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A interpretação de Pelágio de Romanos 5,12-21:

exegese dentro dos limites da polêmica1


*Tradução de Andrei Venturini Martins
– Theodore S. de Bruyn.2

1 – A origem da controvérsia pelagiana.

É adequado datar a controvérsia pelagiana a partir do ano 410 d.C. Neste ano a
igreja Africana reuniu um concílio em Cartago para investigar as opiniões de alguns
refugiados que tinham chegado de Roma depois do saque do ano anterior.3 No centro do
inquérito estava Celéstio, um companheiro de Pelágio nos últimos vinte anos em Roma,
acusado por um outro conterrâneo italiano, o diácono Paulino de Milão, com um
número questionável de teses sobre a consequência da queda de Adão e de seus
descendentes. As teses foram condenadas; Celéstio deixou a África, apelando para o
bispo de Roma; e nos anos seguintes a controvérsia foi confinada no papel, em tratados
escritos por Agostinho, Pelágio e Jerônimo. O próximo passo da controvérsia não se
desdobra na África, mas na Palestina, com Pelágio sob escrutínio, e Orósio e Jerônimo
questionando a sua ortodoxia.
Contudo, embora assinalem o início do processo, os acontecimentos de Cartago
em 411 não marcam o início do debate. Os temas já estavam sob discussão em Roma na
década anterior que vários oponentes fugiram da cidade para a África e outros lugares

1
In Toronto Journal of Theology. Volume 4, n. 1, mar. 1988, pp. 30-43. [Trad. Andrei Venturini
Martins].
2
Theodore DE BRUYN, PhD. Professor da Universidade de Ottawa.
3
Para um excelente resumo dos participantes, escritores e acontecimentos da controvérsia pelagiana, ver
Flavio G. NUVOLONE, „Pelage et pelagianisme. I. Les ecrivains‟, Dictionnaire de spiritualite 12/2
(1986): 2889-923. Um detalhado estudo dos acontecimentos na África em 411 está disponível em Otto
WERMELINGER, Rom und Pelagius: Die theologische Position der romischen BischOfe im
pelagianischen Streit in den Jahren 41 1-432, Papste und Papsttum, vol. 7 (Stuttgart: Anton Hiersemann,
1975): 4-18. Na discussão anterior esses eventos, tratando o estágio da reflexão sobre o pecado original
antes do envolvimento de Agostinho na controvérsia, Gerald Bonner chama a atenção para o fato de que
Paulino de Milão, um dos primeiros oponentes do pelagianismo, era um italiano, não um africano; ver
“Les origines africaines de la doctrine augustinienne sur la chute et le peche originel”, Augustinus 12
(1967): 101-2.
de refúgio. Estava em questão a visão Traducionista dos efeitos da queda. 4 O
Traducionismo, falando adequadamente, se refere à noção de que a alma humana é
transmitida dos pais para os seus filhos. Era uma de duas explanações da origem da
alma que permaneceu depois da noção de Orígenes de uma queda pré-existente que
ficou sob suspeita, a outra explanação foi o Criacionismo, ou a noção de que Deus cria a
alma de cada criança na concepção ou nascimento. Como uma explanação da origem da
alma, o Traducionismo teve uma longa história, particularmente no Cristianismo
africano, onde remonta, ao menos, até Tertuliano. No curso desta história, além disso, o
Traducionismo tornou-se a base para a ideia de que o pecado de Adão é transmitido de
geração para geração junto com a alma. Já no terceiro século da igreja Africana, falando
através de Cipriano, deduziu-se a noção Traducionista de pecado original da explanação
Traducionista da origem da alma.5 Surpreendentemente, esta noção do pecado original
era repugnante para os Criacionistas, cuja explanação da origem da alma poderia,
certamente, não permitir a atribuição do pecado de uma geração para a próxima.
Foi o Criacionista, Rufino da Síria, que soou o alarme em Roma ao final do
quarto século. Logo depois de sua chegada à Palestina na primavera de 399, ele
começou ensinando contra o Traducionismo e a noção Traducionista de pecado original,
expondo suas objeções no seu Livro sobre a Fé.6 Elas foram reverberadas por Celéstio
no tratado Contra a Transmissão do Pecado, obra perdida até o momento, que Celéstio
escreveu em algum momento da década seguinte. 7 A partir deste tratado, ou mesmo do
Livro da Fé de Rufino, Pelágio deduziu as objeções que ele incluiu entre seus
comentários de Rm. 5,15, atribuindo-os para “aqueles que opõem a transmissão do
pecado”.8
O comentário de Pelágio nos oferece um claro sumário da posição dos
Traducionistas como era conhecido e refutado pelos Criacionistas.
4
Sobre o debate anterior a 410, e a contribuição das teorias da origem da alma, ver Gerald BONNER,
“Rufinus of Syria and African Pelagianism”, Augustinian Studies I (1970): 31-47: idem, Augustine and
Modern Research on Pelagianism, The Saint Augustine Lecture, 1970 (Villanova: Villanova University
Press, 1972), pp. 19-31: Eugene TESELLE, “Rufinus the Syrian, Caelestius, Pelagius: Explorations in the
Prehistory of the Pelagian Controversy”, Augustinian Studies 3 (1972): 61-95.
5
Sobre o desenvolvimento da doutrina do pecado original na África, ver Jaroslav PELIKAN,
Development of Christian Doctrine: Some Historical Prolegomena (New Haven, Conn. and London:
Yale University Press, 1969), pp. 73-94: TeSelle, p. 79.
6
Rufino da Síria Liber de fide 28, 38-41, in Mary William Miller, ed. and trans., Rufini Presbyteri Liber
de Fide: A Critical Text and Translation with Introduction and Commentary, The Catholic University of
America Patristic Studies, vol. 96 (Washington, DC: The Catholic University of America Press, 1964):
90.II-94.5, IIo.16-II8.14: cf. Bonner, „Rufinus of Syria‟, pp. 39-45: TeSelle, pp. 62-73.
7
NUVOLONE, col. 2891; sobre a dívida de Celéstio com Rufino, ver BONNER, „Rufinus of Syria‟, pp.
46-47; TESELLE, p. 76; WERMELINGER, pp. II-15.
8
TESELLE, pp. 73-76.
Mas aqueles que se opõe à transmissão do pecado tentam ataca-lo da
seguinte forma: „Se o pecado de Adão‟, dizem, „prejudicou mesmo aqueles
que não eram pecadores, então a justiça de Cristo salva mesmo aqueles que
não são crentes. Pois ele diz que da mesma maneira, ou melhor, em ampla
medida, que são pessoas salvas através de um homem que previamente
pereceu por outro‟. Além disso, ele diz, „Se o batismo apaga aquele pecado
antigo, aqueles que nasceram de pais batizados não deveriam ter esse
pecado, pois eles não poderiam ter passado para seus filhos o que eles
mesmos sequer possuíam. Ademais, se a alma não existe por transmissão,
mas somente o corpo, então só o corpo carrega a transmissão do pecado e
apenas ele merece punição‟. Declarando ser injusto que a alma que nasceu
hoje, não do seio de Adão, carrega então o pecado antigo pertencente a outra
pessoa, eles [de fato] dizem que em hipótese alguma se deve conceder que
Deus, que perdoa [um homem] de seus próprios pecados, impute para ele os
pecados de outrem.9

O que é impressionante sobre esta sinopse da posição Criacionista é até que


ponto o debate em Roma sobre a origem da alma e os efeitos da queda polarizou na
questão do pecado original. Porque para os Criacionistas é claramente injusto que Deus
impute o pecado de uma pessoa a outra; a explanação Traducionista da origem da alma,
com suas implicações para a transmissão do pecado, é consideravelmente inaceitável.
As linhas do debate, é verdade, já foram esboçadas por Rufino em seu Livro da Fé, mas
eles são apresentados aqui de maneira árida, sem a discussão fornecida por Rufino. 10
Celéstio pode ser responsável, em parte, por esse reducionismo: quando ele reproduziu
Rufino ensinando de forma esquemática, Celéstio também reduziu.11 Mas embora fosse
mais cauteloso que Celéstio, Pelágio também tendeu em direção a uma apresentação
simplificada da questão.12 Isto é obvio quando comparamos a interpretação de Pelágio

9
Pelágio, Rm. 5, 15, in Alexander SOUTER, Pelagius's Expositions of Thirteen Epistles of St. Paul,
Texts and Studies (Cambridge: At the University Press), vol. 9, no. 2, Text (1973): hi autem qui contra
traducem peccati sunt, ita illam impugnare nituntur: 'si Adae,' inquiunt, 'peccatum etiam non peccantibus
nocuit, ergo et Christi iustitia etiam non credentibus prodest; quia similiter. immo et magis dicit per
unum saluari qualm] per unum ante perierant.' deinde aiunt: 'si baptismum mundat antiquum illut
delictum, qui de duobus baptizatis nati fuerint debent hoc carere peccato: non enim potuerunt adfWos
tra[n]smittere quod ipsi minime habuerunt. illut quoque accidit qu[i]a, si anima non est ex traduce, sed
sola caro, ipsa tantum habet traducem peccati et ipsa sola poenam meretur.' iniustum esse dicentes ut
hodie nata anima, non ex massa Adae, tam antiquum peccatum portet alienum, dicunt [etiam] nulla
ratione concedi ut deus, qui propria [homini] peccata remittit, imputet aliena.
10
Cf. Liber de fide, 38-41, MILLER, 110.16-118.14.
11
As teses atribuídas a Celéstio no Concílio de Cartago oferecem alguma ideia do uso que Celéstio fez de
do Liber de fide de Rufino. O ponto mais marcante de contraste tem sido com a mortalidade de Adão. De
acordo com Rufino, Adão teve uma imortalidade condicional, alcançada se ele se abstivesse do pecado,
enquanto Celéstio parece ter afirmado que Adão foi Criado mortal e poderia ter morrido se ele pecasse ou
não. Ver TESELLE, pp. 76-78; WERMELINGER, pp. 15-18.
12
TESELLE, p. 76; BONNER, Augustine and Modern Research, p. 30.
aos Rm. 5,12-21 com a de Orígenes, cujo comentário sobre os Romanos na tradução de
Rufino de Aquileia contribuiu significativamente para a interpretação de Pelágio.13

2 – Interpretação de Orígenes de Rm. 5, 12-21.

Em seu comentário sobre Rm. 5,12-12, de acordo com a versão de Rufino,


Orígenes admite que a raça humana é, de algum modo, envolvida com a queda, mas o
que precisamente ele exprime com essa solidariedade de Adão é ambígua. 14 Na
passagem onde fala de todas as pessoas existente “nas entranhas de Adão”, estabelece
que eles foram banidos do paraíso “com ele ou nele”.15 O que ele quis dizer com isto
está claro na passagem subsequente, onde ele oferece duas explanações da queda: “Para
todos que tem sido trazidos para este lugar de humilhação e este vale de lágrimas, ou
porque todo aquele que nasceu em Adão estava nas entranhas de Adão e foram expulsos
junto com ele, ou por causa de algum outro modo inexplicável, conhecido somente por
Deus, cada um é visto como tendo sido lançado para fora do paraíso e tendo sido
condenado”.16 Com a segunda explanação, antecipada pela expressão “com Adão”
citada anteriormente, Orígenes está aludindo a sua teoria da queda das criaturas
espirituais, que para alguns resultou em sua encarnação como seres humanos em corpos
físicos.17 Com a primeira explanação ele não está propondo nada que sugeriria uma

13
A dependência de Pelágio da tradução do Commentary on Romans de Orígines tem sido muito bem
documentado por Alfred J. SMITH, “The Latin Sources of the Commentary of Pelagius on the Epistle of St
Paul to the Romans”, Journal of Theological Studies 20 (1918-1919): 127-177.
14
A compreensão de Orígines do pecado original foi tratada em J. GAUDEL, “Peche origine”, Dictionnaire
de theologie catholique 12/1 (1933), cols. 332-39; Julius GROSS, Geschichte des Erbsundendogmas: Ein
Beitrag zur Geschichte des Problems yom Ursprung des Ubels (Munich and Basel: Ernst Reinhardt), vol. I,
Entstehungsgeschichte des Erbsundendogmas von der Bibel bis Augustinus (1960): 99-109; Henri
RONDET, Original Sin: The Patristic and Theological Background, trans. C. Finegan (Staten Island, NY:
Alba House, 1972), pp. 70-84; Leo SCHEFFCZYK, “Urstand, Fall und Erbsiinde von der Schrift bis
Augustinus”, in Handbuch der Dogmengeschichte, ed. Michael Schmaus et aI., vol. 2, 3ª parte, seção I
(Freiburg: Herder, 1981): 71-84.
15
Orígenes, “Commentaria in epistolam b. Pauli ad Romanos”, in J.-P. MIGNE, ed., Origenis Opera
Omnia, Tomus Quartus, in Patrologia Graeca (henceforth PG), vol. 14 (Paris: J.-P. Migne, 1862), cols.
l009DI-1010A5: “ ... omnes homines qui in hoc mundo nascuntur, et nati sunt, in lumbis erant Adae, cum
adhuc esset in paradiso; et omnes homines cum ipso vel in ipso expulsi sunt de paradiso, cum ipse inde
depulsus est; et per ipsum mors, quae ei ex praevaricatione venerat. consequenter et in eos pertransiit qui
in lumbis ejus habebantur ...”.
16
Rm. VA. PG 14: 1029D4-9: “Omnes enim in loco hoc humiliationis et in convallefletus effecti sunt; sive
quod in lumbis Adae fuerunt omnes qui ex eo nascuntur, et cum ipso pariter ejecti sunt: sive alio
quolibet inenarrabili modo et soli Deo cognito unusquisque de paradiso trusus videtur, et excepisse
condemnationem”.
17
GAUDEL, col. 336; Gross, pp. 102-103. 107; RONDET, pp. 80-81. O próprio Orígenes provavelmente
favoreceu essa teoria como a explanação da condição decaída do toda a raça humana; ver
SCHEFFCZYK, pp.77-79.
maior responsabilidade corporativa que na segunda explanação: ele se refere,
simplesmente, à derivação física de todos os seres humanos desde Adão. 18
Aqueles que estão envolvidos na queda, ainda que esse envolvimento seja
justificado, sofrem diversas consequências. Primeiro, cada alma reside em um corpo
mortal e corruptível que é pecaminoso por causa do ato da procriação. 19 Segundo, além
da contaminação da existência encarnada, cada um está sujeito ao ensino e ao exemplo
dos mais velhos, que frequentemente são ímpios. 20 A diferença entre a última
consequência e a anterior é o modo da transmissão: a anterior vem por meio da geração
física, a última por meio da instrução parental.21 Em última análise, a última é mais
destrutiva que a anterior, porque pode conduzir à morte espiritual.
Orígenes discute a morte espiritual e sua transmissão em algum momento em
seu comentário sobre Rm. 5,12-14. Orígenes entende “morte” em Rm. 5,12-14 com o
significado de morte espiritual, que ele chama de “morte da alma” ou “morte do
pecado”.22 Essa morte (Orígenes explica com um esforço para permanecer fiel às
nuances da linguagem de Paulo) apresenta uma variedade de relações com os seres
humanos.23 É dito que “adentra”24 naqueles que, vivendo de maneira mundana, não
estão cientes de que têm a capacidade de seguir a lei de Deus e, portanto, não exercem
essa habilidade.25 Nessa classe estaria a criança, que irrefletidamente segue o exemplo
dos pais até ela chegar à idade da discrição. 26 Depois, a morte “atravessa” aqueles que
passam a reconhecer que têm a habilidade racional para escolher, que se arrependem de
seu modo de vida pregresso e buscam obedecer a lei de Deus. 27 Estes são os justos, com
quem a morte tem o mínimo de contato, e entre eles seria a criança que, chegando à
idade da discrição, assume uma vida piedosa.28 Por fim, a morte “reina” somente
naqueles que pecam deliberadamente e persistentemente.29 Tal seria a criança que,
chegando à idade da discrição, decide continuar no caminho de seus pais. 30 Em suma,

18
RONDET, p. 81.
19
Rm. V.9, PG 14: 1046B8-1047A6-9. Ver GROSS, pp. 105-106; RONDET, p. 76; SCHEFFCZYK, p.
81.
20
Rm. V.2, PG 14: 1024C12-15.
21
Rm. V.I, PG 14: 1018B7-CI; Rm. V.2, PG 14: 1024A13-B5, B11-13.
22
Rm. V.I, PG 14: 1011B4-8.
23
Rm. V.I, PG 14: 1012C1O-15.
24
[a morte] “adentra” no sentido de atingir todos os pecadores. (N.T).
25
Rm. V.I, PG 14: 1012D4-1013A3; 1015C9-DI.
26
Rm. V.I, PG 14: 1018B7-C5.
27
Rm. V.I, PG 14: 1013A3-6, 1015C7-9.
28
Rm. V.I, PG 14: 1017B14-C2; 1018C2-5.
29
Rm. V.I, PG 14: 1017 A6-9, C2-4.
30
Rm. V.I, PG 14: 1018C2-5.
embora a morte espiritual afete os seres humanos, ela só é o fim para aqueles que de sua
própria escolha persistem na transgressão – na transgressão, isto é importante notar, que
é ensinada por cada um dos pais. Por esta razão, Orígenes pode sublinhar que a criança
“é impelida à morte do pecado não tanto pela natureza quanto pela instrução”.31
Assim, há limitações significativas no comentário de Orígenes sobre a
transmissão dos efeitos da queda de uma geração para a outra. Orígenes afirma que a
mortalidade física e a corrupção são transmitidas por meio da geração física. Orígenes
também afirma que a descrença passa de uma geração para a outra por meio da
instrução parental, e consequentemente aconselha que a instrução na piedade evita a
possibilidade da morte espiritual. Mas Orígenes não tem a noção do pecado original
como aquela apresentada pelos Traducionistas no comentário de Pelágio sobre os Rm.
5,15, por meio da qual os descendentes de Adão são responsabilizados pelo pecado de
Adão.32 Tal como entende, do pecado original está excluída a alusão de Orígenes da
existência da queda das criaturas espirituais, de um lado, e por sua insistência, de outro,
que a morte espiritual é o resultado de uma decisão esclarecida para seguir os
ensinamentos dos pais em vez dos ensinamentos de Cristo. Estas duas ideias, juntas,
atribuem responsabilidade pela existência pecaminosa e a morte espiritual à alma
individual.

3 – A interpretação de Rm. 5, 12-21 por Pelágio.

Quando comparamos a interpretação de Pelágio de Rm. 5,12-21 com a de


Orígenes, notamos que se assemelha na deste último em sua concentração sobre a morte
espiritual e pecado deliberado. Pelágio começa a discussão com a observação que o
pecado foi transmitido pelo exemplo uel forma33 de Adão. Esta frase, uma marca
registrada de Pelágio, envolve toda interpretação do versículo 12 até o 21. Neles, de
acordo com Pelágio, Adão e Cristo são contrastados como tipos antitéticos – forma a

31
Rm. V.2, PG 14: 1024A13-B2: “Diximus quidemjam et in superioribus, quod parentes non solum
generant filios, sed et imbuunt; et qui nascuntur, non solum filii parentibus, sed et discipulifiunt, et non
tam natura urgentur in mortem peccati, quam disciplina” (ênfase do autor); cf. Rm. V.I, PG 14:
1018B14-CI, a passgem que Orígenes se refere: “Omnes enim qui in hoc mundo nascuntur, non solum
nutriuntur a parentibus, sed et imbuuntur, et non solum sunt filii peccatorum, sed et discipuli”.
32
GROSS, pp. 108-109; RONDET, pp. 83-84; SCHEFFCZYK, pp. 81-82.
33
Rm. 5, 12, SOUTER, 45. 11-15.
contrario – da raça humana.34 Adão, de um lado, é a forma do pecado, conduzindo seus
descendentes à morte por seu exemplo. Cristo, por outro, é a forma da retidão,
oferecendo o perdão para aqueles que acreditam e encenando um exemplo de retidão
para capacita-los a obedecer à lei.35 Todos os seres humanos são chamados para a forma
de Adão ou a forma de Cristo pela inclinação de sua vontade. Eles sofrem a última
consequência do pecado, a morte espiritual, somente depois que seguem
deliberadamente Adão na transgressão da vontade de Deus.36 Igualmente, eles
aproveitam o maior benefício da retidão, a vida eterna, quando aceitam livremente a
oferta do perdão em Cristo e seguem seu exemplo de retidão.37
Deve ser enfatizado que ao longo de todos os seus comentários sobre essa
passagem, Pelágio está, principalmente, se não exclusivamente, preocupado com a
morte espiritual. No versículo 12, por exemplo, ele afirma que uma pessoa morre apenas
se peca como Adão, baseado no fato de que Abraão, Isaac e Jacó não morreram. 38 Uma
vez que Pelágio dificilmente poderia ter ignorado os relatos da morte física desses
patriarcas, devemos assumir que ele fala aqui da morte espiritual. 39 Do mesmo modo,
nos versículos 13 e 14, onde ele está preocupado em explicar como a morte poderia
reinar antes da lei, ele toma por certo que a morte paira somente sobre aqueles que
pecam intencionalmente, se esse pecado transgride um mandamento particular ou, o que
é a mesma coisa, ignora a lei da natureza. 40 De novo Pelágio está falando da morte
espiritual, uma vez que o ponto em questão é como a morte poderia reinar sobre aqueles
que não eram, aparentemente ou realmente, transgressores.
Mas, enquanto se preocupa com o pecado deliberado e a morte espiritual, fica
em silêncio sobre a morte física, a ignorância e a concupiscência, tudo o que figura no
comentário de Orígenes sobre esses versículos. É possível, mas de forma alguma é
certo, que Pelágio inclui a morte física junto com a morte espiritual quando no versículo

34
Rm. 5,14, Souter, 46.17-18. Por “quidam” provavelmente Pelágio quer dizer Orígenes e Agostinho.
Cada um deles usa uma versão da expressão “forma a contrario”, e Orígenes, além disso, sugere os
termos do contraste, pecado versus retidão. Ver Orig.-Ruf., Rm. V.1,2, PG 14: 1020A1 - 11, 1022A3-9;
Agostinho, “Exposito quarundam propositionum ex epistola ad Romanas”, in Johannes Divjak, ed.,
Sancti Aureli Augustini Opera, Sect. IV, Pars I, in Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, vol.
84 (Vienna: Hoelder-Pichler-Tempsky, 1971): 84: 11.17-19.
35
Rm. 5:14,16,19, Souter, 46.22-25, 47.17-20, 48.5-8.
36
Cf. Rm. 5:14, SOUTER, 46.7-14.
37
Rm. 5, 21, SOUTER, 48.21-24; cf. Rm. 6:4,5, SOUTER, 49.17-50.4.
38
Rm. 5,12, Souter, 45·16-22.
39
Pace TESELLE, p. 78.
40
Rm. 5, 13-14, SOUTER, 46.4-14.
12 diz que “através do pecado de Adão a morte entrou” no mundo. 41 E, isto deve ser
reconhecido, ele trata a ignorância e a concupiscência em seus comentários sobre o
capítulo 7.42 Mas nem a morte física, tampouco a ignorância e a concupiscência são
elementos significativos da sua discussão de Rm. 5,12-21, e, quando ele trata dos dois
últimos, enfatiza que são consequências do pecado deliberado no curso da vida
humana.43 Em suma, em seu comentário sobre os Romanos, Pelágio se concentra sobre
o pecado deliberado para exclusão de qualquer consequência herdada da queda, ao
contrário de Orígenes que, embora foque basicamente sobre o pecado deliberado, inclui,
contudo, as consequências herdadas em seu escopo.

3 – Um comentário anônimo sobre os Romanos.

Essa concentração sobre o pecado deliberado é aparente, especialmente quando


nos voltamos do comentário de Pelágio sobre os Romanos para um comentário anônimo
sobre o mesmo texto, escrito perto da Aquileia na virada do século. 44 O comentador
anônimo era, como Pelágio, familiar ao comentário de Orígenes aos Romanos, mas no
original grego, não por meio da tradução de Rufino.45 É impressionante o modo como a
apropriação da interpretação de Orígenes pelo comentador anônimo se diferencia da
interpretação de Pelágio, especialmente quando consideramos que Pelágio estava
familiarizado com o comentário anônimo, tendo razão para citar sua interpretação de
Rm. 8,19.46

41
Rm. 5:12, SOUTER, 45.11-15; cf. TESELLE, p. 78, n. 60.
42
Rm. 7:7-25, Souter, 56.12-60.16.
43
Rm. 7: 9, 15, 17, 20, SOUTER, 57.10-12, 58. 15-19, 58. 25-59.1, 59. 12-13.
44
Os comentários do escritor anônimo foram descobertos por Hermann Josef Frede no Budapest
Ungarisches Nationalmuseum Codex Latinus Medii Aevi I e apresentados em uma edição de dois
volumes, Ein neuer Paulustext und Kommentar, Vetus Latina: Aus der Geschichte der Lateinischen Bibel
(Freiburg: Herder), vol.l, no. 7, Untersuchungen (1973); vol. 2, no. 8, Die Texte (1974). É necessário
consultar o prefácio no segundo volume, pp. 9-10, para distinguir a sigla dos comentários do escritor
anônimo dos comentários do revisor Pelagiano: números precedidos por um '0' (01, 02, etc.), seguidos por
letras maiúsculas (lA, IB, etc.), ou fechados em colchetes angulados (<1>, <2>, etc) indicam os
comentários feitos pelo escritor anônimo. Sobre a data (AD 396-405) e a proveniência do comentário, ver
vol. I, p. 217; vol. 2, p. 7.
45
FREDE, I: 205-6.
46
FREDE, I: 200-5.
A principal preocupação do comentador anônimo é ressaltar que ninguém é
capaz de permanecer na lei, que todos pecam, e que, consequentemente, todos estão
sobre o reino da morte. O comentador anônimo toma por certo que depois da queda
ninguém pode permanecer na lei.47 A razão disto é fraqueza da natureza humana, que
está manifesta nas crianças; as crianças, contudo, não fazem, como os adultos,
transgressões deliberadas da lei, apesar de serem culpadas de outros pecados por conta
da fraqueza de sua natureza.48 Assim, a morte reina não somente sobre os pecadores
deliberados, mas também sobre os pecadores inadvertidos; não só sobre os adultos, mas
também sobre as crianças.49
Sobre alguns pontos menores de suas respectivas interpretações, o comentador
anônimo e Pelágio convergem. Ambos afirmam que o fracasso para observar a lei
natural é tanto um pecado quanto a transgressão da lei escrita, e que, portanto, é possível
falar de pecado no período de Adão a Moisés. 50 Eles também concordam que a morte
não reina sobre alguém que não peca, embora não haja certeza de que o comentador
anônimo esteja falando, como está Pelágio, da morte espiritual. 51 Mas na perspectiva
destes dois comentadores há uma distância. Enquanto Pelágio lê o versículo 12 para
exprimir que as pessoas só morrem espiritualmente se pecam deliberadamente, e que,
portanto, exceção deve ser feita aos “santos” do Antigo Testamento (apesar de retórica),
o comentador entende que o versículo mostra que todos, de fato, pecaram, contra a lei
natural ou o escrito da lei.52 Da mesma forma, no versículo 14, enquanto Pelágio
submete ao reino da morte apenas aqueles que pecaram deliberadamente e,
consequentemente, se opõe àqueles que condenam os infantes por causa do pecado
herdado, o comentador anônimo inclui os infantes ao reino da morte e argumenta que,

47
Rm. 40A; FREDE, 2: 38: “Hic ostendit apostolus, „quemadmodum uno Adam praevaricante peccatum
in hunc mundum ingressum sit cunctis‟, eo quod tam naturalem quam scriptam legem nullus potuisset
implere”.
48
Rm. 44A; Frede, 2: 39: “Quomodo in similitudinem praevaricationis Adae obnoxii esse dicuntur qui
non peccaverunt, nisi quia illud ostenditur per infirmitatem naturae eos servare legem minime potuisse?
Et idcirco etiam super inJantes „mors regnasse‟ monstratur, qui non peccaverunt in similitudinem Adae,
sed alia mala peccataJecerunt; in similitudinem Adae ostenduntur aliter „peccasse‟” (emphasis mine).
49
Rm. 43A; FREDE, 2: 39: “Vult ostendere, quoniam ante adventum Christi „mors omnibus regnaverit‟;
„regnare‟ enim non potuit absque peccato. „Regnat‟ autem et irifantibus qui praecepto sicut Adam non
tenentur obnoxii. Unde ostendit eos naturali condicione peccare per imbecillitatem humanae naturae,
quae legem dei custodire non potuit”.
50
Cf., Rm. 40A, FREDE, 2: 38, e PELÁGIO, Rm. 5:14, SOUTER, 46.10-14.
51
Cf., Rm. 43A, FREDE, 2: 39, e PELÁGIO, Rm. 5:13, SOUTER, 46-4-6.
52
Cf., Rm. 40A, FREDE, 2: 38, e PELÁGIO, Rm. 5:12, SOUTER, 45.16-22.
ainda que sejam inocentes do pecado deliberado, devem ser culpados de outros
pecados.53
Ao assinalar essa divergência de perspectiva, contudo, é importante notar que o
abismo entre Pelágio e o comentador anônimo não é tão grande quanto o abismo entre
Pelágio e os Traducionistas. Em primeiro lugar, não há certeza de que o comentador
anônimo defenda uma explanação Traducionista da origem da alma: ele simplesmente
se refere à fragilidade da natureza humana, sem oferecer uma explicação para esta
fragilidade.54 Está claro, o que é mais importante, que o comentador anônimo não adere
à noção Traducionista de pecado original: enquanto os Traducionistas, concordando
com Pelágio, atribuem aos infantes recém-nascidos “o pecado de outro”, mais
precisamente, o de Adão, o comentador anônimo garante simplesmente que as crianças,
embora não transgridam conscientemente um mandamento, como fez Adão, efetuam,
contudo, “outros pecados perversos” por conta de sua frágil natureza humana.55 Por esta
razão, embora interprepretem Orígenes diferentemente, o comentador anônimo pode ser
colocado, com Pelágio, na tradição de Orígenes, enquanto os Traducionistas
permanecem firmemente na tradição de Cipriano.56 A interpretação anônima
corresponde a passagens nos comentários de Orígenes onde este reconhece que a
corrupção é transmitida de uma geração para outra, inclinando as crianças a pecar,
enquanto a interpretação de Pelágio corresponde a passagens da interpretação de
Orígenes onde este enfatiza a função da instrução parental na formação de uma criança
e ressalta o pré-requisito da decisão instruída para a responsabilidade humana.57 Ou,
para lembrar a explanação de Orígenes da relação da morte nos diferentes estágios da
vida, o comentador anônimo foca na criança, enquanto Pelágio se concentra no adulto. 58

53
Cf., Rm. 43A, 44A, FREDE, 2: 39, e PELÁGIO, Rm. 5:14,15, SOUTER, 46.10-14, 47.9-13.
54
Rm. 43A, FREDE, 2: 39.
55
Cf., Rm. 5:15, SOUTER, 47.9-II: “iniustum esse dicentes ut hodie nata anima, non ex massa Adae, tam
antiquum peccatum portet alienum...” e Anônimo, Rm. 44A, Frede, 2: 39: “Et idcirco etiam super
infantes „mors regnasse‟ monstratur, qui non peccaverunt in similitudinem Adae, sed alia mala peccata
fecerunt...” (ênfase minha). Veja também a discussão em FREDE, I: 223.
56
A conexão entre os Traducionistas e está na frase “aliena peccata” (ver nota 7 acima). A frase aparece
na Carta 64 de Cipriano, onde ele, falando em nome da igreja Africana, afirma que quando um infante é
batizado seus pecado são remidos – note o plural –, não são seus próprio pecados, mas de outros. Ver
“Epistula 64.5”, in Guilelmus HARTEL, ed., S. Thasci Caecili Cypriani: Opera Omnia, in Corpus
Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, vol. 3, parte 2 (Vienna. Apud C. Geroli !ilium bibliopolam
academiae, 1868): 720.19-721.2: “... quanto magis prohiberi non debet inJans qui recens natus nihil
peccauit, nisi quod secundum Adam carnaliter natus contagium monis antiquae prima natiuitate
contraxit, qui ad remissam peccatorum accipiendum hoc ipso Jacilius accedit quod illi remittuntur non
propria sed aliena peccata”.
57
Ver p. 32.
58
Ver p. 33.
Mas, embora fosse um erro identificar o comentador anônimo com os
Traducionistas, em um ponto crucial ele está mais próximo dos Traducionistas do que
de Pelágio, apesar dos dois compartilharem da tradição. Se a questão entre Pelágio e os
Traducionistas está limitada à atribuição da culpa do pecado de Adão aos seus
descendentes – que é a maneira como está definida no comentário de Pelágio – então o
comentador anônimo não é um Traducionista. De qualquer forma, se a questão está
definida mais largamente para incluir a asserção que nenhum dos descendentes de Adão
são justos porque a natureza que eles herdaram é incapaz da impecabilidade, então o
comentador anônimo discorda de Pelágio e junta forças com os Traducionistas. Ambos,
o comentador anônimo e os Traducionistas, estão de acordo que como resultado da
queda ninguém está ou pode estar sem pecado, enquanto Pelágio conserva que pelo
menos alguns, até a vinda de Cristo, eram justos.59

4 – A origem do Pecado.

Aqui, sobre a questão de saber se é possível existir sem pecado, chegamos ao


cerne da questão para Rufino da Síria, Celéstio e Pelágio. Quando Rufino trata da
transmissão do pecado de uma geração para a próxima, e em particular com a noção de
que os descendentes de Adão e Eva estão condenados por conta do pecado dos dois, ele
está preocupado, sobretudo, em ressaltar o caráter deliberado do pecado, relacionando,
por conseguinte, com a ideia do pecado original. Rufino destaca que, se todos estão
condenados como resultado da queda, estão condenados porque eles mesmos desejaram
o pecado.60 Ele continua a enfatizar a importância do desejo recorrendo a Adão, Eva e
Abel que, embora tenham caído uma vez, contiveram-se, contudo, de pecar ainda mais,
e para Henoc e Elias, que receberam a imortalidade porque estavam livres do pecado. 61
E só então ele trata da ideia que infantes descendentes do pecado de Adão – motivo,
segundo alguns, da mortalidade e da razão do batismo deles – destacando que os
infantes batizados ainda morrem e que os filhos dos pais batizados (que estão,
presumivelmente, limpos do pecado original) ainda requerem batismo.62

59
Cf., Rm. 40A, Frede, 2: 38: “...tam naturalem quam scriptam legem nullus potuisset implere” e Pelágio,
Rm. 5:12, Souter, 45.13: “... cum paene aput nullum iustitia remansisset...”
60
Liber de fide 39, Miller, 112.12-17.
61
Liber de fide 39, Miller, 112.17-33.
62
Liber de fide 40, Miller, 114·9-19.
Não sabemos se Celéstio incluiu esta primeira parte do argumento em seu
próprio tratado contra a transmissão do pecado, que ele baseou no livro Sobre a Fé de
Rufino; está ausente da sinopse de Pelágio de Rm. 5,15, ao passo que o argumento
sobre os filhos de pais batizados é citado.63 No entanto, se as teses de Paulino de Milão
contra Celéstio são uma indicação confiável das ideias de Celéstio, fica claro que o
potencial para a inocência ocupava o ponto mais alto de seu pensamento. A tese final de
fato afirma que antes da vinda do Cristo havia pessoas sem pecado, 64 e as teses
precedentes articulam os pressupostos que estão implícitos nessa visão, tal como a
convicção que Adão somente maculou a si mesmo com seu pecado e que os infantes
nascem no mesmo estado de Adão antes da queda.65
Do mesmo modo, a principal preocupação de Pelágio em seu comentário sobre
Rm. 5,12-21, e, na verdade, em toda a epístola, está no potencial de retidão ao longo de
toda história humana.66 A razão pela qual ele assegura que o pecado transmitido por
Adão “pelo exemplo ou pelo modelo”, e não pela geração física, é aquela crença que
alguns descendentes de Adão são retos – não muitos, mas, mesmo assim, alguns67–, e
isto não poderia estar de acordo com o entendimento Traducionista da queda. Negar que
alguns eram retos é, na visão de Pelágio, negar que todos podem ser retos; isto poderia
ser o equivalente à negação da responsabilidade humana, uma vez que, para Pelágio, a
liberdade consiste na habilidade de escolher entre o bem e o mal, e a responsabilidade é
predicada após a liberdade humana.
Essa abordagem da responsabilidade humana influencia todo comentário de
Pelágio sobre Romanos, e é particularmente evidente em um número de passagens que
poderiam ser lidas de uma maneira que compromete a liberdade humana. Por exemplo,
quando no capítulo 1, Paulo fala de Deus permitindo aos pecadores até mesmo os seus

63
Rm. 5:15, Souter, 47.4-7.
64
A mais acurada forma da tese é ditada por Agostinho, “De gestis Pelagii 11.23” in C. F. URBA e J.
ZYCHA, eds., Sancti Aureli: Augustini Opera, Sect. VIII, Pars II, in Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum
Latinorum, vol. 42 (Vienna: F. Tempsky and Leipzig: G. Freytag, 1902): 42: 76.20-21: “...quoniam ante
adventum Christi fuerunt homines sine peccato”; cf. Wermelinger, pp. 10-11, 15-16.
65
Ver WERMELINGER, pp. 11, 15-16.
66
Pelágio insiste que Gentios e Judeus possuem os pré-requisitos para a retidão: a habilidade para
conhecer a vontade de Deus e a abilidade de escolher viver de acordo com esta vontade. Esta é a base
sobre a qual ele mantém uma equidade entre Gentios e Judeus. Ver Rm. 1:21,2:20, 3:11, SOUTER, 14.22-
25,24.18-19,30.5-9.
67
Rm. 5:12, SOUTER, 45.13,20: “...paeneaputnullum...”; “...pauci iusti...”.
desejos iníquos, Pelágio explica que Deus admite isto em sinal de respeito à liberdade
de escolha dos pecadores.68 Assim também, quando Pelágio trata do dilema da “pessoa
carnal” no capítulo 7 – a pessoa para quem o pecado se tornou habitual –, ele
constantemente lembra seus leitores que o hábito de pecar tem seu início no pecado
deliberado e, ao mesmo tempo em que reconhece a força do hábito, para de dizer que se
peca contra a vontade.69 Do mesmo modo, a explanação de Pelágio da predestinação no
capítulo 8 é projetada para preservar a liberdade humana, afirmando a eleição divina
após a presciência de Deus da fé do crente.70 E, sobre o tema da eleição no capítulo 9,
Pelágio atribui passagens problemáticas aos oponentes judeus que afirmam que Deus
elege alguns e condena outros sem se importar com os seus respectivos méritos – um
olhar que, de acordo com a leitura de Pelágio do capítulo, depara-se com uma vigorosa
oposição do apóstolo.71
Em todas essas passagens, Pelágio subordina suas decisões exegéticas a seus
pressupostos morais. O mesmo ocorre em sua interpretação de Rm. 5,12-21. Como
vimos na comparação de seus comentários com aqueles de Orígenes, Pelágio apresenta
uma versão truncada da interpretação de Orígenes, excluindo qualquer discussão
daqueles efeitos da queda que são passados de geração para geração, como por exemplo
a morte física, a ignorância e a concupiscência, e focando inteiramente na morte
espiritual que é a única consequência do desprezo deliberado da lei de Deus. Além
disso, como já notamos pela comparação do comentário de Pelágio com o comentário
anônimo, esta versão truncada não era a única tradução possível da interpretação de
Orígenes: o comentador anônimo toca na morte física, na ignorância e na
concupiscência, tanto quanto o pecado deliberado, sem, de qualquer forma, adotar a
noção Traducionista de pecado original. Mas Pelágio não é tão abrangente quanto o
comentador anônimo em seu uso de Orígenes, porque Pelágio, insistindo que é possível
para qualquer um existir sem pecado, considera a ignorância e a concupiscência o
resultado, em vez da fonte, do pecado.
Se havia outra rota disponível para Pelágio, dado os limites de sua polêmica
contra os Maniqueus, é um ponto discutível. A principal ameaça para o programa
ascético de Pelágio veio dos Maniqueus que, como Pelágio, eram populares entre os

68
Rm. 1:24, SOUTER, 15.15-17; cf. Rm. 8:32, SOUTER, 69.18-20.
69
Rm. 7:15,17,20, SOUTER, 58.15-19, 58.25-59·1, 59.12-13.
70
Rm. 8:29,30, SOUTER, 68.19-69.3, 69.7-9; cf. Rm. 9:10, SOUTER, 74.9-16.
71
Rm. 9:14-16,20,26,30, SOUTER, 75.10-76.15, 77.18-26, 78.20-79.5, 79.23-80.7.
aristocratas romanos.72 Embora os Maniqueus defendessem uma vida ascética, eles não
o faziam porque acreditam que a vontade era livre para escolher o bem ou o mal, e sim
porque estavam convencidos de que a alma deveria ser libertada do corpo que a
mantinha cativa no pecado. Para Pelágio, até mesmo a concessão da ignorância e da
concupiscência teria sido ceder aos Maniqueus. Isso fica evidente a partir do comentário
de Pelágio sobre Rm. 5,15. Entre os argumentos citados contra os Traducionistas está a
observação parentética de que, se procriação é pecaminosa, então apenas o corpo, e não
a alma, é pecaminoso.73 Pelágio não poderia ter dado a este argumento a devida
consideração sem minar sua polêmica contra o Maniqueísmo. Várias vezes ele assegura
que a vontade, e não o corpo, é a fonte do pecado,74 e depois que passa a considerar a
experiência da ignorância e da concupiscência, é particularmente cuidadoso para
explicar que ambos resultam do pecado deliberado.75
Em poucas palavras, a posição que Pelágio assumiu contra os Maniqueístas
impedia o tipo de interpretação oferecida pelo comentador anônimo. O resultado é uma
visão da responsabilidade que é fundamentalmente Origenista, mas sem as qualificações
permitidas por Orígenes. Como Orígenes, Pelágio considera que todos sejam
responsáveis por seu destino último, predicando a morte espiritual do pecado
deliberado, mas ao contrário de Orígenes, Pelágio não reconhece outros fatores que
podem afetar a conduta de alguns, tal como a ignorância e a concupiscência. Ter feito
isso seria negar que é possível abster-se do pecado, que foi precisamente a conclusão a
que o comentador anônimo chegou, e também a posição dos Traducionistas, mas que
era anátema para Pelágio e seus companheiros Criacionistas.

72
Bonner, Augustine and Modern Research, pp. 31-35; cf. Torgny Bohlin, Die Theologie des Pelagius
und ihre Genesis, trans. Harald Buch, Uppsaia Universitets Arsskrift, nº. 9 (Uppsaia: A.-B. Lundequist,
and Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1957), pp. 12-14.
73
Rm. 5:15, Souter, 47.7-9·
74
Rm. 1:8,5:10,6:19,8:3,8:5,8:7, Souter, 10.9-10, 44.24-25, 53.11-13, 61.2-3, 61.17-21, 62.4-10, 62.17-
18.
75
Rm. 7:15,17,18,20, Souter, 58.15-19, 58.25-59.1, 59.4-5, 59. 12-13.

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