Fernandez, e como
o poboo de Lixboa o tomou primeiro por seu regedor e defensor, e
depois outros alguũs do reino, e d’i em deante como reinou e em que
tempo, breve e sãmente contados, poemos em praça na seguinte
ordem. Comprovadas, certificadas.
Conceito de história - imparcialidade, verdade (assente na pesquisa
e utilização de documentos), recusa da “mundanal afeiçom”
(subjetividade) e colocação da narração dos factos acima de objetivos
estéticos, isto é, acima de uma prioridade de trabalhar a linguagem
subvertendo a verdade (não descurando, obviamente, a escrita):
• “escrever verdade sem outra mestura”
• “certidom” (certificação dos factos em documentos e outros);
• “simprez verdade” (sem ornamentos falsos ou escusados).

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