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Recordações de um cidadão que nunca votou

Raimundo de Ataíde

(Jornalista militante na imprensa do Rio de Janeiro,


porém natural do Estado do Ceará, onde viveu longo
tempo – dá-nos o autor um sugestivo flagrante de
um momento de eleição no interior do Brasil da
República Velha. E um testemunho curioso de como
se processavam as eleições, naquela época que já se
distancia tanto do Brasil novo, alentado por
impulsos de progresso político mais sadios e mais
viris.)

Nunca exerci o direito de voto, que a antiga Carta Magna do país outorgava
aos cidadãos livres. Nunca experimentei a emoção de colocar na urna a cédula
que levava ao poder os pais da pátria, ou o Chefe Supremo da Nação. Não pensem
que deixei de usar esse preliminar privilégio político por ideologia, convicção ou
crença de qualquer natureza. Não. O que aconteceu comigo foi um fenômeno de
ordem inteiramente psíquica. Nunca votei certamente por um complexo. Um
recalque inibia-me de comparecer às eleições e exercer o meu direito calmamente,
confiante no êxito do meu gesto, na eficácia da pureza das minhas intenções e,
sobretudo, na verdade daquela atitude coletiva.
Essa descrença invencível na verdade eleitoral, no valor daquele esforço
reconhecidamente inútil para o povo e sem conseqüências produtivas para o
regime republicano é que tornou-me um cidadão sem ideal político, desiludido dos
governantes da época, cético do futuro do Brasil. Um homem à parte, sem
influenciar, embora que remotamente na máquina administrativa que é
responsável pelo êxito social e econômico do país. Essa minha animadversão
nasceu de um fato chocante verificado no interior do Ceará. Rememoremos: certo
dia de eleição, na pitoresca cidade de Pacatuba, que demora no sopé da altaneira
Aratanha, cobriu-se de luto uma família de muitos filhos, que ficara na mais negra
miséria. O pai fora assassinado depois de uma discussão acalorada em defesa do
chefe político. Tombou o pobre homem, que fora arrastado como um autômato
para votar, ou por outra, servir o coronelão, homem dono de engenho e senhor de
grande prestígio. Queria agradar unicamente. Não tinha outro objetivo senão
esse. Mal sabia assinar o nome, era dos que, se parar no meio da assinatura só
prosseguem retornando à origem. Para ele, aquele dia era de festa, uma semana
antes recebera um par de botinas reiúna, uma camisa de chita e um chapéu de
palha desabado. De madrugada saíra de casa, viajara duas léguas e agora vinha
dar o seu voto ao Coronel X. Estava contente consigo. Beberia um bom trago de
graça, e também de graça almoçaria na Casa da Câmara, nas mesas postas ao
longo do salão, como num rancho de soldados. Essa a maior honra que lhe
tributavam.
O dia da eleição sempre fora festivo. O pessoal da cidade aprestava-se em
regra. Indumentava-se como em dia de festa do santo padroeiro. Depois da missa

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começava a função. Nas ruas e praças costumeiramente desertas, passavam de
quando em quando soldados da polícia em fardas de cores, fazendo a via sacra do
“trago”, em cada bodega da esquina. Os caboclos apesar de temerem o seu
possante “rabo de galo”, apelidavam-nos de mata-cachorros. Viam-se também o
padre, o Juiz de Direito e o prefeito em palestra na farmácia do “Seu” Chagas.
Eram todos do governo, discutiam calmamente. O Juiz substituto, porém, fazia
parte de outro grupo, votava com a oposição.
Os matutos vinham alegres, todos em seus cavalos arreados, brilhantes, aos
grupos, assanhados e buliçosos. Às vezes, mulheres com vestidos compridos e
chapéus largos, davam um colorido especial ao espetáculo. Os cavaleiros tomavam
a cidade de assalto, levantando no ar uma densa camada de pó. Era uma
cavalgada pacífica de centauros e amazonas rudes. Desciam das serras e vinham
dos taboleiros. Da Guaiúba, das Cajazeiras, da Formosa, da Pavuna, até do
Aquiraz chegava gente para votar. Os votantes dos taboleiros eram mais
numerosos; da Aratanha descia pouca gente, era eleitorado sem expressão.
Nesse dia a cidade se transformava como que milagrosamente. Tomava
tonalidade nova e pitoresca. Alguns matutos envergavam fraques do tempo do
“bumba”, traziam chapéus altos e usavam calças pelas canelas; outros porém não
tiravam as botas largas e as esporas reluzentes. Iam votar assim. Os granfinos do
lugar riam à socapa, daqueles cidadãos que de longe vinham fingir de eleitores.
Brincar de votar. Como era dia de festa, natural portanto que as crianças se
alegrassem, saíssem a passear, alvoroçassem-se também. Fossem até a Casa da
Câmara ver a matutada comer, isso depois de cansar, ou melhor “matar” como se
dizia os pobres cavalos que os matutos deixavam amarrados nas pilastras do
mercado velho. Cavalos feios, de rabos compridos e crinas longas. E quando os
donos dos bucéfalos viam o galope do animal, que, reluzente de suor, quebrava os
cascos no calçamento incerto das ruas, nada reclamavam. Riam da brincadeira,
porque os doidos cavalarianos eram os filhos do Juiz de Direito, do prefeito, dos
chefes políticos. Desse modo, ficava tudo entre amigos. Quanto aos cavalos da
oposição, só podiam ser cavalgados por meninos cujos pais fossem oposicionistas.
Vê-se bem porque a eleição me interessava. Eu torcia pelo dia de montar em
cavalo fogoso, e ficava alegre quando chegava esse momento. Assim, aquele
desfecho sangrento quebrou o meu entusiasmo, entristeceu-me a alma, deixando-
me uma recordação macabra. De fato fora triste. Um homem sacrificado, e na
orfandade uma récue de crianças. Eu o conhecia, era homem bom e trabalhador,
roceiro plantador de mandioca e cana na Pavuna. Nunca mais pude esquecer-me
da expressão entristecida do meu pai, contando em casa o lutuoso episódio.
Meu pai, ele era juiz, fez um pequeno discurso profligando o crime,
mostrando o absurdo daquelas mascaradas eleitorais, que só serviam à meia
dúzia de espertalhões. Dia de luto geral na pequena cidade. Acontece porém, que o
criminoso era do partido do governo e dentro de pouco tempo foi posto
escandalosamente em liberdade. Também o caso de José Maria de Albuquerque e
Melo, assassinado em Recife, causou firme impressão na mocidade
pernambucana. Minha mãe relatava-o sempre com emoção. O fato e a advertência
do meu pai calaram profundamente no meu espírito de criança. Ainda tenho
presente todo o horror da cena. O homem estirado no patamar da Igreja, coberto
com um lençol depois foi posto na rede e levado para o cemitério. Naquela noite,
creio, nenhum menino dormiu bem em Pacatuba …
Nessa mesma eleição, em várias localidades do Estado, assinalaram-se
acontecimentos mais ou menos semelhantes.

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Com o decorrer dos tempos, verifiquei que as eleições em todo o Brasil eram
mentirosas, e não raro sangrentas. Do norte ao sul aconteciam, vez por outra,
episódios como o que assistíramos na terra da Aratanha. Delas saíam os políticos
e esses, ao meu ver, tinham o crime de origem. Eu os detestava.
Constatei mais tarde, que se na República era assim; fora a triste herança
que nos legara o Império. O mal era velho. Não dependia de regime. Vi também
que todas as manifestações políticas pelo voto eram falsas, venciam
impreterivelmente os governistas. Os que tinham o poder ou dinheiro. Serviam
para demonstrar praticamente o desrespeito à lei e à justiça. Um motivo para
demonstrar à nação a inexeqüibilidade desse seu direito, um acinte aos homens
honestos e à mocidade.
Isso é história dos nossos dias. Ouvi várias vezes contar safadices e
intrujices dos politiqueiros. Exemplifiquemos: dado político, influente, nos dias
próximos à eleição, tratava todo eleitor com especial carinho, chamava a todos de
compadres, perguntava pela família e mandava recomendações ao pessoal de
casa… Acontece porém, que perto da zona eleitoral, o dito chefe encontrava meio
embriagado um tipo dessa família que ele tanto explorava. Vendo-o naquele
estado, o astuto deputado lembrou-se que aquele ébrio bem podia votar na sua
chapa e disse: - O compadre, você como vai, homem; está doente, precisa de
alguma coisa? E depois – você já votou, compadre? - Já, retrucou o eleitor
“molhado”. Então o político, quase colérico, diz a um guarda que passava no
momento: - Leve esse homem para a cadeia, está visivelmente embriagado. Esse
pequeno detalhe, naturalmente, não constitui motivo para se condenar um
sistema político, mas serve com certeza, para justificar o desprezo por homens
dessa natureza.
Eis outro fato que me indignou altamente. Tinha eu grande admiração por
um professor, homem culto, enérgico, patriota e inteligente, representante nato de
uma coletividade educada e consciente. Mui justamente quis ele entrar na chapa
do deputado. Queria representar o Estado na Câmara Federal, o que era uma
grande honra para os filhos da terra. Todos os partidos reconheciam isso; tanto os
governistas quanto os oposicionistas faziam os maiores elogios ao pretendente.
Achavam justa e mesmo vantajosa a sua eleição. Mas nenhum deles quis alijar
das suas chapas algum nome sem expressão, para colocar o daquele ilustre
professor a quem todos proclamavam qualidades notáveis.
Nós, os moços, não compreendíamos essas coisas baixas. Enquanto isso, na
Câmara figuravam homens de menos méritos que o famoso “Incitatus”. E, se
alguém de valor lograva ser eleito, ia esbulhado miseravelmente.
A decência e a honestidade nas eleições constituíam exceções na regra geral.
Nesse particular tudo era aviltante e seriamente lamentável. Esse estado perigoso
de coisas foi que a minha geração encontrou quando deixou os bancos da escola.
Longa a série de erros e desatinos a enumerar nessas simples recordações.
Eu nunca votei. Não poderia acreditar na sinceridade dos políticos. Pesavam-me,
sem dúvida, no subconsciente, as dolorosas lembranças da meninice, acrescidas
mais tarde das lições da história e da observação.
O fato do brasileiro não se ter entrosado com sucesso no sistema
representativo pelo voto é um fenômeno que desafia a argúcia do historiador e do
sociólogo.

Revista Cultura Política, Rio de Janeiro, julho de 1941, Ano 1, nº 5, pp. 246-249.

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