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ou
"O SOM, O TEMPO E A PERDA"
ou
"PURA PERDA DE TEMPO"
matheusaxn@gmail.com
Setembro de 2023
Personagens:
João;
Maria Luíza;
Fabrício;
Bruno;
Avó;
Garcia;
Estudantes/funcionários.
Sinopse:
Enquanto tenta conciliar seu tempo para dar conta do ensino médio, de um familiar
hospitalizado e de sua melhor amiga, João recebe um violão misterioso de sua avó. Após
descobrir do que o instrumento é capaz, e se meter em algumas irresponsabilidades, o
garoto enfim começa a entender um pouco mais sobre a brevidade da vida, as prioridades
da juventude e o poder transformador que a arte tem.
Prólogo
Um garoto entra em cena pela esquerda e atravessa o palco com mochila nas costas e
cadernos na mão. Uma senhora entra um pouco depois pela direita e cruza com ele no
terço final do palco.
VÓ – Olha aqui, seu tio tá saindo pro hospital agora. Se tu se aprontar rapidinho, dá
tempo de ir com ele…
JOÃO – Prefiro ir com calma... outra hora, vó. Tem visita todo dia, não tem?
VÓ – João…
JOÃO – Você tá preocupada com ele. Né, vó? Fica assim não, o vô é forte. Ele
aguenta.
JOÃO – Pois tô entrando em semana de prova, te disse. Não tenho tempo, vou
passar o fim de semana estudando.
VÓ – Olha sua idade, você tem todo o tempo do mundo. Quem talvez não tenha
mais tempo é… é o seu vô.
JOÃO – E logo mais ele volta aqui pra senhora, vai dar tudo certo. Ele vai ficar bem.
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O garoto vai saindo pelo canto direito do palco quando sua avó, muito pensativa, o chama
de volta.
No meio do palco, ela retira de dentro das cortinas um case de violão. Dá umas batidas com
a mão pra tirar o pó e dá ao garoto.
VÓ – Ele começou a aprender pra tocar no nosso casamento! Segunda quando você
voltar do hospital eu te conto todas as histórias. Talvez ele nem lembre de tudo, mas
eu lembro. Se você ir lá eu te conto tudinho, só depois que você ir.
VÓ – Ele ficou esperando sua visita a semana toda, João. Tô te dando logo o
presente pra você entender que é importante.
JOÃO – Será que meu tio me espera? Dá tempo de ir com ele ainda?
JOÃO – Ah, vozinha. Não era pra ser hoje mesmo então. Mas segunda eu vou lá, já
aproveito e conto pro vô se eu consegui tocar alguma coisa.
Os dois se abraçam e o rapaz sai para trás das cortinas apressado, agora carregando
também o violão nos braços. A senhora sai lentamente enquanto leva o olhar para a direção
em que ficaria a rua que leva ao hospital.
Sem ninguém no palco. O violão começa a ser tocado nos fundos, fora da vista da plateia.
Primeiro, alguns sons repetidos para testar a afinação do instrumento. Logo após, algumas
notas suaves, tocadas de forma lenta enquanto luzes de holofote são apontadas para a
direção da cortina no mesmo instante em que cada nova nota é dedilhada.
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Cena 1
Sala de aula
Maria Luíza está guardando suas coisas para sair pro intervalo mas, ao ver que Fabrício
ainda está na sala, senta-se de novo para sair ao mesmo tempo que o rapaz. Os amigos de
Fabrício saem na frente enquanto ele fica para trás pois deixou cair seu estojo.
MALU – Bom, tomara que tu tenha chutado a letra B então pois tenho quase certeza
que é a certa.
MALU – Ora.. pra ter certeza? Eu disse, é… que tenho QUASE, né? Quase não é
100%, é quase.
MALU – É que você parece inteligente, sabe? Deve ser inteligente. Queria confirmar
se acertei.
MALU – Hmm, você não veio nessa aula. Faltou esse dia.
MALU – Ah, eu.. ah, desculpa! É que foi uma aula muito boa, sabe? Me marcou,
mano. Fiquei triste por quem perdeu. Você perdeu, né?
FABRÍCIO – Sei.
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MALU – Desculpa, tô parecendo estranha, né? Desculpa. Mas se você, sei lá, quiser
ajuda pra estudar na próxima… é só falar. Sempre anoto tudo…
Cena 2
Sala de aula
João entra correndo até sua amiga com mochila na mão e violão nas costas. Maria Luíza se
assusta com a entrada repentina do garoto.
MALU – Eu te mandei foto de todo o meu caderno em vão? É isso? Você viu
quantas páginas eram?
MALU – Pirou de vez, mano? Além de atrasado, ainda trás um violão pra escola?
Nem sabia que podia entrar com isso aqui.
MALU – Vai montar uma banda, socorro… eu vou parar de andar contigo! Eu paro
mesmo.
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JOÃO – Naaaão, senta aqui. Deixa eu te mostrar, vem cá.
MALU – Com 10 anos de idade, né? Faz quanto tempo que tu não vai na igreja,
garoto?!
JOÃO – Mas é por isso mesmo que... olha, deixa eu te explicar. Eu ganhei ele do
meu vô.
JOÃO – Na verdade, da minha vó, mas foi pedido dele. Ele me deu mas foi ela que
entregou, me escuta.
JOÃO – Justamente por não pegar num violão há tanto tempo, eu fiquei arranhando
qualquer coisa, fiquei tentando lembrar qualquer nota e… e aí aconteceu!
MALU – Descobriu que vai largar a escola e viver de música? Vai viver da sua arte?
JOÃO – Não, eu descobri que algumas notas.. quando eu toco alguns acordes,
numa ordem específica. Eu ainda tô treinando, passei o fim de semana todo
tentando…
JOÃO – Num tive tempo. Eu fiquei estudando isso aqui (apontando para o violão).
MALU – Então, em vez de usar seu tempo pra escola, você escolheu gastar ele
com… VIOLÃO?
JOÃO – Mas não é só futuro que existe, e o presente? Não é importante também
não? Pura perda de tempo?
MALU – Se te faz parar de estudar, é perda de tempo sim! Olha, eu não fico só
desenhando. Eu amo desenhar, mas estudo também! Tem que estudar…
JOÃO – Não consegui, Malu. Foi ficando cada vez mais especial. Era como se eu
estivesse escrevendo um texto, formando frases… só que com música, sabe?
MALU – Quê?
JOÃO – Eu não sei se esse violão é mágico, se sintonizei numa afinação milenar
proibida ou se sou eu que nasci com um super poder nos dedos que só tô
descobrindo agora mas…
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MALU – Tá vendo, é por isso que o Fabrício não me dá bola! Olha o tipo de gente
que eu tô andando.
JOÃO – Malu, é sério! Eu descobri uma linguagem própria, é como se fosse uma
linguagem só que feita de som. Imagina, se cada nota fosse uma palavra, e eu
estivesse ali criando frases… rapidinho eu me toquei que poderia falar o que eu
quisesse, com música! Era só estruturar tudo direitinho de jeito que fizesse sentido
e…
MALU – Mas toda música já não é assim? Não é isso que compositor faz? Ok, volta
do início. Você percebeu o quê?
Maria Luíza finalmente se senta ao lado de João para ouvir sua explicação, enquanto o
rapaz vai tirando o violão de dentro do case envelhecido.
JOÃO – Olha, vou te contar como foi que eu descobri. Quando eu tava no meu
quarto tentando tocar qualquer coisa, percebi que - do nada - pousaram três
passarinhos na minha janela.
JOÃO – Juro! É estranho, um casal seria mais comum, né? Mas foi um trio! E aí, me
senti todo todo. Imaginei que estavam gostando do som. Só podia ser isso, vieram
me ouvir tocar.
JOÃO – Mas foi só mudar de nota que os três saíram! Ao mesmo tempo, sumiram
no mesmo segundo.
JOÃO – Se a história acabasse aí, mas não… se liga, eu tentei repetir a nota que
toquei antes e, depois de umas tentativas, consegui repetir o mesmo som, do
mesmo jeitinho. E chuta o que aconteceu? Sim, ELES VOLTARAM!
MALU – Ok, ok. E você trouxe o violão pra poder me provar, certo? Ninguém vai
acreditar nisso. Eu, que sou tua amiga, não acredito.
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JOÃO – Por isso vou te mostrar, e só pra você! Ninguém mais pode ver isso não,
Malu. Cê não tem ideia, eu fiz eles saírem e voltarem umas cinquenta vezes até ter
certeza…
MALU – Vou abrir aquela janela e se não tiver um passarinho ali no instante em que
você tocar, eu…
JOÃO – Não, boba. A história não acabou ainda, de novo, se fosse só isso… vem
cá.
MALU – O quê?
João toca a mesma nota, só que de baixo pra cima. No mesmo momento, Maria Luíza se
levanta.
JOÃO – Viu!
MALU – Garoto…
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João repete a primeira nota e, de novo, Maria Luíza se senta no exato momento em que ele
a toca.
JOÃO – Te disse, acha que depois dos passarinhos eu não cheguei a tentar com
minha vó? Sim, eu tentei!
Sem palavras, Maria Luíza permanece com a boca aberta na frente do garoto que, depois
de alguns segundos, toca alternadamente as notas anteriores por 4 ou 6 vezes. Ela senta e
levanta repetidamente na mesma velocidade em que o som é tocado.
JOÃO – Eu te disse!
MALU – E olha que eu sou uma menina estranha, de coisa estranha eu entendo…
JOÃO – Malu, pra que fazer prova? Eu posso fazer a professora lançar a nota que
eu quiser! Eu posso mandar me aprovarem em qualquer matéria.
MALU – Você tá maluco? Com grandes poderes… Você não pode usar sua melodia
para o mal! Vamos traçar os limites agora mesmo, eu não vou virar melhor amiga de
supervilão não.
JOÃO – É só eu achar uma sequência de acordes que, sei lá, posso acabar fazendo
ele se apaixonar por qualquer pessoa.
MALU – Pois trate de continuar aprendendo então, aprende logo aí. Você tem que
fazer o bem, né? Por que não começar fazendo o bem pra sua amiga mais antiga?
JOÃO – Agora você tá me entendendo! Esquece, é óbvio que eu não vou mexer
com o coração de ninguém. Mas tá vendo o potencial infinito disso aqui? É surreal.
JOÃO – Amiga, a gente pode mudar nossas vidas. Podemos mudar QUALQUER
vida, podemos mudar O MUNDO!
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Cena 3
Sala de aula
BRUNÃO – Uaaau… tá tocando Legião pra ela, magrelo? Peguei vocês no flagra.
Atrapalhei o casalzinho, não atrapalhei?
BRUNÃO – Bonitinhos vocês dois aqui, perceberam que nunca vão beijar ninguém e
decidiram dar umas lambidas um no outro só pra ver como é?
BRUNÃO – Ei, isso é jeito de falar comigo? Eu só elogiei vocês dois, já é mais do
que merecem. Vai espremer essas espinhas da cara!
BRUNÃO – Aaaaanda, João! Faz comigo, faz. Sua namoradinha tá pedindo… seja
homem!
Bruno ri enquanto debocha dos dois. Alguns alunos vão entrando aos poucos ao escutar a
confusão. Ficam observando dos cantos.
BRUNÃO – Coitado, ele ficou com medinho. Tá vendo? Melhor trocar de namorado,
moça. Esse daí não vale muito não.
João puxa Maria Luíza e os dois vão seguindo em direção a saída, só que - aparentemente
- Brunão estende o pé na frente. João tropeça, quase caindo no chão.
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MALU – OU, NÃO FAZ ISSO COM ELE!
Maria Luíza vai pra cima de Bruno com raiva e o empurra com força. O rapaz cai rolando
pelo palco, mas logo se levanta novamente. Mais alunos vão entrando em cena. A sala já
está quase completamente cheia.
Bruno vai andando com o dedo apontado para Maria Luíza enquanto levanta o tom de voz
com ela. Até que Fabrício se coloca entre ele e a garota.
BRUNÃO – Quem te chamou aqui, bonitão? Não se mete que num é contigo!
Fabrício continua entre os dois, agora levantando também a voz para Brunão.
Bruno, agora assustado com Fabrício, finalmente se cala, sem tirar a cara de raiva do rosto.
Todo o palco fica em silêncio. Todos os estudantes ficam apreensivos.
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MALU – É MARIA LUÍZA!
Fabrício se vira pra segurar Maria Luíza e fica de costas para Bruno, que agora cruza o
palco enfurecido em direção aos dois enquanto grita:
BRUNÃO – Você tá achando que manda aqui? Você? Eu fico quieto a hora que eu
quiser sua filha da..
Cena 4
(Musical)
Sala de aula
Antes mesmo que Brunão termine o xingamento, João começa a cantar e tocar seu violão,
sentado no canto da sala.
Bruno vira somente o tronco em direção a João, sem mover os pés do lugar, já sendo
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controlado pelo garoto.
(Bate o pé no chão enquanto estica o braço para saudar a turma após tocar a última nota)
NÃO, NÃO!
(Toda a turma bate duas vez o pé no chão, inclusive Bruno, acompanhando o som dos
"nãos")
Bruno segura sua perna direita com as duas mãos, assustado. Ao mesmo tempo que João,
Bruno bate o pé esquerdo no chão, já que está segurando a perna direita.
(bate o pé no chão)
Bruno, com as mãos nos joelhos, se abaixa e sobe rapidamente como se estivesse
dançando funk.
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Bruno vai dançando exatamente do Jeito que está sendo cantado, enquanto reclama:
E a música continua:
MALU – João!?
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BRUNÃO – PARA com isso! AGORA!
BRUNÃO – Naaaaaaaaaaão.
Exclama Bruno, de forma triste e lenta. E a música segue para a estrofe final:
MALU – Ah, mano… ele deve estar ensaiando pra apresentar na Sextalentos mês
que vem.
ESTUDANTE B – Tá de parabéns, Brunão. Sabia que você era bom assim não.
ESTUDANTE A – MUITO!
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Furiosa, a coordenadora Garcia entra na sala. (Mesma atriz que faz a vó, com outro
figurino).
Cena 5
GARCIA – Onde vocês pensam que estão? Tem gente fazendo prova do lado, tem
gente fazendo prova em cima, tem gente fazendo prova embaixo…
GARCIA – O professor Bento bateu de carro, vocês farão a prova dele na semana
que vem. Os quatro aí (apontando para João, Maria, Fabrício e Bruno, que estavam
na frente), pra minha sala, agora! Hoje vão passar a tarde comigo de detenção, o
resto da turma pode ir pra biblioteca estudar pra prova de amanhã. Meio dia estão
liberados.
João vai até a frente do palco guardar o violão dentro do case. Malu, Fabrício e Brunão
seguem a Coordenadora para fora do palco enquanto discutem sem parar um com o outro.
JOÃO – Não, eu tô bem! Só cancela com o tio, eu não vou conseguir ir pro hospital
com ele hoje… não vai dar.
JOÃO – É, eu sei. Eu sei… mas deu tudo errado aqui. Vou ter que passar a tarde na
escola. Peguei uma detenção.
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Ele vai andando em círculos pela frente do palco enquanto continua falando pelo celular.
JOÃO – Eu sei. É, não precisa me esperar pro almoço. Eu como aqui na escola.
JOÃO – Não, eu não prometi da outra vez não. Foi? Ah… então não vou prometer
de novo. Já não consegui cumprir.
JOÃO – Perdão, vozinha. Pede desculpa pro tio também. Mas te juro, vai dar tudo
certo.
Assim que João desliga o celular, as cortinas são abertas novamente no fundo revelando a
sala de detenção onde os três outros delinquentes já estão sentados esperando. Bruno está
com um curativo no braço, por ter se cortado durante a queda (o ator usará essa faixa
quase até o fim da peça).
Cena 6
Detenção
Com o violão nas costas, João vai se aproximando de Maria Luíza, que se levanta pra falar
com ele.
MALU – Jão, por que tu não fala pra ela que precisa ir visitar teu vô? Ela vai
entender, fala que é importante.
JOÃO – Porque eu já disse que tinha feito isso hoje. Eu cheguei atrasado, ela só
deixou eu entrar porque eu falei que tava no hospital, que tinha ido ver ele antes de
vir pra cá.
Maria puxa seu amigo para longe dos outros garotos e continua falando, mais perto do seu
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ouvido:
MALU – Então para o tempo, usa o violão e faz o tempo parar. Vai lá rapidinho e
volta aqui, sem ninguém perceber que saiu.
JOÃO – Não dá, parece que só funciona com seres vivos. Acho que, pra dar certo,
tem que ser algo que escuta, algo ou alguém que tenha ouvidos. Não consigo mexer
no tempo, só com pessoa. Nem com objeto, já tentei. Eu não conseguiria nem parar
os ponteiros do relógio, se quisesse, imagina parar o TEMPO.
MALU – Então toca algo pra coordenadora, faz ela liberar a gente. Ela já deve estar
voltando.
BRUNÃO – Vocês dois… (pequena pausa) obrigado! Eu viralizei mesmo, olha isso.
BRUNÃO – É sério, olha aqui (mostrando a tela do celular). Nunca vi esse tanto de
número, bonitão.
BRUNÃO – Por isso tô agradecendo esses dois, fizeram magia! Aquilo ali foi
mágico. (Enquanto abraça João e Maria Luíza).
FABRÍCIO – Pra você… Já eu, me ferrei. Vocês me ferraram. Vou perder minha
educação física agora de tarde! Em vez de ir pra quadra, vou ter que ficar aqui.
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Fabrício aponta para João e logo sai andando atrapalhado com uma flauta imaginária sendo
tocada em sua boca enquanto, diz:
FABRÍCIO – Eu? Esse garoto aí que nos enfeitiçou como um flautista e foi tocando,
tocando, até que trouxe a gente tudo aqui pro buraco.
BRUNÃO – E não foi incrível? Você mesmo disse, todo mundo tava gostando! Deixa
eu ver se consigo tocar essa música também…
Bruno estende a mão e pega o case do violão. João e Maria Luíza, reagindo na mesma
hora, não soltam a alça do instrumento.
BRUNÃO – Ué, que foi? (Percebendo o exagero dos dois). O que tem aí dentro?
BRUNÃO – Deixa eu ver o que vocês estão escondendo, agora eu fiquei curioso.
Bruno faz força e retira o instrumento das mãos dos dois amigos. Vai andando até uma das
cadeiras enquanto abre o case para retirar o violão. Maria Luíza e João vão andando atrás,
preocupados.
Bruno, agora sentado com o violão pronto nos braços, se prepara para tocar.
JOÃO – Você não vai saber as notas, me dá aqui que eu te ensino a tocar aquela.
Eu te ajudo.
BRUNÃO – Deixa eu tentar, vai que consigo de memória. Me fala os acordes que eu
tento pegar.
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No exato momento em que Bruno levanta a mão para tocar, a coordenadora entra no palco,
interrompendo a ação. Ela retira o violão das mãos de Bruno.
GARCIA – Ei, ei, ei, nada disso. Guarda isso agora! Vocês querem ganhar a
detenção da detenção? Já não fizeram barulho o suficiente hoje? Que palhaçada é
essa?
FABRÍCIO – Mãe, qual é? Eu não posso ficar aqui hoje, tenho educação física. Hoje
eu jogo futebol com os meninos.
GARCIA – Fabrício Garcia, senta ali agora! Quem manda aqui sou eu.
GARCIA – Mas vai ficar, HOJE! Já avisei os responsáveis dos três e a responsável
sua, veja só, sou eu. Fiquem quietos, eu vou tirar esse violão daqui e já volto! Nem
um pio.
FABRÍCIO – É por isso que ela tá pegando pesado, pra dar exemplo. Pra mostrar
que não pega leve só porque é com o filho dela. Nos ferramos por causa disso.
A coordenadora volta pro palco, já sem o violão, e novamente se dirige aos alunos.
GARCIA – Vamos lá, agora me expliquem. Por que trouxeram um violão em dia de
prova? Logo hoje? Balançar o bundão até o chão?
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Todos permanecem em silêncio.
BRUNÃO – Foi ideia dele, fazer um ensaio pra turma. É, logo hoje… é que a gente
tá nervoso com a apresentação mês que vem. Já tá chegando, né?
JOÃO – Não é banda, só vamos cantar juntos! Montamos um grupo de canto, nós
somos… nós somos os SELVAGENS (inventa após ler um cartaz escrito "vida
selvagem" em uma das paredes no fundo).
Maria Luíza estende a mão na frente do rosto. A coordenadora, agora esboçando um leve
sorriso, se vira para seu filho.
FABRÍCIO – Era pra ser surpresa… a gente tava ensaiando escondido, mãe. Queria
fazer surpresa pra você.
Responde o rapaz, ao perceber a empolgação de sua mãe, que logo volta a ficar séria:
GARCIA – Pois bem. Não ensaiem mais aqui, vocês terão as tardes pra isso. E
tratem de ensaiar mesmo, a apresentação de vocês vai valer nota.
GARCIA – Pra vocês, vai ser ponto obrigatório! As provas dessa semana vão estar
valendo metade da nota. Querem tocar na escola? Vão tocar na escola sim, mas no
lugar e na hora certa.
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GARCIA – Nada disso, aqui você me chama de Dona Garcia! E agora vem cá, você
e Bruno. Me ajudem a carregar essas caixas pra biblioteca,
GARCIA – Então vêm, João. Bom que já vai malhando os bracinhos. E vocês dois
(apontando para Bruno e Malu) esperem aí, se comportem.
A coordenadora sai do palco acompanhada por Fabrício e João, que carregam algumas
caixas que estavam no canto da sala.
Cena 7
Detenção
BRUNÃO – O que te deixou com raiva mesmo foi ter chamado vocês dois de
namoradinhos, você tá é apaixonada pelo filho da coordenadora! Por isso.
MALU – Olha aqui, a gente vai acabar brigando de novo! Tu fica quieto no seu
canto.
BRUNÃO – Tem problema nenhum nisso… Muita gente gosta dele, muita garota
gosta. Já viu ele jogando bola? As pernas grossas correndo, é óbvio que devem
gostar. Claro que gostam, você gosta com certeza!
BRUNÃO – …VOCÊ!
BRUNÃO – Tá bom, eu vou pro meu canto. Você ganhou, é maluca mesmo.
Irritado, Bruno se levanta e arrasta sua cadeira para o canto oposto do palco.
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MALU – Faz sentido, tem gay que é misógino mesmo.
BRUNÃO – Claro que não, eu sou filho de pastor! Não tem como ser gay, eu não
sou não. Para com isso.
MALU – Entendi, é reprimido em casa e por isso fica descontando sua raiva com a
gente na escola. Já entendi tudo.
BRUNÃO – Desisto…
BRUNÃO – E você precisa se enxergar, o Fabrício nunca sairia com alguém como
você. Tem espelho em casa?
BRUNÃO – Ah, duvido. Se eu fosse gay, SE eu fosse. Com certeza teria mais
chances que você…
BRUNÃO – Se ele te beijar até o fim do ano, eu vou lá e beijo ele também. Só pra te
mostrar o quanto que eu não sou gay! Não interfere nadinha na minha sexualidade,
consigo beijar ele tranquilamente.
BRUNÃO – O último dia letivo vai cair na sexta, no dia do evento. Você tem até o dia
da sextalentos pra conseguir um beijo dele! Unzinho só.
MALU – Você fica com o violão do João! (enquanto aponta para o case vazio no
chão da sala). A gente te dá ele. Vai poder ficar gravando pro TikTok.
BRUNÃO – Feito!
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Cena 8
(Musical)
Cortinas fechadas
A vó de João sai de trás das cortinas por um dos cantos varrendo o chão enquanto
cantarola devagar:
VÓ – És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho… tempo, tempo, tempo,
tempo.
A medida em que vai varrendo pelo palco, começa uma pequena dança com a vassoura na
mão.
O violão começa a ser tocado no fundo, atrás das cortinas, e a senhora começa a de fato
cantar, agora mais alto.
VÓ – Compositor de destinos
E pareceres contínuo
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Enquanto continua tocando o violão, João sai lentamente de trás das cortinas e se junta a
música:
E o movimento preciso
Sorrindo e dançando pelo palco, os dois cantam juntos. Atrás das cortinas, palmas
começam no ritmo da música.
E eu espalhe benefícios
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A música termina com um abraço apertado entre o neto e sua avó.
VÓ – Poxa, eu falei pra tua mãe não te tirar da católica. Se tivesse crismado, seria
um menino de fé até hoje.
JOÃO – Espera, cê não disse que ele aprendeu pro casamento? Vocês já estavam
juntos, né? Ele só começou a tocar depois que te conheceu, certo?
VÓ – Eu acho que não, agora não lembro direito. Faz tanto tempo, meu filho. Tempo,
tempo, tempo, tempo… (cantarolando). Pergunta lá amanhã pra ele!
VÓ – Se preocupa não.
JOÃO – Ah, vó. A Malu vem aqui em casa hoje. Vai vir estudar comigo, daqui a
pouco deve estar chegando já.
VÓ – Pode deixar, eu mando ela subir! Ai, ai… não posso ficar dançando assim não,
meu joelho não aguenta mais não (passando a mão na perna).
A avó de João sai com sua vassoura por um dos cantos enquanto as cortinas vão se
abrindo aos poucos.
Cena 9
Com as cortinas abertas, João coloca sua mochila num canto e senta em sua cama. O
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garoto retira os sapatos, cruza as pernas em cima do colchão e apoia o violão na cabeceira
do móvel.
JOÃO – Sério que fez isso? Cê chegou a fazer isso com a vó?
MALU – CHEGUEI!
Maria Luíza entra em cena, jogando sua mochila com força em cima da outra. João se
assusta.
JOÃO – Ai, quer me matar? Bate na porta! Você chegou muito rápido.
MALU – Vim correndo, mano. Eu te disse, temos uma emergência. Desde o fim de
semana que você não olha o whatsapp. Nem tentei te ligar!
MALU – Não foi besteira, eu… eu só… apostei o seu violão com o Brunão…
MALU – Apostei com ele que beijaria o Fabrício até o fim do semestre.
JOÃO – Malu, eu acabei de te contar do violão e você já faz isso comigo? Você que
é minha supervilã!
MALU – Eu não pensei em nada na hora, precisava apostar alguma coisa. E mesmo
assim, é certeza que vamos conseguir!
MALU – SIM, com sua melodia! É só você fazer ele me beijar, só isso. Eu apostei
por ter certeza que conseguiria, poderia ter apostado qualquer coisa.
JOÃO – Eu não vou usar isso pra fazer alguém te beijar… quem seria capaz de algo
assim?
E os dois olham para o violão. Após alguns segundos, Maria Luíza responde:
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MALU – Seu AVÔ!
JOÃO – NÃO.
MALU – E mesmo assim, olha tudo que gerou depois. Toda sua família, essa casa,
seus primos, você… você só existe por causa desse violão! Porque seu vô usou
esse violão lá atrás pra conquistar sua vó.
JOÃO – Amanhã eu vou conversar tudo isso com ele, vou pedir pra me explicar
tudo.
MALU – Não, amanhã você vai me ajudar a sair com o Fabrício! Você não ouviu ele
falando? É a única tarde livre dele na semana.
MALU – E meu pai por acaso deixa? Com um garoto? Quantos anos tu acha que
tenho?
JOÃO – Amiga, eu não posso ficar tocando no ouvido dele pra sempre. Não tem
como eu fazer ele gostar de você por mais tempo do que a duração de uma música.
MALU – É, verdade… ou seja, melhor ainda. Você só vai fazer ele me dar uma
chance. Só preciso que ele saia comigo. É uma chance dele me conhecer, aí dali pra
frente sigo eu por conta própria. Não tem nenhuma maldade nisso, você sabe que
eu sou legal…
MALU – E se esse poder acabar? Você tem todo dia pra ir lá, eu só posso sair com
ele amanhã… só você sabe o quanto eu gosto desse menino.
JOÃO – Sim, eu sei. Desenha ele no caderno todo semestre desde o primeiro ano.
Neste momento, as cortinas vão se fechando na frente dos dois, que continuam
conversando e sendo ouvidos pela plateia.
Fabrício sai de um dos cantos e caminha lentamente pela frente das cortinas com mochila
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nas costas e as mãos nos bolsos.
MALU – Todo dia ele chega bem cedo na escola por causa da mãe dele, aí fica
rodiando ali no portão esperando os amigos chegarem.
MALU – Tu vai ter que chegar cedo também, vai ter que estar lá antes dele. Se vira,
adianta o despertador.
MALU – Isso mesmo, mas fica escondido. Tenta ficar do lado de dentro do muro da
escola. Ele nem vai te ver, só precisa te ouvir. Tem que te ouvir tocar.
JOÃO – E a senhorita?
Sozinho na frente do palco, Fabrício retira o celular do bolso e atende uma ligação.
Espantado por não conhecer o número que aparece na tela.
MALU – Porque não vou ter coragem de chamar na frente dele, eu fico nervosa!
Não vou conseguir.
MALU – E se não der certo? E se ele não quiser. Ele não vai me querer, não
consigo! Vou chamar por ligação.
FABRÍCIO – Sair? Quem convida alguém uma hora dessas? Sabe que horas são?
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Novamente, o violão é tocado ali atrás.
FABRÍCIO – Alguém que tá muito empolgado, né? Ah, tem que estar muito
empolgado pra convidar alguém pra sair às seis da manhã. Legal, fico feliz, sua
empolgação está até me contaminando já (risada).
MALU – Sei, lá um sorvete. Qualquer coisa que dê pra fazer numa tarde de terça.
FABRÍCIO – O quê? Sair hoje de tarde? Você tá me chamando pra sair no mesmo
dia? É minha única tarde livre da semana.
FABRÍCIO – Então é perfeito! Único dia que posso, você chamou no dia certo
mesmo. Acho que dá pra mim sim, te aviso por mensagem.
FABRÍCIO – Ah, vamos confirmar de uma vez já. Melhor, né? Mas vamos pra um
bar, bateu a vontade de beber.
Fabrício fecha o celular e sai pelo canto do palco. Pouco depois, Maria Luíza e João saem
de trás das cortinas pulando pelo meio do palco.
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MALU – Ele aceitou… ele aceitou, socorro! O que eu faço? Ele aceitou, João. Eu
vou morrer.
JOÃO – Calma, vai dar tudo certo. O mais difícil já foi, ele aceitou. Você consegue!
MALU – Mais difícil nada, eu tinha você! Agora é que vem a parte difícil. Eu tô
ferrada, vou cancelar. Não vai dar…
JOÃO - Ah, você não vai cancelar nada não! Nem que eu tenha que te levar
arrastada tocando. Fez eu fazer tudo aquilo à toa? Você vai sair com ele sim!
MALU – Então me ajuda! Se eu não conseguia nem chamar ele sem ser pelo
telefone, imagina passar a tarde toda junto? Vai comigo, me ajuda!
JOÃO – Não, Malu. A gente combinou que só faria ele te dar uma chance, não vou
ficar usando o violão nele. Agora é contigo.
JOÃO – Quê?
MALU – É só você me deixar confiante. Fica tocando ali perto, algo que me deixe
confiante… confiante e sedutora!
MALU – Sim, você vai estar mexendo comigo. Não com ele, comigo! E eu tô te
autorizando. Por favor, por favor!
Dois garçons (mesmos atores que fazem os alunos) entram pelos cantos e abrem uma
mesa de bar e duas cadeiras ali do lado dos dois. Uma terceira garçonete passa um pano
na mesa, estende uma toalha e coloca um porta-guardanapos em cima.
JOÃO – Beleza, eu vou ficar tocando ali na sala do lado. Vou usar só contigo. Vou
tocar pra você, ok? Vou me esconder ali, não deixe ele vir pra cá. Vou lá tocar.
GARÇONETE – Ei, você precisa marcar horário pra vir tocar aqui. Temos uma lista,
você não pode…
JOÃO – É claro que posso, anota meu nome na frente lá. Não vou nem cobrar o
couvert artístico. Vai todo mundo gostar.
Diz João, enquanto toca seu violão e vai saindo para trás das cortinas. A garçonete, após
ouvir o instrumento, o obedece.
MALU – Amigo, espera. Você tem que tirar uma foto! Eu preciso de uma foto pra
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provar pro Brunão. Você precisa tirar uma foto na hora do beijo.
JOÃO – Você vai tentar beijar HOJE? Malu… que eu saiba, você nem nunca beijou
ninguém. Selinho não conta. Não tá querendo demais? Vai com calma… vai querer
beijar mesmo?
MALU – É claro que vou, com a sua ajuda. Vai me deixar confiante. Empoderada!
Importante também.
JOÃO – …e sedutora?
MALU – Isso, mano! Não tem problema, eu já me imaginei beijando o Fabrício umas
centenas de vezes. Se contar sonho, ainda mais. Tô preparadíssima, vai rolar!
Tenho fé que vai.
Cena 10
Mesa de bar
Sozinha ali na frente, Maria solta o cabelo, retira seu casaco, expondo seus ombros, e se
senta para aguardar seu par.
MALU – Ele vai chegar, né? É claro que vai, não vai furar. A gente só fez ele aceitar
o convite, é claro que só precisava disso. Homem sempre que confirma, aparece!
Não aparece?
Diz Fabrício, enquanto sai de trás das cortinas. Maria se levanta para abraçá-lo, mas ele
passa direto sem ver e já se senta.
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FABRÍCIO – Um litrão?
GARÇONETE – E nem você vai querer, mocinho. Vamos servir menor de idade não,
que coisa feia. Aqui não.
GARÇONETE – Não enquanto usa uniforme de escola, né. Que coisa feia, é muita
cara de pau.
MALU – Ah, não sei. Quer ir mesmo? Vamos pedir um sorvete… olha, aqui tem
karaoke! Vamos ficar, a gente canta!
Fabrício se levanta e dá a mão para Maria Luíza, puxando-a. A garota fica sem reação,
calada, trocando o olhar repetidamente entre o rosto de Fabrício e sua mão.
MALU – Vamos…
João, na mesma hora, começa sua melodia atrás das cortinas. Não é só uma nota, mas
uma música ininterrupta. (Pode ser qualquer outra pessoa tocando neste momento, o
personagem não participará presencialmente da cena).
MALU – Vamos ficar aqui! Marcamos aqui, é aqui. Bebe outro dia!
FABRÍCIO – Uau! Decidida você, hein. Mas olha, só topei vir porque queria beber…
acho melhor…
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João alterna o ritmo do que estava tocando para algo mais lento e suave. O efeito é
instantâneo em Maria Luíza, que acaricia o braço de Fabrício enquanto balança o cabelo
com a outra mão.
MALU – Menino, que isso. Vamos tomar um milkshake. Traz um pra gente, colega.
Pode ser um canudo só!
MALU – Uma água então, por favor. Se água ele negar, que fique com sede.
FABRÍCIO – Achei que tivesse TDAH, mas parece… bipolaridade. Sei lá, você muda
de repente…
MALU – Desde quando você é psicólogo, garoto? São coisas sérias pra ficar
brincando assim.
Fabrício se levanta e vai até a direção por onde João saiu para trás das cortinas. Maria
Luíza se levanta junto.
MALU – Mas já? Acabou de chegar! Fica mais… deixa pra ir em casa.
MALU – Então eu vou também. Vou na frente, digo. Não contigo. Deu vontade
agora, parece que contagia, né? Posso ir primeiro? Damas na frente?
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FABRÍCIO – Mas tem dois…
Fabrício diz enquanto vai saindo. A garçonete o interrompe e avisa que os banheiros ficam
para o outro lado. Fabrício segue para a outra direção e sai pelo canto oposto do palco.
Maria se senta, aliviada.
João, aparentando não ouvir o que estava sendo falado, muda novamente o som para algo
mais romântico. Maria Luíza se vira para a garçonete.
MALU – Ah, é. (risada) Boba eu, né? Desculpa, fico sem jeito perto de gente bonita.
Maria levanta para se aproximar da garçonete e fica em pé apoiada em uma das cadeiras.
MALU – Doutora Sol, bonito seu nome. Combina com teu cabelo, bonito seu cabelo.
Maria Luíza sai de perto da garçonete e agora vai se aproximando de Fabrício desfilando
enquanto olha fixamente nos seus olhos. Chegando perto, o abraça.
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João muda novamente a melodia. Maria dá uma empurradinha em Fabrício e se afasta um
pouco.
MALU – Quem te perguntou? Primeiro quem tem que querer alguma coisa sou eu! E
olha…
FABRÍCIO – Mas, não… mas não achou por quê? Como assim?
Maria se vira e olha pra ele, depois continua andando normalmente sem responder.
MALU – Aí você vai melhorar na prova, te garanto que melhora suas notas.
O som muda novamente. Agora para uma mistura de tudo o que havia sido tocado até ali,
no que parece ser o clímax da música. Maria muda de direção e caminha decidida para
cima de Fabrício.
MALU – Vamos, claro que vamos. Te ajudo em tudinho que precisar! Qualquer
coisa.
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MALU – Mas por favor, quem é que vem com uniforme de escola pra um date?
FABRÍCIO – E você que vem de bermuda? E eu nem sabia que isso aqui era um
date.
MALU – Pois agora tá sabendo. Sol, minha querida. Liga o karaoke pra gente?
Maria e Fabrício ficam frente a frente, com os rostos quase colados. Ela em pé e ele
sentado. Fabrício desabotoa sua camisa de uniforme e fica somente com a camisa branca
que usava por baixo. Sol volta com o microfone e entrega para a garota, que já começa a
cantar.
Cena 11
(musical)
Mesa de bar
Maria segue cantando pelo palco com o microfone na mão. Sol começa a balançar o quadril
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no ritmo da música.
FABRÍCIO – Ok, é um beijo que você quer? Se quer me beijar, um beijo eu posso
pensar em te dar sim…
As notas mudam, a iluminação troca de cor e o palco agora fica todo roxo.
FABRÍCIO – Louca?
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Papo furado não me entretém
GARÇONETE – Já era.
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GARÇONETE – Lindaaaa! (Batendo palmas)
Dona de mim
Terminando de cantar, Maria Luíza se abaixa para agradecer a plateia. A garçonete aplaude
(o que deve acabar puxando palmas do público também). As luzes voltam ao normal.
FABRÍCIO – Desde quando você canta assim, Maria? E dança, faz sucesso e sei
lá…
MALU – Eu cantei na escola ano passado, mano! Morri de vergonha mas acho que
todo mundo gostou. Você que sempre falta em toda Sextalentos e não viu.
FABRÍCIO – É, e agora vou ter que ir nessa próxima cantar com vocês. De quem foi
essa ideia mesmo?
MALU – E graças a isso, vai ter nota pra passar. Pode agradecer eu e o João
depois.
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O violão volta a tocar no fundo.
FABRÍCIO – Uau, isso tudo? E mesmo assim… nunca foi a fim dele?
MALU – Não, não. É meu amigo! Gostar GOSTAR mesmo, eu gosto de outra
pessoa…
MALU – Ah, mano. Tô desistindo, a pessoa nem quer. Nem vai rolar, não tá me
querendo.
FABRÍCIO – Moça, você é mesmo uma caixinha de mistérios! Não dá pra te decifrar.
MALU – Você que nunca prestou atenção em mim, querido. Eu sempre estive ali,
você que nunca viu. Nunca quis.
FABRÍCIO – E se eu quiser?
MALU – Agora você trata de querer ensaiar pra cantar direitinho com a gente mês
que vem.
FABRÍCIO – …o quê?
MALU – O violão nem tá tocando! Cala a boca, fica quietinho. Para de bobeira.
FABRÍCIO – Você também nunca me viu cantar, moça. Me dá esse microfone aí,
Sol. E manda o tio do violão me acompanhar.
FABRÍCIO – Diz pra eu ficar mudo, faz cara de mistério. Tira essa bermuda que eu
quero você, sério…
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Cena 12
(Musical)
Bar inteiro
Ali no fundo, estão todos os funcionários trabalhando. Um cozinheiro passando com panela
na mão, dois garçons levando outra mesa. Outra pessoa levando uma bandeja. Cada um
fazendo sua função. Fabrício sai cantando por entre eles.
Mundo particular
Solos de guitarra
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Fabrício pega Maria Luíza pela mão e começa a dançar girando com ela pelo salão.
É de um retoque total
Em arte final
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MALU – Agora não tem jeito
Cada um por si
Todos no palco começam a dançar, cada funcionário do bar com seu respectivo objeto em
mãos. Fabrício pega o microfone de volta.
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
MALU – Meu filho, quem vai ensinar alguma coisa aqui sou eu. Se toca.
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Faz cara de mistério
Mundo particular
Solos de guitarra
FUNCIONÁRIOS – Uh
Como eu quero
FUNCIONÁRIOS – Uh
Como eu quero
Enquanto Fabrício está virado para a plateia e não vê, João cruza o palco inteiro, tocando
seu violão, saindo de uma coxia e entrando por outra.
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MALU e FABRÍCIO – Longe do meu domínio
Os funcionários passam a bater palmas duas vezes e bater o pé no chão uma vez, no ritmo
da música. Quem está com panela, bate a panela. Quem está com bandeja, bate a bandeja.
FUNCIONÁRIOS – Uh
Como eu quero
FUNCIONÁRIOS – Uh
Como eu quero
FUNCIONÁRIOS – Uh uh uh uh
Uh uh uh uh
Uh uh uh uh
João atravessa de novo o palco, enquanto toca, pelas costas de Fabrício. Voltando para a
direção de onde tinha saído.
Como eu quero
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A música termina. No exato instante, todos os funcionários voltam a trabalhar como se nada
tivesse acontecido. A mesa onde o casal estava sentado também é levada.
As cortinas se fecham. Apenas Fabrício e Maria Luíza ficam do lado de fora, de frente para
o público.
Os dois vão se aproximando um do outro, um passo de cada vez. Uma mão sai por
debaixo da cortina segurando um celular, é João tentando fotografar os dois e não
conseguindo.
MALU – Agora?
A mão agora sai de uma outra parte da cortina. Malu percebe e vira Fabrício para a outra
direção, para que o garoto não veja o celular.
Maria solta os braços de Fabrício e se vira pro outro lado. A mão de João agora sai pelo
meio do palco, entre as duas cortinas. Fabrício, ao se virar para também sair de perto de
Maria Luíza, percebe o celular apontando para os dois.
O celular volta para dentro da cortina naquele mesmo momento, mas não adianta. Fabrício
enfia a mão lá atrás e puxa João de lá de dentro com raiva. O menino cai de joelhos no
chão.
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FABRÍCIO – Só pode ser brincadeira. Que tá acontecendo aqui? Tão de sacanagem
com a minha cara?
FABRÍCIO – Cansei, CANSEI! Tenho mais paciência não. Deu pra mim.
Fabrício vai embora com raiva pra trás das cortinas pela lateral do palco, para o desespero
de Maria Luíza.
JOÃO – Eu?! Não devia nem estar aqui! Era pra ter ido pro hospital. Vim por você…
MALU – Socorro, deu tudo errado! Deu tudo errado. Ele nunca mais vai olhar na
minha cara.
JOÃO – Dane-se ele! E se eu não conseguir mais ver a cara do meu vô?
JOÃO – Eu vim porque VOCÊ quis. Caramba, eu sou muito trouxa. O que tô
fazendo da minha vida? Olha onde eu me meti…
MALU – E vai perder seu violão, vai ficar pro Brunão. Perdemos a aposta, já era.
JOÃO – Eu não quero é perder meu avô!!! Tô nem aí pra isso, fica pra você! Toma,
é seu. Onde eu tava com a cabeça? Vou indo pra casa.
João entrega o violão para sua amiga e vai saindo de perto com raiva.
JOÃO – Tô vendo, só pensa nesse garoto! Só pensa nele e mais nada. CAI NA
REAL!
MALU – Exagerei… é, foi mal. Vamos, eu te acompanho até em casa. Aqui já deu
tudo errado, só fiz tu perder tempo. Se a gente correr, você ainda consegue ir pro
hospital hoje… eu nao devia ter te feito vir pra cá. Desculpa.
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João abraça Maria Luíza e pega o violão de novo.
JOÃO – Isso é novo pra mim, isso é novo pra gente. Estamos brincando com coisa
séria, não devíamos. Eu tinha que conversar com meu vô. Devia ter ido falar com ele
antes de qualquer coisa. Não sabemos do que isso é capaz.
MALU – Vem, vai dar tempo. A gente faz isso hoje, vou contigo pro hospital. A culpa
foi minha, agora te ajudo a resolver. Vamos, peço um uber da tua casa.
JOÃO – Obrigado, Malu. Só tenho que avisar minha vó, vou pegar um casaco e
aviso ela.
As cortinas se abrem, revelando a sala da casa de João. Sua vó está estirada no chão,
caída ao lado de um banco virado de lado e uma caixinha pequena de madeira.
Cena 13
João sai correndo em direção ao corpo de sua avó. Se agacha ao lado dela, gritando.
MALU – Ela caiu, João! Tem certeza? Deve ter tropeçado, ai meu deus.
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Maria Luíza sai chorando com o celular na mão. João abraça o corpo de sua avó com força.
JOÃO – Eu tô aqui, vozinha. Por favor, levanta. Cheguei, tô aqui com você.
JOÃO – Faz isso comigo não. Posso perder você não. O vô tá mal, a gente precisa
de você, minha vozinha. Eu preciso de você.
Maria entra rapidamente para perguntar e logo sai de novo. João, em choque, coloca a
cabeça de sua avó em seu colo e vai fazendo carinho em sua pele enquanto continua
falando sozinho.
MALU – Vou pedir ajuda pra algum vizinho. Vou chamar ajuda.
JOÃO – Ô, minha vó. Cê tava muito ansiosa, muito preocupada com o vô. Tinha que
cuidar da senhora, cê ficou mal.
JOÃO – Eu devia estar aqui contigo, tinha que estar aqui contigo. Me perdoa,
vozinha, me perdoa.
Em desespero, João desvia o olhar para o violão. Após alguns segundos, ele vai até lá e
pega o instrumento.
Os dedos do garoto vão se movendo com cada vez mais velocidade, alternando de nota em
48
nota. Esta é a melodia mais intensa que ouviremos em todo o espetáculo. O corpo de sua
avó começa a se movimentar, bem devagar…
JOÃO – Eu cheguei, vozinha. Não vai embora não, fica aqui comigo. Não vai não,
vai não.
VÓ – …o quê?
JOÃO – Tá tudo bem, vai ficar tudo bem. Eu tô aqui, cheguei pra te ajudar!
João vai diminuindo a intensidade do som para responder. No mesmo instante sua avó, ao
tentar se levantar, não consegue e deita novamente a cabeça. João, assustado, se levanta
e volta a tocar com dedicação total.
JOÃO – NÃO! Calma vozinha, eu tô aqui. Vai dar tudo certo, vai ficar tudo bem. Tô
aqui contigo.
VÓ – Ô, Bernardo… é você?
JOÃO – Isso, sou eu vozinha. Fica aqui comigo, eu cheguei. Vem cá, tá tudo bem.
Enquanto eu tocar, vai ficar tudo bem.
A avó de João consegue se sentar, levando a mão na cabeça enquanto aparenta tontura.
João se senta de frente pra ela, tocando o violão sem parar.
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JOÃO – Vó, eu tô te mandando. Você não tá entendendo, você vai ficar.
JOÃO – Não, não chegou não. Te proíbo, você vai ficar aqui. Vai ficar aqui com a
gente, vai ficar aqui comigo.
A avó estende a mão até o rosto do neto, que não para de chorar e tocar.
JOÃO – Vozinha, eu não vou conseguir. Vozinha, não vou. Preciso de você! Você
aqui comigo.
VÓ – Você tem toda a sua vida pela frente, meu querido. Eu já vivi a minha…
JOÃO – E vai continuar vivendo, tem mais coisa pra viver. Eu não vou parar de
tocar, não vou. Nem que eu fique aqui assim até o fim do mundo, sem parar, não
vou.
VÓ – Seus dedinhos vão começar a doer, meu João. Descansa, a vó já cumpriu seu
papel aqui.
JOÃO – Não, não, NÃO! Eu não tinha noção, quero mais tempo contigo. Não posso
perder você agora, nem tive tempo…
VÓ – João, de novo, me escuta. Você tem todo o tempo do mundo! Você usou cada
parte do tempinho que tinha com aquilo que gostaria de usar. Assim como eu usei o
meu, assim como cada um nesta terra. Não se culpe agora, já é tarde…
JOÃO – Não é, NUNCA vai ser! Eu tenho isso aqui, eu tenho sim todo o tempo que
eu quiser ter, por causa disso aqui. E tô te ordenando, tô te implorando, você fica
aqui! Por favor, minha vó. Por favor!
Maria Luíza volta pro palco com o celular na mão mas não fala nada. Ela vai até o banco
virado e pega a caixinha de madeira, é um baú trancado com cadeado.
VÓ – Estava junto com o violão, mas não encontrei a chave. Comecei a procurar
pela casa…
JOÃO – Não era pra ficar subindo nas coisas, vó. Num era, devia ter me esperado.
Agora não vou te perder, não vou.
VÓ – João, Joãozinho. Sempre foi teimoso… Desde moleque. Você agora vai
dedicar seu tempo ao teu avô. Ele vai precisar de você. Aproveite cada minuto ao
seu lado. Seu tempo comigo já passou.
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JOÃO – Não, vozinha… não passou não. Não passou, eu quero mais. Quero mais
tempo contigo, quero minha vó. Quero minha vozinha.
JOÃO – Para, eu não vou deixar você. Não vou deixar você ir.
VÓ – Não é uma escolha, querido. Não foi escolha minha… a morte não é uma
escolha, VIVER é que é. Você tem toda a sua vida pra escolher o que faz com seu
tempo.
VÓ – O que passou não tem mais jeito. Não se vive no passado, a vida acontece no
presente. Nunca se esqueça de…
JOÃO – Liga pra minha mãe, pega meu celular. Faz alguma coisa, qualquer coisa!
VÓ – Não tem mais nada que possam fazer aqui, meu filho.
VÓ – Isso, você sempre estará no agora. Sempre olhando pro futuro, mas não se
esquecendo de sua vida de AGORA.
VÓ – Viva, meu filho. Viva o agora, sempre olhando pra frente… mas sem se
esquecer do agora. Você vai seguir em frente.
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João, já sem forças, vai diminuindo a intensidade com que toca. Sua avó cantarola:
A música quase parando, e a voz dela também cada vez mais lenta.
João não fala mais nada, seus dedos já não aguentam mais.
O violão para.
Silêncio.
Cena 14
Cortinas fechadas
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Fabrício sai de trás das cortinas e caminha com uma folha em uma mão e um banquinho na
outra. Se senta no meio do palco e olha para o papel com cara de raiva. Bruno vem logo em
seguida, coloca o seu banquinho do lado, e também se senta.
FABRÍCIO – Não dá, cara. Vou reprovar. Fui MUITO mal. Não é pouco mal não, tá
ligado? Muito!
BRUNÃO – Tava difícil mesmo, teve jeito não. Ele pegou pesado.
FABRÍCIO – Minha mãe vai me matar, não vai dar pra mim. Vou ficar preso no
ensino médio, fudeu. Vai todo mundo pra faculdade e eu vou ficar aqui.
BRUNÃO – Cara, a gente tem que ir bem na apresentação… vamos ter que cantar.
Estudar não resolve nada não.
BRUNÃO – Cara, você saiu com ela pra ver se melhorava tuas notas? É sério que
esse foi teu plano?
FABRÍCIO – Pra colar com gente esperta, caramba. Não tem jeito, uma hora a gente
tem que criar responsabilidade. Os moleques do futebol não tão ligando de reprovar
não, eles não têm a mãe que eu tenho. Preciso andar com quem estuda. Mas… ei,
pera aí. Quem te disse que saí com ela? Eu não falei que saí com ela não!
BRUNÃO – Olha onde você tá! Isso aqui é uma escola, tem como esconder nada
não. E olha isso daqui (retira o celular do bolso). Com isso aqui, a fofoca se espalha.
Tá todo mundo sabendo que cê saiu com a espinhenta.
FABRÍCIO – É muito babaca! Você tá sendo otário, ela é uma menina boa. É meio
doidinha, mas é boa. É gente boa.
BRUNÃO – Fabrício, você pode ter quem você quiser da escola. Não só garotas.
FABRÍCIO – E a nota que eu quiser? Isso eu não consigo ter. O que é importante eu
não consigo.
FABRÍCIO – Como ter tempo pra tudo isso? Me diz! Como consigo tempo pra
estudar pra cada matéria? Pra cuidar do meu cachorro, pra ir pro inglês, natação,
ficar com a família, jogar bola…
53
BRUNÃO – Claro, jogar bola é muito importante.
BRUNÃO – Cara, se tivesse 50 horas… fariam a gente estudar por umas 30.
Nossos pais trabalhariam umas 40. É a vida, tem jeito não.
BRUNÃO – Mas vem cá, me diz. Você, você e a… garota chegaram a ficar? Beijou
ela?
BRUNÃO – Tô curioso, ué. Você aí defendendo ela, mais de uma vez… tá a fim
dela? Beijou, né?
BRUNÃO – Ah, bom saber… mas não beijou por quê? Ela gosta de você, cara. Todo
mundo vê, dá nem pra esconder.
Fabrício se levanta, pega seu banquinho e vai saindo do palco. Brunão faz o mesmo e vai
indo atrás.
FABRÍCIO – Pois ela que me esqueça, tenho tempo pra isso não. Preciso passar de
ano, cara. A gente precisa.
FABRÍCIO – Temos que começar a ensaiar, vou precisar da nota máxima nessa
apresentação. Começar logo, assim que terminar a semana de provas.
Os dois saem juntos do palco. Logo depois, a cortina se abre, revelando o quarto de João.
Cena 15
(Musical)
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Quarto de João
João está sentado sozinho de pernas cruzadas em sua cama. Está com o violão na mão e a
cara séria. O palco está bem escuro, apenas algumas poucas luzes apontam para o garoto.
João toca uma única nota, que fica ecoando por alguns segundos até desaparecer por
completo.
Após uma pausa ainda mais longa, o garoto começa a tocar e cantar, bem devagar:
Enchendo a minh'alma
Do outro, a luta
55
O novo, o credo
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Maria Luíza entra pelo canto do palco assumindo o próximo verso da canção, João agora só
toca. Os dois não se olham pois não estão no mesmo ambiente, apenas no mesmo palco.
Outro foco de luz se acende, apontando para ela. O resto do cenário está totalmente
escuro, só vemos o garoto em sua cama e sua amiga em pé do lado oposto.
Enchendo a minh'alma
A música também é cantada por ela em um ritmo mais devagar, e triste, que o original.
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De um lado a poesia, o verbo, a saudade
Do outro, a luta
O novo, o credo
Ainda sem interagir um com o outro, os dois agora cantam juntos. Um em cada canto do
palco. Cada um com sua própria dor.
respirar
Só enquanto eu respirar, oh
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
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JOÃO – Só enquanto eu respirar
O ritmo da música volta a diminuir. E os dois vão cantando cada vez mais baixo até que a
canção chegue ao fim.
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só enquanto eu respirar
Só…
Ambos os focos de luz se apagam e todo o teatro fica no escuro. João sai de cena,
empurrando sua cama para fora. Maria permanece ali. As paredes que formam o quarto de
João se abrem, o que faz com que o novo fundo seja o da sala de aula.
Cena 16
Conforme as luzes vão se acendendo, cada aluno vai entrando com sua carteira e se
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sentando em sua respectiva posição. Três carteiras permanecem vazias. Maria permanece
ali em pé no mesmo lugar.
Todos os outros alunos em cena permanecem sem prestar atenção nos dois. Alguns
conversando, outros no celular ou desenhando. Bruno e Maria continuam conversando aos
cochichos.
BRUNÃO – Olha, a gente começou errado. Vacilei contigo, eu sei. Mas não precisa
ser assim… mas fizemos um acordo, né?
BRUNÃO – Não calmo não, teu… colega… não aparece nem pra fazer prova mais.
A gente tem uma apresentação pra fazer na droga do final do ano! E com certeza
você não tá precisando de nota, mas eu e Fabrício estamos.
MALU – Não é culpa minha se vocês estão dependendo disso pra sair do ensino
médio.
BRUNÃO – Pois bem, mas dependemos do teu amigo pra ir bem. E se ele não
aparecer, vou eu mesmo lá tirar aquele violão da mão dele pra ensaiar sem ele!
MALU – Você não vai fazer merda nenhuma, garoto. Não tem coragem nem de se
assumir.
MALU – É, tem medo. E fica descontando na gente. Tem medo! Medo do que vão
achar, do que vão falar, medo dos seus pais…
BRUNÃO – Que medo o quê! Tenho medo não. E mesmo que tivesse, você não tem
que ficar tirando ninguém do armário. Cada um tem seu próprio tempo, caramba.
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FABRÍCIO – Vocês dois, por favor. Já acabou, chega disso, já nos ferramos por
causa disso.
Um dos alunos retira um maço de papel de sua carteira e passa a distribuir para os outros,
cada um vai pegando sua folha de prova e passando para o próximo. Todos vão retirando
canetas dos bolsos e mochilas e começam a escrever.
Um a um, os alunos vão parando de escrever. Em suas caras, o espanto. Alguns vão
tentando fazer força para continuar fazendo a prova, um deles joga a caneta longe, outro
retira seu lápis da mão direita e continua tentando escrever com a esquerda. Maria Luíza
olha de um lado pro outro sem parar, já entendo o que está acontecendo.
BRUNÃO – TÁ AMARRADO!
A velocidade aumenta novamente e todos eles se viram de costas, ao mesmo tempo. Maria
grita:
60
BRUNÃO – É o demônio, caramba! Não adianta conversar.
Todos levantam as provas, esticando os braços pra cima de suas cabeças, no momento em
que a música acelera mais uma vez. Agora, já é perceptível que ela está se tornando uma
espécie de forró. Brunão reconhece e começa a cantar:
Glória a Deus
Glória a Deus
Glória a Deus
Glória a Deus
Com todos de costas, João entra em cena e vai cruzando o palco fora de suas vistas. Maria
Luíza continua insistindo:
MALU – Não faz isso, você está completando seu arco de vilão. Depois não tem
mais volta…
A música acelera de novo e atinge seu ritmo original. Todos os estudantes, ao mesmo
tempo, rasgam suas provas no meio e soltam as metades de cima de suas cabeças.
Em frente a mesa do professor, após deixar uma nota longa sendo ouvida, João pega uma
caneta e rabisca em um papel que estava ali. Ele está lançando sua própria nota no registro
da disciplina. Rapidamente, o garoto volta a tocar.
Cada aluno agora, ainda de costas, começa a remexer o corpo, no ritmo do forró gospel.
João vai saindo de cena por onde entrou e, após alguns segundos, a música termina. Todos
voltam a si.
ESTUDANTE A – Deus me livre… já não basta ser escola, ainda tem que ser
61
assombrada?
FABRÍCIO – Por que tava falando com ele então? Acha que a gente é trouxa?
BRUNÃO – Eu até sou, mas não tanto assim. Bora atrás dele, acho que mora aqui
perto.
MALU – Gente, para com isso. Ele não tá bem, vocês sabem.
FABRÍCIO – Já perdi minha paciência. Não vou reprovar não, preciso dessa nota. O
garoto nem aparecendo na escola está, e quando aparece é pra isso?
MALU – Não, deixa que eu vou conversar com ele então. Não precisa disso, eu vou
lá. Eu falo com ele, com calma… eu vou.
BRUNÃO – E a gente vai atrás. Anda, vamos. Mostra onde ele mora. É perto, não
é?
Os três vão saindo pelo canto do palco. Malu na frente e os garotos atrás. Pouco depois, as
cortinas se abrem.
Cena 17
Casa de João
Estamos novamente na sala em que a avó de João faleceu. O ambiente está pouco
iluminado. O garoto está sentado no chão de pernas cruzadas no canto direito do palco. O
banquinho não está mais caído no chão e a caixinha de madeira está nas mãos de João. O
violão está deitado no chão a sua frente, em cima do case.
O garoto fica ali parado observando o pequeno baú por vários ângulos diferentes, sacode
um pouco para ouvir o que tem dentro e confere o cadeado.
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Maria entra no palco pela esquerda, seguida por Bruno e Fabrício.
JOÃO – Eu já disse pra irem embora. Não quero fazer mal pra vocês.
MALU – Você só está fazendo mal a si próprio. Não aparece na aula, não atende
ligação, não responde mensagem.
FABRÍCIO – Rapaz, João… você precisa seguir em frente, cara. Sempre em frente.
JOÃO – CALA A BOCA, você não sabe o que tô passando! Não sabe!
João vira o rosto, olha pros três, e então se levanta. Pouco depois, estica o braço e pega o
violão do chão.
JOÃO – Eu avisei.
O garoto começa a tocar. Notas frias e pesadas. Maria começa a correr em sua direção,
mas já é tarde, logo fica paralisada.
Os outros dois garotos também tentam se aproximar, mas após alguns passos e mais
algumas notas, também permanecem parados sem sair do lugar. Maria coloca a mão no
bolso e faz alguma coisa em seu celular.
MALU – João, por favor. Me escuta, solta esse negócio. A gente só quer conversar.
Fabrício, o mais forte dos três, começa a fazer força nas pernas. Com muito esforço,
63
consegue dar um pequeno passo de 10 ou 20 centímetros. João se surpreende, e coloca
ainda mais notas em sua melodia.
Fabrício continua se esforçando e, após mais alguns segundos, movimenta a outra perna.
Brunão, percebendo, também começa a se esforçar para sair do lugar.
BRUNÃO – Eu não sei o que tu tá fazendo. Mas não vai funcionar por muito tempo,
garoto.
MALU – João, não piora as coisas. A gente pode resolver tudo isso, me escuta.
João não responde mais pois Fabrício conseguiu dar, ainda com muita dificuldade, mais um
passo. O garoto vai tocando o violão com o olhar fixo para Fabrício, se torna um duelo de
forças entre os dois.
Até que Maria Luíza sai andando normalmente e puxa o violão da mão de seu amigo.
Ela retira o cabelo de cima da orelha, revelando os fones sem fio. Guarda o par no bolso.
MALU – Não, é burro não. Eu que sou esperta, mano. Coloquei evidências pra tocar
no máximo, dava pra ouvir nada que você tocava.
A calmaria se acaba assim que, chegando por trás de Maria Luíza, Brunão também retira o
violão da mão da garota.
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BRUNÃO – Agora quietinhos os dois. Vão me explicar tudinho.
Malu e João entram em choque, morrendo de medo. Bruno estende o violão acima da
cabeça, ameaçando quebrá-lo no chão.
BRUNÃO – Nem precisa, né? Acho que já tô entendendo. Deixa que eu mesmo
tento, quero ter uma palavrinha com o magrelo. Vamos conversar só eu e você.
Bruno aponta para a saída e começa a tocar algumas notas. Maria e Fabrício saem do
palco, andando de costas. Só ele e João permanecem em cena.
BRUNÃO – Colega, agora você fica quieto. Agora você vai me escutar, ok?
João tropeça e cai para trás. O garoto fica ali mesmo, sentado no chão enquanto Bruno
começa a cantar.
Cena 18
Musical
Casa de João
As luzes iluminam todo o palco em tons de azul. João não entende o que está acontecendo,
não era isso que esperava.
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BRUNÃO – Enquanto o tempo acelera e pede pressa
João se ajeita para ouvir e agora se senta de joelhos. Bruno vai girando ao seu redor.
Bruno vai andando em círculos, cada vez mais rápido, ao redor do garoto.
João se levanta e fica parado no lugar. Bruno continua em seu entorno com o violão na
mão.
João agora vai andando em um círculo menor no sentido contrário ao de Bruno. Os dois
agora permanecem girando no mesmo eixo, ali no centro do palco, cada um em uma
direção.
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Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
BRUNÃO – Eu disse, sei exatamente o que você tá passando, cara. Perdi minha
mãe ainda novinho.
JOÃO – Se eu soubesse que minha vó iria embora assim do nada, teria aproveitado
mais.
FABRÍCIO – Galera, já vimos que todo mundo é talentoso aqui, acho vai dar. Vai
rolar! É só ensaiar direitinho e essa sextalentos já é nossa.
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MALU – Mas João, você tá bem?
JOÃO – Não, num tô não. Bem eu não tô… mas vou ficar! Vou ensaiar com vocês,
ainda temos tempo?
Fabrício abraça João. Maria Luíza, vendo os dois ali, também se aproxima e abraça os dois
garotos. Bruno, por fim, balança os ombros e também entra no abraço grupal.
Maria Luíza vai até Fabrício, segura seu rosto, e beija sua boca com a vontade de todos os
anos de espera.
FABRÍCIO – Moça, desculpa… isso aqui não vai rolar. Eu acho que não sinto o
mesmo…
MALU – Eu sei, mas já rolou! Já entendi que não terei isso de você. Mas não vou
sair dessa escola sem nem te dar um beijo. É isto, daqui pra frente, amigos!
FABRÍCIO – É, amigos…
Fabrício se vira para deixar o palco e se depara com Bruno em sua frente, que após
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devolver o violão, também o beija. Temos o segundo beijo do espetáculo.
JOÃO – Não, não! Vai rolar mais nenhum beijo não, pode ficar tranquilo!
Fabrício sai do palco, sendo seguido por Brunão. Maria quase faz o mesmo, mas
percebendo que seu amigo ficou parado no lugar, volta pra falar com ele.
MALU – Não é, mas com o tempo… tudo vai voltar ao lugar! As coisas vão melhorar.
MALU – Era do seu vô? Ela disse que tava junto do violão, né? O que será que ele
guardou aí?
JOÃO – Será que ele estava escondendo mais alguma outra coisa? O violão eu
nunca tinha visto ele tocar… ficou guardado esse tempo todo.
MALU – Vai que tem outro instrumento mágico aí dentro, se estavam juntos…
JOÃO – Só se for uma gaita, né? Olha o tamanho. E… falando nisso. Acho que vou
me desfazer disso aqui (olhando para o violão).
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JOÃO – É, resolveria os nossos problemas… mas por que meu vô deixou
guardado? Por que ele também não continuou usando até hoje?
JOÃO – Eu vou, mas agora tenho que esperar. Ele vai ser operado, vai ter que
passar por cirurgia e só depois volta pra casa…
MALU – Até lá você trata de deixar esse violão guardadinho, então! Tá me ouvindo?
JOÃO – Não sei, eu não sei! Ainda preciso decidir, não sei se você vai entender. O
potencial de fazer mal também é muito forte… você não sentiu medo quando viu ele
nas mãos do Brunão? E se isso cai em mãos erradas?
JOÃO – Eu não sei, posso estar falando besteira. Vou pensar com mais calma.
Ainda preciso abrir isso aqui (levanta a caixinha de madeira).
Cena 19
Cortinas fechadas
Todos os atores e atrizes que fazem os estudantes e funcionários do bar entram no palco.
Eles se posicionam um do lado do outro, virados para a plateia, de frente pro público.
A primeira pessoa da esquerda para a direita dá um passo a frente. Todos dizem ao mesmo
tempo:
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TODOS – 9 de novembro, quinta-feira.
Assim que ela dá um passo para trás, retornando para seu lugar na fileira, todos dizem:
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Mais um estudante assume a dianteira.
GARÇONETE SOL – O salário é ruim, não vale todo o perrengue que passo. Mas
preciso do dinheiro, preciso pagar a faculdade. Só mais um ano e me formo, só
preciso aguentar mais um aninho. Tem dias que eu penso em largar tudo e desistir,
tem dias que a gente sente que não dá mais. Aí eu pego um livro e começo a
devorar, é como uma rota de escape. Lá eu tô segura, distante, fora dos problemas
daqui. Isso recarrega minhas forças. Me deixa com a bateria cheia pra aguentar
mais um dia. Só tenho que aguentar mais um aninho só.
ESTUDANTE D – Não tem como, não dá mais pra conviver com meus pais, não dá.
Não aguento mais ficar naquela casa, tô doida pra ir embora. Eles não me
respeitam, acham que sou um boneco, um robô que eles fizeram para cumprir suas
vontades. "Raquel, vai estudar pro enem. Raquel, cuida do seu irmão. Raquel, passa
o pano na casa. Lava a louça, vai buscar o Davi na escolinha, recolhe as roupas do
varal, faz o almoço, passa a roupa do teu pai." Eu sei que tenho que ajudar, sei
disso. Mas cadê o tempo pra eu ser só a Raquel? Bom, coloco um fone de ouvido e
faço tudo enquanto escuto minhas playlists. Algum dia eu saio de casa, só preciso
sobreviver até lá.
COZINHEIRO – A nossa relação já está meio gasta, não é mais a mesma coisa.
Éramos jovens, apaixonados e inconsequentes. Hoje somos pai e mãe, cansados e
sem tempo. Não tem amor que resista aos boletos e faturas. O pior era que nosso
aniversário de casamento estava chegando, eu sei disso porque esqueci no ano
passado e agora fiz questão de anotar. Preparei um jantar, como nos velhos tempos,
arrumei a mesa e coloquei um disco pra tocar. Ainda assim, ela não estava
sorrindo… não como antigamente. Aí a puxei pela mão e começamos a dançar. No
começo estávamos meio duros, mas logo nos soltamos. Dançamos a noite inteira,
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fazia tempo que não nos sentíamos assim.
ESTUDANTE E – Chamei ela pra ver um filme comigo. Ainda tenho vergonha de
marcar um date com outra garota e meus pais ficarem sabendo. Então fomos pro
cinema, lá teríamos privacidade. Deixei ela escolher o que veríamos. Odeio
comédia, mas tive que ver… afinal, dela eu gosto bastante. Acabou que eu gostei
bem mais do filme do que ela, que saiu só reclamando. Sei lá, foi bom passar uma
tarde inteira dando risada. A vida também pode ser leve, né? Tem que ser. Deveria
ser. Não rolou nada entre nós duas, o date foi um fracasso. Mas ainda assim saí
feliz, foi um filme tão gostosinho.
Cena 20
Cortinas fechadas
João sai de trás das cortinas andando pela direita ao mesmo tempo em que Maria sai
correndo pela esquerda. Os dois se encontram e Maria o segura com força.
MALU – Em cima da hora! Socorro, e cadê? Cadê teu violão? Não fala que
esqueceu, não fala!
JOÃO – Meu vô recebeu alta ontem, fui buscar ele com meus pais. Já está em casa,
já voltou pra casa!
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MALU – Amigo, isso é incrível! Que bom! Viu, eu te disse que daria tudo certo, eu
disse que ele ficaria bem.
JOÃO – Eu não tinha dúvida disso, nunca tive. O avô sempre foi forte. Só está muito
abatido pela vó, passei o dia inteiro hoje conversando com ele. Combinei com meus
pais e vou continuar morando ali.
JOÃO – Sim, sim. Fui pra lá só pra fazer companhia pra vó enquanto ele tava no
hospital. Pra ela não ficar sozinha. Mas decidi, vou levar o resto das minha coisas
pra lá, vou morar com ele mesmo. Quero passar todo o tempo que conseguir do seu
lado.
MALU – CONTA!
MALU – QUÊ!?
Maria não consegue esconder a cara de espanto e leva as mãos até a cabeça. João
continua contando:
JOÃO – Era da minha vó, Malu. Ela mentiu pra mim, o violão sempre foi DELA!
MALU – Num é possível, por que ela fez isso? Como assim?
MALU – Será que não é a idade? Será que ele não tá lembrando direito? Faz muito
tempo, né?
JOÃO – É, podia ser. Mas aí arrebentei o cadeado pra confirmar. Consegui abrir.
JOÃO – Exatamente, incluindo… uma foto do casamento dos dois… (pegando uma
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delas da mão de Maria).
MALU – GENTE, ela novinha! Mas pera, já existia fotografia naquela época, mano?
JOÃO – Claro que sim! Parece que só não existia orçamento suficiente pra pagar
um álbum… mas pra pagar uma foto, tinha sim.
MALU – Socorro, e parece que era ela mesmo tocando o violão. Ela tá de vestido de
noiva com o violão na mão. Foi ela quem tocou no casamento!
JOÃO – Ela tá com o violão em TODAS as fotos. Sem exceção… acho que quis
esconder todas as fotos em que o violão aparecia.
MALU – Será que, será que… ela chegou a tocar pra fazer ele se esquecer dela
tocando? Uma última vez pra apagar o próprio violão da memória dele?
JOÃO – Acho que ela se arrependeu, deve ter se arrependido de algo e depois
decidiu nunca mais usá-lo. Algo assim…
MALU – O que diabos levaria ela a isso? Por que ela faria isso?
JOÃO – Por que essa coisa é perigosa! E, ao mesmo tempo, nem é tão especial
assim.
MALU – É claro que é! Você pirou, a gente precisava dele. Claro que era especial.
JOÃO – Do mesmo jeito que qualquer outro instrumento, que qualquer outra música.
Eu tava certo. Tava certo, amiga! Digo ainda mais: isso daqui só faz o que qualquer
outra ARTE faz! Num nível muito muito muito menor, talvez, MAS FAZ!
JOÃO – Não, não mesmo. Quero dizer, pode ser também… aí vira propaganda. Mas
não é disso que tô falando. Estou falando de arte mesmo! Ela nos TRANSFORMA!
Mexe com nossas vidas, nos toca, comove, remexe, renova! Nos faz acreditar em
algo, nos dá confiança, faz refletir, amar... a lista é grande!
MALU – Amigo, a gente tem uma apresentação hoje. Era só ter jogado esse negócio
fora amanhã. Custava nada.
JOÃO – Custava sim, preciso provar meu ponto! Eu passei alguns dias tocando,
ajudei um pessoal que precisava. Aí fui observando e entendendo, a gente não
precisa desse violão… Liguei pro Brunão, ele disse que trazia o violão dele.
JOÃO – Por algum motivo, minha vó se arrependeu de ter usado. Todo mundo erra
e ela escolheu não errar de novo. Eu não vou sair por aí cometendo erros pra só
depois ter que aprender, não com algo tão poderoso!
JOÃO – Que nós conseguiremos encantar a platéia, do mesmo jeito! Quer dizer, não
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do mesmo jeito… mas de forma parecida. Com um violão comum, um violão
qualquer e nossas vozes, a gente vai encantar aquele pessoal ali do outro lado. E se
eles se sentirem tocados pelo que presenciaram hoje aqui, nem que seja um
pouquinho só, só por uns segundinhos. Eu já estarei satisfeito. Já teremos cumprido
o nosso papel.
JOÃO – O quê?
MALU – Foi por isso, por isso que tua vó te deu o violão. Pra ver se te deixava mais
responsável. Pra te fazer criar responsabilidade. E funcionou!
MALU – E queria te fazer se aproximar mais do teu avô. Você nem tava ligando pra
ele.
João dá um abraço apertado em Maria Luíza e os dois saem para trás das cortinas.
Cena 21
(Musical)
Conclusão
A coordenadora Garcia sai pelo meio das cortinas e se dirige diretamente ao público do
teatro.
GARCIA – Bom, é uma honra ter todos vocês aqui. Agradeço de coração e espero
que tenham gostado de tudo que viram até agora. Foi tudo feito com muito carinho e
dedicação por todos os presentes.
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Ela vai sorrindo enquanto passa o olhar por todos na plateia.
GARCIA – Agora, para fechar a nossa última sextalentos desse ano, tenho a
satisfação de anunciar para vocês a apresentação de Fabrício, Maria Luíza, Bruno e
João. Diretamente do terceiro ano: com vocês, os SELVAGENS!
Ela desce do palco e se senta em uma das cadeiras vazias na plateia. As cortinas se
abrem, revelando o palco sem nenhum cenário. Fabrício, Maria, Bruno e João estão
sentados de frente para a plateia, todos usando camisas brancas. Logo começam a cantar:
O violão nas mãos de João não é mais o mesmo que vimos durante todo o resto da peça, a
diferença de cor e modelo é perceptível. Fabrício toca em um cajón em que está sentado.
Bruno pode estar tocando também algum outro instrumento de corda que funcione com a
música.
Antes de dormir
Lembro e esqueço
Sempre em frente
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FABRÍCIO – Nosso suor sagrado
E tão sério
Selvagem!
Maria Luíza se levanta e vai andando pelo palco cantando enquanto olha diretamente para
Fabrício.
FABRÍCIO – Castanhos
Que já estamos
Distantes de tudo
Chega a vez de Bruno, que entrega tudo de si nesta canção. Maria volta para seu
banquinho.
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Temos nosso próprio tempo
Acesas
É o que se escondeu
Ninguém prometeu
A música termina e os quatro jovens se levantam para agradecer a plateia, o que encerra a
peça. Os jovens agradecem ao público, sorrindo.
FIM
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Posfácio:
Primeiro, quero te agradecer por ter chegado até aqui, espero que tenha valido a
leitura. Esta é a primeira vez que faço um roteiro para teatro. Nunca fiz teatro nem tive
qualquer contato com os palcos, apenas saio cada vez mais apaixonado de cada peça que
vou.
A primeira ideia que surgiu foi a de uma pessoa usando um instrumento musical
para manter uma outra pessoa viva. A personagem permaneceria com vida enquanto a
música continuasse sendo tocada. O potencial de trabalhar o luto, a aceitação e o poder da
arte me pareceu tão forte que eu senti que faria valer todo um espetáculo. Esta cena
precisava acontecer! Em um palco, em quadrinhos não funcionaria, nunca teria a mesma
força.
Nunca trabalhei com teatro e mal conheço quem trabalhe, mas dediquei a maior
parte do meu tempo livre a este desafio, escrevendo sem parar por dias e noites. Logo, isto
tudo aqui não deixa de ser para mim, também, pura perda de tempo. Como a arte, julgam
alguns, sempre é.
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