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"MÉTRICA"

ou
"O SOM, O TEMPO E A PERDA"
ou
"PURA PERDA DE TEMPO"

Roteiro por Matheus Nogueira

matheusaxn@gmail.com

Setembro de 2023

Personagens:

João;
Maria Luíza;
Fabrício;
Bruno;
Avó;
Garcia;
Estudantes/funcionários.

Sinopse:

Enquanto tenta conciliar seu tempo para dar conta do ensino médio, de um familiar
hospitalizado e de sua melhor amiga, João recebe um violão misterioso de sua avó. Após
descobrir do que o instrumento é capaz, e se meter em algumas irresponsabilidades, o
garoto enfim começa a entender um pouco mais sobre a brevidade da vida, as prioridades
da juventude e o poder transformador que a arte tem.
Prólogo

Cortinas fechadas ao fundo.

Um garoto entra em cena pela esquerda e atravessa o palco com mochila nas costas e
cadernos na mão. Uma senhora entra um pouco depois pela direita e cruza com ele no
terço final do palco.

VÓ – João, você demorou. Tá chegando da escola agora só?

JOÃO – Ai, vozinha. Nem me fala, hoje foi corrido.

VÓ – Olha aqui, seu tio tá saindo pro hospital agora. Se tu se aprontar rapidinho, dá
tempo de ir com ele…

JOÃO – Prefiro ir com calma... outra hora, vó. Tem visita todo dia, não tem?

VÓ – Só dia de semana. Se não for hoje, só vai ter na segunda…

JOÃO – Então segunda eu vou! Te prometo.

A senhora, triste, pega na mão do neto.

VÓ – João…

JOÃO – Você tá preocupada com ele. Né, vó? Fica assim não, o vô é forte. Ele
aguenta.

VÓ – Você ainda não foi ver ele nenhum dia.

JOÃO – Pois tô entrando em semana de prova, te disse. Não tenho tempo, vou
passar o fim de semana estudando.

VÓ – Não tem tempo pro seu avô?

JOÃO – Num é isso…

VÓ – Olha sua idade, você tem todo o tempo do mundo. Quem talvez não tenha
mais tempo é… é o seu vô.

JOÃO – Para, não fala assim.

VÓ – Tá certo, meu filho. Perdão, estuda sim.

JOÃO – E logo mais ele volta aqui pra senhora, vai dar tudo certo. Ele vai ficar bem.

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O garoto vai saindo pelo canto direito do palco quando sua avó, muito pensativa, o chama
de volta.

VÓ – Jão, espera. Vem cá.

JOÃO – Diga, vozinha.

VÓ – Acho que o seu avô queria te entregar isso daqui…

No meio do palco, ela retira de dentro das cortinas um case de violão. Dá umas batidas com
a mão pra tirar o pó e dá ao garoto.

JOÃO – Ué, o vô tocava violão? Nunca vi…

VÓ – Ele começou a aprender pra tocar no nosso casamento! Segunda quando você
voltar do hospital eu te conto todas as histórias. Talvez ele nem lembre de tudo, mas
eu lembro. Se você ir lá eu te conto tudinho, só depois que você ir.

JOÃO – Mas agora você estragou a surpresa, né?

VÓ – Ele ficou esperando sua visita a semana toda, João. Tô te dando logo o
presente pra você entender que é importante.

JOÃO – Será que meu tio me espera? Dá tempo de ir com ele ainda?

VÓ – Deixa eu ver. Ah, o carro não tá mais na garagem…

JOÃO – Ah, vozinha. Não era pra ser hoje mesmo então. Mas segunda eu vou lá, já
aproveito e conto pro vô se eu consegui tocar alguma coisa.

VÓ – Isso, filho. Agora vai lá tomar seu banho, vai.

Os dois se abraçam e o rapaz sai para trás das cortinas apressado, agora carregando
também o violão nos braços. A senhora sai lentamente enquanto leva o olhar para a direção
em que ficaria a rua que leva ao hospital.

Sem ninguém no palco. O violão começa a ser tocado nos fundos, fora da vista da plateia.
Primeiro, alguns sons repetidos para testar a afinação do instrumento. Logo após, algumas
notas suaves, tocadas de forma lenta enquanto luzes de holofote são apontadas para a
direção da cortina no mesmo instante em que cada nova nota é dedilhada.

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Cena 1

Sala de aula

Toca um alarme escolar. Todos os holofotes se apagam ao mesmo tempo em que as


cortinas são abertas, revelando uma sala de aula com várias carteiras viradas para a
direção da plateia. Alguns alunos vão se levantando e saindo para a coxia pela esquerda.

Maria Luíza está guardando suas coisas para sair pro intervalo mas, ao ver que Fabrício
ainda está na sala, senta-se de novo para sair ao mesmo tempo que o rapaz. Os amigos de
Fabrício saem na frente enquanto ele fica para trás pois deixou cair seu estojo.

É a deixa para Maria Luíza se aproximar e ajudá-lo.

MALU – E aí, Oi. O que tu colocou na questão 6?

FABRÍCIO – Ó, nem lembro.

MALU – Era a sobre Orfeu! Aquela de…

FABRÍCIO – Chutei qualquer coisa.

MALU – Bom, tomara que tu tenha chutado a letra B então pois tenho quase certeza
que é a certa.

FABRÍCIO – Ué, por quê veio me perguntar então?

MALU – Ora.. pra ter certeza? Eu disse, é… que tenho QUASE, né? Quase não é
100%, é quase.

FABRÍCIO – Ah, sim. Claro.

Fabrício vai saindo sem nem se importar com a conversa.

MALU – É que você parece inteligente, sabe? Deve ser inteligente. Queria confirmar
se acertei.

FABRÍCIO – Pois eu devo ter chutado mesmo.

MALU – Hmm, você não veio nessa aula. Faltou esse dia.

FABRÍCIO – Que? Como sabe?

MALU – Ah, eu.. ah, desculpa! É que foi uma aula muito boa, sabe? Me marcou,
mano. Fiquei triste por quem perdeu. Você perdeu, né?

FABRÍCIO – Sei.

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MALU – Desculpa, tô parecendo estranha, né? Desculpa. Mas se você, sei lá, quiser
ajuda pra estudar na próxima… é só falar. Sempre anoto tudo…

FABRÍCIO – Ou eu posso sentar atrás de você, certo?

MALU – É, ou isso. Pode, pode sim.

Ele sai pela lateral sem nem se despedir.

MALU – Tchau, Fabrício. Até… daqui a pouco!

Deixando-a sozinha no palco.

Cena 2

Sala de aula

João entra correndo até sua amiga com mochila na mão e violão nas costas. Maria Luíza se
assusta com a entrada repentina do garoto.

MALU – Menino, você tá doido? Isso é hora? Tu perdeu a primeira prova!

JOÃO – Eu sei, eu sei. Perdi…

MALU – Eu te mandei foto de todo o meu caderno em vão? É isso? Você viu
quantas páginas eram?

JOÃO – Malu, você não tem ideia do que me aconteceu.

MALU – Pirou de vez, mano? Além de atrasado, ainda trás um violão pra escola?
Nem sabia que podia entrar com isso aqui.

JOÃO – Não é um violão qualquer, cê vai ver…

MALU – Vai virar músico?

JOÃO – Não! é beeem mais doido que isso, amiga.

MALU – Vai montar uma banda, socorro… eu vou parar de andar contigo! Eu paro
mesmo.

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JOÃO – Naaaão, senta aqui. Deixa eu te mostrar, vem cá.

MALU – E desde quando tu sabe tocar? Nunca te vi tocar.

JOÃO – Eu fiz aula na igreja…quase fui do grupo de louvor.

MALU – Com 10 anos de idade, né? Faz quanto tempo que tu não vai na igreja,
garoto?!

JOÃO – Mas é por isso mesmo que... olha, deixa eu te explicar. Eu ganhei ele do
meu vô.

MALU – Seu avô num tá internado no hosp…

JOÃO – Na verdade, da minha vó, mas foi pedido dele. Ele me deu mas foi ela que
entregou, me escuta.

MALU – Tô escutando, conta logo!

JOÃO – Justamente por não pegar num violão há tanto tempo, eu fiquei arranhando
qualquer coisa, fiquei tentando lembrar qualquer nota e… e aí aconteceu!

MALU – Descobriu que vai largar a escola e viver de música? Vai viver da sua arte?

JOÃO – Não, eu descobri que algumas notas.. quando eu toco alguns acordes,
numa ordem específica. Eu ainda tô treinando, passei o fim de semana todo
tentando…

MALU – Socorro, Jão… você não estudou pra nada, mano?

JOÃO – Num tive tempo. Eu fiquei estudando isso aqui (apontando para o violão).

MALU – Então, em vez de usar seu tempo pra escola, você escolheu gastar ele
com… VIOLÃO?

JOÃO – Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo, cê sabe.

MALU – Então foca em algo que vai te dar um futuro!

JOÃO – Mas não é só futuro que existe, e o presente? Não é importante também
não? Pura perda de tempo?

MALU – Se te faz parar de estudar, é perda de tempo sim! Olha, eu não fico só
desenhando. Eu amo desenhar, mas estudo também! Tem que estudar…

JOÃO – Não consegui, Malu. Foi ficando cada vez mais especial. Era como se eu
estivesse escrevendo um texto, formando frases… só que com música, sabe?

MALU – Quê?

JOÃO – Eu não sei se esse violão é mágico, se sintonizei numa afinação milenar
proibida ou se sou eu que nasci com um super poder nos dedos que só tô
descobrindo agora mas…

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MALU – Tá vendo, é por isso que o Fabrício não me dá bola! Olha o tipo de gente
que eu tô andando.

JOÃO – Malu, é sério! Eu descobri uma linguagem própria, é como se fosse uma
linguagem só que feita de som. Imagina, se cada nota fosse uma palavra, e eu
estivesse ali criando frases… rapidinho eu me toquei que poderia falar o que eu
quisesse, com música! Era só estruturar tudo direitinho de jeito que fizesse sentido
e…

MALU – Mas toda música já não é assim? Não é isso que compositor faz? Ok, volta
do início. Você percebeu o quê?

Maria Luíza finalmente se senta ao lado de João para ouvir sua explicação, enquanto o
rapaz vai tirando o violão de dentro do case envelhecido.

JOÃO – Olha, vou te contar como foi que eu descobri. Quando eu tava no meu
quarto tentando tocar qualquer coisa, percebi que - do nada - pousaram três
passarinhos na minha janela.

MALU – Três? Ao mesmo tempo?

JOÃO – Juro! É estranho, um casal seria mais comum, né? Mas foi um trio! E aí, me
senti todo todo. Imaginei que estavam gostando do som. Só podia ser isso, vieram
me ouvir tocar.

MALU – Claro, é assim que funciona…

JOÃO – Mas foi só mudar de nota que os três saíram! Ao mesmo tempo, sumiram
no mesmo segundo.

MALU – Tadinho, já começou a carreira de música decepcionando a primeira


plateia. Parabéns, mano.

JOÃO – Se a história acabasse aí, mas não… se liga, eu tentei repetir a nota que
toquei antes e, depois de umas tentativas, consegui repetir o mesmo som, do
mesmo jeitinho. E chuta o que aconteceu? Sim, ELES VOLTARAM!

MALU – A própria branca de neve, você…

JOÃO – Não é a Cinderela que controla os passarinhos cantando?

MALU – Sei lá, mano. Acho que as duas.

JOÃO – Eu tava controlando os passarinhos com o violão! Ou algo parecido com


isso. Como eu disse, é como se eu estivesse falando pra eles irem embora ou
voltarem… com MÚSICA! Eu falava pra eles com o violão e os três obedeciam.

MALU – Ok, ok. E você trouxe o violão pra poder me provar, certo? Ninguém vai
acreditar nisso. Eu, que sou tua amiga, não acredito.

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JOÃO – Por isso vou te mostrar, e só pra você! Ninguém mais pode ver isso não,
Malu. Cê não tem ideia, eu fiz eles saírem e voltarem umas cinquenta vezes até ter
certeza…

MALU – Vou abrir aquela janela e se não tiver um passarinho ali no instante em que
você tocar, eu…

Maria Luíza se levanta e sai andando até o canto do palco.

JOÃO – Não, boba. A história não acabou ainda, de novo, se fosse só isso… vem
cá.

João se prepara e toca uma nota enquanto diz:

JOÃO – Senta aqui.

De novo, Maria Luíza se senta na carteira ao seu lado.

JOÃO – …tá vendo?!

MALU – O quê?

JOÃO – Você sentou, menina…

MALU – Ué, porque eu quis. Você me chamou.

JOÃO – É? E se eu fizer isso aqui…

João toca a mesma nota, só que de baixo pra cima. No mesmo momento, Maria Luíza se
levanta.

JOÃO – Viu!

MALU – Mas eu quis levantar! Cê tá doido?

JOÃO – Sim, você quis… porque eu quis que você quisesse!

MALU – Garoto…

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João repete a primeira nota e, de novo, Maria Luíza se senta no exato momento em que ele
a toca.

JOÃO – Te disse, acha que depois dos passarinhos eu não cheguei a tentar com
minha vó? Sim, eu tentei!

Sem palavras, Maria Luíza permanece com a boca aberta na frente do garoto que, depois
de alguns segundos, toca alternadamente as notas anteriores por 4 ou 6 vezes. Ela senta e
levanta repetidamente na mesma velocidade em que o som é tocado.

MALU – Isso… é a coisa mais estranha… que eu já vi na vida…

JOÃO – Eu te disse!

MALU – E olha que eu sou uma menina estranha, de coisa estranha eu entendo…

JOÃO – Malu, pra que fazer prova? Eu posso fazer a professora lançar a nota que
eu quiser! Eu posso mandar me aprovarem em qualquer matéria.

MALU – Você tá maluco? Com grandes poderes… Você não pode usar sua melodia
para o mal! Vamos traçar os limites agora mesmo, eu não vou virar melhor amiga de
supervilão não.

JOÃO – Eu posso fazer o Fabrício te chamar pra sair…

MALU – Fale mais sobre isso!

JOÃO – É só eu achar uma sequência de acordes que, sei lá, posso acabar fazendo
ele se apaixonar por qualquer pessoa.

MALU – Pois trate de continuar aprendendo então, aprende logo aí. Você tem que
fazer o bem, né? Por que não começar fazendo o bem pra sua amiga mais antiga?

JOÃO – Agora você tá me entendendo! Esquece, é óbvio que eu não vou mexer
com o coração de ninguém. Mas tá vendo o potencial infinito disso aqui? É surreal.

MALU – É, tava bom demais pra ser verdade…

JOÃO – Amiga, a gente pode mudar nossas vidas. Podemos mudar QUALQUER
vida, podemos mudar O MUNDO!

MALU – Vamos começar mudando essa postura, ajeita essa coluna.

Neste momento, Brunão entra na sala.

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Cena 3

Sala de aula

BRUNÃO – Uaaau… tá tocando Legião pra ela, magrelo? Peguei vocês no flagra.
Atrapalhei o casalzinho, não atrapalhei?

JOÃO – Ai, ferrou…

BRUNÃO – Bonitinhos vocês dois aqui, perceberam que nunca vão beijar ninguém e
decidiram dar umas lambidas um no outro só pra ver como é?

MALU – Cala a boca, garoto!

BRUNÃO – Ei, isso é jeito de falar comigo? Eu só elogiei vocês dois, já é mais do
que merecem. Vai espremer essas espinhas da cara!

Maria Luíza, cheia de raiva. Vira para seu amigo.

MALU – Anda, faz com ele!

JOÃO – Quê? Mas eu ainda tô.. eu nem sei…

BRUNÃO – Aaaaanda, João! Faz comigo, faz. Sua namoradinha tá pedindo… seja
homem!

Bruno ri enquanto debocha dos dois. Alguns alunos vão entrando aos poucos ao escutar a
confusão. Ficam observando dos cantos.

MALU – Faz logo!

JOÃO – Vem Malu, vambora daqui.

BRUNÃO – Coitado, ele ficou com medinho. Tá vendo? Melhor trocar de namorado,
moça. Esse daí não vale muito não.

João puxa Maria Luíza e os dois vão seguindo em direção a saída, só que - aparentemente
- Brunão estende o pé na frente. João tropeça, quase caindo no chão.

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MALU – OU, NÃO FAZ ISSO COM ELE!

Maria Luíza vai pra cima de Bruno com raiva e o empurra com força. O rapaz cai rolando
pelo palco, mas logo se levanta novamente. Mais alunos vão entrando em cena. A sala já
está quase completamente cheia.

BRUNÃO – Você tá maluca, espinhenta? Quem você pensa que é? Seu


namoradinho que não enxerga por onde anda, precisa trocar pra um óculos ainda
maior. Ainda sujou meu tênis!

Bruno vai andando com o dedo apontado para Maria Luíza enquanto levanta o tom de voz
com ela. Até que Fabrício se coloca entre ele e a garota.

FABRÍCIO – Tá gritando com ela por quê?

BRUNÃO – Quem te chamou aqui, bonitão? Não se mete que num é contigo!

FABRÍCIO – Grita comigo agora. Cadê? Tu só grita com garota?

MALU – Ele derrubou meu amigo!

BRUNÃO – Você que me derrubou na frente de todo mundo, caramba. Você é


doida, completamente doida!

Fabrício continua entre os dois, agora levantando também a voz para Brunão.

FABRÍCIO – Abaixa esse dedo pra falar com ela!

Bruno, agora assustado com Fabrício, finalmente se cala, sem tirar a cara de raiva do rosto.
Todo o palco fica em silêncio. Todos os estudantes ficam apreensivos.

Até que Maria Luíza volta a gritar:

MALU – Não preciso de ninguém pra me defender não!

FABRÍCIO – Ana Luíza, chega. Você também, né.

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MALU – É MARIA LUÍZA!

FABRÍCIO – Tanto faz…

MALU – Você nem sabe meu nome! Nem sabe, mano.

FABRÍCIO – Você tem TDAH?

MALU – Talvez, por quê?

Brunão volta a rir.

MALU – E FICA QUIETO, seu gordo babaca!

Fabrício se vira pra segurar Maria Luíza e fica de costas para Bruno, que agora cruza o
palco enfurecido em direção aos dois enquanto grita:

BRUNÃO – Você tá achando que manda aqui? Você? Eu fico quieto a hora que eu
quiser sua filha da..

Cena 4

(Musical)

Sala de aula

Antes mesmo que Brunão termine o xingamento, João começa a cantar e tocar seu violão,
sentado no canto da sala.

JOÃO – Não, você não vai xingar ela não

(E bate o pé no chão ao som do último "não")

Vai ficar quieto sim e me escutar aqui, Brunão

(Batendo novamente o pé ao som do "ão" no final)

Bruno vira somente o tronco em direção a João, sem mover os pés do lugar, já sendo

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controlado pelo garoto.

JOÃO – Muito prazer, pra quem não sabe eu sou o João

(Bate o pé no chão enquanto estica o braço para saudar a turma após tocar a última nota)

E até onde sei, a sala não tem dono não

NÃO, NÃO!

(Toda a turma bate duas vez o pé no chão, inclusive Bruno, acompanhando o som dos
"nãos")

Bruno começa a ficar assustado mas não consegue sair do lugar.

JOÃO – Mas se quiser, pode fazer teu show então

(João e Bruno batem o pé no chão)

Bruno segura sua perna direita com as duas mãos, assustado. Ao mesmo tempo que João,
Bruno bate o pé esquerdo no chão, já que está segurando a perna direita.

JOÃO – A turma toda quer ver tua apresentação

(sempre batendo um pé no chão ao final)

Bruno agora segura as duas pernas, uma com cada mão.

JOÃO – Fiquei sabendo que cê desce até o chão

(bate o pé no chão)

Bruno, com as mãos nos joelhos, se abaixa e sobe rapidamente como se estivesse
dançando funk.

JOÃO – Vira de costas e balança esse bundão

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Bruno vai dançando exatamente do Jeito que está sendo cantado, enquanto reclama:

BRUNÃO - NÃO, Não!!

E a música continua:

JOÃO – Seu rebolado chama a nossa atenção

Como requebra ao som desse meu violão

Vê se entende, aqui não tem nenhum bobão

MALU – João!?

JOÃO – …nem bobona.

TURMA – NÃO, NÃO!

(Canta toda a turma enquanto batem o pé duas vezes no chão).

JOÃO – Fiquei sabendo que cê desce até o chão

Vira de costas e balança esse bundão!

O melhor dançarino do terceirão.

Tomem cuidado, com ele têm jeito não

TURMA – NÃO, NÃO!

(Novamente, toda a turma batendo os pés)

Enquanto dança, Bruno grita para João.

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BRUNÃO – PARA com isso! AGORA!

FABRÍCIO – Mas tá todo mundo adorando, Brunão.

ESTUDANTE A – Já foi até pro meu tiktok!

ESTUDANTE B – Continua gravando!

Conversam os alunos no fundo enquanto seguram os celulares.

BRUNÃO – Naaaaaaaaaaão.

Exclama Bruno, de forma triste e lenta. E a música segue para a estrofe final:

TURMA – Seu rebolado chama a nossa atenção.

(Batem os pés no chão).

JOÃO – Como requebra ao som desse meu violão.

(Batem os pés no chão).

TURMA – O melhor dançarino do terceirãaaaaao.

Termina a canção e todos aplaudem enquanto batem os pés repetidamente no chão.

FABRÍCIO – Que diabo foi isso, gente?

MALU – Ah, mano… ele deve estar ensaiando pra apresentar na Sextalentos mês
que vem.

JOÃO – Valeu, Malu. (Baixinho)

ESTUDANTE B – Tá de parabéns, Brunão. Sabia que você era bom assim não.

BRUNÃO – Vocês… vocês gostaram, foi?

ESTUDANTE A – MUITO!

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Furiosa, a coordenadora Garcia entra na sala. (Mesma atriz que faz a vó, com outro
figurino).

Cena 5

Sala de aula/cortinas fechadas

GARCIA – Onde vocês pensam que estão? Tem gente fazendo prova do lado, tem
gente fazendo prova em cima, tem gente fazendo prova embaixo…

A turma toda fica assustada, em completo silêncio.

GARCIA – O professor Bento bateu de carro, vocês farão a prova dele na semana
que vem. Os quatro aí (apontando para João, Maria, Fabrício e Bruno, que estavam
na frente), pra minha sala, agora! Hoje vão passar a tarde comigo de detenção, o
resto da turma pode ir pra biblioteca estudar pra prova de amanhã. Meio dia estão
liberados.

João vai até a frente do palco guardar o violão dentro do case. Malu, Fabrício e Brunão
seguem a Coordenadora para fora do palco enquanto discutem sem parar um com o outro.

O restante da turma vai recolhendo os pertences e as carteiras enquanto as cortinas são


fechadas na frente. Somente João permanece na frente delas, agora sozinho na visão da
plateia. Enquanto se levanta com o violão, ele retira o celular do bolso e liga para sua avó.

JOÃO – Oi, vozinha. Tenho más notícias.

JOÃO – Não, eu tô bem! Só cancela com o tio, eu não vou conseguir ir pro hospital
com ele hoje… não vai dar.

JOÃO – É, eu sei. Eu sei… mas deu tudo errado aqui. Vou ter que passar a tarde na
escola. Peguei uma detenção.

JOÃO – Foi só uma confusão, eu explico quando chegar em casa.

JOÃO – Vó, desculpa…

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Ele vai andando em círculos pela frente do palco enquanto continua falando pelo celular.

JOÃO – Eu sei. É, não precisa me esperar pro almoço. Eu como aqui na escola.

JOÃO – Amanhã, amanhã eu vou lá ver ele. Eu prometo!

JOÃO – Não, eu não prometi da outra vez não. Foi? Ah… então não vou prometer
de novo. Já não consegui cumprir.

JOÃO – Tá, tá bem. Eu prometo que vou tentar. Tá prometido.

JOÃO – Perdão, vozinha. Pede desculpa pro tio também. Mas te juro, vai dar tudo
certo.

JOÃO – …beijo, vó. Beijo

Assim que João desliga o celular, as cortinas são abertas novamente no fundo revelando a
sala de detenção onde os três outros delinquentes já estão sentados esperando. Bruno está
com um curativo no braço, por ter se cortado durante a queda (o ator usará essa faixa
quase até o fim da peça).

Cena 6

Detenção

Com o violão nas costas, João vai se aproximando de Maria Luíza, que se levanta pra falar
com ele.

MALU – Jão, por que tu não fala pra ela que precisa ir visitar teu vô? Ela vai
entender, fala que é importante.

JOÃO – Porque eu já disse que tinha feito isso hoje. Eu cheguei atrasado, ela só
deixou eu entrar porque eu falei que tava no hospital, que tinha ido ver ele antes de
vir pra cá.

MALU – Ah, mentiroso. Olha só.

JOÃO – É, me dei mal mesmo.

Maria puxa seu amigo para longe dos outros garotos e continua falando, mais perto do seu

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ouvido:

MALU – Então para o tempo, usa o violão e faz o tempo parar. Vai lá rapidinho e
volta aqui, sem ninguém perceber que saiu.

JOÃO – Não dá, parece que só funciona com seres vivos. Acho que, pra dar certo,
tem que ser algo que escuta, algo ou alguém que tenha ouvidos. Não consigo mexer
no tempo, só com pessoa. Nem com objeto, já tentei. Eu não conseguiria nem parar
os ponteiros do relógio, se quisesse, imagina parar o TEMPO.

MALU – Então toca algo pra coordenadora, faz ela liberar a gente. Ela já deve estar
voltando.

JOÃO – É, isso dá pra fazer. Posso tentar…

Brunão se aproxima dos dois com o celular na mão, interrompendo a conversa.

BRUNÃO – Vocês dois… (pequena pausa) obrigado! Eu viralizei mesmo, olha isso.

JOÃO – Ah… de nada?

Fabrício também se aproxima

FABRÍCIO – Qualquer um hoje viraliza no tiktok, grandes coisas.

BRUNÃO – É sério, olha aqui (mostrando a tela do celular). Nunca vi esse tanto de
número, bonitão.

FABRÍCIO – Eita, é mesmo. Você tá fazendo sucesso, realmente… É o melhor


dançarino do terceirão (cantarolando enquanto imita a dancinha de mais cedo).

BRUNÃO – Por isso tô agradecendo esses dois, fizeram magia! Aquilo ali foi
mágico. (Enquanto abraça João e Maria Luíza).

FABRÍCIO – Pra você… Já eu, me ferrei. Vocês me ferraram. Vou perder minha
educação física agora de tarde! Em vez de ir pra quadra, vou ter que ficar aqui.

BRUNÃO – Você que entrou no meio da confusão, presta atenção, ninguém te


chamou.

MALU – Verdade! Pra me chamar de Ana Luíza, ainda por cima.

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Fabrício aponta para João e logo sai andando atrapalhado com uma flauta imaginária sendo
tocada em sua boca enquanto, diz:

FABRÍCIO – Eu? Esse garoto aí que nos enfeitiçou como um flautista e foi tocando,
tocando, até que trouxe a gente tudo aqui pro buraco.

BRUNÃO – E não foi incrível? Você mesmo disse, todo mundo tava gostando! Deixa
eu ver se consigo tocar essa música também…

JOÃO e MALU – NÃO!

Bruno estende a mão e pega o case do violão. João e Maria Luíza, reagindo na mesma
hora, não soltam a alça do instrumento.

BRUNÃO – Ué, que foi? (Percebendo o exagero dos dois). O que tem aí dentro?

JOÃO – Não, nada! É que…

MALU – É de família, né. É algo sentimental, ele ganhou do vô.

BRUNÃO – Deixa eu ver o que vocês estão escondendo, agora eu fiquei curioso.

Bruno faz força e retira o instrumento das mãos dos dois amigos. Vai andando até uma das
cadeiras enquanto abre o case para retirar o violão. Maria Luíza e João vão andando atrás,
preocupados.

JOÃO – Tem nada escondido não, amigo. É só um violão.

MALU – É, um violão qualquer! Um violão normal…

BRUNÃO – Ué, mas não era um violão especial? Um violão de família?

Bruno, agora sentado com o violão pronto nos braços, se prepara para tocar.

JOÃO – Você não vai saber as notas, me dá aqui que eu te ensino a tocar aquela.
Eu te ajudo.

BRUNÃO – Deixa eu tentar, vai que consigo de memória. Me fala os acordes que eu
tento pegar.

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No exato momento em que Bruno levanta a mão para tocar, a coordenadora entra no palco,
interrompendo a ação. Ela retira o violão das mãos de Bruno.

GARCIA – Ei, ei, ei, nada disso. Guarda isso agora! Vocês querem ganhar a
detenção da detenção? Já não fizeram barulho o suficiente hoje? Que palhaçada é
essa?

FABRÍCIO – Mãe, qual é? Eu não posso ficar aqui hoje, tenho educação física. Hoje
eu jogo futebol com os meninos.

JOÃO – Ué, ele é filho dela?

MALU – Fica quieto!

GARCIA – Fabrício Garcia, senta ali agora! Quem manda aqui sou eu.

FABRÍCIO – É sério, mãe. Eu cumpro a detenção amanhã. Amanhã é minha única


tarde livre da semana, você sabe, eu passo ela aqui. Mas hoje não dá, não posso
ficar aqui perdendo tempo.

GARCIA – Mas vai ficar, HOJE! Já avisei os responsáveis dos três e a responsável
sua, veja só, sou eu. Fiquem quietos, eu vou tirar esse violão daqui e já volto! Nem
um pio.

A coordenadora Garcia sai do palco, deixando os quatro alunos sozinhos.

JOÃO – Não sabia que você era filho dela…

MALU – Tá doido? Nunca viu que eles são a cara um do outro?

JOÃO – Você não conta, sabe tudo da vida dele.

MALU – Cala a boca!

FABRÍCIO – É por isso que ela tá pegando pesado, pra dar exemplo. Pra mostrar
que não pega leve só porque é com o filho dela. Nos ferramos por causa disso.

BRUNÃO – Viu, a culpa também é sua…

A coordenadora volta pro palco, já sem o violão, e novamente se dirige aos alunos.

GARCIA – Vamos lá, agora me expliquem. Por que trouxeram um violão em dia de
prova? Logo hoje? Balançar o bundão até o chão?

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Todos permanecem em silêncio.

GARCIA – Eu vou ter que deixar vocês de detenção a semana inteira?

JOÃO – Foi culpa minha, foi minha…

BRUNÃO – Foi ideia dele, fazer um ensaio pra turma. É, logo hoje… é que a gente
tá nervoso com a apresentação mês que vem. Já tá chegando, né?

GARCIA – Que apresentação?

BRUNÃO – A gente vai apresentar uma música no sextalentos… Não é, Luíza?


João achou que dava pra ensaiar rapidinho no intervalo, mas a turma empolgou
muito.

MALU – Aí, eu sabia que ia dar em banda…

JOÃO – Não é banda, só vamos cantar juntos! Montamos um grupo de canto, nós
somos… nós somos os SELVAGENS (inventa após ler um cartaz escrito "vida
selvagem" em uma das paredes no fundo).

Maria Luíza estende a mão na frente do rosto. A coordenadora, agora esboçando um leve
sorriso, se vira para seu filho.

GARCIA – Mas Fabrício não me contou nada…

FABRÍCIO – Era pra ser surpresa… a gente tava ensaiando escondido, mãe. Queria
fazer surpresa pra você.

Responde o rapaz, ao perceber a empolgação de sua mãe, que logo volta a ficar séria:

GARCIA – Pois bem. Não ensaiem mais aqui, vocês terão as tardes pra isso. E
tratem de ensaiar mesmo, a apresentação de vocês vai valer nota.

MALU – Quê? Mas quem apresenta ganha ponto extra!

GARCIA – Pra vocês, vai ser ponto obrigatório! As provas dessa semana vão estar
valendo metade da nota. Querem tocar na escola? Vão tocar na escola sim, mas no
lugar e na hora certa.

FABRÍCIO – Mas, mãe…

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GARCIA – Nada disso, aqui você me chama de Dona Garcia! E agora vem cá, você
e Bruno. Me ajudem a carregar essas caixas pra biblioteca,

BRUNÃO – Eu machuquei o cotovelo, Dona Garcia…

GARCIA – Então vêm, João. Bom que já vai malhando os bracinhos. E vocês dois
(apontando para Bruno e Malu) esperem aí, se comportem.

A coordenadora sai do palco acompanhada por Fabrício e João, que carregam algumas
caixas que estavam no canto da sala.

Cena 7

Detenção

BRUNÃO – …agora eu entendi o porquê de você ficar toda bolada.

MALU – Vou te dar ideia não, sai de perto.

BRUNÃO – O que te deixou com raiva mesmo foi ter chamado vocês dois de
namoradinhos, você tá é apaixonada pelo filho da coordenadora! Por isso.

MALU – Olha aqui, a gente vai acabar brigando de novo! Tu fica quieto no seu
canto.

BRUNÃO – Tem problema nenhum nisso… Muita gente gosta dele, muita garota
gosta. Já viu ele jogando bola? As pernas grossas correndo, é óbvio que devem
gostar. Claro que gostam, você gosta com certeza!

MALU – Isso foi meio gay…

BRUNÃO – O quê? Vai se ferrar!

MALU – Quem é que fica olhando as pernas do outro jogando bola?

BRUNÃO – …VOCÊ!

MALU – E você também, pelo visto.

BRUNÃO – Tá bom, eu vou pro meu canto. Você ganhou, é maluca mesmo.

Irritado, Bruno se levanta e arrasta sua cadeira para o canto oposto do palco.

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MALU – Faz sentido, tem gay que é misógino mesmo.

BRUNÃO – EI, EU NÃO SOU MISÓGINO!

MALU – …mas é gay, viu só?

BRUNÃO – Claro que não, eu sou filho de pastor! Não tem como ser gay, eu não
sou não. Para com isso.

MALU – Entendi, é reprimido em casa e por isso fica descontando sua raiva com a
gente na escola. Já entendi tudo.

BRUNÃO – Desisto…

MALU – Você precisa se aceitar, colega.

BRUNÃO – E você precisa se enxergar, o Fabrício nunca sairia com alguém como
você. Tem espelho em casa?

MALU – Muito menos com você, eu pelo menos tenho peitos!

BRUNÃO – Ah, duvido. Se eu fosse gay, SE eu fosse. Com certeza teria mais
chances que você…

MALU – Quer apostar?

BRUNÃO – Bora! Duvido você conseguir um beijo dele.

MALU – Pois tá apostado então! (Enquanto aperta a mão de Bruno).

BRUNÃO – Se ele te beijar até o fim do ano, eu vou lá e beijo ele também. Só pra te
mostrar o quanto que eu não sou gay! Não interfere nadinha na minha sexualidade,
consigo beijar ele tranquilamente.

MALU – Aham… claro, Brunão…

BRUNÃO – O último dia letivo vai cair na sexta, no dia do evento. Você tem até o dia
da sextalentos pra conseguir um beijo dele! Unzinho só.

MALU – …quase um mês.

BRUNÃO – E se não conseguir… o que eu ganho?

MALU – Você fica com o violão do João! (enquanto aponta para o case vazio no
chão da sala). A gente te dá ele. Vai poder ficar gravando pro TikTok.

BRUNÃO – Feito!

Fecham-se as cortinas na frente dos dois alunos se encarando.

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Cena 8

(Musical)

Cortinas fechadas

A vó de João sai de trás das cortinas por um dos cantos varrendo o chão enquanto
cantarola devagar:

VÓ – És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho… tempo, tempo, tempo,
tempo.

A medida em que vai varrendo pelo palco, começa uma pequena dança com a vassoura na
mão.

VÓ – Vou te fazer um pedido. Tempo, tempo, tempo, tempo…

O violão começa a ser tocado no fundo, atrás das cortinas, e a senhora começa a de fato
cantar, agora mais alto.

VÓ – Compositor de destinos

Tambor de todos os ritmos

Tempo, tempo, tempo, tempo

Entro num acordo contigo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Por seres tão inventivo

E pareceres contínuo

Tempo, tempo, tempo, tempo

És um dos deuses mais lindos

Tempo, tempo, tempo, tempo

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Enquanto continua tocando o violão, João sai lentamente de trás das cortinas e se junta a
música:

JOÃO – Que sejas ainda mais vivo

No som do meu estribilho

Tempo, tempo, tempo, tempo

Ouve bem o que te digo

Tempo, tempo, tempo, tempo

VÓ – Peço-te o prazer legítimo

E o movimento preciso

Tempo, tempo, tempo, tempo

Quando o tempo for propício

Tempo, tempo, tempo, tempo

Sorrindo e dançando pelo palco, os dois cantam juntos. Atrás das cortinas, palmas
começam no ritmo da música.

JOÃO e VÓ – De modo que o meu espírito

Ganhe um brilho definido

Tempo, tempo, tempo, tempo

E eu espalhe benefícios

Tempo, tempo, tempo, tempo

O que usaremos pra isso

Fica guardado em sigilo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Apenas contigo e 'migo

Tempo, tempo, tempo, tempo

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A música termina com um abraço apertado entre o neto e sua avó.

VÓ – Ô, João. Como você pegou rápido!

JOÃO – Já tô aprendendo bastante, pelo menos isso eu aproveitei da igreja.

VÓ – Poxa, eu falei pra tua mãe não te tirar da católica. Se tivesse crismado, seria
um menino de fé até hoje.

JOÃO – Mas não teria aprendido violão.

VÓ – E aprendeu bem, hein. Tá lindo, lindo. Igualzinho seu vô, me conquistou


todinha quando tocou…

JOÃO – Espera, cê não disse que ele aprendeu pro casamento? Vocês já estavam
juntos, né? Ele só começou a tocar depois que te conheceu, certo?

VÓ – Eu acho que não, agora não lembro direito. Faz tanto tempo, meu filho. Tempo,
tempo, tempo, tempo… (cantarolando). Pergunta lá amanhã pra ele!

JOÃO – É, não deu pra ir hoje…

VÓ – Não tem problema, acontece, a moça do colégio me contou. Amanhã você


arruma tempo.

JOÃO – Sim, amanhã! Obrigado, vozinha.

VÓ – Se preocupa não.

JOÃO – Ah, vó. A Malu vem aqui em casa hoje. Vai vir estudar comigo, daqui a
pouco deve estar chegando já.

VÓ – Pode deixar, eu mando ela subir! Ai, ai… não posso ficar dançando assim não,
meu joelho não aguenta mais não (passando a mão na perna).

A avó de João sai com sua vassoura por um dos cantos enquanto as cortinas vão se
abrindo aos poucos.

Cena 9

Quarto de João/Cortinas fechadas

Com as cortinas abertas, João coloca sua mochila num canto e senta em sua cama. O

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garoto retira os sapatos, cruza as pernas em cima do colchão e apoia o violão na cabeceira
do móvel.

Depois de observar o instrumento por alguns segundos, diz:

JOÃO – Não, vô. Você num fez isso não.

JOÃO – Não, acredito não…

JOÃO – Sério que fez isso? Cê chegou a fazer isso com a vó?

MALU – CHEGUEI!

Maria Luíza entra em cena, jogando sua mochila com força em cima da outra. João se
assusta.

JOÃO – Ai, quer me matar? Bate na porta! Você chegou muito rápido.

MALU – Vim correndo, mano. Eu te disse, temos uma emergência. Desde o fim de
semana que você não olha o whatsapp. Nem tentei te ligar!

JOÃO – Conta, qual foi a besteira que você fez na detenção?

MALU – Não foi besteira, eu… eu só… apostei o seu violão com o Brunão…

JOÃO – Você O QUÊ?

MALU – Apostei com ele que beijaria o Fabrício até o fim do semestre.

JOÃO – Malu, eu acabei de te contar do violão e você já faz isso comigo? Você que
é minha supervilã!

MALU – Eu não pensei em nada na hora, precisava apostar alguma coisa. E mesmo
assim, é certeza que vamos conseguir!

JOÃO – Beijar o Fabrício? Sério ANA LUÍZA?

MALU – SIM, com sua melodia! É só você fazer ele me beijar, só isso. Eu apostei
por ter certeza que conseguiria, poderia ter apostado qualquer coisa.

JOÃO – Eu não vou usar isso pra fazer alguém te beijar… quem seria capaz de algo
assim?

E os dois olham para o violão. Após alguns segundos, Maria Luíza responde:

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MALU – Seu AVÔ!

JOÃO – Naaaão, ele não fez isso. Nunca faria isso.

MALU – Pode ter feito, a gente não sabe…

JOÃO – NÃO.

MALU – E mesmo assim, olha tudo que gerou depois. Toda sua família, essa casa,
seus primos, você… você só existe por causa desse violão! Porque seu vô usou
esse violão lá atrás pra conquistar sua vó.

JOÃO – Amanhã eu vou conversar tudo isso com ele, vou pedir pra me explicar
tudo.

MALU – Não, amanhã você vai me ajudar a sair com o Fabrício! Você não ouviu ele
falando? É a única tarde livre dele na semana.

JOÃO – Ué, sai de noite.

MALU – E meu pai por acaso deixa? Com um garoto? Quantos anos tu acha que
tenho?

JOÃO – Amiga, eu não posso ficar tocando no ouvido dele pra sempre. Não tem
como eu fazer ele gostar de você por mais tempo do que a duração de uma música.

MALU – É, verdade… ou seja, melhor ainda. Você só vai fazer ele me dar uma
chance. Só preciso que ele saia comigo. É uma chance dele me conhecer, aí dali pra
frente sigo eu por conta própria. Não tem nenhuma maldade nisso, você sabe que
eu sou legal…

JOÃO – Mas eu fiquei de ir no hospital, podemos deixar pro fim de semana.

MALU – E se esse poder acabar? Você tem todo dia pra ir lá, eu só posso sair com
ele amanhã… só você sabe o quanto eu gosto desse menino.

JOÃO – Sim, eu sei. Desenha ele no caderno todo semestre desde o primeiro ano.

MALU – Me ajuda, vai…

JOÃO – E como faremos isso?

Neste momento, as cortinas vão se fechando na frente dos dois, que continuam
conversando e sendo ouvidos pela plateia.

MALU – Já tô planejando tudo, mano. Pensa aqui comigo…

Fabrício sai de um dos cantos e caminha lentamente pela frente das cortinas com mochila

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nas costas e as mãos nos bolsos.

MALU – Todo dia ele chega bem cedo na escola por causa da mãe dele, aí fica
rodiando ali no portão esperando os amigos chegarem.

JOÃO – Caramba… eu tô ficando assustado com você também.

MALU – Tu vai ter que chegar cedo também, vai ter que estar lá antes dele. Se vira,
adianta o despertador.

JOÃO – Já com o violão, correto?

MALU – Isso mesmo, mas fica escondido. Tenta ficar do lado de dentro do muro da
escola. Ele nem vai te ver, só precisa te ouvir. Tem que te ouvir tocar.

JOÃO – E a senhorita?

MALU – Vou ligar pra ele!

Sozinho na frente do palco, Fabrício retira o celular do bolso e atende uma ligação.
Espantado por não conhecer o número que aparece na tela.

FABRÍCIO – Alô? Quem é?

JOÃO – Ligar? Por que ligar?

MALU – Porque não vou ter coragem de chamar na frente dele, eu fico nervosa!
Não vou conseguir.

JOÃO – Mas eu vou fazer ele aceitar. Ele vai querer.

MALU – E se não der certo? E se ele não quiser. Ele não vai me querer, não
consigo! Vou chamar por ligação.

FABRÍCIO – Ah, oi… Ana Luiza?

João toca o violão lá de trás.

FABRÍCIO – Opa, Maria Luíza! Desculpa, me enganei.

MALU – Valeu, Jão.

FABRÍCIO – Sair? Quem convida alguém uma hora dessas? Sabe que horas são?

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Novamente, o violão é tocado ali atrás.

FABRÍCIO – Alguém que tá muito empolgado, né? Ah, tem que estar muito
empolgado pra convidar alguém pra sair às seis da manhã. Legal, fico feliz, sua
empolgação está até me contaminando já (risada).

JOÃO – E você vai com ele pra onde?

MALU – Sei, lá um sorvete. Qualquer coisa que dê pra fazer numa tarde de terça.

FABRÍCIO – O quê? Sair hoje de tarde? Você tá me chamando pra sair no mesmo
dia? É minha única tarde livre da semana.

Violão sendo tocado.

FABRÍCIO – Então é perfeito! Único dia que posso, você chamou no dia certo
mesmo. Acho que dá pra mim sim, te aviso por mensagem.

JOÃO – É, Malu. Tá difícil aqui, cê vê se me agradece bastante depois. O menino é


casca grossa.

João toca uma última vez, agora por mais tempo.

FABRÍCIO – Ah, vamos confirmar de uma vez já. Melhor, né? Mas vamos pra um
bar, bateu a vontade de beber.

FABRÍCIO – Isso, isso. Te vejo lá então, Malu.

FABRÍCIO – Tchau, tchau. Até.

Fabrício fecha o celular e sai pelo canto do palco. Pouco depois, Maria Luíza e João saem
de trás das cortinas pulando pelo meio do palco.

MALU – Ele aceitou, ele aceitou, ele aceitou!!!

Mas a empolgação de Maria logo vira desespero:

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MALU – Ele aceitou… ele aceitou, socorro! O que eu faço? Ele aceitou, João. Eu
vou morrer.

JOÃO – Calma, vai dar tudo certo. O mais difícil já foi, ele aceitou. Você consegue!

MALU – Mais difícil nada, eu tinha você! Agora é que vem a parte difícil. Eu tô
ferrada, vou cancelar. Não vai dar…

JOÃO - Ah, você não vai cancelar nada não! Nem que eu tenha que te levar
arrastada tocando. Fez eu fazer tudo aquilo à toa? Você vai sair com ele sim!

MALU – Então me ajuda! Se eu não conseguia nem chamar ele sem ser pelo
telefone, imagina passar a tarde toda junto? Vai comigo, me ajuda!

JOÃO – Não, Malu. A gente combinou que só faria ele te dar uma chance, não vou
ficar usando o violão nele. Agora é contigo.

MALU – Não mesmo, você vai usar em MIM! Usa comigo.

JOÃO – Quê?

MALU – É só você me deixar confiante. Fica tocando ali perto, algo que me deixe
confiante… confiante e sedutora!

JOÃO – Malu… isso vai dar certo?

MALU – Sim, você vai estar mexendo comigo. Não com ele, comigo! E eu tô te
autorizando. Por favor, por favor!

Dois garçons (mesmos atores que fazem os alunos) entram pelos cantos e abrem uma
mesa de bar e duas cadeiras ali do lado dos dois. Uma terceira garçonete passa um pano
na mesa, estende uma toalha e coloca um porta-guardanapos em cima.

JOÃO – Beleza, eu vou ficar tocando ali na sala do lado. Vou usar só contigo. Vou
tocar pra você, ok? Vou me esconder ali, não deixe ele vir pra cá. Vou lá tocar.

GARÇONETE – Ei, você precisa marcar horário pra vir tocar aqui. Temos uma lista,
você não pode…

JOÃO – É claro que posso, anota meu nome na frente lá. Não vou nem cobrar o
couvert artístico. Vai todo mundo gostar.

Diz João, enquanto toca seu violão e vai saindo para trás das cortinas. A garçonete, após
ouvir o instrumento, o obedece.

MALU – Amigo, espera. Você tem que tirar uma foto! Eu preciso de uma foto pra

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provar pro Brunão. Você precisa tirar uma foto na hora do beijo.

JOÃO – Você vai tentar beijar HOJE? Malu… que eu saiba, você nem nunca beijou
ninguém. Selinho não conta. Não tá querendo demais? Vai com calma… vai querer
beijar mesmo?

MALU – É claro que vou, com a sua ajuda. Vai me deixar confiante. Empoderada!
Importante também.

JOÃO – …e sedutora?

MALU – Isso, mano! Não tem problema, eu já me imaginei beijando o Fabrício umas
centenas de vezes. Se contar sonho, ainda mais. Tô preparadíssima, vai rolar!
Tenho fé que vai.

E empurra João para trás das cortinas.

Cena 10

Mesa de bar

Sozinha ali na frente, Maria solta o cabelo, retira seu casaco, expondo seus ombros, e se
senta para aguardar seu par.

Ela começa a bater o pé no chão, ansiosa. João começa a tocar no fundo.

MALU – Calma, ele não chegou ainda! Não empolga.

JOÃO – Opa, perdão.

MALU – Ele vai chegar, né? É claro que vai, não vai furar. A gente só fez ele aceitar
o convite, é claro que só precisava disso. Homem sempre que confirma, aparece!
Não aparece?

JOÃO – Não aparece, não…

MALU – Então vou te fazer ir lá buscar

FABRÍCIO – Buscar quem?

Diz Fabrício, enquanto sai de trás das cortinas. Maria se levanta para abraçá-lo, mas ele
passa direto sem ver e já se senta.

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FABRÍCIO – Um litrão?

MALU – Eu… eu não bebo. Não, vou querer não.

GARÇONETE – E nem você vai querer, mocinho. Vamos servir menor de idade não,
que coisa feia. Aqui não.

FABRÍCIO – Mas, eu sou maior de idade!

GARÇONETE – Não enquanto usa uniforme de escola, né. Que coisa feia, é muita
cara de pau.

FABRÍCIO – Vamos pra outro bar então, Maria?

MALU – Ah, não sei. Quer ir mesmo? Vamos pedir um sorvete… olha, aqui tem
karaoke! Vamos ficar, a gente canta!

GARÇONETE – Só funciona de noite.

FABRÍCIO – Vamos, tem outro aqui na rua.

Fabrício se levanta e dá a mão para Maria Luíza, puxando-a. A garota fica sem reação,
calada, trocando o olhar repetidamente entre o rosto de Fabrício e sua mão.

MALU – Vamos…

João, na mesma hora, começa sua melodia atrás das cortinas. Não é só uma nota, mas
uma música ininterrupta. (Pode ser qualquer outra pessoa tocando neste momento, o
personagem não participará presencialmente da cena).

MALU – Vamos ficar aqui! Marcamos aqui, é aqui. Bebe outro dia!

FABRÍCIO – Que dia?

MALU – No dia que fizer 18, ué. Se toca.

A garçonete ri ao lado. Fabrício se senta novamente.

FABRÍCIO – Uau! Decidida você, hein. Mas olha, só topei vir porque queria beber…
acho melhor…

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João alterna o ritmo do que estava tocando para algo mais lento e suave. O efeito é
instantâneo em Maria Luíza, que acaricia o braço de Fabrício enquanto balança o cabelo
com a outra mão.

MALU – Menino, que isso. Vamos tomar um milkshake. Traz um pra gente, colega.
Pode ser um canudo só!

FABRÍCIO – Eu tenho intolerância a lactose.

MALU – Uma coca?

FABRÍCIO – Tô evitando refrigerante.

João muda novamente o ritmo do som que toca.

MALU – Uma água então, por favor. Se água ele negar, que fique com sede.

FABRÍCIO – (rindo) Você é engraçada.

MALU – E você é meio fresco, mano.

FABRÍCIO – Achei que tivesse TDAH, mas parece… bipolaridade. Sei lá, você muda
de repente…

MALU – Desde quando você é psicólogo, garoto? São coisas sérias pra ficar
brincando assim.

FABRÍCIO – Minha mãe é a coordenadora, poxa. Se especializou em


psicopedagogia. Escuto sobre isso o dia inteiro…

MALU – Ah, então você até que aprende alguma coisa.

FABRÍCIO – Eu vou ao banheiro, já volto.

Fabrício se levanta e vai até a direção por onde João saiu para trás das cortinas. Maria
Luíza se levanta junto.

MALU – Mas já? Acabou de chegar! Fica mais… deixa pra ir em casa.

FABRÍCIO – E já vim apertado, ué. É rapidinho. Já volto.

MALU – Então eu vou também. Vou na frente, digo. Não contigo. Deu vontade
agora, parece que contagia, né? Posso ir primeiro? Damas na frente?

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FABRÍCIO – Mas tem dois…

Fabrício diz enquanto vai saindo. A garçonete o interrompe e avisa que os banheiros ficam
para o outro lado. Fabrício segue para a outra direção e sai pelo canto oposto do palco.
Maria se senta, aliviada.

MALU – Ufa… por pouco.

João, aparentando não ouvir o que estava sendo falado, muda novamente o som para algo
mais romântico. Maria Luíza se vira para a garçonete.

MALU – Aqui… mas e você, hein? Vem sempre aqui?

GARÇONETE – Eu trabalho aqui, sabe?

MALU – Ah, é. (risada) Boba eu, né? Desculpa, fico sem jeito perto de gente bonita.

Maria levanta para se aproximar da garçonete e fica em pé apoiada em uma das cadeiras.

MALU – Me fala teu nome? Como se chama?

GARÇONETE – É Sol, mas pode me chamar de minha querida, de consagrada, de


doutora…

MALU – Doutora Sol, bonito seu nome. Combina com teu cabelo, bonito seu cabelo.

FABRÍCIO – Hmm… tô, interrompendo alguma coisa?

MALU – Olha só, meu boy voltou!

Maria Luíza sai de perto da garçonete e agora vai se aproximando de Fabrício desfilando
enquanto olha fixamente nos seus olhos. Chegando perto, o abraça.

MALU – Já estava com saudade. Da próxima vou junto mesmo…

FABRÍCIO – Olha, eu acho que você tá confundindo as coisas. Eu não sei se te


quero desse…

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João muda novamente a melodia. Maria dá uma empurradinha em Fabrício e se afasta um
pouco.

MALU – Quem te perguntou? Primeiro quem tem que querer alguma coisa sou eu! E
olha…

Maria observa Fabrício da cabeça aos pés.

MALU – Te olhando de perto, até que tu não é lá grandes coisas.

E sai andando pra direção da garçonete Sol, que ri baixinho.

FABRÍCIO – Mas, não… mas não achou por quê? Como assim?

Maria se vira e olha pra ele, depois continua andando normalmente sem responder.

FABRÍCIO – Quer dizer então que… e se eu quisesse? Se eu quisesse, você não


iria querer?

MALU – Tá precisando estudar mais, parar de faltar aula. Tá chutando qualquer


coisa em prova, mano.

FABRÍCIO – Me ajuda na próxima, você ofereceu… bora estudar junto?

MALU – Aí você vai melhorar na prova, te garanto que melhora suas notas.

FABRÍCIO – Me ajuda então!

O som muda novamente. Agora para uma mistura de tudo o que havia sido tocado até ali,
no que parece ser o clímax da música. Maria muda de direção e caminha decidida para
cima de Fabrício.

MALU – Vamos, claro que vamos. Te ajudo em tudinho que precisar! Qualquer
coisa.

FABRÍCIO – É… preciso, tô precisando sim.

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MALU – Mas por favor, quem é que vem com uniforme de escola pra um date?

FABRÍCIO – E você que vem de bermuda? E eu nem sabia que isso aqui era um
date.

MALU – Pois agora tá sabendo. Sol, minha querida. Liga o karaoke pra gente?

GARÇONETE – É pra já, mas e o idiota do violão?

MALU – Só traz o microfone então.

Maria e Fabrício ficam frente a frente, com os rostos quase colados. Ela em pé e ele
sentado. Fabrício desabotoa sua camisa de uniforme e fica somente com a camisa branca
que usava por baixo. Sol volta com o microfone e entrega para a garota, que já começa a
cantar.

A iluminação muda e o palco fica todo avermelhado.

Cena 11

(musical)

Mesa de bar

MALU – Meu bem, você me dá água na boca

Vestindo uniforme, trocando a roupa

FABRÍCIO – Maria Luíza!

MALU – Molhada de suor de tanto a gente se beijar

FABRÍCIO – …de tanto o quê?

MALU – De tanto imaginar loucuras

Maria segue cantando pelo palco com o microfone na mão. Sol começa a balançar o quadril

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no ritmo da música.

MALU – A gente faz amor por telepatia

GARÇONETE – Nessa idade é por telepatia mesmo só.

MALU – No chão, no mar, na lua, na melodia

FABRÍCIO – Até que ela canta bem, né?

GARÇONETE – Muito! Eu daria uma chance.

MALU – Mania de você

De tanto a gente se beijar

De tanto imaginar loucuras

FABRÍCIO – Ok, é um beijo que você quer? Se quer me beijar, um beijo eu posso
pensar em te dar sim…

As notas mudam, a iluminação troca de cor e o palco agora fica todo roxo.

MALU – Já não me importa a sua opinião

O seu conceito não altera a minha visão

Foi tanto sim que agora digo não

Porque a vida é louca, mano, a vida é louca

FABRÍCIO – Louca?

GARÇONETE – Ih, tu perdeu. Já não quer saber mais de você…

MALU – Quero saber sobre o que me faz bem

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Papo furado não me entretém

Não dê limite que eu quero ir além

Porque a vida é louca, mano, a vida é louca

GARÇONETE – Já era.

FABRÍCIO – Tá certo, sem beijo. Não faremos mais nada.

As luzes voltam a ficar vermelhas.

MALU – Nada melhor do que não fazer nada

Só pra deitar e rolar com você

Nada melhor do que não fazer nada

Só pra deitar e rolar com você

FABRÍCIO – Não tem como, ela tá me iludindo! Você tá vendo isso?

GARÇONETE – E você tá ficando doidinho por ela! Tá dando certo…

FABRÍCIO – Tô é confuso, às vezes ela dá em cima de mim… depois me despreza,


trata que nem lixo.

De novo, a cor se altera.

MALU – Sempre dou o meu jeitinho

É bruto, mas é com carinho

Porque Deus me fez assim

FABRÍCIO – …assim como?

MALU – Dona de mim

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GARÇONETE – Lindaaaa! (Batendo palmas)

MALU – Deixo a minha fé guiar

Sei que um dia chego lá

Porque Deus me fez assim

Dona de mim

As luzes agora se alternam repetidamente entre o vermelho e o roxo.

MALU – Nada melhor do que não fazer nada

Quero saber sobre o que me faz bem

Não dê limite que eu quero ir além

Só pra deitar e rolar com você

Terminando de cantar, Maria Luíza se abaixa para agradecer a plateia. A garçonete aplaude
(o que deve acabar puxando palmas do público também). As luzes voltam ao normal.

GARÇONETE – Arrasou, garota!

FABRÍCIO – Pior que mandou bem mesmo.

MALU – Obrigado, eu sei. Obrigado.

FABRÍCIO – Desde quando você canta assim, Maria? E dança, faz sucesso e sei
lá…

MALU – Eu cantei na escola ano passado, mano! Morri de vergonha mas acho que
todo mundo gostou. Você que sempre falta em toda Sextalentos e não viu.

FABRÍCIO – É, e agora vou ter que ir nessa próxima cantar com vocês. De quem foi
essa ideia mesmo?

MALU – E graças a isso, vai ter nota pra passar. Pode agradecer eu e o João
depois.

FABRÍCIO – E… esse João, não é seu namorado mesmo então?

MALU – Quê!? Tá doido! CLARO QUE NÃO, ele é só…

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O violão volta a tocar no fundo.

MALU – O meu melhor amigo da vida toda! Um cara incrível, companheiro,


prestativo, estudioso. Uma das melhores pessoas que já conheci nesse mundo!

FABRÍCIO – Uau, isso tudo? E mesmo assim… nunca foi a fim dele?

MALU – Não, não. É meu amigo! Gostar GOSTAR mesmo, eu gosto de outra
pessoa…

FABRÍCIO – É? …quem? De quem?

MALU – Ah, mano. Tô desistindo, a pessoa nem quer. Nem vai rolar, não tá me
querendo.

FABRÍCIO – Moça, você é mesmo uma caixinha de mistérios! Não dá pra te decifrar.

MALU – Você que nunca prestou atenção em mim, querido. Eu sempre estive ali,
você que nunca viu. Nunca quis.

FABRÍCIO – E se eu quiser?

MALU – Agora você trata de querer ensaiar pra cantar direitinho com a gente mês
que vem.

FABRÍCIO – Você, se eu quiser você!

MALU – Ah, então você quer? Tá falando sério?

FABRÍCIO – …o quê?

MALU – O violão nem tá tocando! Cala a boca, fica quietinho. Para de bobeira.

FABRÍCIO – Você também nunca me viu cantar, moça. Me dá esse microfone aí,
Sol. E manda o tio do violão me acompanhar.

Com o microfone na mão, ele começa a cantar:

FABRÍCIO – Diz pra eu ficar mudo, faz cara de mistério. Tira essa bermuda que eu
quero você, sério…

O Violão começa a tocar, agora das coxias, e as cortinas se abrem.

40
Cena 12

(Musical)

Bar inteiro

Ali no fundo, estão todos os funcionários trabalhando. Um cozinheiro passando com panela
na mão, dois garçons levando outra mesa. Outra pessoa levando uma bandeja. Cada um
fazendo sua função. Fabrício sai cantando por entre eles.

FABRÍCIO – Tramas do sucesso

Mundo particular

Solos de guitarra

Não vão me conquistar

Todos os funcionários do bar começam a bater o pé no ritmo da música. Maria puxa a


cadeira pro canto e se senta para observar. Fabrício se vira pra ela.

FABRÍCIO – Uh eu quero você

Como eu quero

Uh eu quero você

Como eu quero

Fabrício pega Maria Luíza pela mão e começa a dançar girando com ela pelo salão.

FABRÍCIO – O que você precisa

É de um retoque total

Vou transformar o seu rascunho

Em arte final

Maria se solta de Fabrício, retira o microfone da mão dele e sai cantando:

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MALU – Agora não tem jeito

'Cê tá numa cilada

Cada um por si

Você por mim e mais nada

Todos no palco começam a dançar, cada funcionário do bar com seu respectivo objeto em
mãos. Fabrício pega o microfone de volta.

FABRÍCIO – Uh eu quero você

Como eu quero

Uh eu quero você

Como eu quero

Longe do meu domínio

'Cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino

Como ser bem melhor

MALU – Meu filho, quem vai ensinar alguma coisa aqui sou eu. Se toca.

Os dois agora revezam o microfone.

MALU – Longe do meu domínio

'Cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino

Como ser bem melhor

Diz pra eu ficar muda

42
Faz cara de mistério

Tira minha bermuda

Que eu quero você sério

FABRÍCIO – Tramas do sucesso

Mundo particular

Solos de guitarra

Não vão me conquistar

FUNCIONÁRIOS – Uh

Os dois agora dividem o mesmo microfone. Cantando juntos:

MALU e FABRÍCIO – eu quero você

Como eu quero

FUNCIONÁRIOS – Uh

MALU e FABRÍCIO – eu quero você

Como eu quero

Longe do meu domínio

'Cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino

Como ser bem melhor

Enquanto Fabrício está virado para a plateia e não vê, João cruza o palco inteiro, tocando
seu violão, saindo de uma coxia e entrando por outra.

43
MALU e FABRÍCIO – Longe do meu domínio

'Cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino

Como ser bem melhor

Os funcionários passam a bater palmas duas vezes e bater o pé no chão uma vez, no ritmo
da música. Quem está com panela, bate a panela. Quem está com bandeja, bate a bandeja.

FUNCIONÁRIOS – Uh

MALU e FABRÍCIO – eu quero você

Como eu quero

FUNCIONÁRIOS – Uh

MALU e FABRÍCIO – eu quero você

Como eu quero

FUNCIONÁRIOS – Uh uh uh uh

Uh uh uh uh

Uh uh uh uh

João atravessa de novo o palco, enquanto toca, pelas costas de Fabrício. Voltando para a
direção de onde tinha saído.

MALU e FABRÍCIO – Eu quero você

Como eu quero

44
A música termina. No exato instante, todos os funcionários voltam a trabalhar como se nada
tivesse acontecido. A mesa onde o casal estava sentado também é levada.

As cortinas se fecham. Apenas Fabrício e Maria Luíza ficam do lado de fora, de frente para
o público.

MALU – …você quer?

FABRÍCIO – Eu tô querendo sim.

Os dois vão se aproximando um do outro, um passo de cada vez. Uma mão sai por
debaixo da cortina segurando um celular, é João tentando fotografar os dois e não
conseguindo.

MALU – Agora?

FABRÍCIO – Por que não?

MALU – Ai, to nervosa. Parou a música, né? Tava boa…

A mão agora sai de uma outra parte da cortina. Malu percebe e vira Fabrício para a outra
direção, para que o garoto não veja o celular.

FABRÍCIO – Você tá me enrolando de novo. Tá me enrolando!

MALU – Num tô… tô não. É…

Maria solta os braços de Fabrício e se vira pro outro lado. A mão de João agora sai pelo
meio do palco, entre as duas cortinas. Fabrício, ao se virar para também sair de perto de
Maria Luíza, percebe o celular apontando para os dois.

FABRÍCIO – Ei, que palhaçada é ESSA?

MALU – Que… tô vendo nada. Tem nada não.

O celular volta para dentro da cortina naquele mesmo momento, mas não adianta. Fabrício
enfia a mão lá atrás e puxa João de lá de dentro com raiva. O menino cai de joelhos no
chão.

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FABRÍCIO – Só pode ser brincadeira. Que tá acontecendo aqui? Tão de sacanagem
com a minha cara?

MALU – É… que palhaçada é essa, menino?! Tá fazendo o que aí?

JOÃO – Tirando a foto, ué.

FABRÍCIO – Vocês são doidos! DOIDOS!

MALU – Fabrício, calma…

FABRÍCIO – Cansei, CANSEI! Tenho mais paciência não. Deu pra mim.

Fabrício vai embora com raiva pra trás das cortinas pela lateral do palco, para o desespero
de Maria Luíza.

MALU – Você estragou tudo, mano!!!

JOÃO – Eu?! Não devia nem estar aqui! Era pra ter ido pro hospital. Vim por você…

MALU – Socorro, deu tudo errado! Deu tudo errado. Ele nunca mais vai olhar na
minha cara.

JOÃO – Dane-se ele! E se eu não conseguir mais ver a cara do meu vô?

MALU – Dane-se você! Você veio porque quis!

JOÃO – Eu vim porque VOCÊ quis. Caramba, eu sou muito trouxa. O que tô
fazendo da minha vida? Olha onde eu me meti…

MALU – E vai perder seu violão, vai ficar pro Brunão. Perdemos a aposta, já era.

JOÃO – Eu não quero é perder meu avô!!! Tô nem aí pra isso, fica pra você! Toma,
é seu. Onde eu tava com a cabeça? Vou indo pra casa.

João entrega o violão para sua amiga e vai saindo de perto com raiva.

MALU – Ei, espera. Desculpa… foi mal, amigo. Eu fiquei nervosa.

JOÃO – Tô vendo, só pensa nesse garoto! Só pensa nele e mais nada. CAI NA
REAL!

MALU – Exagerei… é, foi mal. Vamos, eu te acompanho até em casa. Aqui já deu
tudo errado, só fiz tu perder tempo. Se a gente correr, você ainda consegue ir pro
hospital hoje… eu nao devia ter te feito vir pra cá. Desculpa.

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João abraça Maria Luíza e pega o violão de novo.

JOÃO – Isso é novo pra mim, isso é novo pra gente. Estamos brincando com coisa
séria, não devíamos. Eu tinha que conversar com meu vô. Devia ter ido falar com ele
antes de qualquer coisa. Não sabemos do que isso é capaz.

MALU – Vem, vai dar tempo. A gente faz isso hoje, vou contigo pro hospital. A culpa
foi minha, agora te ajudo a resolver. Vamos, peço um uber da tua casa.

JOÃO – Obrigado, Malu. Só tenho que avisar minha vó, vou pegar um casaco e
aviso ela.

As cortinas se abrem, revelando a sala da casa de João. Sua vó está estirada no chão,
caída ao lado de um banco virado de lado e uma caixinha pequena de madeira.

Cena 13

(A mais forte de todo o espetáculo)

Sala da casa de João.

João sai correndo em direção ao corpo de sua avó. Se agacha ao lado dela, gritando.

JOÃO – VÓ!!! VOZINHA, QUE HOUVE?

MALU – Ai, meu deus…

JOÃO – VÓ, CÊ TÁ BEM? EU TÔ AQUI. LEVANTA!

MALU – João, cuidado!

JOÃO – Malu, ela não tá respirando. Malu, não tá respirando!

MALU – Ela caiu, João! Tem certeza? Deve ter tropeçado, ai meu deus.

JOÃO – Liga pro hospital, CHAMA UMA AMBULÂNCIA AGORA!

MALU – Porra, qual o número? Tô sem sinal aqui, qual o número?

JOÃO – CHAMA O BOMBEIRO, CHAMA A POLÍCIA, chama qualquer coisa, amiga!

47
Maria Luíza sai chorando com o celular na mão. João abraça o corpo de sua avó com força.

MALU – Vou ligar! Eu vou chamar, vou lá ligar.

JOÃO – Eu tô aqui, vozinha. Por favor, levanta. Cheguei, tô aqui com você.

JOÃO – Faz isso comigo não. Posso perder você não. O vô tá mal, a gente precisa
de você, minha vozinha. Eu preciso de você.

MALU – Amigo, qual o endereço? Me fala o endereço!

Maria entra rapidamente para perguntar e logo sai de novo. João, em choque, coloca a
cabeça de sua avó em seu colo e vai fazendo carinho em sua pele enquanto continua
falando sozinho.

JOÃO – Malu, ela não tá respirando. Malu, ela num tá…

MALU – Vou pedir ajuda pra algum vizinho. Vou chamar ajuda.

JOÃO – Ô, minha vó. Cê tava muito ansiosa, muito preocupada com o vô. Tinha que
cuidar da senhora, cê ficou mal.

JOÃO – Eu devia estar aqui contigo, tinha que estar aqui contigo. Me perdoa,
vozinha, me perdoa.

JOÃO – Não dá. Não, não dá não.

Em desespero, João desvia o olhar para o violão. Após alguns segundos, ele vai até lá e
pega o instrumento.

JOÃO – Eu tô aqui, vozinha. Eu cheguei, vozinha. Tô aqui.

João começa a tocar, ainda em estado de choque, enquanto repete:

JOÃO – Eu tô aqui. Tô aqui, vozinha. Levanta, vai…

Os dedos do garoto vão se movendo com cada vez mais velocidade, alternando de nota em

48
nota. Esta é a melodia mais intensa que ouviremos em todo o espetáculo. O corpo de sua
avó começa a se movimentar, bem devagar…

Ajoelhado ali ao lado da avó, João se dedica ainda mais ao violão.

JOÃO – Eu cheguei, vozinha. Não vai embora não, fica aqui comigo. Não vai não,
vai não.

Lentamente, a avó do garoto vai abrindo os olhos e levantando a cabeça.

JOÃO – Vozinha, eu tô aqui. Tô aqui, vozinha! Acorda, vozinha…

VÓ – …o quê?

JOÃO – Tá tudo bem, vai ficar tudo bem. Eu tô aqui, cheguei pra te ajudar!

João vai diminuindo a intensidade do som para responder. No mesmo instante sua avó, ao
tentar se levantar, não consegue e deita novamente a cabeça. João, assustado, se levanta
e volta a tocar com dedicação total.

JOÃO – NÃO! Calma vozinha, eu tô aqui. Vai dar tudo certo, vai ficar tudo bem. Tô
aqui contigo.

VÓ – Ô, Bernardo… é você?

JOÃO – Sou eu, vó. Seu neto. Sou eu tocando.

VÓ – João… ô, meu filho.

JOÃO – Isso, sou eu vozinha. Fica aqui comigo, eu cheguei. Vem cá, tá tudo bem.
Enquanto eu tocar, vai ficar tudo bem.

VÓ – Não, meu filho…

JOÃO – Tô aqui contigo. Fica aqui comigo, minha vozinha.

VÓ – Não… é assim que funciona… meu querido.

A avó de João consegue se sentar, levando a mão na cabeça enquanto aparenta tontura.
João se senta de frente pra ela, tocando o violão sem parar.

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JOÃO – Vó, eu tô te mandando. Você não tá entendendo, você vai ficar.

VÓ – João, meu tempo passou… chegou a minha vez.

JOÃO – Não, não chegou não. Te proíbo, você vai ficar aqui. Vai ficar aqui com a
gente, vai ficar aqui comigo.

A avó estende a mão até o rosto do neto, que não para de chorar e tocar.

JOÃO – Vozinha, eu não vou conseguir. Vozinha, não vou. Preciso de você! Você
aqui comigo.

VÓ – Você tem toda a sua vida pela frente, meu querido. Eu já vivi a minha…

JOÃO – E vai continuar vivendo, tem mais coisa pra viver. Eu não vou parar de
tocar, não vou. Nem que eu fique aqui assim até o fim do mundo, sem parar, não
vou.

VÓ – Seus dedinhos vão começar a doer, meu João. Descansa, a vó já cumpriu seu
papel aqui.

JOÃO – Não, não, NÃO! Eu não tinha noção, quero mais tempo contigo. Não posso
perder você agora, nem tive tempo…

VÓ – João, de novo, me escuta. Você tem todo o tempo do mundo! Você usou cada
parte do tempinho que tinha com aquilo que gostaria de usar. Assim como eu usei o
meu, assim como cada um nesta terra. Não se culpe agora, já é tarde…

JOÃO – Não é, NUNCA vai ser! Eu tenho isso aqui, eu tenho sim todo o tempo que
eu quiser ter, por causa disso aqui. E tô te ordenando, tô te implorando, você fica
aqui! Por favor, minha vó. Por favor!

Maria Luíza volta pro palco com o celular na mão mas não fala nada. Ela vai até o banco
virado e pega a caixinha de madeira, é um baú trancado com cadeado.

MALU – E isso, o que é?

VÓ – Estava junto com o violão, mas não encontrei a chave. Comecei a procurar
pela casa…

JOÃO – Não era pra ficar subindo nas coisas, vó. Num era, devia ter me esperado.
Agora não vou te perder, não vou.

VÓ – João, Joãozinho. Sempre foi teimoso… Desde moleque. Você agora vai
dedicar seu tempo ao teu avô. Ele vai precisar de você. Aproveite cada minuto ao
seu lado. Seu tempo comigo já passou.

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JOÃO – Não, vozinha… não passou não. Não passou, eu quero mais. Quero mais
tempo contigo, quero minha vó. Quero minha vozinha.

VÓ – Estude, Jão… e cante! Não deixe de dançar, de tocar…

JOÃO – Para, eu não vou deixar você. Não vou deixar você ir.

VÓ – Ame, se apaixone, chore, e aí dance mais um pouco. Abrace, beije, a vida


passa… sempre com respeito. Existem outras vidas por aí. Quem tem que te amar,
vai te amar de volta. Nunca force alguém a estar onde não quer ou fazer algo que
não queira. Cada pessoa também tem sua vida e isso deve ser respeitado.

JOÃO – Vó, não faz isso comigo.

VÓ – Não é uma escolha, querido. Não foi escolha minha… a morte não é uma
escolha, VIVER é que é. Você tem toda a sua vida pra escolher o que faz com seu
tempo.

JOÃO – E eu tô escolhendo você…

VÓ – O que passou não tem mais jeito. Não se vive no passado, a vida acontece no
presente. Nunca se esqueça de…

JOÃO – Maria, chama a ambulância logo.

MALU – Já chamei, amigo…

JOÃO – Liga pra minha mãe, pega meu celular. Faz alguma coisa, qualquer coisa!

VÓ – Não tem mais nada que possam fazer aqui, meu filho.

JOÃO – Eu tô aqui, eu tô aqui agora contigo.

VÓ – Isso, você sempre estará no agora. Sempre olhando pro futuro, mas não se
esquecendo de sua vida de AGORA.

JOÃO – Vó, por favor…

VÓ – Viva, meu filho. Viva o agora, sempre olhando pra frente… mas sem se
esquecer do agora. Você vai seguir em frente.

JOÃO – Não consigo.

VÓ – Você tem de me deixar ir.

João chora ainda mais.

VÓ – Cuide de seu avô.

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João, já sem forças, vai diminuindo a intensidade com que toca. Sua avó cantarola:

VÓ – E quando eu tiver saído… para fora do teu círculo.

A avó se deita, bem devagar. A música vai diminuindo ainda mais

VÓ – Tempo, tempo, tempo, tempo…

A música quase parando, e a voz dela também cada vez mais lenta.

VÓ – Não serei… nem… terás sido.

João não fala mais nada, seus dedos já não aguentam mais.

VÓ – Tempo, tempo… tempo…

O violão para.

Sua avó já deitada.

Silêncio.

As cortinas se fecham, tampando todos.

Cena 14

Cortinas fechadas

52
Fabrício sai de trás das cortinas e caminha com uma folha em uma mão e um banquinho na
outra. Se senta no meio do palco e olha para o papel com cara de raiva. Bruno vem logo em
seguida, coloca o seu banquinho do lado, e também se senta.

BRUNÃO – E aí, também foi mal?

FABRÍCIO – Não dá, cara. Vou reprovar. Fui MUITO mal. Não é pouco mal não, tá
ligado? Muito!

BRUNÃO – Tava difícil mesmo, teve jeito não. Ele pegou pesado.

FABRÍCIO – Minha mãe vai me matar, não vai dar pra mim. Vou ficar preso no
ensino médio, fudeu. Vai todo mundo pra faculdade e eu vou ficar aqui.

BRUNÃO – Cara, a gente tem que ir bem na apresentação… vamos ter que cantar.
Estudar não resolve nada não.

FABRÍCIO – Eu tentei, sabe? Me aproximei da menina, ela disse que me ajudaria a


estudar. Era a minha chance. Preciso dar um jeito de ir bem na final. Nem a
Sextalentos vai me dar nota suficiente, minha situação tá complicada mesmo.

BRUNÃO – Cara, você saiu com ela pra ver se melhorava tuas notas? É sério que
esse foi teu plano?

FABRÍCIO – Pra colar com gente esperta, caramba. Não tem jeito, uma hora a gente
tem que criar responsabilidade. Os moleques do futebol não tão ligando de reprovar
não, eles não têm a mãe que eu tenho. Preciso andar com quem estuda. Mas… ei,
pera aí. Quem te disse que saí com ela? Eu não falei que saí com ela não!

BRUNÃO – Olha onde você tá! Isso aqui é uma escola, tem como esconder nada
não. E olha isso daqui (retira o celular do bolso). Com isso aqui, a fofoca se espalha.
Tá todo mundo sabendo que cê saiu com a espinhenta.

FABRÍCIO – Para de falar assim da garota!

BRUNÃO – …é meio babaca, né?

FABRÍCIO – É muito babaca! Você tá sendo otário, ela é uma menina boa. É meio
doidinha, mas é boa. É gente boa.

BRUNÃO – Fabrício, você pode ter quem você quiser da escola. Não só garotas.

FABRÍCIO – E a nota que eu quiser? Isso eu não consigo ter. O que é importante eu
não consigo.

BRUNÃO – Consegue, se estudar… e cantar, senhor selvagem (risada).

FABRÍCIO – Como ter tempo pra tudo isso? Me diz! Como consigo tempo pra
estudar pra cada matéria? Pra cuidar do meu cachorro, pra ir pro inglês, natação,
ficar com a família, jogar bola…

53
BRUNÃO – Claro, jogar bola é muito importante.

FABRÍCIO – Pra mim, É! E muito. O dia precisava ter umas 50 horas.

BRUNÃO – Cara, se tivesse 50 horas… fariam a gente estudar por umas 30.
Nossos pais trabalhariam umas 40. É a vida, tem jeito não.

Fabrício amassa a prova em suas mãos e guarda no bolso.

BRUNÃO – Mas vem cá, me diz. Você, você e a… garota chegaram a ficar? Beijou
ela?

FABRÍCIO – Desde quando isso é da tua conta? Te interessa não.

BRUNÃO – Tô curioso, ué. Você aí defendendo ela, mais de uma vez… tá a fim
dela? Beijou, né?

FABRÍCIO – Não, não beijei não! Cala a boca.

BRUNÃO – Ah, bom saber… mas não beijou por quê? Ela gosta de você, cara. Todo
mundo vê, dá nem pra esconder.

Fabrício se levanta, pega seu banquinho e vai saindo do palco. Brunão faz o mesmo e vai
indo atrás.

FABRÍCIO – Pois ela que me esqueça, tenho tempo pra isso não. Preciso passar de
ano, cara. A gente precisa.

BRUNÃO – A gente vai, a gente vai.

FABRÍCIO – Temos que começar a ensaiar, vou precisar da nota máxima nessa
apresentação. Começar logo, assim que terminar a semana de provas.

BRUNÃO – Sim, temos mesmo. Socorro, vai tá a escola inteira lá.

Os dois saem juntos do palco. Logo depois, a cortina se abre, revelando o quarto de João.

Cena 15

(Musical)

54
Quarto de João

João está sentado sozinho de pernas cruzadas em sua cama. Está com o violão na mão e a
cara séria. O palco está bem escuro, apenas algumas poucas luzes apontam para o garoto.

João toca uma única nota, que fica ecoando por alguns segundos até desaparecer por
completo.

Alguns instantes depois, toca outra.

Após uma pausa ainda mais longa, o garoto começa a tocar e cantar, bem devagar:

JOÃO – Enquanto houver você do outro lado

Aqui do outro eu consigo me orientar

A cena repete, a cena se inverte

Enchendo a minh'alma

Daquilo que outrora eu deixei de acreditar

A música está sendo tocada em um ritmo mais lento que o original.

JOÃO – Tua palavra, tua história

Tua verdade fazendo escola

E a tua ausência fazendo silêncio em todo lugar

João faz uma pausa e dá uma respirada longa. Depois continua:

JOÃO – Metade de mim agora é assim

De um lado a poesia, o verbo, a saudade

Do outro, a luta

Força e coragem pra chegar no fim

E o fim é belo, incerto

Depende de como você vê

55
O novo, o credo

A fé que você deposita em você e só

Agora o menino passa a cantar com toda a sua alma.

JOÃO – Só enquanto eu respirar

Vou me lembrar de você

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Vou me lembrar de você

Só enquanto eu respirar

Maria Luíza entra pelo canto do palco assumindo o próximo verso da canção, João agora só
toca. Os dois não se olham pois não estão no mesmo ambiente, apenas no mesmo palco.
Outro foco de luz se acende, apontando para ela. O resto do cenário está totalmente
escuro, só vemos o garoto em sua cama e sua amiga em pé do lado oposto.

MALU – Enquanto houver você do outro lado

Aqui do outro eu consigo me orientar

Cena repete, a cena se inverte

Enchendo a minh'alma

Daquilo que outrora eu deixei de acreditar

A música também é cantada por ela em um ritmo mais devagar, e triste, que o original.

MALU – Tua palavra, a tua história

Tua verdade fazendo escola

E a tua ausência fazendo silêncio em todo lugar

Metade de mim agora é assim

56
De um lado a poesia, o verbo, a saudade

Do outro, a luta

Força e coragem pra chegar no fim

A partir deste momento, Maria também passa a dar tudo de si.

E o fim é belo, incerto

Depende de como você vê

O novo, o credo

A fé que você deposita em você e só

Ainda sem interagir um com o outro, os dois agora cantam juntos. Um em cada canto do
palco. Cada um com sua própria dor.

JOÃO e MALU – Só enquanto eu

respirar

Vou me lembrar de você

Só enquanto eu respirar, oh

Só enquanto eu respirar

Vou me lembrar de você

Só enquanto eu respirar

Os dois passam a alternar cada verso.

JOÃO – E o fim é belo, incerto

MALU – Depende de como você vê

JOÃO – O novo, o credo

MALU – A fé que você deposita em você e só

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JOÃO – Só enquanto eu respirar

MALU – Vou me lembrar de você

JOÃO – Só enquanto eu respirar

MALU – Mas só enquanto eu respirar

JOÃO – Vou me lembrar de você

O ritmo da música volta a diminuir. E os dois vão cantando cada vez mais baixo até que a
canção chegue ao fim.

JOÃO e MALU – Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só enquanto eu respirar

Só…

Ambos os focos de luz se apagam e todo o teatro fica no escuro. João sai de cena,
empurrando sua cama para fora. Maria permanece ali. As paredes que formam o quarto de
João se abrem, o que faz com que o novo fundo seja o da sala de aula.

Cena 16

Sala de aula/Cortinas fechadas

Conforme as luzes vão se acendendo, cada aluno vai entrando com sua carteira e se

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sentando em sua respectiva posição. Três carteiras permanecem vazias. Maria permanece
ali em pé no mesmo lugar.

Brunão chega e se dirige a Maria.

BRUNÃO – Tu perdeu. Cê sabe, né?

MALU – Meu prazo ainda não acabou, mano.

BRUNÃO – Mas tuas chances com o Fabrício, sim (risada).

Todos os outros alunos em cena permanecem sem prestar atenção nos dois. Alguns
conversando, outros no celular ou desenhando. Bruno e Maria continuam conversando aos
cochichos.

BRUNÃO – Cadê teu amigo?

MALU – Não te interessa!

BRUNÃO – Olha, a gente começou errado. Vacilei contigo, eu sei. Mas não precisa
ser assim… mas fizemos um acordo, né?

MALU – E eu ainda tenho até a última sexta do ano! Calma, caramba.

BRUNÃO – Não calmo não, teu… colega… não aparece nem pra fazer prova mais.
A gente tem uma apresentação pra fazer na droga do final do ano! E com certeza
você não tá precisando de nota, mas eu e Fabrício estamos.

MALU – Não é culpa minha se vocês estão dependendo disso pra sair do ensino
médio.

BRUNÃO – Pois bem, mas dependemos do teu amigo pra ir bem. E se ele não
aparecer, vou eu mesmo lá tirar aquele violão da mão dele pra ensaiar sem ele!

MALU – Você não vai fazer merda nenhuma, garoto. Não tem coragem nem de se
assumir.

BRUNÃO – Coragem de QUÊ?

MALU – É, tem medo. E fica descontando na gente. Tem medo! Medo do que vão
achar, do que vão falar, medo dos seus pais…

BRUNÃO – Pai! Eu moro com meu pai. Só com ele.

MALU – E tem medo dele!

BRUNÃO – Que medo o quê! Tenho medo não. E mesmo que tivesse, você não tem
que ficar tirando ninguém do armário. Cada um tem seu próprio tempo, caramba.

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FABRÍCIO – Vocês dois, por favor. Já acabou, chega disso, já nos ferramos por
causa disso.

Fabrício entra para controlar os ânimos dos outros dois.

BRUNÃO – Acabou, acabou mesmo. Perdão, Luíza.

MALU – Tu vê se para de ser assim

BRUNÃO – Assim como?

FABRÍCIO – Já disse, CHEGA! Temos mais uma prova agora.

Os três vão para suas carteiras e se sentam.

Um dos alunos retira um maço de papel de sua carteira e passa a distribuir para os outros,
cada um vai pegando sua folha de prova e passando para o próximo. Todos vão retirando
canetas dos bolsos e mochilas e começam a escrever.

O violão começa a tocar, bem lento, no fundo.

Um a um, os alunos vão parando de escrever. Em suas caras, o espanto. Alguns vão
tentando fazer força para continuar fazendo a prova, um deles joga a caneta longe, outro
retira seu lápis da mão direita e continua tentando escrever com a esquerda. Maria Luíza
olha de um lado pro outro sem parar, já entendo o que está acontecendo.

A música aumenta a velocidade e todos os alunos agora retiram os papéis da mesa,


segurando na frente do próprio rosto. Logo depois, todos eles se levantam ao mesmo
tempo, ficando em pé no mesmo lugar. Todos ali começam a reclamar:

ESTUDANTE A – Que porcaria é essa?

ESTUDANTE B – Gente, socorro…

ESTUDANTE C – Meu corpo, não consigo controlar meu corpo.

BRUNÃO – TÁ AMARRADO!

A velocidade aumenta novamente e todos eles se viram de costas, ao mesmo tempo. Maria
grita:

MALU – Não faz isso! Por favor, eu sei que é VOCÊ!

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BRUNÃO – É o demônio, caramba! Não adianta conversar.

Todos levantam as provas, esticando os braços pra cima de suas cabeças, no momento em
que a música acelera mais uma vez. Agora, já é perceptível que ela está se tornando uma
espécie de forró. Brunão reconhece e começa a cantar:

BRUNÃO – Vou passando pela prova dando

Glória a Deus

Glória a Deus

Vou passando pela prova dando

Glória a Deus

Glória a Deus

FABRÍCIO – Cala a boca, cara.

BRUNÃO – Ué, eu conheço essa música!

Com todos de costas, João entra em cena e vai cruzando o palco fora de suas vistas. Maria
Luíza continua insistindo:

MALU – Não faz isso, você está completando seu arco de vilão. Depois não tem
mais volta…

A música acelera de novo e atinge seu ritmo original. Todos os estudantes, ao mesmo
tempo, rasgam suas provas no meio e soltam as metades de cima de suas cabeças.

Em frente a mesa do professor, após deixar uma nota longa sendo ouvida, João pega uma
caneta e rabisca em um papel que estava ali. Ele está lançando sua própria nota no registro
da disciplina. Rapidamente, o garoto volta a tocar.

Cada aluno agora, ainda de costas, começa a remexer o corpo, no ritmo do forró gospel.
João vai saindo de cena por onde entrou e, após alguns segundos, a música termina. Todos
voltam a si.

ESTUDANTE A – Deus me livre… já não basta ser escola, ainda tem que ser

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assombrada?

ESTUDANTE B – E assombração cristã eu nunca vi!

Desesperados, os estudantes vão saindo do palco. Somente Fabrício, Maria e Bruno


permanecem no local. Os três vão se aproximando da frente do palco enquanto as cortinas
vão se fechando logo atrás.

FABRÍCIO – Foi seu amigo, não foi?

MALU – Claro que não! Que amigo?

FABRÍCIO – Por que tava falando com ele então? Acha que a gente é trouxa?

BRUNÃO – Eu até sou, mas não tanto assim. Bora atrás dele, acho que mora aqui
perto.

MALU – Gente, para com isso. Ele não tá bem, vocês sabem.

FABRÍCIO – Já perdi minha paciência. Não vou reprovar não, preciso dessa nota. O
garoto nem aparecendo na escola está, e quando aparece é pra isso?

MALU – Não, deixa que eu vou conversar com ele então. Não precisa disso, eu vou
lá. Eu falo com ele, com calma… eu vou.

BRUNÃO – E a gente vai atrás. Anda, vamos. Mostra onde ele mora. É perto, não
é?

Os três vão saindo pelo canto do palco. Malu na frente e os garotos atrás. Pouco depois, as
cortinas se abrem.

Cena 17

Casa de João

Estamos novamente na sala em que a avó de João faleceu. O ambiente está pouco
iluminado. O garoto está sentado no chão de pernas cruzadas no canto direito do palco. O
banquinho não está mais caído no chão e a caixinha de madeira está nas mãos de João. O
violão está deitado no chão a sua frente, em cima do case.

O garoto fica ali parado observando o pequeno baú por vários ângulos diferentes, sacode
um pouco para ouvir o que tem dentro e confere o cadeado.

62
Maria entra no palco pela esquerda, seguida por Bruno e Fabrício.

JOÃO – Vai embora. Vão embora, os três.

MALU – Amigo, a gente só quer conversar. Eu só quero conversar contigo. Seus


pais estão preocupados.

JOÃO – Eu já disse pra irem embora. Não quero fazer mal pra vocês.

MALU – Você só está fazendo mal a si próprio. Não aparece na aula, não atende
ligação, não responde mensagem.

FABRÍCIO – Rapaz, João… você precisa seguir em frente, cara. Sempre em frente.

JOÃO – CALA A BOCA, você não sabe o que tô passando! Não sabe!

BRUNÃO – Eu sei, eu sei o que tu tá passando. E falo contigo, levanta daí.

João vira o rosto, olha pros três, e então se levanta. Pouco depois, estica o braço e pega o
violão do chão.

JOÃO – Eu avisei.

MALU – João, larga isso. A gente só quer te ajudar…

O garoto começa a tocar. Notas frias e pesadas. Maria começa a correr em sua direção,
mas já é tarde, logo fica paralisada.

JOÃO – Paradinha aí. (Enquanto aponta o dedo).

Os outros dois garotos também tentam se aproximar, mas após alguns passos e mais
algumas notas, também permanecem parados sem sair do lugar. Maria coloca a mão no
bolso e faz alguma coisa em seu celular.

MALU – João, por favor. Me escuta, solta esse negócio. A gente só quer conversar.

JOÃO – E eu não quero vocês aqui. Já falei.

Fabrício, o mais forte dos três, começa a fazer força nas pernas. Com muito esforço,

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consegue dar um pequeno passo de 10 ou 20 centímetros. João se surpreende, e coloca
ainda mais notas em sua melodia.

JOÃO – É, sempre me dando dificuldade. O moleque tem força de vontade mesmo,


né?

Fabrício continua se esforçando e, após mais alguns segundos, movimenta a outra perna.
Brunão, percebendo, também começa a se esforçar para sair do lugar.

BRUNÃO – Eu não sei o que tu tá fazendo. Mas não vai funcionar por muito tempo,
garoto.

MALU – João, não piora as coisas. A gente pode resolver tudo isso, me escuta.

João não responde mais pois Fabrício conseguiu dar, ainda com muita dificuldade, mais um
passo. O garoto vai tocando o violão com o olhar fixo para Fabrício, se torna um duelo de
forças entre os dois.

Até que Maria Luíza sai andando normalmente e puxa o violão da mão de seu amigo.

Com o fim da música, Bruno e Fabrício caem para frente.

JOÃO – O QUE VOCÊ FEZ? COMO…

MALU – Tô usando fone de ouvido, bundão. Vim preparada.

Ela retira o cabelo de cima da orelha, revelando os fones sem fio. Guarda o par no bolso.

JOÃO – Que burro que eu sou. Ai, Malu…

MALU – Não, é burro não. Eu que sou esperta, mano. Coloquei evidências pra tocar
no máximo, dava pra ouvir nada que você tocava.

JOÃO – Só precisou fingir até eu me distrair, né.

A calmaria se acaba assim que, chegando por trás de Maria Luíza, Brunão também retira o
violão da mão da garota.

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BRUNÃO – Agora quietinhos os dois. Vão me explicar tudinho.

Malu e João entram em choque, morrendo de medo. Bruno estende o violão acima da
cabeça, ameaçando quebrá-lo no chão.

BRUNÃO – Nem precisa, né? Acho que já tô entendendo. Deixa que eu mesmo
tento, quero ter uma palavrinha com o magrelo. Vamos conversar só eu e você.

FABRÍCIO – Quê que tá acontecendo aqui?

BRUNÃO – Vocês dois, pra fora. AGORA!

Bruno aponta para a saída e começa a tocar algumas notas. Maria e Fabrício saem do
palco, andando de costas. Só ele e João permanecem em cena.

JOÃO – Brunão, por favor. Eu…

BRUNÃO – Colega, agora você fica quieto. Agora você vai me escutar, ok?

João tropeça e cai para trás. O garoto fica ali mesmo, sentado no chão enquanto Bruno
começa a cantar.

Cena 18

Musical

Casa de João

BRUNÃO – Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma

Até quando o corpo pede um pouco mais de alma

A vida não para

As luzes iluminam todo o palco em tons de azul. João não entende o que está acontecendo,
não era isso que esperava.

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BRUNÃO – Enquanto o tempo acelera e pede pressa

Eu me recuso faço hora vou na valsa

A vida tão rara

João se ajeita para ouvir e agora se senta de joelhos. Bruno vai girando ao seu redor.

BRUNÃO – Enquanto todo mundo espera a cura do mal

E a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

Bruno vai andando em círculos, cada vez mais rápido, ao redor do garoto.

BRUNÃO – E o mundo vai girando cada vez mais veloz

A gente espera do mundo e o mundo espera de nós

Um pouco mais de paciência

João se levanta e fica parado no lugar. Bruno continua em seu entorno com o violão na
mão.

BRUNÃO – Será que é o tempo que lhe falta pra perceber

Será que temos esse tempo pra perder

E quem quer saber

A vida é tão rara, tão rara

João agora vai andando em um círculo menor no sentido contrário ao de Bruno. Os dois
agora permanecem girando no mesmo eixo, ali no centro do palco, cada um em uma
direção.

BRUNÃO – Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma

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Até quando o corpo pede um pouco mais de alma

Eu sei, a vida não para

A vida não para não

O último verso é João quem canta, encerrando a canção:

JOÃO – A vida não para não

BRUNÃO – Eu disse, sei exatamente o que você tá passando, cara. Perdi minha
mãe ainda novinho.

JOÃO – É difícil demais, dói.

BRUNÃO – Dói mesmo, eu sei. Eu só tive um tantinho de tempo de vida ao lado


dela. Mas acredite, a gente nunca vai achar suficiente. Se ela tivesse vivido mais
dez, eu ainda acharia pouco. Se vivesse mais vinte, mesma coisa. Nunca é
suficiente.

JOÃO – Se eu soubesse que minha vó iria embora assim do nada, teria aproveitado
mais.

BRUNÃO – Nunca! Nunca vai ser suficiente, magrelo.

João dá um abraço apertado em Bruno.

BRUNÃO – A vida não para!

Fabrício e Maria Luíza voltam pro palco.

FABRÍCIO – Desde quando você tem essa voz?

MALU – Desde quando você tem coração?

BRUNÃO – Desde quando isso é da conta de vocês?

JOÃO – Toca violão muito melhor que eu…

FABRÍCIO – Galera, já vimos que todo mundo é talentoso aqui, acho vai dar. Vai
rolar! É só ensaiar direitinho e essa sextalentos já é nossa.

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MALU – Mas João, você tá bem?

JOÃO – Não, num tô não. Bem eu não tô… mas vou ficar! Vou ensaiar com vocês,
ainda temos tempo?

FABRÍCIO – Claro, caramba! Precisamos de você, jovem. Vem cá.

Fabrício abraça João. Maria Luíza, vendo os dois ali, também se aproxima e abraça os dois
garotos. Bruno, por fim, balança os ombros e também entra no abraço grupal.

JOÃO – Gente… preciso pedir desculpas pra vocês.

BRUNÃO – Precisa nada, cala a boca.

FABRÍCIO – Só precisa cantar, cada um de nós agora só precisa cantar!

MALU – E tocar, né.

BRUNÃO – A gente precisa é arrasar. Só uma apresentação espetacular vai nos


tirar do ensino médio agora.

FABRÍCIO – A gente VAI arrasar! Escutem o que eu tô falando! Depois cada um


segue com sua vida, cada um faz o que quiser. Mas naquela sexta… seremos um só
no palco daquela escola!

O abraço vai se desfazendo e um silêncio agora fica no ar.

MALU – É, cada um segue com sua vida…

Maria Luíza vai até Fabrício, segura seu rosto, e beija sua boca com a vontade de todos os
anos de espera.

FABRÍCIO – Moça, desculpa… isso aqui não vai rolar. Eu acho que não sinto o
mesmo…

MALU – Eu sei, mas já rolou! Já entendi que não terei isso de você. Mas não vou
sair dessa escola sem nem te dar um beijo. É isto, daqui pra frente, amigos!

FABRÍCIO – É, amigos…

Fabrício se vira para deixar o palco e se depara com Bruno em sua frente, que após

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devolver o violão, também o beija. Temos o segundo beijo do espetáculo.

FABRÍCIO – Ô, caramba. Qual foi? Tão fazendo fila agora?

Diz Fabrício, se soltando de perto dos lábios do outro rapaz.

JOÃO – Não, não! Vai rolar mais nenhum beijo não, pode ficar tranquilo!

FABRÍCIO – Bora, rapaziada. Vambora.

Fabrício sai do palco, sendo seguido por Brunão. Maria quase faz o mesmo, mas
percebendo que seu amigo ficou parado no lugar, volta pra falar com ele.

MALU – Ei, eu tô aqui com você. Ok?

JOÃO – Sei disso. Mas ainda assim, não é fácil.

MALU – Não é, mas com o tempo… tudo vai voltar ao lugar! As coisas vão melhorar.

JOÃO – O tempo, sempre ele.

João se afasta para pegar a caixinha de madeira que ficou no chão.

MALU – Já descobriu o que é isso?

JOÃO – Não, também não achei a chave em lugar nenhum.

MALU – Era do seu vô? Ela disse que tava junto do violão, né? O que será que ele
guardou aí?

JOÃO – Será que ele estava escondendo mais alguma outra coisa? O violão eu
nunca tinha visto ele tocar… ficou guardado esse tempo todo.

MALU – Vai que tem outro instrumento mágico aí dentro, se estavam juntos…

JOÃO – Só se for uma gaita, né? Olha o tamanho. E… falando nisso. Acho que vou
me desfazer disso aqui (olhando para o violão).

MALU – O quê? Tá maluco, mano! Precisamos do poder musical pra conseguir ir


bem na apresentação. Tu vai usar ele pra gente impressionar a escola inteira.

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JOÃO – É, resolveria os nossos problemas… mas por que meu vô deixou
guardado? Por que ele também não continuou usando até hoje?

MALU – João, vai logo conversar com ele.

JOÃO – Eu vou, mas agora tenho que esperar. Ele vai ser operado, vai ter que
passar por cirurgia e só depois volta pra casa…

MALU – Até lá você trata de deixar esse violão guardadinho, então! Tá me ouvindo?

JOÃO – Não sei, eu não sei! Ainda preciso decidir, não sei se você vai entender. O
potencial de fazer mal também é muito forte… você não sentiu medo quando viu ele
nas mãos do Brunão? E se isso cai em mãos erradas?

MALU – É, aquilo ali foi tenso…

JOÃO – Já o potencial positivo, a gente encontra em outras coisas. Não nessa


intensidade, mas encontra.

MALU – Como assim, amigo?

JOÃO – Eu não sei, posso estar falando besteira. Vou pensar com mais calma.
Ainda preciso abrir isso aqui (levanta a caixinha de madeira).

MALU – Joga logo ela pela janela!

JOÃO – E se quebrar o que tem dentro? Sei lá o que é!

As cortinas começam a se fechar.

MALU – Então descobre logo e me conta!

…até que tampam os dois amigos.

Cena 19

Cortinas fechadas

Todos os atores e atrizes que fazem os estudantes e funcionários do bar entram no palco.
Eles se posicionam um do lado do outro, virados para a plateia, de frente pro público.

A primeira pessoa da esquerda para a direita dá um passo a frente. Todos dizem ao mesmo
tempo:

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TODOS – 9 de novembro, quinta-feira.

E a estudante que tomou a frente, começa a contar:

ESTUDANTE A – Eu tava bem mal, tínhamos acabado de terminar. Estava muito


recente e, pra mim, a vida tinha acabado ali. Dizem que nessa idade tudo é muito
intenso, né? Pois fui intensa mesmo, não consigo não ser. Me entreguei de corpo e
coração… só pra ser trocada por outra. Saí pra chorar no banheiro, não queria que
ninguém da escola me visse. Mas aí, sentada lá no vaso toda humilhada, comecei a
ouvir um violão sendo tocado no corredor. Não sei quem era, não sei qual era a
música. Mas sei lá, tava tão bonito. Tão bonito que chorei mais ainda, chorei tudinho
que tinha pra chorar! Parece que esgotou todo o estoque de choro, sabe? Porque
depois me senti diferente, renovada. Como se estivesse realmente precisando botar
pra fora tudo aquilo que estava acumulado.

Assim que ela dá um passo para trás, retornando para seu lugar na fileira, todos dizem:

TODOS – 14 de novembro, terça-feira.

E o próximo estudante dá um passo a frente.

ESTUDANTE B – Levei um tombão no meio do intervalo, daqueles de sair rolando.


Todo mundo viu, sei disso porque nunca ouvi tanta risada na vida. Na hora o meu
corpo gelou inteiro, não tinha um amigo comigo pra estender a mão e me ajudar a
levantar. O coração parece que queria sair pela boca. Estava eu sozinho ali no meio
daquele pessoal tudo se acabando de tanto rir, deve ter sido o pior dia da minha
vida. Até que eu comecei a ouvir, de algum lugar, não dava pra ver de onde estava
vindo. Alguém começou a tocar um violão, dava pra ouvir mesmo com as risadas.
Começou depois do meu tombo, não tinha nada tocando antes. Tenho certeza! E
pronto, não sei o que tinha naquela melodia mas me deu coragem. O coração
desacelerou, acho que a pressão voltou ao normal. Levantei sozinho mesmo e
saudei o pessoal dizendo "disponham! Foi um prazer". Semana que vem ninguém
nem vai estar lembrando mais disso mesmo.

TODOS – 20 de novembro, segunda-feira.

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Mais um estudante assume a dianteira.

ESTUDANTE C – Me senti um lixo depois daquela prova. Estudei pra caramba e


quando chegou o dia, não tava conseguindo responder nada. Comecei a suar, da
caneta ficar escorregando da mão. Via o pessoal do meu lado escrevendo sem parar
e me sentia ainda mais burra. Por que estavam conseguindo fazer e eu não? Saí da
sala acabada, queria papo com ninguém. Mas tinha um garoto, acho que da outra
turma, tocando violão no pátio. Parei ali na rodinha que se formou ao redor dele e
fiquei ouvindo. Deu nem dez segundos e eu já estava cantando junto. Acho que a
vida é bem mais que uma prova, não é? Às vezes a gente esquece.

Os relatos continuam, na mesma sequência de ações.

TODOS – 22 de novembro, quarta-feira.

GARÇONETE SOL – O salário é ruim, não vale todo o perrengue que passo. Mas
preciso do dinheiro, preciso pagar a faculdade. Só mais um ano e me formo, só
preciso aguentar mais um aninho. Tem dias que eu penso em largar tudo e desistir,
tem dias que a gente sente que não dá mais. Aí eu pego um livro e começo a
devorar, é como uma rota de escape. Lá eu tô segura, distante, fora dos problemas
daqui. Isso recarrega minhas forças. Me deixa com a bateria cheia pra aguentar
mais um dia. Só tenho que aguentar mais um aninho só.

TODOS – 28 de novembro, terça-feira

ESTUDANTE D – Não tem como, não dá mais pra conviver com meus pais, não dá.
Não aguento mais ficar naquela casa, tô doida pra ir embora. Eles não me
respeitam, acham que sou um boneco, um robô que eles fizeram para cumprir suas
vontades. "Raquel, vai estudar pro enem. Raquel, cuida do seu irmão. Raquel, passa
o pano na casa. Lava a louça, vai buscar o Davi na escolinha, recolhe as roupas do
varal, faz o almoço, passa a roupa do teu pai." Eu sei que tenho que ajudar, sei
disso. Mas cadê o tempo pra eu ser só a Raquel? Bom, coloco um fone de ouvido e
faço tudo enquanto escuto minhas playlists. Algum dia eu saio de casa, só preciso
sobreviver até lá.

TODOS – 30 de novembro, quinta-feira

COZINHEIRO – A nossa relação já está meio gasta, não é mais a mesma coisa.
Éramos jovens, apaixonados e inconsequentes. Hoje somos pai e mãe, cansados e
sem tempo. Não tem amor que resista aos boletos e faturas. O pior era que nosso
aniversário de casamento estava chegando, eu sei disso porque esqueci no ano
passado e agora fiz questão de anotar. Preparei um jantar, como nos velhos tempos,
arrumei a mesa e coloquei um disco pra tocar. Ainda assim, ela não estava
sorrindo… não como antigamente. Aí a puxei pela mão e começamos a dançar. No
começo estávamos meio duros, mas logo nos soltamos. Dançamos a noite inteira,

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fazia tempo que não nos sentíamos assim.

TODOS – 4 de dezembro, segunda-feira.

ESTUDANTE E – Chamei ela pra ver um filme comigo. Ainda tenho vergonha de
marcar um date com outra garota e meus pais ficarem sabendo. Então fomos pro
cinema, lá teríamos privacidade. Deixei ela escolher o que veríamos. Odeio
comédia, mas tive que ver… afinal, dela eu gosto bastante. Acabou que eu gostei
bem mais do filme do que ela, que saiu só reclamando. Sei lá, foi bom passar uma
tarde inteira dando risada. A vida também pode ser leve, né? Tem que ser. Deveria
ser. Não rolou nada entre nós duas, o date foi um fracasso. Mas ainda assim saí
feliz, foi um filme tão gostosinho.

Por fim, eles dizem uma última vez:

TODOS – 8 de dezembro, sexta-feira. Último dia de aula!

E vão saindo do palco, um a um.

Cena 20

Cortinas fechadas

João sai de trás das cortinas andando pela direita ao mesmo tempo em que Maria sai
correndo pela esquerda. Os dois se encontram e Maria o segura com força.

MALU – Mano, você tá atrasado! Todo mundo te esperando.

JOÃO – Amiga, calma, eu CHEGUEI.

MALU – Em cima da hora! Socorro, e cadê? Cadê teu violão? Não fala que
esqueceu, não fala!

JOÃO – Joguei fora… quebrei todinho.

MALU – Ai, meu deus. Me conta, me explica TUDO. Que houve?

JOÃO – Meu vô recebeu alta ontem, fui buscar ele com meus pais. Já está em casa,
já voltou pra casa!

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MALU – Amigo, isso é incrível! Que bom! Viu, eu te disse que daria tudo certo, eu
disse que ele ficaria bem.

JOÃO – Eu não tinha dúvida disso, nunca tive. O avô sempre foi forte. Só está muito
abatido pela vó, passei o dia inteiro hoje conversando com ele. Combinei com meus
pais e vou continuar morando ali.

MALU – Vai se mudar de vez? Vai morar com ele?

JOÃO – Sim, sim. Fui pra lá só pra fazer companhia pra vó enquanto ele tava no
hospital. Pra ela não ficar sozinha. Mas decidi, vou levar o resto das minha coisas
pra lá, vou morar com ele mesmo. Quero passar todo o tempo que conseguir do seu
lado.

MALU – Tá, e o violão? Explica! Conversou com ele?

JOÃO – Sim. Conversamos.

MALU – CONTA!

JOÃO – Meu vô nunca tocou aquele violão em toda sua vida.

MALU – QUÊ!?

JOÃO – É, não era dele. Nunca foi.

Maria não consegue esconder a cara de espanto e leva as mãos até a cabeça. João
continua contando:

JOÃO – Era da minha vó, Malu. Ela mentiu pra mim, o violão sempre foi DELA!

MALU – Num é possível, por que ela fez isso? Como assim?

JOÃO – Aí eu perguntei da caixinha, ele também não sabia o que era.

MALU – Será que não é a idade? Será que ele não tá lembrando direito? Faz muito
tempo, né?

JOÃO – É, podia ser. Mas aí arrebentei o cadeado pra confirmar. Consegui abrir.

João enfia a mão no bolso da calça e tira vários papéis de lá.

JOÃO – Só achei isso aqui lá dentro. Só tinha isso.

MALU – Fotos? Eita, quanta foto!

JOÃO – Exatamente, incluindo… uma foto do casamento dos dois… (pegando uma

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delas da mão de Maria).

MALU – GENTE, ela novinha! Mas pera, já existia fotografia naquela época, mano?

JOÃO – Claro que sim! Parece que só não existia orçamento suficiente pra pagar
um álbum… mas pra pagar uma foto, tinha sim.

MALU – Socorro, e parece que era ela mesmo tocando o violão. Ela tá de vestido de
noiva com o violão na mão. Foi ela quem tocou no casamento!

JOÃO – Ela tá com o violão em TODAS as fotos. Sem exceção… acho que quis
esconder todas as fotos em que o violão aparecia.

MALU – Será que, será que… ela chegou a tocar pra fazer ele se esquecer dela
tocando? Uma última vez pra apagar o próprio violão da memória dele?

JOÃO – Acho que ela se arrependeu, deve ter se arrependido de algo e depois
decidiu nunca mais usá-lo. Algo assim…

MALU – O que diabos levaria ela a isso? Por que ela faria isso?

JOÃO – Por que essa coisa é perigosa! E, ao mesmo tempo, nem é tão especial
assim.

MALU – É claro que é! Você pirou, a gente precisava dele. Claro que era especial.

JOÃO – Do mesmo jeito que qualquer outro instrumento, que qualquer outra música.
Eu tava certo. Tava certo, amiga! Digo ainda mais: isso daqui só faz o que qualquer
outra ARTE faz! Num nível muito muito muito menor, talvez, MAS FAZ!

MALU – Faz a gente fazer o que não quer?

JOÃO – Não, não mesmo. Quero dizer, pode ser também… aí vira propaganda. Mas
não é disso que tô falando. Estou falando de arte mesmo! Ela nos TRANSFORMA!
Mexe com nossas vidas, nos toca, comove, remexe, renova! Nos faz acreditar em
algo, nos dá confiança, faz refletir, amar... a lista é grande!

MALU – Amigo, a gente tem uma apresentação hoje. Era só ter jogado esse negócio
fora amanhã. Custava nada.

JOÃO – Custava sim, preciso provar meu ponto! Eu passei alguns dias tocando,
ajudei um pessoal que precisava. Aí fui observando e entendendo, a gente não
precisa desse violão… Liguei pro Brunão, ele disse que trazia o violão dele.

MALU – Mas a gente precisava era do teu! Claro que precisava.

JOÃO – Por algum motivo, minha vó se arrependeu de ter usado. Todo mundo erra
e ela escolheu não errar de novo. Eu não vou sair por aí cometendo erros pra só
depois ter que aprender, não com algo tão poderoso!

MALU – E qual o ponto que você quer provar?

JOÃO – Que nós conseguiremos encantar a platéia, do mesmo jeito! Quer dizer, não

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do mesmo jeito… mas de forma parecida. Com um violão comum, um violão
qualquer e nossas vozes, a gente vai encantar aquele pessoal ali do outro lado. E se
eles se sentirem tocados pelo que presenciaram hoje aqui, nem que seja um
pouquinho só, só por uns segundinhos. Eu já estarei satisfeito. Já teremos cumprido
o nosso papel.

MALU – Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades…

JOÃO – O quê?

MALU – Foi por isso, por isso que tua vó te deu o violão. Pra ver se te deixava mais
responsável. Pra te fazer criar responsabilidade. E funcionou!

JOÃO – Ou ela só estava sentindo que a hora dela já estava chegando… e aí


precisava passar ele adiante. Sabia que o tempo dela já estava acabando.

MALU – E queria te fazer se aproximar mais do teu avô. Você nem tava ligando pra
ele.

Após um breve silêncio, João responde:

JOÃO – Amiga… obrigado! Obrigado por tudo.

MALU – Vamos, a gente vai atrasar os meninos! Os dois vão te matar.

João dá um abraço apertado em Maria Luíza e os dois saem para trás das cortinas.

Cena 21

(Musical)

Conclusão

A coordenadora Garcia sai pelo meio das cortinas e se dirige diretamente ao público do
teatro.

GARCIA – Bom, é uma honra ter todos vocês aqui. Agradeço de coração e espero
que tenham gostado de tudo que viram até agora. Foi tudo feito com muito carinho e
dedicação por todos os presentes.

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Ela vai sorrindo enquanto passa o olhar por todos na plateia.

GARCIA – Agora, para fechar a nossa última sextalentos desse ano, tenho a
satisfação de anunciar para vocês a apresentação de Fabrício, Maria Luíza, Bruno e
João. Diretamente do terceiro ano: com vocês, os SELVAGENS!

Ela desce do palco e se senta em uma das cadeiras vazias na plateia. As cortinas se
abrem, revelando o palco sem nenhum cenário. Fabrício, Maria, Bruno e João estão
sentados de frente para a plateia, todos usando camisas brancas. Logo começam a cantar:

JOÃO – Todos os dias quando acordo

Não tenho mais

O tempo que passou

Mas tenho muito tempo

Temos todo o tempo do mundo

O violão nas mãos de João não é mais o mesmo que vimos durante todo o resto da peça, a
diferença de cor e modelo é perceptível. Fabrício toca em um cajón em que está sentado.
Bruno pode estar tocando também algum outro instrumento de corda que funcione com a
música.

JOÃO – Todos os dias

Antes de dormir

Lembro e esqueço

Como foi o dia

Sempre em frente

A iluminação agora é completa, as cores vão trocando repetidamente como em um show.

JOÃO e FABRÍCIO – Não temos tempo a perder

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FABRÍCIO – Nosso suor sagrado

É bem mais belo

Que esse sangue amargo

E tão sério

TODOS – E selvagem! Selvagem!

Selvagem!

Maria Luíza se levanta e vai andando pelo palco cantando enquanto olha diretamente para
Fabrício.

MALU – Veja o sol

Dessa manhã tão cinza

A tempestade que chega

É da cor dos teus olhos

FABRÍCIO – Castanhos

MALU – Então me abraça forte

E diz mais uma vez

Que já estamos

Distantes de tudo

Chega a vez de Bruno, que entrega tudo de si nesta canção. Maria volta para seu
banquinho.

BRUNÃO – Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

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Temos nosso próprio tempo

Não tenho medo do escuro

Mas deixe as luzes

Acesas

BRUNO e JOÃO – agora

Os quatro agora cantam bem alto:

TODOS – O que foi escondido

É o que se escondeu

E o que foi prometido

Ninguém prometeu

Nem foi tempo perdido

JOÃO – Somos tão jovens

TODOS – Tão jovens! Tão jovens!

A música termina e os quatro jovens se levantam para agradecer a plateia, o que encerra a
peça. Os jovens agradecem ao público, sorrindo.

FIM

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Posfácio:

Primeiro, quero te agradecer por ter chegado até aqui, espero que tenha valido a
leitura. Esta é a primeira vez que faço um roteiro para teatro. Nunca fiz teatro nem tive
qualquer contato com os palcos, apenas saio cada vez mais apaixonado de cada peça que
vou.

Minha experiência com a escrita se restringe ao mundo dos quadrinhos, sempre


gostei de desenhar e contar histórias, coisa que faço desde bem novo. Mas já carrego essa
ideia comigo já tem um tempo e nunca consegui imaginá-la funcionando em um publicação
impressa. Esta história precisava do som pra ser contada!

A primeira ideia que surgiu foi a de uma pessoa usando um instrumento musical
para manter uma outra pessoa viva. A personagem permaneceria com vida enquanto a
música continuasse sendo tocada. O potencial de trabalhar o luto, a aceitação e o poder da
arte me pareceu tão forte que eu senti que faria valer todo um espetáculo. Esta cena
precisava acontecer! Em um palco, em quadrinhos não funcionaria, nunca teria a mesma
força.

O tempo foi passando e a narrativa foi tomando forma e amadurecendo em minha


cabeça. Sem ter nenhuma perspectiva de que isto aqui sairá do papel algum dia, me lancei
à escrita depois de muito protelar. Os personagens foram ganhando vida própria e tudo foi
se encaixando em seu devido lugar. Acabei colocando tanto coração que os freios falharam
e o projeto acabou se tornando um musical de um instrumento só.

Nunca trabalhei com teatro e mal conheço quem trabalhe, mas dediquei a maior
parte do meu tempo livre a este desafio, escrevendo sem parar por dias e noites. Logo, isto
tudo aqui não deixa de ser para mim, também, pura perda de tempo. Como a arte, julgam
alguns, sempre é.

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