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"Falanges de amigos.

Não conto os amigos na medida de dedos, mas na medida das


falanges que eles têm. Pertencem ao dedo que indico, ao dedo primo
de minha mão! No máximo são três. A estes agradeço e chamo de
irmãos!"
L. Vivanco Solano
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— Acorda diacho! Acorda para cuspir! — Gritou ela.
— Por que você está gritando? Parece que é o fim do mundo!
Por favor. Eu só quero ficar em paz. Por que você está tão ansiosa
para me acordar? — Disse ele.
— Vamos! Acorda dorminhoco! — Ela gritou novamente!
E como que com um terremoto ela o acordou.

O sol mal tinha nascido, um frio de inverno lancinante, e ele


preferia ficar sob o edredom, não tinha o que fazer naquele dia, e era
seu aniversário, mas queria que todos o esquecessem. Era também
um feriado, dia de finados. Não iria visitar ninguém com quem não
pudesse conversar! Ele tentou tapar os ouvidos com o travesseiro.

— Tenho boas novas, não quer saber? — Disse ela.


— Que boas novas você tem? Repito! E o fim do mundo para
você me tirar desta cama? Pelo menos é o que está parecendo, pelos
seus gritos, voz estrondosa, que retumba em minha cabeça. Como
você vocifera para mim assim? Logo para mim que estava dormindo
um sono tão gostoso? Jesus voltou para nos julgar?
— Não rapaz, eu tenho algo para lhe mostrar! Veja por si, olhe
o abacateiro, ele deu fruto! Teremos abacate neste inverno, acredita
nisto? — Disse ela.
— Mas e eu com isto? Quero mais que o abacateiro se exploda,
estou nem aí, aliás, estou bem aqui, bem quentinho debaixo de
minhas cobertas. — Disse ele se enrolando no edredom e se
ajeitando novamente na cama.
— Como você é mesquinho e resmunguento, não vês o milagre
da natureza? Estamos tendo abacate em pleno inverno.
— Tá, Tá, Tá. Verei isto, se isto lhe agrada. — Disse ele se
levantando da cama, vestindo o roupão grosso de algodão e calçando
os chinelos.
Eugenio foi até a janela, e não é que ele viu um pequeno
abacate crescendo.
— Mas o que tem de tão especial neste abacate? — Perguntou
ele.

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— É sinal que nesta casa tem vida, uma fruta rompeu o silêncio
da eternidade. — Disse ela.
— Mas que silêncio? Que eternidade? Vivo bem do jeito que
estou, não preciso de mais nada. Você que tem esta mania de vida,
por mim, estou me lixando! — Disse ele.
— Mas como você é grosso, o que aconteceu? Acordou de ovo
virado? — Disse ela.
— Ovo virado não sei, mas estou morrendo de fome! O que
temos para o desjejum? — Perguntou ele.
— Temos o de sempre, resto de ontem, mas como todo dia é
dia de resto de ontem, te vira, se preferir tem pão dormido e queijo
mofado! — Disse ela.
— Agora eu que digo que é você que está de ovo virado.
Porque comigo? Por não ter admirado seu abacate? Faça-me o favor,
tenho mais o que fazer! — Disse ele.
— Ah tá, vai fazer o quê? Lustrar a sua coleção de fivelas de
cinto? — Disse ela com escárnio.
— Não, estou esperando visita hoje, se você não sabe é meu
aniversário. Veja se não me atrapalha. — Disse ele de forma séria.

Eugenio se levantou e foi ao banheiro fazer a higiene matinal.


Tudo parecia bem, a casa estava do jeito que ele gostava, nada fora
do lugar. Já ele ao contrário, estava parecendo um bagaço, um trapo,
nem se reconhecia no espelho, o tempo passara e ele não percebera.

— Estamos sem água, vai ter que se banhar com cuspe


Eugenio! Eu gênio, mas que nome mais pretensioso! Você é gênio
para suas más companhias, não para mim, aqui você não engana
ninguém. Não sei quem te deu este nome, mas devia ter uma
criatividade e expectativa gigantesca. Não te culpo, jogaram uma
carga gigantesca em suas costas, de gênio você não tem nada, para
mim não, pelo menos, não diz nada, você é mesmo um preguiçoso! —
Disse ela com escárnio. — Saiba
— Saiba criatura, que quem me nomeou assim foi minha mãe,
por mim me chamaria Filipe, um nome mais normal, apesar de toda
pompa, até José seria melhor, José Filipe, um nome composto, com
gosto! — Disse ele urinando no vaso sanitário.

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— Acorda José Filipe! Eugenio, o que você tem de especial?
Além de não estar nem aí para os outros, e se achar o máximo, um
gênio? — Perguntou ela com um tom de ironia.
Saiba que possuo muitos atributos, sou cordial e leal, fui criado
na melhor educação possível, e você? Pelo que vejo está
envelhecendo e ficando ranzinza, sua educação não é maior que esta
latrina onde faço minhas necessidades bárbaras, onde despejo
minhas excrescências.
— Vai logo, toma seu banho, não demore, vá antes que eu
mude de ideia. — Disse ela brava com ele.
— Já vou, não me apresse! Sua, sua, desvairada! A que ponto
chegamos para você mandar em tudo? Até em minha vida? — Disse
ele tirando o pijama e entrando no chuveiro.
- Tá brincando comigo? Eu sou o seu pior pesadelo, não
brinque comigo! E que vida você tem? Se não apenas sonhos? Sabe
quem você vai receber hoje? Ninguém! Sabe porquê? Pois, todos te
esqueceram. — Disse ela dando uma gargalhada. — Você se
esqueceu que enviou um e-mail as todos que conhecia, dizendo que
estava dando uma volta ao mundo a bordo de um veleiro? Pois então
meu querido, quem acreditaria em você? — O sarcasmo escorria por
suas palavras.
— “Está OK! Vivo nesta casa desde minha infância, todos se
foram, menos eu! E você com isso? Vai me dizer que a senhora se
acha dona do mundo?” — Disse Eugenio, enquanto se enxugava com
uma toalha de algodão egípcio.
— “Nem de longe sou dona do mundo, meu caro. Mas você já
esqueceu de nosso acordo?” — Respondeu ela de forma ríspida.
— “Sim, lembro-me do acordo, mas faz tanto tempo, ele ainda
vale?” — Perguntou ele, enquanto se vestia.
— “Nosso acordo é para a eternidade, enquanto ela dure, meu
caro.” — Disse ela firmemente.
— “Como assim, enquanto ela dure?” — Indagou ele.

— “Enquanto estivermos de pé!” — Explicou ela.


— “Quem estará de pé? Quero dizer, quem precisa estar de
pé?” — Questionou ele.

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— “Você sabe, não se faça de sonso. Agora, vista-se, você é
muito sonso mesmo. Por que perco tempo com você? Vá logo fazer
seu desjejum matinal. Mas não espere que apareça alguém, ninguém
virá! Seu apogeu já foi, agora só sobraram os farelos da sua história,
digo, vida. Não são todos, aliás, somente alguns, lembram-se de
você.”
A casa ainda se encontrava às escura, o sol da manhã não a
iluminara por completo. Eugenio tateou a parede alcançando o
interruptor e acendeu a luz.
O corredor era cheio de espelhos, os quais sempre o
arrepiavam. Ele tinha para si, que o corredor era uma prisão de almas
perdidas, onde os espelhos mostravam o passado de sua família, um
passado doloroso para ele, pois não restara mais ninguém.
De alguma maneira, esses espelhos guardavam a história do
casarão.
Eugenio tinha a sensação de que, se fixasse o olhar neles, eles
o engoliriam, o transportariam para o passado. Festas de Natal,
aniversários, festas juninas, batizados e casamentos. Todas as datas
importantes eram comemoradas no velho casarão. Os dias felizes e
os dias tristes, todas estas lembranças estavam presas nos espelhos.
Pareciam mais serem fantasmas agourentos do passado, de um
tempo distante e feliz, mas que Eugenio queria esquecer, pois, não
podiam mais voltar.
— “Vou rápido, fecho os olhos, não, não quero ver nada, ainda
mais hoje, dia de meu aniversário, não quero ver meu passado, nem
o de ninguém.” — Pensou ele.
— Vai Eugenio, não é tu que se diz machão? Por que está com
medo? Velhas lembranças não nos fazem mal; o pior é não poder
vivê-las mais. — Disse ela apressada — Não temos o dia todo.
— Eu sei minha cara, mas sou o último da família que restou
neste casarão. Desde que meu avô o construiu todos vivíamos aqui,
porém todos se foram, ou mudaram-se ou partiram deste mundo.
Estou apegado a ele, como um marisco se apega a uma pedra na
beira da praia. — Disse Eugenio, um pouco triste. — Não vê que é
difícil para mim esta situação?
— Vamos, vai logo, deixa de ser frouxo! — Disse ela, como um
vento forte o empurrando.

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— Calma, já vou — Disse ele, tomando coragem e correndo
pelo corredor de olhos fechados e quase trombando nas paredes.
— Você não sabe mesmo? Eugenio, meu querido, você acha
que não conheço da sua história? Conheço esta casa tijolo por tijolo,
espelho por espelho, janela por janela; nada, mas nada mesmo me
foge. — Disse ela com jeito de professora do primário.
— Você está parecendo uma velha rabugenta, o que deu em
você? Acordou com o ovo virado mesmo, só pode! Seu mau humor é
contagiante. — Disse ele, com certa ironia. — O que fiz para você?
Perdoe-me se não cumpri todos os seus desejos. O amor é uma via
de mão dupla. Senão, vira uma patuscada, e não sou palhaço, não
nasci com este dom, e espero que ninguém venha a nascer com ele,
dom mais fatídico. Nunca foi esta a minha intenção, muito menos a
de Eros. O amor não surgiu no mundo para se apresentar no
picadeiro. — Disse Eugenio abrindo a porta da geladeira, onde só
havia um pedaço de queijo bolorento.
— Assim você está sendo ríspido! Você já pensou em mim ao
menos uma vez na vida, em mim? Em meus mais simples e
pecaminosos desejos? Eu os tenho, sabia? Nunca os percebeste? —
Perguntou ela com uma voz chorona e dengosa.
— Deixe de ser, você acha que é a única no mundo a sofrer?
Não, não é, e eu tenho um carinho enorme por você! — Disse ele, a
consolá-la.
— Está bem, Eugenio, o que tu queres? — Adiantou ela com a
conversa.
— Eu quero sair daqui deste lugar, sair de você, o que me
impede disso? Você? — Perguntou Eugenio, provocando, enquanto
cortava um pedaço do queijo e o engolia.
— Vai lá, tente, saia pela porta de minha entrada, vai ver o que
acontece! — Disse ela de forma ríspida e letal.
— Quer saber, vou mesmo. — Disse Eugenio enquanto cuspia o
pedaço de queijo, na pia da cozinha. — Que horror este queijo só
pode estar estragado, perdi a fome — Disse Eugenio atravessando o
salão e chegando próximo à porta do hall de entrada.
— Vai, Eugenio, você não é um gênio? Então saia! — Disse ela
com uma pitada de escárnio. — Se você não se sente bem aqui, sinta-
se bem onde estiver — Disse ela magoada.

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Eugenio, com toda coragem e valentia, abriu a porta de entrada
do casarão. Viu o jardim da frente, o mato crescia solto, fazia tempo
que ninguém o aparava. Feliz, daria o primeiro passo para além do
Casarão. Mas quando pisou para fora da soleira da porta, uma força
sobrenatural o puxou de volta, para o meio do hall de entrada!
— O que é isto? O que está acontecendo? Como assim? —
Perguntou a ela.
— Eugenio, você está preso a mim, ainda não percebeu? Mas
em que mundo vive? Venha, olhe o grande espelho! Ele te mostrará
sua alma, não seu reflexo.
Eugenio foi até o corredor que dava para o salão principal e viu-
se refletido, estava um caco, quase desumana a visão que teve. —
Mas o que é isto? Como assim estou preso a você? Tenho apenas 42
anos e estes espelhos parecem me mostrar um velho de 53 anos! —
Disse Eugenio assustado.
— Calma, meu querido, para tudo tem uma explicação! Você
está vendo seu futuro, não ligue para os espelhos, aliás, ignore-os;
eles te levarão à perdição, à loucura. Faça como eu, faz tempo que
não tenho uma manutenção, se me preocupasse com isso, estaria
perdida. — Disse ela de forma a tentar animá-lo.
— Como assim ignorar os espelhos, eles nos mostram nosso
reflexo, foram feitos para isso! — Disse ele confuso.
— Não, meu caro, os espelhos desta casa são portais para um
mundo mágico, para um mundo do absurdo. Você verá neles seu
futuro, seu passado, sua história ou o que você quiser. No momento,
você vê sua alma, está parecendo um velho, é o seu interior, sua
alma, você se entregou para a morte.
— Está louca? Como me entreguei para a morte? Ainda estou
bem vivo! — Disse Eugenio preocupado.
— A quem você está enganando? Você desistiu de viver
Eugenio, está sempre enfurnado em seus pensamentos distantes e
não vive a vida. — Disse ela rispidamente, para que ele visse sua
própria realidade.
— Está bem, mas como vou viver, se não consigo sair deste
casarão, de você? Você não me deixa sair de sua presença. Preciso

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tomar um ar, respirar um pouco, você está me deixando confuso. —
Disse ele irritado — O que está acontecendo? Que absurdo é este?
— Eugenio, você está viajando nas ideias? Não percebeu ainda
que você está preso a mim? — Perguntou ela, querendo saber se ele
finalmente a compreendia.
— Está OK, me conte onde estou? O que está acontecendo?
Estou mais perdido que uma batata em plantação de cebola — Disse
ele, sério.
— Você ainda não entendeu? Pobre rapaz! Somos só nós dois,
estamos presos aqui, aliás, você está preso a mim — Disse ela, séria.
— Como assim? Preso a você? E o que você é, se não só uma
voz em minha cabeça? — Perguntou ele, preocupado.
— Eugenio, mas este seu nome é hilário, você é mais burro que
uma de minhas portas, você ainda não sabe, criatura? Acorde! Grow
up! — Disse ela, tentando despertar em Eugenio alguma lembrança.
— Não fuja da conversa! Quem é você para me julgar a começo
de conversa? — Perguntou ele, sério.
— Acalme-se, antes de tudo saiba que estou do seu lado, aliás,
sou tudo o que você tem agora — Disse ela, pensando no próximo
passo que ele daria.
— Não, eu quero saber. Se me julga, quero saber! Ao menos o
que pensa de mim? Que sou um ébrio, um imaturo? Tenha certeza de
que eu tenho sentimentos, enquanto você. Pelo que vejo, você é feita
de pedra, só pode ser. — Disse Eugenio injuriado.
— Não me leve a mal, mas o que você quer de mim? Nem uma
pintura nas paredes fez para eu me sentir melhor, veja meu estado,
estou um caco, igual a você. — Disse ela de forma decisiva.
— Como assim? Quem é você para ser pintada? Você não passa
de uma voz na minha cabeça — Disse ele de forma ríspida e
grosseira.
— Calma, não seja rude, logo saberá de tudo. Mas antes saiba a
desgraçada vida que tens! Viver da bonança dos outros é fácil.
Acorda, Eugenio, até onde você quer seguir? — Disse ela, cansada da
moleza dele.
— Vou te dizer meu caro, sonhos só se concretizam com
esforços, com labuta! Você tem um sonho? Além de viver em um

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casarão caindo aos pedaços? Se tiver, faça algo, não fique esperando
acontecer. — Disse ela na tentativa de incentivá-lo.
— Sonho com uma vida de verdade, e não de fantasias, não
quero trazer para minha infeliz vida, mais ninguém! Vou sair daqui de
qualquer maneira, este casarão me sufoca, me prende, preciso de ar,
de novos ares. — Disse Eugenio decidido.
— Tá! Isto entendi faz muito tempo. Não se vitimize, se quer
mudar algo, faça! Por que não começa mudando seu comportamento
perante a vida? — Disse ela, definitivamente preocupada.
— Minha cara, já tenho 29 anos, você acha mesmo que eu
ainda tenho jeito? Todos que tiveram suas chances na vida, até
chegar a esta idade, já aproveitaram! Só não tem jeito a morte! Desta
ninguém escapa! — Disse ele bem sério. — E o que você, sua suma
pontífice das doutrinas da vida, me aconselha? — Quis saber ele já
esperando uma resposta atravessada.
— Eu te indico viver, algo que você ainda não fez! Você parece
até uma ostra difícil de abrir Eugenio! É criativo, sua mente corre a
(mil) por hora, mas não sabe nada da vida, não conhece a imaginação
das pessoas. Ao menos sabe o nome de uma pessoa próxima,
querida? Você ao menos conhece alguém de verdade?
— Tá de zombaria? Eu conheço a Virgínia, uma amiga querida, e
além dela conheço o, o, como é mesmo o nome dele? O fulano,
ciclano, se não me engano, o sujeito que me vende o gás! Sim, Seu
Nilson! Pessoa sensacional, parece até o papai Noel, com aquela
barba branca. Eu tenho muitos amigos, só não os procuro — Eugenio
se achou o máximo, para quê?
— Parabéns, Eugenio! Cada vez mais, o tenho como um tonto!
Não é possível, como você quer crescer sem conhecer ninguém? —
Disse ela prestativa e sincera. — Mas, que burro! Perdão, mas você
não conhece é nada! Vá se olhar no espelho do salão, lá você irá
encontrar sua resposta.
O espelho do salão tinha um metro e meio de largura por dois
metros de altura, adornado por uma moldura de prata de lei
entalhada, era o maior espelho do casarão. Eugenio a princípio ficou
ressabiado, o que ela queria dizer com aquilo? — Mandou-me ver o
quê?

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Eugenio seguiu para o salão com medo sem entusiasmo, estava
aflito. O espelho do salão para ele era algo gigante, e sua aversão aos
espelhos o congelava. O que ela queria que ele visse? — Pensou.
— OK, vou encarar este que é o zelador das almas de minha
família, que seja! Mau agouro já me basta, que venham boas notícias!
— Disse ele decidido.
Eugenio chegou perto do espelho, encarou-o fixando o olhar,
procurou não ter medo — Se é para ser assim, que seja — Pensou.
Encarou por um tempo o espelho e de repente, começaram a surgir
as imagens, foi como se o salão criasse vida.
Tudo se iluminou como em tempos de festa, um grande
almoço em família, um almoço de Natal. O piso de madeira reluzia de
tão bem encerado. Os vitrais coloridos, hoje quebrados, estavam
intactos, criando um ar festivo. Pendurado no teto um lustre de
cristal, não sabia dizer se era Bacará, mas era pomposo, feito com
pingentes de cristais que caíam como gotas de orvalho. Ao fundo em
uma das paredes, podia-se ver um afresco, uma caçada a um cervo,
pois se viam cavaleiros de fraque vermelho, e cães que corriam à
volta de um animal grande. Percebeu que eles eram da raça Beagle,
os melhores cães para esta tarefa; os avós de seu avô costumavam
fazer caçadas na distante Europa, nos bons tempos.
Eugenio não se intimidou, quis saber por que ela lhe havia
dado esta tarefa, a princípio árdua, mas que o estava fascinando e, ao
mesmo tempo, levava-o a uma tremenda nostalgia.
Aquele espelho mais parecia uma tela de cinema. Pode
observar todo o salão em festa, fantasmas de outrora que surgiam
vivos diante dele, seus antepassados.
Eugenio estava hipnotizado.
Não se contendo perguntou. — O que quer mostrar para mim?
Meu retrato de família, sua desalmada?
— Não, meu querido, só quero lhe mostrar de onde veio e para
aonde vai! Seu caminho está muito errado, você está se martirizando,
se esquecendo. Você ainda não entendeu? — Disse ela calmamente.
— Entendeu o que, minha cara? Não tenho mais lugar neste
mundo de almas penadas, estamos no século XXI. — Disse Eugenio
sério.

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— Eugenio, a vida confabula a seu favor, você ainda não
percebeu? Porque se martiriza? As Moiras já me disseram, lhe
guardam o melhor para o final, viva a vida, você ainda tem tempo!
— Até parece minha querida, que Moiras que nada, meu
destino é a guilhotina do tempo! Estou esquecido! Hoje é meu
aniversário, meu cumpleaños, e você quer vir a mim com este papo
de baile de família? Me poupe! Nem festa terei, a quem convidaria?
Todos me esqueceram.
— Se nada pode te mostrar, nem te mover deste lugar, sendo
você um marisco indomesticável, que seja, você acha que está nesta
condição porquê? — Disse ela com pena dele, sendo sincera.
— Que condição? De onde você tirou que sou indomesticável?
Está me chamando de bicho selvagem agora? — Disse ele indignado.
— Estou! E não se faça de rogado, você sabe muito bem onde
estamos, a quem pertence, só tento te libertar de suas amargas
amarras a este cais que não mais lhe serve. Quero que se desamarre,
levante as velas, e zarpe rumo ao horizonte.
— Quem é você para me dizer isto? Você que nunca saiu do
lugar, que vive em minha cabeça? — Perguntou ele com extrema
estranheza.
— Está bem, está na ora de você saber a verdade sobre mim.
Posso não parecer muito, mas existo, desde que seu avô aqui pisou,
fundou a primeira pedra. Conheço toda a história da sua família, por
favor, me respeite, se eu tivesse cabelos seriam brancos — Disse ela
indignada com o pouco caso de Eugenio.
— Como assim? Você não passa apenas de uma voz em minha
cabeça? Eu que pensei até agora que era meio biruta? — Disse ele
preocupado com sua sanidade.
— Não Eugenio, eu não sou apenas uma voz em sua cabeça,
sou muito mais do que isto. Mas você saberá em breve. — Disse ela
segura de si.
—Tá ok, já que é assim, já que tudo não passa de uma ilusão
criada em minha mente e que preciso viver a vida vou partir desta
casa, o que me segura aqui? Não é para viver? Que assim seja! —
Disse Eugenio decidido.
Eugenio nunca fora de se decidir, aliás, decisões sempre foram
difíceis para ele, detestava ter que escolher coisas, pois sabia que

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podia tomar a decisão errada. Mas aquelas imagens de seus
antepassados em uma caçada, e as palavras duras dela o magoaram.
— “O que ela esperava? Que ele voltasse aos primórdios de sua
família? O tempo passou, não tem volta” — Pensou ele de maneira
incisiva.
Eugenio sabia que os costumes haviam mudado, e que a
tecnologia tomara conta de tudo. Ele sabia que não tínhamos
escapatória, e que se não saísse desta arapuca armada para a
humanidade, perderia seu tempo, e pior, sem viver a vida.

— Não quero mais saber de você, não desejo saber de mais


nada, eu nem pensava em sair de minha cama hoje, pra quê? Porque
me importunas? Qual diferença posso fazer no mundo? Ele está
perdido mesmo, deixe-o assim, ir para onde quiser. — Disse Eugenio
retroagindo a sua decisão, algo que era comum nele, seus rompantes
de coragem, sempre foram fugazes.
— Mas como você é medroso e turrão! Não vê nada no
labirinto de sua vida mesmo! Você já se perdeu faz tempo. — Disse
ela como uma faca tentando abrir uma ostra, e prosseguiu. — A sua
vida perfeita se corroeu, como uma espada enterrada no solo junto a
um carvalho. De cavaleiro não tens mais nada, cadê sua bravura?
— Me poupe criatura! Deixe os cavaleiros em paz, foram outros
tempos! Hoje as mulheres mandam mais que os homens, agora você
é que é a alienada. — Disse Eugenio com sarcasmo.
— Saudade dos tempos de baile nestes salões, quando os
homens seguravam lenços para pegar nas mãos das damas, assim
não passavam os suores de suas ansiedades! — Disse ela dando um
suspiro.
— Pois é minha querida, os homens nunca foram expoentes na
paz, sempre fomos fadados para guerra, na paz as mulheres que
mandam, onde foram parar as saudosas mulheres de Esparta? —
Disse Eugenio com uma saudade de algo que nunca tinha vivido.
— E eu não te conheço, meu querido? Por isto você não sai
desta cama por nada, somente a golpes de machadada ou um tremor
da casa, sei bem o que você sofre, falta de emoção! Falta de
adrenalina, aliás você sabe que a adrenalina rejuvenesce! — Disse ela
para o provocar.

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— Algo que me falta, emoção! — Disse Eugenio se lastimando.
— “Que vida insossa eu levo” — Pensou em voz alta.
— Os homens são assim mesmo, na paz relaxam, relaxam até
demais, criam barriga, se aposentam para as paixões. Os homens
nasceram para a batalha, seja contra um animal ou contra um outro
ser humano qualquer. Quando estão nesta zona confortável, de não
terem com quem lutar, brigam com suas mulheres, os seres
humanos mais perto deles, vocês foram feitos para os desafios! —
Disse ela tentando o animar.

— Você está parecendo mais com uma psicóloga que nunca


tive, mas você está certa! Eu gosto de ti, mas, ao mesmo tempo,
tenho vontade de te esganar, tenho certeza de que nem Freud
explicaria, até mesmo Einstein não explicaria com sua teoria da
relatividade! O homem é um ser muito raso, fácil de compreender, já
a mulher é uma biblioteca de mil livros.
— Se é assim que pensa, saiba que você está certo! Mas
mesmo sabendo disto, nunca leu nosso manual. — Disse ela dando
uma gargalhada.
— Tentei ler, mas era mais complicado do que manual para
construir um reator atômico. Aliás, onde estava a cabeça de Deus
quando criou Eva? Adão estava tão feliz contando as cabritas no
jardim do Eden. Porque Deus não o deixou em paz? Nunca vi em
lugar algum Adão solicitar uma companheira. Cada ideia que ele tem?
Não quero reclamar, mas as vezes nós recebemos algo que não
pedimos pensando que é para o nosso melhor! Se era para nos tirar
do sério, ou da diversão, está ok! Cumpriu com a sua missão. — Disse
Eugenio de forma cínica.
— Não seja cínico Eugenio, sem as mulheres os homens não
são nada, não passam de animais rústicos e solitários. Saiba que
perdemos muito daqueles a quem um dia amamos, aqueles que
participaram de nossas vidas, mas a vida é assim, um palco, onde
passam muitos personagens. Uma hora, as luzes vão se apagando, o
palco se esvaziando, até o momento em que se encerra o pano. —
Disse ela, parecendo sinceramente triste; afinal, ela convivera com
muitos também nesta casa.

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— Mas o que fazer quando perdemos? Xingamos a Deus? Se foi
ele que nos proporcionou estes momentos maravilhosos! — Disse
Eugenio — Agora era ele que procurava animá-la.
— Não, não temos esse direito. Aqui se chega e daqui se vai,
nesta terra nada fica, senão só o nosso pó! A vida é assim, um eterno
renovar, como a noite e o dia. — Disse ela, filosofando.
— Chega. Não quero ouvir mais nada, vamos parar com essa
besteira de conversa fiada. Você está entendendo? Ou estou falando
para as paredes? Vou sair desta casa. Você não acredita em mim? —
Pergunta ele, resolvido.
— Vá, tente transpor as paredes desta casa novamente, tente
ganhar o mundo! — Disse ela com um sentimento de menosprezo,
pois estava se sentindo menosprezada, mas querendo saber até
onde ele poderia ir.
— Vou mesmo! — Disse ele percorrendo o salão e chegando
até o hall de entrada novamente. — Agora vou! — Disse confiante.
A porta de dois metros e meio de altura, de jacarandá da Bahia,
trabalhada por mestre Ambrósio, deixou-o paralisado. Ele sabia que
da porta para lá, era só com ele. — “Arriscaria tudo?” — Pensou
Eugenio por um instante.

Ele não tinha outra opção, tinha que se jogar na vida. Precisava
mostrar ao mundo que ele tinha seu valor, que ele tinha serventia.
Olhou bem a sua volta, amou cada pedaço do casarão, até as
janelas quebradas, que para ele, pareciam puras obras de arte. Por
um instante fitou as paredes descascadas com o tempo e de longe os
espelhos assustadores! No fundo, de seu coração, ele sabia que tinha
que sair, tomou a resolução, sairia! Se jogaria no mundo! — “Que
seja! Se é assim, assim vai ser!” — Pensou alto.
Abriu a porta e saiu! Ao pisar na soleira de mármore da porta,
viu-se novamente no meio do hall de entrada.
— Aonde tu pensas que vai, meu querido? Daqui você não sai,
já disse, não adianta, você está preso a mim. — Disse ela de forma
contundente.
— Mas como assim, não posso sair? O que me prende a você
desta forma? Porque então você me atiça a sair? — Quis saber ele —
Que história é esta?

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— Você não sabe mesmo? — Perguntou ela, sincera — Eu
tenho a obrigação de cuidar de você, não entendeu ainda?
— Que obrigação é esta? Desde quando lhe pedi isto? Por que
eu iria querer ser cuidado por você? — Perguntou ele confuso e
irritado.
— Você está aos meus cuidados e isto basta. Nós fizemos um
acordo, você não se lembra? Agora a pouco mesmo. Você havia me
dito que se lembrava, o que aconteceu? Esqueceu? — Perguntou ela
continuando — Se aquiete, logo chegarão visitas e você entenderá
tudo. Por hora, não pode fazer nada — Disse ela tentando acalmá-lo
e prosseguiu — Se quiser sair da casa, você pode ir até o quintal dos
fundos, para área da piscina. Por que não vai ver o abacate? — Disse
ela com uma ponta de ironia.
— Novamente você me vem com essa história de abacate?
Quer saber o que fazer com aquele abacate. — Antes que ele
terminasse a frase, ela o cortou rápido.
— Não seja inconveniente, não me ofenda. Ora veja, só quero
ajudar. Façamos o seguinte, vá até a antiga biblioteca de seu avô. Lá,
lhe mostrarei uma surpresa, um presente de aniversário, de mim
para você.
— Pode me adiantar o que é? Se for um livro, não quero ler
nada. — Disse ele emburrado.
— Não seja curioso. Já disse que é uma surpresa, você vai
gostar, espero. Agora vá, deixe de ser bobo. — Disse ela, acendendo a
luz do corredor que dava à biblioteca.
Ele abriu a porta de mogno em estilo art noveau e entrou. A
biblioteca empoeirada cheirava a livros antigos. Enormes estantes
percorriam as paredes. No centro da biblioteca havia uma
escrivaninha de madeira de ébano toda entalhada, e uma cadeira
com encosto alto, revestida em couro verde, convidando-o a sentar.
— Pronto, aqui estou. Qual a surpresa? — Quis saber ele.
— Acalme-se, primeiro feche as janelas, depois acenda o abajur
que está em cima da mesa, e aguarde. — Disse ela calmamente. —
Ah, antes de se sentar, vá até à estante à sua direita, na terceira
prateleira. Você verá um tubo de papelão, nele contém a planta desta
casa. Quero que a abra em cima da mesa, e aguarde.

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Ele fez como ela pediu, fechou as enormes janelas venezianas e
acendeu o abajur. Foi até a terceira prateleira da estante à direita e,
achando o tubo, levou-o até a mesa, tirou um pergaminho de dentro,
e o desenrolou sobre a escrivaninha. A pele de carneiro na qual fora
desenhada a planta do casarão já estava um pouco ressecada por
falta de cuidados. Eugenio pegou dois pequenos pesos que achou e
colocou-os sobre o pergaminho para que ele ficasse aberto, pois ele
teimava em se desenrolar.
— Pronto, o que faço agora? Cadê a surpresa? — Perguntou
Eugenio após sentar-se na cadeira atrás da imponente mesa.
— Feche os seus olhos e passe suavemente as suas mãos sobre
a planta do casarão, sinta a pele de carneiro, pense que é a pele de
uma mulher, a mulher dos seus sonhos. Você tem uma mulher dos
sonhos, não tem Eugenio? — Perguntou ela com um tom de voz
malicioso.
— Isso não é da sua conta, mas tenho minhas preferências. —
Disse ele encabulado.
— Sinta a suavidade, a textura, a delicadeza da pele — Disse
ela. — Está sentindo?
— Estou sentindo que esta pele está precisando de um pouco
de cuidado, um creme para rugas viria a calhar muito bem. Afinal ela
tem mais de cem anos. — Disse ele zombeteiro.
— Está bem, ela não está na melhor forma, depois você pode
passar o creme à vontade. Faça o que eu disse, pense na mulher dos
seus sonhos. — Disse ela maliciosamente.
Eugenio fez o que ela pediu, ficou por alguns instantes de olhos
fechados, sonhando, alisando a pele de carneiro ressecada da planta
do casarão.
Agora abra os olhos. — Disse ela com firmeza.
Eugenio abriu os olhos. A princípio com a biblioteca escura e
iluminada apenas por um abajur, não conseguia enxergar muito bem.
De repente começou a ver um vulto se formar no canto esquerdo da
sala, no encontro entre duas estantes, parecia a silhueta de uma
pessoa.
— Quem está aí? Quem é você? Apareça, mostre-se na luz. —
Disse ele assustado.

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— Calma Eugenio, sou eu, Elza 20, eu te disse que ia lhe fazer
uma surpresa, vejo que lhe surpreendi. — Disse ela dando um passo
à frente.
Aquela sombra então se iluminou, e ele viu espantado a figura
de uma mulher de cabelos negros, usando um peignoir de seda
semitransparente azul crepúsculo, que o deixou paralisado. Aquela
figura era impressionante, de uma beleza estonteante, o deixando
embasbacado, era sim, a mulher de seus mais puros sonhos juvenis.
— Então Eugenio, diga alguma coisa, não fique aí feito uma
estátua. Gostou de mim? Sou bonita? Foi assim que seu avô me
imaginou. — Disse ela sensualmente.
— Vo, vo, você é, você é. — Gaguejou ele.
— Elza 20 ao seu dispor — Disse ela sorrindo.
— Como assim? Quem é você de verdade? — Disse Eugenio,
saindo daquele estado de transe — E como assim meu avô a
imaginou?
— Sou eu Eugenio, a Elza 20, sou a personalidade deste
casarão, a imagem em pessoa dele. Agora além de me escutar, você
pode me ver, você pode até me tocar, quer me tocar? — Perguntou
ela dando mais um passo à frente.
— Não! Pare! Não dê mais um passo, não vou tocar em você, eu
achava que você fosse apenas uma voz em minha cabeça, mas você é
de verdade? Pergunto, você existe mesmo? De carne e osso?
— Não seu bobo, eu sou fruto da sua imaginação, ou melhor,
fruto da imaginação do seu avô, mas pelo que vejo você tem muita da
criatividade dele, por isso pode me ver e ouvir. Não quer tentar me
tocar mesmo? Vamos, deixe de medo, eu não vou te morder, isto é,
só se você quiser... — Disse ela brincando e dando mais um passo à
frente.
— Eu já disse para você ficar parada, preciso pensar um pouco.
Você me deixa confuso, preciso saber se não estou delirando. —
Disse ele, passando a mão nos cabelos, pensando se não
enlouquecera.
— Deixe de ser medroso, venha aqui, me toque, veja como
minha pele é macia. Não quer me provar? — Perguntou ela com um
sorriso maroto no rosto.

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A imagem dela, naquele peignoir, com seu corpo perfeito e o
rosto delicado, fascinaram Eugenio. Os cabelos pretos em estilo
Chanel, denotavam a época em que o avô dele, o renomado
industrial Aristides Gouveia, havia construído o casarão.
— Não! Não vou te tocar até entender o que está acontecendo.
Aliás, estou me sentindo estranho, um pouco tonto — Disse Eugenio,
sentando-se na cadeira da escrivaninha.
— Deixe-me fazer uma massagem nos seus ombros, para você
relaxar — Disse ela aproximando-se dele.
— Está bem, o que adianta resistir? Esteja eu delirando, ou não,
não tem como resistir a você, que seja — Disse ele, enquanto ela se
posicionou por trás dele, tocando-lhe os ombros e começando a
massageá-los.
Isto é ótimo, estou adorando esta viagem. Será que aquele
queijo estragado que comi estava adulterado? Está parecendo que
tomei ácido lisérgico. — Disse Eugenio, sentindo uma mistura de
euforia e tranquilidade.
— Então, Eugenio, viu? Não lhe farei mal. Aliás, farei o que você
quiser, eu sou sua, só sua — Disse ela.
Enquanto alisava Eugenio, ela encostou um dos seios em suas
costas.
— Assim você me deixa maluco, Elza 20. Chega, já estou bem
melhor — Disse Eugenio, desconfortável com a situação.
Ele não entendia como podia estar sentindo desejos por algo
que ele nem compreendia o que era? Um fantasma quem sabe? Ou
seria uma miragem?
— Levante-se, Eugenio — Disse ela contundente. — Venha, me
abrace, me beije.
Eugenio levantou-se e ficou de frente para Elza 20. Ela apoiou
os braços nos ombros dele e o beijou. A princípio Eugenio ficou
desconfortável, mas não resistiu aos encantos dela. Agarrou Elza 20
com força e a beijou com prazer, com um desejo que nunca sentira
antes por outra mulher. Elza 20 era perfeita demais, nem em sonho a
teria imaginado melhor. Ao pensar nisso, lembrou-se de que quem a
criara fora seu avô. Isto o despertou e ele a afastou.

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— Elza, preciso lhe perguntar, você foi amante de meu avô?
Não posso tê-la, seria como trair a memória dele — Eugenio se sentia
confuso.
— Não seja ridículo, Eugenio. Sou livre, e seu avô não está mais
aqui. Sou toda sua agora. — Disse Elza 20, o abraçando novamente.
— Calma, Elza. calma... — e a fala de Eugenio calou-se com
mais um beijo.
— Venha, Eugenio, vamos para o quarto. Estou a quarenta anos
esperando por este momento, vamos logo. — Disse ela, puxando-lhe
pela mão.
Elza jogou Eugenio sobre a cama e pulou em cima dele como
uma onça. Ele não queria saber de mais nada e se entregou ao amor.
Quando Eugenio deu por si, depois de sair do que parecia um êxtase
sexual, sentiu como se estivesse no paraíso.

Tivera a melhor relação sexual de sua vida com alguém, ou


algo, que ainda não sabia explicar. “O que foi isto?” — Pensou ele,
tentando compreender. “Quer saber, não me interessa mais, não vou
tentar compreender, vou deixar rolar” — Pensou enquanto a
abraçava na cama, seu corpo nu junto ao corpo nu dela. Estava feliz,
como nunca estivera na vida. Até a luz que entrava pela janela do
quarto parecia mais viva. Sentiu como se estivesse em um completo
nirvana.
— Você foi maravilhoso, Eugenio. Nunca tinha experimentado
algo tão intenso. Acho que, com o passar do tempo, vocês homens
evoluíram muito na cama, seu danadinho — Disse Elza, acariciando
os cabelos de Eugenio.
De repente, ouviu-se um barulho que vinha da porta de
entrada da casa. Parecia que alguém a abrira e entrara.
— Você ouviu isto, Elza? Acho que alguém entrou na casa —
Disse Eugenio, dando um pulo da cama e vestindo o roupão.
— Sim, senti que a porta foi aberta. Tem alguém na casa —
Disse Elza, também se levantando. — Vamos ver quem é, mas tome
cuidado.
Eugenio passou pelo corredor de espelhos sem olhar para os
lados, pegou o primeiro objeto que viu para se defender: um castiçal
de prata que estava em cima do aparador da sala de jantar, e seguiu

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pé ante pé. Quando se aproximou do hall de entrada, pôde ouvir
algumas vozes.
— Será que o Eugenio está em casa, querida? Faz um mês que
ele não dá notícias. — Disse Eurico preocupado.
Eugenio percebeu que era a voz de seu irmão. Colocou o
castiçal sobre um móvel e seguiu para o hall.
— Que boas notícias lhe trazem, meu irmão? — Disse Eugenio
feliz.
— Não sei, querido. Parece que a casa está vazia e precisando
de uma boa limpeza. Veja esta poeira toda, ela não vê uma vassoura
há um bom tempo. — Disse Cecília, esposa de Eurico, irmão de
Eugenio.
— Meu irmão, estou aqui, vocês estão de brincadeira comigo?
— Disse Eugenio, sem perceber que ninguém o via.
— Vamos verificar nos quartos, é possível que ele esteja
dormindo. — Afirmou Eurico, indo em direção ao aposento de
Eugenio.
— Não, nada aqui. Somente a bagunça que ele costuma deixar.
Vamos ver nos outros quartos, querida. – Disse Eurico já
preocupado.
— Eugenio! Você está em casa? — Gritou Cecília, sem ouvir
resposta.
— Como vocês não me veem? Estou bem aqui! — Gritou
Eugenio.
— Nada, querido! Acredito que ele não está. Vamos entrar em
contato com ele. Eu mencionei para você que deveríamos ter
telefonado antes que viéssemos. Fizemos essa viagem em vão.
Eurico liga para o celular de Eugenio e, de repente, eles ouvem
o barulho de um celular tocando.
O som do telefone parece vir da adega. Será que ele está lá?
Será que ele deixou o telefone em casa? — Pergunta Eurico com um
semblante de preocupação.
— Sim, parece mesmo que vem de lá, mas o que o celular dele
está fazendo lá? Será que aconteceu algo? — Disse Cecília, uma loira
de meia-idade ainda bonita, vestindo um casaco de lã pesado.
— Meu irmão é muito distraído. Pode ter esquecido lá, vamos
ver. — Disse Eurico, desligando o celular e colocando no bolso de seu

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blazer. Eurico sempre vestia blazer, ele sempre era muito sério. Seu
hábito de vestir parecia mais um uniforme do que uma vestimenta,
ele achava que o blazer o deixava mais magro, algo que sempre quis
parecer, mais magro, pois desde criança fora um pouco acima do
peso, e sofrera muito bullying quando da época de escola.
O casal desce a escada que leva até o porão onde fica a adega,
encontram-na com a porta entreaberta e as escuras. A princípio,
parecia não ter ninguém. Eurico acendeu a luz e os dois levaram um
susto. Eugenio estava estendido no chão, de bruços, parecia morto.
Eurico correu para acudir o irmão, percebeu que ele ainda
respirava.
— Querida, ligue para a emergência, chame uma ambulância!
— Grita Eurico após ver que Eugenio estava vivo. — O que você
aprontou desta vez meu irmão?
Um corte profundo na testa e uma mancha de sangue no chão,
demonstravam que Eugenio caíra e tivera uma concussão cerebral,
pelo menos é o Eurico pensara.
Eugenio, seguira Eurico até lá, ele entra na adega e vê que seu
próprio corpo, está estendido no chão, algo que o fez entrar em
desespero.
— O que aconteceu comigo, Elza? O que é isto? — Pergunta
Eugenio, olhando para Elza que estava ao seu lado.
— Como assim, Eugenio? O que está acontecendo? Você não se
lembra? Teve uma queda de tão bêbado que estava, e ainda tentando
pegar mais uma garrafa de vinho. Mas não se preocupe, você está
vivo. Está tendo apenas uma Experiência de quase morte, uma EQM
como dizem, fora isto está tudo bem, ou como acha que pode me
ver? — Pergunta Elza a Eugenio, que parecia atônito.
— Como assim EQM? Quer dizer que eu estou fora do meu
corpo?
— É claro, Eugenio, mas não se preocupe, não se desespere, vai
ficar tudo bem, você ainda está vivo. — Disse Elza novamente, para
acalmá-lo.
Passados quinze minutos, os paramédicos chegam à casa, e ao
examinarem Eugenio, confirmam as suspeitas da concussão cerebral
de Eurico. Com cuidado colocam um colar cervical a volta de seu

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pescoço, e em seguida o colocam sobre uma maca e o levam às
pressas para a ambulância.

Eurico, que os seguira, entra na ambulância perguntando para


qual hospital levariam seu irmão. Os paramédicos informam que
iriam para o Hospital das Clínicas, fecham as portas da ambulância e
partem.
— Não se preocupe, querido. O Hospital das Clínicas é
conhecido pelo seu atendimento emergencial, o melhor da cidade.
Dê-me as chaves e entre no carro, eu vou dirigindo, você não está em
condições. — Disse Cecília, pegando as chaves do carro.
Após a ambulância passar pelo portão do casarão, Eugenio,
que estava ao lado de Elza vendo tudo o que acontecia, começou a
desaparecer.
— O que está acontecendo Elza? Me ajuda. — Diz Eugenio,
enquanto desaparecia.
— Fica comigo Eugenio. — Disse Elza, desaparecendo também,
ao mesmo tempo em que Eugenio desaparecia.

Após passada uma hora, já no hospital, e depois dos médicos


analisarem a tomografia feita em Eugenio, o levaram para a Unidade
de Terapia Intensiva, fizeram os procedimentos de hidratação
intravenosa, e colocaram uma sonda nasogástrica para sua
alimentação e medicação.
Um dos médicos, um senhor alto, grisalho, aparentando
serenidade, apareceu na sala de espera. Informou a Eurico e a Cecília,
que Eugenio tivera com a queda uma forte concussão que o levara a
ter uma lesão cerebral leve e que havia formado um coágulo interno
extenso. Eugenio se encontrava em estado de coma, mas que era
reversível. Não poderiam prever quando ele recobraria os sentidos.
Também disse que o que podiam fazer naquele momento, era
aguardarem a reação dele aos medicamentos e que o mais
importante no momento era a dissipação do edema. Enquanto isso,
ele ficaria sob alimentação nasogástrica e hidratação intravenosa.
Pediu a eles que esperassem com paciência sua recuperação.
O médico disse também que, pelo que pode ser observado,
Eugenio estava há alguns dias naquela situação, e que estavam

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espantados com a sobrevida dele. Pelo que parecia a única
explicação era a de que com o tempo frio do inverno, as funções
fisiológicas do corpo desaceleraram, e o metabolismo reduzido
mantivera-o vivo.
Eurico agradece ao médico pelas informações e vira-se para
Cecília dizendo — Desta vez Eugenio passou dos limites, temos que
fazer algo, justo agora que precisávamos dele... tinha que aprontar
mais esta?
— Eu sei, querido, mas vamos ser pacientes e torcer para que
ele saia logo desta situação. Pelo que o médico nos informou, ele é
mais forte do que imaginamos. — Disse Cecília, tentando animar o
marido.
— Com ou sem ele, vamos concluir a venda do casarão. Eu ia
conversar com ele sobre isso hoje, aproveitar o dia do seu
aniversário, era para ser uma surpresa. Afinal, estamos há um bom
tempo tentando vender aquela casa velha que é mais um mausoléu
da família do que uma habitação, e ela só vale pelo terreno. Mas, pelo
que podemos ver, ele parece grudado àquela casa, isto não é normal,
e isso não pode fazer bem para ele. Eugenio precisa de uma vida
nova. Vou completar a venda mesmo sem a sua aprovação, vou usar
a procuração que ele me passou um tempo atrás, ele sempre confiou
em mim, outra oportunidade desta não aparecerá tão cedo.

Passados seis meses do coma de Eugenio, e após várias idas e


vindas ao hospital, Eurico, em seu escritório no L’. Office Tower,
recebe um telefonema: Eugenio acordara.
Entusiasmado, algo raro em Eurico, ele pega as chaves do carro
e parte imediatamente para ver Eugenio. Desce os trinta e cinco
andares pelo elevador do edifício pensando em como iria contar as
boas novas sobre o casarão, e mais do que tudo, dar uma boa bronca
no irmão.
Ao entrar no quarto onde Eugenio estava, Eurico vê seu irmão
acordado, bebendo um suco de laranja. Imediatamente, Eugenio
também vê seu irmão na porta do quarto e solta uma das suas
tiradas — E aí, brother! Qual a boa?
— Qual a boa, seu malandrão? A boa é que você está vivo!
Caramba, Eugenio, desta vez você foi longe demais, mas eu te

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perdoo. Só não vá me aprontar mais uma dessas. — Disse Eurico
abraçando o irmão.
— Calma, Brother! Não me aperta tanto, se não assim você
acaba me matando. — Disse Eugenio, sentindo-se feliz por estar vivo
e podendo abraçar o irmão.
Passada a emoção do reencontro, Eugenio pergunta — Mas
agora é sério, o que se passou no mundo nestes seis meses em que
fiquei apagado?
— Além de você ter me deixado com alguns cabelos brancos a
mais, nenhuma novidade, o mundo sem você não tem graça, ele se
torna um marasmo só! — Disse Eurico, feliz.
— Não, me diga, você tem alguma novidade? — Pergunta um
Eugenio sério, pressentindo que algo estava errado.
—Tá, eu tenho boas novas. Lembra-se que estávamos
vendendo o casarão? Pois então, meu irmão, vendemos. Ganhamos
um bom dinheiro com a venda. Construíram duas torres lá. — Disse
Eurico, animado.
Como assim? Vocês venderam a Elza 20? — Perguntou Eugenio,
lembrando-se do sonho que tivera com “ela” e sentindo uma mistura
de saudade e malícia ao mesmo tempo.
Sim, vendemos. Mas como você gostava tanto do casarão,
reservamos um apartamento em um dos edifícios para você. Estará
pronto em um mês, tempo suficiente até que você esteja recuperado
e saia do hospital. Os médicos disseram que você vai precisar de
algumas sessões de fisioterapia, mas que sua recuperação está sendo
excelente. — Disse Eurico, abrindo um largo sorriso, animado.
Pode parecer doido, mas enquanto eu estava em coma tive
uma experiência incrível. Sonhei que a Elza 20 era uma linda mulher,
não digo o casarão, mas a personalidade dele, era uma mulher viva, e
tenho que te dizer meu irmão, que mulher linda! Pena que não
passou de ilusão. — Disse Eugenio, sentindo uma ponta de tristeza
pelo sonho não ter sido real.
— Não deve ter sido fácil para você ficar este tempo todo
apagado, mas não se preocupe. Guardamos os móveis do casarão
em um depósito e você pode ficar com eles. O restante vendemos
para um antiquário. Existem muitas relíquias do vovô lá. — Explicou
Eurico.

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— Sim, vou querer algumas peças, principalmente algumas
coisas da biblioteca. Tem um mapa em especial e aquela mesa de
trabalho de ébano. Já os espelhos. Esses quero longe de mim. —
Disse Eugenio ansioso.
Mas porque não quer os espelhos? São de cristais da melhor
qualidade. — Perguntou Eurico.
Nada, é algo meu, algo de quando eu ainda era criança. —
Disse Eugenio, recordando-se dos fantasmas dos espelhos. — Não
vejo a hora de partir daqui e retomar a vida.
O mês passou vagarosamente para Eugenio, os longos
exercícios diários já o estavam deixando cansado. Mas enfim,
recuperou-se, e com a ajuda do irmão conseguiu fazer a mudança
para o novo apartamento. Eugenio estava feliz com o novo lar, mas,
ao mesmo tempo, saudoso do antigo casarão. Mobiliou o
apartamento com alguns móveis novos e outros do depósito, mas o
principal para ele era manter a biblioteca do jeito que era, para isto
aproveitou um dos quartos do apartamento. Apesar de não ser tão
espaçoso quanto a antiga biblioteca, conseguiu espaço para algumas
estantes, e o mais importante, mantivera a mesa de ébano. Até a
porta pesada em estilo art noveau ele fez questão de salvar e instalar.
Do alto de seu apartamento, ele tinha uma vista para todo o
bairro, algo que antes não podia ter.
Apesar de tudo, dos planos para a nova vida que levaria,
Eugenio sentia nostalgia da antiga Elza 20. — “Será que tudo não
passara de um sonho mesmo? Ou teria sido algo verídico? Não, não
podia ter sido verídico, afinal, estava em coma” — pensou ele. — “Mas
como desejava que aquilo fosse real...”.
Eugenio, enfim instalado em seu novo apartamento, entrou na
nova biblioteca, foi até a antiga estante a direita e apanhou a planta
do casarão desenhada em pele de carneiro, ela estava do jeito que
ele se lembrava no sonho. Era a mesma planta que encontrara no
meio dos livros guardados no depósito. “Acha-la não podia ser mera
coincidência, afinal, nunca vira aquela planta antes, não antes do
sonho” — Pensou ele enquanto fechava as cortinas como Elza 20 o
ensinara, naquele maluco sonho. Foi até a mesa acendeu o abajur
com sua cúpula de vidro verde art noveau e esticou a planta, alisou-a
com todo carinho e esperança, colocou alguns pesos para segura-la

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no lugar. Fechou os olhos com todo o desejo que guardara dentro de
seu coração e deixou sua imaginação fluir.

Após alguns minutos naquele devaneio, ele ouviu uma voz.


— Olá, Eugenio. Por que demorou tanto? Eu estava este tempo
todo a sua espera.
Eugenio abriu os olhos, esperou alguns segundos até que sua
visão clareasse, e percebeu um vulto no canto da biblioteca. Não
conseguia acreditar. — “Será ela? Como?” — Pensou, paralisado de
emoção.
O vulto deu um passo à frente e Eugenio, em uma mistura de
espanto e emoção, ficou deslumbrado. Era ela: Elza 20. Mais linda do
que nunca.
Mas co... como assim? É você mesmo, Elzinha? — Perguntou
Eugenio, murmurando e gaguejando, enquanto se beliscava para ver
se não estava sonhando ou em coma. Não, ele não estava sonhando,
estava bem vivo e acordado.
— Mas como pode ser? Você é real? Não é sonho? — Perguntou
Eugenio maravilhado.
Sou eu, querido. Elza 20, Bloco A, Cobertura. A mesma Elzinha,
contudo, agora renovada e mais real do que nunca. E o melhor de
tudo! Inteiramente sua, só sua.

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