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Direitos Autorais

Título Original: Eternal deception


Copyright©2015 por Jane Steen
Copyright da tradução©2023 Leabhar Books Editora Ltda.

Tradução: Camila Kahn


Revisão: Soraya Defavari
Diagramação: Labellaluna Web
Capa: Rachel Lawston, www.lawstondesign.com

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Dedicató ria
Dedicado a Bob, Laura e Ally
Por me tolerarem quando eu estava vivendo dentro de minha cabeça ao invés de no
momento.
1872

Capítulo um

Desafortunada
— Eu sei, exatamente, o que é.
A sra. Drummond, governanta do Seminário Vida Eterna, meu local de
trabalho das últimas vinte e quatro horas, parou como uma vareta rígida ao
lado da enorme lareira na biblioteca ornamentada do seminário. A argola
com chaves presa ao cinto em seu quadril, um símbolo de autoridade,
capturou um feixe perdido de luz do sol enquanto as nuvens que corriam
sobre a pradaria se separavam por alguns segundos.
Duas pessoas a flanqueavam: dr. Adema, o presidente do seminário, e
uma sra. Calderwood. Eu não tinha muita certeza de qual era a função da
sra. Calderwood, mas ela parecia se achar importante.
— Todos nós sabemos a história da sra. Lillington, sra. Drummond. —
O tom do dr. Adema era gentil, e talvez com um toque irônico. — Todos
estávamos envolvidos na decisão de empregá-la, sob a recomendação da
sra. Lombardi. — O tremor em suas mãos, curvadas sobre uma bengala,
traíam sua idade apesar da postura ereta de sua silhueta alta e magra.
Ergui o queixo e uni os dedos, determinada a não demonstrar o quanto
estava cansada. A viagem de cinco dias até o Kansas parecera uma aventura
empolgante quando Sarah, Tess e eu deixamos a pequena cidade de
Victoria. Mas a comida ruim, o pouco sono e um bebê cada vez mais
irritável havia cobrado seu preço. O sacolejar da carroça ao longo do
caminho esburacado até o seminário fora a gota d’água para Sarah, que
vomitou nas saias da sra. Drummond enquanto eu apertava sua mão.
— Sim, sim. — A sra. Calderwood soava impaciente, um brilho
irritado em seus olhos pretos e redondos. Ela era uma mulher pequena,
roliça, ofuscada pelas duas figuras altas de cada lado seu. E isso apesar de
seus esforços de aumentar a altura, arrumando o cabelo preto e grisalho
num penteado tão alto que balançava quando ela falava. — É verdade que
estávamos bem cientes de que a sra. Lillington — ela deu um pequeno
sorriso sarcástico enfatizando minha condição de casada ficcional — veio
da Fazenda dos Pobres de Catherine Lombardi e é uma desafortunada. —
Ela estreitou os olhos para mim. — Mas reconheço…
O dr. Adema pigarreou, contendo o fluxo de palavras.
— Fomos dados a entender que a, hum, situação da sra. Lillington foi
resultado de um único lapso de julgamento moral — falou com moderação.
— Dificilmente seria justo rotulá-la como desafortunada. Ela não estava
andando pelas ruas.
Senti minhas bochechas se incendiarem. Naquele momento, eu quase
preferia ser uma desafortunada, como a sra. Calderwood chamava. Ao
menos eu poderia encarar todos de cima, com a devida experiência
carregada por uma mulher do mundo. Tê-los me fitando e sabendo que
Sarah era o resultado de minha própria estupidez e ignorância – bem! Que
tal meu primo, Jack Venton, que tirara vantagem dessa ignorância? Mas, é
claro, a única forma com que eu poderia evitar a culpa que a sociedade
inevitavelmente colocaria sobre mim teria sido me casando com Jack. Por
isso, preferia mantê-lo na ignorância a entrar num casamento que nenhum
de nós queria. E eu não estava preparada para desistir de Sarah também.
— Reconheço — disse a sra. Calderwood, falando um pouco mais alto
— que a sra. Drummond tem um ponto. — Ela gesticulou com a mão
diminuta, com unhas pontudas pequenas em minha direção. — Não apenas
essa jovem mulher é uma pessoa de julgamento moral claramente pobre,
como também é inegavelmente bonita. E é uma mulher muito jovem. Num
seminário cheio de homens jovens.
Três pares de olhos analisaram meu rosto e meu corpo. Eu não estava
me sentindo particularmente bonita, ainda que não tenha feito meu melhor
para parecer o mais elegante e arrumada possível. Eu era a imagem da
respeitabilidade sóbria em uma saia e blusa pretas sem adornos. Meu único
enfeite era o broche de prata, azeviche e pérola que Martin Rutherford tinha
me dado.
— Então, se fosse comum e não tivesse alguns dentes, estaria mais
adequada à minha posição? — Sabia que estava sendo impertinente, mas
não podia evitar. — Posso garantir, sra. Calderwood, que ter cometido um
erro uma vez – e apenas uma vez – e tendo sofrido as consequências, não
estou tentada a realizar o experimento novamente.
Eu também poderia ter casado com Martin, recordei. Ele quase propôs
e era meu amigo mais antigo, talvez o único homem que eu poderia
aguentar dia após dia. Mas, ele tinha suas próprias ambições e estava
construindo sua sonhada loja em Chicago, que nascia das cinzas do grande
incêndio na cidade. E compartilhava da mesma grande aversão a
casamento.
— Prometo-lhe, dr. Adema, que não tenho nenhuma intenção de causar
problemas com qualquer homem neste estabelecimento. — Fixei meu olhar
em seus olhos gentis. — Estou aqui apenas para construir uma vida para
mim e para aqueles que dependem de mim. As mortes de minha mãe e de
meu padrasto me deixaram com poucos recursos financeiros, mas trabalho
duro e sou habilidosa com agulha. Não irá se arrepender de me contratar.
E se me mandassem embora, para onde eu iria? Para a mansão dos
Lombardis? Achei que seria perto e eu poderia visitar a sra. Lombardi, que
havia sido tão gentil na Fazenda dos Pobres. Mas ficava a um dia inteiro de
viagem deste lugar isolado. Meu sonho de um futuro independente estava
caindo aos pedaços face à realidade.
Fitei meus interlocutores, me recusando a ficar na defensiva sobre meu
passado.
— Eu deveria ter pensado mais cuidadosamente sobre o assunto. — A
sra. Calderwood refletiu. Ela uniu os pequenos dedos sob o queixo e olhou
para mim, a cabeça inclinada para um lado. — O que os pais dos garotos
pensarão se souberem que as roupas de seus filhos – e, céus, os lençóis! –
são costurados e consertados por uma pessoa cujas mãos estão manchadas
por — diminuiu a voz para um sussurro — fornicação? Temos que pensar
na reputação desta instituição, afinal de contas.
A sra. Drummond assentiu em concordância empática. Um tremor
percorreu o rosto do dr. Adema que bem poderia ser um sorriso suprimido.
— Prefiro pensar que a reputação do lugar é um assunto meu, sra.
Calderwood.
Eu já tinha ouvido falar de pessoas que se eriçavam, mas nunca tinha
visto acontecer tão inequivocamente, e poderia jurar que o cabelo
empilhado da sra. Calderwood tinha de fato enrijecido.
— Se meu querido pai pudesse ouvir sua rejeição arrogante à
generosidade dele…
— Não estou fazendo nada do tipo, sra. Calderwood. O dinheiro da sua
família forneceu a terra e o prédio, pelos quais nossa congregação é grata.
Gratidão essa, eu poderia sugerir, que foi suficientemente demonstrada pela
posição atribuída a seu marido na administração desta instituição. Ainda
assim, sou o presidente, e os fundos para a operação diária da escola vêm da
comunidade, dos nossos doadores, e das taxas pagas pelos pais dos garotos.
— Havia um tom rígido em sua voz que eu não tinha ouvido antes. —
Garanto à senhora, considerei todos os lados da questão antes de concordar
em empregar a sra. Lillington.
— Mas olhe para ela! — A sra. Drummond explodiu. Ela era uma
mulher alta, de boa aparência e constituição, com cabelos brilhantes
castanhos claros, limpos e bem arrumados. Seus olhos, grandes e num tom
verde-acinzentado, me fitaram com uma expressão de raiva indignada. —
Como poderia estar numa posição servil? Está bem claro que é uma dama.
Olhe para ela, ouça-a falando. A sra. Lombardi me iludiu completamente.
Eu estava esperando uma penitente humilde, adequada a um posto humilde.
Ela não é adequada. Não é adequada de jeito nenhum.
— Posso costurar as roupas e lençóis que a senhora precise, pedir os
suprimentos necessários e prestar contas do que faço. Quão mais adequada
tenho que ser? — Virei-me para o dr. Adema de novo, pois estava claro que
era meu melhor aliado. — Por favor, me dê uma chance; não tenho mais
lugar nenhum para ir.
E aquele era o cerne da questão, pensei tristemente, a menos que me
lançasse à caridade dos Lombardis – para quem eu seria um fardo. Ou
voltar para Martin, e que raios um homem solteiro faria com uma mãe
solteira, um bebê e Tess, a quem o mundo ficava feliz em chamar de
“imbecil”?
— Além disso — a sra. Drummond continuou —, não foi criada em
uma casa adequadamente regida. Idas irregulares à igreja, orações diárias
quase inexistentes, leitura da Bíblia muito irregular, com bebidas e tabaco
na casa.
Abri minha boca para responder, então a fechei de novo. A sra.
Drummond tinha disparado uma série de perguntas para mim, enquanto
ainda estava tentando me orientar no dia anterior. Tive que admitir que
cresci numa casa onde Deus era respeitado, mas que não era muito
religiosa.
A sra. Calderwood juntou-se ao ataque, os olhos brilhando com alegria.
— Nós explicamos à sra. Lillington que este estabelecimento é
administrado em estrita conformidade às regras de nossa comunidade
religiosa, que nos aconselha a ter uma vida devota e proíbe o consumo de
bebidas.
— E eu assinei seu termo de compromisso de boa-fé — respondi. —
Não bebo ou fumo e ficarei perfeitamente feliz em frequentar a capela e
respeitar o Sabá. Nossas idas à igreja não eram exatamente irregulares; eu
apenas disse a verdade, que às vezes faltávamos a missa por motivo de
doença e assim por diante.
— Mas você…
— E daí…
A sra. Drummond e a sra. Calderwood falaram juntas e o dr. Adema
ergueu uma mão trêmula para ordená-las a se calarem.
— Jesus contava com uma mulher de má reputação entre seus
seguidores, não que eu esteja dizendo que é seu caso, sra. Lillington, e as
escrituras não dão indicação de que errou novamente. Se dispensarmos essa
jovem senhora depois de trazê-la por todo o caminho até o Kansas, onde
está nossa caridade? Se não pudermos perdoar, como aceitaremos o perdão
do Senhor? Façam aos outros, senhoras. — Seu tom guardava uma leve
nota de reprovação. — Todos temos nossas fraquezas.
Um leve rubor coloriu as maçãs do rosto da sra. Drummond; a sra.
Calderwood apenas parecia agressiva.
— Não esqueça que temos o problema extra e gastos de três bocas para
alimentar, não apenas uma. Aquela criança vai crescer e então há a srta.
O’Dugan. Suas capacidades não são muito boas…
— A srta. O’Dugan parece ter um caráter excelente — a sra.
Drummond interrompeu com um entusiasmo que me surpreendeu. — Ela é
uma grande apreciadora das escrituras e demonstra muito interesse no
seminário. Ela tem me perguntado sobre meus métodos para manter a
contabilidade. — Ela fingiu não ver minha tentativa de sorriso de gratidão,
mas seu rosto suavizou um pouco.
— Tess é prestativa comigo de muitas formas e é mais astuta do que as
pessoas imaginam. — Finalmente eu estava começando a sentir que
ganhava vantagem. — Os senhores estão conseguindo duas boas
trabalhadoras pelo preço de uma.
— Você manterá a criança fora da vista dos estudantes — a sra.
Drummond disse. Eu assenti.
— E se lembrará que deve falar com os rapazes apenas sobre assuntos
diretamente relacionados a seu trabalho — a sra. Calderwood acrescentou.
Assenti de novo, mordendo o lábio contra a réplica que se formou em
minha mente.
O dr. Adema sorriu.
— Parece que chegamos a algum tipo de acordo.

Foi um alívio chegar à sala de trabalho alocada para nós, ainda que
estivesse fria e vazia. A lenha disposta, pronta para o fogo na lareira, não
seria acesa, a sra. Drummond explicou, a menos que fosse realmente
necessário. A madeira era preciosa nas planícies. As lamparinas no
candelabro acima de nós também não tinham sido acesas, ainda que o dia
estivesse minguando – mas eu não me importava. Não tinha ido ali para
trabalhar, mas para pensar enquanto Tess e Sarah dormiam no quarto acima.
Apoiei a cabeça de encontro ao caixilho da janela e olhei na direção da
paisagem que escurecia. As nuvens tinham se juntado e uma chuva leve
havia começado a cair, reluzindo nas folhas verdes, forçando-se através dos
marrons e bronzes do último inverno. A pradaria parecia vasta e vazia. Eu
sabia que estávamos há uns cinco quilômetros da pequena cidade de
Springwood, mas tudo que eu podia ver era o horizonte descoberto além de
uma fileira desgarrada de árvores jovens que marcavam o perímetro das
terras do seminário.
Era um novo começo, mas não o que eu tinha imaginado. Eu havia
visualizado nossa migração para o Kansas como uma fuga importante para
uma nova vida de possibilidades, talvez de grande sucesso. No mínimo do
mínimo, imaginei que Sarah estaria à salvo das fofocas e desprezo que
encontraria em casa enquanto crescia. Ali, ninguém olharia para seus olhos
verde-jade e pensaria na visita do primo Jack. A sra. Lombardi poderia,
talvez, me apresentar a senhoras que apreciariam minhas habilidades de
modista e poderíamos fazer amigos na comunidade local.
Exceto que não havia a sra. Lombardi por perto e, aparentemente, não
havia comunidade local também. Eu ficaria bem mais isolada do que estive
na Fazenda dos Pobres. Teria infinitamente bem menos amigos do que em
Victoria. Ali, o amor que as pessoas tinham por minha mãe os levaram a
aceitar a invenção de meu casamento apressado e viuvez desafortunada. Na
superfície, ao menos.
E em Victoria, havia a afeição constante de Martin, que tinha mais
valor para mim agora do que jamais teve.
Capítulo dois

Bem-estar moral
15 de abril de 1872
Querida Nell,
Minha querida menina, como está? Já partiu há mais de um mês – sua
grande aventura bem iniciada – e recebi precisamente quinze palavras suas
em um terço de papel para anunciar sua chegada. Sei que é uma
correspondente lenta, mas se não tiver mais notícias suas em breve,
começarei a me preocupar. Estão todas bem? O que está fazendo?
Estou enviando um pacote com algumas quinquilharias que, imagino,
são muito mais do que poderia encontrar no mercado de Springwood. O
bom tempo em Chicago significa que meus homens passam todo tempo
construindo minha loja, então tenho disponibilidade para me reunir com os
fornecedores. Navios começaram a chegar a Nova York e São Francisco
agora que o inverno acabou, então preciso trabalhar duro para garantir o
melhor do melhor para a Rutherford & Co. Comecei a contratar secretários
e aluguei instalações temporárias para abrigá-los. Passamos o dia todo
produzindo páginas e páginas de correspondência e rios de cálculos. Em
breve será o momento de iniciar a contratação de gerentes que irão, por
sua vez, encontrar funcionários.
Ficará feliz de saber que, no entanto, nem tudo é trabalho, graças a
Fassbinder. Quem iria imaginar que o refugiado que abriguei depois do
incêndio se tornaria tal agente de negócios e também um amigo? Ele me
garantiu apresentações, então recebi alguns convites para jantar e conheci
outros comerciantes e suas famílias. Contarei mais sobre eles quando
escrever para mim – isso é incentivo o bastante para que se corresponda?
Ah, estou apenas provocando. Tenho certeza de que tem se mantido
ocupada. Mas escreva, Nell. Gosto de saber que minha pequena amiga está
bem e feliz.
Martin.

— Quem é esse homem que escreve para você? — A voz estridente da


sra. Calderwood ecoou no corredor cavernoso. — A sra. Drummond me
disse que essa é a segunda carta que recebeu desde que chegou – do mesmo
homem.
Ela balançou a carta de Martin sob meu nariz.
— E há uma encomenda cheia de enfeites de vestidos do tipo mais
impraticável e algumas cópias do Godey’s Lady’s Books. E uma publicação
francesa pavorosa de natureza ainda mais frívola que o Godey’s. Bastante
inadequado.
— Então a senhora abriu meu pacote? — Minha pergunta saiu como
um guincho incrédulo.
— Naturalmente. — A sra. Calderwood cruzou os braços pequenos e
empinou o queixo. — Como sua empregadora, sou responsável por seu
bem-estar moral. Quem, pergunto de novo, é esse homem?
— Um amigo. — Eu estava ciente de que soava defensiva.
— Um sr. Martin Rutherford de Chicago. Um homem solteiro? Ele não
menciona uma esposa.
— Então a senhora leu minha carta. Não me surpreende. — Lutei para
manter a raiva longe de minha voz.
— Eu dificilmente poderia deixá-la passar sem escrutínio. E meu
marido precisa vê-la.
Eu soube que o dr. Calderwood estava encarregado da administração
do dia a dia do seminário como assistente do dr. Adema. Eu tinha visto-o
lendo os comunicados antes do serviço diário da capela. Ele era um homem
enorme, com uma juba de cabelos alourados e grandes dentes brancos,
mostrados com frequência em um sorriso incerto enquanto seu olhar sempre
certeiro buscava pela esposa pequena e roliça no banco da frente.
— O dr. Calderwood não vai encontrar nada de errado na carta do sr.
Rutherford — eu disse. — O sr. Rutherford é um velho amigo da família
que me conhece desde que eu era uma criança pequena. Confiei a ele a
manutenção e aumento do capital que tenho. Ele é muito mais velho que eu.
Onze anos mais velho, para ser precisa, o que tornava Martin um
velhote de trinta anos. Ainda assim, eu estava pronta para fazê-lo parecer
tão velho quanto o dr. Adema se isso me permitisse receber suas cartas.
— E aquelas fitas? Aqueles pedaços de renda? Os enfeites de chapéu?
— Amostras — falei. — O sr. Rutherford é um comerciante. Está
construindo uma loja em Chicago.
— Construindo uma loja? Isso deve estar custando a ele uma mina de
dinheiro. — A sra. Calderwood alisou as folhas finas de papel, que
continham as palavras “Rutherford & Co.” estampadas no topo e olhou para
elas com um interesse maior. — Ele é rico?
— Suponho que deva ser. — Vi minha solução no brilho ávido dos
olhos pequenos da mulher. — Nunca me ocorreu perguntar, mas está
construindo uma loja grande em uma localização privilegiada. É provável
que se torne um dos homens mais ricos de Chicago.
— Que é uma cidade das mais prósperas, para todos os efeitos. — A
voz que cortou a da sra. Calderwood era musical e totalmente inesperada.
Virei-me para olhar para o homem parado atrás de mim. Era um
homem jovem que eu tinha visto em companhia do dr. Calderwood – um
rapaz bonito. A cabeça com cachos pretos e brilhantes que emolduravam
maçãs do rosto altas; tinha uma boca lindamente esculpida e olhos naquele
tom peculiar de azul que, às vezes, é chamado de violeta, inclinados para
cima nos cantos e adornados com cílios longos e pretos.
A sra. Calderwood concedeu um sorriso gracioso ao recém chegado.
Ela deve tê-lo visto se aproximando, ainda que eu não tenha ouvido seus
passos nos azulejos pretos e brancos de mármore.
— O sr. Poulton é bem informado em assuntos de negócios — disse,
antes de claramente perceber que tinha se colocado numa posição onde a
apresentação – de um homem! – seria necessária a menos que ela fosse
declaradamente rude comigo. Vi a última possibilidade tremeluzir em seu
rosto por uma mera fração de segundo.
— Sra. Lillington, este é o sr. Poulton, nosso professor do Velho
Testamento. — Ela pigarreou. — A sra. Lillington assumiu a vaga de
costureira.
Os olhos do sr. Poulton brilhando com a consciência evidente da
relutância da sra. Calderwood em me apresentar.
— Vi a senhora na capela. Com seu bebê e a dama de companhia.
Senti minhas sobrancelhas arquearem. O sr. Poulton devia ter uma boa
visão. Ele estava sempre sentado na frente da capela enquanto Tess, Sarah e
eu ocupávamos meio banco perto dos fundos. Nossa visão era parcialmente
ocultada por um pilar, do outro lado, onde sentava a sra. Drummond e
alguns empregados brancos. Outros criados, antigos escravos, sentavam-se
atrás. Um largo corredor e um painel da altura da cintura nos separava dos
olhares curiosos dos alunos.
— Então a senhora é amiga de um rico comerciante de Chicago? — O
sr. Poulton olhou para a carta que a sra. Calderwood segurava.
— Em ascensão — falei. — Ele é um velho amigo da família e gentil o
bastante para escrever para nós e enviar alguns pequenos adornos. A sra.
Calderwood questiona o decoro da comunicação. — Encarei a mulher
pequena, cuja expressão era menos maliciosa do que há alguns minutos
atrás.
— Posso ver?
O sr. Poulton pegou a carta das mãos inertes da sra. Calderwood e
analisou enquanto eu tentava não parecer tão indignada quanto me sentia.
Eu precisava de aliados, mesmo que fossem intrometidos.
— É bastante fraterna — disse, a devolvendo.
— O sr. Rutherford é a coisa mais próxima de um irmão que tenho —
falei. — Não tenho parentes homens; nenhum parente, na verdade, exceto
alguns primos em Connecticut. E não mantive contato — me apressei em
acrescentar. Eu estaria em um terreno perigoso se induzida a falar sobre
meus primos no leste. — Sra. Calderwood, dou minha palavra de que não
há nada impróprio acontecendo.
A sra. Calderwood olhou para mim e então para o sr. Poulton.
— Ela lhe deu sua palavra — o cavalheiro disse, sorrindo. O sorriso
dele era atraente como o restante de sua pessoa, e a sra. Calderwood
visivelmente se derreteu.
— Bem, se é o que o senhor diz, sr. Poulton. — Ela entregou a carta
para mim. — Pode pegar seu pacote antes da ceia, sra. Lillington.
— E posso escrever para ele também?
— Tenho certeza de que a sra. Lillington cantará louvores por sua
gentileza — acrescentou o sr. Poulton suavemente. Havia algo em seu tom
que colocava meus sentidos em alerta. Um olhar consciente atravessou o
rosto da sra. Calderwood e me perguntei… Ela abria as cartas enviadas
também? Eu teria que garantir que nenhuma palavra de reclamação
chegasse às páginas de minha carta.
Mais uma vez, refleti, tinha buscado a liberdade apenas para me tornar
impotente. Como uma mulher casada, estaria presa a um homem; como
uma que não era casada, aparentemente estava presa a todos.
— Pode. Sem dúvidas tem trabalho a fazer, sra. Lillington.
A sra. Calderwood moveu-se em direção à escadaria larga e íngreme,
banhada por brilhos multicoloridos de luz, vindos da fileira de vitrais sobre
o primeiro patamar. Ela olhou de volta para nós, seu rosto em um tom verde
vívido enquanto passava por um dos feixes de iluminação filtrada.
— Preciso voltar à minha sala de trabalho — falei, me afastando do sr.
Poulton. — Estou em dívida com o senhor.
Ele não disse nada, mas fez uma mesura e sorriu enquanto se retirava,
o rosto erguido para a sra. Calderwood, que ainda olhava para nós. Ele
levantou a mão, saudando-a. Ela abaixou a cabeça em reconhecimento e
continuou seu caminho, seus passos tamborilando, fazendo eco no vestíbulo
silencioso.
Capítulo três

Novos amigos
Tentei fortemente ficar longe dos corredores entre as aulas, mas
quando se tem um bebê sob seus cuidados, as coisas nem sempre acontecem
como se pretende. Como um salmão nadando contra a corrente, logo me vi
subindo a escada face a uma torrente apressada de humanos do sexo
masculino. Os garotos se dividiam perto de nós, por certo, mas impediam
meu progresso mais do que eu gostaria.
Os olhos de Sarah estavam arregalados de empolgação com o barulho.
As vozes dos garotos, soando desde um baixo a um falsete, ricocheteavam
nos painéis de madeira e insurgiam ao nosso redor enquanto subíamos mais.
Meus esforços para manter a porção suja da região inferior do meu bebê
longe das minhas próprias roupas complicava meu progresso.
Alguns dos alunos não eram muito mais jovens que eu. Daquele jeito
dos garotos, alguns dos mais velhos pareciam homens feitos, enquanto
outros tinham o rosto liso e vozes agudas da infância. Muitos, notei, tinham
centímetros de pele aparecendo dos punhos de seus paletós e nos tornozelos
sob as calças. Era melhor eu perguntar à sra. Drummond sobre como lidar,
garantindo que eu pudesse alargar ou repor suas roupas quando necessário.
— E quem temos aqui?
Uma mão em meu braço atrasou minha subida enquanto um homem
mais velho, baixo e calvo passava por mim. Do degrau acima dele, eu tinha
uma visão excelente da mancha rosada em seu cabelo preto e ondulado
quando ele tirou o capelo para coçar a cabeça. Ele então se lembrou das
boas maneiras e inclinou o chapéu em minha direção.
Olhos pretos brilhantes e curiosos assimilaram Sarah, que não estava
nem um pouco desconcertada por sua condição suja. Ela devolveu o
interesse dele esticando as mãozinhas ávidas em direção aos botões de seu
colete um tanto afetado. Devido às vestes acadêmicas, concluí que era
algum tipo de professor. O sr. Poulton não usava uma roupa assim, e pensei
que os trajes tinham desaparecido durante a guerra, mas as vestes
combinavam com aquele homem.
— A nova costureira. — O homem respondeu a sua própria pergunta.
— E sua formosa bebê. — Ele acariciou Sarah sob o queixo e ela guinchou.
— A senhora é viúva, segundo eu soube, madame?
— Sou. — Assenti, ocupada demais, movendo Sarah para uma posição
melhor para sentir as pontadas usuais de uma consciência pesada.
— Bem, temos sorte de tê-la e estou encantado em te conhecer. O que
acha das teorias do sr. Darwin? A favor ou contra?
Fiquei perplexa com aquela pergunta em particular. Darwin? Eu sabia
sobre ele, é claro, e tinha lido uma ou duas críticas severas contra suas
teorias nos jornais. Mas uma opinião?
— Não tenho opinião alguma — confessei, desejando poder encontrar
uma forma de terminar aquela conversa e cuidar de Sarah. — Consigo
administrar meu trabalho do dia sem dar a mínima consideração às teorias
do sr. Darwin.
Mas não pude evitar sorrir. Os olhos do professor brilharam mais
enquanto seu rosto marcado pelo clima enrugava em um sorriso de resposta,
mostrando dentes bastante manchados.
— Vamos, vamos, você está em um ambiente de aprendizagem. — Ele
observou enquanto Sarah, fascinada pelo jogo de luz em seu colete vistoso,
se inclinava para frente fazendo um som murmurado. — Um lugar, além
disso, que existe pela “defesa ousada e fervorosa da ortodoxia através da
iluminada busca por conhecimento”.
Assenti. Eu tinha ouvido aquela frase do dr. Adema, que me explicou
que sua missão era produzir pensadores com uma fé sã, ao invés de
conformistas cegos. Olhando para o bando de estudantes barulhentos
seguindo para suas aulas, me perguntei se haveria verdadeiros pensadores
entre eles.
Exceto pelo que parou perto do professor e sorriu para nós dois. Ele
parecia um pouco mais elegantemente vestido e sofisticado que a maioria
dos jovens rapazes. Na verdade, exalava confiança e riqueza. Seu paletó era
liso, mas bem cortado, sem exibir centímetros sobrando de pele, mas
ajustando-se a ele em cada parte. Suas botas brilhavam, e o cabelo loiro
estava perfeitamente aparado e penteado com cuidado. Talvez fosse um
professor também, pensei, ainda que parecesse ter a mesma idade que eu.
— Todo homem deveria ter uma opinião — o professor anunciou,
estendendo a mão para arrumar os cachos grossos de Sarah. — E toda
mulher também. — Ele pareceu se recompor e fez uma mesura para mim.
— Imploro seu perdão por não me apresentar. Sou Gervaise Wale. W-A-L-
E, sem nenhuma relação com os habitantes das profundezas. Ensino hebreu
e grego.
— E eu sou Reiner Lehmann — o jovem falou, também se curvando
— e aprendo hebreu e grego. E o senhor vai se atrasar para a aula, professor
Wale.
Seus olhos azuis se iluminaram enquanto observava o professor tentar
capturar uma das mãozinhas de Sarah quando ela tentou agarrar um dos
botões de seu colete. Ela recuou com seu gesto e segurou meu cabelo,
deslocando um grampo.
O professor Wale olhou para o esplêndido relógio dourado que o sr.
Lehmann puxou do bolso e abriu, fez uma careta e pôs o chapéu de volta na
cabeça.
— Aula. É claro. Tenha um bom dia, Sra.… — Ele pareceu confuso,
como se tentando lembrar de meu nome, que eu não lhe tinha informado.
— Lillington. Eleanor Lillington. — Estendi minha mão para o grampo
de cabelo que o sr. Lehmann tinha recuperado para mim e o enfiei de volta
aleatoriamente em meus cachos. — Obrigada.
Nós dois observamos o professor Wale descendo a escada num trote
rápido ondulando atrás de si como um navio velejando.
— Preciso ir — falei. Estava ficando difícil de lidar com Sarah e ela
estava mais fedida a cada segundo.
— E eu também. — Mas o rapaz ficou no mesmo lugar e pude sentir
seu olhar fixo em mim enquanto eu subia a escada. Reiner Lehmann, refleti.
Um aluno – um aluno rico. E, pela expressão em seus olhos, eu tinha
ganhado um admirador.

A impressão de que algo em mim havia atingido um ponto sensível de


admiração no sr. Reiner Lehmann foi confirmada mais tarde, naquele mês.
Tess e eu tínhamos saído para tomar um pouco de ar fresco antes do
jantar. Sarah já estava adormecida sob os olhos vigilantes de uma
empregada chamada Dorcas, que se ocupava com a triagem dos lençóis na
sala de costura. Os empregados tinham se encantado por Sarah, e eu havia
recebido ofertas frequentes para “cuidar da criança por um tempo”. Eles a
levavam à cozinha e a enchiam com pedaços de pão de milho e seu petisco
favorito, pequenos farelos de bacon crocante. Eu ainda amamentava-a, mas
ela estava aprendendo a comer e beber sozinha, e talvez não fosse demorar
muito para que a desmamasse.
O tempo tinha se tornado agradável com a chegada de maio. A brisa
constante que agitava a pradaria era agora morna, soprando o gramado
verde e o fazendo mover-se como ondas. O ar tinha um frescor que levou as
janelas a serem abertas por todo o prédio do seminário. Era um tempo em
que estar em um local tão isolado não parecia um sofrimento.
— Ela era uma dama tão bonita. — Tess apoiou a mão em meu ombro,
a melhor posição para espiar o rosto que eu estava desenhando.
— Ela era como… como uma boneca de porcelana graciosa, Tess. Para
se admirar, de qualquer forma. Eu a ultrapassei na altura quando tinha doze
anos e meio.
Inclinei minha cabeça para o lado, contemplando o desenho de mamãe.
Acrescentei mais alguns toques para sugerir o brilho em seu lindo cabelo
loiro claro, que desenhei enrolado e torcido, em seu habitual estilo delicado
e elegante.
O luto era um processo estranho, descobri. Mamãe tinha partido há oito
meses – a maior parte do ano – e havia dias em que eu não pensava muito
nela conscientemente. E então a tristeza e a saudade me atingiam como uma
onda, me pegando desprevenida. Tess e eu passávamos o dia em atividades
concentradas, mas na hora silenciosa antes do sino do jantar, meu lápis
movia-se quase sozinho, se empenhando para desenhar o rosto gentil de
minha mãe. Em momentos assim, sentia terrivelmente sua falta.
— Você é graciosa também, Nell. Não, essa é a palavra errada. Você é
elegante.
Tess baixou a cabeça para que seu queixo descansasse em meu ombro.
Eu senti cócegas com seu cabelo bonito e fino de encontro à minha
bochecha, e o movimento de sua mandíbula enquanto abafava um bocejo.
Inclinei minha cabeça um pouco para o lado para que minha bochecha
tocasse a de Tess.
— E você é mais querida para mim do que qualquer irmã poderia ter
sido, Tess. O que eu faria sem você?
Tess considerou a questão por um momento.
— Você teria que costurar mais. — Foi sua conclusão. — Como
alinhavar. Eu sempre faço isso.
Gargalhei – Tess era sempre literal – mas meus olhos estavam no
desenho de mamãe. Nós fomos uma família tão pequena, vovó, mamãe e
eu. O que pensariam se pudessem me ver agora, uma costureira na fronteira
remota, rejeitando seus sonhos de um bom casamento?
— A senhora é uma artista e tanto, sra. Lillington. Posso me sentar? —
O sr. Lehmann acenou para Tess, curvando-se sobre meu desenho.
— É claro, porém… — Olhei em direção ao seminário. Era um enorme
edifício de pedra amarela, com ameias e torres nos cantos, sobrepujado por
uma estranha torre em níveis, encimada por uma cúpula de cobre
desgastado. Suas fileiras de janelas eram buracos escuros na pedra clara.
Estávamos na frente, no lado leste do prédio, e o sol poente estava atrás; o
contorno ornado era gritante contra os amarelos claros e laranjas do céu de
fim de tarde.
— Porém o quê?
O sr. Lehmann curvou o corpo para ficar de joelhos em um canto do
tapete que tínhamos trazido para fora. Ele não era bonito de modo algum;
seus traços eram um pouco irregulares e tinha o tipo de musculatura sólida
que poderia se tornar gordura mais tarde. Ainda assim, havia algo atraente
em seu rosto largo e aberto, e seu sorriso mostrava dentes que eram
uniformes, brancos e fortes. Não era bonito, mas agradável. E um tanto fora
dos limites para mim na mente da sra. Calderwood.
— Eu não deveria conversar com os alunos.
— Por que não? Nossa última costureira se casou com um deles; ao
menos, ele voltou por ela, depois de sair viajando pelo mundo por alguns
anos. E ela não era nem de perto tão bonita quanto a senhora.
— Talvez seja por isso. — Não pude evitar rir da expressão em seu
rosto. — E não tenho nenhuma intenção de me casar. Estou aqui pelo
trabalho.
— A sra. Drummond não quer que os alunos tenham nenhuma
distração — Tess declarou. Eu era constantemente surpreendida por quão
bem Tess se relacionou com a governanta – e me perguntava o quanto a sra.
Drummond tinha lhe contado.
— Mas precisamos de distrações. É tão monótono aqui. — O sr.
Lehmann estendeu a mão na direção de Tess. — Meu nome é Reiner
Lehmann, aliás. Estou encantado em conhecê-la.
— Sou Theresa O’Dugan. — A resposta digna de Tess foi de alguma
forma estragada por um enorme bocejo que ela meio escondeu atrás da mão
esquerda enquanto apertava a do sr. Lehmann com a direita.
Um grupo de garotos passeava, nos fitando com curiosidade declarada,
alguns acenando para o sr. Lehmann. Ele devolveu seus cumprimentos com
o ar preguiçoso e despreocupado de um príncipe reconhecendo a existência
de seus súditos. Um deles deve ter feito uma piada – os outros irromperam
em uma explosão de risadas e uma briga começou, com um dos garotos
menores recebendo o pior dela.
— Patetas tolos. — O sr. Lehmann mudou de posição para que ficasse
de costas para o grupo de garotos barulhentos, olhando para mim com o
que, infelizmente, estava começando a parecer uma adoração servil. Eu
teria que pôr um fim naquilo, decidi.
— Não é apenas a sra. Drummond que desaprova que eu converse com
os alunos — disse, tentando soar o mais reprovadora possível. — A sra.
Calderwood…
Parei rápido, me perguntando o que, exatamente, poderia dizer àquele
rapaz sem revelar muito do meu passado.
— Oh, a ratinha gosta de mim — disse o sr. Lehmann. — Ela não vai
nos incomodar se eu escolher conversar com a senhora.
— O que o faz ter tanta certeza? — perguntei, entretida. A ratinha?
Bem, suponho que de fato ela se pareça um pouco com um rato, com
aqueles olhos pretos brilhantes e as mãos pequenas, ávidas. Sufoquei uma
risada.
— Meu pai é um apoiador generoso, extremamente generoso, da causa
de propagar a luz da ortodoxia pelas planícies. — O sr. Lehmann retirou seu
relógio dourado do bolso e abriu a tampa. Um diamante fixo num anel em
seu dedo mínimo capturou o fogo do sol poente, piscando como uma
pequena chama alaranjada.
— Está me dizendo que tem autorização para fazer o que quiser só
porque seu pai dá dinheiro ao seminário? Não posso imaginar o dr. Adema
abandonando seus princípios por conta disso.
— Oh, não, o dr. Adema é direto como uma flecha. Mas está mais
preocupado com o bem estar espiritual dos alunos do que com qualquer
outra coisa. Os Calderwoods lidam com a parte financeira da coisa – é o
trabalho do Leão no nome, mas conduzido por sua Ratinha. A senhora não
notou? — O sr. Lehmann arregalou os olhos e me encarou, a expressão
travessa. — Quando a Ratinha chia, o Leão obedece. Por isso que eu, e
alguns outros alunos selecionados, temos conjuntos de aposentos tão
agradáveis no primeiro andar. O motivo pretenso é a senioridade, mas todos
sabemos que somos filhos dos apoiadores mais fiéis do seminário.
— Hum — falei. Era desapontador pensar na ganância dos
Calderwoods minando os ideais grandiosos do dr. Adema pelas costas.
O som do sino instalado dentro do alto da torre do seminário nos fez
ficar de pé, com Tess e eu limpando pedaços perdidos de grama de nossas
saias. Era a hora do jantar, finalmente. Pequenos grupos de rapazes
sobriamente vestidos se solidificaram em massas escuras maiores enquanto
seguiam para a entrada imponente do prédio.
— Bem vinda à fronteira, sra. Lillington, onde pode haver bem mais
terra e menos regras sobre como se vestir e tomar seu café, mas o dinheiro
ainda conta. — O sr. Lehman enrolou a manta e a enfiou sob o braço,
curvando o outro cotovelo em minha direção. — Então, posso levá-la para
jantar? — Ele sorriu para Tess. — Eu ofereceria meu outro braço para sua
charmosa companheira se não tivesse esta manta para carregar.
Tess riu e pôs as duas mãos sobre a boca.
— Não me importo. Segurarei o outro braço de Nell.
Coloquei a mão suavemente no braço livre do sr. Lehmann, sentindo o
músculo forte sob a bela lã preta de seu paletó. Tess agarrou meu outro
braço e prosseguimos, assim, para dentro do seminário, parando para
guardar a manta e meus materiais de desenho na chapelaria.
No momento em que o sr. Lehmann nos deixou em nossos assentos –
sentávamo-nos nos fundos do enorme refeitório, longe dos alunos e na
mesma mesa que a sra. Drummond – estávamos rindo. Recompus-me
quando notei o olhar da sra. Drummond fixo em mim, frio e avaliador, com
mais do que um toque de desaprovação. Vi seu olhar em direção à sra.
Calderwood, que estava sentada com o marido, dr. Adema e alguns dos
professores num estrado alto sob as janelas.
Escorreguei para minha cadeira com um olhar de aviso para Tess e
baixei minha cabeça com modéstia para as preces – mas não antes de
perceber que o sr. Poulton, sentado à cabeceira da mesa, também olhava em
nossa direção.
Capítulo quatro

Velhos amigos

26 de abril de 1872
Querido Martin,
Tenho algumas novidades para contar finalmente – numa escala
menor. Nada tão grandioso quanto suas histórias de construção e
estocagem. Tess diz que suas histórias são tão boas quanto um romance,
mas acho que são muito melhores. Você sabe que não tenho amor pela
ficção.
Minha novidade é que os Lombardis vieram ao seminário para uma
visita. O sr. e a sra. Lombardi, Teddy e Thea estão bem – Teddy está quase
tão alto quanto a mãe agora. Lucy está magra e pálida e está com uma
tosse, o que é preocupante.
Quanto às suas notícias, tem certeza de que foi sábio atrair uma das
melhores pessoas de outra loja para ser seu gerente geral? Esse sr. Salazar
parece ideal, mas tenho certeza de que os donos do Gambarelli’s vão
guardar rancor por roubar um empregado tão talentoso.
Oh, aqui estou eu tentando te dizer como conduzir seu negócio quando
sou uma mera costureira. Você vai rir de mim, tenho certeza. Suponho que
eu esteja com inveja – daria muita coisa para ter meu próprio negócio.
Mas quais chances tenho disso acontecer aqui nas planícies?
E falando nas planícies, a sra. Lombardi está vindo para caminhar
comigo até Springwood. Eu gostaria que pudesse ver aquele lugarzinho
engraçado – creio que Victoria se parecesse com ele trinta ou quarenta
anos atrás. Vou terminar essa carta e espero poder postá-la em
Springwood, então não terei que suportar os olhares da sra. Drummond
quando colocá-la na mesa do corredor do seminário. Tem chovido, e não
tenho dúvidas de que o caminho para Springwood será lamacento – mas
temos botas sólidas e preciso escapar deste lugar.
Envio-lhe muito afeto, como sempre, e um abraço de Tess. Sarah está
mandando alguns balbucios que se parecem mais como palavras a cada
dia.
Nell

— Não posso imaginar como deve ser dentro dessas casas de adobe. —
Baixei minha voz quando nos aproximamos dos arredores da cidade de
Springwood.
Chamá-la de cidade era uma proeza da imaginação – principalmente na
extremidade. As moradias perto do riacho pareciam nada mais que montes
sobrepostos de relva lamacenta, caules amarelos e frouxos pingando água
da chuva que formavam canais enquanto buscavam seu caminho para baixo.
Uma variedade espantosa de pedaços de metal e madeira decrépitos
revestiam partes das paredes e telhados. Aqui e lá, um pedaço maior
formava um alpendre que abrigava algumas toras e utensílios.
— Elas são melhores por dentro. — Catherine Lombardi estava tão
arrumada e elegante quanto na Fazenda dos Pobres, mas o vestido dela
estava começando a parecer um pouco datado e gasto, como se não pudesse
pagar para renová-lo ou substituí-lo. Sua vida como esposa de um
missionário tinha suas dificuldades se as novas linhas no rosto dela
servissem de indicação, e senti calos em suas mãos quando apertou a minha
em cumprimento.
— Você já esteve dentro delas? — Prendi minhas saias um pouco mais
para cima quando chegamos a uma parte baixa do caminho onde os charcos
eram piores que o normal. — Suponho que sim, pois tenta visitar todas as
mulheres a quilômetros de distância; não foi isso que disse? Conhece essas?
— Acenei com a cabeça na direção de duas mulheres que tagarelavam
envolvidas na lavagem de alguma coisa num enorme tonel de madeira. Uma
delas tirava água de uma grande chaleira pendurada sobre uma fogueira.
— Sim.
— Elas estão usando ceroulas — sussurrei em seu ouvido. — Nunca vi
uma coisa dessas em minha vida, ainda que mamãe tenha dito que algumas
mulheres tentaram usá-las antes da guerra.
Tentei fortemente não encarar, mas dava para ver as pernas delas,
como se fossem homens ou crianças. Uma das mulheres usava tamancos de
madeira para manter os pés longe do mar de lama ao seu redor. A outra
calçava botas grossas e desajeitadas de homem e um chapéu de caubói.
— Você logo ficaria impaciente com as saias se fizesse o trabalho que
elas fazem — a sra. Lombardi falou baixinho e então ergueu a voz. — É a
sra. Gordey, não é? E Sukey? Lembram-se de mim?
Fiquei um pouco para trás enquanto a sra. Lombardi falava com as
duas mulheres. O vento sempre presente agitava os galhos partidos e ramos
florescendo de uma fileira desgarrada de choupos que cresciam ao longo do
riacho. Havia imaginado que, de alguma forma, o Kansas seria seco, mas
estava errada. Nesta primavera, a água corrente e lamacenta no canal subiu
quase até a ponte de madeira rústica que levava à parte principal de
Springwood.
— Ela perdeu três filhos para a febre — a sra. Lombardi me informou
enquanto seguíamos nosso caminho. — Essa é uma região difícil, Nell,
especialmente para os colonos mais pobres. Aquelas casas são tudo que
conseguem arcar até que possam juntar o suficiente para construir um lar
adequado. Não esqueça quão escassa é a madeira aqui e construir em pedra
exige tempo e habilidade.
E, ainda assim, o seminário não ficaria deslocado numa cidade, refleti.
E alguns cidadãos de Springwood poderiam arcar uma boa construção.
Além do riacho havia pilhas de lenha, pedra e marcadores designando lotes
de terra. Um pequeno grupo de homens mal vestidos estava reunido perto
de casas parcialmente construídas.
Mais uma caminhada de dez minutos nos levou à parte completa da
pequena comunidade. Havia, talvez, quinze casas de aparência respeitável,
com uma pequena igreja num lugar de destaque em um ponto atrativo,
rodeado por nogueiras e carvalhos. Duas curtas fileiras de prédios
comerciais sugeriam o começo do que um dia poderia ser uma cidade
próspera.
— Meu Deus — falei.
Não foram as casas que capturaram meu foco, nem as atenções
graciosas de algumas mulheres bem vestidas de aspecto matronal que
acenaram para nós enquanto nos aproximávamos. Diante do maior prédio
comercial, Mercado Hayward, um cavalo desfilava. Mesmo para meus
olhos não treinados, aquele parecia ser um animal distinto, espirituoso, do
tipo favorecido por jovens cavalheiros ricos. Seu pelo brilhante e a altura
incrível o destacavam dos cavalos de trabalho robustos e salpicados de lama
presos aos postes ao longo da rua, como um príncipe entre os mendigos.
Em cima da magnífica criatura, estava sentado um homem vestido de
forma incongruente em um elegante paletó preto e um chapéu macio de
feltro, conduzindo o animal em seu ritmo com a confiança fria de alguém
que lidava com cavalos caros todos os dias.
— Aquele é o sr. Poulton, não é? — perguntou a sra. Lombardi, com as
sobrancelhas arqueadas. — Ele não cavalga bem?
— Ele parece fazer tudo bem — respondi. Pois era de fato o professor
do Velho Testamento do seminário. Sua figura flexível realçava seus
méritos enquanto guiava o cavalo numa série complexa de movimentos
aparentemente elaborados para testar cada aspecto de sua marcha. Fazendo
o último giro, o sr. Poulton nos viu e virou a montaria em nossa direção,
fazendo-a parar com o mais leve toque nas rédeas e desmontando com
graça. Ele tirou o chapéu, sorrindo para nós enquanto o vento soprava seus
cachos pretos e um raio de sol fazia-os brilhar como ébano. Era difícil não
sorrir de volta.
— Está pensando em comprar esse cavalo, sr. Poulton? — a sra.
Lombardi (ou Catherine, como insistia que eu a chamasse agora) falou
cordialmente. — Ele é elegante demais para as planícies, da forma que
penso.
— O preço dele está um tanto fora do meu limite, receio — foi a
resposta, com outro sorriso que trouxe um brilho a seus olhos violeta-
azulados. Dei uma arrumada furtiva em meu chapéu, esperando que não
notasse o estado de minhas botas e da saia. — Fairland o mandou trazer de
Kentucky para o filho. — O sr. Poulton indicou um homem corpulento com
suíças grandes e um nariz vermelho cheio de veias.
— Para dar algum espírito ao lugar — proclamou o sr. Fairland,
inclinando o chapéu em nossa direção. — Ele parece bem poderoso perto de
seus cavalos, não é? — gritou por cima do ombro para os outros homens
próximos. Eu soube pelas indicações em um dos prédios comerciais que o
sr. Fairland era, entre outras coisas, um agente da Wells Fargo. Pela
aparência do cavalo, os negócios estavam em alta.
— Ele vai ter a mesma aparência que os outros quando estiver coberto
de lama — exclamou um dos homens que observava, cuspindo uma espuma
marrom de tabaco numa poça.
Durante essa conversa, as damas matronais seguiram em linha reta em
direção a nosso grupo, mantendo uma distância cautelosa do cavalo. Elas
cumprimentaram Catherine, a quem pareciam conhecer, agraciaram o sr.
Poulton com sorrisos apreciadores e acenaram educadamente para mim.
— Senhoras — disse Catherine — essa é a sra. Eleanor Lillington, de
Illinois. Perto de Chicago. Ela assumiu a posição de costureira no seminário
– e uma amiga querida.
A confusão perpassou pelos rostos enquanto lutavam com a forma com
que deveriam me tratar. Como costureira no seminário, eu era melhor que
uma criada – mas como amiga de Catherine Lombardi, merecia mais
consideração.
O sr. Poulton resolveu a questão me oferecendo o braço e concedendo
um sorriso deslumbrante para mim. As matronas pareceram uma só ao
decidir que eu era um objeto de interesse e fascínio. Elas emitiram sons de
boas-vindas e comentários sobre como seria bom ter uma nova dama em
seu círculo de conhecidas.
— A sra. cavalga, sra. Lillington? — O sr. Poulton tirou o chapéu para
enxugar a testa.
— Infelizmente não. — Naquele momento, eu estava bastante infeliz
por não poder produzir qualquer evidência de conhecimento sobre cavalos.
Pelo canto do olho, vi uma das damas, uma matriarca com um espartilho
firmemente apertado e um rosto interessante e expressivo, se aproximar
furtivamente do homem que tinha cuspido o tabaco. Ela lhe deu um olhar
que o fez instantaneamente jogar o maço de tabaco para fora da boca e
enrolá-lo em seu lenço – pelo qual deduzi que eram casados.
— A sra. Lillington deveria aprender a cavalgar, não é? — Catherine
tinha um brilho malicioso no olhar. — Essa região é bastante propícia para
nos tornar cavaleiras.
Em meio ao coro de riso que se seguiu, o sr. Poulton caminhou de volta
para o cavalo e lhe deu um tapinha no pescoço, ao que ele virou a enorme
cabeça para morder seu braço. Com os olhos azuis ferozes, empurrou o
focinho para longe, com um grito de comando e agarrou o bridão de novo,
puxando o freio de volta para que fizesse contato com os cantos da boca do
animal. O cavalo se acalmou imediatamente, mas não antes de eu ver o
braço do sr. Poulton tensionar como se quisesse dar outra punição. Um leve
rubor apareceu em suas maçãs do rosto, mas então fez um esforço
consciente para relaxar e, com uma risada, conduziu o cavalo ao dono.
— Você fez uma boa compra, Fairland. — Ele entregou o cavalo ao
homem mal vestido parado alguns passos atrás do agente da Wells Fargo.
— Mas terá que ser firme com esse aqui. Não o deixe pensar nem por um
momento que está no controle de qualquer coisa.
O sr. Poulton virou-se de volta para mim, tirando as luvas de couro
resistentes que estava vestindo e limpando alguns pelos de cavalo do paletó
preto.
— O dia está esquentando — comentou. — Posso pagar para as damas
um copo de cerveja de sassafrás?
Hesitei, principalmente porque a expressão divertida no rosto da sra.
Lombardi me dizia que o convite era para meu benefício. E pelos olhares
astutos trocados entre as damas mais velhas, elas pensavam o mesmo.
— O mercantil é bastante respeitável — o sr. Poulton disse,
interpretando mal minha relutância. — Não há barris de uísque.
— E a sra. Hayward lava os copos depois de cada cliente — falou a
matrona de aparência inteligente, provocando risadas em suas
acompanhantes.
Eu cedi, é claro. Já estive dentro do mercantil antes – era, de fato, a
única loja que valia a pena visitar na cidade.
Uma variedade de odores nos recebeu: o cheiro forte da lamparina a
querosene que iluminava o interior cheio, café do moedor no balcão,
melaço, couro, o aroma do tabaco das caixas de charuto nas prateleiras
altas, os cheiros adstringentes de sabão e os medicamentos de venda livre.
Um dos cantos da loja transbordava com rolos de pano, tecidos rústicos do
tipo que os trabalhadores da planície usavam, fitas, roupas de baixo
femininas discretamente cobertas por um pedaço de linho, suspensórios,
chapéus e alguns pares de sapatos. Rifles, pistolas, lamparinas, lanternas,
panelas e utensílios estavam pendurados em todos os locais disponíveis,
com caixas de munição empilhadas perto de uma torre de enormes queijos
redondos. Um esquife de pinho bem polido estava em um outro canto, com
uma placa anunciando que outros tamanhos e acabamentos estavam
disponíveis – bastava perguntar.
A cerveja de sassafrás estava gelada, com sabor forte, e não muito
doce, e comecei a me divertir. Eu estava de volta a um mundo que entendia.
Nossa conversa educada não se aprofundou mais do que comentários sobre
a fúria do vento das planícies, os tipos de cavalo mais adequados ao terreno,
a seleção de mercadorias na loja, e a relativa sofisticação de Wichita.
— Mas o seminário — eu disse depois de alguns minutos — nunca
deixa de me impressionar, principalmente quando vejo o quanto
Springwood é rústica. Como alguém pôde pensar em construir um prédio
tão grandioso no meio de lugar nenhum?
— O dr. Adema é um visionário — Catherine falou. — Ele está
ansioso por uma época em que Springwood seja tão grande quanto Chicago.
Não esqueça que aquela enorme cidade era apenas uma coleção de cabanas
de madeira há apenas quarenta anos.
— O professor Adema é um sonhador. — O tom do sr. Poulton era
leve, mas sua voz musical guardava um tom superior. — Um homem pouco
prático, no fundo. Ele imagina a irmandade entre todos os homens e a
expansão do conhecimento para cada africano, indiano e filho pobre dos
campos. Tem sorte por ter podido contar com a generosidade dos
Calderwoods, que têm cabeças mais estáveis e uma visão mais realista da
vida.
Abri minha boca para protestar que preferia o coração aberto e
generoso do Dr. Adema do que o convencionalismo limitado dos
Calderwood, mas então a fechei novamente. Eu não estava em posição de
cuspir no prato que em comíamos, – e tinha certeza que o sr. Poulton era de
total confiança dos Calderwood. Além disso, o sr. Poulton era muito
agradável de se olhar e eu não estava com disposição para inserir um tom
amargo àquela hora aprazível.
— Como cavalga tão bem, sr. Poulton? — Catherine perguntou. —
Não que eu tenha qualquer razão para pensar que um homem não deveria
cavalgar, mas o senhor parece…
— Mais acadêmico? — Os olhos do sr. Poulton se inclinavam para
cima quando ele estava se divertindo e me descobri esperando por esses
momentos. — Quando eu era um rapaz em Baltimore, tive muitas
oportunidades de cavalgar. Na Inglaterra, cavalguei com perdigueiros (caça
à raposa) e cacei faisões e perdizes. Tive um patrono generoso quando
estava em Cambridge.
Seu sorriso tornou-se um pouco melancólico.
— Enfim, a vida de um professor pobre, sra. Lillington. Não posso
gozar de tais luxos agora.
— Posso gozar deles ainda menos. — Eu ri. — Sou uma pobre
costureira.
— E eu sou uma esposa de missionário ainda mais pobre — disse
Catherine, e todos rimos de nossa pobreza unânime.
— Mas o senhor esteve na Inglaterra — suspirei quando a risada
terminou. — Sempre quis ir até lá. Minha avó era inglesa. Mas suponho que
nunca terei dinheiro suficiente.
— Bobagem. — O tom de Catherine era vigoroso e animado. — Vocês
dois têm a benção da boa aparência, cultura e juventude. Alegrem-se com
esses aspectos, que podem levá-los longe.
— Eu irei — disse o sr. Poulton, estendendo a mão para mim. — Sra.
Lillington, vamos apertar as mãos como aliados na busca de melhores
perspectivas. Quem sabe? Nós ainda podemos encontrar um cônjuge rico.
Capítulo cinco

Tragédia
20 de maio de 1872
Querido Martin,
Estou colocando a caneta no papel com o coração pesado. Desta vez
tenho notícias de verdade e são terríveis.
Dr. Adema, o presidente deste seminário, morreu numa queda. Ele
dormia mal, daquela forma que são os mais velhos, suponho, e tinha o
hábito de caminhar pelo lugar tarde da noite. Um criado o encontrou aos
pés da grande escadaria. Seu pescoço tinha quebrado – ele deve ter
escorregado nos degraus e tropeçado. Acham que ele morreu antes de
atingir o chão – assim espero.
O funeral vai acontecer amanhã, e me encontro com um ânimo
terrivelmente baixo. Ainda mais porque o rumor é de que o sr. Calderwood
será o presidente, o que significa que a sra. Calderwood vai dominar o
território ainda mais. E você sabe o quanto ela me desaprova.
O dr. Adema era meu aliado e acho que, com o tempo, se tornaria meu
amigo. Sei que deveria estar enlutada por ele e não pensando em mim, mas
agora o futuro parece sombrio.
Sua, na tristeza,
Nell
— Tem alguém aí?
Me mexi no assento, olhando ao redor da sala. A luz da pequena
lamparina que eu carregava até o canto mais remoto da biblioteca não
brilhava muito, e as sombras – combinadas com meu humor deprimido –
me deixavam nervosa. O relógio que em geral fornecia um som
reconfortante no ambiente amplo foi parado para marcar a morte do dr.
Adema. Tarde da noite, o silêncio era tão profundo que era quase uma
presença. O clique da porta pesada, feita de carvalho sólido, com vidraças
chanfradas, havia sido bastante distinto.
— Sra. Lillington? Sinto muito em perturbá-la. — O professor Wale
estava com um livro grosso na mão, seu dedo indicador entre as páginas
para marcar a posição. Seu cabelo espesso e encaracolado estava eriçado ao
redor da careca, o pó de giz se misturando com o preto e o cinza por onde
tinha corrido os dedos quando estava ensinando.
Deixei escapar um suspiro de alívio.
— O senhor não está me perturbando. Fico feliz pela companhia.
Eu estava aprendendo a gostar do homem baixo e irascível. Ele não
tolerava tolos – eu tinha visto-o repreendendo um aluno mais velho por
estupidez com eloquência ácida – mas era justo. O encontrei, há não muito
tempo, apertando o lóbulo da orelha de um garoto que insultava outro por
causa das roupas. A aula que ele deu sobre orgulho e arrogância naquela
ocasião estava num volume que fez as janelas chacoalharem. Mais tarde,
enviara o garoto mal vestido até mim, para ter seu guarda-roupa
complementado – à custa do professor.
— Achei que um dos alunos tivesse deixado a lamparina acesa num
canto — o professor disse. — Eles são criaturinhas descuidadas e uma
lamparina abandonada é um risco na biblioteca.
Ele pôs o livro aberto para baixo numa mesa próxima e deslizou
estranhamente para dentro do bolso algo que parecia um cachimbo. Vendo
meus olhos seguirem o movimento, sorriu, revelando dentes manchados de
amarelo.
— A senhora não viu isso, sra. Lillington. Esta augusta instituição
reprova o uso de tabaco. Mas é um hábito reconfortante em tempos difíceis.
— Não o culpo. — Esfreguei meus olhos. — Os últimos dois dias
foram terríveis. Acho que os criados foram os que mais sofreram com a
morte do dr. Adema.
— Ele acolheu muitos deles depois da guerra, quando a região estava
repleta de antigos escravos sem emprego. Trabalhou por meio de todas as
igrejas para encontrar os mais merecedores, aqueles que ainda desejavam
uma posição doméstica. Eles o amavam. O amavam.
Ele se sentou pesadamente numa cadeira perto de mim.
— O senhor não? — perguntei.
O professor Wale assentiu, apoiando o queixo na mão.
— Hendrik Adema tinha suas prioridades alinhadas. Me irrita pensar
naquele diabo tolo do Calderwood presumindo que irá assumir seu lugar.
Olhei para baixo, para o livro no qual estava escrevendo.
— É um mau presságio para mim, essa mudança. A sra. Calderwood
tem uma visão obtusa do meu caráter moral.
— Por quê? — O professor inclinou a cabeça para um lado, parecendo
um papagaio curioso com uma crista.
Engoli em seco, percebendo a armadilha na qual entrara. Mas eu não
estava com disposição para inventar uma história e, além disso, confiava
nele.
— Eu… eu cometi um erro uma vez. — Baixei a cabeça. — Minha
filha é o resultado.
Pude sentir minhas bochechas ardendo, mas olhei para cima quando o
professor deixou escapar um assobio.
— Oooh — ele disse. — Bem, eu mesmo cometi alguns erros quando
jovem. Mas, como o grande Johnson disse, não posso conceber, e minhas
tolices não causaram um mal duradouro. O mal que fiz a mim mesmo
aconteceu depois e meus pecados são, sem dúvidas, mais graves que os
seus, minha cara.
Ele se inclinou para frente e deu um tapinha paternal em minha mão.
— Obrigado por confiar em mim. É a ansiedade em relação à sra.
Calderwood que a mantém acordada até tão tarde?
— De certa forma. — Senti meus ombros desabarem. — Quando vim
ao Kansas, pensei que estava partindo para uma grande aventura, que eu
estava a caminho de uma nova vida, uma que eu tinha escolhido para mim.
— Olhei para ele. — Mas eu trouxe meus problemas comigo, não é? E
pensei que pudesse criar Sarah longe da fofoca se fosse para longe, mas as
fofocas já começaram.
Apontei para meu livro, onde colunas de números levavam a um total
tristemente pequeno.
— E a pior circunstância de todas é que me prendi aqui. Não vejo
como eu poderia sequer arcar com a taxa de volta para Chicago ou ter
qualquer possibilidade de escapar deste lugar sem me lançar à caridade de
meus amigos.
— Estava calculando sua riqueza? — Os olhos escuros do professor
Wale, em geral com a aparência cansada, brilharam com o tipo de
curiosidade que anseia em ajudar, ao invés de apenas desfrutar da miséria
de outra pessoa. — É claro, a senhora estava tentando resolver o quanto
consegue poupar. Quanto a senhora ganha?
— Sessenta centavos por dia. — Por algum motivo, não me incomodei
em insignificância da soma àquele homem. — Com pensão completa para
nós três, uma quantia generosa considerando o custo da comida e
alojamento. Divido meus ganhos com Tess (eu faria pouco sem sua ajuda) e
juntamos nossos recursos para comprar as coisas que precisamos.
— Sessenta centavos por dia. — O professor Wale olhou para o teto,
onde a lamparina criava um lago de luz dourada com seu fumeiro.
— Não acho que eu me sairia tão bem em Chicago se trabalhasse com
costura básica. — Me apressei para lhe garantir. — O trabalho de modista
está se tornando mais difícil de encontrar agora que os armarinhos vendem
peças femininas. De qualquer forma, pelos meus cálculos, levará quase um
ano apenas para poupar o valor da passagem de volta para Chicago.
— Mas a senhora não está sem amigos aqui, presumo. — Eram gentis,
aqueles olhos, infinitamente gentis em sua tristeza.
— Tenho um amigo em quem confio, um velho amigo da família que
cuida do pequeno capital restante depois que minha mãe e meu padrasto
faleceram. — Porque meu padrasto, Hiram Jackson, havia gastado o
dinheiro de minha mãe além do seu próprio, mas não havia por que contar
aquela história.
— Ainda assim, a senhora deseja permanecer independente dessa
pessoa.
Franzi o cenho.
— Eu gostaria de ser independente de todos, suponho.
— Ah, agora estamos chegando ao cerne da questão.
O professor Wale cruzou uma perna sobre o joelho e fechou as mãos ao
redor do tornozelo.
— Perdoe-me, minha jovem amiga, se pareço curioso demais, mas me
canso rápido de conversa fiada e eu gostaria de ver um pouco do seu
coração, se puder satisfazer um homem velho o bastante para ser seu pai.
Então, me diga, quais são suas prioridades?
A resposta veio com uma facilidade que me surpreendeu.
— Prover bem minha filha e a srta. O’Dugan, que é como uma irmã
para mim. Tornar possível conduzirmos nossas próprias vidas, mesmo que
sejamos apenas mulheres.
— Não está conduzindo sua vida agora?
— Dificilmente. Não posso nem escrever para meu amigo (deve saber
que, além de homem, ele não é casado) sem a sra. Calderwood ler minhas
cartas.
Uma das razões pelas quais eu ainda estava acordada era uma
preocupação chata de que a sra. Calderwood ou a sra. Drummond leriam a
carta que escrevi para Martin naquela manhã. Ora, se eu seria derrotada,
poderia muito bem acontecer mais cedo ou mais tarde.
O professor arqueou as sobrancelhas pretas e grossas, aprofundando as
rugas em sua testa.
— Eu de fato teria dificuldade em tolerar tal interferência. — Ele tocou
o cachimbo no bolso como se fosse gostar verdadeiramente de acendê-lo.
— Tenho pouca escolha da forma como as coisas estão — admiti. —
Agora, para sustentar minha família, preciso me submeter aos meus
empregadores.
— Hum… Suponho que encontrar um marido esteja fora de questão.
Pois, poderia mandar os intrometidos para… digamos, para a porta.
— Oh, um marido iria interferir mais que qualquer um. — Mas eu
estava rindo agora, divertida pela expressão travessa do professor.
— Alguns não. — Ele gesticulou com a mão em direção ao teto. —
Eles estão em minoria, é claro. Então, agora que lidamos com sua principal
prioridade, qual é o desejo verdadeiro de seu coração? Seu anseio mais
egoísta, mais humano?
Para minha surpresa, uma nova resposta se apresentou, inteira e
completa em minha mente, trazendo consigo uma onda de emoção que
ameaçava tornar minha voz instável. Pigarreei.
— Eu gostaria — disse — de me tornar melhor do que sou. Usar meus
talentos ao máximo, ampliar minhas capacidades ao extremo. Se eu fosse
egoísta, passaria meus dias fazendo o que sempre fiz quando não tinha a
obrigação de ganhar a vida. Eu criaria belos vestidos no papel e então os
tornaria realidade. Mas seria mais do que isso: eu criaria a beleza para
outras mulheres. E as direcionaria para se superarem na mesma área.
Alguns segundos se passaram em silêncio enquanto eu considerava o
que tinha acabado de dizer. Eu me virei para olhar para as páginas atrás de
mim, cobertas com números em minha mão aberta. Eu sentia como se
estivesse tateando por algum conceito que mal estava a meu alcance, como
uma criança aprendendo as letras e começando a compreender a conexão
entre A-B-C e as palavras em seu livro de desenhos.
— Sabe — eu falei em um meio sussurro, sem saber se estava
conversando com o professor ou comigo mesma —, até este momento, eu
achava que estava contente com minha pequena ambição de criar Sarah
longe das fofocas e sustentar todas nós. Achei que fosse ser o bastante.
Olhei para cima, confusa, para o rosto silencioso do professor.
— Lutei por nós, entende? Para manter Sarah e Tess comigo. — De
fato, lutei pela sobrevivência de Sarah. Eu sabia que, se fechasse meus
olhos, veria Hiram jogando minha filha no rio, então os mantive abertos. —
E se eu tiver que lutar por ambas de novo, eu o farei, até meu último
suspiro. Mas não é o bastante.
— Por que não? — Havia algo estranhamente alerta sobre a forma
como o homenzinho estava sentado agora, como se esperasse alguma coisa.
— Porque Sarah crescerá longe de mim, não vai? Desde o momento
em que nasceu, esteve num caminho separado do meu. E até mesmo Tess –
não há ninguém mais leal, mas caso desenvolva as próprias ambições, que
entrem em conflito com as minhas, não irei impedi-la. — Mexi em um
pequeno desfiado no tecido de minha saia. — Ela gosta daqui bem mais do
que eu. Toda a questão que envolve ser uma governanta a fascina. Quando
termina o trabalho que atribuo a ela, geralmente vai observar a sra.
Drummond, e elas se dão bem.
Percebi que iria tornar o desfiado em minha saia bem pior se
continuasse, então enfiei as mãos sob minhas axilas, os dedos enrolados em
punhos de frustração.
— Nada disso está em minhas estatísticas, não é? Não é de se espantar
que essa tarefa pareça tão sem esperança.
— Quando nossos cálculos se recusam a estar certos, em geral é sábio
perguntar se pulamos um passo. — O professor Wale sorriu, seu cabelo
parecendo arrepiar enquanto se inclinava para frente. — Vi a
autorrealização surgir em seu rosto, sra. Lillington. É por isso que ensino; é
por isso que luto para fazer meus alunos verem todos os lados da questão.
Há a superfície, e então há as profundezas. Minha paixão são as
profundezas. Eu mergulharia até o centro absoluto da Terra e traria as
perguntas mais complexas da humanidade à tona, pois lá está a mente de
Deus.
— Eu não estava ciente de que tinha quaisquer profundezas — admiti.
— Mas o senhor está certo, suponho. Acho que está tentando me fazer ver
que preciso superar meu desgosto imediato por, bem, certas pessoas e
circunstâncias – e passar um pouco mais de tempo pensando sobre o que
estou fazendo. Caso contrário, arrisco simplesmente carregar meus
problemas de um lugar para o outro.
Por algum motivo, me vi pensando em Martin, que tinha precisado
esperar de fato um longo tempo pela oportunidade que agora estava
buscando. Mas havia virado os anos de espera a seu favor, não?
— Meu amigo, o nome dele é sr. Rutherford queria muito juntar-se ao
Exército da União quando a guerra explodiu — me vi falando. — Mas
havia certas circunstâncias em que precisavam dele em casa. Quando a Lei
do Recrutamento entrou em vigor, pagou os trezentos dólares para comprar
sua saída do alistamento.
Sacudi a cabeça. O avançado da hora estava afetando meu cérebro?
— Eu nem tenho certeza de porque te contei isso — confessei. — É só
que aquilo o angustiava imensamente, caminhar para a armadilha de um
curso de ação que considerava quase insuportável.
— A senhora pensa nele porque também se sente encurralada — o
professor Wale sugeriu. — O que ele fez?
— Enterrou os sentimentos e fez seu trabalho. — Agora eu estava
começando a ver a analogia. — Aprendeu sobre seu negócio a fundo e,
além disso, se tornou hábil em lidar com dinheiro. — Dei de ombros. — O
que, suponho, retornará como benefício para mim, assim como para ele.
Esfreguei meus olhos, percebendo o quão exausta estava.
— Mas ele viveu uma vida pela metade, professor, por anos. Não tenho
certeza de que posso suportar isso.
— Não. — O professor ficou de pé, estremecendo quando os joelhos
estalaram. — Ainda assim, espere um pouco, sra. Lillington. Considere suas
opções. Uma vida pela metade por um ano ou dois é preferível a viver
arrependida a vida inteira.
Capítulo seis

Ambiçã o
16 de junho de 1872
Minha queridíssima Nell,
Ótimas notícias! O grande empório da Rutherford & Co. abriu suas
portas, com sucesso estrondoso. Até mesmo eu estou surpreso pelos lucros
dos primeiros dias.
Estão me comparando a Marshall Field, ainda que nossas estratégias
sejam diferentes. Onde Fields procura ser vasto e abrangente, meu foco é
nas mulheres bem vestidas. Não me preocupo com seus carpetes ou
escrivaninhas, apenas com as roupas, da pele para fora (se eu puder
mencionar tal coisa sem causar um rubor em suas bochechas). Mas, como
Field, anseio em dar aos meus clientes exatamente o que querem.
Joseph Salazar está se tornando um excelente gerente geral. Ele tem
objeções religiosas a trabalhar nos sábados, mas, ao invés disso, passa os
domingos – sem clientes para perturbá-lo – arrumando a papelada, então
ambos estamos felizes.
E falando em Salazar, posso deixar sua mente tranquila sobre a família
Gambarelli guardando rancor de mim. Sua única atitude foi mandar sua
herdeira para me parabenizar pela loja e me perguntar, no mais suave dos
termos, se eu tinha planos de roubar – essa foi sua expressão – mais algum
dos funcionários de seu pai. Já que o pai da srta. Gambarelli é uma notória
raposa astuta, deduzi que ele havia mandado a filha para me encantar (já
que sou solteiro) e descobrir tudo que pudesse sobre mim. Bem, duas
pessoas podem jogar este jogo.
Aguarde uma encomenda: estou te enviando algo um tanto especial
para celebrar meu sucesso. Também deve saber que escrevi ao dr.
Calderwood, dando-lhe a impressão de que minha posição é como a de um
pai (ou ao menos em uma relação fraternal, não sou tão velho assim) para
que possa lhe enviar presentes respeitáveis de vez em quando. Aceite-os e
fique feliz por mim. Haverá algo para Tess e Sarah também. Abrace Tess e
diga-lhe que ela fica bonita de rosa.
Seu, como sempre,
Martin

O rosto de Tess ficou vermelho de prazer enquanto eu lia as últimas


palavras de Martin para ela.
— Uma encomenda! Nell, o que acha que Martin irá enviar?
— Espero que seja um belo tecido para vestidos de verão. Seria uma
benção ter roupas novas a baixo custo. Terei que comprar botas novas para
Sarah, e as minhas estão ficando desgastadas, então não tenho como custear
tecido também. Tudo aqui é tão caro.
Curvei minha cabeça para a calça de linho na qual estava costurando
botões. As reservas da sra. Calderwood quanto à indignidade de eu costurar
as roupas de baixo dos alunos tinha cedido lugar às necessidades
econômicas. O custo de mandar para Wichita as calças dos garotos excedia
o subsídio que o seminário pagava para roupas novas. Posso ser uma
mulher desonrada, mas sou barata.
— Mamã, vê! — Sarah cambaleou até meu joelho, segurando um
bloco de madeira que uma das criadas fez para ela. — Essss… — Ela
apertou os olhos enquanto pronunciava a letra.
— Você é muito esperta, menina preciosa. S de Sarah.
Ela estava perdendo a gordura de bebê agora que conseguia caminhar
com confiança. Algumas vezes nos aventurávamos na extensa pradaria para
que pudesse correr atrás de pequenos pássaros e coelhos que se apressavam
em meio à grama esvoaçante.
— Qui. — Sarah apontou para os botões que eu estava costurando.
— É um botão. — Alcancei minha tesoura, mantendo-a bem longe das
mãos gananciosas de Sarah, e cortei a linha.
— Bodão. Sary qué bodão.
— Você poderá brincar com os botões assim que parar de colocar tudo
na boca.
Suspirei e olhei pela janela. Costurar botões em calças era tedioso e a
tarefa sempre vinha para mim, já que Tess nunca a dominara.
— Você vai queimar no inferno!
Nós todas pulamos e Sarah se lançou à frente para agarrar-se à minha
saia. A declaração foi feita em voz alta em um tom que sugeria que a
danação não era apenas certa, mas iminente – e foi bem do lado de fora de
nossa porta.
Juntei meu trabalho sobre a mesa, carreguei Sarah e fui ver do que se
tratava aquela confusão.
A porta foi escancarada tão de repente que quase bateu no meu nariz e
o sr. Poulton pisou no meu pé. Deixei escapar um grito involuntário de dor.
Sarah berrou de medo e enfiou o rosto no meu pescoço.
— Onde está, seu covarde? — A segunda voz era do professor Wale,
seguida pelo homem propriamente dito. Ele trouxe uma brisa do lado de
fora e mais que uma fragrância de tabaco para cachimbo consigo, pelo qual
deduzi estar violando as regras contra o fumo novamente. Ele tinha um tom
vermelho vivo no rosto. — Um fanfarrão, é isso que você é! — Ele dirigiu-
se ao sr. Poulton, aparentemente sem estar ciente da nossa presença. —
Começar uma briga e depois fugir para as colinas. Nós tínhamos um nome
para homens como você na guerra e seu rosto bonito nunca viu uma
batalha, eu aposto. — Ele ficou sem fôlego e tossiu violentamente, se
inclinando para frente com o rosto ficando num tom roxo alarmante.
— É claro que nunca vi uma batalha, seu bufão. — Em contraste com
o professor Wale, parecia que quanto mais irritado o sr. Poulton ficava, mais
frios eram seus modos. — Eu tinha doze anos quando a guerra começou, e
você está assustando a criança!
— Oh. Peço seu perdão, sra. Lillington. Mas, se não se importa que eu
diga, é típico de Poulton que venha se esconder atrás de mulheres e crianças
para evitar perder uma discussão. — O professor zombou com ironia.
— Eu tenho a maior objeção que ambos estejam aqui. — Acariciei o
cabelo de Sarah, fazendo sons tranquilizantes para acalmá-la. — Precisam
continuar com suas discussões políticas na minha sala de trabalho? — Meu
pé estava dolorido.
— Não é apenas política que estamos discutindo, é salvação. — O sr.
Poulton voltou seu olhar violeta-azulado para mim por um momento, e
então retornou sua atenção ao professor. — Você está espalhando um
veneno que vai esconder Deus de cada homem, mulher e criança que seja
tola o bastante para acreditar nesse artifício científico. Quando os vir
afastados da Bíblia, não sentirá o peso disso em sua própria consciência
suja?
Ele esbravejava como um pregador no púlpito com força total,
apontando um dedo acusador para o professor Wale, que batia a mão na
testa, ainda tossindo.
— Deus nos salve dos argumentos irracionais e emotivos — ele
lamentou. — No momento em que comecei a discutir o Como, você me
acusa de contestar o Quem. — Sua voz ergueu-se a um guincho rouco, e
parou para respirar.
— Eu o acuso — disse o sr. Poulton em um tom de indignação justa —
de tentar pôr ideias na cabeça de garotos inocentes, garotos com o nobre
objetivo de espalhar o reino de Deus nessa região ensopada de uísque e
atormentada por pagãos; pois isso irá fazê-los duvidar de tudo que foram
ensinados.
O professor Wale respirou fundo e falou mais calmamente mas, ainda
assim, falhou em manter um toque de humor sarcástico longe de sua voz.
— Se eles duvidam tão facilmente, é difícil que se possa alegar que os
ensinou bem. Minha própria fé reside em um terreno mais sólido, na mesma
rocha em que o próprio Cristo. Esses garotos — gesticulou para as salas de
aula acima — serão testados em breve, quando estiverem no mundo lá fora.
É imperativo ensiná-los a usar a inteligência que Deus lhes deu para pensar
– para pensar, Poulton – e, ao pensar, para sustentar sua fé para que seja
inabalável. Porque eles vão encontrar desafios, pequenos e grandes. Somos
chamados para formar homens, não meros falastrões de banalidades.
O sr. Poulton abriu a boca para responder, mas me antecipei.
— Sobre que raios os senhores estão discutindo? — Percebi que Tess
tinha vindo pairar perto do meu cotovelo e entreguei Sarah para ela.
— Qui — disse minha filha, apontando para os dois homens.
— Sim, eles estão sendo maus. — Aprumei meus ombros.
— Maus — ecoou atrás de mim, enquanto eu me metia entre o
professor e o sr. Poulton, indicando com um gesto firme de cabeça que
deveriam sair para o corredor.
— Suponha que os alunos tivessem visto isso? — Olhei fixo para os
dois com o que eu esperava ser uma expressão afiada. — Os dois têm tanto
tempo ocioso assim num dia de trabalho que podem perambular pelo
seminário brigando como dois estudantes? Porque eu, para começar, tenho
trabalho a fazer e os senhores interromperam. E, incidentalmente,
aborreceram minha filha.
— Não tenho aulas no momento — o professor Wale replicou.
O sr. Poulton, no entanto, virou-se para mim com uma expressão
contrita no rosto, misturada com um calor que causou uma estranha
sensação cortante nos meus membros.
— Eu realmente sinto muito — ele disse. — Eu estava tentando
defender a missão desta escola e me comportei mal. Estávamos discutindo a
eterna insistência do professor Wale de que ele seria autorizado a introduzir
os ensinamentos perniciosos de Darwin (e outros de sua laia ateísta) em
nosso seminário. Não posso concordar com sua posição e o dr. Calderwood
pensa da mesma forma.
— E ainda assim, o dr. Adema, que Deus o tenha, pensava da mesma
forma que eu, e sabe muito bem. — O professor Wale virou-se para mim.
— Peço desculpas também por meu comportamento pouco cavalheiresco,
sra. Lillington. Mas a senhora deve ter ouvido Hendrik Adema dizer: “A
defesa audaz e fervorosa da ortodoxia através da busca iluminada do
conhecimento.” — Ele colocou bastante ênfase nas últimas palavras,
cutucando com o dedo de uma mão na palma da outra, como se para
ressaltá-las. — Mas ele foi muito convenientemente para seu descanso bem
merecido, deixando esse seminário nas mãos daqueles determinados a
perseguir a definição mais limitada possível do cristianismo.
O sr. Poulton ficou branco como giz, suas maçãs do rosto ressaltadas
sob olhos que eram fendas estreitas.
— Suas insinuações sujas não se sustentam aqui — ele sibilou. — Vai-
te para longe de mim, Satã.
Enquanto conversávamos, fomos caminhando em direção às portas
duplas largas da capela e o sr. Poulton estava perto o bastante para alcançá-
las em quatro longas passadas e as abriu com um puxão. Ele entrou e,
enquanto as portas se fechavam lentamente, pude vê-lo seguir até uma outra
porta que levava ao escritório do presidente, que era parte de um conjunto
de aposentos aninhados entre a capela e a frente do prédio.
As portas voltaram à posição e todo o ar pareceu sair do corpo do
Professor Wale em um longo suspiro. Ele se apoiou na parede e apertou a
ponte do nariz, de repente parecendo velho e cansado.
— O que o senhor quis dizer com isso? — perguntei. — Que a morte
do dr. Adema foi conveniente? O senhor não pode estar…
— Oh, não tenho nenhuma prova. E não deveria ter dito isso em sua
frente, ainda que a senhora não pareça ser do tipo que fofoca. Chame de
intuição se quiser. Me recuso a acreditar que Hendrik Adema simplesmente
escorregou e caiu. Gostaria de acreditar nisso, pelo bem da minha paz de
espírito, mas algo dentro de mim não quer abandonar uma certa suspeita.
O corredor estava silencioso, exceto pelo sempre presente gemido do
vento quando atingia o canto do prédio. Estremeci, apesar do calor do dia,
enquanto observava o professor Wale atravessar os ladrilhos de mármore
em preto e branco até os pés da escadaria ricamente entalhada e olhar para
cima, o rosto iluminado de azul e dourado por causa dos vitrais acima dele.
— Ele era um homem bom. — Ele fitou as imagens nos vitrais. —
Acreditava verdadeiramente que a fé pode mover montanhas. Começou a
planejar esta escola quando a fronteira ainda era território indígena e
estávamos lutando para determinar se o Kansas seria um estado
escravocrata ou livre. Ele desejava oferecer educação àqueles que não
podiam pagar – os filhos pobres das planícies, sejam eles brancos ou de cor,
até mesmo indígenas, se demonstrassem uma evidência verdadeira de fé.
Ele correu as mãos pela profusão de entalhes ao final da escada.
— Mas cometeu o erro de se associar com os Calderwoods. O dinheiro
dela construiu a escola, mas também lhe deu o poder de insistir numa
maioria de alunos pagantes – para sustentar os outros, era a história. E
inventaram formas de barrar todas as raças, exceto a branca. — Ele deu de
ombros. — Às vezes me pergunto se lutamos na guerra por nada, sra.
Lillington.
— Por que o senhor continua aqui? — perguntei, curiosa.
— Lealdade. Ou era lealdade, quando o dr. Adema estava vivo. Agora,
como posso deixar esse trabalho para aqueles que iriam destruí-lo de dentro
para fora? Sinto que preciso ficar e lutar, em memória dele.
— Com Darwin?
O professor riu.
— Sabe, eu não acho realmente que o sr. Darwin tenha provado
qualquer coisa. Ouso dizer que daqui a vinte anos a ciência terá esquecido
todas as suas teorias. Mas irei morrer defendendo seu direito de postular
qualquer ideia que deseje. É o direito de todos os homens poderem encarar
sem medo qualquer teoria ou pedaço de evidência que os anos vão colocar
em seu caminho. A era das investigações científicas está sobre nós e, se a fé
deve permanecer, precisa atracar-se a essas novas ideias, não fingir que não
existem.
Ele olhou de volta para as portas fechadas da capela e um canto de sua
boca se curvou.
— Tenha cuidado com aquele homem Poulton — falou suavemente. —
Ele é ambicioso.
Ele virou-se de costas para mim e subiu os degraus largos e polidos da
escadaria, seu progresso iluminado pelas várias tonalidades de feixes de luz.
Voltei-me para retornar à sala de trabalho, mas o barulho suave da
porta da capela se abrindo atrasou meus passos. O sr. Poulton e o dr.
Calderwood saíram, todos sorrisos.
— Sra. Lillington — o sr. Poulton me chamou. — Preciso me
desculpar de novo por inadvertidamente fazê-la testemunhar uma discussão
tão imprópria. Me permiti inflamar para fazer o professor Wale ter bom
senso.
O dr. Calderwood fez uma mesura, seus enormes dentes brancos à
mostra num sorriso incerto que eu tinha visto tantas vezes durante as missas
na capela. Desde a morte do dr. Adema, ele presidia essas missas. Seus
sermões eram do tipo meloso, cheios das pequenas histórias de moral,
designadas a fazer os ouvintes se emocionarem e eu os considerei
cansativos.
— Precisamos às vezes suportar um pouco de aborrecimento numa
comunidade como a nossa, não é? — O dr. Calderwood se balançava nos
calcanhares e esfregava as mãos uma na outra. — Mas em geral há formas
de reconciliar nossas pequenas diferenças para satisfação de todas as partes.
Por exemplo, eu estava contando a minha querida esposa sobre a carta
maravilhosa que recebi do seu amigo, o sr. Rutherford, que parece ser um
comerciante dos mais respeitáveis. Ele fez uma doação generosa e nos
deixou bastante certos sobre a adequação de sua correspondência. A
senhora pode considerar nosso pequeno mal entendido como totalmente
resolvido.
Eu o encarei, sem saber o que falar. Martin havia comprado os
Calderwoods? Era muito para minha tão falada independência. Bem,
suponho que eu iria, como Martin tinha dito, apenas ter que aceitar os
presentes que enviou – incluindo minha respeitabilidade. Mas eu desejava
que Martin estivesse por perto para que eu pudesse chutá-lo.
— Preciso voltar ao trabalho. — Foi tudo que consegui dizer.
— Minha cara jovem senhora, é claro — entoou o dr. Calderwood,
virando-se na direção de minha sala de trabalho e oferecendo um braço
enorme para mim. — Permita-nos acompanhá-la até sua porta.
O sr. Poulton passou a caminhar do meu lado e retornei ao trabalho em
grande estilo. No caminho para lá, encontramos o sr. Lehmann, que nos
cumprimentou cheio de alegria, enquanto ficava na lateral para nos deixar
passar. Um sorriso sarcástico iluminou seu rosto.
Quando chegamos à porta, o sr. Poulton tomou minha mão e se curvou
para todos verem, como se fosse beijar as pontas de meus dedos. Um
estranho sentimento correu por todo o meu corpo, algo entre empolgação e
perigo – mas a sensação passou em um segundo, e eu estava ciente apenas
do sorriso indulgente do dr. Calderwood.
— Somos muito afortunados por tê-la em nosso estabelecimento — o
dr. Calderwood disse de forma aduladora. — Por favor, me avise - ou ao sr.
Poulton, é claro - se houver algo que possamos fazer para melhorar seu
conforto.
Ele segurou a porta aberta e adentrei novamente na monotonia de meu
trabalho diário, iluminada pelo sorriso dos dois cavalheiros.
— Eles pararam de discutir? — Tess perguntou assim que a porta foi
fechada atrás de mim.
Assenti em afirmação enquanto pegava Sarah em meus braços, mas
meus pensamentos se estendiam para fora da sala, buscando as correntes
escorregadias do que eu tinha acabado de ver e ouvir. Eu havia sentido fios
de significado e propósito ao meu redor, ventos de dedução e intenção que
flutuavam longe do meu alcance. O que havia naquele lugar que parecia tão
insubstancial e, ainda assim, tão carregado de significado? E meus
problemas com a sra. Calderwood estavam realmente acabados?
Capítulo sete

Virtude
— É um belo mostruário.
Reiner Lehmann analisava os metros de tecido espalhados em cima de
cada mesa disponível. As férias de verão estavam chegando e a maioria dos
alunos havia partido, então Reiner, que estava trabalhando numa tradução
para o dr. Calderwood e não ia voltar para casa no verão, foi assombrar
minha sala.
— Como se chama isso? — Ele esticou a mão na direção de um
amontoado de verde pálido brilhante na mesa mais próxima e então pulou
para trás a tempo de evitar o tapa que eu iria dar nele.
— Não toque. Não me importo que olhe os algodões mais de perto,
mas não essa seda. Eu mesma mal ouso me aproximar caso deixe cair uma
gota de suor sobre ela.
— Mulheres. O que a senhora irá fazer com isso?
— Estou tentando decidir há mais de um mês. — Sorri enquanto
entregava-lhe o desenho que tinha feito. Tínhamos nos acomodado em uma
amizade fácil e sem exigências que não parecia requerer muito mais que a
ocasional meia hora juntos quando seus estudos e meu trabalho permitiam.
Tendo idades tão próximas, não parecia chocante que tenhamos progredido
para chamar um ao outro pelo nome de batismo quando não havia mais
ninguém por perto.
Como garantia, a sra. Drummond e a sra. Calderwood mantinham um
olhar desconfiado em nós, mas Reiner era um favorito dos Calderwoods. E
eu – bem, eu parecia ter vencido a impressão ruim que causei no início.
Havia alcançado essa mudança, suponho, com um trabalho pesado e
cuidadoso e um grande esforço para permanecer recatada e digna quando na
presença de qualquer um usando calças. Isso, e o que quer que Martin tenha
feito para me garantir as boas graças dos Calderwoods.
Reiner estudou o desenho, esfregando a testa enquanto eu enrolava a
seda. Trabalhei com cuidado, consciente da brisa morna que soprava pela
sala vinda das janelas abertas, trazendo o aroma doce e de mel das pradarias
consigo. Não fui capaz de resistir e desenrolei meu precioso tecido para dar
mais uma espiada antes de começar a trabalhar nos vestidos cotidianos de
verão. Era de um verde muito claro, permeado por um delicado, porém rico
tom de roxo que se revelava apenas quando a luz o atingia no local certo.
Sob a luz das minhas lamparinas noturnas, era precisamente a cor dos olhos
de Sarah, o verde água forte da jade pura.
Quando Martin disse que estava nos enviando uma encomenda, nunca
imaginei que sua ideia de um presente de comemoração seria a metade de
um carregamento de rolos e pacotes. Além da seda verde e o xadrez prático
para vestidos de verão, enviara metros de seda marfim leve para roupas de
baixo e renda marfim que me fez arquejar de assombro com sua delicadeza.
Para lembrá-la de que não será uma costureira no seminário para
sempre, era o bilhete que acompanhava escrito na caligrafia elegante e
inclinada de Martin. E para enfatizar, havia anexado o faturamento de meu
capital, que já havia aumentado mais do que eu poderia ganhar em seis
meses no seminário. O conhecimento daquele pequeno aumento na minha
riqueza ficou dentro de mim como um sol pequenino e quente.
— Mas não sei quando terei a oportunidade de usá-lo — falei,
enquanto retornava depois de colocar o rolo de seda envolto em algodão
dentro do meu armário. — Mas simplesmente não posso transformar esse
tecido maravilhoso em qualquer coisa além de um vestido noturno.
Qualquer coisa menos grandiosa seria um crime. Agora, tudo que preciso
são amigos que me convidem para jantar.
— E quem são seus amigos?
Revirei os olhos, alisando uma extensão de algodão rosa que ficara um
pouco enrugado.
— Tess. E você, suponho. O professor Wale, talvez. E essa é minha
soma total de conhecidos nesta parte da região; os Lombardis estão longe
demais para contar. Então, se for fazer um jantar, me avise.
Reiner bufou com a risada.
— Teremos que trabalhar nisso.
— Ficarei agradecida. Mas não por algumas semanas. Estou cuidando
das meninas Lombardis enquanto o sr. e a sra. Lombardi, e o pequeno
Teddy, vão a um encontro de missionários em Wichita. Por isso, farei para
as garotas vestidos bonitos, já que tenho o bastante para suprir.
— Que anjo você é.
— Nem um pouco. Sou uma modista com uma abundância de xadrez e
algum trabalho para fazer que não é, ao menos uma vez, costurar roupas
para rapazes que crescem rápido demais. Agora seja útil e me passe aquele
maço de papéis – com cuidado, não o amasse! – para que eu possa seguir
com o vestido de Tess. Ela irá amar essa cor.
— Quero dizer, cuidar de duas garotinhas. O que fará com elas o dia
todo?
— Encontrarei alguma coisa. — Peguei minha caixa de alfinetes. —
Tenho certeza de que não serão trabalho nenhum.

— Sra. Lillington?
Tirei o último alfinete que estava entre meus lábios e o espetei entre as
camadas de algodão. Thea estava fazendo pontos meticulosos de alinhavo
no vestido xadrez que seria de Lucy. Eu estava fazendo a bainha do dela,
que era uma versão mais longa e decididamente mais crescida. Ele teria
uma saia por cima, puxada para trás e costurada de forma que caísse como
pufe de tecido em uma imitação de uma anquinha, no lugar do laço mais
infantil de Lucy. Afinal, Thea tinha quase dez anos e suas saias agora
podiam ficar bem abaixo dos joelhos.
— Sim, Thea? — Do lado de fora, eu podia ouvir Tess, Sarah e Lucy
brincando sobre uma manta na sombra feita pelo prédio. As árvores jovens
no terreno do seminário se agitavam no vento quente das pradarias, que nos
trazia o aroma doce da grama e girassóis.
— Por que Sarah não tem um pai?
Olhei para a criança e encontrei uma expressão sincera em olhos
castanhos esplêndidos que eram iguais aos da mãe – mas nem de perto tão
inofensivos. Thea era tão espinhosa quanto o cacto favorito de vovó e cada
parte sua tão insistente quanto eu em sua idade. Ainda assim, trabalhava
duro e naturalmente se apegou à pessoa mais ocupada nas proximidades –
eu, exceto pelos criados – quando não estava mandando nas outras crianças.
Decidi que uma mentira indireta era a melhor resposta.
— Sou viúva, Thea.
— Qual era o nome de seu marido? Como ele morreu? — Os olhos de
Thea estavam luminosos de interesse e algo mais sobre o qual eu não tinha
muita certeza.
Quebrei a cabeça para analisar se já havia lhe dado uma causa para a
morte de meu marido imaginário.
— Ele morreu de febre. — Aquilo era comum o bastante e deveria
cobrir todas as contingências.
— E qual era o nome dele?
— Jerome Govender. — O nome veio fácil demais aos meus lábios
depois de meses de prática que tive em Victoria, e praguejei internamente.
Thea não deixaria passar…
Ela não deixou.
— Mas seu nome não é Govender, é Lillington. — Ela olhou para mim
por baixo dos cílios.
— Voltei ao meu nome de solteira depois de enviuvar.
— Por quê? Não gostava de seu marido?
Parei de prender o tecido.
— Eu simplesmente gostava mais de meu nome de solteira.
— Então por que não é srta. Lillington?
— As pessoas não iriam querer me chamar de “senhorita”, Thea.
Tenho uma filha, claramente não sou uma donzela.
Tarde demais, senti o abismo abrindo-se sob mim.
— O que é uma donzela, sra. Lillington? — A boca bonita de Thea
estava docemente curvada, a imagem da inocência infantil.
— Uma mulher que ainda não… que ainda não…
Eu teria que recorrer a toda defesa adulta contra a curiosidade juvenil.
— Essas não são perguntas que uma garotinha deveria fazer. Ou, no
mínimo, precisa esperar para perguntar a sua mãe.
— Oh, eu perguntei. Mamãe disse que uma donzela é uma mulher
virtuosa. — Thea pronunciou mamãe com uma cadência, no estilo italiano.
— Ela diz que uma mulher casada não é mais uma donzela, mas ainda é
virtuosa porque o casamento é a forma com que Deus permite que uma
mulher continue virtuosa enquanto usufrui dos frutos da carne. Mas não me
disse quais são os frutos da carne. Você sabe?
— Se sua mãe não contou, eu certamente não contarei. Essas coisas
estão na esfera das mães.
Que raios Catherine Lombardi estava fazendo mencionando os frutos
da carne àquela inquisidora em miniatura? Ainda que eu suspeitasse que
Thea simplesmente esgotara a mãe até o ponto em que ela falara mais do
que queria.
— Perguntei a Prudence, e ela disse que os frutos da carne são
fornicação — Thea continuou num tom suave. — O que é fornicação?
— Quem é Prudence? — perguntei bruscamente. Os pelos finos dos
meus antebraços se arrepiaram apesar do calor do dia.
— Ela é a esposa de um fazendeiro que ajuda na missão, para fazer o
dinheiro ir mais looonge — Thea falou a última palavra com um forte
sotaque escocês, numa imitação jocosa. — Eu a ouvi dizer para Marta uma
vez (ela é sueca; ela faz tortas para nós) que mamãe sabe muito sobre
fornicação, porque se associa às mulheres más que deveriam ser
apedrejadas por seus pecados.
Eu guinchei, puxando o alfinete que tinha enfiado profundamente em
meu polegar. Largando a peça meio presa, suguei com força o dedo
machucado e remexi no bolso em busca do lenço.
— Acho que Prudence estava falando da Fazenda dos Pobres — Thea
disse. — Havia internas lá que estavam em estado interessante; isso foi o
que papai disse quando perguntei sobre suas barrigas, e elas não tinham
maridos também. —Inclinou a cabeça de lado, sorrindo. — Você estava na
Fazenda dos Pobres? Não me lembro.
Eu não iria, categoricamente não iria, dizer a verdade para a pequena e
bem vestida entidade que estava estreitando seus enormes olhos castanhos
para mim como uma sra. Calderwood embrionária. Uma mentira direta ou
um rompante de indignação ultrajada pareciam ser minhas únicas rotas de
fuga. A primeira era indiscutivelmente uma violação do nono mandamento;
a segunda seria uma completa hipocrisia. O que eu deveria fazer? Busquei
por um meio-termo.
— Eu espero — falei, no tom mais uniforme que pude criar — que
seus pais tenham te ensinado que fofoca é ruim e é feio interrogar as
pessoas mais velhas e sábias. Eu sou mais velha — reforcei, tentando
inserir uma nota de ameaça em minha voz.
Um sorriso beatífico se espalhou pelo rosto bonito de Thea e ela bateu
seus longos cílios para mim.
— É claro que é — arrulhou. — Eu não quis dizer nada, sra.
Lillington. Mas, sou sempre muito curiosa sobre tudo. Por acaso, não
poderia ver meu alinhavo e me falar sobre recortar as curvas novamente?
Sentindo como se uma cascavel tivesse acabado de me trazer uma
xícara de chá, tirei o lenço do meu dedo, verifiquei que o sangramento
havia parado e suguei o local para limpá-lo antes de inspecionar o trabalho
manual de Thea.
— Está bem feito — falei, tentando empurrar os últimos quinze
minutos para os recessos de minha mente. — Você é uma trabalhadora
muito cuidadosa.
— Sabe o que seria maravilhoso? — Thea perguntou. — Meu vestido
ficaria muito mais bem bordado com aquela franja cinza escura que tem em
sua caixa, não? O faria parecer bem mais maduro que o de Lucy. — Ela
ergueu o olhar para mim. — Um vestido como aquele iria me fazer querer
guardar todo o tipo de segredos de adultos.
— Ficaria um tanto adornado para um vestido de verão — comecei,
mas Thea apenas sorriu.
— Oh, por favor, sra. Lillington. Eu ficaria muito grata.
Eu estava guardando aquela franja para meu próprio vestido. Mas em
face àquela chantagista em desenvolvimento, alguns metros de franja a mais
ou a menos de repente não pareceram tão importantes.
— Muito bem. — Endureci a voz. — Mas chega de perguntas e nada
de fofocas, entendeu?
— Sobre o quê, sra. Lillington?
Maldita criança.
— Sobre qualquer coisa.
— Eu nunca fofoco, sra. Lillington. Mamãe diz que é errado. Prudence
e Marta fofocam terrivelmente; e se eu contasse a elas uma coisinha, apenas
uma coisinha, espalhariam por toda a região.
E com essa ameaça final, Thea pegou sua agulha de novo.
— Poderia terminar meu vestido primeiro?
Capítulo oito

Encomendas
5 de dezembro de 1872
Querido Martin,
Depois de nove longos meses no Kansas, finalmente sinto que a nova
vida que eu tanto queria, está começando a acontecer. E é em grande parte
devido ao seu presente generoso de seda.
Vejamos, eu te contei – lá em julho – o quanto a sra. Calderwood ficou
interessada nos vestidos de verão que costurei com o algodão que me
enviou. O vestido de Thea Lombardi estava particularmente encantador.
Ela é uma garota bonita, e já que seus pais trouxeram novas botas, luvas e
chapéus para as duas jovens damas, pudemos arrumá-la em um estilo que
não pareceria errado em Nova York. Ainda mais que ela conseguiu me
convencer a levar minha linda sombrinha.
Mas isso não foi nada comparado ao vestido de seda, que teve sua
primeira exibição em Springwood no sábado. Recebi um convite para ir à
casa do sr. Joseph Lehmann, um advogado, de um aluno que por acaso é
seu sobrinho. Foi um jantar bastante familiar e, na verdade, me senti bem
vestida em excesso, mas valeu a pena somente para ver a cara da sra.
Calderwood quando adentrei no seminário mais tarde naquela noite.
Ela com certeza notou meu vestido. Os Calderwoods planejam fazer
um jantar grandioso aqui no seminário em 15 de dezembro e eu estou
convidada (talvez ordenada a comparecer seria mais adequado).
Também terei minha primeira encomenda verdadeira de um vestido
feita pela própria sra. Calderwood. Não que tenha mencionado qualquer
pagamento pelos meus serviços, você entende, e, na verdade, não espero
nenhum. Ela é fechada como uma concha no que diz respeito a dinheiro.
Ainda assim, alguém estará destinado a perguntar onde ela conseguiu o
vestido e talvez isso leve a mais trabalho.
Em todo caso, é maravilhoso criar e costurar algo fora do comum.
Bem, estou ficando sem espaço para descrevê-lo, e com o custo do papel
aqui, não quero usar outra folha. Mas se prepare para receber uma
descrição completa quando estiver pronto.
Sempre sua,
Nell

Percorri os olhos pelos aposentos dos Calderwoods, curiosa. Ficavam


no segundo andar, virados para o norte e, assim como em minha sala de
trabalho, havia janelas largas que capturavam a luz. Mas cortinas pesadas
de veludo, da cor de sangue, lhes davam um ar taciturno, sombrio.
Móveis enfadonhos, extremamente polidos ocupavam o resto do
espaço disponível. Os Calderwoods eram mais modernos do que havia
imaginado. Com seus carpetes vermelhos e pesados e estofamento de
veludo, a sala de estar transmitia um ar de luxo e riqueza. Um contraste
estranho, e uma estranha moldura para a escassez do inverno nas pradarias
além da janela.
Um segundo espaço, aberto para a sala de visitas, ostentava um grande
piano. Aquele era um objeto de verdadeira beleza e refinamento, sua
madeira brilhante incrustada com um padrão de tulipas. Perguntei à sra.
Calderwood sobre ele, já que parecia bem mais antigo que o restante dos
móveis.
— Era do professor Adema. Um artigo de família, creio.
Ela retrucou sobre a saia que eu estava prendendo, rearranjando
nervosa o drapeado da seda fina e tornando um tanto impossível prosseguir.
— Não tivemos coragem de nos livrar dele e Deus sabe que tinha
pouco além disso em termos de mobília. E meu caro marido toca.
Eu ansiava por tomar o tecido de suas mãos pequenas e ávidas, mas, ao
invés disso, sentei-me nos calcanhares e olhei para ela.
— Eu poderia fazer o corpete um pouco mais longo na frente, se a
senhora quiser, mas acho que vai notar que consigo fazer com que a frente
caia perfeitamente assim que estiver costurada à parte mais baixa da saia.
Tudo que estou fazendo agora é tendo uma ideia de onde a parte superior
deve terminar. Haverá uma franja por aqui — indiquei um ponto logo acima
de seus joelhos — e então a saia mais baixa vai terminar numa franja
combinando para que, quando a senhora se movimentar, a luz capture a
frente de forma elegante.
E o drapeado horizontal da parte superior combinado com o corpete
modelado, iria disfarçar a barriga protuberante da sra. Calderwood e faria
seu torso pequeno parecer mais alongado. O tecido de veludo listrado da
cauda terminaria em um pregueado pesado de veludo que lhe conferiria
dignidade. A anquinha, o decote e as mangas também eram elaborados para
se adequarem à sua idade e posição, elegantes, mas não modernos demais.
Ainda era uma ratinha, porém belamente vestida.
A sra. Calderwood parou de mexer com seu vestido e me deixou
prender a saia. Ela encarava seu reflexo no espelho de corpo inteiro que
tínhamos trazido de seu quarto e olhava para mim enquanto eu trabalhava.
— Imagino que tenha sido um golpe de mestre receber um convite para
jantar na casa do sr. Lehmann.
— Um golpe de mestre? — Franzi a testa, então olhei para cima
quando o significado foi absorvido. — Não tenho nenhum plano para o
jovem sr. Lehmann, se é o que pensa. Estamos em termos amigáveis, mas…
— Ele seria um bom partido. Seu pai é extremamente rico.
— Estou surpresa que a senhora aprove qualquer interesse que ache
que eu tenha, então. O que o pai pensaria se ele caísse nas garras de uma…
O que acha que eu sou?
Os pequenos olhos pretos da sra. Calderwood cintilaram.
— Você tem outro pretendente em mente?
— Nenhum.
Meu assombro deve ter ficado evidente na voz, já que a sra.
Calderwood abriu um sorriso pequeno e misterioso.
— Este jantar deve ser um grande sucesso, sra. Lillington. Estamos
exatamente no caminho de conquistar o que Hendrik Adema nunca
conseguiu: a expansão de nossa escola para sua capacidade total. — Ela
olhou por sobre o ombro para o espelho e eu quase podia ver seu nariz
torcer de expectativa. — Precisamos de mais alunos elegíveis como o sr.
Lehmann.

— Eles irão servir bebidas alcóolicas.


A sra. Drummond empurrou a cadeira para fora do lugar, sentou-se e a
puxou para a frente tão rápido que seus pés arranharam o assoalho. Ela
olhou com ressentimento para a longínqua cabeceira da mesa, onde os
Calderwoods presidiam sobre o grupo usual de membros do corpo docente.
— Vão? — Virei para observar discretamente.
— Pão. — Sarah se inclinou para frente em seu assento, cambaleando
enquanto tentava agarrar o prato de pão.
— Pão, por favor. — A corrigi, lhe dando uma fatia e a colocando de
volta em sua cadeira.
Os dentinhos afiados de Sarah rasgaram o pão.
— Mais, pufavô.
— Termine essa fatia primeiro. O que quer dizer com servir bebida
alcoólica? — perguntei à sra. Drummond. — Quando?
— Neste abençoado jantar. — A sra. Drummond me fitou.
— Bem, não olhe para mim. Não bebo.
— Ela não bebe — Tess falou e a boca larga da sra. Drummond
descomprimiu um pouco. Ela tinha relaxado em relação a mim um pouco
nos últimos tempos, mas não pelo mesmo motivo dos Calderwoods. Foi
apenas por sua amizade com Tess que a fez tolerar a mim e a Sarah.
Sarah pegou seu copo cuidadosamente com as duas mãos e deu um
grande gole de água, um pouco da qual caiu dentro de sua boca.
— Quero leite, pufavô.
— Não há leite, querida. A sra. Netta mandou buscar uma cabra para
você, mas terá que ser paciente.
Tess levantou-se para tirar o babador de Sarah e ajudar com as
operações de limpeza.
— Não fui convidada — ela informou à sra. Drummond. — Mas Nell
estará muito bonita em seu vestido verde.
Senti-me ruborizando.
— Sou necessária para completar o número de mulheres. Servir e
consumir álcool não é contra as regras? — Eu sabia que era, mas queria
distrair a sra. Drummond de minhas próprias falhas.
— O dr. Adema deve estar se revirando no túmulo — a mulher mais
velha disse, rangendo os dentes. — De pensar que isso iria se suceder.
— Isso não irá refletir mal no seminário, por violarem as próprias
regras? — Me inclinei para frente e tirei uma maçã pequena e enrugada da
tigela. Era dezembro, e nossa dieta estava ainda mais monótona que o
normal, mas as maçãs eram doces. — Não faria mais sentido aterem-se aos
seus princípios?
— Um dos convidados é Augustus McGovern, um comerciante de
grãos com uma enorme fortuna. O dr. Calderwood está antecipando uma
doação substancial. — A sra. Drummond relaxou a ponto de conceder um
pequeno sorriso a Tess, que estava cheirando o pescoço de Sarah e fazendo-
a rir. — O sr. McGovern expressou a opinião de que o Seminário Vida
Eterna é desnecessariamente restritivo no que chama de questões menores.
Por isso, estão jogando o bom senso e boas regras ao vento.
— Matã. — As risadas de Sarah deram lugar à fascinação enquanto a
casca da maçã deslizava por meus dedos. — Quero matã, pufavô.
— Como seremos capazes de fazer as regras serem cumpridas com os
alunos se os funcionários as violam, eu não sei — a sra. Drummond
continuou. — Há aquele maldito professor Wale e seu cachimbo, e agora
isso. E, é claro, os garotos sempre descobrem essas coisas.
Sacudi a cabeça.
— Acho que é ridículo. — Isso me fez garantir um aceno de aprovação
da sra. Drummond; uma coisa boa a surgir do último passo da marcha do
seminário em direção ao mundano, suponho. — Especialmente
considerando que Springwood é uma cidade que proíbe bebida alcoólica.
Entreguei a Sarah um pedaço da maçã.
— Dê pequenas mordidas e mastigue.
— Humf. Eu não teria muita certeza disso também. Eu ouvi coisas —
falou a sra. Drummond. — O dr. Calderwood diz que a atmosfera do jantar
deve ser relaxada e cordial e que já falou com os convidados de
Springwood.
Aposto que sim, pensei. Sem dúvidas o dr. Calderwood queria que seus
convidados estivessem embriagados quando chegasse o momento de lhes
pedir dinheiro. Desejei, pela milésima vez, que o dr. Adema ainda estivesse
vivo. Havia algo de confiável em um homem que tinha princípios.
Sarah tinha parado de mastigar a maçã. Um olhar interessado surgiu
em seu rosto e ela se concentrou por um momento.
— Eu fiz pumpum.
— Já é hora de começar a me dizer de antemão para que eu possa
colocá-la no vaso. Você tem quase dois anos. — Apanhei minha filha
grudenta e mal cheirosa. — Nos daria licença, por favor, sra. Drummond?
Deixei a governanta com Tess, que tinha parcimoniosamente
requisitado minha maçã abandonada. A sra. Drummond fervia, uma
expressão de fúria concentrada em seu rosto enquanto olhava na direção dos
Calderwoods.
— Vai haver uma explosão — murmurei para Sarah quando deixamos
a sala.
— Plosão — concordou.
— Está tudo bem. — Plantei um beijo no topo de sua cabeça, a única
parte limpa que havia nela. — Você não terá que estar lá.
Capítulo nove

Mary Celeste
— Cheio de álcool, veja.
O sr. Yomkins, chefe dos correios de Springwood, pousou sua taça e
sorriu para os convidados reunidos.
— Estou bastante convencido de que a tripulação ficou embebedada e
fez um motim. Capturaram o capitão e a família e partiram para enfileirá-
los e atirar ao mar, os afogando.
— Sem ninguém a bordo para conduzir o navio?
Os olhos do sr. Poulton estavam brilhantes de prazer. O sr. Yomkins
estava num estado meio embriagado, uma condição que claramente
provocava a ira da senhora sua esposa.
— Quem quer que eles tenham deixado a bordo bebeu ao ponto da
insensibilidade e caiu por sobre a amurada — grunhiu o sr. McGovern, que
segurava bem sua bebida. Uma dama a quem se referiu como sua noiva,
estava sentada a seu lado. Ela era uma personalidade taciturna que passou o
jantar comendo a sopa, o peixe, o peru e as ostras, e o presunto e a salada
com uma dedicação silenciosa, mas nunca, aparentemente, com prazer.
— E se os rebeldes de fato afogaram o pobre Capitão Briggs, sua
esposa e criança, por que então não voltaram ao Mary Celeste? — Aquilo
veio de um homem mais velho de aparência pomposa cujo nome eu não
sabia.
— Não conseguiram encontrar — exclamou o sr. Yomkins. — Faz
sentido. Um lugar grande, o Atlântico. Eu mesmo o atravessei, sabe. Com a
senhora minha esposa. Um pedaço bem grande de água. Já esteve em
Londres, sr. Polson?
— Na verdade, estudei em Cambridge. Inglaterra, no caso.
O sr. Poulton exibia seu charme total, apesar da dificuldade do sr.
Yomkins em lembrar seu nome correto. Ele parecia uma figura distinta,
num fraque de corte inglês, com um peitilho franzido e luvas amarelo
claras.
— A qualidade da sua equipe de ensino lhe faz crédito, dr. Calderwood
— ronronou uma das outras damas de Springwood. Sufoquei um sorriso
quando o presidente aprumou as costas e sacudiu a cabeleira aceitando o
elogio.
— A questão é — a sra. Yomkins interferiu —, o Mary Celeste estava
sem dúvidas abandonado porque a tripulação tornou-se vítima da bebida do
demônio.
— Com certeza não pode garantir isso, com todo o respeito, cara sra.
Yomkins — o dr. Calderwood disse, mostrando os dentes num sorriso
incerto. — A essa altura, provavelmente chegaram a um porto nas
proximidades. E não há evidência nenhuma sobre o que de fato aconteceu.
— Sinto no meu coração que a tragédia foi devido à bebida, dr.
Calderwood — falou a sra. Yomkins. Eu gostava dela; ela tinha um rosto de
cavalo e um nariz comprido mas, apesar disso, havia beleza na animação
vívida de seus traços e, acima de tudo, um brilho inteligente em seus olhos
azuis escuros. — A bebida torna um homem tolo — continuou, revirando
os olhos na direção do marido.
— O diabo que não — disse o sr. Yomkins, fazendo uma tentativa de
beliscar a bochecha magra da esposa. — Eu estava sóbrio o suficiente
quando me casei com você e eu…
— George!
Peguei meu guardanapo e o coloquei na frente de minha boca
traiçoeira, tentando com firmeza não olhar para Reiner Lehmann. Ele estava
zelosamente não olhando para mim. Nossos olhos se encontraram algumas
vezes ao longo do jantar, a cada vez com consequências desastrosas. Nós
dois estávamos tentando permanecer silenciosos e educadamente atentos,
como era adequado aos membros mais jovens do jantar.
A conversa tinha seguido engajada sobre a reeleição do presidente
Grant sem muitos percalços. Até o sr. O’Healey fazer um discurso contra
Grant Inútil – ele era claramente um liberal republicano. Ele entrou numa
discussão com o sr. McGovern que se estendeu durante o peru e as ostras
assadas e havia seriamente ameaçado a travessa de vegetais. E agora o
Mary Celeste estava nos conduzindo a águas mais perigosas.
— Sra. Lillington — disse a sra. Yomkins, dando as costas ao marido
de uma forma intencional. — Entendi que a senhora mesma fez este vestido
esplêndido.
Tossi e abaixei meu guardanapo. Ali estava a oportunidade pela qual
estava esperando.
— Fiz. — Estendi a mão para minha taça de água, para que a seda
capturasse a luz, e me sentei com as costas retas. — Como sabe, trabalho
como costureira aqui, mas tenho muita experiência como modista.
Eu estava sendo muito evidente? Ou não evidente o bastante? Era
difícil afirmar. Não queria parecer uma vendedora em busca de um
trabalho; nem queria dar a impressão de uma dama próspera que tem a
costura como hobby.
— A senhora… não quero insinuar, isto é… A sra. Calderwood sugeriu
que a senhora poderia estar aberta a uma encomenda.
A sra. Yomkins tinha uma silhueta elegante e vestia uma seda listrada,
possivelmente, uma reformulação da moda da última estação. Isso poderia
indicar parcimônia ou dinheiro curto à disposição; eu esperava que fosse o
primeiro. É claro, sendo mais madura, não deveria usar aquelas cores claras
como as que eu exibia, mas…
— A senhora ficaria maravilhosa em azul royal — eu lhe disse. —
Para combinar com a cor de seus olhos. Tenho uma ideia de um corpete
azul caindo em plissados escuros e lisos na frente, com algum tipo de
estampa arrojada – talvez em preto e branco – em camadas, percebe? E
enfeitado com um contraste vívido, talvez até mesmo vermelho, se
pudéssemos encontrar o tom certo.
Eu tinha acertado exatamente seus gostos; podia ver em seus olhos.
— Talvez — hesitei —, eu pudesse levar um desenho ou dois à sua
casa. Eu preciso — baixei meus olhos de forma recatada — me sustentar
com meus próprios esforços. Um pouco de trabalho extra me ajudaria a
construir minhas reservas.
— É claro, minha cara. — A sra. Yomkins se inclinou na diagonal e
deu um tapinha em minha mão. — Há tantas viúvas e solteironas por aí hoje
em dia; a guerra, é claro. Até mesmo agora me parece que a reserva de
homens jovens elegíveis está encolhendo diariamente.
— Que sortuda você, meu anjo — disse o sr. Yomkins, sorvendo seu
conhaque de pêssego.
A mesa agora estava tomada por torta de creme e frutas, manjar branco
e bolo, com tigelas de nozes e laranjas dispostas em intervalos. Dorcas, uma
das criadas mais antigas, estava servindo café, os olhos revirando diante da
extravagância quando pensava que ninguém estava olhando. Eu também
estava perplexa com os gastos que os Calderwoods haviam feito em sua
tentativa de impressionar. De onde raios a fruta tinha vindo? Eu mal comia
laranjas, exceto como um mimo de Natal.
— Tenho certeza de que o sr. Yomkins é o favorecido — falou o sr.
Poulton, com um sorriso de canto de boca para mim. Fiquei satisfeita por
ele também ter visto o humor da situação.
— Qualquer mulher — o sr. Yomkins disse, apoiando-se em um
cotovelo — é mais feliz quando tem um homem para si. Vejam, aqui está
minha melhor metade determinada a conseguir um novo vestido, e eu estou
reclamando? Compre dois, minha querida. Três. — E abriu um sorriso tolo
na direção da esposa.
Pareceu-me que toda a mesa tinha ganhado vida com a sensação de que
uma banana de dinamite aterrissara entre nós com o pavio aceso. A sra.
Yomkins manteve sua dignidade, mas eu podia ouvir o leve chiado de uma
iminente explosão.
Reiner viu o perigo ao mesmo tempo e nós dois aproveitamos a brecha.
— Mas o Mary Celeste…
— Quer manjar, sra. Yomkins?
Nossas palavras colidiram e a sra. Yomkins passou suavemente por
cima delas.
— Estou contente que seja um especialista na felicidade das mulheres,
George.
— Sou um especialista da sua felicidade, Adelberta. — O sr. Yomkins
engoliu uma colherada grande de manjar, fez uma careta e deu um bom gole
no conhaque de pêssego. Ele era, fiquei feliz em ver, o único do contingente
de Springwood afetado de igual modo. As outras damas e cavalheiros
permaneceram resolutamente sóbrios, a maior parte deles tendo deixado
suas taças de vinho intocadas.
A sra. Yomkins aceitou uma fatia de torta e deu algumas garfadas
delicadas no recheio cremoso. Seu olhar se fixava no marido com o estado
de vigília de um gato da montanha atento à sua presa. De onde eu estava
sentada, podia ver que o sr. Poulton a observava com fascínio e algo como
uma expectativa alegre, uma expressão igualmente alerta em seus olhos
violeta.
— E eu sou feliz, George?
O sr. Yomkins pareceu dar a essa pergunta uma consideração atenciosa,
erguendo a taça e olhando através do delicado líquido âmbar para sua
esposa.
— Eu colocaria você — disse judiciosamente — entre as mulheres
mais felizes do Kansas. Sim, bastante feliz.
— Baseado no seu conhecimento sobre o que se passa dentro da minha
cabeça e do coração a qualquer momento?
— Baseado em — o sr. Yomkins olhou ao seu redor e abriu bem as
mãos, as palmas para cima em um gesto abrangente —, ora, baseado na sua
felicidade, é claro. Você parece feliz. — Ele pareceu pensar que aquilo
resolvia a questão, bateu as mãos na mesa e gesticulou para Dorcas pedindo
mais conhaque.
— Hum… — A sra. Yomkins olhou ao seu redor, capturando o olhar
das outras matronas. A maior parte delas havia parado de falar, observando-
a com expressões de expectativa em seus olhos. — E ocorreu a você, sr.
Yomkins, que o semblante de felicidade pode ser forjado? Que, a fim de não
parecermos brigonas ou insatisfeitas, em geral nos expressamos em tons de
uma alegria maior do que a que realmente sentimos?
As outras matronas não disseram nada, mas detectei um leve aceno e
olhares significativos compartilhados.
— Não, não, não, não, não. — O sr. Yomkins sacudiu o dedo para a
esposa. — Eu com cher…certeza saberia se você estivesse fingindo
felicidade. As outras mulheres podem enganar seus maridos, mas não você.
Eu saberia.
— Como você saberia?
— Eu simplesmente saberia. — O sr. Yomkins assumiu um ar de
dignidade.
— Ah, sim, esqueci. Porque você é um homem.
— E o que se supõe que isso implique, meu tesouro?
— Apenas que todos assumem que suas esposas são perfeitamente
felizes e que saberiam se não fossem. E todas as mulheres, em algum
momento ou outro, expressaram uma felicidade maior do que sentiam a fim
de preservar a harmonia do espaço doméstico.
— Você acha que eu não saberia a diferença?
Reiner abriu a boca para dizer alguma coisa, mas lancei para ele um
olhar de repressão. Eu definitivamente queria muito ouvir o que a sra.
Yomkins iria dizer em seguida.
— Você não teria a mais breve noção de que eu estava dissimulando.
O sr. Yomkins inflou as bochechas e murmurou baixinho um termo
vulgar de escárnio. A sra. Yomkins correu os olhos pela mesa – naquele
momento, os olhos de todas as mulheres, e da maioria dos homens, estavam
fixos nela – e, aparentando dispensar o assunto, mordeu uma porção grande
da torta e se dirigiu a mim.
— Não acha, sra. Lillington, que meu marido é o mais generoso dos
homens? Três vestidos, realmente. A senhora deve apresentar-se em minha
casa na oportunidade mais breve.
Aliviada pela sra. Yomkins não ter esquecido das confecções em sua
ânsia de desenganar o marido de suas ilusões, assenti com entusiasmo. Três
vestidos – eu poderia dobrar meus ganhos do mês. O sr. Yomkins iria pagar
com carinho por sua brincadeira, sem falar pelo consumo excessivo de
bebida.
— Onde fica sua casa, sra. Yomkins?
— É a terceira casa seguindo a First Street; é claro, nossas ruas não são
bem sinalizadas, então devo avisá-la que minha casa é a ocre-amarelado.
Uma ideia muito atenciosa, a do sr. Yomkins, pintar nossa casa em um tom
tão distinto, tão bem alinhado à cor da poeira que sopra ao nosso redor no
verão! E foi muito inteligente da parte dele ter escolhido um lar em tal
localização, numa cidade que irá, algum dia, tenho certeza, ser tão grande
quanto – bem, realmente bem grande.
Ela sorriu, revelando bons dentes.
— Sou muito afortunada por estar entre aqueles abençoados para
mostrar o caminho para tornar as planícies nosso lar. Não acha, sra.
Lillington, que temos o clima mais saudável da América? E é tão espaçoso!
Ora, pode-se andar por quilômetros sem ver outra alma.
— A senhora deve se sentir em um estado de êxtase, sra. Yomkins — o
sr. Poulton falou gravemente, mas seus olhos dançavam.
— Sou a mais feliz das mulheres, sr. Poulton, é o que digo. — A sra.
Yomkins ergueu o olhar para o teto em arrebatamento. — Eu estava tão
cansada da correria da sociedade em Saint Louis. As visitas que se tinha
que fazer! E as compras sem fim! A ronda constante do ócio e da
tagarelice! Agora sou desperta numa hora mais saudável com os doces sons
do progresso, a música feliz dos trabalhadores e o suspiro gentil do vento
das pradarias. Eu sinto pena das mulheres que deixei para trás, realmente
sinto.
O sr. Yomkins acariciou as suíças e lançou um olhar aprovador à
esposa. Do outro lado da mesa, o sr. Poulton tinha cruzado as mãos para que
escondessem sua boca. Seus ombros vibravam e os olhos se inclinavam
para cima quase se transformando em fendas. Mais ao longe na mesa, a
noiva do sr. McGovern gritou um repentino e explosivo “Rá!”, então sorriu
abertamente e cobriu a boca com a mão.
A sra. Shemmeld olhou ao redor procurando Dorcas.
— Sirva-me mais daquela torta de creme — disse com frieza. —
Parece ter adoçado o humor da sra. Yomkins. Talvez faça o mesmo por
mim.
Eu posso ter me decomposto por um momento. Felizmente, o dr.
Calderwood, completamente alheio às correntes de júbilo rodopiando ao
redor da mesa, dirigiu um comentário às companhias como um todo sobre o
incêndio em Boston. Notícias do evento trágico tinham acabado de chegar a
nós e, junto com o caso peculiar do Mary Celeste, era um importante tópico
de conversa em nossa pequena comunidade. A discussão guinou para os
perigos do fogo e todos fomos salvos de nos envergonhar rindo.
O sr. Poulton tocou a boca com o guardanapo, limpando todos os
traços do sorriso que ainda permanecia quando olhasse na direção da sra.
Yomkins.
— Não me disse, sra. Lillington, que vem de Chicago? A senhora foi
afetada de alguma forma pelo Grande Incêndio? Entendo que o de Boston
não foi nada comparado à conflagração de Chicago.
— Eu não morava em Chicago propriamente dita — falei, me sentindo
um pouco envergonhada com todos os olhares em mim. — Mas nossa
pequena cidade abrigou várias famílias destituídas de todos os bens com o
incêndio. — Hesitei. — E, é claro, os Lombardis se viram no caminho das
chamas. Foi uma benção todos terem escapado com vida. — Eu esperava
evitar ter que contar a história do corpo que foi erroneamente enterrado com
o nome de Catherine na lápide. Aquilo levaria à Fazenda dos Pobres e…
Mas eu não precisava ter me preocupado. O dr. Calderwood, feliz em
ser o centro das atenções de novo, embarcou numa longa história sobre o
destino do escritório confessional em Chicago, sua reconstrução e o número
de alma que tinham se voltado à igreja depois de escapar por pouco de um
destino terrível nas chamas. Descasquei uma laranja, saboreando o travo
fresco do suco e deixei seu relato melodramático passar por mim.
De vez em quando eu encontrava o olhar de Reiner ou do sr. Poulton,
mas deixei minhas pálpebras caírem, concentrada em minha tarefa. Eu tinha
aprendido minha lição sobre flertar com homens no jantar. E, além disso –
um arrepio me percorreu –, agora eu tinha minha primeira encomenda
verdadeira de um vestido, meu passo inicial em direção à completa
independência para mim, Sarah e Tess. Eu mal podia esperar para escrever
para Martin sobre esse jantar.
Me mexi na cadeira, olhando pela sala em direção à porta que se
conectava à cozinha, na esperança de que os criados iriam em breve
começar a limpar os pratos de sobremesa. A sra. Drummond estava parada
ali, quase imperceptível em seu vestido escuro, observando a interação da
conversa pela mesa com uma expressão sombria no rosto. Eu sabia que ela
tinha protestado quanto a servir bebida alcoólica. Sabia que a sra.
Calderwood tinha dito, em termos claros, que se criasse problema com o
álcool, o problema iria ricochetear nela. Eu sabia, pois Reiner ouvira a
conversa e a relatou para mim.
Olhei para a sra. Drummond de uma forma que eu esperava que
expressasse um sentimento comum, mas devolveu-o friamente. Ela, pensei,
de fato entendia que eu estava na mesa sob pressão. E, ainda assim, tinha o
sentimento distinto de que me ver em tal companhia trouxera de volta sua
impressão de que eu era uma pecadora da pior estirpe.
— A senhora parece preocupada, sra. Lillington — o sr. Poulton falou
comigo sob a cobertura das palavras do dr. Calderwood. — Sente que fazer
vestidos para a sra. Yomkins é inferior a si?
— De forma alguma. — Sorri para ele e, de volta, recebi um sorriso de
beleza tão deslumbrante que me senti fraca. — Estou encantada com o
trabalho.
— É bem merecido. Esse vestido é a coisa mais elegante que já vi
desde que deixei Baltimore, e a senhora está maravilhosamente graciosa
nele. Não poderia encontrar melhor modelo para suas habilidades além de
seu próprio rosto e corpo.
Me senti ruborizar e olhei para baixo, feliz porque Reiner estava
conversando com o tio e não pôde nos ouvir. Ele definitivamente teria algo
a dizer sobre aquele comentário. Era provável que não fosse elogioso ao sr.
Poulton, de quem ele não gostava.
— Se eu fosse um homem de sorte… Mas aí está, corro o risco de falar
demais. — O sr. Poulton analisou sua taça de vinho, que estava dois terços
cheia. — Bebi apenas alguns goles dessa boa safra por uma questão de
educação, mas me sinto um pouco zonzo estando em sua companhia. Terei
que encontrar outra oportunidade para repetir o experimento, sem a bebida
da próxima vez.
A sra. Calderwood havia se levantado, então no momento em que o sr.
Poulton terminou sua frase, estávamos todos de pé. Tomei o braço de
Reiner – ele tinha me levado para o jantar – e dei uma resposta evasiva a
seu comentário de que eu parecia um tanto acalorada.
Na verdade, eu estava brilhando – e não tinha nada a ver com minha
taça de vinho intocada. O sr. Poulton era perigosamente atraente, ainda mais
porque estava com frequência distante, como era adequado a nossas
diferentes posições no seminário. A amizade calorosa de Reiner Lehmann
era agradável, mas eu estava começando a viver pelas pequenas atenções
que recebia do sr. Poulton de vez em quando – e esse fato me preocupava.
1873

Capítulo dez

Acidente
— Espero que ela não fique muito desapontada. — Lancei um olhar
para a construção imponente na nossa retaguarda, seguindo para a extensão
branca diante de nós.
— Você pode fazer um boneco de neve com sua filha mais tarde. — O
sr. Poulton (ou Judah, como me pediu para chamá-lo), pôs a mão sob meu
braço para me conduzir em direção ao trenó que aguardava. — Irá deixar os
caprichos de uma criança pequena dirigirem sua vida? Tenho o trenó apenas
por algumas horas.
Olhei para a condução, levada por um único cavalo. O animal, que
parecia tão nervoso quanto eu, mostrou as partes brancas de seus olhos e
curvou as orelhas para trás.
— Aquele cavalo está bem? — perguntei.
— Perfeitamente. É um animal jovem e um tanto desacostumado a
puxar um trenó leve como esse, mas eu o trouxe aqui de Springwood sem
nenhum problema. Persuadi Shemmeld a comprar um trenó de velocidade
adequado ao invés de reformar sua carroça com esquis – bonito, não é?
Perfeito para um passeio agradável. E irá fazer o dinheiro valer a pena com
os favores que os rapazes deverão a ele.
— Tudo que precisa é de alguns casais jovens — murmurei enquanto
Judah me ajudava a entrar no transporte.
— Eles virão. — ele tinha uma audição excelente. Ele arrastou-se para
dentro do trenó e acomodou a manta grossa sobre nossos joelhos. Eu podia
sentir seu corpo perto do meu, flexível e esbelto. — As propriedades por
aqui estão repletas de jovens que vieram para cá quando crianças. Agora
que Springwood está começando a se tornar uma cidade, estão procurando
por entretenimento honesto. — Ele sorriu e tomou as rédeas, cada
movimento exalando confiança. — Estamos liderando o caminho.
— Nós não somos um casal.
Agarrei a lateral do trenó enquanto partíamos. O transporte leve
deslizava sobre a neve gelada com uma suavidade incrível. Os lados do
trenó eram baixos, dando a impressão de que estávamos voando sobre o
manto de branco cintilante.
— Você ficaria melhor acomodando o braço sob o meu. Não afetará
minha condução se continuar parada. Por que tem tanto medo da neve? —
Judah olhou para mim sob os cílios pretos e longos. —É do meio-oeste,
afinal de contas.
— Sim, mas… — Enfiei uma mão sob o cotovelo de Judah, sentindo-
me segura pela firmeza do osso e do músculo. — Meu pai morreu
congelado na neve quando eu era apenas uma criança. Costumava ter
pesadelos sobre perdas e frio e não ver nada além do branco ao meu redor.
— É mesmo? — Judah inclinou a cabeça e me lançou um olhar
distante de um filósofo natural examinando um espécime particularmente
interessante. — Sinto muito em ouvir isso.
— Você não tem medo de nada?
A testa lisa se franziu numa perplexidade evidente.
— Medo? É claro que não. Não faz sentido nenhum ter medo.
— Oh. É sua fé que o faz dizer isso?
Ele franziu o cenho de novo e então deu uma risada breve.
— Minha fé? Oh, isso; bem, suponho que ajude. Eu só quis dizer que
emoção é um gasto de energia para o qual tenho pouco tempo. É para tolos
e fracos.
Enrijeci.
— E qual eu sou, uma tola ou uma fraca?
— Você é uma mulher. — Senti o tremor de uma risada o percorrer. —
E agradável de se olhar, especialmente quando não tem uma criança e uma
imbecil agarradas a suas saias. Beleza, sensatez e talento como os seus
deveriam ter um palco maior.
— Tess e Sarah não são um fardo para mim. — Comecei a tirar minha
mão que estava sob o braço de Judah, apenas para agarrá-lo com mais força
com um grito quando o trenó passou por cima de uma elevação.
— Vi que recebeu uma nova carta esta manhã. — Judah bateu o
chicote no garrote do cavalo e o animal seguiu mais rápido. A sensação de
velocidade era tanto assustadora quanto empolgante e, se não fosse pela
neve, eu poderia estar me divertindo.
— Sim, meu amigo, o sr. Rutherford, escreveu para mim — falei mais
para me distrair do que por qualquer outra coisa. — Ele está preocupado
com a condição dos bancos. Queria me garantir que tomou providências
para proteger meu pouco capital.
— O que ele diz sobre os bancos?
— Que haverá problemas à frente se o valor da prata continuar caindo.
— Ele é um defensor da prata, então?
— Nãooo. — Me segurei com firmeza enquanto entrávamos numa
curva longa e suave. — Ele não acha que aumentar o suprimento de
dinheiro seja uma boa ideia, se é o que quer dizer.
— Basicamente sim. Mais dinheiro quer dizer mais gasto, um clima
favorável para um comerciante como seu amigo.
— Ele acha que por nenhum sistema ser proveitoso, torna a maioria
das pessoas menos ricas. E diz que se os bancos começarem a falir, são os
pequenos investidores, como eu, que irão sofrer. Ele fala que os
investidores da ferrovia provavelmente perderão bastante. — Respirei com
mais tranquilidade quando deslizamos até parar. Minhas bochechas doíam
no ar gelado. — Ele é terrivelmente habilidoso com dinheiro, então farei
bem em ouvi-lo.
— E tem o poder sobre seu dinheiro, então, de qualquer forma, você
não tem escolha.
— Não preciso escolher. Confio completamente no sr. Rutherford.
Vamos voltar? — Eu olhava com ansiedade para a mancha no horizonte que
representava meu único ponto de referência e segurança neste deserto de
neve. Tínhamos ido na direção oeste do seminário, para o vazio. Ainda que
houvesse muitas fazendas e propriedades rurais espalhadas pelo sul e leste,
onde ficava Springwood, as planícies abertas se estendiam infinitamente
para o oeste, como se estivéssemos às margens da civilização. Eu sabia
sobre a Califórnia além das grandes Montanhas Rochosas e todas as cidades
mineradoras e quilômetros de trilhos de ferrovias que estavam crescendo a
oeste, mas quando postos à frente do grande vazio de terra diante de mim,
era difícil acreditar que existiam. Estremeci.
— Não estamos indo muito longe, estamos? O seminário está quase
fora de vista.
— Precisamente, e estou atento ao decoro, Nell. Não seria adequado
levá-la tão longe ao ponto de não poderem nos ver. Você acha que nossa
pequena excursão não está sendo observada?
— Sei que está. Tudo que faço aqui é observado e julgado.
E também me desconcertava que Judah soubesse que eu havia recebido
uma carta naquela manhã, mas suponho que não seja surpreendente. E
pensar que eu imaginei que seria menos notável na fronteira. Algumas
vezes ansiava pelo anonimato de uma cidade grande como Chicago. E sua
ausência de natureza. Lá, Martin me contou, haviam despejado a neve em
enormes pilhas, como o incômodo que era. Aqui, dominava a paisagem
como uma grande criatura branca.
— Bem, espero que estejam observando enquanto te levo de volta. Vou
mostrar a eles o que este trenó pode fazer. Opa, vamos lá! — Ele sacudiu o
chicote e o cavalo quase pulou para frente.
Era rápido demais, porém ao menos o seminário estava se
aproximando novamente. Comecei a relaxar, permitindo que meu corpo
seguisse os movimentos do de Judah, fazendo pequenos deslocamentos em
minha posição enquanto balançávamos sobre a grama escondida e as leves
subidas e descidas da pradaria. Talvez não fosse tão ruim, afinal de contas.
O trenó cambaleou violentamente para a esquerda. Eu não tinha certeza
de como havia chegado lá, mas, no momento seguinte, senti-me derrapando
em gelo seco, a grama seca sobre a qual a neve tinha se depositado,
arranhando meu rosto. Devo ter aberto minha boca de assombro e a neve a
preencheu, me engasgando por um momento. Eu estava cega e surda, e o
mundo todo pareceu me atacar. Algo duro atingiu meu quadril direito num
golpe de raspão e joguei os braços por sobre a cabeça, sentindo uma força
impetuosa arrastar por cima de mim.
Então eu pude ver e ouvir. Como havia rolado de costas, meu primeiro
pensamento era o quanto o céu estava azul.
— Nell!
A voz parecia tão distante. Era Martin? Eu estava machucada? Meu
pensamento seguinte foi Sarah e um arrepio que não tinha nada a ver com a
neve me percorreu. Tossi e balbuciei, tentando desesperadamente me erguer
do amontoado de grama escorregadia e da neve gelada. Sarah estava
comigo?
— Sarah! — Minha tentativa de gritar terminou com uma tosse e me
engasguei, sentindo minhas entranhas se agitarem enquanto lutava por ar.
Onde estava Sarah?
Eu não conseguia ver o horizonte, percebi. Não conseguia ver nada –
nenhum prédio, nenhuma pessoa, apenas neve, grama e o céu. Por um
momento paralisador, acreditei estar completamente sozinha, perdida numa
imensidão congelada.
Então houve uma enxurrada de neve ao meu lado e Judah estava ali.
— Onde está Sarah?
Ele pareceu confuso e gritei minha pergunta de novo. Por que ele não
entendeu?
— Sarah? Está no seminário, suponho.
— Não… não. — Meus olhos estavam repletos pela visão de minha
filha flutuando no ar. — Ele a jogou…
Cambaleei para ficar de pé, meu ombro irradiando uma dor para meu
peito, meu quadril com uma dor entorpecente. De repente, o mundo se
ajustou e percebi que estava parada num buraco de cerca de um metro de
profundidade, com as planícies brancas se estendendo além. Eu girei e
então me arrependi da ação, já que o mundo continuou rodopiando. Caí de
joelhos e engoli a bile que de repente preenchia minha boca.
— Nell. Nell. — Judah ajoelhou ao meu lado, gentilmente colocando
as mãos em minhas axilas e me erguendo. Gritei de dor e ele aliviou a
pressão, mas a essa altura eu estava me endireitando por conta própria.
— Nell, sua filha não está aqui, eu juro. Você a deixou no seminário
com a srta. O’Dugan, não se lembra? Saímos para passear de trenó.
Me virei e agarrei o objeto mais próximo, que acabou sendo Judah
Poulton. O mundo recuperou o foco e agora eu via o seminário, sua fachada
de arenito refletindo uma luz amarela na neve abaixo. Bem mais perto,
estava o trenó parado, o cavalo com a cabeça abaixada até a neve,
procurando grama.
Tirei e joguei de lado uma luva, levando a mão trêmula à boca,
sentindo o gosto de bile e café. Meu estômago se revirou, mas respirei
fundo, desejando que o mundo permanecesse estável. Me afastando de
Judah, apanhei um punhado de neve limpa, apertando-a até formar uma
bola que eu pudesse mordiscar para sentir seu gosto fresco. Judah me
observou com uma expressão mais de alerta do que preocupação.
— Onde está machucada? Consegue andar?
Ensaiei dois ou três passos, gesticulando para que Judah viesse para
meu lado direito, a fim de poder segurar seu braço com minha mão boa.
Sim, eu conseguia andar. Parei por um momento e pus a mão
cautelosamente no quadril, tateando em busca da dor. A localizei na parte
saliente do osso do quadril.
— Apenas um machucado aqui. — Tentei erguer meu braço esquerdo
um pouco e estremeci. — Meu ombro dói. — O senti com minha mão
direita, encontrando uma área grande e sensível que pulsava sob meus
dedos.
— Consegue mexer seu punho e o cotovelo? — Judah tirou minha luva
esquerda e observou enquanto eu fazia os dois movimentos. Descobri que
podia erguer mais meu braço do que antes, como nada mais além de um
pequeno desconforto. Àquela altura, eu tremia de frio, minhas mãos num
tom vermelho puro.
Judah se aproximou de mim e, tirando as próprias luvas, envolveu
minhas duas mãos nas suas. Meus dedos longos e fortes não foram muito
envelopados pelos dele, principalmente como proteção, mas sua pele quente
era um conforto. Ele me puxou para si e fui, pressionando meu rosto em seu
ombro para tirá-lo do vento e pelo conforto da lã de suas roupas de encontro
a minha pele sensível.
Ficamos assim por alguns minutos e, gradualmente, senti meu tremor
passar.
— Nós atingimos a beirada da ravina — Judah disse encostado em
meu cabelo. — Com o esqui traseiro. A luz incidia no lugar certo, então não
vi. Você clicou como uma bolinha de borracha e o esqui quase a atingiu.
Pensei, por um momento, que o trenó iria cair em cima de você.
— Acho que o esqui de fato me atingiu — falei, massageando meu
quadril o melhor que podia enquanto ainda estava fechada no círculo dos
braços de Judah. — Graças aos céus não caiu também.
— Nós teríamos capotado, com certeza — Judah concordou. —
Escolhi o curso de ação lógico e me joguei para a direita. Estalei com força
o chicote no cavalo e ele pulou como um grilo; aquilo colocou o trenó no
prumo. — Ele fez esse relato econômico e imparcial em um tom pouco
emotivo e então deu um passo para trás. — Está aquecida? Se puder
caminhar agora, devemos retornar. Tenho certeza de que nosso acidente não
escapou à atenção de todos no seminário.
Com toda a certeza, eu podia ver alguns rapazes correndo em nossa
direção. O sol brilhava sobre uma cabeça loira à frente do grupo e eu pensei
ter reconhecido o trote fácil de Reiner, rápido, apesar da neve. Me endureci
contra as dores em meu corpo e dei alguns passos para a frente e então,
caminhando com mais facilidade, mais alguns passos num ritmo mais
rápido. Quando os alunos nos alcançaram – Reiner de fato à frente –
tínhamos chegado ao trenó, o qual eu olhava com receio. Queria ainda
menos entrar nele agora.
— Nell, sra. Lillington, está muito machucada? — Reiner estava sem
chapéu e vestido com as roupas de ambientes fechados, assim como os
outros alunos. Estavam todos ruborizados pela corrida e pareciam uma
matilha de filhotes saudáveis. Sua pergunta suscitou um coro de
comentários:
— A senhora voou pelo ar como uma coruja, juro por Deus!
— Que visão!
— O sr. Poulton é um condutor melhor que qualquer cocheiro que já
vi, essa é a verdade.
Três dos alunos correram até o cavalo para checar suas condições. Ele
estava batendo as patas na grama enterrada de uma maneira determinada,
então eu não me preocupei. Um garoto fez uma demonstração
inspecionando o trenó, escrutinando os esquis e o equipamento como se
estivesse prestes a cobrar pelos reparos.
— Ei! — Um garoto magricela de cabelos escuros nos chamou, sua
voz mudando de tom assustadoramente do áspero ao estridente enquanto
falava. — Há um corte no flanco deste cavalo, de cerca de um centímetro
de profundidade. Vi que o senhor lhe deu um golpe, sr. Poulton, parece que
exagerou.
Houve um coro de aprovação a esse comentário, mas o garoto alto
olhava para Judah com um ar duvidoso. O vento aumentou e comecei a
tremer.
— Precisamos voltar — disse Reiner. — Ajudarei a sra. Lillington a
entrar no trenó.
— Eu prefiro caminhar. — O seminário estava a cerca de quatrocentos
metros de distância e a ideia de andar de trenó revirava meu estômago. —
Irá aliviar meu quadril se caminhar um pouco. — Minha cabeça tinha
começado a martelar, lenta e pesadamente, como as batidas de um tambor
distante.
Reiner, com um olhar para Judah, tomou meu braço e me apoiei nele,
considerando sua robustez confortante. Ele não parecia se preocupar com o
frio de forma alguma. Eu podia sentir o calor irradiando de seu corpo
jovem, seu passo firme e regular enquanto combinava o ritmo com o meu
mais lento.
Judah assentiu e içou-se para dentro do trenó em um movimento suave.
Um dos garotos lhe entregou o chicote, que estava abandonado na neve e,
sem uma palavra, o estalou alto no ar, bem acima do cavalo. O animal se
deslocou, sem nenhum sinal aparente de desconforto, o trenó correndo
rápido sobre a neve, com o resto de nós marchando atrás.
— Eu poderia jurar que ele bateu no cavalo depois que o trenó se
endireitou — o garoto alto disse.
— E se ele o fez? — perguntou um garoto atarracado e gorducho que
estava chutando as pernas pela neve com grande alegria, as mãos nos
bolsos. — Ele deve ter ficado morto de susto.
— Não ele. — O outro rapaz puxou o casaco – eu o tinha feito para ele
em maio – ao redor de si o mais apertado que conseguiu. Com um lado
administrativo estranhamente desapegado de minha mente, notei que
precisava de outro com mangas mais compridas. Suas orelhas protuberantes
brilhavam rubras no frio. — Nunca vi um camarada mais frio, exceto
quando eu assistia a condução do gado. Você viu a forma como o trenó
inclinou; iria passar por cima, com certeza. Não acho que nem um homem
em dez poderia ter feito o que ele fez.
Seu tom de admiração reverente fez os outros garotos rirem. Uma certa
dose de provocação bem humorada acompanhou a caminhada acelerada de
volta na direção do seminário, sem mencionar as ocasionais bolas de neve.
Reiner e eu andávamos mais lentamente para acomodar meu quadril
machucado.
— Você me deu um belo susto. — Reiner baixou a voz para que não
fosse ouvido pelos outros.
— Oh, não estava nem de perto tão assustado quanto eu. Não gostei do
trenó nem mesmo antes de voar para fora dele.
— Então por que foi passear nele?
Dei de ombros e então estremeci quando meu ombro esquerdo
lembrou-me do machucado.
— O sr. Poulton insistiu.
Reiner estreitou os olhos para mim.
— E o que o sr. Poulton diz é lei? Você gostou quando ele te abraçou
em plenas vistas do seminário? Todos nós vimos — acrescentou
desnecessariamente, seu aperto em meu braço mais firme.
Suspirei.
— Não foi um abraço. Ele estava me aquecendo.
— Com certeza pareceu um abraço para mim.
Olhei de soslaio para Reiner, surpresa pela amargura em seu tom. Um
rubor havia aparecido em suas bochechas que não tinha nada a ver com frio
e seu rosto acolhedor e agradável estava franzido com escárnio.
— Reiner — eu disse com gentileza —, não há absolutamente nada de
romântico em ser jogada para fora de um trenó na neve, acredite em mim.
Judah Poulton não está me cortejando e não estou encorajando-o a fazê-lo.
Não estou encorajando ninguém a me cortejar — finalizei, enfatizando. —
Por favor, não diga coisas assim.
— Ora, sinto muito. — Reiner recuperou-se de seu mau humor com a
graciosidade fácil de uma criança e pareceu envergonhado com sua
explosão. Eu não disse nada, mas segurei seu braço com firmeza, enquanto
completávamos a caminhada até o seminário em silêncio.
Capítulo onze

Pancadaria
28 de março de 1973
Querida Nellie,
Alguém já te parabenizou por sobreviver ao seu primeiro ano no
Seminário Vida Eterna? Não obstante os passeios de trenó. Ainda assim,
suponho que depois de seis semanas seu ombro já esteja curado e posso
parar de me preocupar. Eu me preocupo, sabe – e gostaria de ter tempo de
sair e visitar minha amiguinha.
Obrigado por suas condolências quanto ao falecimento da inigualável
Tabitha Stone. É claro, ela não é minha governanta já há algum tempo.
Apesar de suas objeções, consegui persuadi-la a aceitar uma pensão
honrada no final. Eu a visitava com frequência e sentirei falta de sua
afeição maternal e seu querido e velho rosto, belo em sua maciez enrugada
e seu halo de puro cabelo branco.
Tive o grande prazer de ver sua antiga governanta, Bet, na visita que
fiz a Tabby. Vou te segredar que está mais robusta que nunca, mas direi em
voz alta que está com excelente saúde e deleitada com suas cartas contendo
as histórias de Sarah. Também fui de alguma ajuda para ela depois do
funeral, tirando seu dinheiro das ferrovias para águas mais seguras. Sim,
ainda estou preocupado com as ferrovias – há especulação demais.
Meus generosos parabéns por ter ganhado mais clientes de costura. As
damas de Springwood estão claramente entusiasmadas por uma jovem
dama tão talentosa esteja entre elas. Estou impressionado com sua
contabilidade e o dinheiro que tem enviado é um bom acréscimo ao seu
capital. O anexo te mostrará exatamente o quanto. Entre a sua perspicácia
para os negócios e meu acesso aos mercados, está construindo um ótimo
pequeno pé de meia que pode um dia representar o preço de sua própria
casa. E pode ser que esteja certa sobre não precisar de um marido.
Eu me oponho à sua presunção de que nunca paro de trabalhar – eu
paro, de fato. Passo um número suficiente de noites com a boa sociedade,
parte dela encantadora. Comprei um novo cavalo para andar pela cidade,
um malhado cinza esplêndido chamado Cavalheiro. Além disso, recebi
alguns convites para caçar e pescar nas casas de campo de alguns dos
comerciantes. Me disseram – alguns deles – que meu antigo ar de vendedor
provinciano já desapareceu. Estou mortificado de pensar que posso ter
parecido provincial.
No meio da minha vida atribulada, penso em você com frequência,
aninhada na bela planície com Sarah e Tess. Como deve ser tranquila e
calma a sua vida.
Seu, às pressas,
Martin

O burburinho das vozes dos alunos era tão alto que eu não conseguia
entender o que estavam dizendo. Mal pude me espremer para o corredor
com a pressão dos corpos; toda a escola parecia estar lá. Que raios
acontecera enquanto Tess e eu estávamos em Springwood?
Temendo outra morte nas escadarias ou – o pensamento me inundou
como um banho gelado – algum acidente envolvendo Sarah, empurrei os
garotos à minha frente o mais forte que pude. Sem perceber quem era, s
naturalmente empurraram de volta. O humor geral, percebi, não era de
tragédia, mas de uma empolgação selvagem, difusa e incansável em sua
natureza. O cheiro pungente de uma multidão de homens jovens – suor,
poeira e a alegre vontade de considerar a impossibilidade de banhos diários
como uma desculpa para se lavarem o mínimo possível – quase se
sobrepunha aos aromas de pão fresco, porco salgado e feijões assados.
— O que está acontecendo? — gritei no ouvido do aluno mais
próximo, cutucando seu braço com força para chamar sua atenção. —
Alguém machucado?
— Uma briga — proclamou num tom extasiado. — Uma briga
magnífica. Não viu? Foi esplêndido. — Parecendo perceber de repente que
eu não era um homem, ele se empertigou e assumiu uma expressão mais
respeitosa, então relaxou. — Oh — ele disse — a senhora não é a
costureira?
Estreitei meus olhos e fiz a melhor imitação de mamãe quando um
negociante, vendo uma viúva pequena e delicada estava menos que pronto a
oferecer um bom serviço.
— Meu jovem — o cutuquei na lateral — onde estão seus modos?
Deixe-me passar de uma vez. — Ele era apenas cerca de três anos mais
novo que eu, mas não importava.
O emaranhado de humanidade masculina pressionando e empurrando
abriu-se como o Mar Vermelho e eu forcei a passagem, não sem um sorriso
presunçoso. Talvez eu estivesse me tornando mais enérgica com a idade,
pensei. Mas o sorriso se dissipou como uma névoa no outono enquanto eu
considerava a cena que se apresentava.
O sangue estava respingado pelo mármore preto e branco do corredor.
Judah Poulton sentava-se ao pé da escada, o lábio partido e inchado, os
olhos quase pretos de raiva. Um pequeno grupo de alunos estava ajudando
outra pessoa a se levantar; ele moveu-se com dificuldade, como se suas
costelas doessem.
Era Reiner. Ele tinha levado a pior, ainda que fosse mais alto e mais
largo – sem mencionar mais jovem – que o professor. Um jorro de sangue
descia por seu nariz e boca, manchando a frente de sua camisa e
escurecendo a lã do paletó. Seu nariz já estava inchando e um corte sobre
um olho abria-se.
Os Calderwoods estavam parados em silêncio na porta da capela. O dr.
Calderwood tinha uma expressão envergonhada, mas a sra. Calderwood
estava no auge de uma raiva tão aguda que tremia até o topo de seu cabelo
preso para cima. Vendo Reiner de pé, deu quatro passos à frente, apontando
um dedo pequeno na direção dele e então para si mesma. Ao ver que ele
interpretou o gesto corretamente e moveu-se para frente, fez uma indicação
similar a Judah. Ele cumpriu num passo lento, evitando cuidadosamente as
gotas de sangue.
A sra. Calderwood jogou a cabeça para trás, fitando os dois homens
com um olhar sem expressão. Ela não disse nada por ao menos três
minutos, vibrando como uma chaleira gerando um topo de espuma. Judah e
Reiner olharam incisivamente para todo lugar, exceto um para o outro.
Quando a sra. Calderwood encontrou a fala, expressou-a em uma única
palavra:
— Vergonhoso! — Os garotos, que tinham todos ficado em silêncio
quando ela deu um passo à frente, reconheceram a palavra com movimentos
dos olhos uns para os outros, mas permaneceram imóveis.
A sra. Calderwood vibrou de novo.
— Vergonhoso! — Ela olhou para Reiner, que estava manchando o
rosto de sangue lateralmente, numa tentativa de limpar as cavidades nasais.
— Atacar-um-professor.
As palavras saíram através dos dentes cerrados, como se estivesse
relutante em colocá-los em contato com os lábios.
— E sr. Poulton — seus olhos assumiram um matiz de incompreensão
—, bater num aluno? Com mais força, aparentemente, do que ele bateu em
você?
Reiner havia ficado num tom de vermelho opaco, em contraste com o
sangue. Judah, se possível, ficara ainda mais pálido, mas falou primeiro:
— Nós tivemos um desentendimento. Nós… nós deveríamos ter
resolvido lá fora.
— E qual, céus, era o assunto deste desentendimento? — O nariz da
sra. Calderwood estava franzido, como se tivesse descoberto um cheiro
ruim. Atrás dela, o dr. Calderwood permanecia impotente, as mãos enormes
pendentes nos lados do corpo.
Judah, nesse meio-tempo, fitava Reiner com um olhar de intenso
desgosto e algo um pouco como triunfo. Reiner olhou para seus sapatos, e
foi Judah quem falou.
— Um assunto privado. — Seu tom era uniforme, razoável, e parecia
ter recuperado a compostura. Ele mirava bem à frente, não evitando os
olhos da sra. Calderwood, mas não exatamente olhando-a.
Decidi que era o momento de fazer a pergunta lógica.
— Quem deu o primeiro soco?
Minha voz soou alta e clara no espaço ecoante, e senti centenas de
pares de olhos virarem-se para mim. Eu podia sentir – obviamente não
podia ver – Tess atrás de mim, sua aflição irradiando para fora. Tinha
certeza de que essa aflição era por Reiner; ela não gostava de Judah.
A multidão atrás de mim se moveu.
— Lehmann — surgiu uma voz adolescente, esganiçada, do centro.
— Ele deu um dos bons — concordou outra voz.
— Mas Poulton luta como um apache — foi o comentário suave atrás
de mim, à esquerda. — Nenhum vaqueiro no encalço faria melhor. — A
observação não foi ouvida em geral, mas aqueles que de fato escutaram
emitiram pequenos grunhidos de concordância. Eu não sabia se os garotos
estavam expressando admiração ou desaprovação; mas sendo garotos,
provavelmente o primeiro.
Os cheiros da cozinha tinham ficado mais fortes, se sobrepondo até
mesmo à essência masculina concentrada. Os criados se aproximaram pela
parte de trás da multidão, pairando próximos ao dr. Calderwood e lhe dando
olhares significativos.
— Minha cara — disse o doutor —, vamos dispensar os rapazes para
que vão ao refeitório. Não há por que deixá-los famintos. — Seu próprio
estômago emitiu um ronco alto neste momento. Seus dentes exibiram um
sorriso embaraçado que desapareceu instantaneamente quando sua esposa
se virou.
— Vocês ouviram o doutor — disse aos garotos mais próximos. —
Dispensados, rápido, e não ousem fofocar sobre isso. Lembrem-se que estão
sendo treinados para serem os servos do Senhor, e fofoca é pecado.
Os alunos se embaralharam a caminho do refeitório, abrindo um
espaço amplo para Judah, Reiner e as várias manchas de sangue coagulado.
Paralisada pela curiosidade e apreensão, eu não os segui. Tess cutucou meu
braço.
— Sary — disse suavemente.
— Eu sei — respondi —, mas…
— Acha que isso tem alguma coisa a ver com você, sra. Lillington? —
A voz da sra. Calderwood atravessou minha hesitação.
De fato, passara pela minha mente que talvez de fato tivesse algo a ver
comigo – que talvez estivessem brigando por mim – por isso, senti meu
rosto ficar quente.
— É claro que não. — A mentira direta era preferível a explicar por
que eu pensaria que poderia ser o objeto de uma altercação.
— Então por que, céus, ainda está aqui? Curiosidade vulgar ou
pretende tratar dos machucados?
Pelo canto do olho, vi a sra. Drummond se aproximando, seguida pelo
criado chamado Andrew, que segurava um esfregão e um balde. Saí do
caminho, esbarrando em Tess. Disparei um olhar apologético tanto para
Reiner quanto para Judah, ainda que não fizesse ideia do porquê. Algum
deles iria pensar que eu deveria enfaixar seus ferimentos? Me virando,
apressei-me na direção do refeitório, com Tess em meus calcanhares.
Eu estava sentada há apenas um momento, tendo pegado Sarah dos
braços da filha de Dorcas, Bella, quando o professor Wale abriu o caminho
em nossa direção.
— Pancadaria — disse com satisfação. — Ainda que eu desejasse que
o rosto bonito de Poulton tivesse sofrido um pouco mais.
Dei um olhar de censura para ele, mas uma nova onda de curiosidade
sufocou minha indignação.
— O senhor sabe por que estavam brigando? Reiner se tornou um
defensor ardente das lições de Darwin?
Os olhos do professor Wale se enrugaram, divertidos.
— O sr. Lehmann, a quem vejo que a senhora está tratando pelo
primeiro nome, não se importa nem um pouco com Darwin ou qualquer
outro princípio, até onde sei. Me impressiona infinitamente que tenha se
inflamado o bastante sobre qualquer assunto a ponto de dar um soco. Achei
que talvez a senhora… — Ele girou o dedo em minha direção, suas
sobrancelhas arqueadas de forma interrogativa.
— Definitivamente não. — Me fiz soar mais certa do que me sentia.
— Bom. Ainda que Lehmann seja um rapaz bom o bastante, apenas
um pouco vago sobre suas aspirações. É claro, com uma esposa e filhos
para quem trabalhar, ele pode se sair bem o suficiente.
Ele me deu um sorriso malandro, o qual respondi com o que eu
esperava ser uma expressão branda, despreocupada, mas então seu rosto
anuviou.
— Poulton, no entanto… — Ele sacudiu a cabeça, franzindo o cenho.
— Não gosto dele também — veio uma vozinha atrás de mim. Tess
tinha se sentado e estava mastigando um pão de milho, ainda que ninguém
houvesse dado graças até então. Os Calderwoods estavam ausentes do
escritório.
— Tess — eu disse com reprovação gentil.
— Bem, não gosto. Ele olha para mim como se eu cheirasse mal e
nunca presta qualquer atenção a Sary. E ele derrubou você para fora do
trenó…
— …e é um fanfarrão presunçoso, além disso — concluiu o professor
Wale com um sorriso. Tess assentiu sabiamente, com a boca cheia.
— Vocês estão sendo ridículos. — Acomodei Sarah na cadeira. —
Professor Wale, não é melhor que faça a oração? Os alunos estão ficando
inquietos e alguém precisa assumir a liderança.
— Não gosto dele — Tess disse com teimosia enquanto o professor se
afastava. — E queria que não gostasse dele também. Mas suponho que não
vá me ouvir.
Capítulo doze

Questõ es mundanas

1 de julho de 1873
Querido Martin,
Sua última carta me deixou perplexa. Primeiro de tudo, como pode
meu capital ter aumentado tanto em um tempo tão curto, enquanto, para a
maioria das pessoas, está se tornando uma situação caótica e
desaparecendo? E que raios os mercados europeus têm a ver com isso?
Tentei dar uma olhada no Chicago Tribune – ele chega aqui irregularmente
e com alguns dias de atraso, mas chega – e consegui encontrar poucas
pistas para o mistério.
Devo dizer-lhe que apesar de minha posição como costureira, recebi
ultimamente convites para a biblioteca para passar um tempo à noite com
alguns membros do corpo docente e alguns dos alunos mais velhos. São
noites terrivelmente entediantes no todo, mas não sinto que eu possa
recusar. As pessoas leem os jornais nos pormenores e então os discutem,
como forma de melhorar nosso conhecimento sobre o mundo do lado de
fora do nosso pequeno enclave. Tais leituras e discussões das questões
mundanas nem sempre encontram-se com a aprovação da sra. Calderwood,
mas é uma tradição sagrada iniciada na época do professor Adema e
alguns membros do corpo docente ainda insistem nela.
A outra causa de perplexidade é que fala muito pouco sobre si mesmo
em suas cartas. O que tem feito? Como tem passado suas noites? Não estou
de forma alguma entediada em saber sobre jantares e soirées musicais e
coisas assim. Na verdade, gostaria que você descrevesse cada detalhe,
especialmente o que as damas usam.
Algumas vezes sinto que está escondendo metade de sua vida, e não
posso imaginar por que isso aconteceria. E – bem, está realmente tão
ocupado que não consegue encontrar um tempo para viajar ao Kansas? Já
faz um ano e três meses desde a última vez que o vi, Martin, e sinto sua
falta.
Vou parar de escrever agora porque estou exaltada e choramingando
como uma criança. Está quente e estou me sentindo entediada.
Sua,
Nell.

“Oh! o futuro luminoso, bem-aventurado


No reino além dos céus!
Oh! a reunião feliz, abençoada
Com os amados vamos concretizar.
Se nos curvarmos com gentileza – não murmurar;
Suportar a cruz e usar a coroa;
Pisar com o passo firme, crescente;
Cada ressentimento mesquinho derrubado;
Se apenas amarmos uns aos outros,
E a tentação jamais voar,
Assim como é ao homem indicado,
Uma vez, e apenas uma vez, morrer.
Caridade e verdade salvo o estudo;
Erros dos outros humildemente repreender;
Anjos sagrados então vão nos conduzir
Com segurança até o outro lado.”

O painel de madeira e o teto em grades da biblioteca do seminário


absorviam mais do que reverberavam a voz de Judah enquanto ele lia. No
entanto, sua voz de tenor era agradável de ouvir, diferente de sua escolha de
tema de leitura. O poema longo havia conjurado muitas instâncias da morte,
incluindo aquela de uma jovem criança, e o considerei depressivo, apesar de
seu final açucarado.
Não para a sra. Calderwood, que aplaudia com deleite.
— Sentimentos tão nobres — ela se emocionou. — Tão adequado nos
lembrarmos que a morte está próxima e é nosso dever cristão
permanecermos reconciliados com os outros em vida para que Deus não nos
abata numa condição de imoralidade.
Ela olhou com intenção para o professor Wale e Reiner, que estavam
sentados próximos um do outro do lado oposto da lareira vazia. Adiante
estava Judah, com a última cópia do Chicago Tribune em suas mãos.
— Mas a reconciliação impede uma discussão razoável? Me parece
que a raça humana nunca irá progredir se passarmos todo o nosso tempo
concordando uns com os outros — disse o professor Wale.
— Ele não diz isso. Diz que podemos humildemente repreender —
falou Judah, com um olhar para Reiner. — O escritor não iria, é claro,
esperar que as pessoas reagissem à crítica com violência.
Mordi o lábio, sem ter certeza se deveria rir ou gemer. Não houve
nenhuma retomada evidente das hostilidades desde que Reiner e Judah
haviam lutado um contra o outro três meses atrás, mas também não estavam
em termos amigáveis. Eu ainda tinha a sensação desagradável de que tinha
sido, de alguma forma, o motivo do desentendimento, ainda que nenhum
deles tenha mencionado a luta em minha presença.
— Mais alguém gostaria de ler? — Judah acenou com o jornal sobre a
cabeça. — Cedo meu lugar.
Para meu desespero, Reiner saltou de sua cadeira e pegou o jornal das
mãos de Judah com um sorriso travesso no rosto. Ele tinha o hábito
desagradável de procurar pelos parágrafos mais inflamados que pudesse
encontrar. Judah lhe lançou um olhar obsceno, mas se sentou de toda forma,
sem dúvidas sob a influência da contestação do poeta para rebater os
ressentimentos mesquinhos.
— Lerei a coluna de humor — Reiner anunciou para um coro de
gemidos e assobios. Enxuguei minha testa.
— Não leia, por gentileza, sr. Lehmann. Há pilhérias nesta coluna
escandalosa que são bastante inadequadas para jovens homens solteiros. —
A sra. Calderwood fixou Reiner com um olhar afiado. Ela tinha um ponto;
os humoristas do Tribune não eram conhecidos por serem magnânimos.
Reiner abriu um sorriso encantador para ela.
— E se eu exercer a discrição, sra. Calderwood? Não lerei nenhuma
piada sobre recém-casados ou… religião. Ainda que haja uma aqui… —
Reiner inspirou.
— Definitivamente não sobre religião, sr. Lehmann. — Mas o tom de
voz da sra. Calderwood tinha a doçura indulgente que invariavelmente
demonstrava a Reiner ou, na verdade, à fortuna de seu pai.
Reiner leu meia dúzia das piadas mais inofensivas, arrancando algumas
risadas e uma certa quantidade de discussão. É claro, os autores haviam
dirigido algumas delas às mulheres em geral, mas eu não achava que o
Tribune empregava mulheres escritoras, por isso estava acostumada a tal
bobagem.
— E aqui está uma sobre Darwin para o professor Wale. — Reiner
sorriu para sua audiência, agora bem animada. — Com um personagem,
além do mais. — Isso suscitou um punhado de aplausos, já que Reiner era
um mímico natural e suas vozes de personagens eram muito apreciadas. —
A parte figurativa diz… — Reiner iniciou com um sotaque irlandês,
enfiando os dedos dentro do colete. — Já que sou um homem, senhor, o que
importa para mim se meu tataravô era um macaco antropoide ou não,
senhor?
Comecei a me sentir inquieta. Olhei para o professor Wale, que estava
inclinado para a frente na cadeira, seus olhos como pedras negras e nenhum
traço do seu senso de humor de costume em seu rosto.
Reiner girou o polegar e o indicador e os ergueu na frente do olho, para
simbolizar um monóculo. Ele levantou o lábio superior para que os dentes
aparecessem e adotou um sotaque inglês exagerado.
— E a parte literal diz: “Oh, um tanto desagradável para sua tataravó,
não é?
Houve alguns roncos de diversão, mas não muitos. Todos os olhos
estavam na sra. Calderwood, que ficara vermelho-beterraba.
— Nojento. — Ela ergue-se e arrebatou o jornal das mãos submissas
de Reiner. — Um humor terrivelmente baixo e vulgar. O tipo de coisa que
pertence a um salão, Mr. Lehmann, não a um seminário. Daqui em diante,
cortarei a coluna de humor do Tribune antes que seja colocado na
biblioteca. — Seu cabelo tremia e ela parecia que iria falar mais, mas virou-
se em meio a um burburinho de protestos quanto à sua promessa de extirpar
o humor do jornal de Chicago.
Reiner enfiou as mãos nos bolsos, parecendo despreocupado, mas a
noite estava encerrada. Os rapazes começaram a levantar-se de seus
assentos e irem embora, abrindo passagem para a sra. Calderwood enquanto
ela saía do local, o jornal ainda amassado na mão.
— Precisava fazer aquilo, Reiner? — perguntei quando a maioria havia
partido.
— Não era sobre recém-casados ou religião. — Reiner deu de ombros.
— E não inventei a piada. Estava ali para todos verem.
— E muito apropriado para o ambiente. — A voz do professor Wale
destilava sarcasmo e os sulcos que se estendiam de seu nariz aos cantos da
boca estavam profundos. — Se eu não tivesse visto ou reverenciado a
reação da nossa presidente com meus próprios olhos, teria pensado que ela
gostou da piada. Os alunos que ficaram para o verão irão repassá-la aos
seus colegas mais jovens e provavelmente para um ou dois parentes
homens.
Ele virou-se para Reiner e seus olhos estavam frios.
— Não há nada pelo qual tenha respeito, rapaz?
Reiner estava quieto, encarando o professor com uma expressão que
beirava a insolência.
— Suponho que se divirta fazendo graça de mim e de tudo que acredito
— o professor continuou. — Você, é claro, é jovem e um dia será rico,
enquanto eu sou velho e sem dúvidas morrerei como um homem pobre.
Diferente de seu pai, passei minha vida a serviço da verdade.
Reiner ruborizou num tom vermelho pálido e seus lábios se crisparam.
— Deixe meu pai fora disso.
— E ele te deixa fora de seu conselho? Pois não parece ansioso em tê-
lo em casa.
— É escolha minha permanecer aqui – e, como sabe bem, professor,
não sou mais um aluno. Posso ser jovem, mas agora sou um membro júnior
do corpo docente. — Os olhos de Reiner lacrimejavam de raiva.
— Um membro bastante júnior e retido principalmente como um favor
a seu pai, presumo. Seu dom com linguagens é impressionante, claro, mas
lhe falta dedicação e a facilidade para o trabalho duro. E ainda assim, sem
dúvidas, vai se dar bem o bastante. É fácil fazê-lo quando o caminho foi
aberto diretamente para você. Boa noite, sra. Lillington. — Ele fez uma
mesura para mim, virou-se nos calcanhares e saiu, deixando Reiner com os
punhos cerrados e eu numa condição de certo assombro.
— O que foi isso? Eu nunca vi o professor não apreciar uma piada,
mesmo uma feita contra ele ou de mau gosto – e era de mau gosto. O que
ele quis dizer sobre seu pai?
— Papai teve alguns problemas. — Reiner enfiou mais as mãos nos
bolsos. — Nada que mais ninguém faça, comprando uns votos lá e cá, mas
a Baleia decidiu criar problema em relação a isso. Se ele não fosse tão
nanico, e um homem velho ainda por cima, iria sangrar seu nariz. — Ele
flexionou os ombros largos.
— Você não vai fazer nada do tipo. Agora, pelo amor de Deus, alivie
esse mau humor. Já deveria saber que dar murros nas pessoas não resolve
nada.
— Não comece. — Reiner parecia amuado.
Olhei ao redor da enorme sala.
— Pobre de mim, parece que somos os únicos que restaram. Vou me
recolher e se quiser o conselho de uma pessoa mais velha, não
necessariamente mais sábia — sorri para ele — com todos os seus onze
meses mais velhos que você, não leve esse mau humor para a cama.
Um meio sorriso envergonhado surgiu no rosto do rapaz.
— Suponho que eu consiga aguentar sua bronca. Especialmente – diga!
– se prometer vir num piquenique comigo. Você não perderia a
oportunidade de me animar, não é?
— Um piquenique? Quando?
— Sexta. Oh, diga que vai. Já é hora de fazer algo divertido.
— Mas sexta é quatro de julho.
— Precisamente. Andrew tem o dia de folga e disse que posso pegar a
charrete emprestada desde que eu devolva a tempo para os criados a
abastecerem para o jantar. Será nossa própria celebração de liberdade.
— E a de Sarah e Tess. — Eu não ia permitir ser levada pela planície
sem uma companhia. — Presumo que tenha a intenção de convidá-las
também.
— É claro. — Os olhos de Reiner eram lagos límpidos e azuis de
inocência. — Eu não sonharia em fazer diferente.
Pensei por um momento.
— Não vejo mal nisso.
O rosto de Reiner se iluminou como se o sol tivesse saído.
— Você é a melhor garota do mundo. — E, antes que eu pudesse
interrompê-lo, ele me deu um beijo rápido na bochecha. — Estarei ansioso
a semana inteira.
No momento em que chegou à porta, Reiner estava assobiando.
Deixada sozinha, bocejei e, cansada, comecei a apagar as lâmpadas. Os
criados não estariam por perto por um tempo e não era bom deixar uma
chama não vigiada na biblioteca. E, naturalmente, não havia ocorrido a
Reiner realizar uma tarefa tão braçal.
Bocejei de novo. Que discussão mesquinha por um assunto ridículo.
Sinceramente, aqueles cavalheiros tinham tempo demais à disposição.
Capítulo treze

Piquenique
— Um lugar excelente para um piquenique. — Estiquei minhas
pernas sobre a manta, curvando meus dedos dentro das sapatilhas leves de
verão. Eu não tinha precisado de botas, já que não caminhamos.
— Encontrei esse local quando estava caçando lebres — disse Reiner.
Ele observou Sarah, que estava fazendo movimentos ineficazes numa moita
próxima de girassóis imponentes com seu graveto. — A ravina e os
girassóis juntos deixam a pessoa sem fôlego e é perto da trilha. Lembro de
pensar naquele momento como seria bom trazer uma garota aqui.
Estava inclinada a ignorar seu sorriso, me perguntando quando
exatamente eu teria que dizer a ele que presumira demais. Se pensava em
me cortejar, estava bem distante da realidade. Havia decidido que gostava
bastante de Reiner – como amigo, e isso era tudo.
— Podemos colher girassóis, mamãe? — Sarah correu de volta para
mim, arrastando o graveto atrás de si. Com quase dois anos e meio, tinha
perdido quase completamente a gordura de bebê e tinha pernas fortes e
magras, costas eretas e um passo determinado. — Quero levar flores para
casa.
— Vou lhe dizer uma coisa, Sary. — Tess estava respirando com um
pouco de dificuldade, correr não combinava com ela. — Depois de
comermos, faremos uma boa caminhada pelos girassóis e colheremos um
buquê para mamãe.
— Ou vocês podem fazer uma caminhada agora e comeremos todas as
comidas. — Reiner estendeu os braços para Sarah, que desabou neles; pois
não ficava tímida com ele. — E vocês podem ficar com as migalhas que
deixarmos para trás.
— Não, mim não — Sarah disse zombeteira. — Reiner come migalhas.
— Ela cutucou o estômago dele. — Barriguinha gorda.
Reiner olhou para baixo, onde uma levíssima sugestão de uma futura
pança pressionava seu colete.
— Vocês, mulheres, pegam muito pesado. Muito bem, suponho que te
darei alguma comida. Netta embalou frango e ovos, qual deles quer
primeiro?
— Ovos — respondeu Tess, e então —; por que estão rindo? — Mas
ela começou a gargalhar também, só porque fazíamos o mesmo. Aquilo
instigou Sarah, então no fim estávamos todos rindo como idiotas um para o
outro por motivo nenhum. Era maravilhoso.
Me apoiei sobre meu cotovelo – um espartilho é ótimo para ajudar a
sentar ereta, mas difícil para o repouso – e observei Reiner desembalar a
refeição. Como os girassóis, o jovem parecia florescer sob o calor do verão.
Os raios de sol capturavam vislumbres de dourado em seu cabelo loiro e
haviam bronzeado seu rosto, deixando-o num tom agradável e suave
moreno claro que fazia o azul de seus olhos se destacarem. Ainda que não
fosse bonito, era agradável de se olhar e seria um bom marido para outra
garota.

Com a refeição consumida, Tess e Sarah partiram para sua expedição


de colher girassóis. É claro, quando se tem uma criança de dois anos de
idade, uma expedição prossegue lentamente, com muitos desvios. Eu era,
assim, capaz de aproveitar a visão delas por um longo tempo enquanto
Reiner, que recusou qualquer ajuda, fazia um trabalho minucioso de
limpeza.
Eu estava saciada e um tanto sonolenta, então Reiner arrumou minha
sombrinha para me fornecer um pouco de sombra, e nós dois nos deitamos
de costas para descansar. Ouvi o leve vupt de seu chapéu enquanto o
acomodava sobre os olhos e seu suspiro de satisfação espelhado em meu
próprio humor feliz.
Falamos por um tempo sobre nada em particular. Eu gostava da forma
com que nossa conversa fluía, lenta e tranquila, na paz do dia. Para variar,
minha agitação estava adormecida e eu, que não gostava de ficar ociosa,
ficava feliz em descansar na companhia pouco exigente do agradável rapaz
ao meu lado.
Eu deveria saber que não iria durar. Conforme as maneiras de rapazes
agradáveis em um dia de verão, Reiner começou a inserir pequenos elogios
em sua conversa – quão bem eu parecia, como meu vestido era bonito, e por
aí vai. Como meu vestido era um que já tinha visto um grande número de
vezes e eu tinha certeza que o calor havia avermelhado meu rosto,
suspeitava que Reiner estava adulando, ou pior, que estava…
Minhas suspeitas foram confirmadas quando a mão de Reiner ergueu a
sombrinha e seu rosto apareceu, sincero e atento.
— Nell…
Um terrível pressentimento me tomou e me coloquei numa posição
sentada, quase acertando o nariz de Reiner com a beirada de minha
sombrinha.
— Talvez eu deva ir ajudar Sarah e Tess.
Reiner se sentou também, capturando minha mão nas suas.
— Não, Nell... Por favor, fique. Tenho algo a dizer.
— Eu gostaria que não dissesse. — Tentei puxar minha mão, mas
Reiner a segurou com firmeza.
— Eu simplesmente preciso. Minha querida Nell…
E Reiner lançou-se em uma eloquente e apaixonada enumeração de
minhas melhores qualidades. Ele me assegurou de sua completa servidão
aos meus encantos e me pediu que eu o permitisse admirar esses encantos
todos os dias de sua vida.
Eu o fitei com desânimo, mas decidi não afastar-me tão
grosseiramente. Eu gostava muito dele para querer machucar seus
sentimentos e, além disso, aquela era minha primeira proposta real de
casamento – desde que eu tinha treze anos, de qualquer forma. Por isso,
deveria no mínimo prestar atenção.
— É gentil de sua parte dizer todas essas coisas — comecei levemente
quando ele ficou sem ar. — Mas, Reiner…
— É muito repentino, eu sei. — Ele soltou meu pulso, que tinha aos
poucos conseguido envolver, e acariciou minha mão, correndo os dedos
maiores sobre os meus, longos e lisos. — Mas, droga, não é como se eu
fosse ter muitas oportunidades de deixá-la saber como me sinto. E preciso
ter minha chance de falar antes que aquele babaca do Poulton o faça.
— Que raios quer dizer? — Tirei minha mão com uma rapidez que fez
com que Reiner caísse para a frente, jogando os braços ao meu redor para se
equilibrar. — Pare. — Quase gritei enquanto seus braços me apertavam. —
Me solte, pelo amor de Deus.
Ele o fez – de fato era um bom rapaz – e até parecia um pouco chocado
por ter quase ido tão longe quanto me capturar num abraço total.
— O sr. Poulton não está me cortejando — disse, assim que recuperei
minha dignidade.
— Mas está interessado. Ele olha para você. — Os olhos de Reiner se
estreitaram. — E agora você está ruborizando.
— Estou envergonhada e com razão. Exatamente assim.
Eu estava quase dizendo a verdade. Para distrair Reiner, resolvi
retornar ao assunto principal da conversa.
— Você é um bom homem, Reiner, mas… — Deus do céu, eu quase
disse um bom rapaz, e eu não era nem um ano mais velha que Reiner.
Ainda assim, me sentia uma anciã perto de seu ardor jovem.
— É cedo demais para você, eu sei. — Todos os pensamentos de Judah
Poulton pareciam ter desaparecido e o brilho da adoração canina estava de
volta a seu rosto. — Você não se importa se… se eu renovar minhas
intenções em um momento posterior?
— Desde que não se importe que eu diga não de novo — respondi,
azeda. — E não vá ter ideias de que sou sua garota ou sua namorada apenas
porque não lhe acertei nas orelhas. Somos amigos e é isso. Tenho Sarah e
Tess a considerar e…
— … E não vai aprovar a ideia da minha corte porque sou jovem
demais, e apenas um membro júnior do corpo docente. — Reiner arqueou
as sobrancelhas claras.
— Se ser um membro júnior do corpo docente conta para isso, depende
do quão seriamente você leva o trabalho — eu falei. — Posição e riqueza
não importam para mim…
— … O que é uma pena, porque papai me proveu muito bem.
— Você poderia parar de me interromper? — Eu estava ficando
exasperada e, de alguma forma, minha exasperação parecia ter algo a ver
com Judah e Martin, e isso me deixou desconfortável – e irritável. —
Posição e riqueza não importam para mim, mas atividade e dedicação, sim.
Eu nunca pensaria em unir minha vida a de um homem que não esteja
preparado para levar suas responsabilidades a sério, quaisquer que sejam.
Inclinei minha cabeça de lado, olhando o rosto de Reiner com atenção.
— Você acha verdadeiramente que pode ter sucesso como professor?
Admito que, pelo que vi, seu domínio de linguagens é impressionante, mas
há muito mais nesse trabalho do que isso, certamente.
Eu não queria dizer a Reiner, mas tinha certeza de que Judah Poulton,
mesmo aos dezoito anos, deve ter possuído um ar bem mais grandioso de
autoridade do que Reiner carregava. Eu os tinha visto com frequência o
bastante na companhia de alunos para observar que Reiner parecia um
companheiro dos garotos, enquanto todos olhavam para cima e respeitavam
Judah –isto é, exceto o professor Wale.
— Eu não sei. — Reiner puxou um caule de grama que tinha caído
sobre a beirada da manta. — Estou disposto a fazer uma tentativa, e é isso
que importa, não é? — Ele abaixou a cabeça. — E papai não vai mais pagar
minhas mesadas. Não quero voltar para lá e trabalhar no seu escritório da
ferrovia e ter uma fila de garotas idiotas da sociedade desfilando à minha
frente a cada oportunidade como possíveis esposas. Ele está certo de que
uma boa esposa poderia ser uma boa transformação para mim, mas não vejo
por que deve ser uma das filhas de seus companheiros.
Eu simpatizei, é claro – o desfile do casamento nunca foi atraente para
mim também. Mas…
— Ali está Tess — eu disse, acenando na direção dos girassóis. —
Talvez devêssemos pensar em carregar a charrete. Aquele cavalo já deve ter
comido uns dois arbustos de grama a essa altura.
Como eu esperava, essa sugestão, combinada com a chegada de Tess e
Sarah carregando um enorme buquê de girassóis, foram o bastante para
garantir que não houvesse mais palavras doces ou olhares pelo resto do
passeio.
E, ainda assim, subi na charrete à mercê de uma estranha mistura de
euforia e ansiedade. Apesar da ordem estrita da sra. Calderwood, parecia
que eu tinha feito uma conquista.
Capítulo catorze

Euforia
3 de agosto de 1873
Querida Nell,
Você está certa em me repreender – talvez eu esteja ficando um pouco
entediante. Uma dama conhecida me acusou, há não muito tempo, de
aderir ao tipo mais estrito de moralidade burguesa. Ela está errada – não
sou pedante, pelo amor de Deus –, mas algumas das coisas que vejo nos
círculos os quais frequento agora me chocam. Talvez seja por isso que eu
não escreva sobre eles, minha criança. E se alguém começar a abrir
minhas cartas novamente, ambas reputações estariam arruinadas. De
qualquer modo, está fazendo eu me sentir notavelmente ingênuo e imaturo
para um homem de trinta e um anos.
Ou talvez esteja apenas reagindo ao ar de alegria febril ao meu redor.
Há uma bolha inchando perto de nós de uma riqueza superaquecida,
conduzida pela especulação idiota sobre as ferrovias e grandes sistemas
semelhantes. Os magnatas industriais são os heróis do dia. Aqueles que,
cinquenta anos atrás, seriam comerciantes, são agora os nobres de
Chicago. A um custo: Potter Palmer parece mais perto dos sessenta e cinco
do que dos cinquenta e o cabelo de Marshall Field está ficando branco.
Extravagância é a regra no grande meio social que agora frequento. O
champanhe flui livremente e os babados, laços e anquinhas das damas são
extremos. Entrar numa sala repleta de mulheres é um tanto perigoso, assim
como nos dias passados das saias com aros. Estou grato por ser magro o
bastante e não ocupar muito espaço.
Não ache que eu compartilhe do champanhe – não tenho apreço pela
coisa azeda e efervescente, e nenhum apreço pela bebedeira também.
Aceito um uísque já que é, ao menos, uma bebida masculina, e a faço durar.
Preciso da cabeça limpa para as correntes de especulações, tanto
financeira quanto pessoal, que rodopiam ao meu redor, como a fumaça do
charuto que circula por qualquer lugar onde os homens se reúnam
sozinhos. É estimulante e, ainda assim, há dias em que quero dar as costas
a tudo isso e voltar ao balcão da minha loja de roupas na querida e velha
Victoria.
Aliás, não precisa se preocupar que eu esteja especulando com seu
dinheiro. Não estou, e nem com o meu também. Me torno mais cauteloso a
cada dia, esperando pela queda. Minha riqueza – e, por extensão, a sua –
está baseada em solo firme.
Penso em você com frequência, Nell.
Martin

Martin não disse uma palavra sobre vir me visitar, nem me contou
realmente nada sobre o que estava fazendo. Eu era mesmo uma criança para
ele, para me excluir dos detalhes de sua vida desta forma? Suas palavra
soavam em meu cérebro ao mesmo tempo da cadência de meus passos, que
batiam ocos na lama endurecida da trilha para Springwood. Eu estava feliz
por ter vindo sozinha, pois significava que eu podia andar mais rápido,
minhas passadas longas acomodadas pelas aberturas extras que pus em meu
vestido de caminhada. Eu mal vi a cidadezinha crescendo próxima, suas
árvores prometendo sombra contra o sol e o vento abrasador.
Era impossível usar uma sombrinha nas planícies abertas. Precisei
recorrer ao tipo mais terrível de bonnet fora de moda para evitar que meu
rosto se queimasse. Suas laterais estreitavam meu campo de visão como os
antolhos no bridão de um cavalo de carruagem nervoso, e eu tinha certeza
de que eram a causa das lágrimas que ocasionalmente ardiam em meus
olhos.
— Empolgante, não é, Martin? — falei em voz alta ao ar livre. —
Demais para confiar a mim, suponho. Se é que já tive esse privilégio. — Ele
já havia sequer confiado em mim realmente, me contando seus segredos
como sempre lhe contei os meus? Ao menos, eu lhe tinha contado meus
segredos até Jack Venton fazer de mim uma mulher desonesta.
A única resposta que recebi foi o murmúrio do vento quente e seco
enquanto sacudia o topo da grama que amarronzava e erguia pequenas
lufadas de poeira onde a trilha era particularmente gasta.
— Costuma falar com si mesma?
Dei um pulo e me virei. Judah Poulton estava bem atrás de mim,
sorrindo.
— Talvez, ocasionalmente, quando acho que estou completamente
sozinha. — Se fosse Reiner se esgueirando em silêncio atrás de mim, eu
poderia ter ficado irritada. Mas era difícil ser impertinente com Judah e
minhas palavras soaram mais gentis do que eu pretendia.
— Você não deveria andar por aí desacompanhada — Judah falou,
oferecendo-me seu braço, que eu tomei. — Os indígenas podem ter ido
embora, mas ainda pode se deparar com uma caçada de vez em quando. E
há homens brutos por aí, perambulando de um lugar para o outro,
procurando por trabalho ou sabe Deus pelo quê.
— Eu me sinto bastante segura, sr. Poulton. Eu gostaria de realizar
minhas tarefas rapidamente, e não há forma mais rápida do que sozinha.
— Você prometeu me chamar de Judah. — Ele puxou para os lados
uma das abas de meu bonnet para que pudesse sorrir para mim e meu
coração vibrou um pouco com a atenção. — Não mantenha tanta distância
de mim, Nell. Sei que posso ser esquivo, mas é difícil ficar longe da única
mulher mais próxima da minha idade e classe em quilômetros. E uma
notavelmente bonita, além disso. Mesmo quando está usando um bonnet
ridículo da época de minha avó.
— Tenho um chapéu e uma sombrinha para usar em Springwood. —
De novo, tentei inserir um tom de repreensão em minha voz e, de novo,
falhei; senti os cantos da boca curvarem-se para cima com a palavra
“bonita”. — Não quero ganhar sardas. E o que está fazendo aqui? Se a sra.
Calderwood souber disso…
— … Direi a ela que vi você à minha frente no caminho e corri para
lhe oferecer o benefício de minha proteção.
Outro homem me interrompeu – mas, de alguma forma, eu não me
importava tanto quanto quando era Reiner que o fazia.
— Ela aceitará a explicação?
— Ela aceita a maioria das coisas vindas de mim.
Tínhamos quase chegado ao riacho que corria por meio quilômetro do
centro de Springwood. Estava seco naquela época do ano, apenas um pouco
de lama úmida restava da enxurrada da primavera. Os álamos que o
margeavam já deixavam cair algumas folhas, num matiz marrom-amarelado
e secas nas pontas. A relva perto do riacho estava completamente seca, a
lama revirada ao redor endurecida até tornar-se uma superfície irregular
despedaçada por grandes rachaduras.
Algumas casas novas surgiram ao longo da estrada que levava ao
centro da cidade mas, apesar da pintura fresca, a poeira seca, espalhada
como erva daninha ao redor, tinham um ar desamparado. Ainda assim, logo
teriam uma aparência respeitável como seus vizinhos, luminosas com flores
e grama crescendo sob o sol quente.
Coloquei o chapéu e a sombrinha assim que atravessamos o riacho e
acenei para as damas que aproveitavam seu descanso do meio-dia em suas
varandas da frente. Algumas delas eram clientes minhas agora. Ela sorriram
afavelmente, com apenas uma nota de curiosidade quanto à presença de
Judah. Ele era tão naturalmente digno que não achei que nenhuma delas
ousaria nutrir qualquer pensamento adverso sobre nossa chegada conjunta à
cidade.
— Qual é sua tarefa? — Judah perguntou.
— Uma porção de alfinetes, um pacote de caramelos para Tess,
qualquer coisa pequena que eu possa encontrar para divertir Sarah e, o mais
importante, um envio postal de dinheiro para colocar com minha carta. —
Puxei o envelope para fora do bolso e gesticulei para ele.
Eu estava enviando-o para Martin, é claro. Não era uma carta
particularmente amigável, ainda que o “Penso em você com frequência,
Nell” tenha tido o efeito geral de suavizar meu tom. A carta detalhava meus
recebimentos do mês anterior, estabelecia meu entendimento sobre qual era
minha riqueza total agora, e perguntava a ele se estava correto.
Verdade seja dita, meu capital cresceu a tal extensão que estava
começando a imaginar se talvez, em alguns meses, conseguiríamos arcar
com a volta para Chicago. Talvez pudéssemos comprar uma casa modesta
em algum lugar, na qual eu começaria meu negócio como modista. Quer
Martin desejasse se importar comigo ou não, eu estava começando a ficar
inquieta. Ainda que fazer vestidos para as damas de Springwood fosse de
longe o momento mais envolvente do meu dia, quase não me mantinha
ocupada o bastante. Eu queria mais. Minhas habilidades tinham sido
testadas e consideradas mais que o suficiente, e eu estava pronta para abrir
minhas asas. E sim, eu também pensava em Martin com frequência.
— Ah, o sr. Rutherford de Chicago. — Os dentes perfeitamente
brancos de Judah apareceram de novo. — Você viu o nome dele no Tribune
também, imagino.
— Sim. — Chutei um sulco endurecido que tentou me derrubar.
— Na companhia dos cavalheiros importantes de Chicago. E damas.
— O sorriso de Judah ficou mais largo.
— Tenho certeza de que ele conhece a maior parte da elite agora. Mas
veja, sr. Poulton – Judah, acho que precisamos seguir caminhos separados
agora. Mal tenho tempo o bastante para voltar.
— Poderia talvez confiar uma de suas tarefas a mim? — Ele tirou o
chapéu e se curvou. — Eu poderia comprar seus alfinetes e caramelos e os
levar mais tarde, ou pegar o envio postal de dinheiro e entregar ao sr.
Yomkins para enviá-lo.
Pensei por um momento.
— Não acho que eu confie em você para distinguir um tipo de alfinete
do outro.
— O envio de dinheiro, então. Me certificarei de ir de imediato. Não
estou com pressa. Prometi passar no sr. Fairland para me solidarizar quanto
ao seu cavalo. Ele desenvolveu uma desordem no jarrete depois que o filho
o cavalgou demais. Espero que não tenham que vendê-lo para fazer cola.
Não pude deixar de sorrir para isso e impulsivamente pesquei o papel
dobrado que continha o dinheiro que eu havia recebido.
— Muito bem. — Entreguei o papel, sentindo a solidez reconfortante
dos vinte dólares e trinta e cinco centavos em suas dobras. Havia algo
verdadeiramente satisfatório em saber que Tess e eu estávamos aumentando
nossa riqueza com nossos próprios esforços – porque, é claro, parte disso
era dela.
Judah se curvou de novo e seguiu na direção do escritório da Wells
Fargo, enquanto eu virava meus passos para o mercado. No momento em
que saí, a rua estava deserta e não vi ninguém no retorno para o seminário.
Capítulo quinze

Pâ nico
10 de outubro de 1873
Querido Martin,
Obrigada pela garantia quanto ao meu dinheiro, foi gentil de sua parte
escrever com tanta brevidade, ocupado como obviamente está. Sim, até
mesmo aqui na fronteira nós ouvimos sobre os bancos falindo em Nova
York e Chicago – notícias ruins se espalham rápido, mesmo além da
civilização.
Eu não estava preocupada comigo mesma – disse que tinha investido
meu dinheiro com sabedoria e confiei em você. E Tess também, é claro,
ainda que dinheiro signifique pouco para ela num sentido mais amplo. O
que é estranho, não é, considerando o quanto ela gosta de acrescentar
colunas de números em um livro-razão?
E ainda assim, quando eu soube das notícias, meu sangue gelou.
Escrevi imediatamente a Catherine Lombardi por causa de algo que ela
havia escrito para mim na semana anterior, e meus piores medos se
tornaram realidade. Martin, o pastor Lombardi investiu quase todo o
dinheiro que guardava para períodos de vacas magras nas ferrovias. Suas
fortunas caíram com a quebra. Catherine estava brava com isso, é claro, e
agradeceu a Deus pela casa e trabalhos que lhes restaram, mas como vão
mandar Teddy para a escola agora? Ele ia se candidatar ao seminário, mas
mesmo que não seja necessário agora para trabalhar, duvido que os
Calderwoods irão admiti-lo sem uma tarifa.
Meu coração está muito cheio de dor para escrever mais. Preciso
enviar outra carta a Catherine imediatamente e lhe oferecer qualquer
ajuda possível. Obrigada por sua carta.
Nell

Ergui a cabeça ao ouvir o som da porta da biblioteca se abrindo.


— Há algo de errado, professor Wale?
Franzi o cenho, vendo as linhas severas marcadas no rosto do
professor. Frustração e raiva estavam escritas ali, claro como água.
O professor deixou-se cair em uma das poltronas largas perto do fogo
extinto e me fitou com melancolia.
— O que deveríamos ser? — questionou, apontando um dedo
manchado de amarelo para mim. — Um lugar de rigorosa pesquisa
intelectual ou uma… uma escola infantil para imbecis ricos?
— Outra discussão? — perguntei. A animosidade do professor Wale
para com Judah e os Calderwoods tinha chegado a tal ponto que eu estava
surpresa pelos Calderwoods não lhes darem um aviso prévio. Os outros
professores haviam começado a evitá-lo.
— Cam Calderwood é um cabeça de vento pomposo que não tem mais
fé em seu coração sombrio e podre que um muçulmano. — O professor
correu os dedos pelo cabelo, deslocando um tufo de pó de giz.
— Isso não é injusto com os muçulmanos? — contrapus, divertida.
Limpei minha caneta e a pousei. — Tenho certeza de que são tão sinceros
em suas crenças quanto qualquer cristão, apesar de quão errados os pastores
nos dizem que eles estão.
O professor olhou de soslaio para mim e deu uma risada rouca, a
tensão em seu rosto diminuindo.
— Um muçulmano pode sentar-se e ter uma conversa sensata, se
chegarmos a isso. Calderwood, oras, apenas mostra seus dentes e cabelo
enquanto aquele idiota do Poulton assiste com o nariz bonito arrebitado.
Droga, que raios os partam, aquela dupla vai levar esse lugar à ruína.
— Achei que estivéssemos prosperando.
— Em termos monetários estamos. — O professor Wale pescou seu
cachimbo vazio do bolso e sugou a ponta com um som molhado e estalado.
O odor de tabaco velho misturou-se com os aromas de poeira e cera de
abelha, couro antigo e lavanda. — Oh, estamos indo muito bem, de fato.
Nenhum filho pobre de camponês foi considerado adequado para estudar
aqui há mais de ano, sabia disso? — Ele pousou um dedo no nariz. — Não
que possa espalhar isso por aí, entenda. Precisei recorrer a… bem, meios
desonestos para confirmar o fato.
— O que a congregação tem a dizer sobre isso? — perguntei. — Não
está escrito no estatuto, ou como quer que chamem aquilo, que a escola
apoia um certo número de garotos pobres? — Dobrei minha carta para
Martin, vendo o nome “Teddy Lombardi” em minha caligrafia grande e
descuidada. Parecia que meus medos eram fundados; o garoto não
encontraria nenhuma vaga na escola sob o mandato dos Calderwoods.
Uma rajada úmida de vento estridente atingiu as portas francesas da
biblioteca e pulei, assim como o professor.
— Maldito vento — ele rugiu, virando-se na cadeira e esquecendo de
não praguejar na frente de uma dama. — Uivando e guinchando e gemendo
até que não se consiga mais distinguir seu avô de uma lebre estúpida. Estou
cansado deste lugar.
— Por que não vai embora?
— Eu não te perguntei a mesma coisa há dezoito meses?
— Não exatamente — eu ri. — O senhor me interrogou sobre quais
eram minhas prioridades e então me aconselhou paciência. Talvez devesse
ouvir seu próprio conselho.
— Eu não precisava de paciência quando Hendrik Adema estava vivo.
— O professor suspirou pesadamente. — Eu estava feliz em sentar-me aos
pés de um homem grande e nobre. Se tivéssemos diferenças de opinião,
podíamos resolvê-las. Se estivesse cego aos erros daqueles ao seu redor,
bem, isso era apenas parte da tolerância que ele pregava e para a qual vivia.
Ou o pragmatismo.
Ele deu de ombros.
— Os Calderwoods chegaram com a terra e o dinheiro para construir o
seminário e não duvido que o dr. Adema pensou que poderia mantê-los sob
controle. De fato podia, quando era vivo. Mas agora as serpentes estão no
comando do Jardim do Éden. — Seu rosto escureceu. — Eles deveriam ser
erradicados. E serão, por Deus. Você perguntou se a congregação sabe o que
estão fazendo – bem, sabem? Não devo ficar inerte quanto a essa questão.
— Não seja tolo também. — Senti um receio repentino, ainda que não
soubesse o porquê.
— Serei tão sábio quanto as serpentes e tão inofensivo quanto as
pombas. — O professor sorriu. — E quanto a você, sra. Lillington?
Nenhum pensamento sobre partir deste lugar e retornar a Chicago?
Olhei para a carta em minha mão.
— Não tenho mais certeza se serei bem recebida, caso retorne — falei.
— E agora tenho meu trabalho de modista.
— E seus dois galãs.
Olhei para cima, enrubescendo, para descobrir que o professor fitava
meu rosto com atenção.
— O sr. Lehmann a olha como um novilho e até mesmo peralvilho não
parece imune aos seus encantos. Eles se declararam?
Eu podia sentir o calor se espalhando por meu corpo.
— Se precisa saber, o sr. Lehmann fez o pedido, e eu recusei. Quanto
ao sr. Poulton, ele tem sido educado e amigável comigo, isso é tudo.
— Isso é muito, vindo dele. — O rosto do professor de repente ficou
sério e abatido, como se tivesse envelhecido em um segundo. — Estou feliz
que não seja uma mulher rica — ele disse, tão baixinho que quase não ouvi.
Capítulo dezesseis

Inesperado
13 de novembro de 1873
Querida Nell…

Senti o ar deixar meu corpo enquanto ficava de pé. O anexo


desprezado da carta em minha mão desabou por minha saia e aterrissou
com um leve assobio à medida em que deslizava pelo assoalho polido. A
sala ao meu redor escureceu, toda a minha consciência focada na caligrafia
elegante e oblíqua de Martin.
— É claro que o fez. — Ouvi minha própria voz, alta e estrangulada. É
claro que sim. Como não adivinhei antes?
— Aqui, está branca como papel — disse uma voz em meu ouvido.
Senti uma mão no meu cotovelo, me equilibrando, e outra na minha cintura,
me direcionando de volta à cadeira. — Sente-se — a voz ordenou.
Me sentei mecanicamente.
— Recebeu más notícias? Devo buscar um copo d’água?
Por que aquela voz inoportuna não me deixava em paz? Eu estava
sozinha na biblioteca há um minuto, não estava?
— Nell, olhe para mim. — Uma mão segurou meu queixo e o virou. A
voz incorpórea transformou-se em Judah Poulton, curvado sobre mim com
uma expressão confusa no rosto. — Alguém que você conhece morreu?
Respirei fundo.
— Não, eu estou bem. Tive uma surpresa, é tudo. — Ensaiei um
sorriso. — Notícias surpreendentes. Inesperadas.
Com um movimento fácil e ágil, Judah pegou uma cadeira numa mesa
próxima e a girou para que pudesse se sentar perto de mim. Ele soltou
gentilmente a carta dos meus dedos – eu a apertava com a força de um
escalador agarrando-se ao penhasco – a pôs em meu colo e tomou minhas
mãos nas suas, as esfregando com as palmas.
— Pode ser mais fácil se conversar com alguém. — A pressão em
minhas mãos aumentou enquanto ele fitava meus olhos. — É uma carta do
sr. Rutherford, não é? Ele fez algo alarmante?
— Ele se casou. — As palavras se despejaram antes que eu soubesse
que tinha aberto a boca e, assim que comecei, o restante foi fácil. — Ele
casou-se com uma mulher chamada Lucetta Gambarelli…
— Da loja Gambarelli? Vi as propagandas deles nos jornais de
Chicago.
— A própria. — Minhas mãos estavam começando a ficar aquecidas e
as puxei do aperto anuente das de Judah. — Ela foi vê-lo – meu Deus, sim!
Ele escreveu para mim sobre isso – ela foi vê-lo quando abriu a loja porque
havia atraído um dos melhores homens deles para ser seu gerente geral. —
Não foi uma paixão repentina, então; já a conhecia há algum tempo. Estava
cortejando-a. E não me disse uma só palavra.
Judah assobiou, um som baixo e fraco.
— Um bom partido, a herdeira de Gambarelli, pelo que li. Ela deve ter
levado consigo um dote estupendo. Não está na flor da idade, de acordo
com os desenhos que vi dela nos jornais, mas tem uma beleza conhecida.
Quantos anos tem o seu sr. Rutherford?
— Trinta e um.
— Uma idade excelente para um homem se casar, especialmente se
deseja gerar herdeiros para sua fortuna. Estive lendo sobre o seu sr.
Rutherford; ele está ganhando dinheiro como o próprio rei Midas, e o
pânico financeiro o deixou mais rico porque tem as reservas para comprar
por um preço baixo. Se Chicago tivesse seu próprio mercado de ações, ele
seria mais rico ainda.
Fitei Judah.
— Estou impressionada por saber tanto sobre ele.
— As grandes máquinas de fazer dinheiro de nossa época são meus
objetos de estudo. Afinal de contas, eles estão construindo este nosso
grandioso país. Sua astúcia e dedicação são boas lições. — O rosto de Judah
se iluminou com seu sorriso deslumbrante. — Agora, Nell, deveria ficar
feliz por seu amigo. Você achava que ele era um solteiro tão velho que
pensar em seu casamento a choca? Trinta e um não é tão velho, Nell. Eu
tenho vinte e oito.
— Não é a idade dele. — Senti minha testa franzir enquanto tentava
me explicar. — Eu só nunca pensei que ele se casaria – com qualquer
pessoa. — Exceto, talvez, eu. Ele havia proposto uma vez, como um
recurso para me tirar das garras de meu padrasto.
Judah arqueou as sobrancelhas.
— Ele não é, talvez, do tipo que se casa?
Eu sabia o que o eufemismo significava – Martin tinha quebrado o
maxilar de um homem por sugeri-lo.
— Não, não é isso também. Eu diria que gosta bastante das mulheres.
Mas, bem, não pensei que iria atrás de um casamento — concluí sem
convicção. Eu não queria explicar a Judah sobre o pai de Martin, aquele
homem louco, sombrio e emaciado cuja ideia de carícia conjugal era um
soco ou um discurso de abuso. E, de qualquer forma, muitos homens batiam
em suas esposas – não homens decentes, com certeza, mas muitos homens
mesmo assim.
Dobrei a carta pousada em meu colo.
— Eu deveria voltar ao trabalho.
Eu estava a caminho da porta quando Judah me chamou:
— Nell?
Ele estava parado perto da cadeira que eu havia desocupado, lendo um
pedaço de papel com uma expressão de descrença no rosto. Quando me
aproximei, ele olhou para cima.
— Sinto muitíssimo, acho que isto é seu e eu não deveria estar lendo.
Eu o peguei do chão…
— É meu. — Tardiamente, me lembrei do anexo. Peguei o pedaço de
papel da mão de Judah e o dobrei.
— Mas, Nell — o tom de Judah era incerto, mas havia um brilho do
que poderia ser uma empolgação suprimida em seus olhos —, não quero me
intrometer mas… você leu isso?
Confusa, desdobrei o papel. Martin tinha me enviado muitos anexos
como aquele, os quais eu copiava em meu livro-razão. Em geral
começavam com o total do último, seguiam para uma explicação dos
investimentos que Martin havia feito recentemente e terminavam com a
contagem dos aumentos e decréscimos. Em geral, aumentos – Martin tinha
de fato uma genialidade para investimentos.
Sempre tentei estudar o que ele havia feito, sentindo que eu deveria, ao
menos, entender, mas verdade seja dita, geralmente começava olhando os
primeiros e os últimos números. Eu o fiz agora, e fiquei boquiaberta.
— Eu não entendo. — Por algum motivo, eu estava com problemas
para pensar direito.
— Faz total sentido. — Judah se aproximou de mim, os aromas
misturados de seu cabelo, pele e roupas em minhas narinas. Ele tinha um
leve cheiro de algodão doce, como o de uma confeitaria. Um dedo longo,
elegantemente modelado, correu pelos números da página. — Ele está
sendo bastante cauteloso, não é, quanto a arriscar seu dinheiro no negócio
dele? Nunca muito, nem por tempo demais, e ele logo transforma os
excedentes em títulos com a regra dos cinco por cento. É um homem
inteligente, sabe fazer isso. E esses empréstimos privados… Sim, imagino
que alguns empresários de Chicago foram um pouco ambiciosos em
demasiado quanto a reconstruir desde o incêndio. Este nome me
surpreende, em particular. — Ele apontou no papel.
— Ele triplicou meu capital. — O significado dos números estava
finalmente entrando em meu cérebro embotado.
— Mais do que triplicou. — Judah sorriu. — Me deleita imensamente
que a costureira do seminário seja uma mulher rica. — Ele olhou ao redor,
como se temesse que fôssemos ouvidos. — Eu não mostraria isso aos
Calderwoods, se fosse você.
— Não tenho o hábito de tornar os Calderwoords parte de meus
assuntos. — Uma linha das escrituras, parcialmente lembrada, estava
trilhando seu caminho para minha consciência enquanto eu fitava as nuvens
do outro lado da sala, além da janela.
— Nell? — Judah inclinou a cabeça de lado, e me olhou com um ar
confuso.
— Oh, nada — respondi, minha mente ainda ocupada em busca do
trecho. — Algo sobre ganhar o mundo inteiro.
— Pois, de que adiantará ao homem se ele ganhar o mundo inteiro,
mas perder a própria alma? — Judah citou prontamente. — Mateus,
dezesseis. Mas você não sente que perdeu a alma, sente? Não fez nada de
errado conquistando esta riqueza, e os negócios do sr. Rutherford são
honestos – ele poderia ter cobrado muito mais por esses aluguéis.
— Eu perdi… — Meus olhos focaram-se em Judah, com alguma
clareza retornando aos meus pensamentos. — Eu perdi um amigo, acho.
Ou, ao menos, a amizade como era. Como isso poderia não mudar?
— Você nunca ficará sem amigos, Nell. — O sorriso de Judah era
caloroso. — Quando um se vai, outro estará pronto para tomar seu lugar.
1874

Capítulo dezessete

Fariseu
— Absurdo!
O professor Wale bateu a porta pesada da capela com tanta força que
eu poderia jurar que a fileira de janelas de vitrais atrás de mim havia
estremecido. Um eco surdo do barulho cresceu ao meu redor onde eu
estava, no topo da maior extensão da grande escadaria, o xale enrolado nos
ombros.
Um dezembro sem graça, cujo céu plúmbeo combinava com meu
humor desanimado, tinha cedido lugar a um janeiro gelado. O Kansas não
era tão frio quanto o norte de Illinois, mas o corredor do seminário era
congelante, parecendo reunir em si mesmo os fragmentos de vento frio que
passavam sob a porta e o caixilho.
Desci lentamente, com os olhos no professor. Ele estava prestes a
sofrer uma apoplexia? Seu rosto estava impregnado de cor, os punhos
cerrados, os olhos eram poços escuros de raiva. Ele claramente tinha
acabado de sair da reunião da segunda-feira, na qual o corpo docente se
encontrava no escritório superaquecido do dr. Calderwood para discutir não
sei o quê.
— O que é absurdo? O senhor está bem?
Observei enquanto o homem pequeno girava diversas vezes, como um
cachorro procurando o local certo para se deitar. Sua cabeça ergueu-se com
o som da minha voz e ele fez um gesto acenando, atravessando para a porta
da frente sem olhar para trás ou esperar para ver se eu o seguiria.
Suspirei e apertei mais o xale. O grande aro de metal da porta congelou
minhas mãos; ainda assim, não foi nada comparado ao vento mordaz do
lado de fora.
— Está muito frio aqui. — Levantei a voz contra o vendaval, meus
dentes já batendo.
O professor tirou a toga acadêmica empoeirada e a jogou sobre meus
ombros, puxando-a com firmeza. O tecido de popeline foi
surpreendentemente eficaz contra o vento. No entanto, me recolhi ao canto
mais protegido que pude encontrar.
— Pelo amor de Deus, diga-me o que há de errado an-antes que nós
dois congelemos.
O professor gritou sua resposta para as planícies, o vento agarrando
suas palavras e as carregando em rajadas para a imensidão encharcada e
meio congelada diante de nós.
— Aquele peralvilho, aquele… aquele maldito presunçoso, aquele
indescritível charlatão, aquele… — O professor Wale chutou com força os
ladrilhos do pórtico e girou para me fitar. — Eu deveria saber. Eu deveria
ter prevenido isso. Preciso agir.
Balancei a cabeça, sem compreender, e o professor deu um passo em
minha direção. Um floco de neve molhado aterrissou no aro de cabelos
espessos, derretendo na confusão encaracolada de preto e grisalho.
— Seu amigo Poulton tornou-se o diretor do corpo docente. É… é
ultrajante! É inconcebível. — Ele correu os dedos pelo cabelo.
— Eu não sabia que essa posição existia. Quem a ocupava antes? —
Eu também não via onde estava o problema, mas não diria isso. Talvez o
homenzinho estivesse com inveja, tendo ele mesmo cobiçado o posto.
— Tal posição nunca existiu antes. Mas agora existe. — Ele estava
começando a tremer. — Essa é uma ideia estúpida dos Calderwoods para
promover seu favorito. Isso efetivamente o torna o segundo no comando de
toda a escola.
— Os outros professores fizeram objeções?
— Não. — O professor Wale enfiou as mãos sob as axilas. — Todos
estão parabenizando o pequeno… seu amigo, por sua exímia importância.
Não esqueça, sra. Lillington, que a maior parte deles é de homens novos, e
o restante dos velhos caducos estão gratos por ainda terem um lugar.
Era verdade. Os Calderwoods contrataram alguns professores novos
ultimamente e nenhum deles parecia ter opinião própria.
— Preciso entrar. — Puxei a porta. — Não podemos ser encontrados
parados aqui. — Eles se perguntariam mais sobre nossa sanidade do que
sobre a adequação, mas eu não iria me arriscar.
O corredor que pareceu tão frio há alguns minutos, agora era um
paraíso de calor e tranquilidade. Tirei a toga do professor e a devolvi,
escutando com um ouvido o murmúrio de vozes na capela que me dizia que
a reunião estava encerrada. Os homens estariam amontoados em um grupo,
sem dúvidas discutindo a saída abrupta do professor Wale.
— Eu devo, é claro, contactar o escritório da congregação. — A voz do
professor Wale era um chiado baixo em meu ouvido. — E tenho outra carta
na manga, uma sobre a qual Poulton não tem conhecimento. Descobri que
um amigo de um correspondente meu conheceu Poulton em Baltimore e ele
me forneceu alguns endereços. Farei investigações sobre isso, sobre ele.
— O senhor está perseguindo fantasmas — falei brevemente. Não pela
primeira vez, duvidei da sanidade do homem. Era possível que toda aquela
bobagem de Darwin o tenha desequilibrado? Eu não tinha ouvido
pessoalmente nenhuma discussão por um tempo, mas Reiner disse que
ainda continuavam. A maior parte dos docentes agora estava contra a
posição do professor Wale.
— Acha que estou perseguindo uma utopia, hein? — Seu sorriso era
estranho. — Você acharia, é claro. Não posso culpar uma mulher por querer
deixar passar, principalmente quando seu próprio futuro pode estar
envolvido. Mas o jogo vale a pena.
Ele agarrou meu braço, apertando-o com tanta força que abri minha
boca com um guincho de protesto.
— Você vai me agradecer um dia. Eu, e apenas eu, fui deixado para
defender nosso bom senso racional dado por Deus contra os fariseus e a
ignorância. E com a ajuda do Todo-Poderoso, hei de vencer.

— E você vai usar um vestido bonito, mamã? — Sarah alisou o cabelo


de sua boneca de pano, feita de uma improvável lã vermelha que
encontramos no Hayward’s.
Aos três anos, Sarah tinha começado a se interessar pelo que eu, e ela,
vestíamos – não que tenha demonstrado qualquer sinal de fascínio pelo
processo de costura. Minhas lembranças mais antigas incluíam rondar perto
do cotovelo de vovó observando-a cortar ou costurar, mas, para Sarah, as
roupas tinham valor apenas porque eram bonitas e envolviam o máximo de
babados e laços possíveis.
— Usarei meu vestido de seda azul celeste — anunciei, dobrando a
última carta de Martin e a deslizando para dentro de meu bolso. Nossas
cartas um para o outro eram curtas hoje em dia – cordiais, mas reservadas.
Um homem casado com uma esposa elegante e um negócio para
administrar dificilmente poderia despejar seu coração e mente para uma
costureira num seminário no Kansas, ainda que Martin tenha continuado a
enviar o pacote ocasional de aviamentos. A renda em dourado claro que
adornava o supracitado vestido de seda azul celeste tinha vindo da
Rutherford’s e parecia bem bonito. Eu tinha cortado as costas do vestido em
um V profundo e debruado com uma borda substancial de renda, para
brilhar de encontro à minha pele clara e ressaltar a cor de meu cabelo.
Puxei o caderno de desenhos, sorrindo para o estudo que eu tinha feito
de Sarah mais cedo. O processo de observar e traçar as linhas do rosto dela
era um prazer para mim, principalmente agora que a estrutura óssea
aparecia com clareza sob a pele. Ela não ia, fiquei aliviada ao descobrir, ser
uma daquelas crianças ruivas que eram cobertas de sardas – ao invés disso,
o pouco sol que fora permitido chegar à sua pele transformou-lhe naquela
cor dourado clara de biscoitos ainda pouco assados. Sob a luz do sol, seu
cabelo acobreado assumia reflexos de fogo dourado – o cabelo de meu pai
tinha essa aparência?
— Quero ir para jantares chiques também, mamã — Sarah pronunciou.
— Num sou grande o suficiente agora?
— Você não será por um bom tempo. — A acariciei sob o queixo. —
Por isso, terá que se contentar em fazer jantares festivos para suas bonecas.
Crianças não devem estar presentes em ocasiões sociais dos adultos, exceto
se alguém as levar para baixo por cinco minutos para cumprimentar os
convidados.
— Mas Tess é crescida — Sarah falou. — Por que ela não foi
convidada? — Sarah gostava excessivamente de perguntar “Por que?” sobre
tudo.
— Ela não recebeu um convite, suponho, porque não é uma conhecida
pessoal da sra. Shemmeld. Eu sou porque faço vestidos para ela; e fui
convidada para fazer companhia ao sr. Poulton.
— Por quê? — Sarah franziu o nariz. — Ele precisa ter uma dama com
ele? Por que não pode se sentar com alguém que fale sobre coisas boas,
como livros? Eu nunca entendo o que o sr. Poulton diz.
Suspirei. Judah não tinha o talento para conversar com crianças e em
geral falava apenas comigo quando Sarah estava presente, ignorando-a
completamente. Ignorava Tess também, e ela ficava muda em sua presença
como regra geral. Mas crianças, até mesmo as suas próprias, não estavam
na esfera dos homens até que crescessem o bastante para se tornarem dignas
de atenção, eu supunha. E garotos sempre recebiam mais atenção dos
homens do que as meninas.
Virei a folha de papel e comecei a desenhar as linhas de um vestido de
caminhada que eu tinha em mente para a sra. Froggatt, que estaria no jantar
de hoje à noite. As damas de Springwood não eram exatamente minhas
amigas, mas eu convivia em termos cordiais com a maioria – e havia mais
agora que a cidade estava crescendo rápido. Às vezes, uma delas me
chamava para tomar chá em sua sala, em meio a uma riqueza de decoração
que sempre me pareceu incongruente de encontro à beleza austera da terra
ao nosso redor. Quanto havia custado a seus maridos aquelas poltronas,
aquelas cortinas, aquelas capas trazidas de trem e carroça, vindas de cidades
distantes? Apesar de nossa recém-descoberta riqueza, Tess e eu estávamos
bastante contentes com a madeira comum e pintada e a decoração simples
de nosso quarto compartilhado. O único problema é que nossos guarda-
roupas eram agora tão suficientemente extensos que precisei mover boa
parte de nossas roupas para um pequeno quarto de vestir que apropriei para
este uso. Um dia teríamos que nos mudar – um dia. Mas para onde iríamos?
Tess irrompeu na sala, seus braços curtos com uma pilha alta de roupa
de cama, as quais depositou numa das mesas com um grunhido. Suspirei.
— Está tudo bem, vou resolver isso. Sary pode me ajudar. — Tess
sorriu para nós duas. — Sary, mamãe ficará deprimida se olhar para mais
um lençol desgastado. Pode me ajudar a encontrar os buracos?
— Por que os lençóis têm buracos? — Sarah largou a boneca numa
cadeira e ficou na ponta dos pés para espiar a pilha de tecido.
— Porque os calcanhares e cotovelos dos garotos são ossudos, eu acho,
assim como os seus. — Tess cutucou um dedo na lateral do corpo de Sarah,
fazendo-a guinchar e se contorcer para longe de sua torturadora.
— Eu não faço buracos. Olhe, aqui está um! — Sarah pôs o dedo no
local onde a luz vinda da janela brilhava através do lençol que Tess
segurava. — Mamã, é como um jogo. Por que você não quer brincar?
— Mamãe quer fazer desenhos de vestidos — falou Tess. — Ela
sempre fica com essa expressão no rosto quando está criando um vestido e
está com um comichão para experimentar no papel.
Eu estava bastante certa de que não fazia essa coisa de “ficar com uma
expressão no rosto”, mas minha mente estava nas pregas invertidas, um
grupos delas a uma distância talvez de vinte e cinco centímetros uns dos
outros. Aquele seria um vestido agradável, e não enfeitado demais – na
verdade, eu poderia provavelmente fazer uma versão para mim. Meu lápis
voou pela página, fazendo mudanças e acréscimos enquanto eu também
escrevia pequenas notas nas bordas. Para meu vestido, talvez um azul
marinho brilhante – isso existia? Ou seria um azul royal escuro? E onde eu
o conseguiria?
Ouvi com metade da atenção a tagarelice entre Tess e Sarah e suas
risadas enquanto Tess fingia não ver os pontos gastos para que Sarah os
descobrisse. Tess tinha bem mais paciência com Sarah do que eu e lhe
faltava minha própria tendência a corrigir minha filha, um legado por eu
mesma ter sido corrigida três dúzias de vezes por dia. Ela era, de todas as
formas, a segunda mãe de Sarah.
— O que vem entre marinho e azul royal? — murmurei baixinho,
apanhando outra folha de papel para começar um novo desenho, desta vez,
para meu próprio vestido. — E seria melhor seda ou lã? — Eu teria que ter
um novo vestido antes do fim do ano, isso era certo; uma modista não podia
estar esfarrapada ou fora de moda.
Martin saberia, é claro. Ele tinha acesso a centenas de rolos de tecido,
milhares de amostras, um milhão de enfeites – enquanto eu estava nas
planícies, a quilômetros infinitos de distância da loja mais próxima de
qualquer valia.
O lápis, depois de ter desenhado o contorno do vestido, pairou sobre o
canto superior direito do papel. Eu deveria escrever “vestido marinho de
caminhada” ou “vestido azul royal de caminhada”? Importava, de fato, o
que escrevia? Talvez devesse pedir a Martin que me enviasse um rolo do
tecido certo. Ele saberia. E eu poderia pagar também, com minhas próprias
reservas. Não seria um presente.
Percebi que estava desenhando os contornos do nariz fino e um tanto
bicudo de Martin no verso do papel. Se estivesse tentando lisonjeá-lo – o
que eu nunca fazia – suponho que eu poderia chamá-lo de aristocrático. Um
pouco como a gravura do duque de Wellington no livro de vovó sobre
Waterloo, apenas mais bem modelado. Humm… Um rosto quadrado - outro
livro de vovó saltou em minha mente, o que tinha belas ilustrações de
guerreiros vikings protegidas por folhas transparentes de papel. Seus lábios
– quando criança, eu sempre havia adorado seu formato, o côncavo entre o
lábio superior e o volume do inferior. Se o dia estivesse adiantado e ele
precisasse se barbear, minhas unhas infantis raspavam de encontro ao
crescimento da barba clara ao redor delas.
— O que está fazendo? — perguntou Tess, olhando sobre meu ombro.
— Oh! Martin! Está bem parecido, Nell.
— Quem é Martin?
— Você sabe, Sary. É o velho amigo de mamãe que cuida de nosso
dinheiro. — Tess dobrou o último lençol com um ar de triunfo.
— É sr. Rutherford para você — falei de modo repreensivo para minha
filha.
— Por que ele tem um nariz grande?
— Você tem um nariz grande. — Peguei minha primogênita e a
coloquei no colo, beijando a pequena tromba que exibia exatamente três
sardas. — Você é muito nariguda em relação a tudo.
— Você tem um nariz curvado — replicou minha filha. — O que é
elegante? Ouvi o sr. Poulton dizer.
— Já chega disso. — Fiquei de pé, levantando Sarah para que ela
pudesse se acomodar em meu quadril. — Venha me observar pôr meu
vestido bonito para esta noite.
— Você vai ser a dama mais bonitona do jantar — Sarah declarou. —
E o sr. Poulton será o cavalheiro mais lindo, eu acho. — Ela fez um
beicinho. — Mas ele não é divertido.
— Um cavalheiro na posição dele deve ser digno, e não divertido. E
homens não são lindos.
— Ele é. — Ouvi a voz de Tess carregada pela brisa atrás de nós
enquanto saíamos da sala. — Mas não é muito gentil.
Eu a ignorei.
Capítulo dezoito

Ganso
— Este é um pássaro delicioso, sra. Shemmeld. — Judah deu outra
mordida na carne macia e pousou a faca e o garfo no prato para alcançar a
taça de água. Como eu, ele comia da forma inglesa, com as duas metades
dos talheres envolvidos. — Não é selvagem, creio.
— Certamente que não. — A sra. Shemmeld, uma mulher alta e
robusta, com o rosto de uma governanta, se eriçou um pouco. Mas então
amoleceu, como uma mulher tendia a fazer quando Judah sorria para elas.
— Essa foi uma entrega especial e eu o abati nesta manhã. Está bastante,
bastante fresco.
A imagem da sra. Shemmeld com um cutelo na mão, o sangue vital do
ganso pingando de seu pescoço ainda se retorcendo e uma expressão
surpresa nos olhos tolos, surgiu diante de mim. Ainda assim, uma pessoa
precisava comer. Cortei para mim outra pequena porção da carne saborosa.
— A senhora mesma o depenou, sra. Shemmeld? — O rosto de Judah
estava inclinado em minha direção e eu podia ver sua expressão de interesse
polido, a beleza límpida de seus olhos violeta-azulados, serenos como o céu
do verão.
— Não, minha cozinheira… Oh, está rindo de mim, sr. Poulton! — O
rosto severo da sra. Shemmeld enrugou-se em um sorriso e ela ergueu a
mão para esconder seus dentes ruins. — Vocês, cavalheiros intelectuais, têm
uma forma de dizer coisas terríveis com uma cara séria.
— Bastante apropriado — disse o sr. Lehmann, que estava sentado à
minha direita. Ele era tio de Reiner, e Reiner não havia sido convidado para
o jantar. Vi o rapaz nos observando enquanto partíamos, uma expressão de
descontentamento irônico no rosto. — Uma boa dona de casa tem um
interesse pessoal na preparação da carne.
Bem, mamãe nunca teve o mais leve dos interesses em preparar
comida. O que eu iria fazer se me visse responsável por administrar uma
propriedade? Não sabia sequer cozinhar um ovo.
— A sra. Shemmeld é uma anfitriã excelente.
Judah ergueu a taça na direção da sra. Shemmeld, a superfície
entalhada capturando as cores do magnífico pôr do sol das planícies.
— Proponho um brinde para agradecê-la pela hospitalidade.
Nossas taças continham a água pura e fresca do poço, muito melhor
que os vinhos do dr. Calderwood. Bebi com vontade.
— Sra. Lillington, não concorda que a sra. Shemmeld é a anfitriã
perfeita? — Judah desviou todo o potencial de seu olhar para mim.
— É uma refeição deliciosa — eu disse à dama mais velha com
perfeita sinceridade. — Estou me divertindo imensamente.
A sra. Shemmeld sorriu, os lábios fechados.
— Estou feliz em fornecer diversão noturna para os membros mais
jovens de nossa pequena comunidade. É claro, sentimos que o seminário,
por assim dizer, pertence a nós; como se fôssemos primos. — Ela deu uma
breve risada que estava totalmente em desacordo com seu semblante
ameaçador. — E a senhora em particular, sra. Lillington, trouxe encanto e
alegria para as damas de Springwood com seus vestidos perfeitamente
maravilhosos.
— De fato ela trouxe — interveio a sra. Yomkins, me concedendo um
sorriso caloroso. Eu o devolvi com interesse. Eu gostava desta cliente em
particular, cujo talento astuto e percepção sobre as motivações de todos
tinham com frequência me reduzido a ataques de risada pouco femininos.
— Apenas imagine em que deserto estaríamos se fosse de outra forma. Ora,
talvez todas nós fôssemos obrigadas a forçar nossos maridos a nos levarem
a Paris apenas para ampliar nossos guarda-roupas.
O sr. Yomkins empalideceu visivelmente ao pensar no gasto, e fingi
limpar minha boca com o guardanapo para esconder o sorriso.
— Não posso imaginar nada melhor que visitar uma casa de alta-
costura parisiense — falei. — Eu gostaria de sentar-me aos pés do sr. Worth
e adorá-lo. Nunca vi nenhum de seus vestidos, mas acho que reconheceria
um deles instantaneamente, tal o cuidado com que estudei as descrições nos
jornais.
— Oh, a senhora deveria ir mesmo a Paris, sra. Lillington. — Aquela
era a sra. Froggatt, uma daquelas mulheres que nunca conseguiu
exatamente ser tão estilosa quanto desejava ser. — Então a senhora poderia
voltar e nos deixar mais magníficas que nunca.
Um coro de uivos saudou essa sugestão, todas as damas concordando
que, uma vez em Paris, eu nunca voltaria.
— A senhora é jovem demais para ser viúva, sra. Lillington. — Aquilo
veio da sra. McGilloway, que era bastante jovem também;
consideravelmente mais jovem que o marido. — Não pensa em se casar de
novo? Nunca irá a Paris sozinha, receio.
Engoli de volta a réplica de que eu poderia custear uma ida a Paris com
meu próprio dinheiro, então senti aquela estranha pontada que me percorria
todas as vezes que eu percebia, como se fosse a primeira vez, a extensão de
minha riqueza. Vi o olhar de Judah mover-se brevemente em minha direção
e soube que ele estava pensando o mesmo.
— Não foi uma grande provação, espero — Judah falou, enquanto
observávamos a charrete da sra. Shemmeld, que tinha nos levado de volta
ao seminário, sacolejar sobre os buracos no caminho de volta a
Springwood. A noite estava quente, mas a brisa era agradável e nos
demoramos no topo das escadas, relutando em trocar o ar fresco noturno
pela atmosfera empoeirada do seminário. A lua crescente pendia do céu, sua
luz competindo com as estrelas preciosas. Eu podia ver Judah quase tão
claramente como se fosse dia.
— Graças a você, não foi. É impressionante a frequência com que as
matronas retornam ao assunto do casamento quando há solteiras e solteiros
no grupo, não é? Mas conduziu a conversa para outros tópicos todas as
vezes.
— Não gosto de pessoas me interrogando, e suponho que também não.
— Eu podia ver os dentes brancos de Judah quando ele sorria e o brilho em
seus olhos puxados. — É cansativo.
Eu ri.
— É melhor entrarmos. — Da nossa posição protegida sob o pórtico,
eu não conseguia ver a janela do quarto da sra. Drummond, mas sabia que
estaria lá (e tinha certeza de que a cortina estava balançando). — Se
demorarmos, as línguas vão falar.
— Vão? — A voz de Judah era leve. — Os rumores dizem que é o
jovem sr. Lehmann que está te cortejando.
Baixei a cabeça.
— O que devo dizer quanto a isso? Não posso discutir um assunto que
é confidencial ao sr. Lehmann. — Principalmente com um homem que
brigara com ele, possivelmente por minha causa.
— Não estou pedindo que o discuta.
A voz de Judah havia se tornado carinhosa. Ele tocou meu queixo com
o dedo enluvado, erguendo-o, então tirou suas belas luvas noturnas e as
colocou dentro do bolso. Seu rosto estava nas sombras, e o meu devia estar
iluminado pelo luar, transparente e aberto.
— Eu gostaria… Eu gostaria que soubesse, Nell, que o sr. Lehmann
não é o único homem com interesse em seu futuro.
Judah ergueu a mão de novo para afastar um cacho errante do meu
rosto. Seus dedos eram frios em minha pele quente, e um arrepio me
percorreu, lançando faíscas de energia em meus ombros e pulsos.
— O… — Minha voz saiu esganiçada e pigarreei. — O seu interesse
em meu futuro aumentou desde que percebeu que tenho dinheiro, Judah?
— Ah. — Ele inclinou a cabeça e vi seus olhos se apertarem com
prazer sobre as maçãs do rosto. — Você é uma mulher esperta, suponho que
eu tenha merecido isso.
Ele enfiou as mãos nos bolsos do casaco e virou-se para fitar o céu
noturno salpicado de estrelas.
— Como irei responder a essa acusação? — disse para o espaço vazio.
— Com honestidade. — Cruzei meus braços para estabilizar o tremor.
Era estranho mas, se com Reiner eu me sentia completamente no controle
da situação, com Judah eu sentia… O quê? Perigo?
— Acho que fui honesto o tempo todo, Nell. Deixei claro desde o
começo que eu não poderia me permitir ir em busca de uma mulher sem
dinheiro. O que não significa que eu iria atrás de qualquer mulher
simplesmente porque tem dinheiro. Eu teria que me sentir atraído também.
— Ele fez uma pausa por um longo momento. — Eu sempre senti essa
atração por você, Nell. A existência de sua riqueza me possibilita expressá-
la.
Ele virou-se de volta para mim e pegou uma das minhas mãos na sua.
Afastando minha luva de renda, ele beijou o local da pulsação no meu
punho e meus joelhos amoleceram.
— Com você ao meu lado, não há nada que eu não possa fazer —
Judah continuou, esfregando o polegar no local que tinha beijado. — E não
há nada que não possa conquistar comigo te apoiando. Se unirmos forças —
ele baixou os lábios para meu pulso de novo para que eu sentisse seu hálito
quente enquanto falava —, eu poderia fazê-la extremamente feliz. — Ele
levantou a cabeça e, por alguns segundos, pude sentir seus lábios
pressionados aos meus.
Se eu tivesse bebido vinho, saberia por que minha cabeça estava
girando. Se eu tivesse corrido, saberia por que estava sem fôlego. Mas não
estive bebendo, nem correndo e, ainda assim, me sentia atordoada,
fascinada pelo homem cujos belos cachos escuros estavam tão próximos
que eu precisava apenas afundar os dedos da minha mão livre neles…
Dei um passo para trás, libertando-me de seus braços.
— Eu não sei. — Eu queria perguntar se ele me amava, mas não tinha
ideia de como fazer um apelo a Judah Poulton do que teria ao anjo de
mármore que montava guarda sobre o pequeno cemitério de Springwood.
Judah era tão bonito quanto a estátua e tão proibitivo quanto em sua beleza.
— Você não precisa dizer nada; sei que foi repentino demais para
refletir. — Judah alisou a frente da camisa. — Deveríamos entrar, de
qualquer forma. Não quero prejudicar sua reputação. Queria apenas que
soubesse, isso é tudo.
Ele segurou a porta aberta para mim, e quando vi a sra. Calderwood
parada ali, senti uma pontada de culpa e vergonha. Eu parecia tão
deslumbrada quanto me sentia? Mas a mulher pequena apenas sorriu.
— Uma ótima noite, sr. Poulton. E, sra. Lillington, este é um vestido
realmente belo. Permita-me acompanhá-la com segurança até seu quarto,
minha cara.
Suas palavras e a expressão inofensiva me confundiram. Dois anos
antes, havia praticamente me acusado de ser uma meretriz, e agora ela me
viu atravessando a porta com um homem e estava coberta de sorrisos. A
segui silenciosa pelas escadas, respondendo suas perguntas breves sobre o
jantar com monossilábicos.
Me despi no escuro, pousando meu vestido cuidadosamente sobre a
mesa, para que eu pudesse inspecioná-lo em busca de manchas e rasgos de
manhã. Os pequenos roncos de Tess e a respiração gentil de Sarah
competiam com o chiado sutil do vento pela janela aberta e com os sons da
noite, emudecidos a essa distância do chão.
Subi na cama, mas o sono não veio. Ao invés disso, fitei as estrelas
através das cortinas abertas, parcialmente obscurecidas por longas faixas de
nuvens.
E agora? Eu tinha, aparentemente, dois homens me cortejando, e
nenhum deles gostava do outro. E nenhum deles conhecia aquele fato sobre
minha vida pregressa, o qual era minha obrigação lhes revelar. Talvez
contar repelisse suas atenções, mesmo às custas de fazer a desonra cair
sobre minha cabeça e a vergonha sobre Sarah. Eu desejava repelir suas
atenções? Eu não fazia ideia. Mas teria que contar a eles, não? Se quisesse
honestidade deles, teria que oferecer o mesmo.
Capítulo dezenove

Corte
— Elas são lindas, Reiner. Onde as encontrou? Nunca vi essas flores
crescendo em nenhum lugar perto daqui.
O sorriso de Reiner iluminou seu rosto agradável.
— Magníficas, não são? — Ele tocou as rosas de um tom de pêssego
com a ponta do dedo. — Pedi que as enviassem de Saint Louis, embaladas
em gelo.
— Isso é absurdamente extravagante. Oh, elas têm um cheiro
maravilhoso. — Afundei o nariz na maciez fresca e sedosa das pétalas
enormes. — Mas, Reiner…
— Nada de “mas”. — Reiner cruzou os braços sobre o peito largo. —
Nada é bom demais para a mulher que eu… Para a melhor garota do
mundo, particularmente na ocasião de seu vigésimo-primeiro aniversário.
Eu só sinto muito que elas não estivessem aqui de manhã, então precisei
esperar o dia inteiro para vê-la sorrindo assim.
Comecei a me levantar.
— É melhor eu encontrar um vaso. Elas deixarão nosso quarto
cheirando como um jardim inteiro de rosas.
— Não, fique aqui. — Reiner pôs de pé com um movimento ágil e
tranquilo, e pegou as caixas em minha mão. — Irei à cozinha adular Netta
para conseguir um dos bons vasos. Ela tem a chave da despensa e é no
quartinho perto da despensa que a sra. Drummond guarda os cristais bons.
Irei deixá-las na sua porta e a sra. D. não saberá nada sobre isso. Nada de
vasos comuns para minha dama.
Abri minha boca para protestar que a sra. Drummond com certeza
descobriria e que eu levaria a culpa. Minhas palavras foram contidas pela
entrada do professor Wale na biblioteca que, de outra forma, estaria deserta
nesta bela noite de sexta.
— Cortejando, sr. Lehmann?
A boca em geral sorridente de Reiner apertou-se numa linha fina.
— Com todo o respeito, professor Wale, não é de sua conta. Muitas
coisas não são de sua conta e o senhor faria bem em manter seu nariz longe
delas.
E, para meu assombro, ele saiu pisando duro, a caixa contendo as rosas
agarrada com tanta firmeza que seus nós dos dedos estavam brancos.
— O quê… Professor, que raios o senhor fez com ele? Ele parece que
gostaria de cortar sua garganta.
Um pequeno sorriso cruzou o rosto do professor Wale.
— Eu? Eu não fiz nada ao garoto. Apenas sugeri, em uma carta ao
editor de Saint Louis, que o pai dele faria bem em deixar algumas
considerações morais adentrarem as negociações de sua empresa. Eu diria o
mesmo sobre qualquer magnata das ferrovias que têm tão terrivelmente
especulado com o dinheiro de outras pessoas. Ainda que nem todos tenham
sido tão rápidos para tentar escapar de suas responsabilidades como
Gerhardt Lehmann.
— Um filho não é necessariamente como o pai.
— O rapaz é fraco. — O professor suspirou enquanto sentava-se na
cadeira mais próxima e gesticulava para que eu sentasse perto dele. — Ele é
indeciso quanto ao futuro e as falcatruas do pai não estão ajudando-o. Eu
quase o teria respeitado mais se tivesse partido para roubar os investidores
junto com o pai. Ao menos teria demonstrado alguma ambição.
— Achei que o senhor não aprovasse ambição. — Eu podia ouvir a
acidez em minha voz. O professor Wale, decidi, era um intrometido. Talvez
seus motivos fossem bons, mas escrever aos jornais sobre o pai de Reiner
quando deveria saber que Reiner descobriria… Qual era o objetivo disso?
— Há diferentes graus de ambição. — O professor esfregou um dedo
indicador machado de amarelo na lateral do nariz, fitando-me com atenção
com seus olhos escuros e brilhantes. — É adequado ser ambicioso por uma
boa causa, por exemplo. Mas não é adequado se colocar no topo da
montanha quando tal ambição envolve esmagar todo mundo no caminho
para a subida.
Apenas os bons modos incutidos em mim desde a infância evitaram
que eu revirasse os olhos. Com seu último comentário, ele quis dizer Judah.
Estava claro que nenhum dos meus pretendentes se adequavam aos padrões
do professor Wale.
— Você pode muito bem me encarar desta forma, sra. Lillington. Mas,
acredite em mim, tenho as melhores intenções. Não tenho certeza,
exatamente, porque Judah Poulton está demonstrando interesse em uma
costureira – se me perdoa por mencionar sua condição na vida –, mas o fato
de estar demonstrando interesse me preocupa. Ainda mais considerando
isso.
Ele tirou um maço de papéis do bolso espaçoso do paletó. As folhas
finas estalaram enquanto as manuseava, e pude ver que estavam
cuidadosamente ocupadas pela escrita.
— O que é isso? — A curiosidade superou meu lado sensível e me
inclinei para a frente.
O professor Wale me concedeu seu breve meio sorriso, recostando-se
na cadeira e curvando os dedos ao redor dos papéis.
— É uma carta da Inglaterra, sra. Lillington. Sobre Poulton. E não é
uma leitura edificante.
Um estranho arrepio percorreu o caminho por minhas veias.
— O senhor pretende mostrá-las a mim?
— No momento, apenas pretendo avisá-la. Vi você no encalço dele,
como um filhote de coelho encantado por uma serpente. Talvez minha
garantia de que há razões para o aviso seja o bastante, e não terei que
sobrecarregar a mente de uma mulher com as revelações contidas aqui.
Nem todos os temas são adequados a alguém tão jovem e delicada.
Senti minha raiva despertar.
— Realmente, professor? E o senhor, que é o grande proponente da
pesquisa minuciosa e discussão? Essas discussões devem excluir as
mulheres?
Ele arregalou os olhos.
— As mulheres devem ser protegidas e resguardadas, naturalmente.
Estou surpreso que sequer considere a alternativa. — Ele deu de ombros. —
Mas suponho que, se eu mostrar isso a Cameron Calderwood, sua leal
amada deva ver também. Porém, ela é uma matrona, com a idade madura, e
imagino que depois de uma década ou mais administrando uma escola de
rapazes, esses assuntos não irão surpreendê-la. Poulton vai para o olho da
rua no dia que eu puser essas cartas diante dos olhos dela.
Minha raiva irrompeu e estalou como uma tora se incendiando, e fiquei
de pé.
— Acho que o senhor deveria viver de acordo com seus princípios,
professor Wale. O senhor disse que é importante discutir os assuntos
abertamente, sobre todas as coisas – bem, não deveria ao menos enfrentar
Judah com o que quer que tenha contra ele antes de se esgueirar por suas
costas até os Calderwoods? — Minha respiração estava acelerada. — Então
ele fez coisas no passado das quais pode não ter orgulho. Muito de nós não
fizemos o mesmo? Elas vão nos perseguir para sempre? Não podemos
recomeçar a vida?
O maxilar do professor ficou frouxo, a pele de suas bochechas
parecendo ceder dos ossos. Ele também se levantou.
— Mas… Ouça, sra. Lillington, precisa confiar em mim quanto a isso.
Há coisas neste documento…
— Por que eu deveria confiar no senhor? — Eu estava à beira das
lágrimas, minha própria transgressão no primeiro plano de minha mente e
minha voz soava esganiçada aos meus ouvidos. — As pessoas mudam –
elas mudam – e por que outras pessoas deveriam presumir que repetirão
seus erros anteriores? Por que o passado sempre é empurrado na cara?
Caminhei na direção das grandes janelas francesas e fitei as planícies.
As janelas eram viradas para o oeste, para um pôr do sol glorioso do
Kansas, que era um dos aspectos mais bonitos desta região solitária, mas
não extrai nenhuma alegria disso. Apertei o maxilar com firmeza, desejando
colocar minhas emoções sob controle.
— Sinto muito. — Senti a mão do professor em meu cotovelo,
virando-me para encará-lo. — Eu também tenho ações no meu passado das
quais não tenho orgulho. Mais, talvez, do que possa até imaginar. — Ele
olhou para a carta. — Talvez esteja certa.
De perto, ele estava reduzido a uma figura patética, seu colete berrante
fazia um contraste estranho com o tom cinzento da pele e o pó que parecia
agarrar-se a seu cabelo e roupas. O céu dourado-avermelhado lançava as
sombras mais estranhas, deixando-o com aparência cadavérica ou talvez
como uma estátua de cera desprovida de animação.
— Por favor, converse com o sr. Poulton antes. — Fiz um enorme
esforço para soar calma e razoável. — Ou ao menos o acuse de frente, se o
senhor precisa realmente ir até os Calderwoods. Deixe que se defenda. Ou,
em todo o caso… Para ser sincera, não sei qual seria o melhor curso de
ação. Mas ir clandestinamente aos Calderwoods pelas costas de Judah não é
a coisa certa a fazer.
— Talvez não. — O professor Wale deixou escapar um suspiro pesado
e, para minha surpresa, estendeu a mão esperando que eu a apertasse. Fiz o
mesmo e ele agarrou meus dedos com um aperto firme, apertando minha
mão vigorosamente como se eu fosse um homem. — Você tem minha
palavra, sra. Lillington, de que não darei mais um passo sem consultá-la. Na
verdade, pensarei consideravelmente no assunto antes de agir. E, quando
agir, tentarei fazê-lo como um ser humano racional e um cristão que
conheceu o perdão.
Deixei escapar um suspiro.
— Irá conversar com ele?
— S-i-i-i-m.
Havia dúvida na voz do professor e ele passou um dedo amarelado
pelas folhas de papel que segurava na mão.
— Mas… Você entenderia se eu preparasse uma pequena garantia
primeiro? — Ele me olhou de forma estranha. — Não, não tenho certeza se
iria. Você não vê o que eu vejo em Judah Poulton. E ainda que alguma
coisa… desafortunada aconteça comigo, eu estaria julgando mal se não a
visse como a pessoa que mais precisa de proteção. Então irei mostrar o que
vou fazer.
Eu devo ter parecido completamente perplexa. O professor riu
enquanto caminhava para as estantes que guardavam os textos gregos e
hebreus, uma fileira após a outra de tomos encadernados em couro que eu
não conseguia ler. Ele tirou uma fileira de livros da segunda prateleira e os
colocou na mesa.
— Observe. Tem que pressionar exatamente aqui.
Enquanto ele empurrava o painel no fundo da estante, uma seção de
madeira se soltou. Ele me mostrou como, virando-o para o lado, o painel
podia ser puxado para fora, revelando um pequeno nicho num canto atrás e
em um dos lados. Então recolocou o painel.
— Agora tente você.
Precisei de três tentativas para fazer o painel se mover. Parecia bastante
sólido até que se pressionasse exatamente no lugar certo e, então, uma certa
quantidade de destreza era necessária para extrair o painel sem danificá-lo.
Mas, depois de alguns momentos, triunfei.
— Descobri este pequeno nicho anos atrás — o professor disse,
encaixando a madeira de volta no lugar. — Aí está. — Ele repôs os livros,
garantindo que estavam enfileirados exatamente no lugar onde os raios
fugitivos de luz solar tinham tirado um pouco da cor da madeira. — Se
devo dizer a Poulton o que há nesta carta, por alguma razão não desejo
deixá-la em meu quarto. Copiarei os pontos mais pertinentes numa folha de
papel como um lembrete, mas irei, em algum momento num futuro
próximo, ocultar a carta propriamente dita neste esconderijo. Você tem
minha permissão para ler, a qualquer momento, o conteúdo dela. Se eu não
estiver mais por perto para reivindicar a carta, poderá fazer o que desejar
com ela. Atire-a no fogo sem ler, se acredita verdadeiramente se Judah
Poulton é o que diz ser.
Olhei para ele com dúvida.
— O que, exatamente, o senhor acha que pode te acontecer?
Ele deu de ombros.
— Poulton pode fazer com que os Calderwoods me mandem embora –
desde que criei uma inimizade com o sr. Lehmann e ele é o favorito da
Ratinha. — Um sorriso arrependido brincou em seus lábios. — Estou me
tornando um espinho no pé no que diz respeito aos Calderwoods. Não
consigo me impedir de falar; não posso sacrificar meus princípios em
interesse próprio ou até mesmo tato. Talvez eu seja um pouco louco. — Ele
tocou a lateral da cabeça.
— Para onde iria se o fizessem ir embora?
De repente, me odiei pelo que eu estava fazendo, forçando aquele
homenzinho a uma briga desigual. Eu não confiava que os Calderwoods
seriam imparciais, o que quer que o professor revelasse sobre Judah.
— Sabe, eu não acho realmente que importe. — Um lampejo de
diversão surgiu nos olhos do professor enquanto ele arrumava suas vestes.
O tecido preto de suas roupas absorvia a luz vermelha do pôr do sol, mas
seu rosto e mãos estavam iluminados como se em chamas e o colete
berrante cintilava como o corpo brilhante de um inseto. — Eu não fujo de
uma briga por temer as consequências, como suspeito que saiba. Se Poulton
me atacar, talvez acabe cavando a própria cova em vez disso.
Capítulo vinte

Problema
Semanas depois de minha conversa com o professor, senti como se
estivesse caminhando pela pradaria sob pesadas nuvens escuras, esperando
que a tempestade irrompesse. E ainda assim não aconteceu, e enquanto o
calor do verão gradualmente dava lugar ao ar mais frio do outono, me senti
relaxar de novo. Eu estava ocupada demais para ficar ansiosa, de qualquer
maneira. Tess e eu tínhamos todo o trabalho do seminário para fazer e, à
medida que Springwood crescia, muitas novas encomendas das senhoras da
cidade.
E eu estava na posição peculiar de ser abertamente cortejada por dois
homens, ainda que isso não tenha iniciado nenhuma briga. Reiner e Judah
eram cuidadosos para esperar até que o outro não estivesse nas
proximidades antes de sugerir uma caminhada ou um intervalo lá fora ou
uma hora passada lendo um romance ou jornal na biblioteca – formas
respeitáveis de conhecer um ao outro melhor sem ofender as adequações.
Talvez eu devesse sentir alívio por não haver beijos roubados também –
bem, no caso de Reiner. Eu gostava bastante de Reiner mas, por alguma
razão, eu não via, não conseguia imaginar…
Judah era uma questão diferente. O professor Wale tinha me descrito
como um filhote de coelho sob o jugo de uma serpente – ridículo, é claro,
mas eu precisava admitir que Judah me atraía como um ímã. Durante o
verão, ele cortou o cabelo mais curto, e com o advento do clima mais frio,
deixou crescer uma barba pequena e arrumada, e um bigode. Eles lhe
davam um ar maduro e sério, mais em harmonia com suas novas
responsabilidades como diretor do corpo docente. Sua autoridade dentro do
seminário crescia e, se acontecesse de estarmos em Springwood juntos,
nossa presença conjunta atraía acenos de aprovação e sorrisos agradáveis
dos respeitáveis habitantes.
— No entanto, você sabe, eu acho que estão rindo de mim pelas costas
— falei a Tess um dia enquanto estávamos sentadas costurando mangas nas
cavas. Sarah estava à sua pequena mesa perto da lareira vazia, arduamente
copiando letras da sua cartilha do alfabeto na lousa. Ela tinha ficado
obcecada com a ideia de escrever nos últimos tempos e passava horas
seguidas fazendo uma “escrita de mentira” na lousa, fileira após fileira de
rabiscos e linhas. Eu tinha certeza de que não tinha demonstrado tanto
interesse nos estudos aos três anos e meio.
— Quem está rindo, Nell? Rir é crueldade. — Tess me passou outra
manga para alinhavar; ela não conseguia descobrir como encaixar uma
manga adequadamente mas, assim que eu alinhavava, conseguia costurá-la
com cuidado o suficiente para a camisa de um aluno.
— Eu não os culpo — ponderei, juntando uma emenda na outra. —
Apareço na cidade um dia com Judah, no outro com Reiner. Tentei deixar
claro que não estou enganando nenhum dos dois. Na verdade, saí do meu
caminho para informar às minhas clientes que não tenho a intenção de me
casar e, ainda assim, parecem não acreditar em mim.
— Bem — Tess falou sabiamente —, se não estiver interessada em se
casar de novo, então deveria dizer a ambos para irem embora e caminhar
até Springwood comigo. Ou esperar até conseguirmos uma carona numa
charrete.
Tess odiava ter que caminhar os quase cinco quilômetros de distância
até Springwood, sem mencionar a volta. Sarah também era pequena demais
para fazer o percurso sem reclamar, e pesada demais para ser carregada,
então ela nunca me acompanhava também. Eu esperava algumas vezes até
que um dos criados fosse à cidade, mas eles pareciam um pouco
envergonhados de mim. Porém, caminhar sozinha era ainda mais
condenável agora que houve relatos tanto de caçadas indígenas quanto de
homens violentos nos arredores nas últimas semanas.
— Não vejo nenhum mal em caminhar com os dois — falei na
defensiva. — Ambos são bem conhecidos por serem homens respeitáveis e
ninguém no seminário parece se importar.
— Isso é o que você pensa — disse Tess. — Eliza está bastante
contrariada com você.
Contei até vinte em minha cabeça, alcançando a pequena tesoura
dourada de mamãe para cortar um pedaço da linha antes de responder.
Minha pergunta ainda saiu num tom de voz cortante e tenso.
— O que, exatamente, a sra. Drummond tem contra mim agora? —
Pensei que tivéssemos acabado com toda aquela bobagem. Eliza
Drummond mal falava comigo, mas não dizia nada contra mim por meses,
que eu soubesse.
— Ela está contrariada porque fez Reiner e o sr. Poulton quererem se
casar com você.
— Eu os fiz? — Bati o pé no chão, estando minhas mãos ocupadas. —
Ela acha que eu os seduzi? Não, não se preocupe em responder isso, tenho
certeza que sim. E como ela sabe?
Olhei para minha companheira, que estava costurando assiduamente, a
língua para fora em concentração.
— Tess, você esteve fofocando?
— É claro que não. — Tess ergueu o nariz pequeno no ar. — “Vós não
deveis ir de um lado a outro como um mexeriqueiro entre vosso povo.” Isso
é o que a Bíblia diz, e significa que não se deve fofocar. Se Eliza me faz
uma pergunta, penso bastante antes de responder, caso seja fofoca. Se você
me disse algo em particular e eu conto sobre isso, seria fofoca também, não
é?
— Sim, seria.
— Então eu nunca faço isso.
Sorri para Tess, mas minha mente estava agitada. Eliza Drummond
provavelmente poderia extrair informações de Tess com perguntas
inteligentes. Até mesmo a lealdade de Tess não era páreo para uma mente
tortuosa, e eu tinha certeza de que a governanta possuía uma assim. Tess
passava o máximo de tempo que podia com a sra. Drummond, devido à sua
paixão por detalhes sobre governança, em particular a compilação
cuidadosa e as somas das colunas de números. Eu acabei mantendo nossas
próprias contas diárias com ela – ela fazia as somas lentamente, mas com
grande cuidado.
— Bem, alguém tem fofocado. Ou isso, ou Eliza Drummond esteve me
espionando e tirando conclusões. Isso é pior do que fofocar.
— Oh, a sra. Calderwood contou a ela sobre Reiner e o sr. Poulton.
Dei um pulo.
— E como ela sabia?
— Mamãe, você vai escrever meu nome em meu desenho? — Sarah
correu para mim, estendendo a lousa, que estava coberta do que parecia ser
um pepino, cruzado com um bicho-pau e coberto por lã de ovelha.
Abandonando a costura, mudei-me para uma das minhas mesas de
trabalho e Sarah subiu para a cadeira ao meu lado. Senti seu hálito quente
em minha bochecha e as cócegas causadas pelos cachos espessos que
tinham escapado das tranças enquanto eu escrevia Sarah, dizendo as letras à
medida que inscrevia cada uma.
— Agora escreva cavalo.
Bem, ao menos agora eu sabia o que o desenho deveria representar. Eu
cumpri e entreguei a lousa de volta para ela.
— Tente copiar as letras — sugeri. Olhei para Tess, que tinha
aproveitado a deixa de minha própria interrupção no trabalho para seguir
para a cadeira mais confortável da sala. Sua expressão claramente declarava
que não iria a lugar nenhum nos próximos minutos. — Mostre a Tess
quando terminar. Preciso conversar com a sra. Drummond.
Era final de setembro, mas ainda estava quente o bastante para que
minhas roupas parecessem pesadas enquanto eu caminhava. Naquele
momento do dia, o prédio do seminário estava quase silencioso. Eu podia
ouvir um tilintar longe de panelas na cozinha distante, mas nada mais. A
grande escadaria com sua fileira de janelas de vitrais pairava solenemente
em paz, os lagos de luz colorida cintilando enquanto as nuvens passavam
diante do sol.
Passei pela porta à esquerda do vestíbulo, para o labirinto de cômodos
que rodeavam os aposentos da governanta. Dorcas estava na sala que
abrigava os livros-razão, reclamando baixinho enquanto espanava
meticulosamente cada livro e os recolocava na estante.
— Ela teve criando problema — ela sussurrou para mim quando
passei.
Parei, sentindo-me insegura.
— Problema?
— Para você — Dorcas grunhiu e massageou a lombar. — Com senhô
Lehmann e senhô Poulton. Aquilo a devorou até que ela num pudesse se
impedir de falar, se me perguntar. Ela recebeu os cavalheiros aqui, um por
vez, nesta manhã mesmo.
— Dorcas? — A voz da sra. Drummond, cortante e acusadora, foi
ouvida nas proximidades. — O que está dizendo?
Dorcas revirou os olhos para mim.
— Só que os livros tão pesados, sra. Drummond. Falei para srta. Nell
que tão deixando a dor nas minhas costas pior.
— A sra. Lillington está aí? Se ela tem algo a dizer, deveria entrar, e
não ficar fofocando com as criadas.
— Sim, senhora. — Dorcas fez uma cara séria para mim e, enquanto
eu passava para a sala seguinte, a ouvi dizer “Senhô, Senhô”, o mais baixo
que pôde.
Firmei minha coluna. Eu tinha esperado problemas vindos do professor
Wale, e não havia acontecido. Mas os problemas apareceram de fato.
— Você veio por causa dos lençóis? — A sra. Drummond não se
preocupou em me dar um bom dia.
— Não, mas já que perguntou, eu gostaria de pedir outro rolo de
algodão — falei. — Acho que deveríamos pagar os centavos a mais por
metro pelo algodão de fibra longa, o mais barato não é nem de perto
resistente o bastante.
A sra. Drummond puxou um de seus menores livros-razão da pilha e o
folheou até a página mais recente, correndo um dedo longo e forte pela
coluna de números.
— Muito bem, podemos conseguir isso. Apenas Fruit of the Loom ou
Gem of the Spindle, veja, nada daqueles algodões chiques de Nova York
que custam dezessete centavos o metro. Deixarem por sua conta escrever ao
fornecedor.
Olhei para o topete brilhante de seu cabelo enquanto ela abria o
pequeno caderno e escrevia uma nota meticulosa de nosso acordo, sua
caneta mergulhando, escrevendo e mergulhando novamente. É claro, tudo
que eu tinha eram minhas suspeitas, mas… O que exatamente ela havia
dito?
A sra. Drummond fechou o livro e olhou para mim.
— E como seu estudo das escrituras está progredindo, sra. Lillington?
— perguntou, com um meio sorriso no rosto.
Aproveitei a oportunidade para puxar uma cadeira e me sentar. Eu não
iria tolerar que me fizesse ficar de pé como uma criada. Eu havia atingido
um nervo – seus lábios estavam apertados, mas não disse nada.
— Tess e eu estudamos um versículo todas as manhãs — respondi
educadamente.
— E você sente que sua compreensão dos preceitos morais está
melhorando? — Então um gato podia sorrir, pensei, quando se deparava
com um rato virado de costas.
A inspiração surgiu, e olhei para a sra. Drummond fixamente.
— Tess me ensinou um versículo valioso hoje — falei, arregalando os
olhos com inocência. — “Vós não deveis ir de um lado a outro como um
mexeriqueiro entre vosso povo”. Isso quer dizer não fofocar, é claro. A
senhora não esteve fofocando, esteve, sra. Drummond?
Foi gratificante ver um vermelho profundo e sem vida manchar as
bochechas da governanta. Mas a expressão em seus olhos ficou mais dura,
suas íris verde-acinzentadas eram círculos redondos de pedra.
— Nem todas as conversas em que se compartilha algo sobre alguém
são fofocas. Às vezes, podem ser necessárias para alertar outra pessoa sobre
fatos que ela não conhece.
Bem, aquilo confirmara o que eu suspeitava.
— Sinto dificuldade em estabelecer a diferença — falei, no tom mais
agradável que consegui.
E lá estava, aquele brilho de triunfo.
— Isso porque é deficiente em sensibilidade moral — a sra.
Drummond falou. — Leia Paulo, sra. Lillington, e se esforce para
reproduzir seus esforços incansáveis para melhorar a si mesma e a todos ao
seu redor.
Vasculhei meu cérebro em busca de uma resposta e encontrei… nada.
Nem toda a minha riqueza – a qual, é claro, a sra. Drummond não fazia
ideia da existência – nem minha velocidade de raciocínio e audácia
poderiam responder à certeza no coração da sra. Drummond. Eu era
pecadora, ela não. Ela havia compartilhado meu segredo tanto com Reiner,
quanto com Judah, como o que viu sendo da mais pura necessidade, e nada
que eu dissesse ou fizesse abalaria sua convicção de que estava certa.
Caminhei de volta para minha sala, passando pelos aromas de frango
frito e pão de milho fresco, mas não era o cheiro de comida que fazia meu
estômago revirar. Era a horrível convicção de que, de alguma forma, a sra.
Drummond estava em seu direito. Se eu estava sequer refletindo, em algum
lugar lá no fundo, sobre me casar com Judah ou Reiner, eles tinham o
direito de saber sobre meu passado. Era justo.
Eu havia sido tão descuidada sobre meu futuro naquele maio
ensolarado quando deixei Jack Venton fazer suas vontade comigo. A garota
mimada e atrevida que fui então, pensava apenas em seu próprio prazer e
desejo de assumir privilégios reservados a um adulto, sem nenhuma das
consequências. E ali estavam as consequências, indesejadas e não
procuradas, seguindo-me ao longo dos anos – e, pior, seguindo Sarah e
qualquer um cujo destino que pudesse estar ligado ao meu.
Capítulo vinte e um

Barganha
Os sentimentos que experimentei ao longo dos dias seguintes eram
estranhos. Se alguém tivesse me perguntado, antes daquela conversa, eu
teria lhes dito que não nutria nenhuma esperança específica ou expectativas
no que dizia respeito a Reiner ou Judah – e isso não mudou.
Porém, o conhecimento de que a sra. Drummond revelara meu segredo
a eles, eliminou minha pretensa respeitabilidade, me deu a estranha
sensação de que eu havia perdido um pé ou uma mão, mas não conseguia
descobrir exatamente qual. Eu me sentia ferida, exposta – se acontecesse de
eu estar na mesma sala que qualquer um desses homens, minha nuca
formigava como se estivesse coberta de insetos.
E, ainda assim, a espera se estendia por dez dias agonizantes. Se a sra.
Drummond inventara aquela tortura especificamente para mim, eu a teria
considerado um gênio de refinamento primoroso. Daquela forma, eu tinha
que atribuir meu longo período de suspense aos cavalheiros propriamente
ditos. Eu deveria falar? Ou lhes dar tempo para considerar o que haviam
descoberto? Era uma sorte que eu tivesse tanto trabalho para me distrair, ou
poderia ter corrido louca pelas planícies.
Então Reiner falou. Suponho que estivesse aguardando por uma
oportunidade de me ver sozinha o que, naturalmente, não era fácil. Mas
Tess havia levado uma Sarah sonolenta para a cama. Eu tinha um vestido
para terminar para uma nova cliente e Tess ofereceu-se para voltar e me
ajudar assim que Sarah estivesse adormecida, mas eu não esperava vê-la.
Tess se cansava bem mais facilmente que eu, e um dos motivos pelos quais
se oferecia com frequência para levá-la até a cama era porque ela poderia se
deitar em sua própria cama e meio que cochilar enquanto Sarah lutava
contra o sono tagarelando. O que em geral levava à própria Tess decidindo
que não conseguia manter os olhos abertos.
Eu não me importava. O vestido de caminhada que estava fazendo
propôs alguns desafios interessantes. Era quase todo em um xadrez rosa
com um padrão grande de quadradinhos que precisavam ser
cuidadosamente combinados, e eu estava me divertindo. E estava pensando
com tanto esforço no local exato das partes da estampa que nem mesmo
ouvi Reiner entrar na sala.
— Oh — foi tudo que eu disse quando desviei o olhar do meu trabalho
e o vi parado diante de mim. Ele começou a sorrir mas, de alguma maneira,
o sorriso falhou e um silêncio estranho recaiu sobre nós. Reiner o rompeu,
gesticulando para o tecido espalhado pela mesa de corte.
— Ele é bonito. Gosto de ver uma mulher de rosa. É para você?
Ri com aquilo.
— Você definitivamente não quer me ver de rosa, não com meu cabelo.
Eu estava começando a relaxar, então olhei para o rosto de Reiner de
novo. Seus olhos azuis, antes tão francos e prontos para envolver os meus,
pareciam duros como pedras.
— Certo — eu disse, abandonando meu trabalho e indicando o
caminho para o par de cadeiras que acompanhavam nossa lareira vazia. —
Eu não acho que os próximos minutos serão fáceis para nenhum de nós,
mas podemos muito bem ficar confortáveis. Você quer conversar comigo
sobre o que a sra. Drummond contou, presumo.
Reiner educadamente me guiou até a cadeira e se sentou, parecendo
que estava indo para a forca.
— Então é verdade, não é? — Foi seu primeiro tiro.
— Bem, não tenho completa certeza do que a sra. Drummond disse. Se
foi o fato de eu nunca ter sido casada, é verdade.
Observei o rosto dele escurecer com minha admissão, mas avancei o
melhor que pude.
— Se ela esteve dizendo que isso me torna algum tipo de meretriz, ela
está errada. Eu fui… tola. Uma vez. — Senti minhas próprias bochechas
ruborizarem. — Não fui tola da mesma forma desde então.
Reiner cutucou um pedaço de pele seca no polegar, fazendo uma careta
como se estivesse descamando com o objetivo de aborrecê-lo.
— E você teria me contado? — perguntou.
— Se eu tivesse decidido que me casaria com você, sim. Em tais
circunstâncias, teria o direito de saber. Não vejo como teria tal direito em
outra situação. — Eu sabia que soava arrogante, mas a outra opção era uma
penitência humilde e, por algum motivo, com Reiner eu não podia adotar
esse papel.
A boca de Reiner apertou-se de uma forma que estava se tornando
familiar demais. Não ser mais o aluno despreocupado estava mudando-o,
percebi, assim como seu antagonismo crescente contra o professor Wale.
— Você me deixou cortejá-la sob pretextos falsos, Nell — disse no tom
de um garoto amuado que teve seu brinquedo favorito tirado de si.
— Não pedi que me cortejasse. Você acha que posso afastar todo
homem que demonstre interesse com uma declaração de que criei minha
filha fora do casamento? Pode ser a coisa nobre a fazer mas, em termos
práticos, simplesmente não funciona.
— Você veio aqui sabendo que os homens iriam cortejá-la. Como sabe,
mulheres solteiras são raras na fronteira. — Reiner tinha puxado com tanta
força o pedaço de pele seca que tirou sangue, e pôs o polegar nos lábios
com uma imprecação murmurada.
— Eu vim para cá em busca de um novo começo, onde eu pudesse
criar Sarah longe da fofoca. Mas a fofoca me seguiu. A sra. Drummond não
tinha o direito de criar problemas para mim.
— Ela tem o direito de ver a verdade aparecer. — Reiner ficou de pé,
empurrando a cadeira. — Nell, eu escrevi para papai sobre você. Ele nunca
vai aceitar uma… uma… mulher decaída como nora, você não vê isso? Eu
não poderia me casar com você nem se eu quisesse.
Inclinei minha cabeça para olhar para ele, sentindo minhas
sobrancelhas praticamente encontrarem a linha do cabelo.
— Mesmo se quisesse?
Reiner pescou um lenço um tanto encardido no bolso e o enrolou no
polegar. Eu quase ri da visão que ele proporcionava, parado ali com o rosto
vermelho e com raiva de um dedo machucado – mas, honestamente, aquela
não era uma questão engraçada. Risadas tinham sido um ponto de conexão
entre nós, mas aquilo havia desaparecido agora.
— Você precisa me libertar de qualquer promessa que eu tenha feito—
Reiner falou.
— Eu liberto. — Levantei-me e fui pousar a mão em seu braço, mas
ele deu um passo para trás, derrubando a cadeira no chão. — E sinto muito,
Reiner. Talvez eu devesse ter contado antes. Suponho que eu tenha
pensado… Bem, que se me amasse, um erro não faria tanta diferença.
— Nenhuma diferença? — Os olhos de Reiner eram fendas azuis e sua
voz emitiu um chiado. — Faz toda a diferença do mundo, Nell. É a
diferença entre levar uma noiva respeitável para casa para meu pai e esperar
que ele sancione um casamento com… com uma mulher que não será capaz
de manter a cabeça erguida na sociedade de Saint Louis. Esperar que aceite
uma neta que vai suportar a marca da ilegitimidade para sempre.
Ele olhou para as botas.
— Aquela pobre criança. Pode muito bem haver homens que aceitem o
que tem a oferecer, Nell, mas isso está além de mim.
E com isso, ele virou-se abruptamente, abrindo caminho pela cadeira
tombada, sem se importar em erguê-la. Bateu a porta com tanta força que o
tafetá rosa na mesa levantou-se com a brisa e disparei para evitar que
deslizasse para os lados e desfizesse meu trabalho inteiro.
— Droga. — Passei a mão pelo tecido, sentindo a pontada das lágrimas
em meus olhos. Elas não eram pela perda de Reiner – de muitas formas, eu
achava que era melhor ater-me ao meu plano original de permanecer sem
me casar, feliz em minha vida com Tess e Sarah, e livre de um homem que
desejaria me regrar e pôr sua vida antes da minha.
E, ainda assim, doía pensar o quanto Reiner poderia estar certo. Se a
informação sobre o nascimento de Sarah se espalhasse por Springwood, eu
poderia manter a cabeça erguida até mesmo na sociedade de uma cidade
pequena? As pessoas tratariam Sarah de forma diferente? E, por Deus,
Reiner espalharia a fofoca insidiosa da sra. Drummond adiante?
Não terminei mais nenhum trabalho naquela noite, mas me sentei
taciturna ao lado da lareira vazia por uma hora inteira. Talvez fosse hora de
deixar o Seminário Vida Eterna – mas para onde eu iria?

— O jovem sr. Lehmann parece ter chupado um limão. — Os


pensamentos de Judah estranhamente ecoavam os meus. Ele aparecera
como mágica quando saí para uma breve caminhada antes do jantar. — É
sua aversão obsessiva ao professor Wale que é a causa, me pergunto, ou as
revelações surpreendentes da cara sra. Drummond quanto a seu passado
recente?
Olhei atrás de mim, para as costas de Reiner, recuando. A descrição de
Judah era apurada – o olhar azedo no rosto de Reiner não tinha suavizado
enquanto ele me dava um relutante aceno como cumprimento.
— Pode ser qualquer um dos dois, suponho. — Franzi o nariz, de
repente me sentindo incomodada com Reiner e Judah e não totalmente
inclinada a embarcar na conversa que Judah e eu estávamos prestes a ter.
Por que a vida era tão injusta com as mulheres?
— Ele era, presumo, completamente alheio à não existência do
falecido sr. Lillington? — Judah lançou para mim um olhar de soslaio,
desafiador e talvez até mesmo divertido.
— Você não era? E Lillington é meu nome de solteira, aliás. Eu usava
o nome Govender… Antes de vir para cá.
Agora a expressão de Judah era definitivamente de diversão.
— Govender. — Ele rolou o nome na língua, parecendo levá-lo em
consideração.
— Você sabia? — perguntei de novo. — Ou apenas suspeitava? — Era
difícil interpretar o rosto de Judah, tanto quanto interpretar minhas próprias
emoções. Na presença de Judah, por algum motivo eu sempre queria…
Como poderia descrever? Impressionar, aparentar meu melhor? Havia algo
sobre a pura beleza física de Judah e autoridade que me fazia sentir que
estava acima de mim, uma mera mortal, em cada sentido da palavra.
— Eu suspeitava. Um marido que não tinha deixado para trás nenhuma
lembrança, nenhum retrato de qualquer tipo, nem um nome de batismo que
é sequer mencionado, parece um tanto insubstancial.
— E se importa? — Tendo começado, eu estava ansiosa para acabar
com o assunto.
— Sim, é claro que me importo. — O rosto de Judah endureceu. —
Uma mulher deveria ser pura. Seu pecado irá segui-la por todos os dias de
sua vida e vai seguir sua filha também. Onde quer que vá, a verdade vai
surgir, e pessoas respeitáveis darão as costas a você e evitarão Sarah. Não
deixarão seus filhos brincarem com ela. Você não será recebida na
sociedade.
Assenti silenciosamente, meu coração afundando. Ele estava certo, eu
fui tola em pensar de outra forma. Em Victoria, o amor que as pessoas
dispensavam a minha mãe tinha me abrigado da vergonha, e em nenhum
outro lugar eu encontraria essa proteção.
Judah me observava com atenção. Ele estava sem chapéu, e o vento
das planícies brincava com seus cachos escuros – mais curtos do que
tinham estados, mas ainda abundantes – como se, também, estivesse
enamorado por sua beleza.
— Exceto, é claro, se você se casar com um homem que reivindicasse
Sarah como sua. Ela é muito jovem, logo poderia aprender a chamar um
homem de papai. Se formos nos tornar um, Nell, eu a perdoaria. Eu a
protegeria das consequências de suas transgressões passadas.
Por um momento, alívio e até mesmo gratidão me inundaram. Uma
solução – uma que daria um nome a Sarah e a tornaria respeitável aos olhos
do mundo. E então o bom senso se reafirmou.
— Meu dinheiro, é claro, tem a ver com sua vontade de se casar
comigo.
Judah riu, jogando a cabeça para trás com aparente satisfação.
— Graças a Deus por uma mulher que reconhece uma boa barganha
quando a vê. Sim, Nell, eu já te disse que não posso me permitir me casar
com uma mulher pobre.
— Então você não me ama — falei com convicção.
As sobrancelhas de Judah se aproximaram.
— Não tenho certeza de que possuo a capacidade de amar, se com essa
palavra você quer dizer o tipo de bobagem romântica dos livros. As
emoções parecem ter escapado a mim de alguma forma. Sou guiado pela
lógica e racionalidade. É claro, se quiser que eu a corteje, eu poderia fazer
isso com bastante eficiência.
Havia algo na forma com que ele olhava para mim que fazia um
arrepio descer por minha coluna.
— E eu nunca abandonaria o leito matrimonial, porque outras mulheres
não significariam, de fato, nada. Uma esposa que estivesse disposta a
colocar seu futuro em minhas mãos seria mais valiosa que rubis, Nell,
especialmente uma bonita e inteligente. Eu a admiro tremendamente, sabe
disso. — E, por um momento, senti o toque de um dedo na pele interna
macia de meu pulso sob a luva.
— Um barganha. — Olhei para baixo, observando minhas botas
delicadas – aquele era um dia seco – aparecerem e reaparecerem sob as
saias.
— Um casamento. Um que faria de nós dois uma força a ser
reconhecida. Cam Calderwood… — Ele parou, como se estivesse incerto
sobre como prosseguir.
— O que tem o dr. Calderwood?
Judah sorriu de novo.
— O dr. Cameron Calderwood me tem em alta conta. Fui de grande
ajuda para tornar este lugar um sucesso; tornando-o mais do que o pobre e
equivocado dr. Adema jamais sonhou. E um dia, Nell, isso pode significar
que nossa parceria não será completamente desigual. Cam Calderwood não
tem filhos, deve se lembrar. Nem irmãos, nem irmãs, cunhadas ou
cunhados, ou primos de qualquer grau. Ele e a sra. C. estão sem herdeiros.
Franzi o cenho.
— Ele lhe daria…
Judah ergueu a mão.
— Oh, não, não dar. A sra. Calderwood nunca dá qualquer coisa. O
terreno e o prédio do seminário são dela. A congregação tem um interesse
substancial na propriedade, mas isso não deve se mostrar como um grande
obstáculo. Eu tenho prestado um serviço bom o bastante — seus lábios
franziram como se saboreasse uma lembrança deliciosa —, de forma que o
preço seria mais favorável. Uma bagatela para você, claro, dada a extensão
de sua riqueza. Mas significaria muito para mim ser dono deste lugar.
Trabalhei duro para isso.
Devo ter parecido confusa, porque Judah colocou a mão sob meu
cotovelo, mal tocando a manga.
— Isso pode não acontecer por mais cinco anos, é claro. — Ele olhou
brevemente para o prédio do seminário enquanto me virava para encará-lo,
e sua voz saiu como uma carícia. — Mas eu não esperaria cinco anos para
me casar, Nell. Eu estaria ansioso para afastar de você seus erros do
passado. Nós seríamos uma frente unida para o mundo e ninguém poderia
nos tocar.
Por sobre o ombro de Judah, eu podia ver as janelas do prédio do
seminário refletindo o céu como espelhos cegos, a fileira de janelas de
vitrais escuras e vazias em comparação. A grande construção brilhava sob a
luz laranja do sol da tarde, os telhados de ardósia cinzenta refletindo
cintilações como chamas. Eu poderia mesmo tornar esse local meu lar
permanente?, perguntei-me. E como seria tendo Judah no comando?
Seguimos caminhando e não falamos mais sobre amor ou casamento.
Eu não achava que tínhamos chegado a um entendimento – ao menos não
da minha parte –, mas Judah tinha o ar satisfeito de um homem que havia
superado um obstáculo com sucesso.
Ele me conduziu para o corredor com um tanto de exibição, fazendo
uma mesura cuidadosa à sra. Drummond que por acaso, naquele momento,
emergiu da passagem que levava aos aposentos da governanta. Ela nos
encarou, fixamente, então continuou em um passo rápido na direção das
cozinhas, as costas rígidas como uma tábua.
— Vou me despedir — Judah falou — e ficar apresentável para o
jantar. — E, antes que eu pudesse responder, ele estava seguindo para o
andar de cima, os passos quase inaudíveis na escadaria.
Eu mesma estava prestes a subir, mas algo me fez olhar ao redor. Ali
estava o professor Wale, vindo da pequena fileira de salas de aula que
ocupavam o espaço ao longo da escada. Algumas dessas salas, eu sabia,
possuíam janelas que dominavam a vista da área onde Judah e eu estivemos
conversando. O professor sem dúvidas tinha nos visto.
Hesitei ao ver seu rosto acadêmico pálido, meio escondido pelas trevas
iluminadas lá e cá por um feixe de luz repleto de pó de giz. Ele parecia
velho e cansado, as sombras acentuando o afundando sob seus olhos, os
sulcos profundos que corriam do nariz à boca, o desgaste de seus trajes
acadêmicos. Esperei que falasse comigo, mas ele apenas balançou a cabeça
lentamente enquanto passava, as partículas de poeira rodopiando no ar
sobre seu capelo, seguindo seu caminho solene em direção ao refeitório.
Capítulo vinte e dois

Curiosidade

Na verdade, se passaram mais dois dias até que o professor Wale


dissesse uma palavra para mim. Eu estava à toa, lendo os avisos nos
quadros presos no lado coberto de painéis da grande escadaria – em geral,
resultados de provas e notificações sobre artigos perdidos – quando uma
voz falou em meu ouvido.
— Conversei com Poulton.
Dei um pulo e me virei, quase colidindo com o professor.
— O senhor poderia ter se anunciado um pouco menos
dramaticamente. — Coloquei a mão no peito, sentindo as batidas rápidas do
meu coração.
O professor Wale ergueu a mão num gesto de desculpas e sorriu para
mim pela primeira vez em dias.
— Por favor, me perdoe. Minha mente estava repleta de notícias e
esqueci meus modos.
Balancei a cabeça para indicar que o assunto era de pouca importância.
— O que ele disse?
A testa do professor Wale franziu-se com rugas de confusão sob o
capelo.
— Ele não negou nada do que estava na carta. Não admitiu nada
também. Apenas ficou sentado lá, com aquele sorriso presunçoso no rosto e
ouviu, então me disse que nada em seu passado tinha a ver com suas
circunstâncias atuais.
Senti uma pontada de curiosidade, mas a contive. Se iria ouvir a
história de Judah, não seria contada pelo professor.
— Eu disse a ele que deveria informar aos Calderwoods sobre o que
descobri — o professor continuou. — Ele falou que eu era bem-vindo a
fazê-lo. Disse que não faria diferença para sua posição, caso os
Calderwoods ouvissem fofoca – ele chamou de fofoca – ou não. Perguntei
se ele se arrependeu e se redimiu; ele me assegurou de que o estado de sua
alma era perfeitamente satisfatório. Em suma, estava terrivelmente
tranquilo sobre a coisa toda. Ele até mesmo pôs a mão em meu ombro — o
professor contraiu um ombro com a lembrança — e me disse que eu tinha
coisas melhores com que me preocupar do que com ele.
— Não parece como se… O que quer que tenha acontecido seja tão
importante.
— Humpf. — O professor Wale empurrou o capelo para baixo para
que se acomodasse mais firmemente na cabeça. — Ele arrancou minhas
presas, sem dúvidas. Todo aquele trabalho para descobrir aquele advogado
inglês pomposo… E ainda não sei se deveria falar com Cam Calderwood ou
lançar essa coisa infernal ao fogo.
Ele olhou para mim de forma teatral, as sombras sob seus olhos mais
profundas que nunca.
— E quanto a você… Eu gostaria que tivesse mais curiosidade e
menos princípios. Mas eu dificilmente poderia lhe atribuir um fardo que se
recusa a carregar.
— Oh, não me falta curiosidade.
Um grupo de alunos passou por nós; sorri e lhes desejei um bom dia.
Eles retribuíram meu cumprimento com uma chuva de “senhora” e chapéus
inclinados. Eles deixaram um aroma feral atrás de si ao qual eu estava,
agora, um tanto acostumada.
— Bem — o professor continuou —, caso deseje buscar a elucidação,
a carta permanecerá em seu esconderijo e pode retirá-la quando quiser.
Assenti.
— Acho que prefiro esperar que Ju… o sr. Poulton me conte ele
mesmo sobre o que quer que seja. Quando chegar o momento certo.
— Antes de se casar, espero.
— Não temos planos de me casar no momento. Então tenho tempo o
bastante.
Um sorriso triste surgiu no rosto do professor.
— É o que pensa todo homem, até desviar o olhar de suas
preocupações um dia e descobrir que o tempo escapou por entre seus dedos.
Juro para você, sra. Lillington, que estão diminuindo cada ano desta década
em duas semanas sem me contar, tal a rapidez com que os dias parecem
correr. — Minha risada trouxe uma luz a seus olhos que agora eu raramente
via. — Aqui estamos, de fato, quase no Dia de Ação de Graças — o
professor continuou. — E entendi que não o passarão conosco.
— Não, não vamos. — Não pude esconder meu sorriso de expectativa.
— Tess, Sarah e eu iremos atravessar a planície até a missão dos
Lombardis. Tess e eu decidimos que Sarah está crescida o bastante para não
tornar a viagem um martírio e estamos todas ansiosas pela mudança. Fará
bem a Sarah ver outras crianças.

Deixamos a missão dos Lombardis dois dias depois do dia de Ação de


Graças, momento no qual eu tinha revisto minhas ideias sobre os benefícios
de apresentar Sarah a outras crianças. Foi esclarecedor observar minha filha
tentar encaixar a existência das crianças pequenas dos fazendeiros num
mundo em que, para todos os efeitos, havia até então girado ao redor dela. E
ela imediatamente pegou um resfriado, o que significava que tínhamos que
mantê-la longe de Lucy, que sofria terrivelmente com uma respiração
ruidosa e bronquite.
Não havia sido uma visita animada, apesar de todos os esforços de
Catherine e seu marido. A perda de capital que tiveram durante o pânico
financeiro os havia deixado completamente dependentes do salário pago ao
pastor pela congregação, e dos presentes levados à missão por fazendeiros
gratos e suas esposas. Como as propriedades eram espalhadas ao redor de
uma área vasta, a população não era grande, e os Lombardis também
alimentavam um grupo de vaqueiros itinerantes e mestiços – que pareciam,
do contrário, viver do ar – em troca de algumas horas de trabalho.
Todos eles estavam magros, e o desgaste de suas roupas me fez morder
o lábio e desejar que eu tivesse abastecido a charrete com rolos de tecido.
No final, garanti a promessa de Catherine de visitar o seminário com as
crianças para o objetivo expresso de costurar um novo guarda-roupa.
Persuadir a mulher que antes havia sido minha benfeitora a aceitar minha
ajuda foi uma luta amarga.
Sarah havia contrariado Thea com sua recusa em aceitar as ordens de
uma menina de doze anos de idade. Thea ajuda a mãe com a pequena escola
da missão e tal perda de autoridade a atingiu com força. Para tornar a
questão ainda pior, Sarah decidiu esbanjar sua adoração com Teddy e
agarrou-se a ele como um ímã quando nos despedimos.
— Quando Teddy vem ao seminário? — ela perguntou, enquanto a
carroça do pastor rangia e balançava pela estrada suja. — Por que não
voltou conosco?
— Ele é necessário na missão — pontuei.
— Por que ele não é um aluno? Os outros garotos não precisam
trabalhar.
Olhei para a parte da frente da carroça, onde o pastor estava sentado no
banco, perto de um camponês magro e alto chamado Zeke, que cheirava a
peixe morto.
— Teddy frequentará o seminário mais tarde, talvez.
A ideia de tentar persuadir Judah a criar uma vaga não pagante para
Teddy piscou em minha mente, mas eu tinha dúvidas sobre a probabilidade
de sucesso.
— Quando vamos chegar lá? — Sarah ficou de pé e pendurou-se na
aba traseira da carroça. Estava seguindo na direção leste há algumas horas e
os tons brilhantes do sol poente iluminavam o interior de nosso transporte
da viagem e lançava centelhas de fogo nos cabelos de Sarah.
— Vai estar escuro na hora que chegarmos. Precisa usar o penico de
novo? — Sarah estava pulando vigorosamente para cima e para baixo sobre
os dedos dos pés.
— Não.
— Então se sente, querida. Você vai cair.
— Não, não vou.
Suspirei e tentei me deixar mais confortável. Nossa carroça era coberta
apenas até onde ia o banco, deixando o arco da frente aberto. Quando o céu
do leste ficou um pouco escuro, o pastor acendeu a lamparina, então pude
ver o contorno dos dois homens à frente. Um som explosivo com o qual eu
tinha, agora, me familiarizado, me informou que Zeke cuspira tabaco
mastigado sob as patas dos cavalos de novo. Zeke tinha nos acompanhado
porque precisava viajar até Wichita e isso “cortaria caminho” ao longo do
percurso.
A conversa deles fora de trigo a coelhos, cascavéis, a praga dos
gafanhotos que tinha causado tantos danos à colheita no verão, política em
Abilene e as guerras dos indígenas mais longe, ao oeste. O pastor Lombardi
foi forçado a refrear algumas das histórias mais coloridas de Zeke a alguns
intervalos sussurrando “As mulheres! As mulheres!”. Mas, no momento, os
dois estavam silenciosos. Estávamos seguindo desde antes do anoitecer com
paradas ocasionais para descansar os cavalos e providenciar nossos próprios
confortos corporais e estávamos exaustos – todos, ao que parece, exceto a
criança se balançando logo ao meu redor. Gemi e olhei com inveja para
Tess, que há muito havia se enrolado em um cobertor e caído no sono.
— Mamãe!
— O que é, querida? — Eu tinha acabado de começar a adormecer.
— Preciso do penico.
Gemi de novo e, depois de alguns momentos de um esforço indigno,
localizei o objeto necessário e ajudei Sarah a se acomodar. Segurei o
cobertor que eu havia utilizado para proteger a privacidade de minha filha e
me preparei para o ataque aos meus ouvidos.
Não demorou a chegar.
— O jovem homem OUSAAAADO nooo traPÉEEEZIO… O maior
dos GEEEESTOS… No traPÉEEEZIO…
Eu estava começando a desejar que o jovem homem ousado nunca
tivesse pensado em usar o trapézio voador. Sarah, que em geral não comia
muito, havia consumido cinco biscoitos inteiros, cerca de uma porção do
peru selvagem restante e boa parte de nossa água. Essas evidências dos
efeitos benéficos do ar puro e a viagem tinham levado a muitas
performances impostas do jovem homem ousado, com variações ocasionais
do tema de “IuHUUU! Iuuu-HUUU! Juuuu-biiii-leeeeu.” Zeke, um
veterano da União, tinha ensinado a Sarah a Marcha pela Geórgia durante
nossa refeição no meio do dia.
Fora Thea quem sugerira a Sarah que cantar enquanto ela fazia seus
trabalhos abafaria os barulhos inerentes ao usar um penico esmaltado. Por
que aquela tinha sido uma das instruções que Sarah levara a sério?
Havia ficado bastante escuro lá fora.
— Estamos próximos do seminário, pastor Lombardi? — Precisei
aumentar a voz para ser escutada acima da música.
— Dá pra ver o seminário pelas luzes — Zeke respondeu
laconicamente. — Mas está bem longe. Como ver pela ponta errada de uma
luneta.
Suspirei de alívio, principalmente quando senti a carroça virar. Nós
devíamos ter chegado à estrada que ia de Springwood ao seminário, tendo
contornado a cidade propriamente dita. Logo estaríamos em nossas próprias
camas, com um fim a esse interminável sacolejar e balançar.
A música chegou ao final e observei enquanto Sarah lidava com a
recomposição de sua roupa, antes de soltar o cobertor e pegar o penico. Eu
teria que esvaziá-lo na parte de trás da carroça – não iria pedir aos homens
que parassem com a viagem tão avançada.
— Estou com fome, mamãe.
— Nós comemos toda a comida. Mas estaremos de volta ao seminário
em breve e tenho certeza de que poderemos encontrar alguma coisa.
Rastejei pelas tábuas, conseguindo com dificuldade manter meu
equilíbrio, enquanto puxava minha saia e as anáguas com uma mão,
garantindo que o penico não fosse derrubado.
Sarah suspirou e pôs sua manta ao lado de Tess, virando e revirando
como um cachorro em busca de um lugar confortável. Experimentei a
certeza que toda mãe de um filho pequeno sabe – que depois de ficar
acordada a viagem inteira, Sarah adormeceria e eu teria que carregá-la por
um lance de escada atrás do outro.
Ao menos consegui sair para o fundo da carroça, a cobertura de lona e
seus cordões agarrando-se ao meu cabelo. O pastor havia acendido uma
segunda lamparina e a luz oscilante tocava sombras estranhas nas curvas e
buracos de mato seco ao longo da lateral da estrada, iluminando…
Deixei escapar um grito e derrubei o vaso que atingiu o chão com um
tilintar seco. Sarah despertou com medo, berrando “Mamãe!”.
Gritei de novo, tropeçando em direção à frente da carroça. Zeke estava
puxando as rédeas, murmurando “Devagar, devagar agora.”, enquanto o
pastor virava-se para me encarar. Eu tinha agarrado o banco e me forcei
para cima, quase derrubando os dois homens para trás, até Zeke lançar-se à
frente para fazer o contrapeso.
— O que é? — A voz do pastor competia com o choro estridente e
cansado de Sarah e a exclamação assustada de Tess quando acordou.
Respirei fundo algumas vezes, tentando controlar o tremor em meus
membros inferiores.
— Eu vi… era… — Engoli errado e tossi por alguns segundos. — Um
homem. Um rosto. Estendido na grama.
O pastor Lombardi pôs uma de suas mãos grandes sobre a minha.
Apesar do ar frio, ele era quente, sólido e reconfortante.
— Um truque da luz, Nell. Nós não vimos nada.
— Eu estava muito mais perto do chão do que o senhor. E a luz atingiu
o rosto perfeitamente. — Tão perfeitamente que eu o tinha reconhecido,
mas não queria dizer. Eu queria ter certeza. — Está meio que escondido
entre dois aglomerados grandes de mato.
— Muito bem. — A carroça tinha parado e o pastor alcançou o rifle
pendurado pela alça do ombro num gancho enfiado no banco. Senti Zeke
empurrar a trava para a frente e então o banco balançou nas molas enquanto
os homens desciam, um de cada lado.
— Segure Sarah. — Dei um abraço breve em minha filha e a entreguei
a Tess. — Acho que houve algum tipo de acidente — falei no ouvido de
Tess. — Não a deixe olhar.
Mas eu não precisava me preocupar, pois Sarah estava esfregando os
olhos e enterrando o rosto no seio macio de Tess, fazendo pequenos sons de
contrariedade sonolenta.
Empurrei a lona no fundo da carroça, amaldiçoando minhas saias e
anáguas. Como eu iria descer sem ajuda?
Um grito de Zeke me fez esticar mais a cabeça e a lona capturou os
grampos do meu cabelo, soltando alguns. Eu vi um movimento – eu havia
me enganado e ele havia apenas desmaiado?
O rifle do pastor bradou e Sarah deu um pequeno grito. Na combinação
da luz de lamparina e das estrelas, vi três ou quatro formas pálidas cortando
o mato – coiotes.
Fechei minhas mãos ao redor da aba para entrada com frustração. Os
homens tinham levado as lamparinas e eu podia vê-los se movimentando
cerca de trinta metros adiante, os contornos de Zeke e do pastor enquanto
estavam envolvidos numa discussão profunda.
Bati o pé e marchei até a frente da carroça, onde os cavalos estavam
pacificamente farejando no mato o que conseguiam encontrar. Sentei-me na
tábua lisa, agarrei o aro descoberto para ajudar a me equilibrar, me abaixei
até que meu pé encontrasse a engrenagem e lancei-me à frente. Aterrissei
como um trambolho desajeitado na grama irregular, a lembrança de minha
queda do trenó vívida enquanto os galhos finos açoitavam meus pulsos nus.
Me endireitando, segui na direção das luzes. De súbito, estava ciente
do enorme vazio ao nosso redor. Eu conseguia ver um brilho leve que devia
ser do seminário, mas parecia estar a uma grande distância. Na noite parada,
minha respiração formava uma nuvem espessa de umidade, e estremeci.
As vozes dos homens flutuaram à medida que me aproximava.
— … com o rifle. Não podemos esperar que duas mulheres e uma
criança esperem no campo.
— Eu posso acender um fogo, eu acho. Vou ter que encontrar alguns
caules e tudo, e fazer um círculo para não queimar a maldita grama e o
corpo com ela. Se for necessário que fique esperando. — Zeke soava
rabugento, mas resignado. — Trabalho solitário, ficar de sentinela de um
corpo, pastor. Com os lobos e os índios e assombrações e tudo isso.
Supondo que os peles vermelhas que atiraram voltem.
— Agora, Zeke. — A voz do pastor era firme. — Um homem cristão
não tem nada que ficar pensando em fantasmas. E quem disse que foram
indígenas que atiraram nele?
— Quem disse que não foram?
Meu pé atingiu alguma coisa com um tilintar seco e Zeke, que tinha
tomado posse do rifle, o ergueu no ombro.
— Sou eu — falei rapidamente.
— Por que diab… Pelos céus, o que a senhora está fazendo fora da
carroça, sra. Lillington?
O objeto que meu pé encontrou acabou sendo o penico. Com um
suspiro de resignação, fisguei a alça com um dedo meticuloso e o ergui.
Talvez precisássemos ficar aqui por um tempo.
— É o professor Wale, não é? — Minha voz não estava firme.
— Num conheço ele — Zeke respondeu. — Quem quer que tenha sido,
está bastante morto agora. Tiro certeiro, bem na parte de trás da cachola. —
Ele indicou um ponto na parte de trás do crânio, seu cheiro de peixe morto
flutuando até mim quando a brisa mudou. — Fresco também. Aqueles
coiotes só deram uma ou duas mordidas.
Passei por ele.
— A senhora não vai querer olhar, dona. Num é bonito.
— Já vi pior. — Travei a mandíbula e olhei.
Não, não era bonito. Seus olhos bem abertos, como se estivesse
espantado, gravado pela morte – e precisava haver insetos? Estava frio, mas
não havia congelamento. Moscas e formigas, atraídas pelo sangue,
rastejavam sobre o rosto do professor e alimentavam-se da sujeira pegajosa
e escura de sangue e cérebro que havia esguichado de uma abertura perto do
topo, descendo pelo cabelo preto e espesso. Uma mão ainda segurava um
chapéu de seda. O professor estava excepcionalmente bem vestido, percebi,
como se estivesse jantando. A outra mão mostrava a evidência do trabalho
dos coiotes, assim como os rasgos na calça bem cortada e nas polainas.
Há um mundo de diferença entre ver, de perto, um corpo de um
estranho e aquele de alguém que conheceu, com quem riu e conversou.
Senti as lágrimas quentes se acumularem em meus olhos e escorrerem pela
bochecha. O pastor me puxou para perto, dando tapinhas em minha cabeça
como se eu fosse um de seus filhos. Ele havia baixado a lamparina para
fazê-lo e a luz brilhou diretamente no rosto do professor.
— Por quê? — Foi tudo que consegui falar. Mas eu estava
terrivelmente receosa que soubesse.
Capítulo vinte e três

Acusaçã o
Seguimos o resto do caminho até o seminário praticamente em
silêncio, deixando Zeke montando guarda do corpo até que o pastor
Lombardi pudesse mandar buscar o xerife. De acordo com Tess, Sarah
havia chorado e feito mil perguntas sobre por que eu saí da carroça, mas
quando o pastor me ajudou a subir de novo, ela sucumbira à exaustão. No
final, foi o pastor quem carregou minha filha profundamente adormecida
pelos lances exaustivos da escada até nosso quarto, mas não antes de
mandar um criado até Springwood para trazer os agentes da polícia.
Eu não esperava dormir, mas fechei meus olhos com a imagem do
professor estendido frio no mato e os abri para uma manhã cinzenta e sem
brilho com rajadas de um chuvisco caindo nas nuvens baixas.
Eu havia dormido tanto que Tess já estava acordada e vestida,
escovando seu cabelo fino e claro ao lado da janela, sentando-se com as
pernas dobradas sob as saias para manter os pés longe das tábuas frias.
— Onde está Sarah? — Olhei ao redor do quarto, esperando ver o
clarão de cabelo ruivo.
— Bella veio buscá-la mais cedo. — Bella era a filha de Dorcas, uma
garota agradável e prestativa que frequentemente nos oferecia pequenos
serviços como uma forma de quebrar o tédio do dia. — Ela disse que daria
a Sarah um desjejum especial na cozinha e a manteria fora de nosso
caminho por um tempo enquanto nos recuperamos da viagem.
— Isso é gentil. — Bocejei, estremecendo quando meus pés tocaram o
chão, e então me sentei empertigada quando um pensamento me atingiu. —
Espero que Sarah não fique ouvindo os criados conversarem sobre… O
professor. — Porque eu sabia que os detalhes da morte terrível do pobre
homem já seriam bem conhecidos pelos criados, que sempre pareciam saber
tudo.
— Dorcas não vai deixá-los falar na frente de Sary. — Tess se inclinou
para a frente para olhar pela janela. — Tem homens chegando, veja.
Atravessei o quarto até a janela e me inclinei sobre Tess. Um grupo
isolado de homens – camponeses e homens de Springwood, julgando por
suas roupas – se aproximava vindo do oeste, alguns no lombo dos cavalos,
mas a maioria a pé. Eles não tinham vindo da direção de Springwood –
teriam vasculhado a pradaria em busca dos peles vermelhas de Zeke? A
maior parte carregava rifles.
— Me pergunto para onde levaram o professor Wale — pensei em voz
alta.
— Para a casa do agente funerário em Springwood, espero — Tess
falou. — Perguntei a Bela enquanto Sary estava se vestindo, se eles tinham
trazido o professor de volta para cá na noite passada, e disse que não. Ela
disse que o professor jantou na casa do sr. Joseph Lehmann na noite
passada e devia estar caminhando de volta, já que o tempo estava tão bom
ontem.
Franzi o cenho.
— Reiner estava lá também? Você perguntou?
O rosto de Tess assumiu um olhar de empolgação concentrada e ela
sussurrou:
— Ninguém sabe onde Reiner esteve noite passada, Nell. Ele estava
em Springwood, mas não na casa do tio – disse que caminhou pela cidade,
mas ninguém o viu. Ele estava no quarto nesta manhã.
É claro, por causa do Dia de Ação de Graças, os alunos tinham três
dias de folga – não haveria aulas na sexta ou no sábado. Agora era domingo
e…
— Céus, a missa! — exclamei. — Que horas são?
Tess balançou a cabeça.
— Não haverá a missa da manhã, mas todos precisarão ir à tarde. O dr.
Calderwood já foi a Springwood na charrete, com o sr. Poulton. Não sei se
já voltaram.
Desabei de encontro à moldura da janela.
— Sinto como se tivesse perdido metade do dia. Vou correr e me vestir,
e então vamos ver se conseguimos descobrir o que está acontecendo.

Com o despertar, minha mente estava clara e imparcial, fixada, como


tantas vezes acontecia, nas praticidades do dia, ao invés de na tragédia do
dia anterior. Mas no momento em que empurrava os últimos grampos no
meu cabelo, minha cabeça fervilhava de perguntas e possibilidades. A
imagem do corpo do professor estava constantemente diante de meus olhos
então, em algumas ocasiões, quase esqueci o que estava fazendo.
Talvez, como Zeke sugeriu, havia sido mesmo uma caçada indígena.
No nosso enorme prédio e em sua cidade satélite de Springwood, providos
como eram de muitos dos luxos e conveniências da civilização, era fácil
esquecer que batalhas assolavam a não muitos dias de cavalgada de
distância. Os comanches e os kiowas atacaram colonos e caçadores de
búfalos a alguns dias ao sul e ao oeste no verão, e durante todo o outono
houve rumores de grupos tantos de caçadores quanto de guerreiros
avistados nas planícies ao redor. Um homem sozinho no campo, sem
nenhuma arma de fogo – pois o professor nunca carregava uma – seria um
alvo fácil.
Nós pretendíamos ir direto para a cozinha, mas um burburinho vindo
do segundo andar capturou nossa atenção. Com nada além de uma troca de
olhares, Tess e eu disparamos na direção de onde os sons procediam.
— Bastardo! Seu bastardo!
O uivo enraivecido veio da biblioteca, cuja porta estava aberta e
amontoada, cheia de alunos e professores. O ar era um bafio fétido de
aromas masculinos, uma nota de topo de tensão e medo agravando a
atmosfera de forma que eu quase podia capturar o travo dela em minha
língua.
Nós nos apertamos, mal sendo notadas, em meio à multidão. Em seu
centro estava, como eu já sabia por causa da voz, Reiner Lehmann, num
vermelho vívido de raiva. O xerife de Springwood e dois de seus homens
estavam a um lado, seus rostos impossíveis de ler.
— Seu bastardo inominável! — Percebi que Reiner estava se dirigindo
a Judah, que o fitava diretamente, sem sinal de emoções em seus modos ou
postura. — Você armou isso. Eu não sei por que ou como, mas sei que foi
você!
— É claro que não fui eu. — O olhar de Judah desviou-se para mim e
então para um grupo de professores que estavam à frente de uma multidão
frenética de alunos. — Não tenho nada contra você, Lehmann,
absolutamente nada.
E seu olhar se afastou de volta em minha direção. Havia risinhos de um
ou dois alunos mais velhos, mas eles morreram sob o olhar fulminante de
Judah.
— Sim, nós tivemos nossas discordâncias — Judah continuou —, mas
foram insignificantes, o tipo de coisa que deve acontecer de vez em quando
numa comunidade como essa. E acusar-me de causar a morte do professor
Wale é ridículo. Você sabe muito bem, assim como todo mundo, que passei
toda a tarde de ontem escrevendo nesta biblioteca, em plena vista de várias
pessoas; e que não me recolhi antes das dez horas, bem depois que o corpo
do professor foi encontrado. Outro fato que qualquer um daqueles presentes
observou.
Houve acenos e murmúrios de concordância vindos dos professores
reunidos e de alguns dos alunos. Bem, ao menos aquilo respondia uma das
perguntas que vinha arranhando a superfície de minha mente. Mais alguém
sabia que o professor Wale estava ameaçando expor algum tipo de segredo
sobre Judah? Tentei firmemente não olhar para a fileira de textos gregos que
guardavam o esconderijo da carta.
— E foi seu rifle que encontraram a meio quilômetro do corpo do
professor. O que seu pai enviou no verão, que você gostava tanto de exibir
— Judah prosseguiu, no tom vibrante de um inquisidor. — Pode explicar
como foi parar lá?
— Não, maldição, não posso. — Reiner parecia que iria agredir Judah
a qualquer momento. — Mas só consigo pensar em um bastardo nojento
que seria suscetível a ir rastejando por aí e roubá-lo de mim para seus
próprios objetivos.
Judah respirou fundo e olhou para o xerife, que assentiu.
— Primeiro de tudo — Judah voltou sua atenção a Reiner —, peço que
modifique sua linguagem. Falar tais obscenidades na presença de damas é
imperdoável.
Percebi que a sra. Calderwood também estava lá, agarrando-se – de
forma bem atípica – ao braço do marido.
— E, segundo, lançar acusações contra mim não irá dissipar a força da
evidência contra você. Você não pode provar onde estava. Eu posso.
— Ainda podem ter sido os peles vermelhas — falou um dos homens
de Springwood. — A bala era apenas uma daquelas que se consegue
encontrar no mercado, e muitos de nós temos Winchesters, os selvagens
também. A dele foi só embelezada com algum arabesco. — Um olhar foi
compartilhado entre ele e os outros homens, demonstrando o que pensavam
da arma de Reiner.
— Então por que eu o deixaria no campo para qualquer um encontrar?
— A voz de Reiner era alta e indignada. — Que tipo de imbecil atiraria
num homem e deixaria sua arma largada como uma evidência?
Me espremi até a frente da multidão, o mais perto de Reiner – e, por
causa de nossas posições próximas, de Judah – possível.
— Nell. — Pela primeira vez desde que a sra. Drummond lhe contou
sobre o nascimento de Sarah, Reiner me olhou diretamente nos olhos, com
sua antiga expressão franca, seus olhos exibindo um azul luminoso e
ingênuo contra a cor forte no rosto. — Você sabe que não fiz isso, não sabe?
Sabe que eu não faria. Eu não gostava do velho… do professor, mas eu não
o machucaria.
Olhei para ele por um longo momento e então assenti.
— Acredito em você, Reiner.
— Então virá tranquilamente? — o xerife perguntou, vendo uma
expressão de calma tomar o rosto jovem de Reiner. — Esta não é uma festa
de linchamento, rapaz. Não vamos enforcá-lo sem te dar uma boa chance de
se explicar.
Senti o sangue ser drenado de minha cabeça com a percepção repentina
de que, para Reiner, aquela podia ser uma questão de vida ou morte. Mas o
bom senso me disse que dificilmente poderia lutar ou fugir. Ele estava
encurralado, e teria que obedecer.
— Vá com eles, Reiner — falei. E, virando-me para o xerife, perguntei
— O senhor avisará ao tio dele imediatamente?
— Eu já o fiz. — O xerife também era o vistoriador da terra, um
homem equilibrado de seus trinta e tantos anos com uma esposa agradável –
para quem eu fiz um vestido diurno – e vários filhos pequenos. Ele me deu
um aceno tranquilizador. — Não se preocupe, senhora, não iremos ser
apressados. Deixaremos uma oportunidade para que o rapaz se explique.
Os alunos começaram a afastar-se como uma massa única das portas da
biblioteca enquanto Reiner era conduzido adiante entre os dois homens do
xerife, nenhum deles o segurando.
— Você agiu bravamente, Nell — Judah falou em meu ouvido. —
Encontro mais qualidades para admirar em você a cada dia.
— Você acha que ele de fato fez isso? — Por alguma razão eu não
estava de todo impressionada pela avaliação de Judah quanto às minhas
qualidades.
Judah deu de ombros.
— Não sei. Eu não entendo a questão com o rifle e não vejo o que
Lehmann estava fazendo perambulando pelo campo à noite. Talvez tenham
sido os indígenas – e talvez nunca saibamos. — Ele sorriu. — Tudo que sei
é que eu não atirei no homem.

— Você o viu? — Tess tinha esperado para perguntar desde o meu


retorno de Springwood, porque Sarah estava na sala de trabalho conosco,
mas no momento em que a porta se fechou atrás de minha filha,
decididamente lançou-se em cima de mim. Sarah estava tão perto dos
quatro anos que agora eu a permitia fazer passeios específicos ao redor do
prédio, desde que prometesse não se afastar.
— Não. — Estiquei meus pés calçados em meias na direção do nosso
pequeno fogo. Estávamos poupando a lenha escassa, mas a caminhada até
Springwood e de volta por uma trilha encharcada tornara esse pequeno luxo
necessário.
— Vi o tio dele — continuei depois de alguns momentos, durante os
quais Tess se inquietou. — Mas Reiner não está mais em Springwood, o
levaram para Abilene. É claro, seu tio me fez todo o tipo de perguntas já
que fui eu que avistei o… o professor, mas não pude ajudá-lo muito.
— Por que ele foi para Abilene? É um lugar ruim, não é? — A testa de
Tess franziu de consternação.
— Porque Springwood não tem uma cadeia, o sr. Lehmann disse. Ele
não pareceu muito preocupado quanto a isso. Ele disse que tinha certeza de
que havia dúvida o bastante quanto à culpa de Reiner, e que podia libertá-lo.
Movi minhas botas para um pouco mais perto do fogo.
— Eu gostaria de poder me sentir tão confiante, mas o tio de Reiner é
advogado e entende dessas coisas.
Tess se aproximou de mim, apoiando o braço em meus ombros e
depositando um beijo leve em minha testa.
— Você parece tão preocupada, Nell. E cansada. E parece que não
dormiu.
— Eu estou preocupada e cansada. E não, não dormi bem. — Na falta
da completa exaustão que me garantiu uma noite de sono quando voltamos
da casa dos Lombardis, eu havia passado a noite anterior assombrada pela
lembrança do rosto ensanguentado do professor, e de seus olhos infestados
de insetos. E o sono que consegui foi assolado por pesadelos sobre Reiner
parado com uma corda ao redor do pescoço, esperando pela queda no
esquecimento.
— Vou à cozinha — Tess disse bruscamente. — Netta com certeza irá
me dar alguma bebida boa e quente e então poderá ir direto para a cama
depois do jantar.
Acariciei a mão pequena e rechonchuda pousada em meu ombro.
— Você é a irmã mais maravilhosa com que eu jamais poderia sonhar
— falei. — Mas preciso ficar acordada até tarde hoje à noite. Tenho algo a
fazer.
Capítulo vinte e quatro

Libertaçã o
Naturalmente, precisei esperar até que as lamparinas na biblioteca
estivessem apagadas, mas pensei em levar o pequeno castiçal coberto que
Tess e eu usávamos para imprevistos noturnos.
O prédio estava completamente silencioso, e cada estalo das escadas
soava alto como um tiro aos meus ouvidos. Meu coração martelava tão forte
que pensei que acordaria o prédio inteiro. Mas agora que o professor estava
morto, parecia urgente que eu recolhesse seu legado, mesmo que não lesse a
carta que manteve escondida por todos esses meses.
Qualquer um que se aproximasse da biblioteca veria a luz, é claro. As
portas com painéis de vidro não tinham cortinas que eu pudesse fechar.
Mas, pela mesma razão, eu poderia ver a pessoa através da luz que ela
segurasse – e o clique distinto das portas da biblioteca não me deixaria
qualquer incerteza se alguém entrasse na sala.
Fechei as portas com cuidado, garantindo que estavam firmemente
travadas e então comecei meu trabalho.
A vela não era luminosa em seu suporte perfurado de latão, então
precisei tatear o caminho pelas sombras mal visíveis dos móveis, prendendo
a respiração caso eu tropeçasse na perna de uma cadeira ou prendesse o pé
num tapete. A sala não havia sido bem arejada, provavelmente por causa da
chuva caindo no dia anterior. A mácula do suor ainda perdurava no ar,
levemente acre, uma lembrança da cena tensa da prisão de Reiner.
Apenas quando eu soube que estava perto da estante na qual o
professor guardara a carta, coloquei de fato a portinha do castiçal em
posição mais aberta. Precisei de um momento para perceber que havia
interpretado mal onde estava – como era fácil se perder no escuro! Eu
estava duas estantes além da posição imaginada. Segurei a vela no alto,
procurando os livros certos, correndo minha mão pela beirada das
prateleiras para ter certeza do meu caminho.
Ali estavam elas, inconfundíveis. A grafia grega indecifrável brilhava
dourada na lombada dos tomos pesados e encadernados de vermelho.
Apoiei o castiçal numa mesa próxima e puxei os cinco primeiros volumes,
um de cada vez, surpresa por quão pesados eram.
Minhas mãos tremiam enquanto eu me atrapalhava em busca do
pedaço solto de madeira. Por um momento, pensei ter errado a localização,
tão bem colocado no lugar que estava, mas finalmente meus dedos
encontraram um pequeno intervalo na prateleira lisa. Empurrei a
extremidade de cima da forma como o professor Wale havia me mostrado.
Nada aconteceu; empurrei de novo, mais forte e, para meu alívio, senti a
madeira inclinar-se de volta. Mexi nela até que conseguisse manusear a
madeira para fora de seu buraco.
— Você poderia ter feito isso quando não estava tão cansada, sabe —
grunhi baixinho para mim mesma, irritada com o quanto meu coração batia
ridiculamente rápido. Era provável que eu não dormisse essa noite também.
Respirando fundo, enfiei os dedos no espaço – e o encontrei vazio.
Alguns minutos de busca frenética e uma inspeção atenta, levando a
vela o mais perto que ousava da madeira seca, me convenceram que, de
fato, a carta havia desaparecido. O professor poderia tê-la retirado antes de
morrer, claro; mas será que alguém tinha revistado a sala? O que
exatamente fariam com seus pertences?
Recoloquei o pedaço de madeira e os livros e soprei a vela. Fiquei
parada por alguns minutos no escuro, inspirando os aromas de fumaça e
cera quente, permitindo que meus olhos se reacostumassem com a
escuridão – e pensando.
—Deveria ter lido a porcaria da carta quando tive a chance — falei em
voz alta. Mas eu tinha a intenção de ler ou queimá-la? Não sabia dizer.
Relaxei os músculos de minhas costas o quanto pude, sentindo a
pressão de um espartilho que eu já usava há muitas horas. Eu deveria
descansar um pouco, falei para mim mesma, se não dormisse. Forcei meus
membros inertes a moverem-se e apalpei o caminho até a porta, guiada pela
luz fraca da entrada. A abri e saí da biblioteca.
— Não conseguiu dormir?
Meu coração contraiu tão violentamente que senti um comichão por
meus dedos, ainda que conhecesse a voz.
— Judah, quase me matou de susto. O que está fazendo aqui?
— Acho que eu deveria perguntar o mesmo a você. — A voz de Judah
estava cheia de riso. — Por que não usa a vela que está segurando?
Ele conseguia ver no escuro? Obviamente eu não podia dizer o que
estava fazendo.
— Achei que pudesse encontrar o caminho de volta pelas escadas sem
incomodar ninguém. E não, eu não conseguia dormir. Tive algumas noites
ruins.
— Está preocupada com Reiner Lehmann? Sei que foi a Springwood e
posso imaginar que tentou visitá-lo. Você é muito mais gentil do que aquele
garoto merece, Nell.
Me concentrando bastante, consegui ver o rosto de Judah como um
borrão pálido na escuridão.
— Eles o levaram para Abilene.
— Eu sei.
— E o que você estava fazendo, perambulando pelo prédio no escuro?
— perguntei, sem vontade de continuar falando sobre Reiner.
— Na verdade, perambulava do lado de fora do prédio. Estava
começando a me perguntar se havia deixado uma trilha de pegadas
lamacentas no corredor que vão enfurecer a sra. Drummond. Mas com o
professor assassinado e todos esses relatos de indígenas e vadios brutos
vagando pelas planícies, me senti inquieto e queria me assegurar que não
tinha ninguém no terreno.
— Sem uma lamparina? — Judah segurou meu braço, e senti a
mudança no ar enquanto ele abria a porta que levava à escadaria. Agora eu
conseguia vê-lo sob a luz de lamparina que sempre estava acesa ao pé da
escada, colocada sobre uma panela de água, caso caísse.
— Vejo bem no escuro, e uma lamparina ilumina apenas uma pequena
área. Se quiser ver melhor do lado de fora, a luz das estrelas e o luar são
companhias o bastante e tenho o andar seguro o suficiente para não cair.
O andar seguro ele com certeza tinha. E seguro de si mesmo, de todas
as formas – era parte da atração que o homem exercia, o ar de segurança e
autoridade que carregava consigo. Estremeci.
— Está com frio, Nell? — Os braços de Judah me envolveram, mal me
tocando e, pelo contrário, o tremor se intensificou.
— Não. — A palavra saiu abruptamente. — Estou assustada por
Reiner. Eu gostaria de tê-lo visto.
— Ele estará seguro o bastante na cadeia, seguro contra o ambiente de
linchamento em Springwood. Até ser enforcado.
Me assustei com isso, me afastando dos braços de Judah. O movimento
me levou perigosamente perto do topo das escadas e cambaleei por um
segundo até que Judah me recapturasse – com mais firmeza desta vez.
Nunca estive tão perto dele, percebi. Eu podia sentir seu coração batendo,
lento e estável, e senti o hortelã em seu hálito.
— Enforcado? — Ofeguei quando consegui respirar. — Mas Judah,
eles não podem, ele não…
— A evidência está contra ele. — Senti os lábios de Judah passarem
por minha testa, e meu corpo traiçoeiro foi inundado por calor, apesar de
minha agitação. — E, ainda assim, também estou inclinado a pensar que ele
não fez isso. Me pergunto o que realmente aconteceu. — Judah soava
apenas curioso, como se o caso fosse o item de um jornal distante.
— Preciso ir a Abilene. Eu não… Não vejo que diferença posso fazer,
mas preciso fazer alguma coisa para ajudá-lo. Não posso ficar parada
enquanto um homem é acusado de algo que não fez.
— Não é decente que uma mulher se intrometa nesses assuntos. Acha
mesmo que o xerife de Abilene irá ouvir a costureira de um seminário?
Judah ergueu as mãos para envolver as minhas, correndo as pontas dos
dedos em minhas costas e na cintura enquanto o fazia, e aprisionou minhas
mãos nas suas, levando-as a seus lábios. Senti o pinicar de sua barba,
surpreendentemente espessa, e sua boca era quente em minhas palmas frias.
— Mas irei em seu lugar, se quiser. — Os dedos frios e delgados de
Judah fecharam-se ao redor dos meus. — Afinal de contas, nutro esperanças
de um dia estar numa posição de guiá-la e protegê-la, como eu já falei. Você
consentiria em me tornar seu protetor, Nell? — Ele levou minhas mãos aos
seus lábios e então me beijou na boca, de alguma forma com mais força do
que havia feito antes.
Fechei meus olhos, mas logo os abri de novo e me afastei – era tão
estranho, ele me cortejando na escadaria do seminário à noite. Além disso, a
parte consciente do meu cérebro havia acabado de entender o que Judah
falou.
— Você acabou de me pedir em casamento, Judah?
— Suponho que sim. — A diversão estava de volta à voz de Judah, ou
talvez nunca a tenha deixado. — Sua promessa significaria muito para mim,
Nell. — Ele me aproximou mais de si e minha pele aqueceu. Eu estava tão
cansada e a noite era tão escura, que a presença de Judah parecia
irresistível, como se fosse errado pensar em qualquer outra coisa ou
qualquer outra pessoa. Por um instante, quase cedi à tentação de deixar
Judah assumir o controle de minha vida…
Mas não.
— É o momento errado de pedir, Judah — falei, fazendo uma tentativa
débil de me libertar de seus braços; onde, na verdade, meu corpo estava
perfeitamente feliz em permanecer. — Muitas coisas terríveis aconteceram,
como posso pensar em casamento?
— As coisas terríveis não têm nada a ver conosco, Nell.
Como eu desejava poder acreditar naquilo. Minha mente estava agitada
com emoções e sensações que pareciam não estar mais sob meu controle,
mas ainda tinha um pressentimento dominante de que eu não deveria tomar
uma decisão tão apressada.
— E há muito mais a se conversar, Judah. Sarah e Tess…
— Sarah e Tess serão guiadas por você como você seria guiada por
mim. Elas são crianças; não podem ter nada a dizer quanto a seus destinos.
— Tess não é uma criança. — Senti uma pontada de perturbação.
— Tess é uma imbecil e precisa, assim sendo, ser tratada como uma
criança. — Judah depositou um beijo final em meus lábios e me soltou. —
Mas está certa, essa não é nem a hora nem o lugar para conversar sobre
essas coisas. Está cansada e deveria ir para a cama. Não há nada a temer,
Nell.
— Há tudo a temer. — Tentei fortemente focar no essencial. — A vida
de um homem está em jogo, Judah. Se há uma possibilidade de Reiner ser
enforcado, preciso fazer tudo em meu poder para garantir que a verdade
prevaleça.
Subi alguns degraus e então me virei quando um pensamento me
atingiu. O rosto de Judah estava nas sombras, a luz fraca da lamparina
distante tocava as pontas de seus cabelos com seu brilho alaranjado.
— Afinal de contas, tenho dinheiro. Por que eu não deveria pagar um
agente de Pinkerton para investigar o caso de Reiner, para descobrir o que
seu rifle estava fazendo lá fora no campo, por exemplo? Voltarei a
Springwood amanhã e colocarei a ação em curso.
— Nell. — A voz de Judah era suave, carinhosa. — Você é boa
demais. Mas, me deixaria conversar com o xerife em Springwood primeiro?
Posso não ter seus recursos, mas sou um homem. Eles irão me ouvir.
Assenti, cansada, exausta demais para discutir.
— Muito bem, Judah. Mas não hesitarei em tomar uma atitude se
Reiner ainda estiver em perigo ao final da semana.

Judah era um homem de palavra. Ele partiu na frieza e no gelo do dia


seguinte – já que uma friagem havia chegado durante a noite para congelar
os campos ensopados de chuva, transformando-os numa massa sólida,
estalando – para conversar com o xerife de Springwood.
A visita culminou na partida dos dois homens a Abilene. O estudo do
Velho Testamento foi tristemente negligenciado no seminário por uma
semana inteira até que Judah retornasse, triunfante. Eles não haviam
exatamente declarado Reiner inocente, mas o tinham libertado. Os jornais
de Abilene falaram sobre as dúvidas levantadas pelas capacidades legais do
tio dele, os protestos de inocência de Reiner e comportamento geral e
“informações recebidas”.
E, ainda assim, Reiner não voltara ao seminário. Judah estava quieto
sobre o que exatamente havia ocorrido, me informando com um sorriso que
não era correto uma mulher questionar sobre tais coisas. Porém, descobri
que Reiner havia partido para a casa do pai em Saint Louis depois de uma
promessa de não retornar ao Vida Eterna.
E foi isso que aconteceu. Eu teria partido para conversar com o tio de
Reiner de novo se não fosse por uma nevasca adiantada que surgiu no
encalço da volta de Judah. Cobriu as planícies com uma neve que, ao longo
dos dias seguintes, derreteu e voltou a congelar, numa carapaça traiçoeira de
gelo que tornou as excursões quase impossíveis.
A vida no seminário estabeleceu-se de volta à sua rotina, pontuada por
refeições cada vez mais pouco variadas, enquanto os criados valiam-se do
estoque de comida. O tópico da morte do professor Wale fora abandonado
rápido demais como um mero exemplo dos perigos que rondavam a
fronteira.
E eu? Eu não tinha a carta que o professor queria tanto que eu lesse. E
não tinha uma forma de saber se ela ainda existia ou se alguém a havia
jogado no fogo. Também não tinha contato com Martin, pois a neve
tornando o envio e recebimento de cartas impossível. Me preparei para o
inverno com a estranha impressão de que não havia nada mais para mim –
nada além de Sarah, Tess e Judah.
1875

Capítulo vinte e cinco

Expectativa
— Eu não sei se realmente percebe a quantidade de trabalho envolvido
na construção de uma casa.
Judah se inclinou sobre meu ombro para olhar a planta desdobrada que
eu tinha estendido sobre uma das mesas da biblioteca. Ela mostrava uma
área próxima ao centro de Springwood.
— Essa parece uma decisão apressada, Nell.
— Venho pensando nisso o inverno inteiro — protestei. — O sr.
Shemmeld me apresentou a ideia logo depois do Natal, quando fui visitar a
esposa dele.
E agora era março, e o pensamento sobre me mudar do seminário havia
começado a dominar meus sonhos.
— É claro, ele propôs uma casa pequena; pois pensou que eu tinha
apenas o dinheiro que ganhei como modista, mas não parece ser uma ideia
sólida. E não preciso construir de imediato. Posso comprar o lote de terra e
construir quando quiser. Afinal de contas, os preços estão subindo o tempo
todo, então, quanto mais cedo, melhor.
— Mas se você se casasse comigo, iríamos morar no seminário. —
Judah franziu as sobrancelhas lisas. — Como os Calderwoods. Eu não
gostaria de viver fora das instalações, pois gostaria de supervisionar a vida
no seminário.
— Eu nunca tive minha própria casa, Judah. Fui dona da casa da minha
mãe por tão pouco tempo antes de ter que vendê-la. — Dobrei de novo a
planta. — Mesmo se nos casarmos, eu não poderia passar os últimos meses
do meu estado de solteira em minha própria casa? Meu negócio como
modista seria muito mais fácil de administrar se eu estiver mais perto de
minhas clientes. E Sarah tem quatro anos agora, e Springwood tem uma
escola pequena que poderia frequentar, já que sou uma professora ruim e ela
gosta tanto de aprender.
— Se você fosse minha esposa, não seria uma modista. — Judah
cruzou os braços com uma careta, mas então me concedeu um de seus
sorrisos devastadores que sempre faziam eu me sentir como se devesse lhe
conceder qualquer desejo. — Ou pelo menos limitaria a costura de vestidos
para si mesma e roupas para nossos filhos e filhas. Poderia viver a vida de
uma dama, Nell, assim como nasceu para viver.
Eu tinha outros pensamentos sobre se deveria desistir do meu negócio,
mas permaneci em silêncio naquele ponto.
— E está esquecendo que a ilegitimidade de Sarah não é adequada a
ela para uma vida em sociedade, mesmo na sociedade de Springwood. Ela
será excluída se você não for casada.
Senti meu coração afundar. Judah tinha razão – eu havia desistido da
esperança que minha condição de não casada permanecesse em segredo
para sempre. Na verdade, tinha certeza de que a sra. Yomkins, a matrona
mais inteligente de Springwood, já suspeitava ou até mesmo sabia. Gentil
como era, havia uma certa frieza em seus modos sempre que a conversa se
desviava para Sarah.
— Suas clientes são amáveis o bastante agora. Você não representa
nenhuma ameaça ao decoro em Springwood porque mora aqui, e não lá —
Judah continuou, seu tom pouco emotivo. — Mas se viver entre eles, uma
mulher jovem, bonita e solteira com um passado duvidoso, irão começar a
desconfiar.
Eu estava obstinadamente quieta, mas havia verdade no que Judah
dizia. Minha vida atual estava começando a me aborrecer e irritar como
uma bota que não cabia bem, mas era segura e previsível. Os olhares duros
da sra. Drummond eram meu único lembrete do meu flagelo. Os garotos e
professores ou não sabiam ou não se importavam com a vida da costureira e
com a amabilidade dos Calderwoods comigo.
Judah tomou minha mão – era de manhã cedo, e a biblioteca estava
vazia – e a virou para cima, inspecionando meus dedos longos e com as
pontas arredondadas. O anel dourado com as flores delicadamente gravadas
que usava em minha mão esquerda brilhou na luz suave que penetrava
através das janelas francesas. Era a aliança de Emmie, a que meu falecido e
não lastimado padrasto, Hiram, havia comprado para sua primeira esposa.
— É claro, estaria segura o bastante se tivesse a proteção do meu nome
e talvez, com o tempo, poderíamos considerar uma casa em Springwood.
Sarah certamente poderia ir à escola como minha filha; ainda que fosse
precisar de uma escola melhor muito em breve, em Saint Louis, talvez. —
Judah correu o polegar por meu anel. — Afinal, se fôssemos casados, Sarah
se tornaria um membro proeminente da sociedade de Springwood à medida
em que cresce. Precisamos criá-la de acordo, com todas as pequenas
realizações que embelezam uma jovem dama.
Costurando, pintando, tocando piano, fazendo visitas e dando ordens
aos criados, pensei. Tentei imaginar Sarah como uma beleza da sociedade
na fronteira. Ela se casaria e viveria na ociosidade e teria muitos filhos. E
Springwood estava crescendo para se tornar exatamente o que minha
própria casa em Victoria havia sido – sóbria, respeitável e próspera.
— E o dia está se aproximando rápido Nell, quando posso te propor
casamento como um homem com boas perspectivas. — Judah acariciou os
pelos espessos da barba. — A sra. Calderwood já teve o bastante,
principalmente depois dos eventos do feriado de Ação de Graças. — Ele
gesticulou na direção da braçadeira preta que eu ainda usava sobre a blusa
pelo professor Wale. — Seus pensamentos começaram a voltar-se para as
delícias da vida numa cidade grande.
Perguntei-me, por um momento, quanto encorajamento Judah estava
dando, por sua vez, aos pensamentos da sra. Calderwood. Mas meu
pretendente já arrumava o paletó, os punhos e a gola, preparando-se para
sair.
— Preciso martelar algum entendimento sobre o Primeiro Livro das
Crônicas na cabeça dos garotos mais jovens. Irá me acompanhar até o andar
de baixo?
Acomodei a planta sob o braço e segui Judah até o rugido de vozes
jovens masculinas. Assenti automaticamente quando alguns rapazes
seguindo para sua primeira aula do dia me cumprimentaram pelo nome. Era
bem sabido agora que Judah me cortejava. Os garotos pareciam aceitar o
fato com nada mais que o sorriso ocasional ou um comentário sussurrado.
Judah era uma figura autoritária demais para ser alvo de piadas.
E este lugar pertenceria a mim – a nós –, pensei, observando a
multidão de garotos se dividir enquanto seguíamos descendo a escadaria
larga e ornamentada. Eu seria uma mulher respeitável, sem necessidade de
me preocupar com o futuro, pois o futuro estaria determinado. Eu
pertenceria ao Kansas, ao seminário Vida Eterna. E a Judah.
Dadas minhas hesitações quanto a Judah, estava satisfeita por não ser o
que se poderia chamar de um pretendente ardoroso. Ele era, estava
descobrindo, um homem que jogava um jogo longo, esperando com a
paciência de um gato diante de um buraco de rato pelo momento certo para
atacar.
Seus comentários sobre os perigos de me mudar para Springwood
como uma quase viúva fora o suficiente para lançar uma sombra de dúvida
em minha mente. Deixei as semanas passarem sem tomar a decisão de me
mudar.
A posição de Judah no seminário parecia inatacável. Além disso, notei
minha própria condição entre os docentes e a equipe tornando-se mais
proeminente. A transição foi quase imperceptível, e então vieram os sinais
mais claros, que se alinhavam estranhamente com minha posição de
costureira. A mudança, parecia, estava no ar.

— Uma hora de antecedência não é tempo o bastante de me vestir para


um jantar — resmunguei o mais baixo que pude quando avistei Judah. De
tirar o fôlego com seu traje noturno, esperava por mim na escada. — Por
que fui convidada?
— Porque eu queria você lá. — Judah segurou a porta aberta enquanto
eu manobrava minha passagem, um vestido com uma cauda não era bem
adaptado a soleiras de portas. — A sra. Calderwood a convidou atendendo
ao meu desejo, ainda que, ao olhar para você, tal intervenção não seria
necessária, pois pertence a uma sala de estar, Nell, e em um vestido como
esse.
Suprimi um sorriso. A única extravagância que eu não podia evitar
ceder, eram vestidos novos, e estava particularmente satisfeita com esse.
Não havia pensado em encontrar muitas ocasiões nas quais usá-lo, mas
havia justificado o gasto a mim mesma em sua utilidade como amostra. Sua
base era de uma seda espessa em dourado claro, de uma riqueza gloriosa.
Eu o enfeitei com um fino cordão carmim de seda trançada, com um
corpete quadrado do qual saía um babado de renda. Martin uma vez
elogiara meu pescoço e disse que parecia melhor com um pouco de renda e
eu precisava admitir que ele estava, como sempre, certo.
Algumas pessoas me reconheceram quando entramos na biblioteca,
onde os criados distribuíam uísque para os homens e licor para as damas.
Haviam transformado o ambiente removendo várias mesas e escrivaninhas.
O espaço extra era necessário para as caudas dos vestidos das damas, já que
a moda ditava que os trajes da noite performam o dever duplo de estar
magnífica e varrer o chão para livrá-lo de poeira e detritos. Nós, mulheres,
parecíamos navios esplêndidos velejando, e notei com prazer que eu mesma
costurara vários dos vestidos.
Perto de suas esposas, os homens pareciam filhotes comuns de
galinhas. A maioria deles estava rígida e desconfortável, com seus
colarinhos curtos e fraques, andando cuidadosamente para que não
pisassem nas caudas das esposas e despertar sua ira. Judah parecia que
nascera para usar boas roupas e seguiu o caminho através dos convidados
com uma precisão automática.
— Sra. Shemmeld, como é bom vê-la. Sra. Mortimore. Sra. Addis. —
Eu já me sentia bastante tranquila entre as damas de Springwood. Afinal de
contas, conhecia intimamente a cor de seu dinheiro e a medida de suas
cinturas.
Havia cerca de seis casais que eu não conhecia. Uma rodada de
apresentações seguiu-se, e nenhuma das pessoas que me conhecia fez
qualquer referência a meu trabalho como costureira. Aquilo cabia a Judah, é
claro. Com isso, senti uma pontada de irritação porque eu, agora uma
mulher rica por meu próprio direito, ainda precisava de um homem para
elevar minha condição. Também me irritava por Tess não ser convidada
para essas festas, mesmo sabendo que nunca seria.
Bella, que havia trazido os licores, fez um murmúrio respeitável de
cumprimento enquanto me entregava a pequena taça. O brilho em seus
olhos escuros – que teria sido uma piscadela se não fosse tão reservada em
tal companhia – era o único lembrete da ajuda que tinha me dado durante
minha hora frenética de preparação. Tivemos uma discussão despreocupada
se deveria arrumar a parte da frente de meu cabelo numa franja da moda e o
frisar com as pinças de cachear.
— Boa noite, boa noite, minha cara sra. Lillington. — Tínhamos
alcançado os Calderwoods, que estavam ao centro do maior grupo de
convidados. O peitilho, os dentes e o cabelo do Dr. Calderwood estavam
resplandecentes e ele estava se curvando e sorrindo com um prazer
evidente. Em sua companhia, a sra. Calderwood deferia a ele uma
submissão conjugal que claramente apreciava.
Quanto à Ratinha, usava a seda esmeralda que eu acabara de fazer.
Seus olhos escuros de contas brilhavam com satisfação ao fitar a riqueza à
mostra. Imaginei que todos os presentes seriam solicitados a fazer uma
doação para o seminário ou até mesmo enviar seus filhos para cá.
— Obrigada por me convidar, Dr. Calderwood. Sra. Calderwood. —
Fiz uma mesura e sorri em seguida, sentindo-me como se fosse uma atriz no
palco.
— Você é sempre uma adição encantadora a nossos pequenos jantares,
sra. Lillington. De fato encantadora. — O dr. Calderwood se aproximou de
mim com seus modos amigáveis.
— Ela não é? — Judah concordou com um ar de posse satisfeita, que
originou olhares significativos e acenos de aprovação entre as matronas. Em
Springwood, geralmente consideravam que eu conseguira um ótimo
partido. — A sra. Lillington estava me dizendo que gosta tanto de
Springwood que gostaria de morar lá.
— Onde reside agora, sra. Lillington? — perguntou um dos convidados
mais novos, inocentemente.
Olhei para Judah em busca de apoio, mas sua boca se contorceu – de
diversão ou incômodo, eu não tinha certeza – e ele deu um passo para trás,
respondendo à convocação de um dos homens. Assim, teria que usar minha
própria perspicácia para sair do canto em que me acuou.
Felizmente, o dr. Calderwood demonstrou uma astúcia mais que usual:
— Cara sra. Durkin — ele ronronou, dirigindo-se à mulher bonita e
rechonchuda que havia falado —, sua pergunta me fez lembrar de uma
surpresa deliciosa que tenho guardada para a sra. Lillington. Ela é, a
senhora deve saber, uma amiga próxima do sr. Martin Rutherford, o
comerciante de Chicago.
Várias pessoas assentiram com interesse, como se conhecessem o
nome de Martin. Tudo que senti foi assombro – o que o dr. Calderwood
teria a ver com Martin?
Descobri bastante rápido. O dr. Calderwood, aproximando-se com toda
sua altura robusta e impressionante, virou e se curvou para indicar que as
notícias que estava prestes a compartilhar eram de grande significado para
mim.
— O sr. Rutherford escreveu pedindo o favor de lhe conseguir um
conjunto de quartos no seminário por algumas semanas no outono.
Ele olhou para os convidados reunidos, avaliando suas reações que
foram, felizmente, efusivas.
Suas notícias certamente causaram grande efeito em mim. Bebi um
pequeno gole do licor para estabilizar meus nervos – instantaneamente me
arrependendo, pois aquela coisa tinha um gosto horrível – e virei-me para o
dr. Calderwood para me livrar da pergunta que arranhava minha mente.
— Por que motivo Mar… O sr. Rutherford deseja vir aqui?
Para dizer a verdade, aquela não era de fato a pergunta para a qual
buscava resposta. E por que Martin não me escreveu dizendo que estava
vindo?, era a verdadeira questão que havia, de alguma forma, originado a
dor em meu pescoço e na têmpora esquerda.
Naturalmente, o dr. Calderwood respondeu à pergunta:
— O sr. Rutherford não acha que a esposa ficará confortável numa
pensão ou outro tipo de alojamento que possa estar disponível nas
redondezas. É claro, quando o sr. Addis concluir seu hotel, Springwood será
amplamente suprida com o melhor dos confortos. Lamentavelmente, é
provável que este dia não ocorra antes da primavera.
— Não menos, não — interveio o cavalheiro alto e cadavérico que
estava parado perto do fogo, abraçando seu uísque e ouvindo a
grandiloquência do sr. Shemmeld. — E com a porcaria do tempo e aquelas
malditas ferrovias… Estou te dizendo, eles aumentam o preço do frete a
cada dia. Se eu não fosse um homem cristão, daria àquele Cornelius
Vanderbilt algumas palavras escolhidas para ele mastigar, ah, se não faria.
Houve acenos gerais de concordância vindos dos homens, mas então a
sra. Addis disse:
— A sra. Rutherford é uma grande herdeira, e com certeza não deve
ficar numa pensão. Se eu soubesse, teria oferecido meu melhor quarto e a
varanda da frente para seu uso exclusivo.
Ela bateu seus longos cílios com modéstia, mas não antes que eu visse
um brilho de ambição em seus grandes olhos castanhos. A sra. Addis era
uma alpinista social como nunca visto e extremamente vaidosa. Eu soube
na hora que iria me encomendar um vestido noturno verdadeiramente
esplêndido antes da visita dos Rutherfords. Então, achei estranho perceber
que estava visualizando Martin – meu amigo de infância – através dos olhos
daqueles ao meu redor, como um estranho rico e poderoso.
— Eu gostaria de saber o propósito da visita dele — falou um dos
professores – Gurney, Gurtley? – com a tenacidade na qual sua reputação
com os alunos foi construída. — Springwood terá uma loja de
departamentos?
Notei que o sr. e a sra. Heywood, os donos do mercado, pareceram
alarmados com a perspectiva.
A sra. Calderwood sorriu com o sorriso de alguém prestes a
compartilhar conhecimento com uma audiência ansiosa.
— O sr. Rutherford nos informou que seu parceiro de negócios tem um
firme interesse em abrir algumas pequenas lojas na fronteira. E por isso,
deseja ver a região antes de tomar qualquer decisão.
— E vai trazer a esposa? — As bochechas redondas e clara da sra.
Durkin formaram covinhas. —Devem ser um casal devotado.
— Ela é a bela da sociedade — um dos homens falou. — Uma
herdeira, com diamantes tão grandes quanto ovos de gansos. — Deu um
tapinha na mão da sra. Durkin, o que me fez deduzir que era o sr. Durkin.
— Mas vamos conhecê-la bem o bastante — disse com ar tranquilizador. —
Jamais faltará um bom jantar enquanto estiverem aqui.
Naturalmente, aquele comentário fez as damas irromperem com
motivos pelos quais elas, mais que qualquer outra pessoa, deveriam
oferecer esses jantares. Aquilo me deixou um tanto fora da conversa. Judah
havia se afastado para conversar com o sr. Shemmeld, então eu não tinha
nada a fazer exceto me afligir pela visita de Martin.
Eu não mencionara Judah em nenhuma das cartas que escrevi a Martin.
Em parte porque não estava totalmente convencida, como Judah parecia
estar, que nossos futuros se uniriam; e em parte, para ser honesta, por
rancor. Se de fato decidisse me casar, eu queria despejar o fato sobre Martin
basicamente da mesma forma como ele havia despejado seu casamento
sobre mim, e ver se iria gostar.
Eu queria vê-lo, é claro. Na verdade, mesmo a tantos meses de
distância de sua visita, a ideia causou uma estranha e vibrante sensação em
meus membros, misturada com apreensão. E, ainda assim, não pude deixar
de sentir que Martin iria tentar interferir de alguma forma em quaisquer
planos que eu havia elaborado até o outono. Se ele se considerava o mais
próximo que de um irmão, será que não gostaria de ter uma opinião sobre
meu futuro? Some-se a seu papel como guardião de minha fortuna e teria
razão, se não o direito, de me fazer imposições. E eu não queria ninguém
me fazendo imposições – principalmente não Martin Rutherford.
— Perdida em pensamentos? — Uma mão tocou meu cotovelo,
enquanto a voz de tenor musical de Judah soava em meu ouvido.
Virei-me para ele, sorrindo, sem querer compartilhar aqueles
pensamentos em específico.
— Eu estava me perguntando como deveria receber o sr. e sra.
Rutherford.
Judah deu de ombros.
— Apenas seja você mesma. Esta é uma bela jogada para a sra.
Calderwood, não é? — Ele abaixou a voz. — Tenho certeza de que irá
aproveitar ao máximo a oportunidade.
Assenti, mas a imagem que as palavras de Judah conjuraram me
perturbou. Os Calderwoods iriam sondar Martin em busca de uma doação
monetária ou, pior, exibir ele e sua esposa brilhante como uma apresentação
de circo? Eu esperava ardorosamente que não fossem ser vulgares o
bastante para fazê-lo, mas tinha meus receios.
As cabeças se viraram quando um sino pequeno e prateado soou e
Andrew, de longe o criado com melhor aparência do seminário, anunciou
numa voz vibrante que o jantar estava servido.
Olhei para Judah sob meus cílios e vi meus pensamentos refletidos em
seus olhos.
— Bem — ele disse calmamente —, ao menos não o vestiram de libré,
como um lacaio inglês.
— O que será que irão inventar depois? — sussurrei enquanto tomava
o braço de Judah e me certificava de que a cauda não tinha se enroscado em
nada. — Se você se tornar o diretor do seminário, irá inaugurar um baile
anual? Talvez devesse mandar tirar os bancos da capela para a ocasião; o
piso é excelente.
Senti seu corpo sacudir num esforço para conter o riso e ele pressionou
meu braço firmemente ao lado de seu corpo com o cotovelo. A brincadeira
compartilhada me alegrou e, por um momento, senti que Judah e eu de fato
pertencíamos um ao outro. Por que deveria me preocupar com Martin?
Capítulo vinte e seis

Pedido
— Um viva ao Quatro de Julho! — Sarah correu na frente pela estrada,
suas botas levantando a poeira. — Rápido, mamãe! — Ela virou-se para
mim. — Estou com tanta fome que poderia comer um cavalo.
— Tess não pode andar tão rápido — gritei para ela. — Volte e segure
minha mão.
Sarah resmungou de frustração, mas obedeceu, apertando minha mão e
a de Tess, para que pudesse lançar-se à frente com um impulso em suas
companhias mais velhas e lentas. Ela estaria bastante exausta ao pôr do sol
e torci com fervor para que conseguíssemos uma carona numa charrete que
estivesse retornando.
— Tenho-tanta-fome — Sarah gemeu, soltando minha mão para
apertar o estômago de forma dramática.
— Pois deveria ter comido mais no desjejum — repreendi em meu
melhor tom maternal. No entanto, pesquei da bolsa um pequeno papel
torcido. — Aqui. Estava guardando isso para mais tarde, mas não acho que
vá estragar seu apetite.
Sarah gritou de alegria e colocou o pedaço de doce duro na boca, mais
uma vez correndo à nossa frente, meio dançando, meio saltitando.
— Assim irá estragá-la. — Judah materializou-se ao meu lado, como
sempre dando a impressão de que não caminhava como os humanos
comuns, mas simplesmente se fazia surgir de um lugar ao outro.
— Ela tem corrido em círculos a manhã inteira — falei
defensivamente. — E acho que nunca ficará gorda.
Sorri para os cachos ruivos firmemente trançados de Sarah – ela era
pequena, magra e delicada, como minha mãe, quando eu havia sido toda
pernas, braços e juntas ossudas. Finamente criada, nunca era desleixada ou
abatida, mantendo a cabeça ereta como uma dançarina e caminhando com
as costas aprumadas, seus pés criando uma linha precisa de pegadas na
terra.
— Mesmo assim, deve ser cautelosa para não exagerar. Notei que ela
fala com muita liberdade; crianças devem ser vistas, e não ouvidas. —
Judah falou isso com seu sorriso encantador de sempre, mas Tess lhe lançou
um olhar reprovador.
— Sarah é uma boa garotinha — ela disse. Com isso, pensou por um
momento e então acrescentou — Na maior parte do tempo.
Judah não se preocupou em ouvi-la. Não pela primeira vez, senti uma
pontada de desânimo pela relação entre meu pretendente e minha melhor
amiga ser desprovida de afeto. Judah tendia a agir como se Tess não
estivesse lá; e Tess respondia com olhares taciturnos e infelizes quando
Judah estava presente.
Disparei um olhar para Tess para expressar minha simpatia com seus
sentimentos e uma desculpa pela falta de cordialidade de Judah. Ela
devolveu meu olhar com um sorriso breve, desviando de Judah – que
evidentemente não tinha intenção de sair do meu lado – e correu para
alcançar Sarah. Judah diminuiu um pouco o passo, forçando-me a fazer o
mesmo.
Bem adiante de nós, eu podia ouvir o leve sotaque sulista dos criados,
entremeado por risadas. Mais à frente, uma massa escura indicava o grupo
principal de alunos e professores que ficaram durante o verão ao invés de
empreender a viagem para casa. Era um domingo, e os Calderwoods
estavam com eles, então os alunos estavam com um humor relativamente
moderado.
Bocejei, e Judah riu.
— O esforço da caminhada é demais para você, Nell? — Ele me
ofereceu o braço e eu o tomei; a sensação era refrescante e seca ao toque,
como se o calor do dia não o afetasse. E estava consciente do fato de que
transpirava livremente, minha camisa úmida sob o espartilho.
— Acho que foi o descanso do sabá que me esgotou — admiti. — Não
tenho o dom de me manter inativa de propósito e, além disso, houve duas
horas de estudo da Bíblia.
— Quando nós… Bem, muito em breve poderemos estudar juntos.
Estou ansioso para direcionar seus esforços. — Judah me lançou um olhar
de soslaio, sua boca retorcendo. —Soube que fez pouco progresso em
memorizar versículos; precisamos mudar isso.
Mantive o rosto o mais imóvel possível contra a tentação de mostrar o
quão pouco eu apreciava memorizar versículos. Simplesmente não era boa e
até mesmo a perspectiva de ter Judah como meu professor não me
encantava.
Mas ele parecia ter outras coisas em mente.
— Assim que a refeição terminar, Nell, não poderíamos fazer um
pequeno passeio? Apenas nós dois.
Olhei-o dividida entre uma euforia que fazia meu coração saltar e
inquietação. Desde o jantar em que o dr. Calderwood anunciou a visita de
Martin, as atenções de Judah haviam redobrado. Teria escolhido aquela
noite para ter certeza da minha parte? Eu sentira esse momento se
aproximando, furtivamente, como se fosse um leão me perseguindo e eu
fosse sua presa, mas ainda não tinha certeza de qual seria minha resposta.
Quando eu morava em Illinois, achava os crepúsculos bonitos. Mas
eram apenas borrões de cores em comparação ao céu do Kansas, e nesta
noite estava especialmente impressionante. Um fúcsia profundo, com uma
auréola dourada, brilhando atrás das silhuetas de um grupo esparso de
árvores. Acima, uma faixa de um céu azul intenso criava um contraste
vívido com os feixes de nuvens iluminadas de laranja que moviam-se com
lentidão pelo firmamento.
Fascinada pela vista sempre mudando num tom de salmão, dourado e
cornalina, inspirei profundamente o ar da noite, repleto do cheiro de grama
seca e girassóis. A algumas quadras de distância – Springwood era uma
cidade agora – eu conseguia ouvir a banda tocando as notas sentimentais de
Beautiful Dreamer. Logo se lançariam em sons mais animados e haveria
quadrilhas para os casais mais jovens, em cujo momento o contingente do
seminário seria obrigado a voltar para casa. Dançar – particularmente no
sabá – ainda era um ponto em que o seminário e a cidade se dividiam.
Pude apenas suprimir em parte meu suspiro e Judah, é claro, notou –
como sempre fazia.
— O que há de errado?
— Estava pensando em quanto tempo se passou desde que dancei —
admiti. — Cinco anos, pelo menos.
Senti meu rosto ficar quente, lembrando em quais braços eu saltitei e
pulei tão alegremente com a música. Tinha sido no início da visita de meus
primos e o flerte entre mim e meu primo Jack mal havia começado.
Eu tive uma sensação de euforia porque meu primo belo e crescido
estava disposto a ficar comigo. Havia me deleitado com os olhares
invejosos de minhas amigas e as expressões cabisbaixas de dois irmãos de
Libertyville que vinham me atormentando com suas atenções desajeitadas.
Senti o dedo frio de Judah de encontro a minha bochecha em brasa e
uma expressão interessada surgiu em seus olhos, como se estivesse
guardando uma informação para uso posterior. Mas tudo que disse foi:
— Dançar é bobagem.
Tínhamos chegado a um local bonito na ponta sudoeste da cidade,
onde o riacho corria através de um bosque de álamos. O mato havia sido
podado para que não desse encorajamento aos mosquitos e um banco foi
posto num pequeno elevado que dominava a vista da água – quando havia
água. Atrás de nós, as casas dos cidadãos mais ricos de Springwood
pareciam muito mais sólidas e prósperas do que aparentavam três anos
atrás. Seus quintais eram mais bem cuidados.
Judah me conduziu ao banco, e assim arrumei minhas saias, as palmas
úmidas. A música da banda flutuava até nós em vórtices, competindo com o
barulho e o zumbido dos insetos da noite. O Danúbio Azul, pensei. Uma
valsa. Sempre gostei da valsa.
— Uma noite perfeita — Judah disse suavemente. — E não há
momento melhor para o que desejo perguntar, Nell. — Ele olhou de volta
para as casas e espiei por sobre o ombro também, vendo o brilho vermelho
e laranja refletido em suas janelas. — Toda a cidade está esperando por
notícias de nosso noivado. Devemos dá-las hoje à noite?
Judah estava de costas para o pôr do sol, seus olhos estavam nas
sombras, a luz dourado-avermelhada delineava seus cachos curtos e
brilhantes e capturava a inclinação de sua bochecha sob as maçãs do rosto.
Ele havia tirado as luvas e seus dedos seguraram minha mão com uma
confiança imperturbável.
— Hesita em dizer sim, Nell?
Mantivemos a mesma posição por alguns minutos antes que Judah
falasse, pois, de fato, eu hesitava em dizer sim. Aquela pequena palavra me
daria uma posição incontestável na sociedade de Springwood. Daria a Sarah
um nome pelo qual ninguém poderia reprová-la. Iria fixar minha vida
naquele ritmo com que já estava bem acostumada e que não considerava
opressivo.
Recusar Judah, por outro lado, seria como me lançar ainda mais na
incerteza – eu não teria que fazer planos para ir para outro lugar?
— Nell. — A voz de Judah era suave, insistente. — Não vai me dar a
honra de ter sua mão? Sabe muito bem que deveríamos ficar juntos. — Ele
se inclinou para a frente e me beijou nos lábios, seu toque se demorando
tempo o bastante para fazer o calor subir em meu rosto. Intocada por outro
homens desde meu breve flerte, mas desastroso com Jack, entendia a
promessa inerente naquele beijo, não podia esconder de mim que queria o
que me prometia. E, ainda assim…
— Eu quero dizer sim. — Eu estava sem fôlego, era difícil pensar com
Judah tão perto. — Mas não estou… Não estou pronta, acho.
Os medos que eu tinha de repente se libertaram numa torrente de
palavras.
— Eu nunca quis me casar, Judah. Por isso não quis dar o nome do pai
de Sarah depois… depois que cometi meu erro. E agora não tenho apenas a
mim mesma para considerar; há Sarah e Tess também. Não sei se estaria me
casando com você apenas para dar um nome a Sarah, e como seria justo
com qualquer um de nós se fosse esse o caso? Esse não é um bom motivo
para casar-se.
— Há motivos bem piores. — Judah me beijou de novo, com um
pouco mais de força, mas ainda permitindo que eu me afastasse se quisesse.
O problema era que eu não sabia o que queria. Pois, tinha o estranho
sentimento de que o amor que eu sentia por Judah deveria ser avassalador,
mas o único amor avassalador que já senti fora por Sarah. Por que eu não
conseguia ver o percurso correto que deveria trilhar, fácil e claro como
seguir uma estrada já bastante caminhada?
— Não posso esperar para sempre, Nell. — Judah virou minha mão
esquerda para cima, e puxou a ponta da minha luva de renda, beijando o
interior de meu pulso. Meu braço formigou enquanto as batidas do coração
aumentavam, e um pequeno sorriso surgiu nos lábios que tocavam minha
pele, como se Judah sentisse. Mas, ao mesmo tempo, estava consciente da
aliança que usava, a que Hiram havia me dado, a que, para mim,
simbolizava meu compromisso com Sarah. E teria que tirá-la para aceitar o
anel de Judah.
— Seis meses. — Meus sentidos se debateram loucamente ao lançar as
palavras que escaparam de minha boca antes que pudesse interrompê-las.
— Me dê seis meses, até o dia do Ano Novo e não falharei em te dar uma
resposta, prometo. Me dê esse tempo, Judah, por favor. — A última frase
saiu como um sussurro rouco; Judah estava beijando meu pulso de novo.
— Seis meses então. — Judah empurrou o laço de renda de volta sobre
o botão de pérola que escorregara do fecho. — Iremos anunciar nosso
noivado no dia do Ano Novo.
Ele ficou de pé para me ajudar a levantar, deslizando meu braço sob o
dele.
— É melhor retornarmos às comemorações antes que nossa ausência
seja comentada. Eu esperava levar boas notícias, mas… — Ele abriu seu
sorriso bonito. — Seis meses não é um tempo tão longo. Sei que devemos
ficar juntos.
Capítulo vinte e sete

Deslumbrada
—Porque, exatamente, não contou ao sr. Rutherford sobre o sr.
Poulton?
Os dedos finos de Catherine Lombardi puxavam um pequeno rasgo no
corpete de seu vestido de caminhada, tentando enfiar de volta um pedaço
saliente do tecido. Eu quase havia concluído seu substituto; toda a família
Lombardi viera para uma visita há muito esperada ao seminário. Aquilo
causou à sra. Calderwood uma consternação nem um pouco pequena, já que
a duração da visita deu ao pastor tempo o bastante para fazer perguntas
embaraçosas sobre porque o seminário não estava mais aceitando alunos
empobrecidos – como seu próprio filho.
E eles estavam empobrecidos de fato. Catherine perdera uns bons seis
quilos desde a última vez que a vi, e as roupas das crianças mostravam
evidências de muitos remendos. Estava claro que a renda extra do capital
que o pastor havia perdido em 1873 fazia imensa falta, e não perdi tempo ao
tomar as medidas de Catherine e das crianças. Passei por cima dos protestos
de Catherine proclamando que eu não tinha nenhum lugar perto o bastante
para ir, mas a verdade era que as horas extras da nova tarefa me distraíam
da visita iminente de Martin.
— Não quero discutir Judah com Martin até termos resolvido as coisas
entre nós.
Arrumei meu chapéu e aumentei meus passos; Catherine se tornara
uma boa andarilha, apesar do fato de minhas pernas serem mais longas.
— E, por favor, não diga nada a ele. Não é da conta de Martin se tenho
um pretendente.
— Por que não? Acho que teria bons conselhos a oferecer, sendo ele
mesmo um homem casado. — Ainda se via covinhas nas bochechas de
Catherine quando ela sorria, mesmo que estivesse bem mais magra.
— Eu realmente não quero ouvir os conselhos de Martin sobre minhas
perspectivas de casamento. — Chutei ferozmente um torrão de poeira,
observando derrapar na grama seca. — Ele está destinado a dizer algo
desagradável. Além disso, por acaso discutiu seu casamento comigo? Nem
mesmo um indício!
Catherine riu e voltou a atenção ao seu corpete.
— Você acha que o rasgo está muito visível? Estou quase com
vergonha de mostrar meu rosto no mercado.
Segurei o braço dela, envolvendo-o com o meu, para que
caminhássemos em sincronia.
— Amanhã estará vestida como uma dama da moda. E acabou de me
ocorrer: posso te fornecer um vestido extra com quase nenhum trabalho a
mais. Tenho uma lã marrom, com o corte deste ano, que comecei em abril,
mas minha cliente não gostou da cor. Eu remendei os braços, mas posso
tirá-los num piscar de olhos, remodelar o corpete e diminuir a saia. Irá
combinar com sua pele e cabelo maravilhosamente bem.
— E como arranjará tempo? — Catherine perguntou. — Seu
trabalho…
— Tess pode fazer quase tudo que temos para o seminário e estou
esperando a lã da sra. Howlett chegar, por isso estou numa pausa entre as
encomendas. — Apertei o braço de Catherine para impedir suas palavras
seguintes. — Deixe-me fazer isso, Catherine. O escritório da congregação
providenciou roupas novas para o pastor e deve estar elegantemente vestida
para combinar.
Catherine não falou nada, e fitei a estrada à nossa frente, fingindo que
não a vi enxugar uma lágrima. Estávamos chegando em Springwood, que
agora se estendia por todo o riacho, em fileiras organizadas de pequenas
casas de madeira.
— Lembra-se das cabanas gramadas? — perguntei. — Não vão mais
permiti-las. Os colonos mais pobres se mudaram para um lugar chamado
Fork Crossing, e os rapazes de Springwood fizeram uma festa para
redistribuir as cabanas. A Sociedade da Temperança está tentando descobrir
se havia mesmo um barril de cerveja envolvido.
— Vou comprar alguns doces para as crianças. — Catherine estava
contando as moedas na mão, sem ouvir minha tagarelice.
— E eu vou comprar sabonete para as garotas – elas gostariam disso?
O Hayward’s tem os melhores sabonetes. E Teddy… Céus, o quê que se
compra para um garoto?
Catherine riu.
— Comida. De qualquer tipo. Mas ele irá ficar feliz em ter calças que
realmente descem por seus tornozelos e um casaco decente. E não vai parar
de falar sobre as roupas novas.
Ri também, mas um canto da minha mente permaneceu melancólico.
Estava tudo muito bem em remediar a falta de roupas novas das crianças,
mas para alguns problemas não havia remédio. Lucy, em particular –estava
incrivelmente frágil, com círculos escuros ao redor dos olhos e um tom
azulado nos lábios. Uma dose da febre que afligia muitos dos colonos iria
derrubá-la, eu tinha certeza.
— Bom dia, sra. Addis. — Sorri para minha cliente, que caminhava na
direção oposta. — Está ansiosa pelo outono?
— Com certeza estou ansiosa para colocar meu novo vestido de lã. —
A sra. Addis apertou a mão de Catherine na passagem, então virou seus
olhos astutos e redondos para mim. — Mas não tanto quanto deve estar
ansiosa pelo Ano Novo, imagino.
Eu a fitei enquanto ela desaparecia na direção do escritório da Wells
Fargo, meu queixo caído de assombro.
— Como raios… Bem, se ela sabe, então todo mundo irá saber. —
Uma sensação de mau presságio me invadiu. — Quem esteve falando?
— Sobre o quê?
— Prometi a Judah que lhe daria minha resposta no dia primeiro de
janeiro.
— Ah.
Catherine se curvou e fez uma encenação como se amarrasse o cadarço
das botas. Quando se ergueu, sua expressão estava determinada.
— E não acredito que tenha dito a alguém; não combina com você. O
que significa…
— … Que Judah deixou escapar.
— Uma garantia. — As sobrancelhas finas de Catherine arquearam
quase até a linha do cabelo. — Ele está tornando mais difícil para dizer não.
Se o fizer, sua posição nesta cidade se tornaria um tanto embaraçosa.
Ela hesitou e então prosseguiu:
— É tão possível assim que diga não? — Ela me olhou com
curiosidade. — Pois me parece bastante deslumbrada pelo homem.
— É simplesmente isso. Quando estou com Judah, é difícil pensar com
clareza. Quando ele não está, todas as outras questões se acumulam em
minha mente: Sarah, Tess, se eu realmente deveria ficar no Kansas. Se eu
não deveria usar meu dinheiro para me estabelecer como uma modista de
fato numa cidade. Ser esposa de Judah colocaria um fim permanentemente
a esse sonho. E, além disso, há algum segredo…
Baixei a voz e me afastei da calçada, erguendo a sombrinha para nos
proteger do sol e de quaisquer ouvintes perdidos.
— Antes do professor Wale morrer, ele me mostrou uma carta que
obteve com algum advogado inglês. Uma carta sobre o passado de Judah.
Eu não iria ler, mas depois da morte do professor, achei que seria melhor. E
quando fui até o lugar onde eu sabia que a havia escondido, não havia nada.
Tinha desaparecido.
Catherine franziu o cenho.
— O sr. Poulton sabe da carta?
— Sim, mas o professor disse que simplesmente riu dela. O professor
estava tão estranho que não consigo evitar pensar que era tudo bobagem no
fim das contas. Provavelmente ele mesmo destruiu a carta numa crise de
consciência. — Virei-me para fitar minha amiga. — Catherine, a
congregação não faria perguntas sobre o passado de Judah?
Ela assentiu.
— Eu teria que perguntar a Roderick sobre detalhes mais específicos,
mas acredito que exijam que todos os professores forneçam referências, e
que são cuidadosamente verificadas.
— Então é improvável que Judah esteja escondendo algo escandaloso.
Ela deu de ombros, mas segurou meu braço, seus grandes olhos
castanhos sérios quando olhou nos meus:
—Provavelmente está certa, mas… Passaria o Natal conosco? E levaria
o sr. Poulton também? E Tess e Sarah, é claro.
— Isso pode ser possível, se não houver neve. — Estávamos quase no
mercado e baixei minha sombrinha. — Mas, por quê?
— Eu sou a coisa mais próxima que tem de uma mãe, Nell. — Senti os
dedos finos de Catherine fecharem-se ao redor dos meus, muito parecido
com a forma com que mamãe fazia, e resisti ao formigamento das lágrimas.
Ninguém poderia tomar o lugar de minha mãe em meu coração; mas aquela
mulher me recebera na Fazenda dos Pobres quando eu estava sozinha,
exilada do meu lar para dar à luz a minha filha ilegítima. E esteve presente
no nascimento de Sarah, como uma mãe estaria.
— Suponho que eu precise de um conselho de mãe em algumas coisas
— falei, um pouco instável.
— Então, deixe-me ter o sr. Poulton sob meu olhar – e o de Roderick –
por duas ou três semanas antes que lhe dê sua resposta — ela falou. — Um
homem sempre revela mais sobre si mesmo quando é tirado de seu
ambiente.
Assenti, mas Catherine já estava limpando a poeira de suas luvas e
cutucando o tecido rasgado de seu vestido, seus olhos brilhantes de
expectativa.
— Não entro numa loja há meses —disse com alegria. — Não espere
que eu vá embora antes de inspecionar cada artigo.

— Sarah ganhou mais doces do que eu. — Thea fez beicinho, suas
sobrancelhas simétricas unindo-se para formar uma ruga.
— Eu acho que não — falei, os olhos nas luvas que eu estava
ajustando. — Sua mãe teve bastante cuidado em ser justa.
— Thea, você está velha demais para fazer confusão quanto a divisões
— Teddy, que enfiara sua parte no bolso das calças e pegado seu chapéu,
indo em direção ao lado de fora, falou com a fadiga de um irmão mais
velho. — Que decepção, mocinha, tem treze anos agora.
E ela realmente parecia mais velha, pensei. Como todas as crianças
Lombardi, Thea era magra, mas havia uma feminilidade inconfundível em
sua silhueta que atraía os olhares dos alunos. Quando olhei para cima, seu
rosto estava sombrio e mostrava a língua para as costas do irmão. Meus
olhos se encontraram com os de Tess e pude ver que nós duas estávamos
pensando a mesma coisa. Aquela mocinha era problema.
— Pode ficar com dois dos meus pedaços — Sarah falou solenemente.
— Eu ganho muitos mimos. E simplesmente escapulo para a cozinha e está
resolvido, moleza como melaço. — Sua imitação da fala de Netta fez Tess e
eu sorrirmos. Ela veio acompanhada de uma sacudidela cuidadosa em seu
belo vestido xadrez, enquanto sentava-se de forma elegante na cadeira,
colocando seu espólio de doces na mesa.
— Pode ter alguns dos meus também — disse Lucy em um tom
apaziguador, com um olho desconfiado na irmã, cujos olhos se estreitaram
com o discurso de Sarah. Estar perto de Thea era uma questão de pisar
sobre ovos constantemente. A gentileza de seus pais não era alívio algum à
sua irritabilidade natural e sentimento de rancor.
— Obrigada, Lucy, querida. — O tom de Thea tornou-se doce como
açúcar e vi Tess dirigir-lhe um olhar afiado. — Por que não vamos lá fora
saborear nossos doces? O ar aqui está tão… principesco.
Ela enganchou o braço de Lucy sob o seu e a rebocou em direção à
porta. O rosto de Lucy exibia seus sentimentos: sempre a pacificadora,
raramente contradizia a irmã mais velha, mas estava claro que preferia
permanecer na sala de trabalho conosco. O vento, a poeira e a luz do sol
lancinante das planícies não pareciam ser saudáveis para ela, como para a
maioria das crianças. Ao invés disso, parecia minar toda a energia que ainda
tinha, deixando-a pálida e cansada. Eu receava desesperadamente que ela
tivesse tuberculose.
— Por que Thea não gosta de mim, mamãe? — Sarah perguntou, com
a boca cheia de doces.
— Não fale com a boca cheia, querida. Não é adequado — falei
automaticamente, antes de focar minha mente na pergunta de Sarah. —
Acho que está com inveja porque você tem muitos vestidos bonitos, ganha
doces, e não tem que trabalhar pesado como ela. Sem falar que mora perto
de uma cidade e tem moedas para gastar no mercado.
Sarah considerou aquilo por um momento, mastigando o doce.
— Não me importo com Thea de qualquer forma — ela disse, assim
que a boca ficou vazia. — Ela continua me chamando de princesa e
pequena preciosa quando não tem nenhum adulto por perto e esses nomes
não são legais quando Thea fala. Eu gosto de Teddy. Mamãe, eu posso ter
calças para poder cavalgar no cavalo de Teddy? Não quero rasgar minhas
anáguas. Teddy diz que posso ir se me colocar de saia em cima de Blaze.
Suspirei. Mais trabalho, mas Sarah tinha razão.
— Bem, acho que posso fazer um macacão, apenas para isso. — Eu
tinha interesse que Sarah aprendesse a cavalgar; nunca aprendi e tinha medo
de tentar. O cavalo de Teddy, que não era mais estritamente dele, já que
precisava dividir o animal com Catherine, pois os outros animais foram
vendidos; era grande demais para uma menina pequena, mas eu confiava
em Teddy para segurá-la com firmeza.
— Damas cavalgam em selas laterais — Tess disse com um tom
reprovador.
— Ela poderá aprender a cavalgar como uma dama quando eu
encontrar um pônei adequado e um instrutor — respondi, me perguntando
se poderia encontrar essas coisas em Springwood. Eu precisaria começar a
sacrificar algumas das minhas tardes mais tranquilas para garantir o estudo
de Sarah e a companhia de outras crianças. Havia algo maduro demais na
forma que ela falava e Thea estava certa, havia um ar de realeza nela, de
certeza que os outros iriam obedecê-la. Assim como mamãe, que tinha o
jeito mais maravilhoso com os criados e comerciantes, raramente
levantando a voz, mas exigindo obediência absoluta e imediata.
Remexi o armário grande onde eu guardava os rolos menores de tecido
e puxei um pedaço dobrado de denim marrom, do tipo usado em macacões
de fazendeiros.
— Isso deve ser o bastante.
Sarah empurrou a cadeira e foi inspecionar o tecido, esfregando-o entre
o indicador e o polegar e o dobrando um pouco, da forma que eu fazia ao
analisar se a malha era adequada para trabalho que eu tinha em mente.
— É bem pesado — ela disse judiciosamente.
— Não vai rasgar com facilidade — falei. — E está deixando marcas
de açúcar com seus dedos; é bom que não seja em um dos vestidos que
estou fazendo.
Sarah imediatamente tirou as mãos do tecido e inspecionou as pontas
dos dedos grudentas.
— Oh.
Gesticulei em direção ao lavatório que ficava numa pequena mesa ao
lado do fogo.
— Começarei este mais tarde — falei. — Quando eu terminar as
mangas da sra. Lombardi.
— Posso ir encontrar os outros? — Sarah esfregou o rosto e as mãos
com a toalhinha, deixando a água pingar sobre o vestido.
Hesitei, imaginando se Thea ainda estaria irritada com Sarah.
— Por favoooor, mamãe. — Ela ergueu os olhos para mim,
implorando. Os olhos de Jack Venton, verde jade com partículas pretas nas
íris. Todas as vezes que a luz os capturava da maneira que fazia agora, eu
sentia o olhar dele; confidente e um pouco zombeteiro.
A lembrança de Jack fez uma sensação estranha se enrodilhar sob as
costelas, negando minha veemente afirmação interna de que Sarah era
minha, toda minha e de mais ninguém. Ela era também, eu precisava
admitir, dela mesma, e essa pessoa queria mais liberdade que suas
circunstâncias – que não eram, afinal de contas, culpa sua – permitiam.
Olhei de volta para meu trabalho, medindo quanto tempo perderíamos
se eu ou Tess tivéssemos que acompanhar Sarah.
— Muito bem.
— Não vou me perder, mamãe. Não irei mais além do que as árvores,
prometo. — Sarah já estava na metade do caminho para a porta, a fita verde
clara no cabelo acobreado foi o último vislumbre que tive dela.
Volto-me resolutamente para o trabalho. Tess, que continuava
alinhavando as bordas compridas das mangas e o corpo da camisa de um
garoto o tempo inteiro, me deu um sorriso alegre, piscando por trás dos
óculos redondos.
— Ela não é uma menina crescida? Então já fazer todo o tipo de coisas
sozinha.
— Isso, Tess, é o que me preocupa.
Capítulo vinte e oito

Fuga
— Está bonita, mamãe.
Alisei a frente do vestido que eu acabara de colocar e me olhei no
nosso pequeno espelho do quarto, pondo um cacho errante de volta no
lugar. O dia em que Martin e sua esposa deveriam chegar havia finalmente
despontado e eu estava, como mamãe teria dito, fazendo um esforço.
Meu vestido era de um tom elegante entre o lilás e o castanho,
enfeitado com um veludo da mesma cor. Uma gola alta e costurada junto
emoldurava o pescoço que Martin uma vez tinha descrito como de um
cisne. O único ornamento que eu precisava era o broche que ele havia me
dado, sua única pérola luminescente de encontro ao veludo escuro.
— Essas mangas serão um estorvo enquanto eu estiver trabalhando. —
Inspecionei os punhos elaborados e decotados com o detalhe dobrado para
trás, satisfeita com o quanto minhas mãos pareciam pequenas e claras
emergindo do tecido escuro. — Talvez Tess estivesse certa e devesse me
trocar mais tarde, mas então… E se chegarem cedo? — Virei-me para olhar
a cauda do vestido; também seria um estorvo terrível o dia todo, mas eu a
tinha cortado tão bem que de fato parecia elegante.
Ri internamente com o alvoroço que estava fazendo quanto à aparência
e voltei minha atenção para Sarah.
— Agora lembre-se de recordar a Teddy que deve estar de volta às três
da tarde. Lucy prometeu que irá cuidar de lavá-la e vesti-la, por isso precisa
deixar que ela escove seu cabelo completamente. E nada de gritar por causa
dos emaranhados.
Passei a mão pelas tranças firmes que eu tinha começado no topo da
cabeça de Sarah, para manter seu cabelo tão livre de carrapichos e da poeira
quanto possível. Seu vestido verde claro estava em minha cama junto com
um novo par de meias e suas melhores sapatilhas de cetim, escovadas para
tirar a poeira.
— Eu gostaria que Lucy pudesse vir conosco. — Sarah prendeu uma
faixa de seu macacão, e sorri para o quão bonita conseguia parecer em
roupas mais adequadas a um garoto.
— Lucy está doente, querida. Ela estará melhor do lado de dentro,
lendo tranquila na biblioteca com sua mãe. Thea e Teddy irão cuidar de
você.
— Thea me chama de Princesa Ninguém e fica aborrecida se não faço
exatamente o que diz. — Sarah fez beicinho.
— Ela não fará isso enquanto Teddy estiver por perto. E que vergonha,
uma garota crescida sendo má com alguém bem menor.
Estendi a mão para Sarah e senti a sua agarrar meus dedos com total
confiança. Eu estava um pouco nervosa quanto a permitir que saísse pela
pradaria com Teddy e Thea, mas a ideia de tê-la no meu pé o dia todo
quando eu…
Eu não sabia por que estava tão inquieta quanto à visita iminente de
Martin. Queria causar uma boa impressão, creio, mostrar que minha nova
vida estava sob controle e que não precisava preocupar-se comigo. E eu não
queria ser apresentada à esposa resplandecente de Martin usando a saia lisa
e a blusa de uma empregada superior. Estava determinada a parecer como a
dama que eu era de fato.
Descemos lentamente as escadas, as botas robustas de Sarah – botas de
garoto, compradas no mercado – fazendo um som pesado que quase
abafava o sussurro elegante de meu vestido. Quando chegamos ao primeiro
andar e seguimos em direção à cozinha, a silhueta magricela de Teddy,
tornada ainda mais alta por causa do chapéu Stetson enfiado na cabeça,
despontou no corredor escuro. Ele estava carregando um alforje inchado de
forma promissora.
— Isso é comida? — perguntei, olhando para a carga generosa.
Teddy sorriu.
— Pão, galinha, queijo, maçãs e duas jarras grandes de limonada. —
Ele ergueu a sacola para mostrar seu peso e então bateu a mão na barriga
plana. — Estou ficando com fome só de pensar.
— Como é que pode estar com fome? — A irmã apareceu atrás dele,
seu tom mais provocante do que tingido de sua irritabilidade de costume. —
Nunca vi ninguém comer tanto. Você deveria estar no circo. — Ela nos viu
e sorriu, estendendo algo para minha filha. — Olhe, Sarah. Está vendo esse
chapéu bonito? Ele já foi meu e então eu o dei a Lucy; mas ela não se
importa de forma alguma se eu der para você. Não queremos que tenha
sardas, não é? — Ela se inclinou e mostrou o chapéu, um negócio de palha
com aba larga, adornado com fitas azuis e pequenas flores brancas.
Meninas de quatro anos de idade não guardam rancor por muito tempo.
Sarah pegou o chapéu e o colocou na cabeça, sorrindo de prazer. Thea
agachou, para que pudesse apertar as fitas sob o queixo de minha filha.
— E fiz uma fornada de pastéis de geleia especialmente para você. —
Thea deu um tapinha no alforje, com um sorriso vencedor no rosto. —
Exceto que talvez tenha que dar um ou dois para Teddy. Ele come como
uma pantera, não é? — Ela dirigiu o sorriso ao irmão, que a fitava com
cautela.
— Por que você está com um humor tão bom? — ele perguntou.
Thea suspirou.
— Acho que estou ansiosa por uma folga; trabalhar duro como eu
trabalho de fato me dá um mau gênio às vezes. — Ela ergueu os olhos para
mim. — A senhora está bonita, sra. Lillington. Está ansiosa para ver seu
velho amigo hoje?
— Estou.
Minha mente disparava para descobrir por que a criança estava agindo
de forma tão agradável. Aquele era um lado de Thea que eu nunca vira e no
qual não confiava.
— Você também está muito bonita.
E de fato estava – ela usava um vestido que eu acabara de fazer, uma
chita azul escuro com detalhes, que era reforçado o bastante para o uso do
dia a dia, mas um artigo elegante para uma jovem garota. Ele deslizava
pelos tornozelos, um comprimento talvez mais adequado a uma menina de
catorze ou quinze anos, mas dada à incipiente feminilidade de sua silhueta,
eu não achava que ficava bem em vestidos mais curtos. O corpete se
ajustava perfeitamente, exibindo a cintura fina e as curvas acima e abaixo.
Ela havia escovado o cabelo até que brilhasse e prendeu metade para cima
num estilo que aprimorava o efeito de seus grandes olhos castanhos com a
camada espessa de cílios.
— Obrigada, senhora. — Thea se curvou numa mesura meio
zombeteira. — A senhora é muito gentil com uma garota simples das
planícies.
Aquele havia sido o primeiro sinal de falsidade que dera, e senti meus
olhos se estreitarem, mas Thea sorriu novamente – ela tinha dentes brancos
pequenos e uniformes, como os da mãe – e pôs o braço ao redor dos ombros
de Sarah.
— Eu sou uma provocadora, não é Sarah? — Ela ergueu Sarah,
fingindo protestar com o peso de minha filha. — Ufa, você é uma garota
crescida agora.
— Você irá se cuidar, não vai? — Não pude evitar a pergunta. — Não
vá longe demais e não deixe Sarah ficar com muito calor, nem muito
cansada.
— Ela ficará bem — Teddy falou, atirando a sacola sobre um ombro.
— E vai poder cavalgar Blaze todo o caminho até lá e de volta.
— Você não é sortuda, Sarah? — Thea perguntou, a voz era um arrulho
suave enquanto beijava minha filha na bochecha. — Não se preocupe, sra.
Lillington — disse por sobre o ombro quando se viraram para sair. —
Cuidaremos muito bem dela.

— Já são três e quinze. — A varanda do lado de fora da biblioteca não


era extensa; seis passos de uma ponta à outra. E eu sabia disso porque já
caminhara por ela algo como cinquenta vezes, notando a mesma rachadura
na pedra a cada vez que eu me virava para o sul. Quando parei e olhei para
o oeste em busca de um sinal das crianças, o sol, quando não obscurecido
pelas nuvens fugazes à deriva que cruzavam o céu, brilhava em meus olhos,
então eu precisava protegê-los com as duas mãos e piscar.
— Nell, pare. — Tess estendeu a mão para me impedir quando
recomecei meu passos. — Os alunos estão rindo de você.
— Não estão mais. — Judah saiu para a varanda e veio ficar ao meu
lado. — Estou presumindo pelo seu vestido que está esperando que seus
amigos de Chicago cheguem logo; mas será que não está esperando do lado
errado do prédio?
— São as crianças — Tess falou, inclinando a cabeça para espreitar
Judah, a luz do sol refletida em seus óculos. — Deveriam estar de volta às
três e Nell está impaciente.
— Sim, posso ver que está impaciente — Judah disse para mim, ao
invés de falar para Tess, mas então olhou de soslaio para ela. — E você,
srta. O’Dugan, ainda não está com suas melhores roupas?
— Foi por isso que vim encontrar Nell — Tess respondeu um pouco
mal humorada. — Preciso de ajuda, e não queria que meu vestido rosa
ficasse todo empoeirado colocando-o mais cedo.
— Bem, aqui está a solução. — Judah tocou meu braço suavemente. —
Nell, vá ajudar sua amiga a se vestir e assumirei seu dever de vigília. Será
bom ter algo com que ocupar a mente, pois passou o dia todo espreitando
como um gato.

— Ah, aí está você. — Judah me cumprimentou na escada meia hora


depois enquanto Tess e eu (ela vestida num rosa encantador) descíamos do
quarto. — Temos um dos meliantes à salvo, pelo menos.
— Um? — Senti como se um pedaço de gelo escorresse pelas costas de
meu vestido.
— A srta. Lombardi. Com alguma história da filha ter fugido da festa.
— Onde ela está? — Eu já estava correndo pelas escadas, uma proeza
complicada em minhas roupas elegantes.
Judah abriu a porta que levava ao segundo andar, onde os quartos de
hóspedes estavam localizados.
— Com os pais. E não estão nem um pouco satisfeitos.
Mal dei tempo para o pastor Lombardi responder à minha batida antes
de irromper no quarto. Toda a família estava apertada num quarto grande, já
que os Calderwoods reservaram a melhor suíte para os Rutherfords. A
pequena sala de estar adjacente mal tinha espaço para suas duas poltronas
pesadas, uma estante e uma mesa insignificante que servia para apoiar uma
luminária.
O pastor Lombardi estava em uma das poltronas, Catherine na outra e,
diante deles, Thea, de costas para mim. Ela virou-se quando entrei, e pude
ver que seus olhos estavam secos, apenas levemente avermelhados, e a boca
era uma linha de obstinação amuada.
— Por que você não ficou com Sarah? — perguntei a ela.
Ela bateu o pé ligeiramente.
— Porque Teddy pegou o cavalo para ir atrás de Sarah e me deixou
sozinha, então precisei andar todo o caminho de volta e agora eu que estou
com problemas por causa disso. Não é justo.
Ela lançou um olhar furioso para a mãe, cujo rosto exibia uma
expressão que eu conhecia bem de quando era a supervisora da Fazenda dos
Pobres. A expressão cética que dizia que tinha certeza de que era mentira.
— Mas por que ela saiu correndo? — Meu coração martelava de medo.
O olhar de Thea endureceu e sua boca apertou-se ainda mais.
— Esta é precisamente a pergunta — Catherine disse. — Parece
bastante improvável para mim que uma criança tão pequena fugiria num
impulso. — Ela olhou com dureza para a filha, mas Thea não moveu um
músculo.
— Não vamos conseguir respostas diretas aqui. — O pastor Lombardi
ficou de pé, pegando o chapéu preto de abas retas em seu lugar de descanso
na estante. — É melhor não perdermos mais tempo e irmos atrás deles;
ficará escuro em uma ou duas horas. Irei dizer aos criados que atrelem o
cavalo à charrete.
Virei-me e vi Judah balançando a cabeça. Ele ficara do lado de fora da
sala de estar, mas ouviu tudo pela porta aberta.
— Andrew pegou a charrete para Wichita nesta manhã. Ele passará a
noite, creio.
— E minha mula está no ferreiro em Springwood; uma hora de
caminhada até lá… Não, isso nos dará duas horas de atraso, indo na direção
errada. — A expressão de calma imperturbável do pastor mudou para alerta.
— Mas Teddy cuidaria de Sarah, não cuidaria? — Tess também estava
do lado de fora da porta, o rosto franzido de ansiedade.
— Se puder encontrá-la. — Senti o pânico erguendo-se dentro de mim,
uma bolha viscosa. — Ela é tão pequena e não há apenas mato baixo por
aqui, com isso pode estar em meio a plantas mais altas e ele não a veria. E
também pode ter caído numa vala ou numa ravina, e há lobos… — Uma
gota de suor correu entre meus seios, e minhas palmas estavam úmidas.
— Precisaremos de lanternas e fósforos. Um cobertor ou dois, presos
como um fardo, para que eu possa jogar sobre os ombros. Um pouco de
aveia se avistarmos Blaze, aquele cavalo é inclinado demais a se assustar
com as sombras assim que começar a escurecer — o pastor falou com
Judah, que assentiu e foi embora na direção das escadas.
Se passaram vinte minutos antes que os homens estivessem prontos e
esperei por numa febre de impaciência. Assim, não ousei subir e trocar meu
vestido, temendo que começassem sem mim. O vestíbulo me forneceu um
taco de ferro em forma de gancho, do tipo usado para lidar com cobras, com
o qual pude erguer a cauda do vestido. Também encontrei galochas
pertencentes, sem dúvidas, a um dos alunos. Teriam que servir.
Enquanto esperava, estudei o horizonte, mas nenhum ponto pequeno
apareceu, que poderia ser Teddy ou seu cavalo. Eu não acho que
conseguiria ver Sarah à distância; o que foi aquilo que me possuiu para
permitir que um ser tão pequeno e frágil saísse numa região selvagem e
vasta como aquela?
Capítulo vinte e nove

Lobo

— Uma agulha no palheiro.


O pastor Lombardi alongou as costas, apertando os olhos na direção do
sol, que pairava serenamente sobre o horizonte num céu desprovido de
nuvens. O seminário estava fora de vista. Pelos meus cálculos, caminhamos
três ou quatro quilômetros, e ainda não havia sinal de Sarah ou Teddy.
— Estou atrasando vocês, sinto muito — ofeguei, pela décima segunda
vez, limpando o suor e poeira de minha testa com as costas da mão. Apesar
das tentativas de manter o vestido longe da grama, as partes mais baixas da
saia eram constantemente pegas por caules ressecados, os carrapichos
desgarrando-se para grudarem maravilhosamente nas camadas de veludo. O
solo abaixo de nossos pés era irregular – não havia caminhos adequados
nessa direção, apenas as trilhas deixadas por animais ou indígenas há muito
tempo – e eu tinha virado o tornozelo dentro das galochas mais vezes do
que conseguia contar.
— Na verdade, teríamos sido mais rápidos sozinhos. — Judah sorriu
enquanto me ajudava a puxar a saia para libertá-la do abraço de uma planta
cheia de galhos. — Mas posso entender que considere insuportável ficar em
casa.
— Já que paramos — disse o pastor —, talvez possa chamar-lhes de
novo, Nell?
Fechei minhas mãos em concha ao redor da boca e gritei “Sarah!” o
mais alto que pude. Então escutamos por cerca de dois minutos e quando
nenhuma resposta veio, o pastor Lombardi gritou o nome do filho e o de
Sarah em sua voz de trovão. Essa havia sido nossa prática desde que
partimos, e a resposta era, invariavelmente, o sussurro tênue do vento das
pradarias, hoje gentil, mas nunca sinalizando.
— Estou vendo alguma coisa. — Judah moveu-se com rapidez para o
sul, protegendo os olhos com a mão. — Chame de novo —falou por sobre o
ombro para o pastor.
O pastor Lombardi obedeceu e o ponto em movimento se aproximou.
Meu coração saltou na garganta.
— É o cavalo. — Judah evidentemente tinha olhos mais aguçados que
o restante de nós. — Mas nenhum cavaleiro. — Ele vasculhou a bolsa de
pano que carregava em busca do pequeno saco de aveia.
E, de fato, dentro de cinco minutos o capão Blaze caminhou devagar
até nós, com uma expressão de curiosidade em seus grandes olhos
castanhos. Ele farejou o casaco de Judah enquanto ele corria as mãos por
suas pernas dianteiras, em busca de machucados. O animal foi selado e
atrelado, e parecia perfeitamente em paz com o mundo, mastigando a aveia
com cuidado e balançando as orelhas de aparência macia para frente e para
trás para captar os pequenos sons da pradaria.
— Se ele se assustou com alguma coisa, foi há algum tempo. — Judah
verificou o cinturão da sela e ajustou os estribos enquanto falava. — Vamos
torcer para que não tenha lançado para longe alguma das crianças.
Me senti enjoada. Deve ter sido visível em meu rosto, pois o pastor
Lombardi pôs uma mão firme no meu ombro.
— É improvável — disse com um olhar rápido para Judah. — Pois é
um cavalo bom o bastante para não empinar ou dar solavancos. Tem apenas
uma tendência a disparar quando não tem um cavaleiro nas costas. — Ele
olhou para a sela e os equipamentos. — Os alforjes não estão aqui, e olhe
— falou, mostrando um pedaço de corda pendurada no bridão —: Teddy
provavelmente o amarrou ao invés de prender as pernas, o que teria sido
mais razoável — ele murmurou baixinho. — Não importa. Agora temos um
cavalo, o que já é uma grande vantagem.
Judah segurou a alça e ergueu-se facilmente para a sela, acomodando-
se de encontro ao encosto elevado como se fosse uma cadeira confortável.
Mas levou alguns minutos para colocar o animal no ritmo, evidentemente
verificando se havia uma marcha irregular que sugerisse um machucado.
— Tudo bem. — Ele olhou para mim, sorrindo. O sol, agora
mergulhando rápido no horizonte, criava um halo dourado em seu cabelo.
— Irei circular a área de onde o cavalo veio. Teremos algum tipo de luz
pela próxima hora, pelos meus cálculos. Tempo o bastante para viajar uma
certa distância se esse animal está tranquilo como parece. Acendam as
lanternas assim que a noite cair — acrescentou, olhando para o pastor. —
Cuidarei para não os perder, desde que continuem indo para o oeste.
E com isso, partiu, os cascos do cavalo erguendo pequenas nuvens de
poeira enquanto Judah o incitava a um trote.
Ele circulou duas vezes antes de acendermos as lanternas. Quando nos
deixou pela terceira vez, o horizonte a oeste era de um vermelho brilhante
matizando em branco antes de encontrar o azul profundo do céu, com as
estrelas mais cintilantes começando a emergir.
Eu estava indo devagar. As galochas eram terrivelmente
desconfortáveis, mas quando tentei tirá-las, parecia lutar ainda mais com o
terreno irregular sob as solas finas de meus melhores sapatos. Eu parecia ter
desenvolvido uma habilidade de encontrar cada buraco escondido e pedra
sob o mato seco abundante do verão. Xinguei-me por não ter parado para
vestir algo mais prático.
A aproximação da noite fez com que a sensação de aperto em meu
peito aumentasse. Assim que anoitecesse, nunca os encontraríamos, e o frio
noturno já estava começando a se instalar. Ainda teriam o cobertor que
Teddy havia levado consigo para o piquenique? Teddy iria garantir que
Sarah estivesse aquecida? Apenas se a tiver encontrado, uma voz dentro de
mim falou, e um calafrio que não tinha nada a ver com o ar da noite
arrepiou meus braços. Sarah poderia estar encolhida num buraco, gelada até
os ossos, bem naquele momento.
Meu coração afundou quando vi Judah cavalgar de volta até nós,
sozinho sobre o animal. Ele não a tinha encontrado, e com certeza não
poderia continuar procurando no escuro. Me preparei para ouvir que
precisávamos voltar ao seminário, que a situação era impossível mas, para
minha surpresa, Judah começou a gritar:
— Eu os encontrei! — disse, assim que ficou ao alcance de nossos
ouvidos.
— Onde? Por que não estão com você? — Agarrei o bridão, me
esforçando para ver o rosto de Judah na luz fraca.
— Sarah não vem. Ela disse — Judah engoliu e lambeu os lábios
brevemente — que nunca mais quer ver você.

— O que aquela criança precisa — falou Judah enquanto amarrava o


maço de cobertores na sela — é de uma boa surra com uma colher de
madeira. Ela mordeu a jovem Lombardi, sabe, no braço. Você estará em
falta com seu dever moral se não puni-la severamente.
— Talvez devêssemos esperar para ver o motivo de Sarah ter agido
assim antes de defender uma punição? — o pastor Lombardi perguntou
suavemente.
Decidimos percorrer a distância andando – não muito mais que uns
duzentos metros, Judah estimou, só que estávamos caminhando na direção
errada – para o cavalo descansar. Ele iria carregar pelo menos Sarah no
percurso de volta ao seminário. Pois não conseguiria levar nós três de
qualquer forma.
Judah me garantiu que Teddy estava segurando Sarah com firmeza,
mas isso não me impediu de ranger os dentes de impaciência quando
partimos. Antes de me tornar mãe, nunca havia entendido o significado da
palavra “anseio”. Agora a conhecia bem, aquela necessidade visceral de ter
Sarah ao meu lado novamente, de segurá-la e não soltar.
— Os motivos da criança são irrelevantes — Judah falou. Ele conduziu
o cavalo com uma mão, uma lanterna na outra e o feixe oscilante de luz
dourada iluminava um agrupamento fétido de grama emaranhada,
amarronzada pelo sol. — Crianças precisam aprender a se comportar, isso é
tudo. Uma criança que não é corrigida irá se tornar um adulto sem senso de
responsabilidade moral.
Ouvi com apenas metade da atenção, apertando os olhos para enxergar
na escuridão à nossa frente. Eu gostaria que não tivéssemos acendido as
lanternas. A noite estava clara e iluminada pelas estrelas e provavelmente
conseguiríamos ver mais adiante sem elas.
Minha atenção estava tão tomada pelo que havia à frente que esqueci
de escolher meu caminho com cuidado pelo solo irregular. Tropecei duas
vezes em rápida sucessão, uma delas rasgando a bainha do vestido, que
então se arrastava pelo terreno e tinha uma tendência a entrar sob meus pés.
Eu estava segurando o gancho que apoiava a cauda com as duas mãos, e
parecia bastante pesado. Por que fui tão tola?
Depois do que pareceu uma eternidade, pensei ter ouvido a voz de
Sarah adiante. Apressei o passo – e prendi as galochas na bainha do vestido.
A repentina confusão me lançou voando para a frente, então aterrissei
com uma pancada que me deixou completamente sem fôlego. Deslizei pela
sujeira, com uma sensação afiada de ardor no meu nariz, testa e pulsos,
indefesa para interromper o impulso para a frente, consciente das sensações
de estalo e rompimento no corpete de meu vestido à medida que os laços
que o enfeitavam ficavam presos e rasgavam.
— Você está bem? — Era a voz do pastor. Mãos grandes agarraram
meus ombros. Eu me sentei, ofegante e cuspindo terra e areia enquanto
lutava por ar.
— Mamãe? Teddy, me solte, acho que mamãe caiu. — Era a voz de
Sarah, alta e estridente, carregada com facilidade no ar parado da noite. Em
apenas um momento, senti suas mãos pequenas em meu pescoço e a apertei
fortemente contra mim, ainda incapaz de falar.
Sarah empurrou um pouco e me analisou sob a luz da lanterna.
— Seu rosto está terrível, mamãe. E está sangrando.
— Achei que não fosse falar com ela nunca mais. — A voz de Teddy
soou atrás, quase indignada.
— Isso foi antes dela se machucar, bobo. Mamãe, diga alguma coisa.
— Sarah parecia estar à beira das lágrimas e forcei um “Estou… estou
bem” entre arquejos enquanto tentava colocar o ar de volta aos pulmões.
Olhei para minha filha sob a luz de lamparina. Seu rosto estava
manchado de poeira, os traços das lágrimas de antes criando faixas rosadas
entre a sujeira. O cabelo escapara completamente das tranças e balançavam
ao redor do rosto num emaranhado de cachos acobreados. Sua blusa estava
rasgada, mostrando um ombro, e o macacão intacto.
Teddy caminhou devagar até mim, fazendo uma careta quando viu meu
rosto.
— Isso vai arder. Alguém tem uísque? — Ele tossiu quando viu a
expressão do pai. — Hank acha que é bom para limpar machucados, pai. Eu
mesmo nunca tentei.
Minha respiração finalmente voltara ao normal.
— Você me matou de susto — falei para Sarah. —E é jovem demais
para sair correndo sozinha, não importa o motivo de tê-lo feito. — A beijei
com tranquilidade numa bochecha suja, mudando de posição enquanto isso.
— Irá me dizer o porquê?
A boca de Sarah apertou-se numa linha e sua expressão se tornou
ameaçadora.
— Você é uma mulher ruim —murmurou. — Thea me disse. Ela falou
que a mamãe dela trabalhava num lugar onde mulheres iam para ter bebês,
e que nasci lá. Ela disse que eles chamam os bebês de bastardos, e essa é
uma palavra ruim de verdade, e que eu serei uma bastarda minha vida toda
por sua causa.
Ela terminou a frase com um gemido, me empurrando com toda a sua
força.
— Eu não quero ser bastarda, mamãe! Thea disse que você nem
mesmo pretende ter um marido, e que nunca teve um, e que as senhoras que
têm filhos e nunca tiveram um marido são más, más, e… e… — Ela estava
soluçando, as lágrimas escorrendo pelas bochechas numa confusão de
sujeira.
Olhei desesperançada para Teddy, que pairava perto de mim,
esfregando um vergão no braço que claramente mostrava a marca de dentes
pequenos.
— Ela só parou de gritar quando prometi fugir com ela — disse, a
ansiedade enrugando seu rosto magro. — Tentei dizer que a senhora é uma
pecadora arrependida e contar a ela sobre Jesus e a mulher que queriam
apedrejar, mas é pequena demais para ouvir.
— Esse é o problema — falei, com os olhos no pastor Lombardi. —
Ela é pequena demais para entender, mesmo se tentasse explicar. Mesmo se
eu soubesse como explicar a mim mesma.
Minha voz falhou e tremeu nas últimas palavras e uma lágrima
indesejada correu por minha bochecha.
— Eu sinto muito, Sarah, mesmo. — Eu a abracei, sentindo suas
lágrimas ensoparem meu corpete enquanto seu corpo pequeno se sacudia,
respirando os cheiros de poeira e sal e aquela essência indefinível de uma
criança pequena depois de um longo dia.
O pastor balançou a cabeça lentamente.
— Thea não deveria ter contado isso. Contar isso de forma adequada
era algo que pertencia a você, Nell, num momento em que a considerasse
madura o bastante para ouvi-lo. — Ele soltou o ar pelas narinas, os olhos
em Sarah. — Não consigo nem começar a pensar em como punir Thea.
Deus sabe que temos bem pouco que pode ser tirado dela. Nunca usei uma
cinta ou um bastão, mas estou tentado a começar.
— Ela está um pouco crescida para isso agora, não está, pai? — Havia
um toque cínico na voz de Teddy que eu nunca ouvira antes. — Irá apenas
deixá-la irritada com o senhor; pois nunca vai admitir que está errada.
— É verdade. — Vi o pastor bater a mão no ombro de Teddy, erguendo
uma pequena nuvem de poeira que parecia fumaça sob a luz de lamparina.
— Meu filho, ao menos, se comportou como um homem hoje — falou para
mim, sorrindo.
Eu também sorri para Teddy, gemendo com o ardor no topo do meu
nariz.
— Você se comportou. Obrigada por mantê-la a salvo.
— Eu teria sido bem mais esperto se tivesse prendido as pernas de
Blaze, ao invés de amarrá-lo — Teddy disse.
— Por que ele saiu correndo? — Judah perguntou.
— Um lobo apareceu; não acho que estivesse procurando comida,
porque olhou para nós e seguiu bem tranquilo, mas Blaze ficou
enlouquecido.
— Era um lobo grande, mamãe. — Sarah tinha se recomposto e
parecia empolgada, seus olhos verdes brilhando sob a luz da lanterna.
— E se estivesse procurando comida? — Eu a sacudi com bastante
gentileza. — E estivesse sozinha sem nada com o que se defender?
Como se fosse uma resposta à pergunta, houve uma repentina
cacofonia de uivos e ganidos, como uma matilha de criaturas brigando, que
parecia estar a poucos metros. Todos pulamos e Sarah jogou os braços ao
redor do meu pescoço. Distante da luz, eu podia ouvir o cavalo bufando e
empinando, e as imprecações murmuradas de Judah enquanto agarrava o
bridão.
— Coiotes. — Teddy, ao menos, soava calmo. — Bem mais distante do
que parece; os sons realmente são carregados por aqui.
— Longe ou não, é mais aconselhável começarmos a voltar para casa
antes que se perca este cavalo — Judah falou através dos dentes trincados.
— Mas estou hesitante quanto a colocar as damas sobre esse bruto. — Ouvi
o estalo do couro; e pensei que pudesse ter acertado o cavalo com as rédeas,
mas não pude ter certeza.
— Nós dois iremos segurar o bridão — Teddy sugeriu, com uma
pequena careta no rosto.
Com isso mostrando-se aceitável para todas as partes, Sarah e eu
fomos içadas sem cerimônia para a sela, e nossa longa jornada de volta
começou.
Da minha perspectiva, conseguia ver dois grupos brilhantes de luzes. O
pastor ia à nossa frente, usando a lanterna para verificar armadilhas que
poderiam tombar o cavalo. Judah estava com a outra, uma luz que
iluminava seu perfil enquanto caminhava, e a outra mão no bridão, seus pés
sem emitir qualquer som. Acima de nós, as estrelas formavam um tapete de
joias no céu limpo, mostrando o horizonte escuro como uma linha distinta,
que parecia afundar e oscilar enquanto o cavalo movia-se.
Já que eu não tinha nada a fazer exceto segurar Sarah – que caiu no
sono quase imediatamente –, percebi o quão cansada estava. Meus quadris,
cotovelos e ombros doíam por causa da queda. O topo do meu nariz e a
testa ardiam muito, e acolhi a corrente de ar frio da noite em meu rosto.
Comecei a experimentar a sensação de irrealidade que precede a chegada do
sono e algumas vezes precisei me beliscar para não cochilar.
Eu tinha a impressão de que um lobo estava correndo ao nosso lado,
ficando longe da luz das lanternas, mas sempre circulando, e sempre
buscando uma forma de entrar. A silhueta enorme e cinza era suave, tão
silenciosa que mais ninguém a via, nem mesmo o cavalo; ainda assim,
constantemente deslizava para meu campo de visão, olhando para mim,
sempre para mim. Ou estava olhando para Sarah? Onde a luz capturava seus
olhos, eles brilhavam vermelhos como rubis, laranja como o fogo; eu vi o
bater de sua cauda, baixa, e ouvi seu hálito quente enquanto circulava.
Ele tinha um nome, o lobo. Era Vergonha. Sempre estaria circulando ao
redor, esperando por uma chance de atacar. Era o segredo que poucas
pessoas sabiam, mas que todos pareciam suspeitar. Era o segredo se, caso
descoberto, nos excluiria de toda a boa sociedade e tornaria nossos nomes
em escândalo. Estava circulando…
— Nell! — Uma mão me empurrou de volta para a sela e despertei
com um grande sobressalto. Onde estava o lobo? Olhei ao redor, mas não
havia nenhuma silhueta cinza passando desta vez.
— Você adormeceu. — A voz de Judah estava pontuada por
divertimento. — Deveríamos te amarrar na sela?
Balancei a cabeça, confusa. Sarah era um peso caloroso de encontro a
meu peito, e com sua respiração quente em meu pescoço, me mexi na sela
para tentar me deixar mais alerta.
Percebi que podíamos ver o seminário, pontinhos luminosos à
distância, e o alívio me inundou. Eu conseguiria ficar acordada.
O próximo pensamento me deixou completamente desperta. Martin
teria chegado?
Capítulo trinta

Encontro
Entramos pela porta que levava à cozinha. Sarah despertou quando a
entreguei ao pastor para que eu pudesse descer do cavalo, um procedimento
indigno, já que fui obrigada a cavalgar escarranchada, minhas saias
destruídas amontoadas ao redor de minhas pernas. Eu estava tão exausta
que esqueci de ter medo e, ao desmontar, senti uma pontada momentânea de
orgulho – havia montado um cavalo ao longo das planícies!
— Nell! — Tess irrompeu da cozinha, os olhos luminosos de alegria.
— E Sary! Está segura, exatamente como a sra. Lombardi disse que estaria.
E adivinhe, Nell? Martin está aqui, e a esposa dele, e uma criada que é
cheia de sardas e que irá dormir num estrado no chão porque disse que não
vai compartilhar o quarto com uma criada de cor. E Martin está bastante
formidável, e a sra. Rutherford é muito bonita, e ela usou um vestido para o
jantar com uma anquinha grande assim — Tess abriu bem os braços — e
joias brilhantes por todo o corpo. E o dr. Calderwood não para de beijar sua
mão.
— Isso é ótimo — falei, decidindo que não queria ver Martin e a muito
bonita sra. Rutherford naquela noite.
Os aromas tênues de um bom jantar ainda flutuavam pelo corredor,
fazendo meu estômago roncar alto e competindo com os odores de cavalo
agarrados a mim e a Sarah. Eu só queria tirar meu vestido, o qual agora
estava quase adequado a um trapeiro; lavar a sujeira que estava nos
arranhões de meu rosto e braços e usar o urinol.
Sarah bocejava repetidamente e eu tive certeza de que adormeceria
logo. Por isso era melhor usar esse meio tempo para lavá-la um pouco.
— Tess, vamos subir e colocar Tess na cama — sugeri. — Preciso de
um banho e comida. — Ergui Sarah um pouco em meus braços e segui em
direção à escada, com muito cuidado para não pisar na bainha rasgada e
desejando que os construtores do seminário Vida Eterna tivessem pensado
em colocar uma escada nos fundos.
Porém, observei que quanto mais deseja evitar alguém, é bem provável
que o encontre. Então, era com uma sensação de inevitabilidade que, tendo
alcançado as portas da capela pelas quais precisava passar para chegar à
escadaria, eu as ouvi abrindo-se, e os Rutherfords saíram, acompanhados
pelos Calderwood. Se meu coração pudesse afundar ainda mais até os pés,
acredito que teria continuado até que atingisse o centro da Terra.
A primeira coisa que notei foi uma expressão perfeitamente neutra no
rosto de Martin, como se toda a emoção tivesse sido varrida dele. De início,
esperei que não houvesse me reconhecido e então a verdade chegou me
inundando. Ele está terrivelmente envergonhado, falei a mim mesma, e está
tentando disfarçar.
E então, mais detalhes começaram a incidir em minha consciência. O
corte elegante do paletó noturno de Martin fazia seus ombros parecerem
mais largos do que eu me lembrava que eram – ou havia ganhado
músculos? Seu rosto estava mais duro, de alguma forma, na expressão e nos
contornos, do que há três anos e meio antes. Sua palidez antes suave era
agora de um bronzeado desbotado, que fazia seu surpreendente cabelo loiro
claro se destacar como um farol de encontro ao brilho das portas de
carvalho.
A mulher ao lado dele estava parada como se tivesse virado pedra,
magnífica em seda turquesa clara, cachos negros e brilhantes cascateando
sobre os ombros de seu cabelo belamente arrumado. Seus olhos eram
grandes, pretos, e emoldurados por cílios longos e espessos, sua expressão
de espanto gradualmente impregnada de prazer quando percebeu quem eu
era.
Parecíamos estar paralisados no lugar por uma eternidade mas, na
verdade, devem ter sido cerca de dois segundos. Então Martin falou, seu
rosto relaxando:
— Estou feliz por estar segura, Nellie.
Era estranho ouvir sua voz depois de tanto tempo; mas era, percebi, a
coisa mais familiar que havia nele.
Ele deu dois passos rápidos em minha direção, estendendo uma mão de
dedos longos para tocar o cabelo de Sarah.
— E essa pequena dama… Você sabe — ele dirigiu-se a Sarah
diretamente — que da última vez que te vi era uma criancinha? E agora,
creio, está crescida o bastante para montar num cavalo, pelo que a sra.
Lombardi me disse. Eu também gosto de cavalgar.
Seu olhar desviou para meu rosto e senti o calor subir pelas bochechas.
Não tinha me visto no espelho, mas tinha certeza de que parecia horrível,
arranhada e devastada, com o cabelo num emaranhado selvagem, meu
vestido antes elegante, agora rasgado e sujo.
Sarah estava quieta em meus braços, mas a menção de cavalgadas,
falou:
— Tenho quatro anos e três quartos e mamãe irá encontrar um instrutor
de montaria logo. E vai fazer um vestido de cavalgada, porque damas
cavalgam de vestido, mas macacões são mesmo bem confortáveis. Eu
gostaria de ser um garoto.
— Não, você não gostaria. — Tess esticou os braços e eu, agradecida,
abaixei Sarah para que ficasse ao lado dela, sentindo a tensão nos músculos
dos ombros doloridos. — Você ama seus vestidos, não ama, Sary? Se fosse
um garoto, não poderia usá-los. — Ela estendeu a mão para Sarah e
começou a conduzi-la para cima. Sarah, evidentemente cansada o bastante
para não protestar, a seguiu sem uma palavra, deixando-me sozinha com os
Rutherfords e os Calderwoods.
— Estou esquecendo meus modos — Martin falou. — Posso
apresentar minha esposa? Lucetta, estou feliz por finalmente conhecer a sra.
Lillington.
Estendi a mão, hesitei quando vi o estado da minha luva e a retirei para
que pudesse oferecer um artigo mais limpo.
— Como vai? Sinto terrivelmente quanto à minha aparência — disse.
Minha mão parecia grande quando segurou a dela, que era pequena e
compacta, mas muito forte sob a cobertura de renda. Ela tinha mais ou
menos a mesma altura que eu, porém o corpo mais curvilíneo, e a cintura
fina enfatizando o volume dos seios, sobre os quais brilhava um colar
notável de diamante.
— Minha cara, não pense nisso — ela falou. Sua voz era bonita, um
contralto profundo que carregava consigo um senso de confiança tranquila,
nascido de uma vida passada em sociedade. — Estou encantada em
conhecer a jovem amiga de Martin, sobre quem ouvi falar tanto.
— A senhora Lillington é como um brilho no nosso seminário —
entoou o dr. Calderwood pesadamente, e então irrompeu numa sucessão de
tosses, quando percebeu quão incongruente seu elogio pretendido soava,
dada minha aparência. Sua esposa lhe deu um tapa nas costas, o tempo todo
disparando olhares para mim com seus olhos redondos que indicavam seu
desejo de me ver removida da face da Terra.
— A sra. Lillington teve um dia especialmente difícil. — A voz era de
Judah; ele apareceu atrás de nosso pequeno grupo e agora movia-se para
meu lado, colocando a mão sob meu cotovelo. — Ela sofreu um alto grau
de preocupação e angústia, está machucada e caminhou por vários
quilômetros.
Ele virou-se para Lucetta – de alguma forma, achava difícil pensar nela
como sra. Rutherford, sendo este o nome que eu havia conectado durante
boa parte da minha vida à mãe de Martin – e mostrou seu sorriso
encantador.
— Posso pedir por sua compreensão, sra. Rutherford, para levar a sra.
Lillington lá para cima? Ela estará bastante recuperada amanhã. — Ele fez
um movimento na direção de Martin que tinha uma sugestão de mesura. —
E peço desculpas por me intrometer sem uma apresentação; minha
preocupação com a sra. Lillington será minha desculpa. Meu nome é
Poulton.
— O sr. Poulton é o diretor do corpo docente e professor do Antigo
Testamento — a sra. Calderwood interrompeu, seu tom adocicado
indicando que Judah estava em suas graças. A aparência de Judah tinha
sofrido pouco depois de nossas horas na pradaria; pois exceto por um
pequeno amassado em suas roupas, parecia como se houvesse acabado de
sair de um evento noturno. Pude perceber que Lucetta o fitava com uma
expressão que indicava sua aprovação.
— Estou ansioso para conhecê-lo adequadamente em um momento
mais propício. — A mão de Judah deslizou pelo meu braço e reforçou um
pouco o aperto. — Nell, me permite escoltá-la até sua porta? — Sua voz era
carinhosa. — Está exausta, receio que possa desmaiar.
Olhei para Martin, que estava nos observando com uma expressão
indecifrável, e então sorri para Judah, com uma sensação de ardência
quando a pele esfolada de meu nariz se moveu.
— Desmaiei apenas uma vez na minha vida — falei com uma sombra
da minha energia usual. — Mas eu realmente gostaria de ir para meu quarto
agora.
Acenei de forma apologética para o pequeno grupo à minha frente e
virei-me na direção da escadaria, esgotada em cada membro. Judah me
ofereceu o braço, e deslizei a mão sob ele, sentindo os olhares dos visitantes
enquanto subíamos, consciente de que a presença mais familiar era
exatamente o mesmo homem alto com o rosto duro que não pareceu saber o
que falar para mim.
Capítulo trinta e um

Amigos
Acordei na manhã seguinte me sentindo como se o cavalo dos
Lombardis tivesse rolado sobre mim, dando atenção em particular a minhas
costas e ombros. A pele arranhada no nariz e na testa não parecia tão ruim
quanto eu temia, graças ao iodo que Tess havia buscado com a sra.
Drummond na noite anterior. As manchas marrom-amareladas que não
iriam sumir completamente não eram os mais agradáveis dos adereços
faciais, mas eram melhores que o vermelho inflamado e de aparência
furiosa da noite passada.
Vesti minhas roupas de trabalho, saia e blusa, certificando-me de
escolher os artigos mais novos e limpos. Lancei um olhar desejoso para a
cômoda, na qual tinha vestidos muito mais atraentes, e suspirei. Um olhar
para a confecção castanha arruinada que estava amontoada num canto, suas
camadas de veludo surradas e sujas, me convenceu de que estaria
provocando o destino ao tentar impressionar os visitantes nesta manhã.
Prendi o broche que Martin havia me dado na gola, endireitei os ombros e
mantive a cabeça erguida.
Sarah, a quem Tess acomodara exausta na cama, com pouco mais que
uma rápida esfregada da toalha, estava agora aproveitando um banho na
pequena sala perto da cozinha onde as tinas eram guardadas. Tess prometera
ajudá-la a colocar o vestido verde bonito que ela não teve chance de usar
ontem. Ambas estavam zonzas de empolgação enquanto seguiam para o
andar de baixo.
Pensar na felicidade delas pôs um sorriso em meu rosto e no momento
em que cheguei ao segundo andar, meu humor estava animado e era quase
capaz de ignorar as dores nos meus ombros e quadril. O desjejum não
aconteceria por mais vinte minutos, já que todos levantaram cedo. Com
isso, eu poderia passar dez minutos na biblioteca examinando a mesa dos
jornais em busca de recém-chegados antes de ir encontrar os Lombardis.
Desci ruidosamente os últimos degraus e puxei a porta para abri-la,
cantarolando uma música enquanto o fazia, mas gemendo um pouco com o
puxão no ombro dolorido. Havia muitos motivos para estar alegre, refleti.
Sarah estava segura e ainda que eu estivesse um tanto perdida sobre como
lidar com seu recente conhecimento quanto à sua posição ilegítima, ao
menos sorria e tagarelava como de costume. Eu atravessaria aquela ponte
quando chegasse o momento.
— Nell? — Uma voz chamou de algum lugar na fileira de pequenas
salas de estudo que corria junto à parede da biblioteca. — É você? —
Houve uma movimentação e então a cabeça de Martin apareceu na porta da
segunda sala, seguida pelo resto de seu corpo. As salas de estudos não
tinham janelas e, consequentemente, o corredor estava escuro, mas eu pude
ver o cabelo de Martin e o lampejo de seus dentes quando sorriu.
— Como sabia que era eu? — perguntei de forma equivocada, ouvindo
em minha mente minha mãe me corrigir.
— Você sempre cantarola músicas de manhã — respondeu,
aproximando-se. — Ao menos fazia quando ficou comigo naquelas
semanas. E tem o dom tanto de acordar cedo quanto de ser animada.
— Você também — sorri de volta.
— O hábito de anos administrando uma loja — Martin admitiu. — Não
acho que eu conseguisse ficar na cama se quisesse.
Ele gesticulou para a sala de onde acabara de sair e o segui para dentro
dela. Ela continha uma mesa – agora coberta de papéis que eu supunha
serem de Martin – duas cadeiras e uma estante baixa contendo uma coleção
misturada de Bíblias e livros de hinos. Um retrato verdadeiramente
pavoroso de Martin Luther, parecendo gordo e descontente sob um chapéu
de aparência apertada, adornava uma parede.
Iluminada por uma lamparina, a escrivaninha tinha um ar primoroso,
objetivo. Assim como o próprio Martin. Suas roupas da noite anterior
deram lugar a um paletó marrom com um bom corte mas, fora isso, era
bastante comum, fazendo-o parecer bem mais com o homem que eu
conhecia.
Martin ergueu a lamparina para que pudesse inspecionar os arranhões
em meu rosto. A luz revelou linhas ao redor de seus olhos e boca que não
estavam lá da última vez em que o vi, e também um delicado tom azul na
pele frágil sob os olhos. A mão que se estendeu para – pensei – tocar meu
rosto, hesitou e se recolheu de volta não era tão branca e macia quanto
costumava ser. Havia calos nas palmas e cicatrizes de cortes e arranhões
desaparecendo nas costas dela.
— Não parece ter se machucado muito. — Recolocando a lamparina
no lugar, Martin se apoiou na mesa e cruzou os braços. — Agora, será que
pode me dizer por que colocou na cabeça que iria perambular pela pradaria
ontem? — perguntou. — Os Calderwoods não pareciam propensos a falar.
Eles são um casal e tanto, não? — Ele inclinou a cabeça de lado,
aguardando minha resposta.
— Thea Lombardi informou a Sarah que ela é ilegítima. E disse o que
significava — falei sem rodeios. — Então Sarah se recusou a voltar. —
Mordi a parte interna de meu lábio, perturbada por sentir o ardor das
lágrimas no fundo dos olhos e tão perturbada quanto com Martin por ter
perguntado. — Você poderia falar que está feliz em me ver antes de me
interrogar sobre meus assuntos — atirei.
— Ah. — Os olhos de Martin, cinza claro sob a luz, se arregalaram. —
Isso explicaria a ausência da jovem Thea no jantar. A sra. Lombardi… Ela
está terrivelmente magra e com aparência preocupante, não está, Nell? O
que eles… Ou perguntar sobre os Lombardis é “interrogar sobre seus
assuntos” também? — A sombra de um sorriso curvou seus lábios, mas
logo então sumiu, e seu rosto ficou imóvel, os olhos dele nos meus. —
Estou muito feliz em te ver, Nellie.
Por algum motivo, aquele comentário me deu uma sensação estranha
na boca do estômago. A sensação se dissipou quando Martin franziu a testa
e sua expressão tornou-se mais focada, como se repensando minhas
palavras.
— Sarah… Entende? O que Thea quis dizer?
— Acho que sim — falei, me sentindo ruborizar um pouco. — Ela
parece bem nesta manhã, mas suponho que em algum momento teremos
que conversar sobre o assunto, mas não estou ansiosa por isso — concluí
com tristeza, correndo um dedo sobre meu pulso arranhado.
— Por que não conta a ela sobre Jack Venton? — Martin perguntou
suavemente.
Ergui minha cabeça de repente, sentindo o sangue ser drenado das
bochechas.
— Como sabe que foi Jack? — despejei, sabendo que meu rosto
entregara o jogo de qualquer forma. A porta da sala estava aberta e olhei ao
redor como precaução, mas o corredor estava silencioso.
— Minha querida — os olhos de Martin eram sérios, arregalados com
simpatia —, eu conheci seu primo o bastante durante aquela visita, e vi
como flertava com ele. Me divertiu naquela época. — Sua boca se
contorceu com sarcasmo. — Porém, suspeitei mesmo quando Sarah era um
bebê, mas agora… a semelhança é clara, principalmente os olhos. — Ele
respirou fundo, hesitando, e então sussurrou, a voz um pouco rouca — Ele
te forçou?
Minhas mãos fecharam-se em punhos ao lado do corpo.
— Isso — falei com altivez — não é da sua conta, Martin.
Seus cílios claros baixaram para cobrir seus olhos.
— Não, suponho que não seja. — E então, falou num tom diferente
quando um sino tocou no piso abaixo de nós. — Não parecemos capazes de
partir para um bom começo, não é, Nellie? Sinto muito se pareço não fazer
nada além de te interrogar. Presumo que essa seja a chamada para o
desjejum; irá juntar-se a mim? Não poderei fazer perguntas estranhas se
estivermos acompanhados. — Ele apagou a lamparina e saiu para o
corredor, estendendo a mão para mim.
— Eles te esperam à mesa do dr. Calderwood e eu geralmente me sento
nos fundos da sala. — Tentei soar alegre, mas meu humor animado de meia
hora atrás evaporara, e minhas palavras guardavam um tom petulante. —
Sou apenas a costureira, se não se lembra.
— Mas será minha convidada — Martin disse gravemente. — E
esqueça sua posição. — Ele segurou minha mão e praticamente me
empurrou pela porta, soltando quando viu a nuvem de alunos correndo
apressados pelas escadas. — Iremos conversar como amigos de novo, nem
que isso me mate.

— Vai juntar-se a mim na mesa do dr. Calderwood hoje, Nell? —


Judah, de forma bastante incomum, estava parado à porta do refeitório,
esperando.
— Já estendi o convite. — O tom de Martin era amigável, mas seus
olhos estavam desconfiados.
— Oh, bom dia, sr. Rutherford. Confio que tenha dormido bem? E sua
esposa encantadora, não vai juntar-se a nós?
— Ela não aceita a existência das oito horas da manhã.
Martin ajustou os punhos com um gesto que eu me lembrava bem e
analisou a sala. O dr. Calderwood estava começando a chamar a atenção
daqueles presentes com um breve movimento da cabeça, indicando que
queria começar a rezar em breve. Os alunos deslizaram rapidamente para
seus lugares, enquanto os criados colocavam os pratos nas mesas.
— A dama de companhia vai atendê-la mais tarde; os criados aqui são
do tipo prestativo? — Ele dirigiu a pergunta a mim, sobre o ombro.
— Eles são — falei com brevidade, acelerando o passo enquanto
seguia para a mesa, e tanto Judah quanto Martin estavam atrás de mim.
Hesitei quando percebi que o dr. Calderwood notou, mas ele fez uma
mesura e mostrou seus dentes enormes num sorriso cordial. Murmurando
“Cara sra. Lillington”, gesticulou para um assento perto dele. Os Lombardis
já estavam no extremo da mesa – ao menos Teddy e Lucy. Não havia sinal
de Thea.
Ocupada acenando para cumprimentar os Lombardis e indicando na
linguagem de sinais que sim, eu estava bem, mal notei enquanto os
cavalheiros mais prováveis de me desconcertar durante a refeição tomaram
seus lugares. O dr. Calderwood entrelaçou os dedos, curvou a cabeça
grande, fazendo com que a cabeleira caísse à frente – tinha algumas listras
prateadas, notei – e embarcou numa oração de graças longa e desconexa.
Quando pude abrir legitimamente meus olhos novamente, vi Martin
sentado à minha esquerda, do lado oposto aos Calderwoods, e Judah à
minha frente. Virei-me para olhar ao redor da sala.
— Onde estão Tess e Sarah? — Olhei para Judah do outro lado. —
Convidou-lhes também, não?
— Eu não as vi — Judah falou friamente.
Os assentos ao redor foram preenchidos pelos membros do corpo
docente que se aproximavam para se apresentarem a Martin.
Franzi o cenho, mas então relaxei quando uma pequena figura usando
verde claro, coroada com uma chama de cabelo acobreado brilhante, entrou
pela extremidade mais distante do salão. Tess penteara o cabelo de Sarah,
mas o deixou solto – não conseguia trançar –, simplesmente usando uma
fita para mantê-lo longe do rosto. Deixado assim por conta própria, ele
formava ondas espessas no topo, muito parecido com o cabelo de Jack, e
caía como anéis nas pontas. Martin estava certo, pensei, observando o rosto
de Sarah se iluminar quando me viu na mesa alta. No formato do rosto e,
sobretudo, nos olhos, ela era inegavelmente a filha de John Harvey Venton.
De todos os lugares no mundo que poderíamos ir, Hartford, em
Connecticut, era um que eu precisava evitar com o máximo rigor.
— Posso me sentar perto de Teddy? — Foi a primeira pergunta de
Sarah quando me alcançou.
— Pode, sim. — Olhei para Tess, que parecia agitada, já que vestir
Sarah sozinha era uma conquista e tanto. — Mas, por favor, diga bom dia
antes.
— Bom dia, dr. Calderwood. Bom dia, sra. Calderwood — Sarah
hesitou. — Bom dia, sr. Poulton. — E então, fixando sua atenção em
Martin, que havia virado em sua cadeira para vê-la, ela curvou-se numa
mesura elegante, cuidadosamente segurando o vestido, que ficava um
centímetro abaixo do joelho e estava rígido devido às anáguas. — Estou
feliz em conhecê-lo-, senhor — falou, analisando o rosto de Martin. — Ao
menos, sei que nos encontramos na noite passada, mas não fui realmente eu
mesma. Não me lembro de conhecê-lo quando eu era um bebê, então sinto
como se estivesse conhecendo-lhe pela primeira vez.
Um sorriso satisfeito se espalhou pelo rosto de Martin com esse longo
discurso, feito num balbucio infantil e com algumas hesitações. Percebi
com uma pontada que aquela era a primeira vez em que eu o via
genuinamente feliz desde que chegara. Comigo, parecia de alguma forma
estar no limite, como se não pudesse se sentir de fato confortável. Ele ficou
de pé e estendeu a mão para Sarah apertar; ela obedeceu, e então uma
expressão de surpresa alegre se espalhou em seu rosto.
— Mamãe! Eu perdi um dente! — Afastando-se de Martin, ela cutucou
minha manga, indicando um de seus dentes inferiores da frente.
Gemi internamente. Os dentes de bebê de Sarah eram tão bonitos,
pequenos, brancos e regulares, e parecia uma pena ter que perdê-los. Por
fora, sorri e murmurei alguma coisa adequadamente maternal.
— Estou feliz por ter estado presente nesta descoberta tão memorável.
— Os olhos de Martin encontraram os meus por um segundo e então
estendeu a mão para Sarah. — Posso escoltá-la até sua cadeira?
Ela deslizou a mão na dele sem hesitação e ele virou-se na direção de
Tess, oferecendo o outro braço. O rosto redondo de Tess irradiou alegria, e
ela quase agarrou o braço de Martin. Eu estava feliz com seu tato, já que
nenhum lugar fora deixado para ela ao meu lado.
— O sr. Rutherford é realmente o favorito das damas — Judah
comentou, observando Martin cumprimentar Catherine e Lucy Lombardi.
— A esposa dele é bastante… bastante espetacular — arriscou um dos
professores. Eu não conseguia me lembrar de fato seu nome – Bassford?
Blackford? – como todos os homens novos no seminário, era de uma
insignificância sem cor com poucas opiniões próprias. — Nunca vi uma
dama como ela. — Percebendo que eu estava olhando em sua direção, ele
tossiu, enrubesceu e se ocupou com seu guardanapo.
Me perguntei por um breve momento se a sra. Drummond fez questão
de informar a cada novo membro do corpo docente sobre minha posição
como uma mulher pecadora. A governanta do seminário se fechou muito
desde a morte do professor Wale, fazendo as refeições em seu escritório e
evitando contato desnecessário com quase todos. Eu não a via à mesa do
desjejum há meses. E, além disso, o que eu poderia fazer se fofocasse?
Sorri para o professor Qualquer-que-fosse-seu-nome, fazendo-o
ruborizar ainda mais e comentei que havia conhecido a sra. Rutherford no
dia anterior e, de fato, era muito elegante.
Martin voltou para sua cadeira e a conversa tornou-se mais
generalizada. Me servi de pão de milho, bacon e maçãs fritas com gosto, já
que tinha comido muito pouco na noite anterior. Ouvi enquanto o dr.
Calderwood tentava repetidamente se vangloriar das qualidades do
seminário para Martin. Ele estava desperdiçando seu tempo, pensei, já que
Martin não tinha filhos – ou estaria esperando obter outra doação comum?
— Pausamos nossa viagem em Kansas City — Martin falou, em
resposta à pergunta à sua esquerda. — Por causa da Exposição. Uma bela
mansão antiga que eles têm na feira.
— O senhor viu os garotos James? — O rosto comprido do professor
Hoggart iluminou-se com uma expectativa animada. Ele era sulista, um
membro do corpo docente de longa data que sofria de um mau hálito
severo.
— Ah, sim, isso estava nos jornais de Wichita — Judah comentou. —
Eles colocaram detetives no rastro de dois homens que estavam se
comportando de forma suspeita, mas deixaram-lhes fugir …
— E algumas pessoas os reconheceram com certeza como Jesse e
Frank James — o professor Hoggart interrompeu, para descontentamento
evidente de Judah, com a voz alta. — E os covardões — ele pronunciou
covadões — os deixaram escapar da cidade sem prendê-los, pois estavam
assustados demais para enfrentar os foras-da-lei. Filhos da mãe medrosos de
Josafá… — Sua fala degenerou-se em uma risada ofegante e vi a sra.
Calderwood encolher-se com a explosão de hálito ruim.
— Você puxaria uma arma para os irmãos James? — Judah disparou
com um olhar desdenhoso para o professor e voltou sua atenção para
Martin. — Eles assaltaram a Exposição em 72 — continuou. — Espero que
o senhor e sua boa senhora tenham ficado bem protegidos. Kansas City tem
a reputação de abrigar os piores tipos.
— E esse, sr. Rutherford, é precisamente o motivo pelo qual nosso
seminário é tão importante — o dr. Calderwood disse adulador, e vi Judah
assentir em concordância. — Somos um farol numa terra escura, uma pedra
de Cristo onde a verdadeira palavra de Deus é preservada sem
questionamentos. Nós enviamos homens para as cidades cruéis das
planícies, para as Sodomas e Gomorras, onde os foras-da-lei prosperam e as
imoralidades de todos os tipos são galopantes…
Ele pareceu perder sua linha de raciocínio, e o professor Hoggart
interveio.
— O senhor viu Jefferson Davis na Exposição?
Naquele ponto, a conversa se tornou cautelosamente política. Ouvi
com metade da atenção, sabendo quão circulares aquelas conversas tendiam
a ser. Até o professor Hoggart, que se destacava como único membro do
corpo docente provável a arriscar uma opinião verdadeira em face às
banalidades insípidas do dr. Calderwood, estava circunspecto quanto a
mencionar os eventos nos estados do sul.
Eu estava consciente de Martin ao meu lado, rechaçando as tentativas
de fazê-lo falar sua opinião sobre o presidente Grant, com um comentário
divertido sobre ser apenas um comerciante e que precisava manter suas
opiniões para si mesmo pelo bem do mercado. Era estranho ver aquele
grupo de homens submetendo-se a Martin. Todos eles, inclusive Judah,
pareciam considerá-lo um representante do poder comercial, uma força que
iria arrastar o Kansas, junto com a maré de imigrantes e torná-lo – quando
as circunstâncias econômicas melhorassem – um paraíso de prosperidade.
A sra. Calderwood falou pouco, mas seus olhos pretos de contas
dispararam olhares pela mesa. E ocasionalmente me observava com um ar
de aprovação para meu silêncio feminino na presença de homens
debatendo. Judah também sorriu para mim algumas vezes, claramente
satisfeito por eu estar interpretando um papel ornamental na mesa, ao invés
de tentar me aventurar numa participação falada.
Na verdade, eu achava a conversa bastante ridícula. Pois não achava
que os homens, com exceção de Martin e Judah, tinham qualquer
conhecimento real de assuntos políticos. Muitas das suas opiniões eram
simplesmente reiterações do que haviam dito minutos antes.
— Estamos deixando-a entediada, Nell? — Judah falou com
suavidade, mas senti Martin se mexer ao meu lado como se, talvez,
estivesse ouvindo. Ele não podia ter deixado de notar o uso repetido que
Judah fazia do meu primeiro nome em público, uma circunstância que
também achei um tanto surpreendente. Afinal de contas, não estávamos de
fato noivos.
— De forma alguma — respondi. — Estou esperando que a conversa
assuma um viés mais prático. Prefiro reservar a expressão de minhas
opiniões para momentos em que eu de fato tenha uma.
— Não, tagarelice política não é seu domínio, não é? — Judah lançou a
força total de seu sorriso deslumbrante para mim com uma piscada dos
olhos que era, para ele, quase galanteador. — Deveríamos falar sobre dias
de verão e pôr do sol, ao invés disso?
Aquela referência a seu pedido trouxe um leve rubor às minhas
bochechas – como Judah deveria saber que aconteceria – e seu sorriso se
alargou. Estávamos agora a dois meses e meio dos seis que pedi, e ainda
não tinha certeza quanto à resposta que lhe daria. Até agora, não fizera
nenhuma alusão a nosso futuro juntos, e eu era grata à sua reticência.
— Você se machucou de alguma forma depois de nossa aventura na
planície? — Judah perguntou. — Exceto por… — Ele indicou os arranhões
em meu rosto, estendendo a mão e então rapidamente retirando-a, como se
houvesse sentido a necessidade de me tocar e depois se lembrado que
estávamos acompanhados.
— Absolutamente nenhuma — falei, consciente de que meu coração
batia um pouco mais rápido do que o normal. Não era, pensei,
necessariamente por causa de Judah, mas porque eu sabia que Martin
estaria ciente da intimidade no tom de Judah.
Olhei de soslaio para Martin, mas ele havia virado a cabeça para o
outro lado. Eu tinha a impressão de que aquela postura tranquila, relaxada,
de alguns minutos atrás fora substituída por algum tipo de imobilidade
gelada.
— Acha que a sra. Lillington está com boa aparência, sr. Rutherford?
O senhor a conhece há muito mais tempo que eu.
A pergunta direta de Judah chamou a atenção de Martin, e ele mexeu-
se na cadeira de novo.
— E, é claro — Judah continuou —, suas cartas são sempre um grande
conforto para ela. Creio que o senhor seja o mais perto que ela tem de um
irmão. É fascinante para mim ouvir sobre as soirées musicais que
frequentou, as caçadas, e por aí vai.
O ouvir falando era de se pensar que havia lido as cartas de Martin em
voz alta para ele. Ainda assim, supunha que essa era a forma de Judah de
fazer insinuações amigáveis a Martin, e eu dificilmente poderia culpá-lo por
querer estar em termos cordiais com alguém que eu conhecia por tanto
tempo.
— Acho que a sra. Lillington está com uma aparência extremamente
boa. — O tom de Martin era brando, o rosto inescrutável sob a máscara de
cortesia.
Sua intenção declarada de conversarmos como amigos no desjejum
tinha ido para lugar nenhum, percebi. Os outros monopolizaram seu tempo
e mal tínhamos trocado dez palavras.
— O ar das planícies combina com ela, creio — Martin continuou,
olhando diretamente para mim pela primeira vez. — Mas eu gostaria…
Mas a sra. Calderwood ficara de pé, fazendo com que vários
professores fizessem o mesmo. Uma onda de movimento se espalhou do
meio para fora da mesa e reverberou pelo salão. As cadeiras arrastando e a
troca final de comentários engoliram o que quer que Martin estivesse
prestes a dizer. Sua atenção foi imediatamente tomada pelo pastor
Lombardi, que se movera com propósito em sua direção com uma pergunta
sobre a reconstrução de Chicago. Martin respondeu com tranquilidade e os
dois homens ficaram conversando enquanto a multidão diminuía ao seu
redor.
— Faria uma caminhada comigo depois, Nell? A tarde promete ser
bonita. — Judah apareceu do meu lado, silencioso e ágil como uma pantera.
Virei-me de costas para Martin para respondê-lo:
— Bem… — Hesitei, imaginando se deveria perguntar a Martin o que
ele iria fazer naquele dia. Mas é claro que seus planos teriam que incluir
Lucetta e ela ainda não havia aparecido.
— Ou já se cansou de ver as planícies? — Judah ofereceu sua própria
interpretação de minha hesitação.
— É claro que não — eu ri. — Meus tornozelos estão um pouco
doloridos. Oh, provavelmente não deveria tê-los mencionado —
acrescentei, lembrando que Judah era, afinal de contas, um cavalheiro. Não
se mencionava os membros inferiores a um cavalheiro, ainda que ele a
tenha erguido para cima de um cavalo no dia anterior.
Judah jogou a cabeça para trás numa rara explosão de risadas, seus
cachos brilhantes capturando a luz.
— Não andaremos muito — prometeu pôr sobre o ombro, enquanto
virava-se para atravessar a porta. — Não hoje.
Capítulo trinta e dois

Interrogató rio
— Nós punimos Thea — Catherine falou em voz baixa.
Estávamos paradas, de braços dados, no terraço do lado de fora da
biblioteca. Abaixo de nós, no jardim, a carroça dos Lombardis estava
pronta, as orelhas compridas da mula tremendo enquanto Teddy e o pai
terminavam de carregar os últimos pacotes.
Olhei para Catherine, mas sua expressão era fechada. Evidentemente,
não queria me dizer qual havia sido a punição. Decidi não perguntar.
— De qualquer forma, Sarah parece ter se recuperado do choque —
falei. — Talvez seja melhor assim. Eu teria que contar mais cedo ou mais
tarde, suponho.
— Talvez. — Catherine soltou meu braço e virou-se para me fitar. —
Se já fosse casada com o sr. Poulton, por exemplo, não teria necessidade.
Ela é muito pequena; pode esquecer o que Thea falou. Melhor deixá-la
pensar que tem um pai e poupá-la da vergonha.
Mordi o lábio. Catherine parecia muito mais elegante do que na
chegada, estando usando um dos vestidos que costurei; mas suas
responsabilidades pareciam estar abatendo-lhe à medida que a hora da
partida se aproximava.
— E ainda assim quer que eu pense duas vezes antes de dizer sim para
Judah — falei, de modo um tanto repreensivo.
— Eu quero. — Catherine olhou para o jardim. Martin tinha se juntado
aos homens Lombardi enquanto estávamos falando e os três estavam
envolvidos numa conversa que causava muitas risadas. — É uma pena que
não tenha podido ser o sr. Rutherford — falou. — Ele é um bom homem;
trabalha duro e é gentil, ambicioso sem ser implacável. E a afeição dele por
você é profunda. Mas é tarde demais para isso — ela suspirou, respondendo
com um aceno ao chamado de Teddy. Martin virou-se, me viu, e tocou o
chapéu com um sorriso hesitante, então voltou-se para o pastor Lombardi.
— Martin estava pronto para casar-se comigo. — Virei de costas
resolutamente à visão de Martin. — Para me salvar de meu padrasto. Mas
eu não iria tolerar tal arranjo e, como diz, agora já é tarde demais.
Dispensando o pensamento, senti minha testa franzir enquanto
enfrentava as implicações das palavras de Catherine.
— Sua opinião é de que eu preciso me casar? Se não for com Judah,
preciso ir caçar um marido, para o bem de Sarah?
— Como eu disse, não posso expressar uma opinião sobre o sr. Poulton
até conhecê-lo melhor. — A voz de Catherine assumira um tom mais ácido
que o usual. — E ele é difícil de conhecer. Então sim, se quiser minha
opinião, as opções diante de você – se tiver o bem-estar de Sarah em mente
– são casar-se com ele, casar-se com outra pessoa ou mudar-se para onde
ninguém a conheça e construir uma rede de mentiras mais convincente
sobre seu marido falecido. E disponibilizo a última como uma solução
prática, e não moral. Você é uma mulher notavelmente prática, Nell.
Mais uma vez, seu tom me deixou desconfortável, e minha expressão
sem dúvidas refletia meu incômodo. Catherine me abraçou com força e me
beijou na bochecha.
— Me perdoe — falou. — O comportamento de Thea me deixou mal-
humorada e não pareço conseguir encontrar minha caridade cristã nesta
manhã. — A sombra de um sorriso cintilou em seus lábios. — Espero que
saiba que quaisquer que sejam suas escolhas, eu te amo como uma filha.
Venha nos visitar no Natal.
— Eu irei.
A abracei de volta, mas meus membros pareciam estranhos e pesados
enquanto a observava atravessar a biblioteca com passos rápidos, se
apressando para encontrar as crianças mais jovens para que pudessem
seguir a longa jornada para casa. Eu tinha me recusado a revelar o nome de
Jack para minha mãe e meu padrasto porque não queria me sacrificar a um
casamento sem amor. Mas será que teria que fazer esse sacrifício, afinal de
contas?

— Aquela criança — falou Martin enquanto observávamos a carroça


dos Lombardis sacudir sobre os buracos na estrada — é problema.
— Sarah? — perguntei.
Eu estava distraída, focada no pequeno ponto brilhante que era o
cabelo de minha filha, balançando pela estrada na esteira da carroça. Ela
havia prometido que voltaria de imediato, e Tess a seguia de perto, mas a
visão dela correndo para longe ainda me fazia gelar por dentro.
A risada suave de Martin me lembrou de sua presença.
— Thea — respondeu. — Imagino que tenha recebido algum tipo de
punição.
Olhei para ele, notando as pequenas mudanças em seu rosto que eram
mais aparentes na luz forte da manhã. Linhas finas nos cantos dos olhos e
boca sugeriam que seu senso de humor não o tinha abandonado e, de fato,
aquelas linhas de risadas juntaram-se agora que seu sorriso aumentou. Mas
uma linha pequena e reta entre as sobrancelhas era a evidência da
preocupação e o fardo das responsabilidades. E o olhar cansado que notei
mais cedo não deixou-lhe, mesmo quando sorria.
— Mas Teddy estava certo — falei, e vi a testa de Martin contrair em
confusão. Eu parecia estar ciente de cada linha de seu rosto, e aquilo me
desconcertava. Aquela fascinação desapareceria à medida que me tornasse
mais acostumada a ele novamente? Respirei fundo, determinada a voltar ao
meu estado de espírito normal, de trabalho, e cruzei os braços para me
proteger do leve frio do vento da manhã. — Pois disse que punir Thea iria
apenas irritá-la, e que não confessaria ter feito qualquer coisa de errado.
Tenho receio de que esteja certo. Por acaso viu como ela olhou para mim?
Como se eu tivesse lhe dado uns tapas. — Apertei meus braços com mais
força de encontro ao corpo, lembrando do calafrio que senti sob o olhar fixo
de Thea.
— O que ela fez foi errado — Martin disse, e pude ver que seus olhos
escureceram, chegando naquele tom cinza tempestuoso que traía sua raiva.
Parecia que Tess finalmente alcançara Sarah. Estavam voltando depois
de perseguir a carroça, que agora era apenas um grão à distância.
— Elas ficarão bem — Martin falou. Meu rosto evitava o dele
enquanto eu analisava a pradaria, minhas mãos protegendo os olhos, com a
nítida impressão que estava me encarando. Era bastante possível, eu havia
mudado também. Estaria notando os sinais da idade em mim? Afinal estava
com vinte e dois anos – bem fora de minha primeira juventude.
— Preciso trabalhar um pouco — disse, tentando me livrar da
inatividade. Tess e Sarah estavam definitivamente voltando em direção ao
seminário mas, conhecendo as duas, aquela seria uma longa jornada,
intercalada por brincadeiras na grama seca e a colheita de caules e flores
que ainda poderiam existir nessa época do ano. — Não fiz uma única coisa
ontem e ao longo das últimas três semanas estive costurando roupas para os
Lombardis. Estou preocupada com eles, Martin.
Virei na direção da pequena porta que levava à área perto da cozinha,
trilhando o caminho ao passar por duas criadas carregando baldes ruidosos.
Elas me cumprimentaram alegremente e olharam para Martin com
curiosidade, que me seguia de perto. Ele levantou o chapéu e as
cumprimentou cordialmente, o que lhe fez ganhar sorrisos e acenos de
aprovação.
Emergimos no lado oposto da fileira de portas de carvalho robustas que
indicavam os quartos dos alunos mais ricos. Pensei, como fazia com
frequência, em Reiner, agora em algum lugar em Saint Louis. Senti uma
pontada de tristeza pelo rapaz agradável que havia, pelo menos por um
tempo, se apegado a mim. Eu gostaria de ter sido capaz de retribuir aquele
apego.
— Você está muito quieta. — A voz de Martin ecoou no corredor. As
aulas da quarta-feira de manhã estavam em andamento, e as áreas públicas
do prédio, desertas.
— Eu estava pensando em um amigo — admiti, empurrando a porta de
minha sala de trabalho. — Um que não está mais aqui.
— Um amigo de quem gostava? — O tom de Martin era suave.
— Sim, de certa forma — confessei, abrindo a janela para deixar o ar
da manhã entrar. A posição ao norte de minha sala não permitia que
nenhum feixe de luz do sol desbotasse meus tecidos mas, num dia bonito
como hoje, as janelas altas deixavam entrar uma luz forte e regular. Ela
refletia em minhas tesouras, deixadas sem cuidado sobre uma cadeira, e
iluminava o amarelo opaco do nanquim espalhado na mesa de corte.
Preocupada com Sarah, eu não havia organizado como de costume.
— Ele gostava de você?
Senti meu rosto ruborizar.
— Gostava. E me pediu para me casar com ele. Mas eu não era
apegada o bastante para isso.
— E nem uma pista em suas cartas? Deus misericordioso, sra.
Lillington, você é mesmo uma caixinha de surpresas. — O tom de Martin
era leve e o comentário de tia solteirona, “Deus misericordioso” era um
convite definitivo à brincadeira, mas havia uma nota de cinismo que era
nova para ele.
Peguei uma extremidade do nanquim e o bati para tirar algumas linhas
soltas, então acomodei o tecido de volta sobre a mesa e alcancei a cesta com
as peças de moldes.
— Você não me informou sobre seu próprio casamento até que tivesse
acontecido — apontei. — Além disso, eu não queria me casar com ele;
então, o que havia para contar?
— Tenho certeza de que os corredores do seminário estão cobertos de
galãs rejeitados. — Martin riu, mas não foi uma risada agradável. — O sr.
Poulton, talvez?
Eu fingi não ouvi-lo e fui em busca de minha almofada de alfinetes,
que foram parar sobre a máquina de costura.
— Eu realmente tenho muito trabalho, Martin.
Ele puxou uma cadeira e se sentou, esticando as longas pernas diante
de si.
— Então, o sr. Poulton não foi rejeitado? Achei que estivesse tentando
deixar claro este ponto durante o desjejum. Sujeito vaidoso, não é?
Não havia nada que eu pudesse dizer diante daquele comentário, então
não falei nada, concentrada em prender os moldes de tecido no ângulo
correto. Através da janela, o som de uma risada distante chegou em jorros
pequeninos, carregada pelo vento oeste, que ocasionalmente balançava o
peitoril enquanto pressionava o vidro. Atrás de mim, eu conseguia ouvir um
leve rangido de cadeira quando Martin mudava de posição, e o barulho
suave de raspagem de suas mãos deslizando para dentro do bolso. Uma
mosca zunia ao redor de minha cabeça e eu a espantei, observando-a
ziguezaguear em direção à janela, ricocheteando na vidraça enquanto
realizava sua fuga para o lado de fora.
Inspirei o aroma quente de feno da pradaria no outono, tentando
aproveitar o que normalmente teria sido uma manhã tranquila de trabalho.
Mas minha paz foi derrubada, minuto a minuto, pelo encontro silencioso
com Martin, como a calmaria que precede uma tempestade impetuosa.
Nós dois ficamos sem paciência ao mesmo tempo. Minha mão vacilou,
sua destreza tranquila normal substituída por um peso que parecia começar
nos ombros. Virei-me para ver Martin ereto na cadeira, todo o relaxamento
fingido abandonado.
— Bom — ele disse, mas seus olhos estavam duros. — Eu de fato
esperava que não tivesse que conduzir essa conversa com a parte de trás de
sua cabeça. Por isso, irei fazer uma pergunta direta: o sr. Poulton a pediu em
casamento e você aceitou?
Fechei a tesoura que pegara inexplicavelmente, e fui até a janela. O
lado norte do prédio tinha pouco a ser elogiado, oferecendo apenas uma
vista de um trecho particularmente comum e desinteressante da pradaria e
as árvores jovens que demarcavam os limites do seminário. Me apoiei de
encontro ao caixilho da janela e cruzei os braços, olhando para Martin.
— Já que evidentemente não irá me deixar trabalhar até que me
interrogue, então sim, Judah me pediu em casamento, e não, eu ainda não
disse sim. Mas também não falei não. Ele disse que pedirá minha mão
novamente perto do Ano Novo e, nesse momento, pretendo ter uma
resposta.
— Você o ama? — Martin perguntou e então sacudiu a cabeça, com
um cacho de cabelo loiro claro caindo sobre a testa. Ele o empurrou de
volta com impaciência. — Não, esqueça que disse isso. Se o amasse,
apaixonadamente, teria se casado há tempos. Você tem um poço profundo
de amor devocional, Nell. Assim que se prender a uma pessoa, não consigo
imaginar nem que um oceano ou um século sejam suficientes para afastá-la.
— Você poderia estar certo — falei, desejando que não estivéssemos
tendo essa conversa. — Mas há mais no casamento do que apenas amor,
não?
— De fato. — Martin se levantou e juntou-se a mim na janela, seu
rosto sombrio enquanto fitava a fileira ondulante de árvores, das quais
algumas folhas marrons ressequidas iriam cair ocasionalmente. Seu perfil,
com o nariz alto e bicudo, e o lábio inferior um pouco cheio, era tão
familiar quanto meu próprio rosto e, ainda assim, pouco familiar. — Eu não
gosto dele — Martin enfiou as mãos nos bolsos e virou a cabeça em minha
direção, a expressão séria. — Não acho que ele te ame. Não acho que ele
sequer queira você, não como um homem quer uma mulher. Eu o entenderia
melhor se fosse o caso. Oh, sei que ele é todo sorrisos e gestos bonitos —
ele continuou quando abri a boca para replicar —, e aposto que ele não está
acima de beijos e carícias quando estão sozinhos.
Ruborizei e ele riu, um som curto e cínico que torceu um dos lados de
sua boca para cima.
— É fácil oferecer tais… elogios a uma mulher jovem. — O braço
perto de mim sacudiu convulsivamente, como se sua mão estivesse tentando
se erguer, mas apenas a enfiou mais fundo no bolso, o rosto endurecido. —
Mas isso não é amor, Nellie, é sedução. E, em geral, um meio para o fim.
— Isso é ridículo. — A raiva subiu dentro de mim, quente e ácida. —
Você mal o conhece…
— Eu vi o bastante. — A boca de Martin enrijeceu, refletindo minha
fúria. — E entendo o poder da sedução também, Nell, mais do que imagina.
Ele se aproximou de mim alguns centímetros, olhando no meu rosto.
—Você é vulnerável, e sem um protetor, para todos os efeitos. Os
Lombardis estão muito longe e têm seus próprios problemas. Além disso,
você é rica. Ele sabe disso, não sabe? — Ele torceu os lábios quando outro
pensamento claramente passou por sua cabeça. — Mas os Calderwoods
não, agora isso é interessante.
Empurrei o peito de Martin com a palma da mão, tentando afastá-lo.
Meu ombro estava encostado no caixilho da janela e eu não podia dar um
passo para trás. Para minha surpresa, não consegui movê-lo. Ele estava bem
mais sólido do que eu me lembrava, e era como empurrar um animal grande
que pairava sobre mim.
Por isso, eu não tinha certeza sobre o que pensava disso. Por um
momento, considerei chutá-lo nas canelas, mas não estava certa sobre o que
pensava quanto a isso também. Então não fiz nada, minhas mãos apoiadas
na seda rugosa de seu colete, ciente do calor de seu corpo e do martelar
forte de seu coração.
— Você está deixando sua imaginação levar a melhor — falei,
percebendo que soava como mamãe. — Realmente, Martin, está parecendo
um romance barato. Por que Judah teria qualquer motivo para querer casar
comigo exceto… querer casar comigo? Talvez apenas tenha atingido a
idade e posição na vida em que um homem deseja casar e eu… Bom, não
sou completamente desprovida de encantos, sou?
Mordi o lábio, desejando não ter permitido que a última pergunta
escapasse. Ela negava o tom vigoroso e sensato da primeira parte do meu
discurso e soava infantil e desesperado. Senti um rubor aquecer as maçãs do
rosto, mas me recusei a baixar os olhos, fitando com firmeza o rosto de
Martin.
O silêncio que se estendeu entre nós foi interrompido por uma
gargalhada vinda de algum lugar à minha direita. O rosto de Martin mudou
e ele deu um passo para trás, rompendo nosso contato. Movi-me para que
pudesse ver o lado de fora da janela e acenei para Sarah e Tess, que seguiam
em nossa direção, segurando o já previsto monte de flores e grama.
— Vamos dar a volta até os fundos para encontrar um vaso — Tess
gritou.
— Se apresse, temos muito trabalho a fazer.
Fechei a janela e olhei para Martin, que tinha a expressão de um
homem que havia acabado de acordar de um sonho.
— Não é melhor descobrir o que aconteceu com sua esposa?
— Sim. — Martin girou nos calcanhares, abotoando o paletó enquanto
o fazia. Ele deu a volta na mesa para recuperar o chapéu e voltou-se para
mim. — Mas ainda não falei tudo que queria sobre esse assunto.
— Eu falei. — Podia sentir meu rosto assumindo sua expressão mais
teimosa. — Deveríamos nos encontrar novamente mais tarde, num horário
mais adequado para Lucetta? Gostaria de conhecê-la melhor.
Meus ombros despencaram e pus o máximo de sinceridade que
consegui reunir na voz:
— Martin, essa visita não será muito divertida se continuarmos
discutindo. Eu realmente estava ansiosa para vê-lo de novo, sabe disso.
— Eu sei. — Martin abriu a porta, o chapéu na outra mão, e virou-se
de novo. — Você não é completamente desprovida de encantos — ele disse
bruscamente e, com isso, partiu.
Capítulo trinta e três

Sociedade
— O que irão fazer aqui por três semanas inteiras?
Judah passou o prato de pequenos sanduíches para Lucetta com seu
sorriso charmoso de sempre. Ela não exatamente sorriu de volta, mas havia
algo de sedutor no brilho em seus olhos.
Eu deveria saber, pensei. Já que havia flertado da forma mais
incontrolável a uns seis ou sete anos atrás – céus, fazia tanto tempo assim?
– e estava bem familiarizada com os usos que se poderia fazer de um bom
par de olhos. Os de Lucetta eram adoráveis: grandes, e aquele castanho
escuro que parecia preto em algumas luzes, mas marrom suave em outras. E
eram emoldurados por cílios espessos e pretos, e as poucas linhas ao redor
deles não prejudicavam sua beleza.
Ela usava um vestido vespertino de seda verde-jade, adornado com
uma franja dourada e um corpete e a cauda em azul marinho sobrepostos
por uma renda guipir dourada. O tecido brilhava quando se movia,
capturando a luz do candelabro sobre nós.
Eu trocara meu vestido, é claro, assim que Judah me informou sobre
nosso convite para o chá na sala de visitas dos Calderwoods. Meu belo
vestido de seda dourada era de alta costura para Springwood, mas perto da
magnificência de Lucetta, parecia como uma pomba em companhia de um
pavão.
À nossa frente, Martin estava sentado perto do dr. Calderwood com
uma expressão impenetrável de interesse polido que parecia disfarçar
qualquer coisa, desde tédio à absoluta hilaridade.
— Eu poderia praticar música, suponho. — O olhar de Lucetta desviou
para o salão anexo à sala de visitas dos Calderwoods, onde estávamos
sentados. Podíamos ver o piano do dr. Adema, sua madeira incrustada
capturando o brilho dourado da luz vespertina.
O dr. Calderwood percebeu para onde Lucetta olhava e respondeu
imediatamente, arreganhando seus dentes enormes em um sorriso
galanteador e fazendo uma reverência obsequiosa.
— Se desejar fazer uso de meu piano, minha cara dama, será muito
bem-vinda. Será um prazer ouvi-la tocar.
— Sou uma melhor cantora do que pianista, ainda que, claro, consiga
conduzir razoavelmente bem o instrumento — Lucetta respondeu. Ela
olhou para Martin, parecendo esperar que dissesse alguma coisa.
— Minha esposa tem uma voz que poderia competir com a de Patti,
mesmo que em minha opinião, a dela seja ainda mais rica — ele declarou,
obediente.
— O senhor viu Adelina Patti? — A sra. Calderwood estava sem
fôlego com a empolgação.
— Na Academia de Música de Nova York — Martin respondeu e, por
um momento, seu olhar desviou-se em minha direção, a mesma expressão
inescrutável em seus olhos. Me perguntei se queria ver se fiquei
impressionada com a Academia de Música de Nova York (não fiquei) ou se
estava dividindo a piada que ele, Martin Rutherford, o vendedor da pequena
cidade de Victoria, poderia agora sentar-se conversando sobre Patti com sua
esposa herdeira.
— O dr. Calderwood toca piano extremamente bem — Judah
gentilmente supriu a próxima rodada de elogios. — Talvez ele possa
acompanhá-la enquanto canta, sra. Rutherford?
Aquele comentário disparou uma pequena exibição pirotécnica de
protestos do pouco talento do dr. Calderwood, interjeições do contrário
vindas de sua esposa e sons educados de aprovação de Martin, que estava
realizando bem o papel de urbano sofisticado. Ele definitivamente estava se
divertindo agora, percebi, observando o erguer atento de suas pálpebras e o
alargamento delicado de suas narinas ao suprimir uma risada.
Lucetta, por outro lado, parecia aceitar a oferta com seriedade. Ela
encheu o dr. Calderwood de perguntas sobre sua experiência musical e
preferências. Me surpreendeu descobrir que o homem de fato conhecia
música. Por um momento, ele pareceu bastante sincero, o constante dardejar
de seus olhos cessando quando os fixava em Lucetta.
Antes que outro quarto de hora se passasse, os três – o dr. Calderwood,
como sempre, deferiu à vigorosa administração do horário de sua esposa –
haviam organizado um ensaio de uma hora ou duas para praticarem juntos
no dia seguinte.
— Nós deixamos a sra. Lillington um tanto fora da conversa — Judah
pontuou. Ele tomou minha xícara de chá e a entregou à sra. Calderwood,
que ergueu as sobrancelhas num tom inquisidor e perguntou se eu queria
mais chá. Declinei. Minha avó inglesa me criara para apreciar um bule de
chá bem preparado, e a poção dos Calderwoods deixava muito a desejar.
— Não sou musical — admiti. — Meus talentos estão mais voltados à
agulha e ao lápis. Minha avó me encorajou a tocar piano mas, por algum
motivo, nunca encontrei a alegria nele que observei em outras pessoas.
— Martin é igual — suspirou Lucetta. — Ao menos era, até eu me
comprometer em lhe dar educação musical. Não realizavam saraus naquela
pequena cidade de vocês?
— Eu trabalhava demais para ter energia de ir para saraus — Martin
falou. Seu tom era sereno, mas havia apenas uma sugestão de incômodo.
Tive a impressão de que uma discussão conjugal bem desgastada das falhas
dele estava por trás do comentário de Lucetta. — Ócio e extravagância não
eram características que meus pais encorajavam. Tolices musicais estavam
abaixo de ambos, creio.
Seus olhos escureceram, e dei-lhe um olhar de empatia. De acordo com
o que mamãe me contara, a infância de Martin não havia sido
particularmente alegre, antes mesmo da mente do pai dele ter começado a
falhar.
— Estou bastante encantado pela ideia de ouvi-la cantar — Judah falou
para Lucetta, desviando a conversa do caminho perigoso que ela decidira
tomar. — Talvez fosse possível providenciar um pequeno concerto ou dois
em benefício dos melhores cidadãos de Springwood? Temos tão poucos
entretenimentos interessantes aqui na fronteira. A própria Patti mal iria criar
tanta empolgação quanto a senhora.
Os Calderwoods exclamaram em uníssono com a ideia, o ribombar
grave do doutor fazendo um pesado contraponto com os guinchos animados
da sra. Calderwood. A conversa subsequente provocou uma movimentação
geral até o piano para vasculhar as partituras guardadas dentro da banqueta.
Martin e eu, como os membros não musicais do encontro, ficamos para trás.
— Por favor, me diga, sr. Rutherford: o que irá fazer por três semanas?
— Coloquei quatro dos pequenos sanduíches e um bolinho macio e
delicado em meu prato; o chá estava bastante desagradável, mas as comidas
de Netta nunca falhavam.
Os olhos de Martin estavam no grupo reunido perto do piano. Sua
expressão era estranha, uma mistura de desconfiança e desprezo que me
confundiu. Mas, assim que falei, voltou-se sorrindo quando viu meu prato
cheio. Ele alcançou a travessa e eliminou um dos sanduíches diminutos com
uma única mordida, antes de se acomodar na cadeira novamente.
— Estou aqui para ver a fronteira e passar um tempo com velhos
amigos. Esse vestido é bonito, Nellie.
Olhei para baixo, limpando uma migalha de bolo sobre o faille sedoso
e brilhante.
— Não tão grandioso quanto o de Lucetta. Eu poderia jurar que o dela
é da Casa Worth, em Paris.
— Ele é. Assim como alguns de seus vestidos. Pude perceber que
olhava pelo canto do olho. Eu gostaria de poder mostrar nossa oficina.
Temos uma cliente, cujo nome nunca irei divulgar, que compra vestidos na
Worth. Ela os usa apenas uma vez, e então os vende para nós, e devido a
isso minhas costureiras podem ver exatamente o que Paris está fazendo e os
usam para inspiração. Nós não copiamos, claro; estamos acima disso. —
Martin se inclinou um pouco para frente para ver os detalhes de meu
vestido mais claramente. — Mas o que você fez, apenas com suas revistas
de moda e sua própria imaginação para guiá-la, é bastante notável. Pois
sabe como cortar para ter o melhor caimento, assim como qualquer uma das
minhas próprias costureiras, e muitas delas vêm da Europa e tem uma
opinião elevada sobre si mesmas.
— Eu gostaria muito de poder conhecê-las.
Eu falava sério. A visão dos vestidos de Lucetta tinha acordado um
anseio em mim de ver uma cidade – ver Chicago, com suas lojas recém
construídas e avenidas…
Um pensamento me atingiu, e olhei para Martin.
— Martin, você não esteve de fato em Paris, esteve?
— Bem, sim, na verdade estive. — Martin parecia envergonhado. —
Em maio. Não falei a você porque… Bem, senti que estava num lugar tão
tranquilo e saudável, que não quis fazê-la se sentir inquieta. Mas agora que
vi esse lugar — seu olhar percorreu a sala de estar ornamentada com seus
tons de marrom e vermelho —, não me sinto nem de longe tão otimista em
deixá-la aqui. Há algo de estranho nesta instituição, alguma coisa secreta. É
como se houvesse um verme na maçã, mas não consegue nem pela própria
vida enxergar o buraco por onde entrou, e isso lhe deixa desconfortável em
dar uma mordida.
E ainda assim, pensei, Martin estava feliz em guardar segredos. Me
machucava mais do que eu gostaria de admitir que esteve em Paris – que
atravessara o oceano – sem me contar sobre isso. O que mais teria
escondido?
Minha expressão deve ter murchado, porque um olhar de profunda
preocupação se espalhou pelo rosto de Martin.
— Eu a deixei infeliz — ele disse suavemente. — Sinto muito.
Eu estava tentando formular uma resposta quando Judah emergiu do
salão anexo. Martin viu a direção do meu olhar, e sua expressão ansiosa
retornou àquela educada e indiferente que usara mais cedo.
— Pretendo cavalgar até a missão dos Lombardis, Nell. O que acha
disso? E preciso fazer uma viagem a Wichita para encontrar Fassbinder. Eu
queria que nos acompanhasse, mas ele planejou outra rota. Está
prosperando fortemente no mercado de couro e tecidos e me disse que pode
lucrar muito mais estendendo sua cadeia de lojas para o mais perto possível
da fronteira. Tenho uma participação no negócio dele, como sabe, então os
lucros dele são meus lucros; preciso lidar um pouco com ele e ouvir suas
ideias.
— O sr. Fassbinder é um sócio de longa data do sr. Rutherford —
expliquei a Judah, que havia sentado ao meu lado.
— Eu leio sobre o sr. Fassbinder no jornal às vezes — Judah
respondeu, parecendo interessado. — Ele tem algumas conexões políticas
poderosas entre os interesses germânicos, creio.
— Ele morou com Martin por um tempo depois do Grande Incêndio —
falei. — Mas mudou-se para Saint Louis; ele tem duas filhas que se
estabeleceram lá. E seus maridos são bem sucedidos por seus próprios
méritos, segundo Martin contou.
— Você tem um círculo nobre de conhecidos, Nell. — A voz de Judah
era suave, íntima, quase possessiva. — Teremos que garantir que não
continue sendo uma costureira por muito tempo.
— Concordo com isso a princípio — Martin falou —, ainda que nossos
métodos possam diferir.
Ele olhou com dureza para Judah, e me senti como um osso entre dois
cães grandes. Sentei-me com as costas mais eretas, me sentindo indignada.
O que Martin – o que qualquer um deles – achava que estava fazendo,
presumindo que iria arrumar minha vida?
— Acho que cabe a mim determinar em qual momento deixarei de ser
costureira — eu disse. De novo, ouvi o sotaque inglês aristocrático de
mamãe – ou seria de vovó? – soando em minha própria voz.
Fiquei de pé, alisando o corpete de meu vestido.
— Afinal de contas, o poder de decisão é completamente meu, não?
Lancei para os dois o que eu esperava ser um olhar de repressão e abri
caminho em direção aos Calderwoods para pedir licença e retornar à minha
sala de trabalho. Pois já tinha tido o bastante da sociedade por um dia.
Capítulo trinta e quatro

Revelaçã o
— Quando Martin vai voltar?
Sarah copiou cuidadosamente o r de outubro na lousa, fazendo um
bom trabalho.
Era o primeiro dia daquele mês. Martin havia partido há cinco dias,
visitando a missão dos Lombardis. Ele pretendia cavalgar pela região com o
pastor, para conhecer a “verdadeira fronteira” de camponeses e
mineradores.
Eu me perguntara como Martin iria seguir com uma cavalgada tão
difícil até vê-lo vestido em calças de denim bastante gastas e calções de
couro surrado, parecendo para qualquer um que havia passado a vida sobre
o lombo de um cavalo. Ele riu com meu assombro evidente, lembrando-me
da frequência com que caçava com seus parceiros de negócios.
— Você deveria chamá-lo de sr. Rutherford — repreendi Sarah, mas eu
sabia que não o faria. Ela se apegara a Martin, comportando-se de forma
parecida como fazia com Teddy: pedindo passeios nas costas e conversando
sobre seu mundo real e imaginário. Ela subia no colo dele para passar as
mãos pequenas sobre as bochechas recém barbeadas quando ele visitava
nossa oficina de manhã, exatamente como eu fazia quando era pequena –
exceto pelo fato de que seu rosto mal precisava ser barbeado.
— Um beliscão e um soco no primeiro dia do mês novo, mamãe!
Sarah correu para mim e administrou um vigoroso beliscão na minha
mão, seguido por um soco no braço que não teria envergonhado um
boxeador profissional. Gritei e esfreguei o local machucado. Sarah riu e
correu para Tess, que jogou as mãos para cima, gritando “Eu sou café com
leite!” para repelir o ataque.
Uma grande dose de bobagens se seguiu, culminando em uma corrida
maluca pela sala de trabalho. Sarah tinha a vantagem de ser capaz de se
meter embaixo das mesas. Ela estava sendo bem sucedida em escapar da
captura, quando de repente guinchou “Martin!” e lançou-se na figura alta
que havia surgido à soleira da porta.
— Por Deus, cavalgou a noite inteira? — Desabei sem fôlego numa
cadeira e apertei os olhos para checar o relógio preso em minha blusa. —
São apenas dez e quinze.
— Parti bem antes do amanhecer; Lombardi acha que teremos chuva e
não há nada pior que o atrito que se consegue quando cavalga com roupas
molhadas.
Martin, por sua vez, desabou numa cadeira, tirando o chapéu Stetson,
que era muito mais novo que o resto de sua indumentária. Ele o colocou
bem afastado da extensão de caxemira preta espalhada pela mesa de corte.
Correu a mão pelo cabelo, que possuía uma mossa causada pelo chapéu e
estremeceu quando Sarah saltou em seus joelhos. A ponte de seu nariz
estava queimada de sol e a poeira havia se estabelecido em cada vinco de
sua roupa e em grande parte da pele.
— Oooh, seu rosto está todo pinicando. — Sarah esfregou a mão pela
barba clara por fazer no queixo de Martin, fazendo um leve som de
raspagem. Ela ergueu a palma para avaliar a poeira decorrente e então
limpou a mão na manga de Martin.
— E você está com cheiro de cavalo. — Tess, com o rosto redondo
rosado de alegria, se aproximou para dar um beijo na bochecha de Martin,
franzindo o nariz. — Mas senti sua falta, e estou feliz por ter voltado.
— Suponho que eu esteja cheirando um tanto assim. — Martin
analisou o longo comprimento de suas pernas, estudando a poeira das botas
criticamente. — Terei que me lavar antes de encarar Lucetta; ela não
consegue tolerar quando estou fedendo. Mas achei que o circo estivesse na
cidade; eu precisava ver sobre o que era toda aquela balbúrdia. — Ele
cutucou Sarah na lateral, fazendo-a dar um gritinho enquanto se dobrava. —
No que está trabalhando? — me perguntou, gesticulando para a extensão de
preto na mesa. — Parece fúnebre.
— E é. — Corri o dedo pela caxemira, apreciando seu aspecto opaco e
a maciez delicada. — A mãe da sra. Addis faleceu ontem; ela morava com
eles. Depois que a sra. Addis terminou de conversar com o dr. Calderwood
sobre a missa do funeral, ela veio até mim para encomendar o traje de luto.
Ainda bem que consegui me atualizar com o trabalho no seminário.
— E não vamos sair hoje à tarde. — Tess ficou na ponta dos pés para
fechar a janela. O pastor estava certo quanto à chuva, que já estava jorrando
pelas vidraças e trazendo um cheiro de terra molhada para nossas narinas.
— Então podemos fazer muita coisa, Nell. A sra. Addis falou de novo e de
novo e de novo o quanto o preto ficaria terrível nela — ela acrescentou para
Martin —, mas Nell fez um desenho tão bonito, está vendo? — E ergueu
um pedaço de papel no qual eu havia rascunhado um modelo que iria
favorecer a silhueta bem conservada da sra. Addis. — Então ela parou de
chorar quanto a usar preto e chorou pela mãe ao invés disso. Depois, fez
Andrew percorrer todo o caminho até Wichita e voltar em busca da
caxemira e um pouco de seda e um pouco de franja preta. Não sei como fez
isso, já que não é seu criado, mas ele não se importou, porque ela lhe deu
dois dólares.
Tess ficou sem fôlego e se inclinou sobre a beirada da mesa, rosada
pelo prazer de ser a mensageira das últimas notícias.
— Então eu realmente tenho bastante trabalho. — Me levantei e segui
até o extremo da mesa, onde comecei a arranjar os moldes. — Mas pode
ficar aqui o quanto quiser, Martin; Tess ia ler para mim.
— Um trecho da Bíblia? — Martin estava começando a parecer
sonolento. Sarah havia deitado a cabeça no peito dele e se enrodilhado em
seu colo, suas perninhas magras cobertas pelas práticas meias pretas meio
escondidas sob as anáguas.
— Estamos lendo um romance. — Tess ergueu um volume envelopado
em lilás e dourado, com uma ilustração luxuosa nele. — Se chama A volta
ao mundo em 80 dias, e é repleto de aventuras.
— Um homem pulou para fora do fogo — Sarah disse, sonolenta,
cutucando a roupa de Martin. Então, um pouco mais alerta, perguntou — O
que é isso?
Martin pescou uma forma irregular no bolso do colete e entregou a
Sarah.
— Eu encontrei numa ravina quando parei para descansar o cavalo —
falou. — É uma concha que se transformou numa pedra; se chama fóssil.
— Eu sei o que é um fóssil. — Sarah girou a forma petrificada nas
mãos. — Deus os fez para fazer o mundo parecer velho, é o que o dr.
Calderwood diz nos sermões. São muito longos, esses sermões. — Ela
bocejou, olhando para a concha. Então se aprumou, dando em Martin um
soco no braço de tal forma (felizmente não com a mão que segurava o
fóssil) que ele gemeu e a girou, tirando do colo, franzindo o cenho.
— Qual o motivo disso? — ele perguntou.
— Um beliscão e um soco no primeiro dia do mês novo.
Sarah, com um sorriso insolente, tentou beliscar sua coxa – ele moveu
a perna desta vez – então saltitou alguns passos para trás.
— Posso… Eu poderia ficar com isso? — ela se corrigiu com um olho
em mim, segurando o fóssil.
Martin gemeu e esfregou o braço de uma força exagerada.
— Pode — ele respondeu. — Principalmente se se comportar por um
tempo. — Ele acomodou-se na cadeira novamente, observando enquanto
Sarah sentava-se à sua mesa e limpava a lousa, preparando-a para algum
desenho.
Me ocupei com o posicionamento dos moldes de tecido restantes,
enquanto Tess encontrou o local no livro e começou a leitura. Nós tínhamos
descoberto que quando ela lia em voz alta não gaguejava tanto, desde que
se concentrasse intensamente na página. Eu me sentia grata por seu
entusiasmo recém descoberto, pois Sarah, que amava histórias, brincaria
tranquila à medida que Tess lia e, portanto, me deixava livre para trabalhar.
Eu não achava a história do sr. Verne tão fascinante assim, para dizer a
verdade, e ouvia com metade da atenção, deixando minha mente vagar para
a tarefa diante de mim. Eu havia desenhado um vestido com uma saia
sobreposta com corte diagonal sobre uma outra em camadas. Ele tinha
mangas justas e a gola alta, já que o pescoço da sra. Addis entregava muito
mais sua idade do que a silhueta. Qual seria a melhor forma de usar a seda
que ela havia comprado, e que era surpreendentemente delicada? Eu não
tinha tempo de acrescentar muitos detalhes. Martin saberia…
Mas os olhos de Martin estavam fechados. Sua cabeça descansava de
encontro ao encosto alto da cadeira, mostrando seu nariz bicudo de perfil.
Os braços estavam dobrados sobre o corpo, as pernas longas esticadas à
frente. Ele não roncava ou dormia com a boca aberta, graças a Deus, mas
cochilava tranquilamente, o cabelo caindo para a frente sobre a testa que
mostrava uma linha fina de poeira onde o chapéu havia estado.
Minhas mãos vacilaram no trabalho, e percebi que estava olhando para
Martin com uma concentração quase ávida, como se fosse uma pintora me
preparando para pintar seu retrato. Suas mãos, largas e com as juntas
compridas, mas de aparência sensível, relaxaram no sono, um corte fresco e
raso comprometendo as juntas da mão esquerda com uma faixa vermelha-
amarronzada. A pele das mãos e rosto estava levemente bronzeada, as
sobrancelhas mais finas e escuras do que eu me lembrava. Os cílios que
repousavam nas bochechas eram como eu os havia conhecido, claros –
quase brancos – nas pontas, mas se tornando castanhos perto dos olhos. Isso
os fazia parecerem curtos, mas eu sabia que de perto seriam mais longos do
que aparentavam.
Tive uma lembrança repentina de ter, talvez, uns nove anos e estar
profundamente arrependida sobre algo que havia dito ou feito. Foi durante a
guerra – na época da Batalha de Shiloh, percebi, o nome da batalha saltando
para fora de minha mente como insignificante. Martin estava sentado numa
cadeira de madeira com encosto alto, bem parecida com a que ele estava
agora, mas numa condição longe de ser relaxada. Cada linha de seu corpo
de rapaz, seus membros longos e magros, era uma expressão de impaciência
e fúria, a boca firmemente fechada numa linha fina e os olhos num tom
cinza tempestuoso de raiva. Ele se irritava com tanta facilidade naqueles
dias. E era um homem de vinte anos, forçado a se agarrar ao lado da mãe
para protegê-la da violência do pai, enquanto os amigos estavam longe, na
guerra, vivendo a vida que ele teria escolhido. Eu havia acendido o pavio de
alguma forma, com uma provocação descuidada, e me senti enojada por
dentro, buscando desesperadamente uma forma de levar o sorriso de volta
ao rosto de Martin.
Assim, subi em seu colo – algo que não fazia há um tempo, e minhas
saias mais compridas ficaram presas sob os joelhos e me enfureceram. Eu o
beijei no rosto repetidamente: a ponte alta do nariz, as bochechas, a testa, os
olhos fechados… Lembrei da estranha sensação de seus olhos sob a pele
suave e delicada das pálpebras, as cócegas dos cílios sob meu lábio inferior,
seu hálito quente no meu pescoço quando ele finalmente, com relutância,
começou a rir. Provei, na memória, o leve travo salgado de uma lágrima que
fora incapaz de conter e conheci de novo a dor e o alívio que senti quando
compreendi que havia feito-o sentir-se melhor, mas apenas por um
momento.
Minha sala de trabalho pareceu inclinar-se ao meu redor enquanto eu
estava parada ali, as mãos inúteis nas laterais do corpo. Um estranho
zumbido no meu ouvido emudeceu o sussurro suave da voz de Tess, o
arranhar do giz de Sarah na lousa e a leve batida da chuva na janela. O calor
espalhou-se por todo meu corpo, vindo do centro, invadindo meus membros
e lançando uma dormência quente para as pontas dos meus dedos. Eu estava
provavelmente a cinco passos de onde Martin estava, mas podia senti-lo,
uma estranha proximidade da mente que ansiava por se tornar a
proximidade da carne, a lembrança do amor inocente de minha infância
transmutada em um amor que era qualquer coisa, menos infantil…
E então, como se houvesse sido convocado, ele abriu os olhos, a
expressão séria e alerta, ainda que o sono o tenha tomado apenas alguns
segundos antes. Ele olhou diretamente para mim, e precisei apoiar os dedos
das duas mãos na mesa para me estabilizar, porque eu sabia – enfim admiti
para mim mesma – que meu amor por Martin Rutherford era tão
avassalador e inescapável quanto a possessividade feroz que eu sentia por
Sarah. A diferença era um anseio visceral que eu nunca experimentara em
situação nenhuma, nem mesmo durante aqueles dias inebriantes de flerte
com Jack. Também era, é claro, completamente impossível.
— Preciso de um pouco de ar. — Minha voz soava fraca, trêmula. Eu
estava ciente de Tess e Sarah pausando, suas cabeças virando em minha
direção enquanto eu empurrava uma cadeira para chegar à porta. Lutei com
a maçaneta – minha mão estava fria e dormente e incapaz de segurá-la
corretamente – e escancarei a porta, sentindo a poeira seca do corredor me
envolver enquanto corria.
Eu não tinha ideia de para onde estava indo. Tive apenas presença de
espírito o bastante para me sentir grata pelas aulas estarem em andamento e
não ter ninguém para me ver, me parar e perguntar o que estava
acontecendo, correndo pelo prédio como uma mulher insana.
Passei pela escadaria, as cores das janelas de vitrais pálidas sob o céu
nublado. Alcancei as portas da frente e as empurrei com força, inspirando
grandes golfadas de ar quando parei de supetão no pequeno terraço.
Acima de mim, a chuva caía inclinada sobre as touceiras amareladas,
criando pequenos regatos de lama que se acumulavam lá e cá em poças
opacas. O vento era um rugido sombrio que curvava o topo das árvores
jovens, arrancando suas folhas secas e amarronzadas e arremessando-as na
direção da pradaria, num despejo sem fim de destruição. Me encolhi
miseravelmente num canto do terraço, negligente com minha blusa limpa,
desejando ter algum lugar para onde fugir. Mas o Kansas era uma enorme
tela em branco, um mosaico inacabado de verde, marrom e bronze sob um
banco plúmbeo e opressivo de nuvens em movimento.
Eu deixara a porta entreaberta. Estava tão concentrada na fuga que não
ouvi Martin passar pelo espaço de início, então apenas virei minha cabeça
quando a porta se fechou com um bam! e ele caminhou em minha direção.
— Vá embora. — Cruzei os braços com firmeza abraçando meu peito,
até minhas costas doerem. — Me deixe em paz.
— Não irei perguntar o que há de errado. — Havia uma desolação nos
olhos de Martin, mas também algo como alegria lá no fundo. — Eu vi em
seu rosto; não é muito boa em esconder emoções. — Ele deu um passo em
minha direção e ergueu a mão como se fosse tocar minha bochecha, mas
abaixou o braço quando recuei de seu toque. — Se for de algum conforto, a
mesma coisa acontece comigo desde que cheguei aqui.
Ele pôs a mão aberta sobre o arenito amarelo do arco, encostando-se na
pedra borrifada de chuva e fitando os poços prateados formados pelo
aguaceiro. Judah e eu tínhamos nos beijado naquele lugar, pensei, e esperei
que a lembrança fosse provocar alguma sensação de culpa. Mas tudo que
senti foi uma indiferença entorpecida, como se Judah e eu fôssemos uma
história num livro.
— Quando você veio do campo no dia em que chegamos, parecia ter
sido arrastada por algo na sujeira. — Martin se acomodou de forma mais
confortável de encontro à pedra, enxugando a chuva da testa com as costas
da mão. — Seu cabelo tinha pedaços de grama grudados nele, seu vestido
estava todo rasgado e seu pobre rosto… Linhas de sangue, poeira e lágrimas
como o de uma criança de três anos que ficou tempo demais no quintal. E
eu não conseguia falar; não achei que fosse ser capaz de falar. Pois já tinha
certeza de que te amava, mas aquilo… aquilo foi como ter o fato pisoteado
dentro de mim por uma manada de cavalos. — As linhas do riso uniram-se
nos cantos de seus olhos. — Você com certeza sabe como fazer uma
entrada, Nellie.
Eu não estava rindo. Agarrei-me à raiva como a tábua de salvação que
era minha única defesa contra o desejo de diminuir o espaço entre nós e
arruinar nossas vidas num único sopro.
—Tinha certeza que me amava? — cuspi, tentando manter a voz baixa;
havia salas de aula imediatamente à nossa direita. — E me amava no dia em
que se casou com Lucetta?
— Sim.
Direcionei um soco para a bochecha de Martin que teria feito surgir um
bom vergão, se não tivesse sido amplo, rebatendo inofensivamente na
lateral de seu crânio. Ele agarrou meus dois pulsos, puxando minhas mãos
para seu peito e as mantendo cativas de encontro ao material áspero de seu
colete. Lutei contra aquela prisão, cambaleando para a frente para que
pudesse empurrá-lo com mais força. Descobri que a tentativa era tão inútil
quanto havia sido da primeira vez que me segurou assim, em minha sala de
trabalho.
— Me solte.
— Apenas se prometer que não irá me bater novamente. — A
respiração de Martin estava acelerada. Sob meus dedos, eu sentia seu
coração martelando em ritmo acelerado, o rápido subir e descer de seu peito
diminuindo à medida que retomava o controle da respiração.
Assenti, e ele soltou meus pulsos. Percebi que não queria que me
soltasse, afinal de contas, e me odiei por isso.
— Por quê? — lamentei, dando um passo para trás.
Ele não precisou perguntar o que eu quis dizer. Ficou imóvel, me
fitando por um longo tempo como se estivesse se decidindo sobre alguma
coisa. Então, falou.
— Ela me disse que estava esperando um filho. — Sua boca se
contorceu como se sentisse dor, e olhou ao redor, claramente desejando
poder socar alguma coisa. Senti como se uma pedra de gelo escorresse pelas
minhas costas.
— E não estava?
— Ela nunca estará. Nunca vai poder estar. E me contou isso em Paris,
depois de tomar uma taça a mais de champanhe. Eu sonhei com um filho,
Nellie. — Martin pressionou as palmas na testa, enterrando os dedos no
cabelo espesso. — Eu queria aquela criança. Não estávamos casados nem
há dois anos e cada sonho que ela vendeu para mim, destruiu. — Ele bateu
a mão numa porta grossa, ornamentada, fazendo-a ressoar com uma
vibração seca. — Eu não acho que tenha havido um minuto de nosso
casamento em que foi fiel; e ela mal se importa em esconder.
Pena e horror estavam me roubando de minha raiva. Busquei
desesperadamente por algum fragmento dela, ainda que sem sentido, para
me sustentar.
— E em que momento antes disso tudo acontecer pretendia dizer que
me amava? Não parecia estar apaixonado por mim em Victoria. Você me
deixou partir…
Martin arrastou as mãos pelos cabelos e as enfiou nos bolsos com tanta
força que ouvi algumas costuras se romperem.
— Oh, pelo amor de Deus, Nell, e por acaso teria ouvido? E além
disso… — Seu rosto endureceu e ele desviou o olhar.
— Você pode muito bem dizer. — Minha voz soava fria aos meus
ouvidos, mas eu não estava calma. Eu sabia o que viria a seguir. Juntei os
dedos atrás de minhas costas para esconder as mãos trêmulas.
— Você era uma garota tola que deixou um homem seduzi-la, a mãe de
seu bastardo. — As palavras caíram entre nós como pedras. — E fui
ensinado a pensar que estava acima dessas coisas. Ele tinha muito a dizer
sobre mulheres fracas e sobre como eu deveria me manter puro.
Ele. O pai de Martin.
— E em uma certa manhã acordei na cama de Lucetta — Martin
continuou apressado, as palavras soando estranguladas — e percebi que não
importava. Não havia nenhuma diferença, você e eu; e você, ao menos
sucumbiu à tentação apenas uma vez. Eu só precisava me desvencilhar de
uma relação que já estava se tornando antiga, me colocar num caminho
melhor, e confessar tudo para você. Então talvez assim pudesse me perdoar,
e poderíamos começar de novo.
Eu estava me encostando com tanta força na pedra que minhas mãos,
ainda unidas, latejavam de dor. Era difícil acreditar que eu podia estar tão
irritada com alguém e, ainda assim, tão ansiosa para perdoá-lo. Soltei as
mãos, sentindo o formigamento começar enquanto o sangue fluía de volta
em meus pulsos.
— É tarde demais agora, de qualquer maneira. — Me surpreendi com o
quanto minha voz soava calma, dada a turbulência em meu coração. —
Você está casado e eu… Acho que devo aceitar o pedido de Judah. Ele irá
me querer mesmo que eu não o ame, e acho que sou um prêmio bom
demais para não me tratar bem.
Me mexi em direção à porta e girei a maçaneta enorme, sentindo a
madeira ricamente entalhada se mover com suavidade em suas dobradiças
lubrificadas.
Martin estava atrás de mim imediatamente, suas mãos fechando-se em
meus ombros, os dedos mergulhados em minha pele.
— Não ele. — Sua respiração estava quente em meu rosto, logo ao
lado de minha orelha, e estremeci convulsivamente. — Não ele — Martin
falou de novo, virando-me para encará-lo.
Pensei que fosse falar mais alguma coisa, mas então sua boca estava
sobre a minha, e qualquer pensamento racional fugiu de minha mente. Me
odiei por beijá-lo de volta e, ainda assim, eu não parecia ser capaz de ficar
perto o bastante, provando o suor e poeira em sua pele como se fosse
ambrosia. Meus dedos mergulharam no cabelo cortado baixo em sua nuca,
num esforço para trazê-lo ainda mais próximo de mim. Como sequer pensei
que iria receber bem os beijos de Judah?
Martin interrompeu o contato após apenas alguns segundos e me
afastou com gentileza, abrindo a porta e me conduzindo através dela. Por
um momento, eu estava cega, sem ver nada do vestíbulo escurecido pelas
nuvens, mas um vasto abismo vazio.
À medida que as sombras começaram a se distinguir na escuridão,
percebi que Martin havia se afastado e estava seguindo para as escadas. Ele
virou-se com o pé no primeiro degrau e falou numa voz baixa e urgente:
— Eu não sei o que fazer. Realmente não sei. Mas, por favor…
— Esperar por você? — A raiva estava de volta, tornada pior pela pura
frustração daquele beijo rápido demais. — Por acaso presume que irá dirigir
minha vida à distância? — Caminhei na direção da minha sala, pausando
para falar por sobre o ombro para Martin enquanto o fazia. — Seria melhor
se voltasse para sua esposa, Martin, e deixe que eu determine minhas
próprias questões.
Capítulo trinta e cinco
Bolha

Eu mal vi Martin nos dias que se seguiram. Ao menos, tentei não ver.
Percebi que havia desenvolvido uma sensibilidade apurada à mudança no ar
que significava que ele estava nas proximidades, e tentei fortemente não
virar em sua direção como a agulha de uma bússola buscando o norte – mas
não era fácil.
Me isolei em minha sala de trabalho, com o vestido de luto da sra.
Addis pronto, me concentrando furiosamente em cada pequeno detalhe de
ornamento, cada alfinete preso, cada ponto. Qualquer coisa para me distrair
do terrível solavanco que meu íntimo dava cada vez que eu pensava naquele
momento vertiginoso quando tudo mudou para mim; na nossa conversa no
pórtico, no fato de que Martin Rutherford me amava. Tinha me beijado. E
era casado.
Eu estava irritada. Precisamente com quem, não saberia dizer. Martin?
Ele agira de forma honrada o bastante, até onde eu podia ver, casando-se
com Lucetta. E não dissera nada que indicasse amor, até que eu me
revelasse completamente e, desde aquele dia, não tentara me ver sozinha.
Talvez eu estivesse irritada comigo mesma por ter um talento tão desastroso
para escolher o homem errado na hora errada.
Mas Martin não deveria ter me beijado.
— Aquilo foi errado, e completamente injusto — murmurei baixinho
enquanto dobrava o vestido preto da sra. Addis. Não era uma operação
simples, dados os metros de caxemira escorregadia e seda envolvidas.
Tess, que estava desenrolando um fio para o pacote, olhou-me com
curiosidade.
— O que há de errado, Nell? Você está um pouco mal-humorada. Por
acaso discutiu com Martin? Ele parece triste também.
Deixo escapar um chiado de irritação quando o corpete do vestido
deslizou para o lado. Puxando-o de volta para a posição, inseri alfinetes
para segurar o embrulho.
— Não discutimos exatamente — falei. — Mas algumas vezes, quando
não vê uma pessoa há um tempo, as coisas são diferentes entre elas, e nem
sempre fácil.
Bem, isso era verdade, ainda que eu desejasse poder tornar Tess minha
confidente. Mas eu não saberia por onde começar. Talvez, apenas talvez, eu
fosse acordar amanhã de manhã e descobrir que a coisa toda fora causada
por um excesso de nervoso ou algo assim. Martin e eu seríamos velhos
amigos e nada mais.
Tess ficou quieta por alguns momentos enquanto eu dobrava o papel
marrom rígido ao redor do vestido embrulhado e indicava onde deveria
colocar as mãos para segurar a coisa toda junta enquanto o enrolava com a
corda.
— A esposa de Martin é muito bonita — ela disse com cautela,
observando como eu torcia a corda ao redor de si para dar uma segurança
extra. — Mas sabe de uma coisa, Nell? Não acho que seja gentil.
Senti minhas sobrancelhas arquearem com surpresa. Pensei que Tess
admirasse Lucetta.
— O que quer dizer, Tess?
— Bem — Tess acomodou-se numa cadeira e indicou que eu deveria
fazer o mesmo —, em primeiro lugar, quando digo “bom dia” ou “boa
tarde”, ela não me responde. Apenas continua andando como se eu não
estivesse ali. Isso não é educado, é? E não acho que tenha algum problema
de audição porque ela fala “bom dia” de volta quando outras pessoas falam.
— Talvez seja tímida com você, Tess.
— Eu acho que não. — Tess girou as pernas, que eram pequenas
demais para alcançar o chão. — Pois não é tímida com outras pessoas.
Ela colocou tanta ênfase nas últimas duas palavras que olhei para ela
severamente.
— Isso irá se tornar em uma fofoca? Tess, onde estava nesta manhã?
Com a sra. Drummond, aposto. Não tenho certeza de que ela está batendo
bem da cabeça desde que o professor Wale morreu. Por isso, não deveria
dar ouvidos a ela.
— Eu não acho que seja fofoca quando se está preocupada em pôr um
fim em coisas que estão acontecendo. — Tess olhou para mim de soslaio,
seus olhos amendoados brilhando com importância. — Coisas ruins. Eliza
acha que, porque você é amiga de Martin, deveria ser quem vai contar a ele.
— Espere. — Eu estava confusa, mas achei que havia captado o
sentido das sugestões de Tess. —Está me dizendo que eu deveria repassar
uma fofoca a Martin sobre sua esposa? — Levantei-me e andei de um lado
a outro, tirando as cadeiras do meu caminho. — Não. Oh, não. Tess, sou a
última pessoa a ser confiada para essa tarefa, acredite em mim. — Parei de
supetão, meus ombros desabando quando cedi à curiosidade. — Muito bem.
Que coisas ruins?
Tess aprumou os ombros e pareceu importante.
— Bem, a sra. Rutherford e o dr. Calderwood tocam bastante música
juntos.
— Eu sei. Eles estão ensaiando para um concerto. Qual o problema?
— E enquanto tocam música, bebem vinho.
— Hum… Bem, isso é contra as regras do seminário. Mas o dr.
Calderwood tornou uma prática relaxar as regras para os convidados. Sei
que isso deixa a sra. Drummond irritada, mas não acho…
— E algumas vezes não tocam música nenhuma. Por um longo tempo.
— Tess me fitou com atenção.
— Oh, isso é ridículo. — Retomei a caminhada. — Ninguém seria tão
indiscreto. Num lugar como esse? E… O doutor Calderwood? — Para ser
sincera, era a ideia de que Lucetta Rutherford vira alguma coisa sequer no
homem convencido e vaidoso que me chocava ainda mais.
— Ela gosta do sr. Poulton também. — Tess me observava com
atenção. — Mas ele não entra num quarto com ela. Ele mantém a sra.
Calderwood ocupada…
— Não! — Coloquei as mãos sobre os ouvidos. — Isso é a mente
perturbada de Eliza Drummond falando, não a realidade. Judah conspirando
com a sra. Rutherford para… Oh, não, é absurdo demais para se colocar em
palavras.
— Você não tem visto muito o sr. Poulton mais ou menos na última
semana, tem, Nell?
— Bem, não, agora que mencionou. Mas estive ocupada, e é um
período do ano movimentado para Judah. — E não me incomodou nem um
pouco que não houvesse sido assíduo em suas atenções, percebi. Mas eu
esperava que o homem, qualquer homem, me paparicasse dia e noite? Era
apropriado que eles tivessem outras coisas para fazer.
Arrebatei o pacote, desanimada com seu peso.
— Você vai pôr seu chapéu? — perguntei a Tess. — Preciso entregar
isso à sra. Addis.
Tess esticou o lábio inferior para fora levemente.
— Eliza ia me ensinar sobre como lidar com vendedores — falou. — E
você não pode deixar Sary com Netta por muito mais tempo ou ela estará
espezinhando quando estiverem cozinhando e Netta não gosta disso.
Suspirei. Tess estava certa e, além disso, eu queria caminhar rápido e
ela odiava.
— Terei que ir sozinha então.
— Sem acompanhante?
— Não vou perder meu tempo procurando por um. — Olhei para fora
da janela. A chuva havia parado no dia anterior, e a estrada não estaria tão
lamacenta.
Pousei o pacote de novo para que pudesse verificar meu relógio. Uma
hora de caminhada até Springwood. Digamos, vinte minutos para ouvir a
sra. Addis tagarelar enquanto remexia sua gaveta de dinheiro miúdo em
busca do restante do meu pagamento. Eu precisava parar no mercado para
comprar sabão e cadarços – duas horas e meia então. Eu voltaria bem a
tempo para o almoço, se me apressasse.
Prendi o chapéu na cabeça e encolhi os ombros para entrar no casaco,
abotoando-o com rapidez.
— Não deixe Sarah comer muitas das tortas que ela está fazendo —
instruí Tess. — Voltarei assim que possível.

Era bom estar sozinha. Apesar da regra – em vigor desde o assassinato


do professor Wale – de que não deveríamos caminhar até Springwood
sozinhos, embora houvesse minhas próprias lembranças do cadáver
silencioso, sangrento, lançado como um conjunto de roupas descartadas no
chão, eu não temia por minha segurança. Desde que não estivesse
excepcionalmente frio ou nevando, eu gostava de ficar ao ar livre. E
quebrar a regra emprestava um certo tempero ao passeio, um condutor para
a energia nervosa que efervescia meus membros e invadia meu sono há
dias.
Tess havia me dado ainda mais o que pensar. Talvez um pouco de
solidão me ajudasse a recuperar algum domínio sobre meus pensamentos
indisciplinados.
Eu caminhei talvez por quatrocentos metros com o vento forte em meu
rosto, com isso, meus pensamentos se acomodaram em duas ideias
primordiais. Primeiro, que chapéus da moda eram pequenos demais para
proteger um lado do rosto da luz do sol radiante e eu deveria ter trazido
aquele velho bonnet. Segundo, o pacote estava terrivelmente pesado, e
meus braços já estavam doendo. E, entremeando essas duas realidades
irritantes, estava tecida a história de Tess sobre Lucetta, o dr. Calderwood e
Judah. Seus rostos brincavam de pega-pega em minha mente, esquivando-se
para dentro e fora de vista, enquanto eu caminhava o mais rápido que podia.
— Nell!
O grito fora tão perto de mim que quase derrubei o pacote. Rodopiei e
dei um passo para trás, tropeçando numa moita e me salvando de cair
apenas performando algum tipo de convulsão neurológica com um pé.
— Achei que não deveria perambular por aí sozinha. — Era evidente
que Martin havia corrido, mas não parecia particularmente sem fôlego.
Uma mão estava segurando o chapéu, o cabelo soprado com força pelo
vento.
Meu coração deu uma guinada familiar com a aparição dele. Ainda
que, na verdade, estivesse tão acostumada a suas travessuras que eu era
capaz de encarar Martin com o máximo de calma possível quando se acha
que está sozinha e então descobre que não está. Era isso que significava
estar apaixonada? Divaguei, e então tranquei aquele pensamento com
firmeza numa caixa e me sentei sobre ela.
— Tenho o vestido da sra. Addis para entregar e Tess não estava
inclinada a me acompanhar — falei, com o máximo de dignidade que pude
reunir. — E o que está fazendo, se esgueirando perto de mim desse jeito?
— Eu não estava me esgueirando— Martin disse com ênfase. — Devo
ter gritado seu nome umas vinte vezes; até achei que estava me ignorando
de propósito.
— Não ouvi nada — confessei. — Eu estava pensando, e o vento…
— E a pessoa que, pelo que entendi, atirou em um dos docentes do
seminário nas planícies poderia estar sobre você e te metido uma bala num
segundo.
Martin correu a mão livre pelo cabelo e enfiou o chapéu de volta na
cabeça, depois do qual o vento imediatamente o arrancou e o levou girando
até um aglomerado de girassóis, seus caules rígidos ainda verdes de
encontro à grama ondulante. Ele o recuperou e correu de volta para mim,
olhando de uma forma que me alegrava imensamente porque parecia tão
natural, como se o mundo estivesse aos poucos se colocando nos eixos
corretos.
— Quem te contou sobre o professor Wale? — perguntei, enquanto
Martin tomava o pacote de mim e o colocava sob o braço comprido, onde se
encaixava muito melhor do que no meu.
— Os criados. — Martin franziu o cenho. — Me perturba que eu não
tenha ouvido isso nem de você nem de mais ninguém. Se importaria de me
contar sua versão da história?
O quilômetro seguinte se passou com rapidez, enquanto eu agraciava
Martin com a história detalhada de como avistei o corpo do professor Wale
nas planícies. Ele estava particularmente interessado na cena dramática na
biblioteca quando Reiner fora acusado. E fez tantas perguntas que acabei
relatando o que havia acontecido quase palavra por palavra.
— O pai dele é Gerhardt Lehmann, então? Creio que Fassbinder seja
amigo dele —falou.
— Sim. E espero mesmo que esteja bem. Sabe, Martin, sinto bastante
falta dele. Ele desistiu da ideia de se casar comigo, mas eu pensava nele, e
no professor Wale, como meus amigos. Reiner teria me oferecido sua
proteção para atravessar a pradaria hoje, tenho certeza.
— Você terá que fazê-lo comigo.
Martin me ofereceu o braço e o tomei, sentindo-me um tanto
constrangida, mas feliz com sua solidez calorosa sob minha mão.
— E prefiro caminhar com você do que com Reiner, de qualquer forma
— suspirei. — Apenas…
Senti-me ruborizando e desviei o olhar para a pradaria adiante, de
repente, sendo novamente estranho estar na companhia de Martin e muito
ciente do calor vibrante dentro de mim.
— Não se preocupe, não me tornarei um estorvo — Martin falou. —
Precisamos continuar amigos, sobre todas as coisas; colocando os outros
sentimentos de lado. Não irei arrastá-la para nenhuma má conduta, mas não
posso seguir me comportando como se você não existisse. O que quer que
aconteça, Nellie, você tem sido parte da minha vida, a melhor parte da
minha vida, por vinte anos. Não consigo suportar pensar em destruir isso ao
querer mais do que posso ter.
Assenti, querendo dizer alguma coisa, mas descobri que era difícil
formular as palavras. Então caminhei em silêncio, meus passos facilmente
encontrando as passadas longas de Martin. O vento mudou e aquietou-se
um pouco, e abri a sombrinha para proteger meu rosto, inclinando-a para
que bloqueasse boa parte da vista dos campos. Com Martin a meu lado,
senti como se estivéssemos no nosso próprio mundinho, um momento de
calmaria entre as tempestades, uma frágil bolha de sabão de contentamento
e anseio que explodiria se um de nós fizéssemos o menor movimento na
direção errada.
— Irei levá-la até a porta da sra. Addis — Martin disse, quando
atravessamos a ponte sobre o riacho. — E então há um camarada chamado
Fairland que me disseram que eu deveria ver; conhece ele?
— Vagamente — respondi. — Ele é um agente da Wells Fargo. É
provável que esteja no escritório perto do mercado. Você não vai errar.
— Me prometa que vai me procurar quando tiver terminado. Nem
pense em caminhar de volta sozinha. — O braço dele pressionou minha
mão com firmeza na lateral do corpo por um segundo.
Apontei minha sombrinha na direção da rua da sra. Addis.
— Por ali. Desde que não me faça chegar atrasada para a refeição… O
que quer conversar com o sr. Fairland, de qualquer forma? Negócios?
— Cavalos. Parece que ele é um apreciador de cavalos. Estou
esperando uma carta de apresentação para um certo criador do Kentucky.
O vento havia diminuído agora que estávamos sob o abrigo das casas.
Martin me entregou de volta o pacote para que pudesse arrumar o cabelo
com os dedos e pôr o chapéu novamente. Ele sorriu para mim enquanto
recuperava a encomenda.
— Tem um cacho seu se soltando. — Ele indicou um local na parte de
trás de minha cabeça. — Eu o arrumaria, mas… — Seu olhar para as casas
nos arredores era eloquente.
Localizei o cacho errante e o empurrei de volta para a massa de cabelo.
— Farei algumas compras no mercado em vinte minutos — falei. —
Não deixe o sr. Fairland encher os seus ouvidos.

Exatamente vinte e cinco minutos depois, eu saía do mercado com um


pacote de papel marrom – contendo três tabletes de sabonete de rosas, dois
pares de fitas de renda sete oitavos e uma dúzia de ganchos e argolas –
pendurado pelo laço de corda ao redor de minha cintura.
Avistei Martin imediatamente. Sua altura e cabelo claro o tornavam
fácil de encontrar à distância, mesmo que não houvesse se tornado de
repente o ímã da minha existência. Ele estava envolvido numa conversa
profunda com o sr. Fairland, cujas suíças e cinturas expandiram-se desde a
última vez em que o vi. Eles estavam parados do lado de fora do escritório
da Wells Fargo, debruçados sobre o que parecia ser um catálogo
cuidadosamente impresso e ilustrado. Perto de Martin, estava Judah
Poulton, meia cabeça mais baixo que Martin. Sua silhueta elegante e esbelta
era forjada para fazer com que Martin parecesse ainda mais com um
guerreiro viking em comparação.
Martin me viu primeiro, sua cabeça levantando-se como se por
instinto, mas Judah fora rápido em seguir seu olhar, e foi ele quem me
cumprimentou.
— Nell! — Ele se aproximou de mim e passou meu braço pelo dele,
aliviando-me do pequeno pacote e ajustando a sombrinha para que me
protegesse do sol da manhã. — Está voltando ao seminário? Também
preciso retornar, tenho uma aula para ministrar. — Ele virou-se para os
outros cavalheiros, sorrindo. — Um homem pobre precisa gastar a garganta
para ganhar a ceia, infelizmente. Falando em garganta, Rutherford — ele
falou para Martin —, sua esposa tem a voz mais espetacular; nosso caro
doutor está bastante encantado. Irá para nosso grande jantar, Fairland? Será
um deleite.
Sem esperar por uma resposta, Judah puxou o relógio do bolso do
colete e empurrou a tampa para abri-la, ainda mantendo meu braço
firmemente acomodado sob o seu.
— Precisamos ir, Nell... Oh, me permita. — Ele enfiou a cabeça sob a
sombrinha e, curvando-se para perto de mim, tocou meu cabelo. — Você
está com um cacho solto. — Ele mexeu em minhas mechas trançadas, um
gesto íntimo, possessivo, os olhos de um azul intenso na luz difusa lançada
sobre seu rosto por minha sombra. — Aí está. Vamos?
Olhei para Martin, cujo rosto havia assumido uma expressão
inescrutável que eu havia pensado ser desdém, mas agora notava ser uma
máscara para uma emoção poderosa.
— Não vem conosco, sr. Rutherford?
Os cantos da boca de Martin curvaram-se para cima no que poderia ter
sido um sorriso.
— O sr. Fairland sugeriu que fizéssemos um lanche juntos em sua casa.
Estou convencido de que posso deixá-la aos cuidados do sr. Poulton.
Judah aproximou-se mais um centímetro, atrelando minha mão com
um pouco mais de segurança à curva de seu cotovelo e olhou-me com um
sorriso confiante.
— Oh, sim. Ela está bastante segura comigo.
Capítulo trinta e seis

Posse
— Eu quero essa aqui. — Sarah passou a mão pelas páginas da revista
infantil. Ela a espalmou, para que a ilustração horrenda de uma garotinha
com o cabelo e roupas em chamas ficasse mais claramente visível.
— Mas essa é uma história terrível — protestei. — E você irá para a
cama cedo. Terá pesadelos.
— Não, não irei. — Sarah deslizou o traseiro ossudo sobre meu colo e
arrumou as saias com cuidado. — Tess disse que eu não vou ser cleimada
porque sou uma boa menina, e boas meninas não se cleimam.
— Queimada — corrigi, com os olhos no desenho horroroso. Eu
amava os momentos quando Sarah e eu estávamos sozinhas e podíamos nos
sentar sob o brilho de uma única lamparina e conversar ou lermos juntas,
mas eu preferia escolher o tema de nossa leitura. Sarah tinha um gosto pelas
histórias mais severas sobre moral e ainda que eu mesma tenha sido criada
com elas, continuava as considerando arrepiantes. Aquela sobre um
garotinho que teve o nariz mordido por um tigre em fuga porque se recusou
a usar seu lenço certificou-se de que eu não poderia dormir sem antes
checar atrás das cortinas e embaixo da cama em busca de animais
selvagens. Eu ainda odiava a história da Menina Boazinha por seu papel em
comparação ao meu próprio ser desventurado.
Suspirei e depois respirei fundo.
— Como Margareth Morreu, ou Algumas Instruções para a Criança
Sobre o Fogo — eu li. — O fogo é uma coisa bonita, não é, pequenina? Sua
chama cintilante nos dá luz, seu calor torna o frio do inverno suportável…
— A imagem de minha própria filha explodindo em chamas rastejou para
minha mente e sentiu-se à vontade ali, olhando para mim, enquanto eu abria
caminho pelas descrições entediantes dos benefícios do fogo.
Eu havia acabado de chegar à parte “Agora preste atenção, oh, delicado
leitor” quando uma batida alta na porta anunciou a chegada da sra.
Drummond.
Aquela sim era uma visão para assustar uma criança, refleti. A
governanta, antes uma mulher bonita, no último ano se tornara magra a
ponto de parecer emaciada. A pele de seu rosto se esticava, tensa, sobre as
maçãs do rosto largas e o queixo redondo. Seu cabelo antes brilhante havia
perdido o esplendor e adquirido mechas prateadas e manchas brancas sobre
as têmporas. Suas mãos estavam nervosas, pinçando as saias
obsessivamente enquanto ela falava. E seus olhos – aquelas íris verde-
acinzentadas que me analisaram com tanta frieza em minha chegada ao
Seminário Vida Eterna – agora com certeza queimavam nas órbitas. Me
dava calafrios só de olhar para ela.
— Oh, você não está sozinha, sra. Lillington — foi sua salva de
abertura. Ela se aproximou para que pudesse ver o que estávamos lendo e
acenou com a cabeça em aprovação. — Você faz bem em instruir sua filha
nos caminhos da retidão. Criança, lembre-se que é melhor queimar nos
fogos deste mundo, do que passar a eternidade nas chamas do inferno — ela
pontuou para Sarah como se conversasse, que deslizou a mãozinha ao redor
de meu pescoço e segurou com firmeza.
Amaldiçoei a mulher mentalmente, mas mantive um sorriso educado
no rosto quando me levantei, erguendo Sarah nos braços.
— Acho que a sra. Drummond quer ter uma conversa comigo — falei
para ela. — Por que não vamos para as escadas, então ouvirei enquanto
corre todo o caminho acima até nosso quarto? Tess está lá, poderá me
chamar para me deixar informada quando ela abrir a porta.
— Tudo bem — Sarah disse resolutamente. — Não tenho medo das
escadas. — Na verdade, as escadas a deixavam nervosa à noite, com suas
sombras fracas tornadas, de alguma forma, mais escuras pela lamparina no
corredor, e seu vazio ecoante. Estávamos fazendo um jogo de deixá-la subir
correndo à minha frente, já que fazia parte da personalidade de Sarah tentar
domar seus medos.
Se passaram cinco minutos inteiros antes que a voz de Tess me
garantisse que ela não estava adormecida ainda. Sarah havia levado a
revista consigo. Eu esperava que Tess se recusasse a ler Como Margareth
Morreu, já que Tess certamente teria pesadelos se fosse para a cama
pensando naquela história.
A sra. Drummond ainda estava parada onde eu a havia deixado, fitando
a chama da lamparina como se fosse uma sonâmbula. Aumentei a chama
para que queimasse com mais força e voltei ao meu assento, gesticulando
para que se sentasse.
— Se me perdoa por dizê-lo, mas a senhora não parece muito bem, sra.
Drummond — falei. — Esteve doente?
— Um pouco de febre, nada mais. — A mulher assentiu, limpando um
grão imaginário em sua saia preta.
— Nada mais? A senhora está definhando.
A sra. Drummond uniu as mãos ossudas no colo e olhou para mim, a
parte branca dos seus olhos visível.
— É este lugar, sra. Lillington, que está me devorando. — Ela olhou
por sobre o ombro, mas a porta estava fechada e eu não tinha ouvido
nenhum passo no corredor. — Este lugar, e as pessoas nele. Antes eu
pensava neste prédio como o Jardim do Éden, uma cidade sobre uma colina,
uma luz brilhando na escuridão. Mas a Serpente agora habita aqui e está
gerando outros como ele.
Um arrepio reverberou sobre minha pele, ainda que estivesse incerta do
motivo. Ela com certeza estava insana; mas soava racional o bastante, desde
que não olhasse fixamente em seus olhos.
— Por que queria conversar comigo, sra. Drummond? — perguntei,
minha voz soando aguda e fraca aos meus ouvidos.
Uma expressão estranha e cautelosa surgiu em seus olhos, como se ela
não confiasse exatamente em mim.
— Eu gostaria de saber se irá se casar com o sr. Poulton — ela falou.
— Tess acha que sim.
Um sorriso medonho se alargou em sua boca e me movi para trás
levemente na cadeira.
— Ela preferiria que se casasse com o sr. Rutherford, mas ele já tem
uma esposa. E me perguntou se seria possível que ele tivesse uma segunda
esposa do mesmo modo que os patriarcas do Velho Testamento. — Ela
gargalhou, uma horrível cascata de júbilo feminino e agudo congelou o
sangue em minhas veias.
— Eu… Eu duvido que eu vá me casar com alguém no presente
momento — disse. — E com todo o respeito, sra. Drummond, não
compreendo o objetivo de sua pergunta. Realmente espera que eu abra as
condições do meu coração para a senhora? E, precisamente, por que deseja
saber?
— Você se comportou com mais discrição e bom senso do que eu
esperava— a sra. Drummond prosseguiu, sem dar ouvidos à minha
pergunta. — Quando você veio para cá… Bem, previ problemas. E
reconheço que estava errada. Acredito agora que nunca buscou a atenção de
nenhum dos cavalheiros. E não consegue evitar, suponho, que o olhar do sr.
Poulton tenha se fixado em você.
— Não, não consigo — falei sem rodeios. — Mas, por favor, não pense
por um momento que eu seguiria qualquer curso de ação desonroso. A…
virtude do sr. Poulton está a salvo comigo.
Que absurda era aquela conversa, pensei. Desejei que a mulher fosse
logo ao ponto e me deixasse sozinha.
— Oh, não estou preocupada de forma alguma com o sr. Poulton — foi
sua réplica surpreendente. Seus olhos se arregalaram e ela me fitou. — É
seu bem-estar que me preocupa.
— O meu?
— Se eu te contar uma coisa no mais absoluto sigilo, jura perante a
Deus que não irá soprar uma única palavra a ninguém, especialmente ao sr.
Poulton?
— Sim, é claro. Eu juro.
— Perante a Deus?
— Perante a Deus.
— Eu irei deixar este lugar no dia doze de dezembro. — A sra.
Drummond ergueu o corpo e, por um momento, soou como sua antiga
versão, confiante e no comando. — Estou contratada como vice-governanta
em um grande estabelecimento de Boston.
— Uma vice-governanta? Mas a senhora esteve sozinha na
administração deste lugar por anos. Não é um passo para trás?
— Isso não importa. — A sra. Drummond sorriu sombriamente. — Eu
não me sinto mais… segura neste lugar. Foi o medo que me mudou, sra.
Lillington. O medo me tornou relutante em deixar meus aposentos e tornou
minha comida repulsiva. Se pareço um pouco… desequilibrada, é de se
esperar. Vivi com a expectativa de um perigo repentino pelos últimos seis
meses, e ainda vivo.
— De Judah? — Cuspi as palavras em um sussurro incrédulo. — Mas
isso é ridículo; e ele já não saberia que a senhora está de partida? Ele é
confidente dos Calderwoods.
— Ninguém sabe que estou de partida. — A sra. Drummond sibilou as
palavras, se inclinando para frente na cadeira. — Exceto você.
Uma leve batida na porta quase me fez morrer de susto.
— Quem é?
— É Dorcas. — A sra. Drummond sorriu. — Ela irá me acompanhar
ao quarto. — E de fato a porta foi entreaberta, e o rosto escuro de Dorcas
apareceu. Ela assentiu uma vez e então fechou a porta novamente, com
gentileza.
— Mas a senhora não pode simplesmente partir — protestei. — Não
sem fazer um arranjo para uma substituta, com certeza.
— Eu treinei bem os criados. — Havia uma nota de orgulho na voz da
sra. Drummond. — Eles sabem o que é esperado deles, e a sra. Calderwood
é completamente escolada com tudo que eu faço. Irei garantir que o estoque
de provisões esteja cheio antes de ir. Você conhece seu trabalho ao mais alto
nível; e Tess entende meus métodos de contabilidade melhor do que
qualquer um. — O rosto dela suavizou. — Sentirei falta de Tess. Você não
irá abandoná-la, não é? Mesmo que ele queira?
Balancei a cabeça com veemência.
— Nenhum homem jamais ficará entre nós. Nem entre mim e minha
filha.
A sra. Drummond ficou de pé. Fiz o mesmo, e ela pôs uma mão ossuda
em meu braço.
— Era isso que eu queria ouvir. — Seu rosto emaciado pareceu brilhar
com um estranho fervor. Em seus olhos, vi a chama da lamparina refletida
como faíscas gêmeas de luz. — Agora, ouça com atenção. Dia doze de
dezembro é um domingo. Eu partirei enquanto todos estiverem na capela.
E, logo antes de ir, irei esconder algo em um local que você conhece.
Entendeu? Eu sei que sabe sobre ele porque a vi procurar depois da morte
do professor Wale. Então, precisa ir direto para lá depois da missa,
enquanto todos estiverem conversando. Não se atrase… e não esqueça.
A ficha caiu. Ela quis dizer o esconderijo nas estantes da biblioteca.
— Foi a senhora… — comecei, mas a sra. Drummond fez um
movimento com a mão para interromper minhas palavras. Sim, com certeza
eu estava certa – foi ela quem havia retirado a carta que o professor Wale
me mostrara. E agora queria que a tivesse de volta. — Mas por que não me
entregá-la agora?
A sra. Drummond sacudiu a cabeça.
— Ela me mantém a salvo. — Ela ergueu um dedo até os lábios, dando
tapinhas em meu braço algumas vezes com a outra mão. — Meu quarto foi
revistado.
Antes que eu pudesse falar, ela girou nos calcanhares e alcançou a
porta com uma velocidade assombrosa. O ar ao meu redor se deslocou
quando a porta foi fechada, a chama da lamparina oscilando em uma mera
fração.
Apaguei a lamparina o mais rápido que pude e quase corri porta afora,
seguindo os passos recuando enquanto seguiam em direção às escadas. De
repente, eu não estava de forma alguma ansiosa para perambular à noite
pelo seminário também.
Mas, assim que cheguei ao segundo andar, meus passos vacilaram.
Uma luz vinha das salas de estudo alinhadas à longa parede da biblioteca,
um brilho dourado agrupado na parede de madeira do corredor como fogo
líquido. Me movendo o mais silenciosamente que pude, me aproximei da
soleira da porta aberta.
Martin sentava-se rodeado de papéis cuidadosamente escritos,
correndo uma mão sobre os olhos cansados enquanto folheava algumas
páginas contendo colunas de números. O paletó estava pendurado nas
costas da cadeira. As mangas da camisa dobradas para trás, com um par de
abotoaduras de ônix abandonados na mesa à sua frente. Seu cabelo estava
bagunçado, como se houvesse passado a mão por ele, algo que fazia com
regularidade enquanto pensava.
Era uma cena familiar. Eu o vira frequentemente trabalhando à noite,
naquelas semanas que passei em sua casa depois de minha fuga da Fazenda
dos Pobres. Me recostei no batente da porta, confortada pelo pensamento de
que aqui, ao menos, estava alguém em quem eu podia confiar.
Ele olhou para cima e me viu parada ali, e seus lábios se curvaram num
sorriso.
— Está trabalhando até tarde, Nellie?
— Não exatamente — respondi. Hesitei, desejando poder contar sobre
a sra. Drummond. Mas ela havia confiado a mim o mais estrito segredo
sobre sua partida, e eu não achava que pudesse começar a revelar a história
dos medos e acusações da pobre mulher sem, inadvertidamente, tropeçar
naquela parte da conversa. — Estou indo para a cama — falei ao invés
disso, me afastando da soleira da porta. — Boa noite, Martin.
— Boa noite, minha querida.
Um velho amigo poderia ter dito isso deste modo; mas meu coração
ficou leve e a escuridão pareceu menos ameaçadora enquanto eu subia os
últimos lances até a segurança do meu quarto.
Capítulo trinta e sete

Daniel
E então Martin partira para Wichita, e os últimos dias da visita dos
Rutherfords deslizaram em nossa direção com a inevitabilidade da cheia de
um rio. Lucetta ficou para trás, e todos ouvíamos o som baixo de sua voz
vinda de trás das portas fechadas dos Calderwoods enquanto ela ensaiava.
À medida em que o dia do grande jantar e do concerto se aproximava,
um tipo de empolgação febril tomou conta do seminário. Ela infectou até
mesmo os alunos que, com exceção dos mais ricos, cujos pais estavam
vindo, não foram convidados. Chegaram as entregas de um porco jovem,
um reforço de perus, e meia dúzia de galinhas das planícies, e um balde
contendo uma dúzia de trutas vivas. Essa foi a conta reportada a mim por
Sarah antes de uma Netta cada vez mais irritável bani-la da cozinha.
— E bebidas também, suponho? — falei para Judah, que me encontrou
na biblioteca depois de passar horas fechado com a sra. Calderwood,
repassando listas sem fim e planos para os lugares nas mesas.
— Vinhos francês. — Judah parecia satisfeito consigo mesmo. —
Adquiri uma dúzia de caixas de um comerciante em Nova York, que o dr.
Calderwood provou e descobriu que eles viajaram bem.
E logo que cheguei ao seminário eles não permitiam uma gota de
álcool – mas não falei nada.
— Você irá se sentar comigo, bem no centro de tudo. — Judah correu
os dedos sorrateiramente pelas costas de minha mão. Não estávamos
sozinhos naquele espaço amplo, ainda que estivéssemos bem distantes dos
outros.
O toque não produziu em mim a mesma sensação que teria feito
algumas semanas atrás, e agora eu sentia uma familiar pontada de
ansiedade. Mas, havia me comprometido tanto com Judah que recusar seu
pedido causaria estranheza, no mínimo, e talvez até mesmo acusações de
tratar seus sentimentos de forma leviana? Fingi tossir, retirando a mão de
seu alcance, e busquei uma forma de desviar sua atenção. Mas outro
pensamento o atingiu.
— Você precisa estar bem vestida, é claro — ele falou, o olhar
percorrendo sobre minha blusa e saia práticas —, mas não tão bem para
ofuscar as outras damas. Pois já tem vantagem sobre muitas delas em
termos de juventude e beleza.
— Não serei capaz de ofuscar a sra. Rutherford, o que quer que eu faça
— pontuei, ignorando seus elogios.
— Isso é esperado. Mas as outras damas irão fazer um esforço,
percebe? E você precisa…
— Não fazer esforço demais?
— Fazer parecer como se tivesse se esforçado bastante, mas com uma
paleta limitada. Mantenha tudo… Simples, suponho. — Judah jogou as
mãos para cima num gesto masculino de impotência face a todas as
questões femininas. — Não atraia atenção indevida para si mesma.
Assenti. Eu entendia o que queria dizer. Talvez aquela fosse a
inspiração que eu precisava para o vestido meio terminado em que estive
trabalhando à noite. A seda era de uma cor interessante, um vermelho-
amarronzado suave que até então havia repelido todas as minhas tentativas
de encontrar um caimento contrastante. Talvez a resposta fosse não tentar
contrastar, mas mantê-lo liso e deixar que a cor falasse por si. E eu manteria
a anquinha em um tamanho razoável ao invés da enorme confecção que
agora estava na moda. Algumas das gravuras que estavam nas revistas
mostravam anquinhas que pareciam como se pudesse sentar sobre elas.
— Sei que posso confiar no seu gosto e bom senso — Judah falou. —
A ocasião é tão importante para mim como é para os Calderwoods; e
importante para nós, para nosso futuro.
Meu coração afundou com aquilo – mas, na verdade, o que eu poderia
dizer? Dificilmente poderia falar a Judah – ou até mesmo sugerir – que
minhas afeições haviam se transferido para outro lugar, quando o objeto
dessas afeições era um homem casado. Um homem casado que, além de
tudo, estava claramente determinado a permanecer fiel à esposa no estrito
sentido da palavra. Eu estava feliz por isso, pois não iria querer que Martin
fosse qualquer coisa menos que honrado mas, por outro lado, tornava meu
próprio futuro incerto.
A raiva que acalmara um pouco nos últimos dias reviveu por um
segundo, uma chama tremulante que tinha pouco do que se alimentar.
Porque quem eu culparia pela situação em que estava agora, exceto a mim
mesma?
— Senti muito por Tess e Sarah terem sido excluídas do concerto —
falei, como uma forma de mudar de assunto. Na verdade, me ressenti
fortemente da exclusão de Tess. Eu podia entender que não fosse adequado
ter uma criança num jantar grandioso, mas Tess era uma mulher crescida, e
minha amiga. Mesmo que nenhum acompanhante de jantar para ela fosse
prontamente identificável, devia ser possível encontrar alguém.
Na verdade, eu estava me irritando com minha posição subordinada no
seminário mais do que nunca. Eu possuía tanta riqueza – mais,
provavelmente – que a maioria dos outros convidados e sua igual na
sociedade, mas que havia sido convidada apenas em benefício de Judah.
Realmente era hora de tomar algumas decisões quanto ao meu futuro.
Mas então havia Martin – me movi ficando numa posição mais ereta,
cerrando os dentes para disfarçar minha inquietude. Aquela linha de
pensamento me colocava precisamente em lugar nenhum, todas as vezes.
— Sinto muito também. — E por um momento, Judah pareceu
genuinamente solidário. — Mas uma tremenda aglomeração como está; os
aposentos dos Calderwoods não são adequados a uma multidão.
— Bem, por que não usar a capela? Ou até a biblioteca? Por que tentar
nos enfiar em duas salas?
— Consideramos os dois locais — Judah respondeu. — Mas a sra.
Rutherford disse que sua voz não soa tão bem na capela e que os painéis da
biblioteca enfraquecem a ressonância. Ela falou que as peças com músicas e
operetas que escolheu irão funcionar melhor em um arranjo mais íntimo.
Por um momento fugaz, me recordando do que Tess havia dito, me
perguntei quão íntimo aquele arranjo tinha sido. E aquilo instantaneamente
levou meus pensamentos por um outro caminho que eu com certeza não
queria seguir.
Fiquei de pé e Judah educadamente fez o mesmo, parecendo surpreso.
— Já está de saída?
— Prometi a Sarah que ficaria longe apenas por uma hora — menti. O
fato era que Sarah já estaria adormecida e, provavelmente, Tess também.
Mas cada aspecto daquela conversa era como um alfinete cutucando a
lateral do meu corpo, e meu humor começava a se desgastar. Eu estava
evitando seguir para o andar de cima porque o esquecimento do sono estava
se provando difícil de atingir ultimamente; mas também não queria
permanecer na companhia de Judah. Encorajá-lo a pensar em mim como
sua pretendida era pouco sábio, dadas as minhas crescentes dúvidas quanto
a este assunto.
Mas enquanto abria uma das portas duplas que levavam para fora da
biblioteca, um pensamento me atingiu como um raio, e quase ofeguei alto.
Supondo, apenas supondo, que os medos da sra. Drummond quanto a
Judah não fossem apenas o produto de uma mente perturbada pelo luto? Se
ele fosse perigoso de alguma forma, eu ainda poderia presumir estar segura
enquanto ele esperava por uma resposta a seu pedido de casamento. Mas no
momento em que o recusasse… Senti os pelos de meus braços arrepiarem e
meus dedos formigaram quando um choque de alarme disparou em meu
interior.
Acima de mim, a escadaria desaparecia na escuridão. Abaixo, a
lamparina lançava sombras estranhas e sugestivas de assassinos à espreita.
Quando comecei a subir, um pensamento dominou todos os outros. Se eu
planejava recusar Judah, deveria ter que primeiro colocar muitos
quilômetros entre mim e o seminário.

— Você está tão bonita, mamãe. — Sarah dançou ao meu redor, com
cuidado para não pisar no vestido, balançando a boneca em uma mão. —
Será a dama mais bonita entre as damas.
Fitei meu reflexo no espelho de corpo inteiro que eu mantinha num
canto de minha sala de trabalho para as clientes de Springwood. Na luz
desvanecendo de um pôr do sol brilhante, que não era visível das janelas
viradas para o norte, mas evidente pelo tom ouro-rosado que lançava sobre
as paredes pálidas da sala, a seda do meu vestido brilhava em um profundo
bronze-avermelhado, quase da mesma cor de meu cabelo. Havia arrumado
o cabelo num estilo que era pouco mais elaborado que meu penteado do dia
a dia. Meu único enfeite era o broche de azeviche, sua prata retorcida e a
única pérola grande capturando faíscas de fogo carmim da luz.
Era estranho, pensei, enquanto me virava para ver as costas do vestido,
mas a ausência de camadas, babados, pregas e laços da moda realmente
combinava comigo. Por um lado, era possível ver o corte do vestido com
clareza, e o corte era uma habilidade pela qual eu me sentia particularmente
orgulhosa. Ninguém, nem mesmo na própria Casa Worth, poderia criticar o
caimento da seda que cascateava descendo pelo corpete firmemente
ajustado e se reunia em uma anquinha pequena e elegante atrás. Estabeleci
o propósito expresso de não ofuscar as outras damas e, ainda assim, percebi,
havia superado a mim mesma.
O estômago de Sarah deu um ronco alto e nós duas rimos.
— Estou com fome, estou com fome — Sarah entoou e sorriu para
mim de forma travessa, mostrando o espaço onde perdera os dois dentes
inferiores.
— Você com certeza está. — Alcancei sua mão, usando para erguer a
cauda e deixá-la livre de obstáculos. — Vamos lá para cima ver se Tess está
com seu jantar especial pronto.
Ainda me irritava que Tess não pudesse comparecer nem mesmo ao
concerto. Mas suponho que eu não pudesse deixar Sarah sozinha de
qualquer maneira e nenhum criado estaria livre para observá-la. Se Sarah
vivesse numa casa convencional, refleti enquanto subíamos as escadas, sem
dúvidas teria algum tipo de tutora ou babá para cuidar dela. E eu ainda não
havia feito nada quanto a inscrevê-la numa escola. Toda essa questão com
Judah – e então com Martin – e homens e casamento em geral estavam se
mostrando um obstáculo ridículo à tomada de decisão.
Tess e eu havíamos decidido mimar Sarah com um jantar no nosso
quarto, com ameixas e pequenos bolos implorados a Netta. Eles foram o
incentivo para Sarah não se aborrecer depois de ver as damas e cavalheiros
em suas roupas elegantes. Uma nova caixa de bolinhas de gude e palitinhos
iriam proporcionar uma diversão inédita até a hora de ir para a cama.
Abracei as duas com força, me sentindo inexplicavelmente culpada
porque desfrutaria um pouco da sociedade elegante, enquanto elas se
escondiam bem acima.
— Não se preocupe Nell — foi a réplica de Tess quando viu meu rosto.
— Eu não iria querer nenhum deles me encarando de qualquer forma.
— Eles não iriam encará-la se a conhecessem.
— Mas não querem me conhecer. — Tess sorriu, mas havia um tremor
em sua voz. Estávamos falando baixo enquanto Sarah estava deitada na
cama, inspecionando as belas cores de suas novas bolinhas de gude. — Eles
querem conhecer você, porque é bonita e fala como uma dama.
— Nós teremos que mudar isso — suspirei. — Quando estávamos
todas escondidas juntas, eu não me importava tanto. Mas não quero passar
meu tempo sob a luz enquanto você se oculta nas sombras.
— Se você se casar com o sr. Poulton, é bem aí onde irei estar. — O
lábio inferior de Tess foi empurrado para fora. — Ele acha que crianças
devem ser vistas, e não ouvidas, e aposto que acha que imbecis não devem
ser vistos de forma alguma.
Lancei um olhar firme para Tess, tentando transmitir minha seriedade.
— Eu não acho que me casarei com ele, Tess. Mas ouça: nem sequer
sugira isso a ele nem a mais ninguém antes de eu lhe dar minha resposta,
sim? Me coloquei numa situação estranha com e tenho que pensar bastante
sobre como sair dela. Não quero nenhum aborrecimento.
O rosto de Tess se iluminou e ela me abraçou de novo.
— Eu estava rezando para que dissesse não — ela falou. — Quero que
se case, mas não com ele. Eu gostaria que Martin estivesse disponível.
E o que eu deveria responder a isso? Pois gostaria que Martin estivesse
disponível também. Simplesmente balancei a cabeça e sorri o mais
luminosamente que pude.
— É melhor eu ir — falei. — Me sinto como Daniel marchando para o
covil dos leões.
Sarah ouviu o último comentário e fez um som de rugido alto. Tess
uniu-se a ela e as duas estavam grunhindo e rosnando para mim enquanto
eu recuava, rindo, passando pela porta em direção ao patamar.
E agora tudo que eu deveria fazer era ouvir um concerto cantado por
uma mulher cuja existência era, bem, inconveniente para mim, depois de
me sentar a um jantar grandioso perto de um homem que pensava que iria
se casar comigo, mas não ia, e na presença de um homem que…
— Apenas pare com isso, Eleanor Lillington — murmurei para mim
mesma enquanto descia as escadas, a cauda sedosa do vestido farfalhando
atrás de mim. — É apenas um jantar. Ninguém irá prestar muita atenção em
você, e nada vai acontecer.
Capítulo trinta e oito

Gaiola de ouro
— Não posso convencê-la a comer outra porção? — O dr. Calderwood
sorriu de forma insinuante enquanto gesticulava com a mão para a bandeja
que Bella carregava.
— Eu como muito pouco quando estou prestes a cantar — Lucetta
respondeu.
Ela era uma visão adornada de joias, em seda azul escuro enfeitada de
prata, com safiras e diamantes brilhando nas orelhas, pescoço e pulsos. Ao
lado, Martin, exibido imaculadamente em um terno belamente cortado com
um colete pérola-acinzentado, era um realce adequado à magnificência dela.
Martin estava envolvido numa conversa com o sr. McGovern, o
comerciante de grãos, mas notei seu olhar virar-se em minha direção de vez
em quando. Tentei não olhar demais para ele, é claro. Judah estava fazendo
questão de referir-se a mim frequentemente à medida que a conversa
vagava para as notícias do dia e interesses locais, então me manteve
ocupada respondendo perguntas e emitindo opiniões. Conversando
bobagens, Bet teria dito, e ela estaria correta.
Com quarenta convidados, a reunião estava tanto barulhenta quanto
quente. Os criados haviam organizado as mesas do refeitório em formato de
U, com os Calderwoods no centro da mesa principal. A sala era um
alvoroço de criados entrando e saindo com pratos e a ocasional busca dos
convidados pelo lavabo.
Várias de minhas clientes estavam lá. O sr. e a sra. Shemmeld e os
Addis encontravam-se na mesa principal, e os Durkins, Mortimores,
Fairlands e Haywards estavam nos braços que flanqueavam. Era divertido
ver muitos dos meus vestidos em um só lugar, ainda que não pudesse ver
todos tão bem por estar de costas para a sala. Jurei que iria aproveitar ao
máximo a oportunidade oferecida pelo concerto de observar os vestidos de
todas as damas, especialmente daquelas de partes mais distantes.
Eu havia deixado meus pensamentos vagarem enquanto Lucetta
conversava sobre sua música com um casal de seu lado oposto. Uma
referência direta a mim feita pelo dr. Calderwood me tirou de meus sonhos.
— A sra. Lillington está contente em preencher a vaga de costureira no
nosso estabelecimento, o que é muito gracioso de sua parte. — Ele fez uma
mesura em minha direção. — Mas um passarinho me contou que ela está
destinada a um papel muito mais proeminente na sociedade no futuro. Eu,
por um lado, me regozijarei de sua elevação.
Associada à minha posição ao lado de Judah, aquilo era o equivalente a
dizer aos convidados reunidos que estávamos comprometidos para um
casamento.
Senti a cor subir às minhas bochechas e vi a boca de Martin se apertar.
Ele definitivamente ouvira o comentário, mas continuou falando sobre
preços de mercadorias com o sr. McGovern e a esposa taciturna, que
parecia saber bastante sobre os negócios do marido.
— A sra. Lillington poderia assumir qualquer papel na sociedade com
tranquilidade — guinchou a sra. Addis, que estava a algumas cadeiras de
distância, mas esticava o pescoço para ouvir a conversa no centro da mesa.
Notei que ela usava um vestido roxo escuro e não o preto que eu tinha feito.
Evidentemente, estava ansiosa para colocar de lado o luto completo quando
lhe era conveniente.
— De fato, de fato. — O dr. Calderwood virou a força total de seus
dentes para a sra. Addis e para mim por sua vez. — A sra. Calderwood e eu
acreditamos que chegou a hora de começarmos a pensar numa expansão do
Seminário Vida Eterna. Na verdade, estamos ficando sem o tipo de
acomodação que gostaríamos de oferecer a nossos jovens cavalheiros e
nossas instalações infelizmente são antigas, receio. Luzes a gás, ambientes
fechados, hum, encanamento – se posso mencionar tal coisa na presença das
damas – e uma estrada adequadamente nivelada para Springwood, tais
coisas são essas melhorias que deveríamos, não, que iremos fazer num
futuro próximo.
Ele agora tinha a atenção de vários dos convidados, por isso balançou a
cabeleira enquanto prosseguia:
— Afinal de contas, a fronteira está se movendo para o oeste. Os
indígenas desprezíveis partiram; ainda que eu saiba que estejam causando
problemas consideráveis em outros lugares. A civilização está espalhando
seus prazeres abundantes até mesmo nas planícies do Kansas. Por isso,
precisamos estar à altura do desafio. Porém, quando digo “nós”, a sra.
Calderwood e eu sentimos que um homem mais jovem deveria assumir a
tarefa. Um homem mais jovem… Ou talvez um casal mais jovem.
Fitei o prato, sentindo-me quente e gelada ao mesmo tempo enquanto a
mesa reagia com um burburinho. Então Judah conseguira. Eu não sabia
como ele havia conseguido sem se assegurar de ter minha mão antes, mas
as palavras do dr. Calderwood eram uma sugestão ampla – e pública – de
que Judah estava na fila para assumir o seminário.
E começar uma expansão. Era a primeira vez que eu ouvia falar
naqueles planos. Aquilo envolveria uma grande quantidade de dinheiro,
percebi. Meu dinheiro, provavelmente. Judah teria contado aos
Calderwoods sobre minha riqueza, então?
— Estou surpreso, dr. Calderwood, que o senhor fale em expansão
quando ainda não resolveu a questão do perigo que parece espreitar este
local. Entendi que um dos membros do seu corpo docente foi assassinado
na estrada para Springwood no ano passado.
A fala tranquila de Martin atravessou os comentários dos outros
convidados com a clareza desagradável do chamado de uma trombeta.
— Pois não tenho certeza de que cabe à sra. Lillington permanecer
num lugar onde a segurança de uma mulher não pode ser garantida.
Um silêncio chocado se abateu enquanto cada um dos convidados
absorvia o que Martin acabara de dizer. Sob minhas pálpebras abaixadas,
pude ver os rostos virando-se para o dr. Calderwood em busca de uma
resposta.
Eu não conseguia falar. Estava furiosa com Martin por agir como se
pudesse ordenar se eu deveria permanecer no seminário ou não. E estava
igualmente furiosa com Judah por assumir que poderia usar meu dinheiro
como quisesse. Amassei o guardanapo entre as mãos embaixo da mesa,
esperando que o doutor respondesse. Mas foi Judah quem falou.
— Nós agora estamos bastante certos de que o perpetrador da tragédia
foi um ou mais habitantes de Fork Crossing; um local degenerado, bem
como Abilene costumava ser.
Sua voz melodiosa de tenor transmitia confiança. Ele dirigiu seus
comentários a Martin, mas com certeza os outros convidados ouviram.
— É impossível seguir com qualquer tipo de investigação — ele
continuou. — Eles não irão responder perguntas e se mostram uma frente
unida. Houve um certo mal-estar entre algumas figuras indesejáveis depois
que os rapazes de Springwood se tornaram um pouco entusiasmados demais
em ajudar umas pessoas a se retirarem para aquele povoado. O sr.
Shemmeld aqui está assumindo a posição de liderança em reforçar o
número de policiais em Springwood. Estamos deixando claro para os
habitantes de Fork Crossing que se dirigirem mais violência contra a cidade
ou o seminário, haverá represálias. — Ele acenou para o sr. Shemmeld.
— O senhor deve perdoar meu marido. — Lucetta pousou a mão no
braço de Martin, as pontas dos dedos causando amarrotados na manga
imaculada. — Ele está preocupado com sua jovem amiga, a quem ama
como irmã. Ele talvez tenha falado um pouco mais vigorosamente do que
pretendia. A fronteira é assustadora para nós, pessoas urbanas.
Àquela altura, desejei com fervor que o chão abaixo de mim se abrisse
e destinasse todo aquele jantar festivo ao esquecimento. Eu estava quase
grata quando Judah falou novamente:
— Nós somos um pouco rudes perto das margens, com certeza. — Eu
não podia ver seu sorriso, mas o efeito era aparente pelo brilho nos olhos
grandes de Lucetta. — Mas, como o dr. Calderwood disse com tanta
astúcia, estamos nos tornando civilizados.
— Então pode garantir a segurança da sra. Lillington? — O tom de
Martin era neutro, mas havia uma dureza em seu olhar que me alarmou.
— Sim, eu posso. — Judah também soava amigável, mas senti ele ficar
um pouco tenso ao meu lado.
— É melhor que esteja preparado para responder a mim se não cumprir
essa promessa. — Não havia dúvidas quanto à ameaça desta vez.
— Martin, meu querido, você está sendo um bárbaro — Lucetta riu,
um som musical que pareceu oferecer algum alívio aos convidados, que
observavam a cena com avidez. — Não estrague esse pequeno encontro tão
delicioso, não quando estou prestes a cantar. Beba um pouco mais deste
vinho excelente.
Mas Martin mal tinha tocado em sua taça. Como eu, ele não gostava do
sabor do álcool. Aguardei, com a respiração suspensa, para ver se
continuaria no mesmo tom. Mas ele virou-se de volta para o sr. McGovern e
fez um comentário sobre as políticas no exterior do presidente Grant que
fizeram o homem grande gargalhar, o qual lhe deu um tapinha nas costas.
A postura dos outros convidados suavizou até relaxarem. O cheiro de
café havia começado a encher o ar e os criados passavam por nós com
bandejas de manjares doces que encontraram os suspiros de apreciação das
damas. A sra. Shemmeld, com seu rosto austero de governanta, ruborizado
pelo vinho e comida demais, fez um comentário sobre meu vestido e as
outras damas tomaram a deixa. Assim, meu rosto foi capaz de retornar à sua
cor normal, e virei-me resolutamente em sua direção, ignorando tanto
Martin quanto Judah. Eu teria que falar com ambos mais tarde.

Eles tinham apagado as lamparinas da biblioteca, e uma leve doçura


pairava no ar, vindas das flores deixadas ali para a reunião antes do jantar.
Os criados arrumaram todas as mesas e cadeiras de volta em seus
lugares de costume. Eu podia facilmente traçar meu caminho através delas
graças à lua quase cheia pairando no céu limpo. Lua e estrelas combinadas
lançavam longas faixas de luz azul fria sobre as madeiras polidas e entalhes
ornamentados, lá e cá, capturando uma abelha dourada ou uma flor pintada.
Destranquei as portas francesas, empurrando para abri-las, grata pelo ar
frio que me envolveu quando pisei no terraço. Minha cabeça zunia com a
tagarelice das pessoas; meus olhos doíam devido à abundância de luz e a
cintilância das joias e da seda. A voz soberba de Lucetta e as habilidades de
pianista surpreendentemente boas do dr. Calderwood ainda ressoavam em
minha mente, as notas se revirando ao redor umas das outras num
emaranhado de som líquido.
Os convidados ainda se dispersavam. Eu conseguia ouvir explosões do
falatório feminino e as vozes estrondosas dos homens enquanto seguiam
para a escadaria. Carruagens estariam esperando por eles do outro lado do
prédio. Qualquer um em Springwood que tivesse um meio de transporte de
aspecto mais grandioso que uma carroça de fazenda emprestara-o para a
ocasião.
Ouvi a trava da porta da biblioteca fazer um clique e fiquei tensa, me
perguntando se seriam Judah ou Martin. Se fosse, teria que resolver
algumas questões de imediato, o que não era uma perspectiva atraente, dado
meu cansaço e o zumbido na cabeça.
Apertando os olhos na escuridão, fiquei surpresa por ouvir o farfalhar
da seda e capturei o brilho do luar nos diamantes. Era Lucetta, com seus
cachos negros reunindo a luz das estrelas enquanto caminhava em minha
direção.
— Sozinha no escuro, sra. Lillington? — Havia uma nota de diversão
na voz profunda e musical de Lucetta e seus lábios se curvaram quando ela
saiu para o terraço para ficar ao meu lado. Abaixo de nós, um fulgor de luz
e uma sequência de conversas sugeriam que os criados estavam fazendo um
intervalo para descanso.
— Não está tão escuro. — Gesticulei para o céu iluminado pelas
estrelas e a luz brilhante. — E eu precisava de um pouco de ar fresco depois
de todo aquele falatório e alvoroço.
— Eu também — Lucetta riu, um som baixo, suave e, de alguma
forma, íntimo. — Me ocorreu que, se eu me ausentasse, os convidados
poderiam descer as escadas um pouco mais rápido. Aquela mulher baixa
rechonchuda e o sulista terrível com hálito ruim devem ter feito o mesmo
elogio a mim umas vinte vezes.
— Não os culpe, sra. Rutherford. — Era estranho ouvir o nome de
Martin assim em meus lábios. — Você e Martin são as coisas mais
excitantes que já aconteceu a este pedaço das Grandes Planícies. E sua voz
é magnífica, merece elogios.
Eu tinha muitas razões para desejar que Lucetta nunca tivesse nascido,
mas não iria negar o mérito por seu talento.
O sorriso de Lucetta tornou-se melancólico enquanto assentia em
reconhecimento às minhas palavras, fitando além das dependências para a
natureza escura adiante.
— Eu teria gostado de treinar para a ópera — falou. — Tive
professores excelentes. Mas papai não considerava adequado que sua filha
se apresentasse no palco. Minha carreira será para sempre confinada às
salas de estar e pequenas reuniões como esta.
Senti o aroma rico de seu perfume – gardênia? – quando ergueu um
braço macio, enfeitado de joias, para empurrar de volta uma mecha de
cabelo.
— Eu invejo você.
— Me inveja? — Eu não conseguia imaginar o porquê. Ela tinha tudo
que qualquer mulher de bom gosto e talento poderia desejar: beleza, riqueza
e conexões, e o mundo como um palco para exibir aqueles recursos à sua
vontade. E tinha Martin. Ao menos, pensei, esperando que a cor subindo
por minhas bochechas não aparecesse sob o luar, ela tinha o laço do
casamento com Martin, que não poderia romper sem abandonar sua honra.
— Tem tantas possibilidades diante de si. — Lucetta indicou as
planícies escuras com um gesto gracioso da mão enluvada. —Estabeleceu
uma profissão para si mesma e, mesmo que venha a casar, Martin irá
garantir que a riqueza que construiu para você permaneça sob seu controle.
Eu nunca tive isso. Até eu me casar, meu pai, meus irmãos, até mesmo
meus primos, determinavam minha vida. Vivo numa gaiola, ainda que seja
de ouro.
— Martin a deixaria fazer qualquer coisa que desejasse, tenho certeza.
— Minha voz soava rouca e pigarreei. — Ele não é o tipo de homem que
manteria qualquer mulher numa gaiola.
— Martin? — Lucetta soava surpresa. — Não, minha cara. Minha
gaiola foi construída muito antes de Martin chegar. Simplesmente abri a
porta e o convidei para entrar.
Um dedo frio correu por minha espinha com aquelas palavras. Em
minha mente, eu via os dois juntos atrás de grades douradas – presos,
talvez, mas juntos, com o mundo do lado de fora. Comigo do lado de fora.
Lucetta tinha me visto estremecer.
— Está com frio, sra. Lillington? Precisa preservar sua saúde. Afinal
de contas, tem aquela criança maravilhosa para quem viver.
— Senti um arrepio de morte — respondi automaticamente, e então
engoli em seco. Por uma fração de segundo, eu poderia jurar que ouvi a voz
de minha mãe, falando em sintonia com a minha. Pisquei, percebendo com
assombro que as lágrimas ameaçavam chegar aos olhos, e balancei a cabeça
para dissipar a emoção. — Essa era uma das expressões favoritas de minha
mãe — falei em voz baixa. — E ela está morta há quatro anos agora. —
Balancei a cabeça de novo, sorrindo para Lucetta. — Sinto muito. É tolice,
o luto me pega desprevenida às vezes. Suponho que eu esteja cansada.
Por um longo momento, ouvimos o uivo fraco de um lobo solitário à
distância, um som desolador, flutuando pelas planícies como o choro de
uma alma perdida. Era estranho estar parada ali, vestida com os belos trajes
da civilização, mas com a natureza selvagem tão próxima.
— Minha mãe morreu quando eu não tinha nem cinco anos — ela
falou de repente. — De uma febre. Não houve nenhum aviso. Ela estava
bastante bem, e estávamos todos tão felizes juntos, papai, meus irmãos e eu,
com mamãe no centro, alegre, rindo e sempre cantando. Então acordei
numa manhã e me disseram que estava doente… Não me deixaram vê-la,
para que não pegasse a infecção. No mesmo dia, exatamente no mesmo dia,
sra. Lillington, disseram que minha mãe estava no Paraíso. Ela foi
arrebatada de mim sem um último beijo ou uma despedida de qualquer tipo.
A perda ainda está comigo.
Ela juntou as saias, um farfalhar intenso de seda perfumada, e as
pulseiras de diamante e safiras em seus braços lisos piscaram como uma
constelação.
— Quando eu amo alguém, meu instinto é abraçá-lo com firmeza, para
que não desapareça na noite. — Ela virou-se para partir, mas então olhou
sobre o ombro para mim. — Boa noite, sra. Lillington. Espero que tire
vantagem de sua liberdade.
Eu a encarei enquanto saía, meus membros gelados e rígidos. Eu não
achava nem por um momento que suas palavras haviam sido uma mera
conversa. Ela tinha a intenção de relembrar que Martin e eu estávamos em
lados opostos de uma ponte para a qual ela detinha a chave. E não deixaria
Martin ir, nunca.
Capítulo trinta e nove

Perda

Acordei na manhã seguinte com uma dor de cabeça e dispepsia.


Nenhuma das duas melhorou depois de se sentarem na capela por duas
horas ouvindo o sermão do dr. Calderwood sobre generosidade.
Como chegamos à capela logo antes de a missa começar, pude
escapulir para nosso banco de costume nos fundos – um grande alívio.
Agora que minha posição havia sido tão publicamente elevada, tive medo
de que Judah me pedisse para me sentar com ele no banco da frente. Aquilo
implicaria numa grande dose de constrangimento em todo lugar.
Entre as pontadas de desconforto intestinal e a angústia mental, não
ocupei-me com o sermão. Observei a fileira de cabeças no banco da frente –
a de Martin, de um loiro luminoso, junto às mechas negras de sua esposa e,
ao lado dela, os cachos pretos de Judah, cortados rente à cabeça.
Alguns dos convidados da noite passada estavam lá também. Eu
conseguia ver o volume do sr. McGovern perto da rigidez de ombros
estreitos de sua esposa; o sr. e a sra. Addis – ela usando o preto que eu tinha
feito para ela – e a silhueta macia e rechonchuda da sra. Durkin com a
cabeça de cabelos finos de bebê, resguardada pela forma robusta e próspera
do marido.
O sermão do dr. Calderwood fora mais curto que de costume. Ele
mesmo parecia um tanto cansado e tinha as mãos firmemente plantadas no
púlpito como se precisasse inclinar-se para ter apoio. Combina bem com
ele, pensei. Eu não era nenhuma inimiga da temperança, nem mesmo uma
abstêmia como Tess, mas o consumo excessivo de álcool por um docente de
um seminário que ensinava sobre abstinência a seus rapazes era no mínimo
hipócrita.
Suprimi um arroto à medida que a missa arrastava-se para sua
conclusão e ficamos de pé. Sarah, que estava balançando as pernas de
forma irritante pela última meia hora, saltou alegremente do banco. Ela se
esquivou sob ele e precipitou-se para a porta antes que eu pudesse dizer
qualquer palavra.
— Netta disse que podíamos comer alguns bolos da noite passada. —
Tess sorriu para mim.
— Ah. E ela já está velha o bastante para saber que, se tivesse
perguntado a mim, eu diria para esperar até depois do almoço. — Suspirei e
me mexi desconfortável entre um pé e outro. — Irei para a cozinha negociar
os termos com Netta.
— Não seja boba. — Tess me deu um empurrão gentil em direção às
portas da capela, pela qual uma multidão de alunos se amontoava. — Vá se
deitar e tome algo para seu estômago. Há um pouco de xarope no topo da
tábua de passar, onde Sarah não consegue ver. Se Netta a ver reclamando de
dor, irá pensar que não gosta da comida dela.
— Acho que foi a combinação e não os itens individuais da comida. —
Nos apertamos em meio à pressão dos alunos e segui agradecida para a
escadaria. — Descanso e pular o almoço irão me deixar pronta. Mas não
tenho certeza sobre o xarope. Me deixa zonza.
Coloquei o pé no primeiro degrau e olhei por sobre o ombro. As damas
e cavalheiros dos bancos da frente emergiram da capela. Martin havia sido
capturado pela sra. Addis, que tentava rebocar seu prêmio na direção do
marido. Judah estava de costas para mim, sua cabeça elegante curvada para
a sra. McGovern, que discursava para ele sobre uma coisa ou outra.
— Se Judah perguntar por mim — instruí a Tess —, por favor,
certifique-se de dizer que não estou bem e não quero que ninguém me
incomode.
— É claro — Tess respondeu. — Mas estará no jantar, não é? Não
esqueça que Martin e a esposa estarão de partida amanhã de manhã. Vai
querer estar com eles mais um pouco antes de irem embora.
— Não esqueci. — Sorri para Tess, mas meu sorriso pareceu forçado e
pouco natural. Virei-me para subir as escadas, piscando quando meus olhos
encontraram os magentas brilhantes, dourados e turquesas dos vitrais,
tornados notoriamente vívidos pelo sol do meio-dia.
Não, eu certamente não havia me esquecido que Martin partiria no dia
seguinte.

Estávamos no meio da tarde e eu havia reemergido de meu quarto. A


indigestão passara misericordiosamente, mas minha cabeça latejava com
uma dor tão surda, que ficar reclinada parecia piorar. Eu nunca ficava em
minhas melhores condições depois de dormir durante o dia, e cochilara – na
verdade, eu tinha apagado, com certeza. Meu sono inquieto fervilhou com
sonhos rodopiantes de um jantar interminável, durante o qual as pessoas
constantemente me faziam perguntas impertinentes sobre meu dinheiro e
meu falecido marido que não existia.
Quando enfim me arrastei de volta para a consciência, percebi que
estava terrivelmente sedenta e não havia uma gota d’água para beber no
quarto. O rangido da bomba no quintal lá fora me pôs de pé num fervor de
ansiedade pelo sabor da água fria do poço. Rapidamente fiz o que podia
para fazer meu cabelo parecer arrumado e segui para as escadas.
Meu coração deu um sobressalto quando cheguei à metade do primeiro
lance de degraus e percebi que havia alguém sentado no lance seguinte,
logo depois da curva. Levei apenas uma fração de segundo para identificar
Martin, mas aquilo não fez eu me sentir nem um pouco melhor.
— Você está bem? — ele perguntou, ficando de pé.
— Tolerável — respondi. — Que raios está fazendo, sentado na
escada? O que as pessoas irão pensar se te virem aqui?
— Particularmente não me importo. — Percebi pela forma de seu
maxilar que o humor dele não estava melhor que o meu. — Quero
conversar com você.
— Não aqui. — Baixei a voz, desejando que minha cabeça não doesse
tanto. Por que Martin insistia em conversar comigo, quando tudo que eu
queria era saciar minha sede e ter um pouco de paz e silêncio? — As
pessoas podem ouvir.
— Para o diabo com elas; não deveriam estar.
Mas Martin segurou meu braço logo acima do cotovelo e me conduziu
de volta para cima. Ele hesitou do lado de fora da minha porta, mas então
pensou melhor e me levou ao longo do corredor, bem longe da escadaria.
— O que há de errado com você? — Puxei meu braço para soltá-lo do
aperto de Martin e me afastei dele, em direção ao quarto. — Se comportou
como… como um completo tolo no jantar na noite passada, insinuando que
podia decidir se eu ficaria ou não neste seminário. Como se precisasse
apenas estalar os dedos e eu subiria em sua carruagem. Ou por acaso
gostaria que eu me sentasse ao lado do condutor, como uma criada? Porque
os assentos do lado de dentro já estão ocupados.
Um rubor opaco tracejou as maçãs do rosto de Martin, tornando seu
cabelo estranhamente pálido.
— E você… você ficou sentada lá permitindo que aquele imbecil
bombástico do Calderwood praticamente anunciasse seu noivado com
Poulton e não disse nada. O que eu deveria fazer, sorrir e parabenizá-la?
Me empertiguei o mais alto que pude, perturbada por ainda ter que
inclinar minha cabeça para trás para encarar Martin.
— Pois acredito que cabe a mim decidir quando falo e o que falo. E
não a você.
Minha cabeça estava latejando e em algum lugar no fundo de minha
mente, eu sabia que estava sendo pouco razoável. Tudo que eu tinha que
fazer era explicar a Martin que eu sentia receio de mostrar minha mão a
Judah cedo demais. Mas ele estava sendo pouco razoável também e eu não
via por que deixá-lo se safar assim.
— Isso sem falar no fato de que deixou sua esposa desconfiada quanto
aos seus sentimentos por mim.
— Deixei? — As sobrancelhas de Martin ergueram-se até a linha do
cabelo. — E o que a faz pensar isso?
— Ela conversou comigo na noite passada. E me relembrou – não em
tantas palavras, mas entendi bem o significado – que você é dela. Que
nunca será meu, não importa quantos discursos bonitos faça para mim sobre
o quanto tenho que esperar para ver o que irá fazer. Veja, aí está o
problema, Martin. — Eu estava tremendo, minhas mãos pressionadas de
encontro à pintura delicada da parede para me estabilizar. — Sou livre para
tomar minhas próprias decisões. Você tem laços…
— Sim, eu tenho laços. — As mãos de Martin, forte e com dedos
longos, fecharam-se ao redor da parte superior de meus braços. — Estou
preso a você, coração e alma, e não parece se importar nem um pouco com
isso.
Empurrei seu peito com força. Para minha satisfação, apenas essa vez
eu o peguei com a guarda baixa, e ele deu um passo para trás, soltando
meus braços.
— Você está preso a Lucetta. — Minha voz soava fria e dura. — Há
três pessoas nessa situação; cinco, na verdade, porque o que quer que eu
faça, também afeta Sarah e Tess.
— E acha que elas estarão melhores se você se casar com Poulton? Ele
vai mandar Sarah para uma escola e Tess para uma casa de deficientes, verá
se não vai. — Martin correu a mão pelos cabelos e então as deixou cair nas
laterais do corpo, num gesto de desânimo. — Ele vai te isolar e te controlar.
Você me ama, sabe que sim. Não pode fazer isso. Não irei permitir.
Toda a raiva dentro de mim pareceu incendiar de uma vez só, uma
chama incontrolável que tornava difícil falar coerentemente.
—Não irá permitir? — gritei, sem me importar com quem poderia nos
ouvir. — Você não tem… você não nada, nenhum controle… Não pode
presumir que vai me dizer o que fazer. Sim, você me tornou rica — uma
pontada de culpa me assaltou com essa lembrança, mas a empurrei com
firmeza para o fundo da mente —, e foi generoso de sua parte trabalhar
tanto em meu benefício, eu te dou esse mérito. Mas isso não te dá qualquer
direito sobre mim. Não é meu pai, meu irmão e nem meu marido – você é o
marido de outra pessoa – e apenas porque age como se me amasse para que
possa me beijar e… e… você nunca disse que me ama, afinal de contas…
Eu… Eu estou cansada de homens achando que podem me dizer o que
fazer.
Empurrei a parte de baixo de minhas palmas na testa, tentando
controlar o latejar enjoativo na cabeça para que conseguisse pensar. Não
parecia haver nenhum motivo para falar qualquer coisa mais, já que o que
estava saindo da minha boca era tão desorganizado que era pior do que
inútil. Uma vozinha dentro de mim dizia que eu deveria simplesmente
explicar a Martin que eu não tinha mais qualquer intenção de me casar com
Judah, mas a ignorei.
— Vá embora, Martin — gemi. — Me deixe em paz. Volte para sua
esposa.
O silêncio que caiu entre nós pareceu se estender indefinidamente e
fechei meus olhos para não precisar ver a desolação dos de Martin. Ele deu
dois ou três passos na direção da escada e então virou-se para me fitar.
— Eu te amo mesmo — ele disse. — Sempre te amei. Apenas gostaria
de ter percebido mais cedo. E trabalhar para aumentar sua fortuna foi parte
desse amor, suponho. Queria que tivesse a liberdade pela qual sempre
ansiou. E agora a tem.
Ele falou as últimas palavras num sussurro, mas então sua voz
endureceu.
— E irá jogá-la fora com um homem que não te ama, e pelo quê?
Respeitabilidade? Porque apesar de seus grandiosos pronunciamentos sobre
não querer se casar, também não tem coragem de viver de acordo com suas
convicções. Pois tem medo de assumir sua vida com as duas mãos e fazer o
que sua cabeça e coração lhe dizem para fazer.
— E o que seria? — Engoli dolorosamente, com a garganta seca. —
Segui-lo até Chicago? Me tornar sua amante? Viver no submundo enquanto
se pavoneia pela sociedade desfrutando de toda a respeitabilidade que diz
que quero? E o que acontece com Sarah então?
— Não é isso que eu quero.
— O que você quer, Martin?
— Você. — A palavra caiu entre nós como uma pedra, e de repente eu
queria chorar. Eu queria me lançar nos braços de Martin.
Não fiz nenhum dos dois. Deixei a raiva e a indignação que alimentava
há dias me sustentar, me fortalecendo para que eu pudesse dar a única
resposta possível:
— Você não pode me ter.
Minha voz traidora se partiu com essas palavras e me virei, tateando
cegamente a parede até encontrar a maçaneta do quarto. Deslizei para
dentro antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa que denunciasse o
quanto eu queria Martin, fechei a porta com uma pancada e girei a chave na
fechadura.
— Nell! — Martin estava do lado de fora da porta num instante, a voz
abafada pela madeira. — Não seja ridícula.
— Estou sendo perfeitamente razoável — falei com pouca firmeza. —
Um de nós tem que ser. Vá embora, Martin.
E, para meu grande desapontamento, ele foi. Ouvi o som de seus
passos se retirando, e então o corredor do lado de fora do quarto sacudiu
com uma batida ressonante. Ele deve ter descontado o mau humor na porta
ou no corrimão, talvez. Por um breve segundo, desejei que não tivesse se
machucado, então os soluços que estava prendendo forçaram o caminho até
a superfície e me atirei na cama, com o punho pressionado na boca para
abafar qualquer som. Chorei até que a cabeça estivesse prestes a explodir;
então finalmente me despi e rastejei para baixo dos cobertores, puxando-os
sobre minha cabeça para me isolar o mundo.

Acordei cedo na manhã seguinte, com a cabeça enevoada e todos os


membros doloridos. Tess e Sarah, que devem ter pensado que passei a tarde
inteira na cama, dormiam tranquilamente. Tess estava enfurnada nos
cobertores, enquanto Sarah deitava-se esparramada de costas, a respiração
assobiando pelo espaço entre os dentes.
Me vesti rápida e silenciosamente, grata por alguém ter enchido nossa
jarra para lavagem e a grande garrafa tampada que mantinha nossa água de
beber. Bebi metade da garrafa, enchendo meu copo de novo e de novo e
suspirando de alívio enquanto a água fria acalmava minha garganta seca.
Depois de lavar meus olhos para remover um pouco do inchaço por ter
chorado, segui em direção à cozinha, impaciente demais por um café e
comida para esperar o desjejum.
A cozinha estava numa agitação maior do que o esperado. A criada dos
Rutherfords, cujo nome era Trudy, pensei, estava supervisionando o
abastecimento de uma bandeja com itens para o desjejum. Ela claramente
considerava nossos criados inferiores por causa de sua raça, e por isso sua
forma de falar era desdenhosa.
— Os Rutherfords estão partindo então? — perguntei, enquanto me
acomodava num canto da mesa com uma xícara de café e biscoitos recém
assados generosamente lambuzados com manteiga e mel.
— Estão, com certeza. — Ela tinha um leve sotaque irlandês; sem
dúvidas seus pais foram imigrantes. — E já não era sem tempo —
acrescentou em voz baixa.
Ela olhou com dureza para mim, evidentemente tentando julgar se eu
era uma criada ou uma amante. Porém, deve ter me visto jantando na mesa
principal durante sua estadia, e seu olhar não perdurou por muito tempo na
minha blusa prática e na saia cinza lisa.
Ela pôs a tigela de açúcar na bandeja e fez uma breve mesura.
— Imploro seu perdão, madame. Por aqui ser o lugar em que a senhora
vive e tudo. Mas acho que é um local terrivelmente monótono, estando
acostumada a Chicago. — Seu pequeno rosto sardento franziu em uma
careta enquanto fitava a bandeja, um dedo erguido numa aparente tentativa
de lembrar se havia incluído tudo. — E o ócio e o tédio levam à fraqueza,
como minha avó sempre dizia.
— Nunca estou ociosa. — Sorri para ela, ainda que um estranho receio
tenha feito meu coração bater um pouco mais rápido. — E você também
não, garanto.
— Oh, eu não quis dizer a senhorita… senhora, madame. — A criada
parecia chocada. — Com certeza não tive o bastante para fazer, vendo que a
patroa não recebia visitas da sociedade como de hábito. Nunca escrevi
tantas cartas em minha vida, tendo todo aquele tempo nas mãos. Não, eu
quis dizer… Bem, em geral, como uma regra comum. — Ela ergueu a
bandeja, garantindo que estava bem equilibrada e então hesitou, como se
quisesse falar mais. — A senhora é uma velha amiga do patrão, eu soube?
— perguntou hesitante.
— Sou. — Dei um gole no meu café, amargo e forte de encontro à
língua, e aguardei com o que eu esperava ser uma expressão encorajadora
no rosto.
— Talvez a senhora possa dizer a ele – de uma forma geral, se entende
o que quero dizer – que não é bom deixar a patroa muito sozinha. Não
quero falar mal, madame. Mas sou uma moça respeitável, e acho que, sendo
casados, deveriam unir-se um ao outro, como o padre diz. Não deixar o
caminho livre para o Maligno chamar; isso não é certo. Não me importo de
contar para a senhora, pois irei procurar um novo local quando voltarmos a
Chicago. — Ela baixou ainda mais a voz. — E aqueles que servem não
deveriam pensar demais de si mesmos quanto para quem eles trabalham
também. Houve perversão feita aqui na última quinzena.
A observei recuando enquanto manobrava a bandeja para atravessar a
porta, de repente me sentindo bem menos interessada na comida à minha
frente. Ela estava criando problemas? Tess havia sugerido que ela já havia
falado com a sra. Drummond, então por que considerou necessário dirigir
suas acusações veladas a mim?
Me forcei a dar algumas mordidas no biscoito. Eu tinha passado um dia
inteiro sem comer, e não seria nem um pouco bom se desmaiasse de fome.
Eu sabia pelas conversas ao meu redor que a carruagem alugada já estava
na porta, e que estavam carregando os baús de Martin e Lucetta. Eu teria
que aparecer para sua partida, pelo menos para prevenir que Martin me
procurasse para se despedir em particular. Mas agora havia várias razões
para não precisar encará-lo.

Tess e Sarah apareceram às sete e trinta, a hora marcada para a partida


dos Rutherfords. Sarah agarrou-se a mim um pouco mais do que de hábito.
Me perguntei se ela era capaz de sentir a tristeza e confusão que eu escondia
por trás de um sorriso fixado enquanto observava Martin verificar os baús e
caixas guardados no cargueiro à moda antiga. Ele tinha me cumprimentado
com um “bom dia” cauteloso e uma tentativa de sorriso, o qual eu retribuí.
Então não estávamos nos separando com um clima de mal-estar, mas eu
sentia a tensão entre nós, tão frágil quanto uma ponte de vidro.
Apertei a mão de Lucetta e fiz alguns comentários convencionais de
despedida, então observei Martin conduzi-la para a carruagem. Ela se
inclinou para fora da janela, conversando com os dois Calderwoods, que
usavam suas melhores roupas de domingo, todos sorrisos. Qual, me
perguntei, era a extensão da cumplicidade da sra. Calderwood na
“perversão” a qual a criada de Lucetta se referiu? Ela era realmente
ignorante do caso amoroso que, eu podia apenas supor, esteve ocorrendo
embaixo do seu nariz entre Lucetta e seu marido? Ou – um suor frio
escorreu em minha testa com esse pensamento – ela encorajara isso,
pensando em voltar a situação a seu favor? Chantagem, meu demônio
interior sussurrou em meu ouvido, e estremeci, meus olhos em Martin
enquanto ele se despedia dos Calderwoods e virava-se para Tess, Sarah e
eu.
— Bem, Nellie. — Martin aprumou-se depois de abraçar Tess e
colocar o chapéu. — Se cuide até que eu retorne. — Seu rosto estava
inescrutável, mas as sombras abaixo dos olhos indicavam que não dormira
bem.
— Você irá voltar em breve, não vai? — Sarah, que estava apertando
minha mão com firmeza, cutucou o paletó de Martin para chamar sua
atenção. Ele a ergueu nos braços e a segurou para que seus olhos ficassem
no mesmo nível.
— Eu tenho uma empresa para administrar — ele disse quase se
desculpando. — Preciso passar a maior parte do tempo em Chicago. Mas,
se quiser, virei fazer uma visita na próxima vez que esteja seguindo para o
oeste. — Ele sorriu para ela, tocando seu cabelo acobreado brilhante. —
Não quero esperar outros quatro anos para ver como crescerá; pois irá se
esquecer completamente de mim nesse tempo.
— Não vou esquecer. — Os olhos de Sarah brilharam verdes sob a luz
do sol enquanto ela corria a mão pela bochecha de Martin recém barbeada.
— Você é gentil. E eu gostaria de ir para Chicago ver seu cavalo.
— Eu gostaria disso. — Martin beijou Sarah, seus lábios se demorando
por um breve segundo. Ele realmente iria gostar de ter seu próprio filho,
percebi, e o sentimento de desolação que aquilo me trouxe era quase
insuportável. — Seja boa com sua mãe, Sarah.
Ele a abaixou e virou-se para mim, beijando minha bochecha com a
mesma gentileza com que beijou a de Sarah.
— Até logo, Nell. — Ele não esperou que eu respondesse, mas deu um
passo para trás, girando na direção da carruagem e abrindo a porta.
Fechei os olhos por um breve segundo, sentindo o calor de sua boca
em minha pele e a sensação de perda que se seguiu de imediato.
— Até logo, Martin — falei em voz baixa quando o condutor sacudiu
as rédeas, colocando a carruagem em movimento.
Ao menos uma vez, Sarah não correu atrás do veículo, mas virou-se
para mim e estendeu os braços, um gesto que não fazia há algum tempo. Eu
a carreguei e ela enrolou os braços no meu pescoço.
— Estou triste por ele estar indo embora — sussurrou. — Por que
estou tão triste com isso, mamãe?
— Eu não sei, querida. — Tentei rir, mas a tentativa não foi bem
sucedida. — Acho que estou triste também.
— Eu espero que ele volte logo. — Sarah descansou a cabeça em meu
ombro, mexendo no broche de azeviche preso à gola de minha blusa. —
Mas não precisa trazer a dama bonita de volta. Os vestidos são bonitos, mas
não gosto da forma com que ri. E ela não gosta de Tess. Está na hora do
desjejum agora?
— Suponho que sim — falei, arrancada de meus devaneios. — É
melhor entrarmos. — Virei a cabeça para capturar um último vislumbre da
carruagem, uma partícula em movimento sob a luz do sol brilhante, e então
segui os Calderwoods para dentro. Desejei com todo o meu coração que eu
pudesse retornar aos últimos dois dias e começá-los novamente.
Capítulo quarenta

Afundando
10 de novembro de 1875
Nell,
Mal sei o que escrever. Dentro dos confins de minha cabeça, converso
com você constantemente, pedindo seu perdão, sua paciência, seu… Sim,
seu amor, ainda que eu acredite que já o tenha. No entanto, assim que sou
confrontado com essa folha branca de papel, quase todos os tópicos se
tornam um terreno perigoso, tomado por armadilhas e pontilhado por
minas que irão explodir ao menor movimento.
Receio já ter tocado em uma dessas minas, irritando-a falando de
amor. Você está perfeitamente correta; não tenho o direito de exigir
qualquer coisa. Não tenho o direito sequer de aconselhá-la, exceto pelo
direito de um velho amigo que quer apenas vê-la segura, feliz e bem. Você,
a filha e a irmã – já que Tess é sua irmã no coração, não é mesmo? – que
lhes são queridas mais do que você mesma.
Tenho medo por você. Aí está, escrevi. Estou sentado aqui na minha
mesa, tarde da noite, com a correspondência do dia para lidar – a qual eu
preciso estar pronto para discutir com Salazar de manhã, já que sempre há
mais em seguida. Eu, que não sou dado a preocupações, como bem sabe,
me vejo impaciente como uma galinha sobre um único filhote e, como
consequência, ficando para trás no meu trabalho.
Eu estava muito ocupado com meus ciúmes para conversar de forma
sensata, então pode não ter percebido que minha viagem à fronteira foi
frutífera no sentido dos negócios. Estou me correspondendo diariamente
com Fassbinder, cujas ideias de criar uma nova fortuna com o mercado da
fronteira agora me atinge como merecedora de um investimento imediato –
para nós dois, se me permitir continuar agindo em seu nome como…
E agora caminhei para aquele terreno perigoso novamente, não é?
Sabe bem quais são meus medos por você, minha querida. E sabe quais são
minhas esperanças também, talvez – que eu possa encontrar uma forma de
sair dessa confusão em que me coloquei e me oferecer a você de forma
honrada. Eu sei que não há outra maneira.
Para sempre seu,
Martin

Eu podia sentir a carta de Martin, dobrada em um quadrado no bolso


da saia enquanto me debruçava sobre minha tarefa. Suas palavras
sussurravam em minha cabeça como um contraponto ao estrondo monótono
do vento contra os painéis das janelas da oficina.
Sua carta, a mais longa que tive em mais de um ano, me deixou tanto
exultante quando desalentada. O que eu poderia escrever de volta?
A resposta veio mais facilmente do que eu esperava: a verdade. Eu
poderia dar a Martin ao menos um relato verdadeiro de minhas intenções e
sentimentos quanto a Judah. Ajudaria, é claro, se eu pudesse decidir
exatamente como eu pretendia proceder para me libertar de Judah e quão
longe eu teria que correr para fazê-lo. Eu mesma entregaria a carta no
correio – e lembraria a Martin para escrever com menos liberdade sobre
seus sentimentos. Um terreno perigoso, de fato.
Voltei a atenção para o tecido esticado sobre a mesa de corte. Outro
vestido para a sra. Addis. Era de um tom rico de lilás, opulento e, ainda
assim, discreto sob a luz de um dia de novembro, com o céu da cor de
estanho, iluminado por uma ocasional mancha de prata ou branco, à medida
que o grande amontoado de nuvens movia-se e se agitava.
Eu teria que acender as lamparinas no candelabro em breve, percebi.
Então o tecido mudaria devido à luz amarela, se tornando aquele lilás
escuro e sombrio de um machucado. Precisava fazer o caimento do vestido
– no preto tradicional – para evitar que aquele tom lilás entrasse em contato
direto com a pele da sra. Addis, que era um pouco amarelada.
— Você vai fazer alguma coisa com esse treco além de ficar olhando
para ele, Nell? — Tess tirou o pé de cima do acionador da máquina de
costura com um suspiro de alívio. Ela era um pouco pequena demais para se
sentar confortavelmente com ele por um tempo longo.
No silêncio repentino, ouvi Sarah cantarolando “Mão-pão-vão-cão-
dão-tão” enquanto conscientemente seguia seu caminho pela cartilha. Ela
amava aprender, e estava tão absorvida analisando a mágica pela qual as
marcas nas páginas se tornavam palavras que já tinha lido o livro
simplesmente dez vezes. E mal tinha desviado o olhar da página na última
hora.
— Começarei a prender com os alfinetes em breve. — Eu esperava que
não parecesse tão acanhada quanto me sentia; eu sabia que meus
pensamentos estavam vagando. Deslizei a mão para dentro do bolso,
sentindo as bordas do papel de encontro ao interior do polegar. — Mas
quero fazer isso certo e não será algo fácil de trabalhar. É muito novo para
mim, e tão caro.
— Acho que o sr. Addis terá que ganhar bastante dinheiro com o hotel
— falou Tess. — Isso é seda mesmo? — Ela atravessou a sala para ficar ao
meu lado, tocando a seda de crepe chinês quente e, ainda assim,
maravilhosamente suave.
— Sim. Mas é um tipo novo de tecido e quero ter certeza de que pensei
em todas as possibilidades antes de cortar.
— Você é uma verdadeira artista — falou uma voz suave atrás de nós.
Me virei para descobrir Judah apoiado no batente da porta. — Posso
solicitar alguns instantes do seu tempo? — Judah perguntou formalmente,
desencostando-se em um único movimento fluido. Ele gesticulou na direção
da porta aberta, indicando que queria me ver em particular. Hesitei, mas
dificilmente teria qualquer razão para recusá-lo. Com um último olhar para
a seda lilás profunda e um suspiro pesaroso pelo trabalho que eu não havia
feito, o segui para fora da sala.
Ele guiou o caminho até a capela, puxando as grandes portas
ornamentadas para abri-las e me conduzindo para dentro. A sala enorme,
ecoante, estava sombria e fria, a luz acinzentada de novembro mal
penetrando entre as fileiras de janelas de vitrais.
Judah esperou até que eu me sentasse em um dos bancos dos fundos,
então se acomodou no banco da frente para que pudesse me fitar.
— Sinto que tem me evitado, Nell.
Ele estava certo, mas eu não queria admitir isso. Eu sentia o contorno
da carta de Martin no bolso e percebi mais uma vez que tinha uma linha
fina para me equilibrar. Eu não ousava me comprometer em qualquer
sentido, mas também não estava na posição de queimar pontes. Me
empenhei para demonstrar um tom de voz neutro e amigável.
— Estive bastante ocupada, Judah. Você também, e parece passar uma
enorme quantidade de tempo no escritório do dr. Calderwood.
— Grandes planos estão em andamento. — As palavras de Judah
saíram com um breve sopro que poderiam indicar prazer ou escárnio; era
difícil dizer naquela sombra intensa.
Ele tomou minha mão, esfregando o polegar na minha palma. Eu não a
afastei, notando com interesse que um pequeno calafrio percorreu meu
corpo com seu toque. Ainda assim, foi tão diferente do anseio que
experimentei quando Martin me abraçou que me perguntei por que sequer
imaginei que aquilo seria amor.
Eu não queria irritar Judah nem encorajá-lo, disso eu estava certa.
Então deixei minha mão cair flácida entre as dele, esperando que nossa
conversa fosse breve.
— Era por isso que queria me ver? — provoquei, tentando soar
despreocupada. — Para que pudesse me repreender por minha ausência?
— Bem, também estive pensando sobre uma coisa. — Judah virou
minha palma para cima e fingiu estudá-la, ainda que, ao menos que tivesse
olhos de gato, mal conseguiria vê-la. Mas ele tinha mesmo olhos como os
de um gato, pensei, lembrando como se gabara sobre enxergar bem no
escuro.
— Eu acho — Judah continuou com os olhos em minha mão — que
você gosta um tanto mais do sr. Rutherford do que deveria.
Desta vez eu realmente tentei puxar a mão de volta, mas seus dedos se
fecharam com firmeza ao redor de meu pulso, e achei que era melhor não
lutar. Meu estômago começou a se apertar em nós e eu estava suando apesar
do frio.
— E acho que ele gosta muito mais de você do que é adequado a um
homem casado. — Os dedos de Judah se firmaram, frios e duros. — Não
negue, Nell. Não foi George Hebert que disse que o amor e uma tosse não
podem ser escondidos? Teria sido tocante ver quão bem combinariam um
com o outro… Se o sr. Rutherford estivesse livre para se casar.
— Nós não fizemos nada de errado. — Eu podia ouvir o tremor em
minha voz. — Nada de impróprio. — Exceto um beijo. — Martin é um
homem honrado.
— Mas você corre grande perigo de fazer algo errado. — A voz de
Judah soava séria, sincera. — Até o homem mais honrado pode sofrer
momentos de fraqueza, Nell. E uma mulher… Bem, mulheres são criaturas
naturalmente fracas, não são? Não podemos culpá-las demais por agirem de
acordo com sua natureza. E você tem uma natureza passional, Nell. Pois
anseia pelo calor como uma borboleta; e não pode viver muito tempo sem
ele. Porém, mais cedo ou tarde, a condição de celibato irá se tornar
insuportável.
Senti um choque de reconhecimento com suas palavras e não pude
suprimir o tremor que me percorreu. Minhas reações físicas a Judah,
percebi, e o fato de que estava numa condição de celibato há algum tempo,
não eram de todo desvinculadas.
— Ele não vai poder se divorciar da esposa. A lei não é facilmente
persuadida a permitir tais coisas. Ele pediu que esperasse por ele? — O
movimento súbito de minha cabeça enquanto eu tentava, em vão, ver seu
rosto, deu a Judah a resposta e ele riu. — Este curso de ação só pode
terminar de uma forma, Nell. E você, de todas as pessoas, não pode arcar
com outro erro. Isso te colocaria além dos limites da boa sociedade para
sempre, e condenaria sua filha às sombras.
— O que propõe que eu faça? — Minha garganta estava seca e engoli
em seco para aliviá-la.
— Já te ofereci a proteção do meu nome — Judah falou. — Não exijo
amor, e minhas afeições não são, nem nunca serão, empenhadas em outro
lugar. Você teria um marido jovem, ambicioso e vigoroso. Acho, na
verdade, que em meus braços começaria a esquecer sua paixão desesperada.
— Pude ver um lampejo de dentes brancos quando ele sorriu para mim. —
E, em contrapartida, eu faria poucas exigências a você.
— Exceto por meu dinheiro — falei secamente.
— O que é a riqueza? — Judah deu de ombros. — Você não é
nenhuma avarenta, creio. O dinheiro tem pouco domínio sobre você; já que
esteve bem contente em viver de maneira simples. E as vantagens do seu
lado são grandes. Estou te resgatando da vergonha do passado e da sedução
do futuro. Estou dando a você e sua filha um nome irrepreensível e
garantindo que seus filhos irão, daqui em diante, nascer do matrimônio. Isso
não vale um pouco de ouro?
Puxei minha mão de volta novamente, e desta vez ele soltou.
— Nós temos, o quê? Seis semanas antes do tempo combinado
transcorrer, certo? Deixe-me colocar desta forma, Nell: sua escolha está
clara e há apenas um resultado possível. Eu espero que se renda a mim.
— Ou? — murmurei com a voz rouca.
— Ou será uma pária. — A voz de Judah agora tinha um tom que eu
nunca havia escutado antes. — Você não pode esperar continuar vivendo
aqui, ou em qualquer sociedade decente, num estado de depravação moral.
Estou te oferecendo um bote a qual se agarrar, Nell, pois já está afundando.

— Um pouco mais deste bacon excelente, cara sra. Lillington? — O dr.


Calderwood, que havia disposto de mais fatias do que eu sequer imaginara
que uma pessoa poderia dar conta em uma sentada, estendeu o prato
gorduroso com o que, imaginei, ele achava que fosse um sorriso vencedor.
Balancei a cabeça.
— Já comi o bastante, obrigada. — Tomei outro gole do café e lancei
um olhar ansioso por sobre o ombro até o outro extremo da sala onde Tess e
Sarah estavam sentadas, conversando alegremente em seu desjejum.
Nas duas semanas desde que Judah e eu tínhamos conversado na
capela, ele havia me convidado para a mesa principal para todas as
refeições. Ele não convidou Tess e Sarah, mas a omissão não me
incomodava já que nenhuma das duas, como Tess pontuou, desejava ficar
sob o escrutínio dos Calderwoods enquanto comia.
Ele vai irá te isolar e controlar. As palavras de Martin voltavam para
mim com frequência nos últimos dias. Com Judah – que sempre se sentava
à direita do dr. Calderwood agora – e o doutor e a esposa no meu lado
oposto, eu estava começando a me sentir como um peru rechonchudo na
presença de um bando de leões. A impressão ficava ainda mais forte sempre
que o dr. Calderwood lambia os lábios ou balançava a juba raiada de prata.
Eu tinha a sensação desagradável de que Judah havia ao menos
sugerido sobre minha riqueza à sra. Calderwood. Os modos da mulher
pequena para comigo se tornaram decididamente respeitosos. Ela
direcionava os mais seletos cortes de carne para meu prato, perguntava
sobre minha saúde com um brilho confidencial nos olhinhos pretos e enchia
ela mesma minha xícara de café.
Ela o fazia agora, o cabelo tremendo no penteado alto enquanto se
inclinava para a frente.
— Pensei bastante sobre sua solicitação para passar o Natal na missão
dos Lombardis —falou para mim, devolvendo minha xícara e o pires à
bandeja. — Providenciei com um dos fazendeiros que pegaria emprestado
dois de seus cavalos Percheron e a carroça coberta. O sr. Poulton irá
acompanhá-la, claro.
Olhei para Judah com preocupação.
— Mas não apenas o sr. Poulton, com certeza; precisaremos de uma
acompanhante também, não? — Eu não queria atravessar as planícies tendo
apenas Tess e Sarah como proteção contra Judah. — Achei que Andrew
poderia nos levar — comecei de novo.
— Andrew poderá leva-los e depois trazer a carroça de volta para cá.
Duvido que os Lombardis tenham feno o bastante para alimentar cavalos
tão grandes no Natal. — O rosto da sra. Calderwood se fechou em um
sorriso fugaz. — E quanto a uma acompanhante, considero que a presença
da srta. O’Dugan e de sua filha sejam o bastante. Afinal de contas, você e o
sr. Poulton estão praticamente comprometidos. Agora, quanto à data…
— Escrevi para os Lombardis informando que partiria no dia treze —
falei apressadamente. Eu não havia me esquecido que a sra. Drummond
planejava ir no dia doze. Meu plano era garantir a carta, estar a caminho da
casa dos Lombardis antes que alguém pensasse em me perguntar se eu sabia
qualquer coisa sobre a fuga da governanta e examinar a carta na presença
do pastor Lombardi e Catherine.
— Oh, não, isso não irá funcionar de modo algum. — A sra.
Calderwood uniu as mãos pequenas sob o queixo e curvou a cabeça para
um lado. — Você precisa partir no dia seis. Dessa forma, terá três semanas
inteiras antes do retorno, que deve ser no dia vinte e sete; eu diria vinte e
seis, mas é o sabá. Afinal, um passarinho me disse que haverá um anúncio
no dia do Ano Novo, e precisamos que esteja de volta a tempo para
celebrar. Precisaremos dar um jantar para nossos amigos queridos de
Springwood, não acha, doutor?
— Com certeza — balbuciou o dr. Calderwood, que havia
sorrateiramente pego outro pedaço de bacon do prato e mastigava de forma
diligente.
— Terá tempo para informar aos Lombardis que seus planos mudaram
se escrever nesta manhã — pontuou a sra. Calderwood com rapidez. — O
sr. Poulton irá acompanhá-la até Springwood a tempo para a coleta do
correio. — Ela ficou de pé, ocasionando um arranhão geral de cadeiras à
medida que os cavalheiros levantavam-se com ela. O dr. Calderwood
rapidamente passou o guardanapo sobre a boca e mãos gordurosas e sorriu
vagamente para ninguém em particular.
— Mas o dia seis é em menos de quinze dias. E meu trabalho? — Eu
também estava de pé, grata pelo movimento disfarçar o desespero que
sentia. — Partir cedo assim em dezembro, até mesmo antes dos alunos, se
tornaria difícil acompanhar quando eu retornar.
— Ah sim, quanto a isso, sra. Lillington… — A sra. Calderwood dera
a volta na mesa para interromper minha retirada para as portas do refeitório.
Ela pousou a mão de forma confidencial em meu braço, suas pequenas
unhas afiadas brilhando como vidro. — Instruí a Sra. Drummond a colocar
anúncios no Dickinson County Chronicle e qualquer outro jornal adequado
de Wichita que pudesse encontrar. Ela já está recebendo respostas. Nossa
intenção é trazer uma pessoa nova dentro da próxima quinzena para receber
um pequeno treinamento seu antes que parta. Se ela se provar adequada
durante sua ausência, estará livre de suas responsabilidades e pronta para
assumir novas em janeiro. Nós teremos muito a conversar quando retornar.
Ela deu um tapinha na minha mão e trotou atrás do marido que estava,
como de hábito, atrasando o começo do dia de trabalho tagarelando com os
membros do corpo docente que não tinham aulas imediatamente.
Olhei para Judah, que me concedeu um aceno e um sorriso. Ele
evidentemente conhecia a essência do que a sra. Calderwood havia dito
para mim.
Eles estavam conspirando, eu tinha certeza disso. E queriam garantir
que eu estivesse sob os olhos de Judah praticamente dezembro inteiro, sem
me dar nenhuma oportunidade de voltar-me para outro lugar em busca de
conselho ou ajuda. Eu também estaria de volta ao seminário antes da data
combinada para dar uma resposta a Judah, para que os Lombardis não
pudessem interferir. Judah pretendia garantir seu prêmio.
Capítulo quarenta e um

Chave
A enfermaria tinha um cheiro doce e fétido que fazia alguma parte
instintiva minha se encolher em horror, ainda que eu soubesse que a febre
da sra. Drummond não era contagiosa. Era mais do que a mácula normal da
doença – o quarto cheirava a morte.
A transpiração regava a testa da sra. Drummond mas, quando toquei
sua mão, esquelética e parecendo uma garra, apoiada na colcha, ela estava
pegajosa e fria. A pele de seu rosto tinha uma aparência esticada e
amarelada, como um pergaminho velho. As respirações fracas emitidas por
sua boca eram azedas, insalubres.
— Ela irá viver? — Mantive minha voz baixa caso a mulher doente
pudesse ouvir.
— Meu coração me diz outra coisa. — A voz de Dorcas também era
baixa. — Ela passou fome mesmo até virar um esqueleto e agora que a
febre retornou, ela não tem nada para lutar contra a doença.
— Parece pior do que uma simples febre — pontuei. — O que o
médico diz?
— Para esperar e ver.
Dorcas mergulhou um pano na bacia de água que ela mantinha no chão
perto de sua cadeira e gentilmente limpou a testa da sra. Drummond. As
pálpebras da governanta tremularam e ela gemeu, um lamento fraco,
distante, que desapareceu no silêncio.
Esperar e ver. Mas eu não podia. Enquanto eu fazia o desjejum com os
Calderwoods, a sra. Drummond fora levada para a cama com os primeiros
calafrios de uma febre de malária. Como uma tola, reprimi minha urgência
inicial de dizer sobre minha partida prematura e pressioná-la a entregar a
carta imediatamente. Estive relutante em perturbá-la no primeiro dia da
doença. Ela se recuperaria, pensei, e eu teria tempo de perguntar antes que
ela fosse embora.
Mas, ela havia ficado pior ao invés de melhor, e agora talvez nunca
pudesse tomar posse da única arma que poderia ter contra Judah.
Eu estava ficando com poucas opções… E aliados. Não era da minha
natureza reunir um grande círculo de amigos ao meu redor, como eu via
algumas pessoas fazendo. Meus apegos eram poucos e ainda mais
fervorosos por serem raros. Como resultado, havia mantido minhas clientes
– mulheres que poderiam ter se tornado minhas amigas – a um braço de
distância. Com Reiner e o professor Wale ausentes, eu tinha apenas os
Lombardis para quem fugir como um possível refúgio de uma situação que
estava se tornando insuportável.
Mas chegar aos Lombardis significava levar Judah comigo, um
empreendimento semelhante a amarrar o tigre à carroça que iria me levar
através das planícies. Quem iria ficar entre mim e aquele homem bonito e
perigoso?

Eu desejara um escudo forte. Ao invés disso, encontrei forças mais


parecidas com uma raiz que faz seu trabalho no escuro, desconhecida até
que quebre a pedra.
Visitei a sra. Drummond cedo naquela manhã, incapaz de dormir com a
preocupação. Havia acabado de retornar ao quarto para encontrar Tess
praticamente vestida e ajudando Sarah com os botões. O cabelo suave e fino
de Tess estava numa desordem esvoaçante e o de minha filha estava ainda
pior. Ela tinha desfeito as tranças à noite, considerando-as desconfortáveis.
Suas mechas encaracoladas se torceram num nó górdio de cobre
entrelaçado.
— Nunca irá conseguir desembaraçar o cabelo dela desta forma —
Tess repreendeu depois de Sarah gritar pela vigésima vez. — Pois continua
esquecendo onde começou e está puxando com muita força. — Ela
umedeceu a escova e alisou o próprio cabelo até domá-lo, então tomou de
mim a escova de Sarah e começou a mexer no cabelo dela com passadas
curtas e rápidas. — O que há de errado, Nell? — ela perguntou, olhando de
soslaio para mim. — Está distraída. Tem estado assim há dias.
— Não é nada — respondi, olhando para as nuvens velozes que
navegavam sobre a pradaria numa procissão sombria.
Tess franziu os lábios, mas não disse nenhuma outra palavra até que
tivesse desembaraçado o cabelo de Sarah e me observado trançá-lo em dois
rabos curtos.
— Agora, Sary, por que não vai ler seu livro um pouco? — ela sugeriu,
entregando a Sarah nossa última compra, uma cópia de Os meninos
aquáticos. Sarah ainda não conseguia ler corretamente, mas achava
divertido fingir que sim, pronunciando as palavras que entendia e pulando
as outras. — Mamãe e eu teremos uma conversinha.
Ela me agarrou pelo antebraço e me puxou na direção da porta.
— É alguma coisa — Tess falou em sua versão de um sussurro, que era
mais como um chiado alto, quando fechou a porta. — Sei muito bem que
esconde coisas de mim, Eleanor Lillington, e se acha que está sendo gentil
ao não me preocupar, saiba que não sou nenhuma criança. E também não
sou uma encomenda para ser deixada de canto até ser convocada. Agradeço
se for honesta e me dizer o que está te perturbando.
Pisquei, tomada de surpresa pela visão do queixo projetado de Tess e a
testa franzida enquanto ela tentava ao máximo parecer ameaçadora.
— Não tive a intenção de esconder as coisas — eu disse, mas sabia que
soava pouco convincente. Desde o dia em que percebi o que Martin
realmente significava, mantive minhas emoções e pensamentos mais
importantes trancafiados dentro de mim, e sabia que iria sofrer como
resultado. Talvez fosse a hora de confessar.
— Então me diga.
— Não aqui.
Liderei o caminho pelo corredor até chegarmos à rouparia e remexi no
meu bolso em busca da chave que a destrancava.
O cheiro fresco de goma, a nota metálica subjacente do calor do ferro
de passar e a doçura desvanecendo da lavanda antiga nos recebeu quando
entramos na sala. Suas janelas sombreadas lançavam um brilho fraco sobre
as pilhas sobrepostas de lençóis imaculados, livres de poeira e insetos.
Outro lembrete de quão bem a sra. Drummond havia feito seu trabalho.
Nunca gostei particularmente da governanta – afinal de contas, fora rápida
em me julgar. No entanto, agora eu percebia que sentiria falta de sua
eficiência e da sensação de paz e ordem que ela trazia a tudo que tocava.
Afundei sobre as tábuas varridas, desejando que o espartilho não me
impedisse de me enrolar numa bola de sofrimento e desânimo. Tess, que
usava um espartilho macio sem uma única mola de aço, sentou-se também –
muito mais confortável. Ela cruzou as pernas sob a saia da forma
complicada que Sarah frequentemente tentava, sem sucesso, imitar.
— Estou preocupada com duas coisas — comecei. — Primeiro, Judah.
Pois agora tenho certeza de que não quero me casar com ele, Tess.
— Esta é a melhor notícia que ouço há muito tempo. — O sorriso de
Tess era quase de regozijo, mas então sua expressão tornou-se confusa. —
Então por que não diz a ele? Você não disse a ele, disse?
— Não. Por uma série de motivos, não. Quero dizer quando estivermos
na casa dos Lombardis.
Tess fez uma careta.
— Eu preferia não ter que fazer uma viagem longa com ele antes.
— Eu também não. — Retorci minhas mãos uma na outra, sentindo o
anel de Hiram afundar em meu dedo.
— Não se preocupe, Nell. Estarei com você. — Tess se inclinou para a
frente e deu um tapinha em meu joelho. — Não gosto quando os
cavalheiros se irritam, mas estarei a seu lado quando lhe disser que não
gosta mais dele. Não terei medo. Irei me lembrar que o Senhor é minha
força e meu escudo, como dizem os salmos.
Deixei minha cabeça cair nas mãos, de repente com medo de irromper
numa gargalhada histérica ou chorar como uma criança. Sempre subestimei
Tess. Meu instinto era protegê-la de minhas preocupações da mesma forma
que protegia Sarah – mas Tess não era uma criança. E ela tinha uma fé que
eu achava difícil de replicar. Sua certeza inquestionável e absoluta do amor
divino não tinha nada a ver com minha visão de mundo como um lugar
repleto de problemas que eu deveria ter que resolver pelas vias práticas.
— Bem, se não está com medo, acho melhor que eu não esteja também
— eu disse, quando recuperei o controle de minhas emoções. — Mas há
outra coisa, algo que iria talvez me ajudar com Judah. A sra. Drummond ia
me deixar uma carta, alguma coisa sobre Judah que o professor Wale
achava que eu deveria saber, mas a mesma desapareceu depois que ele
morreu. Mas, não acho que esteja no quarto dela e, de certa forma, duvido
que tenha escondido no escritório também. — Enxuguei meu nariz com o
lenço que eu havia amassado na palma. — E… Tenho muito medo de que
ela nunca seja capaz de me dizer onde está agora.
Tess assentiu, a boca curvando-se para baixo nos cantos.
— Eliza está muito doente — ela concordou. — Dorcas disse que a
febre provavelmente irá levá-la desta vez. E também isso porque acho que
Eliza não quer mais estar aqui. Dever querer estar com Jesus e não ficar
mais infeliz o tempo todo.
Bem, ela com certeza queria deixar o seminário. Sabendo que havia
planejado partir para um emprego em outro lugar, não tinha certeza que
morrer estava em seus planos.
Tess se iluminou por um momento.
— Talvez a carta esteja no esconderijo da biblioteca — ela falou. —
Você tira alguns dos livros grandes e há um painel…
— Não está lá — interrompi. — Olhei nesta manhã antes de ir ver a
sra. Drummond. Tess, como você sabia disso?
— É óbvio. — Tess parecia satisfeita com meu espanto. — Eliza me
mostrou.
— Que outros segredos dela você conhece? — Senti uma onda
inesperada de esperança. — Será que há mais esconderijos? — Num prédio
tão grande, poderiam existir muitos. Talvez até mesmo alguns que Judah
não tenha esmiuçado.
Tess franziu o cenho, se concentrando.
— Nenhum bom —falou finalmente. — Nenhum realmente,
realmente seguro. Aqueles garotos se metem em tudo, você sabe. E se eu
estivesse escondendo alguma coisa, não colocaria em nenhum lugar em que
eu trabalhasse com regularidade, certo? Se espera que as pessoas escondam
coisas em lugares que conheçam.
— E a sra. Drummond era – é – muito cautelosa por natureza. Você
provavelmente está certa, Tess. Sempre achei estranho que ela tivesse tão
poucos bens pessoais considerando a quantidade de tempo que vive aqui.
Que raios fazia com o dinheiro que ganhava? Doava?
— Não, ela o levava…
Tess parou de imediato. Seus olhos se arregalaram, a boca formou um
O perfeito, e ela desequilibrou-se para ficar de pé.
— Nell — ela ofegou. — Acho que eu sei. E acho que eu… — Ela
não terminou a frase, mas pulou de empolgação, guinchando o mais baixo
que podia.
Me levantei do chão – uma operação desajeitada quando a cintura da
pessoa está envolta por aço – e agarrei os ombros de Tess para acalmá-la.
— Ora, pelo amor de Deus, não deixe todo o prédio saber — falei.
Meu coração martelava. Tess estava tremendo de empolgação e minhas
próprias pernas começaram a tremer em resposta.
Tess respirou fundo algumas vezes, pôs a mão no bolso e retirou seu
conjunto de chaves. Como eu, ela tinha uma chave para o ateliê, para nosso
quarto e para a rouparia, onde estávamos agora. A sra. Drummond também
lhe havia dado as chaves de seu próprio escritório e para a sala onde os
livros-razão eram guardados. Tess amava estudar seus métodos e analisaria
os livros encadernados em couro por horas se tivesse chance.
Mas a chave que Tess estava mostrando para mim era uma que eu
nunca notara – e por que deveria? Um molho de chaves era uma coisa
corriqueira. Era uma chave de ferro comum, pequena e fina, de um modelo
simples, antigo.
— Eliza me deu cópias de algumas de suas chaves — Tess explicou
em seu sussurro alto e rouco. — Mas esta não é uma cópia. E sim a única.
Ela disse: “Eles não a observam, Tess.” E ela está certa. Eles olham através
de mim ou por cima de mim, nunca para mim. Eles pensam: “Tess é uma
imbecil; não é inteligente como Nell ou Eliza.” Mas se Eliza me dá algo
para manter em segurança, eu não perco ou conto a ninguém sobre isso.
Exceto agora. — Sua boca franziu de consternação, mas depois ela se
alegrou. — Mas só contei por causa da carta que Eliza quer que você tenha,
Nell. Não por outros motivos.
— É para uma caixa-forte de algum tipo? Onde ela guarda o
dinheiro? E essas coisas podem ser facilmente arrombadas, não?
Tess sorriu.
— Não se ninguém souber que existe. Ninguém no seminário, de
qualquer forma. O sr. Yomkins sabe por que está no cofre grande dele. Ele
diz que um agente do correio não deveria ter esse tipo de coisa sob seus
cuidados, mas está lá há muito tempo. Ela guarda a caderneta bancária de
Eliza e o pouco dinheiro que tem para emergências e um colar bonito com
pérolas rosadas e alguns papéis. Eliza costumava ir a Springwood quase
todos os sábados, não se lembra, Nell? Era quando enviava o dinheiro para
o banco, exatamente como fazemos. Mas ela parou de ir meses e meses
atrás, mas deu a chave para mim, e um dia me disse que colocasse um
pouco de dinheiro para ela. “Tenha muito cuidado para que ninguém te veja,
Tess”, ela falou. E eu tive.
Senti uma onda de indignação por conta da sra. Drummond ter usado
Tess – a ter exposto ao perigo –, mas deixei passar.
— Você viu uma carta lá quando colocou o dinheiro?
— Eu não olhei realmente — Tess respondeu. — Apenas fui rápida,
pois o sr. Yomkins fica do lado de fora da porta, e não gosta que eu passe
tempo demais em seu cofre. Mas por acaso não colocaria uma carta secreta
lá ao invés de esconder perto de você? Eu iria.
— Eu poderia — refleti. — Mas se estiver certa, o que iremos fazer?
Não gosto da ideia de estarmos carregando uma carta pela qual o professor
Wale pode ter sido morto e da qual a sra. Drummond tem medo. E se ela…
não se recuperar, corremos o risco de a caixa ser entregue a… alguém, não
sei quem. De qualquer forma, os Calderwoods e Judah estão de olho e
qualquer coisa que eu faça fora do comum levantará suspeitas.
— Então vamos ser comuns, Nell. — O rosto redondo de Tess estava
rosado de expectativa. — E fazer exatamente o que sempre fizemos – e se
eu fizer, ainda melhor, já que ninguém irá pensar que estamos sendo
inteligentes.
Capítulo quarenta e dois

Jornada

27 de novembro de 1875
Querido Martin,
Escrevo aqui com bastante pressa. Estamos mandando algo que pode
ser do seu interesse. Não sei o que diz porque Tess está enviando-a antes
que eu veja, mas confio que tomará o curso de ação apropriado quando
tiver lido.
É claro, pode ser que não seja nada. Você não me contou sobre um
romance no qual a heroína está bastante agitada para encontrar um papel
escondido, apenas para descobrir que é uma lista da lavanderia?
Tess, Sarah e eu estamos viajando para a mansão dos Lombardis na
companhia do sr. Poulton no dia seis de dezembro. Por favor, não se
preocupe muito. Espero que esteja bem.
Sua,
Nell

— Quanto tempo acha que leva para uma carta chegar a Chicago?
O sussurro alto de Tess felizmente foi mascarado pelo som da
máquina de costura. Jane Holdcroft, a mulher jovem que a sra. Calderwood
contratara para me substituir assim que minha posição fosse elevada a noiva
de Judah, trabalhava diligentemente em mais um conjunto de fronhas
novas. Pela quantidade de rasgadas que os criados encontraram nos últimos
tempos, eu suspeitava que os alunos não estavam usando-as para os
propósitos destinados.
Haviam se passado cinco dias desde que observei o pequeno corpo de
Tess recuar à distância, acompanhando Bella a Springwood em suas tarefas
de costume no sábado. Dorcas, que geralmente acompanhava a filha, estava
ocupada na enfermaria.
Tess retornara exultante com seu sucesso em localizar uma carta
muito parecida com a que eu tinha descrito. E anexara ao bilhete que eu
havia escrito num embrulho para Martin. Assim, colocara nas nossas cartas
de costume para Chicago. Ainda mandávamos dinheiro para o banco que
Martin tinha encontrado para nós e ainda havia uma sensação de conquista
ao fazê-lo, ainda que a riqueza que Martin tenha reunido para nós eclipsara
nossos pequenos ganhos.
Tess havia sido capaz de cumprir essa façanha com bravura a tempo
de juntar-se a Bella no mercado. Ela comprou uma colônia para nós duas e
uma flauta feita de madeira de caqui para Sarah, ainda por cima. E estava
certa – ninguém prestara atenção nela.
— Quanto tempo uma carta leva até Chicago? Não tenho certeza —
falei. — Ao menos quatro dias, imagino, possivelmente uma semana. E
então precisa chegar a Martin; ele pode estar viajando de novo, pelo que
sabemos. Por quê? Acha que ele virá cheio de energia à nossa porta num
cavalo branco nos resgatar?
— Isso seria tão empolgante — Tess suspirou.
— Suponho que seria.
A última vez que precisei que Martin me resgatasse ele não apareceu
até que eu tivesse arrastado Sarah para fora do rio no qual Hiram Jackson
jogara minha filha. Na verdade, havia sido de um conforto e assistência
inestimáveis na sequência daquela cena dramática, mas dificilmente seria o
cavaleiro numa armadura brilhante que Tess esperava.
Eu ainda não tinha dito a Tess que nossa amizade, como os
romancistas diziam, havia amadurecido para algo mais profundo. E eu
poderia nunca contar, já que o curso de ação mais sensato – assim que eu
deixasse o seminário – era começar a vida de novo, e o mais longe de
Martin possível.
Alonguei meus dedos rígidos e olhei para a lista que fazia. Estava
tentando detalhar nossas tarefas por estação. Tess havia lembrado em
algumas coisas que esqueci e por isso, teria que passar toda a coisa a limpo
mais tarde, porém, já estava bastante satisfeita.
Nos nossos quase quatro anos no Seminário Vida Eterna, tínhamos
feito muitas melhorias em nossas funções. A mania de Tess de fazer listas e
sua admiração pelos métodos da sra. Drummond nos permitiu antecipar as
demandas das estações. Eu havia negociado termos favoráveis com alguns
dos novos fornecedores em Wichita, Saint Louis e até mesmo Chicago. E
havia colocado os sistemas em seu lugar para manter os garotos bem
abastecidos com tecidos básicos.
Ao mesmo tempo, construíra um negócio bem sucedido como
modista. Aprendi muito no processo sobre as dificuldades de lidar com
mulheres que, decididamente, tinham tempo demais nas mãos. Eu havia
enfrentado desafios de interpretar catálogos e anúncios publicitários de
vendas para encontrar os tecidos de melhor qualidade com o preço mais
baixo. Aprendi a explorar minhas habilidades no desenho para interpretar os
desejos de minhas clientes. Me ensinei a continuar produzindo vestidos que
não desviassem muito do desenho original e, ainda assim, incorporasse
ideias que invadiam minha mente enquanto analisava o caimento de um
tecido e as propriedades dos ornamentos.
Quando chegamos ao seminário, eu era uma garota imatura com um
bebê ilegítimo. Estava de luto por minha mãe e incapaz de olhar muito mais
adiante do que a ponta do meu nariz. Agora, eu via o futuro como uma
paisagem infinita de possibilidades.
Se ao menos pudesse escapar da armadilha na qual havia
involuntariamente entrado.

O amanhecer ainda não tinha irrompido quando carregamos a carroça


e partimos do seminário. Porém, no momento em que viramos para o oeste
o sol nasceu, e os primeiros raios baixos atingiam as centelhas de geada que
agarravam-se a cada caule de grama ou casulo de sementes secas.
Tess e Sarah estavam profundamente adormecidas, protegidas pela
cobertura de lona da carroça. Os únicos sons que eu ouvia eram o avanço
firme e laborioso dos cascos dos cavalos, o leve bufar áspero de sua
respiração que lançavam baforadas de névoa em direção ao céu seco e o
rangido-vibração-rangido da carroça.
Observamos o fazendeiro lubrificar generosamente a engrenagem e as
rodas do barril pendurado num dos lados da carroça. Ele havia demonstrado
com orgulho o novo rifle escondido num compartimento perto do banco do
condutor. Tess e Sarah guincharam e puseram os dedos nos ouvidos
enquanto ele manipulava a alavanca e disparava no campo vazio algumas
vezes antes de recarregar.
Judah segurou as rédeas. Andrew, designado para nos levar, estava
agora mesmo na cama, sofrendo de agonias por ter comido um porco
contaminado num certo estabelecimento em Fork Crossing. Eu estava
relativamente certa de que não poderia haver o dedo de Judah nesta
sequência de eventos. Minha inquietação ao perceber que não íamos, afinal,
ter mais alguém conosco, logo se transformou em raiva contra o infeliz do
Andrew.
Aquilo nunca teria acontecido se a sra. Drummond estivesse sendo
como era antes. Ela era exigente para saber exatamente onde os criados
estavam o tempo todo. Mas a sra. Drummond não acordava há dias. Ela
ficava deitada imóvel, a pele de um amarelado como cera e os olhos
afundados, uma imagem da morte em vida. Tess estava bastante aborrecida
quanto a deixá-la desta forma, e soluçou sobre ela como se fosse um
cadáver – o que, na verdade, quase era. Não achei que fôssemos vê-la de
novo nesta vida, e me despedi com algumas palavras murmuradas de
bençãos e perdão. Ela havia, afinal de contas, feito apenas o que
considerava certo.
Judah estava silencioso ao meu lado, exceto falando às vezes com os
cavalos. Eu tinha tempo o bastante para pensar.
Talvez até devesse estar com medo, refleti, mas não estava. Estava
exultante por ficar livre do prédio do seminário e do lado de fora, nas
planícies, com a vasta paisagem de grama bronze e dourada diante de nós,
balançando na brisa seca e fria, que passava em rajadas e vórtices.
Eu não estava com frio – o fazendeiro nos fornecera dois couros de
búfalo e Judah havia envolvido uma delas em meus ombros. A pele espessa
e áspera dentro formavam um casulo surpreendentemente quente, então
apenas meu nariz e bochechas pinicavam com o ar gelado. Dentro do
vagão, Tess e Sarah se encolhiam sob uma coleção de cobertores indianos
bastante limpos.
O tédio libertou minha mente para percorrer suas memórias.
Infelizmente, a imagem que invadia com frequência meus pensamentos era
aquela do professor Wale, com os olhos arregalados, e um buraco sangrento
na cabeça.
Era estranho quão fácil era para as pessoas aceitarem que os mistérios
que circundavam sua morte – e a do dr. Adema – provavelmente nunca
seriam resolvidos. É claro, a do dr. Adema poderia ter sido um acidente –
mas a do professor Wale com certeza não. A fronteira atraía o tipo de
homem bruto que poderia matar por nada; isso era o que as pessoas de
Springwood diziam. Cometer um assassinato porque um homem o olhou de
soslaio. Ou indígenas – algum tipo de retaliação por uma terra perdida para
a causa da doutrina do destino manifesto.
Estremeci sob o couro do búfalo e Judah sentiu.
— Está com frio? — Ele virou a cabeça em minha direção e sua
respiração embaçou a gola de pele do seu sobretudo. Ele conseguia parecer
não sentir frio nenhum, pois estava bem vestido para a jornada com botas
altas revestidas de pele e um chapéu bem como eu imaginava que um
caçador de peles usaria, além de luvas de couro revestidas de pele cobrindo
suas mãos delgadas.
Suas roupas sempre pareciam novas, percebi, lembrando quão gastas
as roupas de cavalgada de Martin eram. Sempre pensei em Martin como um
homem bem vestido, mas a elegância da alfaiataria de Judah parecia estar
um passo adiante. Era estudado, de alguma forma, como se pensasse muito
em se vestir com precisão para cada evento.
— Estou bem. — Minha voz soava alta depois do silêncio entre nós, e
me senti estranhamente envergonhada. Para disfarçar minha confusão, girei
no “assento de preguiçoso” – mas como alguém podia ser preguiçoso num
banco de madeira quicando a cerca de três metros do chão era um mistério
– e espiei para dentro do vagão sombrio, notando os montes imóveis nos
cobertores.
— Iremos parar quando elas acordarem — Judah falou. — Você deve
lembrar que a estrada desce para um barranco. Há uma nascente ali,
rodeada por pedras, então podemos acender o fogo e aquecer o café, assim
como dar água aos cavalos.
— Estou surpresa com o quanto conhece a estrada.
— Eu cavalgo algumas vezes, quando consigo pegar um bom cavalo
emprestado. — Judah pressionou levemente os Percherons. O cavalo da
esquerda estava estabelecendo um ritmo um tanto lento, mas as orelhas de
seu irmão sacudiram para frente e para trás com o som. — Estou ansioso
pelo dia em que eu possa pagar por meu próprio cavalo — Judah disse. —
Talvez uma carruagem. É cansativo ser um homem pobre, Nell.
Não precisava adivinhar de quem seria o dinheiro que compraria o
cavalo e a carruagem. Sorri de uma forma evasiva, puxando o couro de
búfalo com mais firmeza ao meu redor.
Judah estalou o chicote sobre o garrote do cavalo da esquerda. Sua
pele se contraiu e ele acelerou um pouco o passo.
— Essa é uma criatura preguiçosa — ele falou. —Está bamboleando
como a mais lenta das mulas. Cavalos como esses deveriam sair mais.
— Talvez ele precise de um descanso? — sugeri.
Judah riu.
— Talvez. Mas esta viagem é muito melhor do que puxar um arado
ou uma carroça carregada de porcos ou trigo. Esses animais são criados
para o trabalho pesado. Darei uma olhada nele quando pararmos. Algo pode
estar incomodando-o, um lugar ferido ou um machucado mal curado.
— Judah, como conhece tanto sobre cavalos? — A curiosidade levou
a melhor sobre mim. — Pois não parece passar muito tempo do lado de
fora.
— Cresci perto deles. — A resposta foi curta e parecia designada a
evitar quaisquer outras questões, mas persisti.
— Em Baltimore? Sua família tinha muitos cavalos? — Eu não sabia
nada sobre os antecedentes de Judah, já que nunca mencionara um pai ou
uma mãe, irmã ou irmão. Alguém poderia pensar que tinha vindo ao mundo
recém-criado, um anjo caído do céu, talvez. Assim que esse pensamento
cruzou minha mente, deu lugar à percepção de que um anjo caído era um
demônio.
Judah apenas sorriu seu sorriso deslumbrante, os dentes brancos e os
olhos violeta brilhando sob a luz do sol.
— Você ficou muito curiosa de repente. Passei muito tempo com
cavalos e depois me tornei um acadêmico. Prefiro o último.
Seu tom não tolerava mais nenhum questionamento e ele olhou para a
frente, me presenteando com seu perfil perfeito, mas nenhuma resposta em
absoluto.

Chegamos à ravina cerca de uma hora depois. Judah guiou os cavalos


com habilidade pela inclinação leve onde a estrada mergulhava, segurando
as rédeas com a mão direita e debruçado sobre o freio pesado da carroça
com a esquerda com uma tranquilidade praticada. Havia passado muitas
horas conduzindo antes de chegar ao seminário, percebi.
Me perguntei, não pela primeira vez, como fora tão cega pelos
encantos pessoais de Judah que omitira em perguntar quem exatamente ele
era. Ali na fronteira, quase nenhum de nós tinha raízes ou antecedentes. À
parte de algumas famílias cujos pais ou avós chegaram antes da guerra para
lutar por uma vida nas planícies, tendo apenas alguns indígenas como
companhia, todos nós éramos novos habitantes de um lugar que se construía
ao nosso redor. Era fácil ignorar o fato de que todos tínhamos histórias. Eu
pensei – como havia feito muitas vezes na última semana – na carta
seguindo seu caminho até Martin, cuja celeridade não me deu tempo para
ler. As pistas que ela continham sobre o passado de Judah poderiam me
ajudar a decidir nosso melhor plano para o futuro.
Um enorme bocejo interrompeu meus devaneios. Sarah havia
acordado, e logo garantiu que Tess acordasse também. Agora que
estávamos na ravina, árvores ladeavam a estrada e não demorou muito até
chegarmos ao grupo de pedras que indicavam a nascente, esparramada
descuidadamente ao longo do paredão da ravina, como se deixada ali pela
mão de um gigante. Revigoradas pelo ar frio e cortante e pela luz do sol – e,
no caso de Tess e Sarah, por um bom descanso – nós três alegremente nos
atribuímos a tarefa de reunir madeira e fazer uma fogueira. Judah desatrelou
os cavalos e os levou até a piscina limpa, na qual eu tinha pegado um pote
cheio d’água para aquecer um pouco de café.
Na hora em que Judah retornou, eu consegui – com alguma
dificuldade e risco de colocar fogo em minhas saias – acender uma pequena
chama no meio de um círculo de pedras que obviamente estavam ali para
uso de outros viajantes. Ele assentiu em apreciação aos meus esforços e
pegou a pequena xícara que entreguei para com uma palavra de
agradecimento, mas uma ruga desfigurava a perfeição de sua testa.
— Há uma rachadura no casco daquele cavalo, e não notei antes. O
fazendeiro é um tolo por deixar isso acontecer com um animal tão valioso.
— É sério? — Os cavalos pareciam bem para mim. Judah os havia
atrelado de novo e prendido as sacolas com comida em seus cabrestos. Os
dois mastigavam com prazer, as orelhas sacudindo enquanto nos
observavam com seus olhos grandes e pacientes.
— Pode ser. Se algum cascalho entrou nela… Não consigo sentir
nenhum local quente, mas uma infecção precisaria de tratamento.
— E não pode fazê-lo?
— Não se tiver que cortar dentro do casco. Não tenho as ferramentas.
— Podemos fazer isso quando chegarmos, não podemos?
— Desde que a criatura nos carregue tão longe. Não posso conduzir a
carroça com apenas um cavalo.
Judah olhou para o céu, que agora estava invadido por nuvens à
deriva, redemoinhos amontoados em branco e cinza através dos quais o sol
brilhava com uma luz difusa mas, ainda assim, resplandecente.
— São dez horas aproximadamente, vamos levantar acampamento e
nos mexer. Quanto mais cedo chegarmos, melhor.
Capítulo quarenta e três

Confronto
— Nós paramos?
Afastei a pele de búfalo, cambaleei com os olhos turvos para uma
posição sentada, e comecei a arrumar meu cabelo.
O ar havia mudado, percebi. Assumira um frio úmido com um toque
de geada, pesado e agourento. Eu estava rígida por ter deitado nas tábuas do
vagão, com apenas um cobertor indígena entre mim e as várias saliências e
depressões que indicavam os compartimentos contidos no espaço do vagão.
Um estalo do chicote me assustou e tropecei para ficar de joelhos. Ao
meu lado, Sarah fez um barulho de reclamação e torceu a pele de búfalo em
seus ombros. A presença de Tess era denunciada por um monte sob a outra
pele. Ela havia se entocado bem embaixo das cobertas e se enrodilhado
como um grande arganaz.
Definitivamente havíamos parado. Consegui ficar de pé com
facilidade, sem entraves causados pelo sacolejar do vagão. Foi bem a tempo
de ver Judah se abaixar, com uma expressão de fúria no rosto. Segurando-
me no banco, que quicava suavemente em cima das molas, me inclinei para
fora sobre a barra de madeira e observei Judah inspecionar o casco do
cavalo da esquerda que agora o afastava do chão.
— Nossa sorte acabou, não é?
Eu podia ver por seu rosto que as notícias eram ruins. Na hora em que
chegamos ao final da extensa ravina e saímos da carroça para tornar o
trabalho dos cavalos mais fácil enquanto eles subiam a estrada íngreme e
inclinada, o cavalo da esquerda estabelecia um ritmo lento e incerto, suas
orelhas apontadas para trás enquanto Judah estalava o chicote para acelerar
a subida.
Desde então, tínhamos parado apenas para as necessidades mais
breves, e fizemos nossa refeição de biscoitos e frango frito enquanto
seguíamos adiante com lentidão. Sarah havia decidido que aquele era um
grande prazer e ficou exaustivamente tagarela por um tempo. A última
coisa que eu me lembrava antes de o sono chegar fora o zumbido de sua
flauta, que ela tocara numa eterna ascensão e descida das mesmas duas ou
três notas, de novo e de novo.
— Teremos que acampar aqui. Se eu tiver cuidado, posso descer
aquela encosta apenas com um cavalo e assim encontrarmos algum abrigo.
Judah indicou outra ravina, que corria num ângulo direto até a
estrada. Ela era sufocada por árvores e arbustos, e não havia qualquer trilha
através dela, mas a terra da encosta abaixo era bem compactada, como se
gasta pelos pés de gerações de caçadores.
— E quanto ao cavalo machucado? Não irá deixá-lo aqui em cima,
não é? Não haverá lobos? — Observei, preocupada, enquanto Judah
começava a desafivelar as faixas, praguejando em voz baixa.
— Ele provavelmente irá nos seguir assim que estivermos longe o
bastante. Cavalos não gostam de ser deixados sozinhos. Mas não posso
fazê-lo se mover agora; pois está agindo como se a perna estivesse
quebrada. Infecções são doloridas.
Levou um pouco de tempo para acordar nossas companheiras e aliviar
a carga da carroça o máximo possível para o esforço de guiá-lo encosta
abaixo com apenas um cavalo. Nós estávamos todas em silêncio enquanto
caminhávamos atrás do veículo pesado. Não podíamos ver o sol, escondido
como estava atrás de um amontoado de nuvens cinzas espessas, mas eu
sabia que o dia logo iria decrescer, sem luar ou luz das estrelas. Estávamos
retidos e não havia nada a fazer sobre isso até o amanhecer. Seria uma longa
noite.

Ficamos o mais confortáveis que pudemos. E o cavalo machucado


apareceu antes da escuridão cair e ficou, com a cabeça balançando, o mais
perto possível do seu companheiro mancando.
O clima de nossa viagem azedou. Judah estava taciturno e
demonstrava pouca paciência com os comentários repetidos de Tess e Sarah
sobre o frio, a escuridão e o puro isolamento do local.
Ao menos ficamos longe do vento, pensei, enquanto Judah e eu
iniciamos a tarefa de reunir madeira. E ao passo em que as árvores da
ravina formavam uma massa densa e impenetrável que sussurrava e
estalava como uma multidão de demônios, também forneciam bastante
madeira para o fogo. Arrumamos a carroça e nosso acampamento para que
nossas costas ficassem apoiadas no paredão da ravina e o fogo ficasse entre
nós e o acesso ao vagão.
— Não conseguiremos ver se alguém – ou alguma coisa – se
aproximar. — Judah passou a mão pelo queixo.
— É impossível ver qualquer coisa de toda forma — apontei num tom
brusco. A preocupação e os desconfortos da viagem estavam me deixando
irritada e havia o fardo adicional de tentar acalmar os medos de Tess e
Sarah. Eu me sentia desconfortável na presença de Judah e perturbada com
ele por ser tão seco com minha filha e companheira. Será que não conseguia
ver que precisavam de conforto? Eu também, a propósito, mas não deixaria
que Judah soubesse.
Tínhamos trazido comida mais do que o suficiente para a jornada de
apenas um dia, mas a viagem nos deixou famintos. O que restou
transformou-se em uma ceia escassa depois de eu ter dividido para que
tivéssemos o desjejum. E tão logo nossa refeição da manhã terminasse,
teríamos pouco sobrando.
— Você terá que cavalgar até os Lombardis assim que o dia raiar —
falei para Judah, assim que Tess e Sarah se recolheram para se aconchegar
sob os cobertores e em uma das peles. Eu havia cedido o outro a Judah, que
planejava dormir perto do fogo.
— Estou ciente disso. — Havia um tom de zombaria na voz de Judah
e seus olhos oblíquos guardavam uma expressão de leve desprezo.
— Estou ciente de que está. — Minha própria voz soava rabugenta.
— Apenas quero ter certeza de que cada um sabe o que o outro está
fazendo. É mais seguro desta forma. E preciso explicar as coisas a Sarah e
Tess, então quero ser clara.
— Não será tão difícil explicar a elas o que fará — Judah falou. —
Você fará precisamente nada enquanto eu assumo o risco de uma cavalgada
sem sela, com cerca de duas horas de duração.
— E acha que eu não preferiria assumir seu papel? — repliquei,
ofendida. — Se até agora não sabe que não gosto de tédio e passividade,
não me conhece de forma alguma.
Judah torceu os lábios.
— Quando estivermos casados, irá descobrir quão bem te conheço.
Eu havia passado o dia freando minhas ansiedades quanto a Judah em
geral, e essa viagem em particular, pelo bem de minha filha e de minha
amiga. Passei a semana preocupada com a carta que deveria, ou não,
guardar informações sobre Judah que poderiam, ao menos, me dar um
motivo incontestável para romper com ele. Eu estava cansada, meus pés
gelados e meu estômago roncava. Então talvez tenha sido perdoável eu ter
dito o que disse:
— Se por acaso, realmente me conhecesse, perceberia que não
deveria ter tanta certeza assim.
Eu soube de imediato que fiz exatamente o que não pretendia fazer. O
erguer alarmado da cabeça de Judah e o brilho em seus olhos – mais do que
apenas o reflexo das chamas da fogueira – indicavam que meu comentário o
colocara em alerta. Recuei internamente. Então, como uma mola de aço se
retraindo em si, a coragem voltou e enrijeci minha espinha contra a reação
dele.
Judah ficou silencioso por um longo momento. Quando falou, sua voz
era como o ronronar de um gato, baixa e poderosa no silêncio mortificante
da noite de inverno.
— Você está repensando. — Seus olhos se arregalaram um pouco
quando a percepção o atingiu. — Achei que estava um pouco distante
porque… Bem, imaginei que estivesse se esforçando para tirar aquele
imbecil do Rutherford de sua mente. Um homem que não pode permanecer
fiel à esposa em pensamento mas não tem a força nas entranhas para agarrar
a oportunidade a qual qualquer homem de fato com sangue quente iria se
lançar. — Ele riu, mexendo no fogo com um graveto do suprimento que
havíamos empilhado.
— Não diga essas coisas sobre Martin. Ele está tentando preservar
sua honra, e a minha.
— Você não tem honra. É a mãe de uma criança bastarda. A única
honra que pode sequer obter é se casando, não entende isso? É realmente
tão estúpida que irá deixar passar o único pedido que recebeu em quatro
anos? Exceto por aquele maricas do Lehmann, é claro, mas dificilmente ele
contaria; já que foi bastante rápido em mudar de ideia assim que descobriu
a verdade. — Judah arremessou o graveto no fogo, que agora queimava
alto, as chamas lançando centelhas em direção às nuvens.
Minhas mãos estavam tremendo, e as cerrei em punhos ao lado do
meu corpo.
— Prefiro viver sem honra do que viver com você, Judah.
Ergui-me rapidamente do trecho de pedra plana no qual estava
sentada. Quando o fiz, notei que alguns flocos de neve rodopiavam
descendo do céu, acariciando meu rosto com dedos suaves e frios.
— Você está cansada e ansiosa. — Judah também se levantou e ficou
entre mim e a carroça. — Venha, Nell, precisa dormir. De manhã vamos
chegar à mansão e irá se lembrar de todos os bons motivos que tem para se
tornar minha esposa. — Ele estendeu a mão, o sorriso bonito de volta ao
rosto; mas eu a afastei e dei um passo para trás.
— Não, Judah. Nunca.
— Devo lembrá-la que está prometida a mim? — O sorriso
desapareceu. Sob a luz do fogo, os olhos oblíquos de Judah pareciam lascas
de pedra. — Cam Calderwood praticamente anunciou nosso noivado na
frente da cidade. E você veio comigo, de bom grado, com apenas uma
criança e uma imbecil como acompanhantes. Isso poderia ter apenas uma
interpretação possível. Se voltar desta viagem como uma mulher solteira,
sua reputação terá evaporado como o orvalho da manhã. Especialmente se
eu deixar que saibam que nossos abraços, por assim dizer, ultrapassaram os
limites da adequação. E essa seria a verdade. Se está pretendendo flertar
com um homem, Nell, não deve deixar que ele a beije – ou coloque o braço
ao redor de sua cintura – assim.
Ele se moveu tão rápido quanto uma cobra dando o bote, envolvendo
minha cintura com as duas mãos e então enganchando um dos braços ao
meu redor, para que me prendesse de encontro ao seu corpo.
— É claro, eu poderia garantir você aqui e agora — Judah murmurou,
seu hálito quente em minha bochecha. — Já que é praticamente minha
esposa, Nell. Nós devemos ficar juntos e é tarde demais para ser caprichosa.
Se renda a mim e lhe farei o favor de esquecer a conversa que acabamos de
ter.
A mão que não estava ao redor de minha cintura moveu-se para cima,
seguindo a linha do meu corpete até o inchaço de meus seios.
— Não — eu disse fracamente.
A mão apertou e, de repente, minha mente foi inundada com a
lembrança de um dia em maio, quatro anos atrás, quando Jack Venton tinha
feito algo bem similar…
— NÃO.
E, de súbito, perdi o controle de mim mesma e me tornado uma
mulher louca chutando e me contorcendo, as mãos balançando
desesperadamente enquanto tentava arranhar o rosto de Judah com as
unhas. Eu podia me ouvir fazendo um som peculiar, um tipo de grito
constante misturado a gemidos e arquejos enquanto lutava para me livrar.
Eu o teria mordido se conseguisse me aproximar o bastante com os dentes.
Distribuí socos em seu rosto, pescoço e ombros até ele soltar minha cintura
num esforço para se defender e então o empurrei o mais forte que pude para
que houvesse um pouco de distância entre nós.
Mas não o bastante. O golpe pareceu vir de lugar nenhum, como um
raio em minha maçã do rosto que chocou em minha cabeça como se eu
tivesse dado de encontro a uma parede de pedra. Cambaleei, me
equilibrando bem a tempo de pisar no fogo. Agarrei as saias, verificando
rapidamente se havia trechos em brasa, enquanto tropeçava para o lado e
para trás. Quando o fiz, a dor surgiu, uma dor tão feroz que os dois olhos
começaram a lacrimejar e Judah se tornou um borrão escuro em meio às
sombras da noite.
Ninguém nunca me batera antes. E com certeza ninguém havia me
chamado do nome que saiu pela boca de Judah. Dei a volta na fogueira,
tentando pôr as chamas entre nós e também garantindo que ele não
estivesse entre mim e a carroça.
Tropecei num galho comprido que despontava do fogo. Judah estava
se aproximando novamente, e eu sabia que no mínimo, ele me bateria.
Segurei o galho, puxando o extremo incandescente das chamas e
apontando-o para Judah. Era longo o bastante para mantê-lo a mais de um
braço de distância. Envolvi as duas mãos ao seu redor, enquanto ele tentava
esquivar-se, seguindo seus movimentos o melhor que eu podia com o calor
vermelho que brilhava mais forte quando o vento o atingiu por um instante.
— Vá embora. — Minha voz soou estranha, calma e fria, ainda que
estivesse fazendo um esforço desesperado para ver, e minhas pernas
tremessem. — Se afaste de nós antes que eu empurre isso em seu rosto.
Nunca mais irá pôr as mãos em mim de novo; e nunca verá um centavo do
meu dinheiro, quaisquer que sejam os truques que tente. Estamos
terminados, Judah. Completamente terminados.
— E para onde, precisamente, devo ir? — Judah questionou, com
uma nota de escárnio na voz. — Estamos no meio da pradaria, e uma
tempestade de neve provavelmente está chegando. Você tem pavor de neve,
Nell. Quer mesmo que eu a deixe sozinha?
— Eu não estou sozinha. E mesmo se estivesse, estaria mais segura
numa tempestade de neve, e com lobos ainda por cima, do que estaria com
você, Judah. Leve o cavalo se quiser – duvido que eu seria capaz de usá-lo
de qualquer forma, e estaríamos mais seguras na carroça do que comigo
tentando cavalgar ou conduzir. O pastor Lombardi virá procurar por nós;
provavelmente já está procurando, sendo que ainda não chegamos. Tess e
eu manteremos o fogo aceso e não estamos tão longe da estrada para ele nos
encontrar. E é melhor que tenha partido há tempos. Não me importo para
onde vai, volte para o seminário se quiser e invente uma história sobre mim.
Veja se seus preciosos esquemas de fazer dinheiro se tornam alguma coisa
agora.
— Um belo discurso, minha cara Nell. — A luz do fogo cintilou nos
cachos de Judah. — Continue falando. Este galho logo terá esfriado o
bastante para que eu o pegue e então… E então eu vou atirar em você.

Judah rodopiou e eu quase derrubei o galho. A luz do fogo brilhava


laranja na camisola branca de Tess, a alguns metros de distância de onde
estávamos. Uma tora moveu-se atrás de nós e uma chama se ergueu,
refletindo no tambor do rifle que ela segurava nas mãos.
— Não seja ridícula. Você não sabe como usar isso. — Judah deu um
passo para frente, depois pareceu pensar melhor e parou.
— Vou colocar meu dedo nessa coisa, não é? Observei o fazendeiro
fazer isso. — A voz de Tess tremia, mas eu tinha a impressão de que era
mais de frio do que de medo. No entanto, estava terrivelmente com medo
por ela. Judah estava certo: ela de fato não sabia como usar uma arma. Mas,
na verdade tinha o tambor apontado diretamente para ele, a uma distância
de aproximadamente três metros.
— Se você se mover, eu irei tentar — Tess falou. — Eu observei
atentamente; puxar para trás e então puxar essa alavanca para frente e para
trás e depois para trás de novo.
— E quando errar, desejará nunca ter nascido — falou Judah
calmamente, enquanto dava outro passo à frente.
Balancei o galho num arco amplo. Por alguns segundos, o tempo
pareceu passar lentamente e pude ver a madeira brilhar enquanto o
movimento a alimentava com um pico de ar. Então ela se conectou com a
parte de trás da cabeça de Judah e ele caiu com o rosto de frente para o
mato seco no chão da ravina.
Tess guinchou e derrubou a arma, que disparou de imediato, fazendo
com que os cavalos – que, felizmente, estavam do outro lado da carroça –
bufassem e empinassem com o susto. Tess gritou e correu para onde eu
estava, o galho ainda em minhas mãos, olhando boquiaberta para a forma
escura no solo à minha frente.
— Você matou ele? — Seus dentes estavam batendo.
— Acho que não. — Entregando o galho a Tess, caí de joelhos e
coloquei a mão nas costas de Judah. Para meu alívio, senti o constante subir
e descer de sua respiração. Me levantei rapidamente. — Ele está bem. —
Ofeguei enquanto me erguia. — Eu nem tinha a intenção de derrubá-lo.
Estava apenas tentando distraí-lo. — Estremeci enquanto a dor disparava
pelo lado esquerdo do meu rosto e tentei tocar as maçãs com a ponta dos
dedos. — Mas ele mereceu.
— O q-q-q-que nós vamos f-f-f-f-fazer? — perguntou Tess. Com o
frio e a agitação, o gaguejar dela estava tão ruim que eu mal conseguia
entender o que falava. Olhei para ela, percebendo de novo que, ainda que
estivesse de meias, tudo que havia entre ela e o vento enregelante era uma
camisola de flanela. Como havia descido da carroça sozinha, eu não sabia,
ainda mais com um rifle nas mãos.
Flocos suaves de neve acariciaram meu rosto, dolorosamente frios no
machucado. Olhei para Judah, que deixou escapar um leve gemido, os
dedos se contraindo.
— Nós vamos voltar à carroça, rápido — falei. — Irá vai congelar
aqui fora desse jeito, e ele vai se levantar num instante e virá atrás de nós.
— Temos que levar o rifle. — Tess pegou a arma e o apontou na
direção das árvores, bem longe dos cavalos. — Veja, você faz isso… — e
ela manuseou a alavanca de forma estranha, mas vigorosa, deixando
escapar um pio alto de triunfo quando o cartucho usado saltou para fora do
topo do tambor. — Agora está pronto para disparar novamente. Acho que
você deveria segurá-lo, Nell; é mais forte que eu e suas mãos são maiores.
É difícil de fazer isso, sabe — ela acrescentou em tom informativo.
— Eu não acho que deveríamos nos arriscar com armas. — Observei
o rifle com cautela, ao mesmo tempo tentando manter um olho em Judah.
Literalmente um olho, já que o outro parecia estar se fechando. Todo aquele
lado do meu rosto parecia tenso e latejava assustadoramente.
— Você não quer que ele o pegue, quer? — Tess empurrou a arma
para mim e seguiu de volta para a carroça, seus passos estranhos nas pernas
geladas.
De fato, eu não queria. Segurando o rifle em meus braços, mantendo
o dedo bem longe do gatilho e o tambor apontado para o céu, recuei na
direção da carroça e subi, puxando Tess depois de mim.
Tess entocou-se embaixo dos cobertores – eu conseguia ouvir seus
dentes batendo – antes que eu pudesse aconselhá-la a vestir algumas roupas.
Suspirei e peguei o cobertor extra, puxando-o ao redor de meus ombros,
pois havia deixado a outra pele perto do fogo e agora que a adrenalina
diminuiu, estava começando a me sentir gelada até os ossos.
Peguei o rifle e me deitei sobre a barriga no chão da carroça.
Amaldiçoei as hastes de aço do espartilho, que pressionam minha carne no
ângulo mais desconfortável. Eu conseguia ouvir o som de Judah ficando de
pé –tinha quase certeza de que ele estava murmurando imprecações em voz
baixa – e, em um momento, vi sua silhueta contra o brilho do fogo.
— Tess estava certa. Nós sabemos mesmo como disparar essa arma
— falei o mais calmamente que pude enquanto ele andava em direção à
carroça. — Nós experimentamos. — Aquela não era estritamente a verdade,
mas como saberia? — E agora estou apontando-a para você, Judah. Não irei
deixar que se aproxime de mim novamente. Então sugiro que pegue aquele
cavalo e cavalgue de volta para o seminário. Pode contar a eles o que
quiser. Eu sei que o pastor virá nos buscar em breve e ele irá trazer os
homens da missão. Se ainda estiver por perto até lá, irei garantir que todos
saibam que você bateu numa mulher e ameaçou outra. Por isso, estará
melhor se for embora. Você é um bom cavaleiro e pode estar de volta ao
Vida Eterna antes do amanhecer.
Judah estava imóvel, parecendo considerar minhas palavras.
Finalmente, ele deu de ombros.
— Muito bem — falou. — Precisarei do cabresto, está pendurado na
frente da carroça.
— Pegue-o — respondi. — Mas saiba que irei atirar se der um passo
em minha direção.
Me movi, me sentando, enquanto a silhueta escura se movimentava
até mim. Meu coração martelava tanto que eu podia sentir a pulsação latejar
na bochecha machucada, mas Judah não fez nada exceto desprender o
cabresto e então se afastar da carroça.
— Você pode não sobreviver a isso, sabe disso, não? — ele disse em
tom de conversa. — As planícies são um lugar muito grande e perigoso.
Uma mulher, uma imbecil e uma criança sozinhas no meio do inverno… Os
lobos irão te pegar, Nell.
Estremeci, mas me recusei a permitir que suas palavras penetrassem
em meu cérebro.
— Vá embora, Judah. Fique longe de mim e não pense em se
aproximar novamente.
— Oh, nós não terminamos. — Eu não conseguia ver seu rosto, mas
podia imaginar o brilho nos belos olhos violeta-azulados. Ele esfregou a
parte de trás da cabeça e, quando falou, havia um sorriso em sua voz. —
Não terminamos mesmo, Nell. Estou ansioso para nosso próximo encontro.
Senti meus ombros relaxarem um pouco enquanto eu o ouvia
caminhar na direção dos cavalos, mas mantive a arma a postos. Pude
escutá-lo conversar com o cavalo que não estava machucado, deslizando o
freio por sua cabeça; mais alguns minutos se passaram até que ele
cavalgasse à minha vista. O cavalo estava sem sela, eu sabia, mas sob a luz
fraca do fogo, pude ver que Judah estava sentado sobre as costas largas com
uma tranquilidade despreocupada, a coluna ereta e quase elegante. Ele não
se machucaria, pensei, e estava satisfeita. Eu não queria que minhas ações
fossem a causa de sua morte, não importa o quanto eu o quisesse longe.
— Eu a verei em breve, Nell. Se os lobos não a avistarem primeiro.
— Ele virou a cabeça do cavalo e então ouvi o chacoalhar das pedras soltas
enquanto incitava o animal encosta acima, na direção do topo da planície.
Bem pouca neve havia caído – um mero polvilhado repousava entre a
grama e os caules mortos das plantas – e os flocos de neve agora caíam
mais espaçados. Fiquei deitada observando o brilho do fogo, não ousando
me preparar para dormir, mas também relutante em descer da carroça.
Então, quando o sono finalmente me tomou apesar de todos os esforços,
meus últimos pensamentos embaralhados foram um caos confuso de fogo e
gelo. Meus sonhos foram assombrados pela imagem de Judah – usando a
expressão que eu vislumbrara enquanto dirigia o soco na minha cabeça –
circulada por um halo de luz branca.
Capítulo quarenta e quatro

Perigo
— Nada.
Eu tinha retornado de minha viagem de reconhecimento até o topo da
ravina. Afundei a cabeça nas mãos, o desespero me inundando. Do lado de
fora da carroça, alguns flocos de neve flutuavam para juntar-se a outros no
solo.
Havíamos conseguido reavivar o fogo. Experimentei um momento de
terror quando acordei, fria e rígida em cada membro, para descobrir o fogo
apagado. Pior ainda foi ver que o cavalo machucado partira. Por mais inútil
que o animal tenha sido para nós, poderia ao menos nos avisar sobre os
lobos. E lhes daria algo a que caçar, ao invés de mim, Tess e Sarah, pensei
friamente.
— Você está muito gelada, Nell. Não deveria ter ficado lá em cima
por tanto tempo. — Tess puxou a pele de búfalo sobre meus ombros.
— Vou ficar perto do fogo em um minuto. Eu só queria conversar
enquanto Sarah ainda está dormindo. O que faremos? Perdemos metade do
dia aguardando e ninguém apareceu. — Enfiei as mãos, geladas apesar das
luvas, de volta sob as axilas. — Não temos nenhuma comida, exceto pelo
biscoito que guardei para Sarah, e talvez em três ou quatro horas ficará
escuro novamente. Seria lamentável provar que Judah estava certo.
Seria mesmo. Pelo bem de Sarah, eu tentara fazer graça da situação
durante toda aquela longa manhã. A havia mantido ocupada reunindo
madeira para o fogo, dizendo a ela que eu tinha caído e o sr. Poulton fora
buscar ajuda. Tess, corajosa, fez jogos com Sarah dentro da carroça
enquanto eu mantinha uma vigília solitária o máximo de tempo possível na
estrada.
Eu esperei, contra toda a esperança, ver manchas em movimento no
horizonte que significariam que o pastor Lombardi viera nos buscar. Mas
nada se moveu no ar frio, exceto um eventual pássaro. E mesmo com o rifle
no chão ao meu lado, eu estava num estado constante de terror que uma
matilha de lobos fosse esgueirar-se sobre mim. Ou que iriam atacar a
carroça e eu encontraria Sarah e Tess estraçalhadas até a morte…
Ou, sendo mais realista, que a neve cairia com força e nós ficaríamos
completamente presas. Até então, a nevasca havia sido leve. Não mais que
um centímetro de pó branco polvilhava o solo, acomodando-se entre a
grama e borrifando os galhos nus das árvores da ravina como um açúcar
fino. Mas eu tinha certeza de que estava mais frio do que na noite anterior.
Havia algo de sinistro nas nuvens cinzentas pesando, que pareciam nos
pressionar para baixo do céu vasto.
— Se nevar muito, não irá conseguir se movimentar tão rápido. — As
palavras de Tess ecoaram meus pensamentos. — Ou talvez não consiga de
forma alguma. Acho que se você vai, Nell, deveria ser logo.
— Eu sei. — A ideia de tentar a estrada a pé estava na minha mente
desde a manhã. Tess havia se oposto de início, e estava perfeitamente
correta em dizer que o curso de ação mais seguro era ficarmos paradas e
esperar por um grupo de busca. Mas à medida que o dia se arrastava e as
nuvens escureciam, a possibilidade de ficarmos presas em uma tempestade
de neve intransponível nos colocara em um estado de espírito bem menos
seguro.
Quando fomos forçados a acampar, Judah havia estimado que
estávamos a cerca de duas horas de distância dos Lombardis. Tudo que eu
tinha que fazer era caminhar ao longo da estrada por talvez três ou quatro
horas – pois tinha certeza de que a carroça não viajaria tão rápido – e
encontraria a missão e direcionaria os esforços de resgate para o lugar certo.
— Você precisa levar a pele de búfalo, Nell — Tess falou. — Temos
cobertores o bastante. Mas é uma pena que o sr. Poulton tenha levado o
outro. Foi descortês da parte dele.
— Não acho que a cortesia estivesse em primeiro lugar na mente dele
— falei, tocando com cuidado o rosto dolorido. Punhados de neve, raspados
da grama na beira da estrada, diminuíram o inchaço ao custo de dedos
vermelhos e feridos e agora eu conseguia ver com meu olhos esquerdo
novamente. Mas o desconforto se estendia da maçã do rosto à orelha, quase
até a linha do maxilar e subindo pela têmpora. Eu apenas podia imaginar
qual era minha aparência.
Tess me observou por um minuto enquanto eu fitava a frente da
carroça, minha mente em um turbilhão de dúvidas.
— Se decida, Nell — ela falou. — O que quer que faça será certo
perante meus olhos, mas se decidir mesmo ir, agora é o melhor momento.
Pois, se for quando Sarah acordar, ela irá gritar e chorar, e isso será difícil
para todas nós.
Assenti, estremecendo quando o movimento causou uma dor
lancinante em meu rosto. Discutimos sobre isso cem vezes. Agora era hora
de agir.
— Vou aumentar o fogo antes de partir — eu disse. — E você segure
com firmeza aquele rifle, Tess.
Com um olhar de anseio para a forma adormecida de minha filha,
abracei Tess apertado e então peguei a pele de búfalo que estendia para
mim.
— Diga a Sarah… Diga que eu a amo e não queria deixá-la.
Fiz uma pilha alta na fogueira, acrescentando os galhos mais grossos
que pude encontrar na esperança de que mantivessem o calor por várias
horas. E então, com um último olhar para a carroça, joguei o couro de
búfalo sobre os ombros, sua pele espessa e áspera me envolvendo em seu
calor, e parti mais uma vez subindo a encosta que levava à estrada.
— Cuide de mim, mamãe — sussurrei para o céu. — Me diga o que
fazer.
Por algum motivo, lembranças de minha mãe estavam se
aglomerando como um jorro durante todo o dia. Houve momentos em que
sua presença pareceu quase tangível. Eu poderia jurar que uma ou duas
vezes senti seu perfume no vento cortante e carregado de neve. Assim que
comecei a caminhar o mais rápido que podia, a cabeça abaixada para evitar
que o vento penetrante deixasse meu rosto ainda mais dolorido, agarrei-me
à memória dela. Como se, ao final da estrada, fosse descobrir meu lar.
E ainda assim… Não deveria ser meu pai quem eu procuraria naquele
vento uivante? Porque o que eu estava fazendo era exatamente o que ele
havia feito tantos anos atrás – saiu numa missão de resgate porque não pôde
aguardar a ajuda chegar. E morreu na neve, deixando para trás uma filha,
eu, quase da mesma idade que Sarah tinha. Talvez fosse o meu destino
repetir o dele.

Quando eu estava abrigada em segurança dentro da carroça, as


planícies pareciam imensas, mas amigáveis, uma paisagem de gramado
balançando e os fantasmas das flores do verão brilhando sob a luz do sol
gelada. Mas, agora que estava sozinha na estrada sob um céu cor de
chumbo e frio, a paisagem ondulante assumiu um aspecto sinistro.
À medida que minha marcha contínua vencia os quilômetros, a cada
passo sofrido, comecei a imaginar que caminhava ao longo da coluna de um
gigante adormecido, um Gulliver tão vasto que seu torso não tinha fim. Que
aquele gigante estava sonhando, não havia dúvidas. Não parecia possível
que as vozes que eu detectava, subindo e descendo como os avanços e
recuos de uma conversa apenas parcialmente ouvida, eram somente os sons
feitos pelo vento. Aquele vento no momento se tornara feroz e açoitava pelo
solo num rugido de velocidade que achatava a grama e jogava os brotos
amplamente enquanto eu passava por eles.
Eu estava andando há – uma hora, duas? Já não sabia mais – quando
as nuvens escureceram até um tom forte de chumbo. A neve começou a cair
com intensidade, primeiro em flocos suaves amontoados, mas logo em
cristais de gelo contundentes que agrediam os olhos e me forçavam a
caminhar com a cabeça curvada em defesa. O vento arremessava as lascas
de gelo para cima e sob o couro de búfalo que eu havia envolvido com
firmeza ao redor dos ombros. Ele roubou o calor das minhas pernas e
cintura tanto que tremores de frio moviam-se para cima para juntar-se aos
filetes de neve gelada escorrendo por meu pescoço.
Minhas mãos, mesmo cobertas por luvas, começariam a doer se
expostas por tempo demais ao vento cortante. Eu mudava sua posição com
frequência e sofria de um perda de calor todas as vezes que o fazia. Meus
pés não doíam – do frio, ao menos – porque simplesmente me recusava a
parar por um segundo sequer. Obstinadamente pus um pé na frente do outro
no ritmo das músicas que eu cantava em minha cabeça para bloquear todos
os pensamentos sobre o que estava fazendo e onde isso poderia dar.
Quando o vento mudou e a neve se tornou, mais uma vez, flocos
soltos e macios, ergui a cabeça com alívio, esperando apaziguar a dor no
pescoço. Apenas para descobrir que uma nova tormenta estava preparada
para mim. Agora, a neve fazia cócegas no meu nariz e nas bochechas,
fazendo-os formigar. Toda vez que eu usava a mão para esfregar o rosto, a
pele escorregava, e uma pequena cascata de neve se juntaria à investida
contra minhas roupas secas.
Depois de um tempo, percebi que estava repetindo as mesmas
palavras em voz baixa de novo e de novo e de novo.
— Na doçura aguardada, vamos nos encontrar na bela enseada.
Era minha última lembrança da voz de mamãe elevada numa música,
no verão depois que Sarah fora concebida, mas antes que qualquer um,
exceto eu, soubesse da minha desgraça. Ela havia tomado gosto pelo novo
hino que cantavam em nossa igreja, empolgada enquanto costurava,
arranjava as flores, ou verificava a correspondência. Sem que eu
percebesse, as palavras enraizaram em minha mente, apenas para
explodirem neste momento de perigo.
— Nós vamos cantar na bela enseada, as canções melódicas dos
benditos, e nossas almas não serão mais angustiadas, para a benção do
descanso nenhum suspiro.
Havia outros versos, eu sabia, mas não conseguia lembrá-los não
importa o quanto tentasse alcançar a memória da cantoria alta de mamãe,
abafada pela tapeçaria de nossa sala de estar. Sua boba, Nell, você
esqueceu, eu a ouvi dizer. Ou havia sido o vento?
Percebi que algum tempo se passara sem qualquer consciência do que
eu estava fazendo. Eu ainda estava na estrada? Meu coração deu um
sobressalto de medo e olhei amplamente ao meu redor. Sim, achei que
estava. Ao menos estava seguindo uma linha recortada de neve limpa e
branca que atravessava a paisagem irregular de relva e os pontos pretos dos
girassóis, suas pétalas há muito dissolvidas no chão.
Olhei para minhas botas, cobertas por uma leve camada de neve. Por
que eu havia parado? Por quanto tempo estaria lá?
— Não posso parar — murmurei baixinho. — Não me distraia,
mamãe, tenho que continuar andando. Me ajude a viver.
Na-DOÇURA… aguarDADA… Não, aquele era o ritmo errado, me
fazendo tropeçar. Eu não podia cair agora. Na-doçu-u-u-u-ra-a-guar-da-a-
a… Sim, assim estava melhor, eu podia mover-me mais facilmente.
Era de se pensar, com toda essa caminhada, que eu estaria mais
aquecida. Era estranho o quanto eu não parecia ser capaz de me aquecer.
Mas estava escuro, e a ausência do sol tornava tudo ainda mais frio. Há
quanto tempo estava frio?
Na-doçuuura… Talvez eu apenas devesse deixar a pele de búfalo cair.
Não me mantinha mais aquecida, afinal de contas, e era uma coisa terrível e
pesada. Ou talvez já estivesse aquecida, pois havia parado de tremer e isso
era bom. Poderia ir mais rápido sem o fardo da pele de búfalo…
— E então você vai MORRER-er-er… — o vento sussurrou para
mim e berrei em pavor, um grito disforme, sem palavras que rasgou minha
garganta e me deixou trêmula.
O horror da noite me invadiu como um relâmpago. Eu não iria
sobreviver, iria? Estava sozinha na neve, com quilômetros infinitos diante
de mim e quilômetros infinitos atrás. Eu havia tomado minha decisão, feito
minha aposta, e iria perder.
Então que seja, decidi, o momento de medo passando. Nós vamos
cantar no belo quebra-mar. Cerrei os dentes – ao menos, acho que o fiz, eu
mal podia sentir o rosto agora – e fiz o melhor para prender com mais
firmeza a pele de búfalo ao meu redor.
Eu nunca vi o mar, pensei. Ou eles queriam dizer uma enseada como
a do lago Michigan, cheia de mato e peixes mortos? Aquilo não era
particularmente bonito, mas era a única enseada que eu conhecia. Não,
queriam dizer oceano, decidi. O litoral era bonito? Eu esperava que
houvesse flores, em benefício de mamãe. Mas eu não pararia de andar, não
até me ver num quebra-mar que fosse, de fato, belo. Pronto, tinha minha
resolução.
Havia uma luz acima, mas já a viu antes. Era uma luz fantasma, tinha
certeza, porque parecia vir de uma fonte indefinida, apenas lampejos que
tornavam a neve dourada, mas não forneciam nenhum calor. Havia vozes
também, mas deveria ser o vento.
— Foi um lobo.
— Foi um grito.
— Lobos fazem sons assim, Martin. Você não esteve tempo o
bastante nas planícies.
Martin?
Abri a boca para gritar, mas apenas um gemido emergiu.
— Mamãe. — Não, aquilo estava errado, não estava? Ela estava na
bela enseada. Respirei fundo. — Martin! — Se ao menos a neve não tivesse
decidido começar a cair mais densamente. Escuro como estava, se a neve
parasse, a massa branca no chão com certeza me daria algo para ver.
A luz irrompeu à frente com total esplendor, como o sol saindo de trás
de uma nuvem, e me cegou. Ergui a mão para proteger os olhos e um
punhado de neve cascateou por minhas costas vindas da pele de búfalo
escorregando. Chorei fracamente em protesto, como uma criança que já
teve o bastante daquele dia e só quer ir para a cama.
Havia duas luzes, percebi. Uma ficou para trás e disse: “Você viu
aquilo?”, mas a outra lançou-se em minha direção, balançando
vertiginosamente de um lado para o outro. Eu estava prestes a protestar com
o movimento do solavanco quando a luz mergulhou em algum lugar perto
de meus pés e algo me envolveu com firmeza.
— Eu encontrei a missão — me ouvi dizendo. — Eu os encontrei, não
encontrei? Tess… e Sarah… Elas estão sozinhas… Volte comigo; vamos
buscá-las.
Meus pés sumiram debaixo de mim e meu estômago vazio balançou
quando o gigante sobre cuja coluna eu estava caminhando me girou no ar. A
pele de búfalo escorregou completamente para longe e ofeguei com o
choque do frio no meu peito e ombros.
— Pegue aquilo — ouvi o gigante dizer, e então as luzes começaram
a dançar, rodopiando como a neve. É melhor fechar os olhos, pensei, ou vou
enjoar. Senti o arranhar de um botão de encontro à minha bochecha e me
entreguei, grata, à escuridão.
Capítulo quarenta e cinco

Chalé
— Você está louca? — Martin perguntou. — Não, não responda.
Tome um gole disso.
Virei meu rosto para longe do cheiro horrível.
— Sabe muito bem que eu não bebo. — Aquela era minha voz, tão
distante e fraca?
— Só um gole, para reanimá-la. Nell, por favor. Não desmaie de
novo. Preciso de você, preciso que viva.
Bebi. Então tossi violentamente enquanto o álcool queimava minha
garganta. Sacudi-me, ficando ereta nos braços de Martin e abri os olhos.
— Assim está melhor. — Ouvi Martin dizer.
Era Martin. Ou isso ou uma alucinação extremamente convincente.
Uma alucinação teria bochechas barbeadas e um cheiro tão profundo de
cavalo e suor? E o outro rosto, o que estava olhando para mim como um
lunático…
— Reiner?
— A seu dispor.
Reiner Lehmann fez uma pequena mesura zombeteira. Ele estava
mais magro do que eu me lembrava, em especial no rosto, e seu cabelo
estava diferente de alguma forma, mais esparso, talvez, sob o chapéu largo.
Mas era, sem dúvidas, o rapaz que eu tinha visto pela última vez no dia em
que foi levado do seminário, acusado de assassinar o professor Wale.
— Como você e Martin… Não, não importa. Martin, Tess e Sarah
estão sozinhas numa carroça, numa ravina cheia de árvores que começa
perto da trilha. Precisamos voltar, agora, e buscá-las.
Ao menos essa foi a essência do que tentei dizer. Na verdade, havia
começado a tremer tanto que meu corpo inteiro vibrava, meus dentes
faziam um som como mármore estalando e eu mal conseguia encadear as
palavras umas nas outras.
— Nós precisamos aquecê-la — Martin disse e me moveu para que
eu me sentasse de encontro ao que pareciam ser tábuas lisas. — Lehmann,
vamos pegar toda a madeira que conseguirmos.
— Não! — Tentei gritar. — Tess e Sarah…
— Eu irei buscá-las — Reiner falou suavemente. — Mas você não
pode viajar. Deveria ver sua aparência. E o que fez com seu rosto?
Ele se moveu até – sim, era uma porta, onde raios estávamos? – e
olhou para fora.
— A neve diminuiu — disse. — Devo conseguir cavalgar desta
forma. Rutherford, deveríamos trazer seu cavalo para dentro. Ele não irá
gostar muito, mas se vai ficar com ela, não será nada bom deixar sua
montaria a céu aberto. Eu o levaria comigo, mas vai me atrasar. Além disso,
quando encontrá-las, será fácil carregá-las à minha frente.
Vi Martin assenti pela forma com que sua sombra se moveu.
Estávamos num chalé, percebi, uma estrutura firmemente construída de
toras regulares com uma lareira num extremo. Havia algum mobiliário –
duas cadeiras, uma mesa, até mesmo um estrado esculpido com as letras
H.E.-E.E. Mas o lugar não tinha janelas, e parecia abandonado.
Martin se moveu deliberadamente pelo chalé, pegando os entulhos no
chão sujo e os empilhando na lareira. Um som como a queda de pinos de
boliche indicavam que havia quebrado uma das cadeiras e colocado os
pedaços resultantes de madeira de um lado do fogo.
— Mas se eu n-n-não f-f-f-for com você, c-c-c-como irá encontrar o l-
l-l-local? — consegui perguntar.
— Uma ravina não é tão difícil assim de encontrar. Pelos céus, Nell, o
que estava pensando? Por que simplesmente não ficou na carroça? Eu juro
que vocês, malditas mulheres, dão mais trabalho do que valem… às vezes.
Reiner saiu do chalé e, um momento depois, conduziu para dentro um
capão robusto, sua pele felpuda de inverno generosamente polvilhada de
neve. Ele tirou a sela do cavalo enquanto o animal e eu olhávamos um para
o outro. Quando Martin riscou um fósforo e estimulou o fogo na lareira, o
cavalo moveu-se inquieto e se encostou nas toras do outro lado do chalé.
Reiner produziu um punhado de alguma coisa para comer. Depois de um
tempo, o animal ficou calmamente mastigando, enquanto o fogo ardia e
estalava, bastante tranquilo pelo fato de os humanos não demonstrarem
medo das chamas saltando.
Martin abaixou sobre um joelho e deslizou um braço ao redor de
meus ombros, o outro sob minhas pernas.
— Eu consigo andar — protestei.
A única resposta de Martin foi pressionar um beijo leve em meus
lábios e senti meu rosto enrubescer, mas Reiner já se preparava para partir.
— Comida — falei para ele. — Elas não comeram nada o dia todo.
Tem alguma?
— Muitas porções de gordura e carne — Reiner respondeu com
alegria. — Não se preocupe, Nell.
Ele observou enquanto Martin me depositava no chão liso perto do
fogo, curvando o corpo esguio numa posição sentada e as costas de
encontro à parede, e me ergueu para seu colo.
— Inadequado, mas prático. Sr. Rutherford, deixe-me apenas dizer
que deposito minha confiança em você como um cavalheiro.
— Vá chatear outro — falou Martin laconicamente, me envolvendo
com a pele de búfalo e usando o braço livre para mexer no fogo com um
graveto. — Desde que a chaminé não pegue fogo, aguardaremos. Volte
assim que puder.
Ele observou enquanto Reiner desaparecia e puxou minhas luvas,
virando meus dedos na direção da luz.
— Será um milagre se não tiver queimaduras de frio — ele
murmurou. — Consegue sentir seus dedos?
Eu tremia tanto que mal conseguia falar, mas consegui assentir, já
começando a sentir o calor do pequeno fogo. Estar envolvida pela pele de
búfalo e o calor do corpo de Martin era um prazer indescritível depois do
vento enregelante das planícies, mas meu corpo ainda se sentia
estranhamente frio, como se meus ossos estivessem congelados. E, ainda
assim, eu podia sentir todos os meus membros, cada dedo, quase todas as
juntas.
Meu atordoamento e cansaço não escondiam uma sensação suave e
vibrante causada pela proximidade de Martin, sua presença física tanto me
confortando como me desconcertando. Quando ele me alcançou para mexer
nos laços de minhas botas, deixei escapar um guincho de protesto.
— Posso fazer isso. — E de fato meus dedos estavam funcionando
agora, ainda que desajeitados.
— E suas meias também — Martin falou e riu quando paralisei, sua
respiração quente em minha bochecha. — Como Lehmann sugeriu,
praticidade é mais importante que decoro. As circunstâncias dificilmente
são propícias ao ato do amor de qualquer forma.
— Ele sabe?
— Que eu te amo? Sim. Que sou casado? Sim. Nós discutimos…
muitas coisas. Aquele rapaz está se preparando para ser um advogado muito
bom, Nell.
— Humpf. Vire o rosto de lado.
Mesmo com o olhar de Martin apropriadamente desviado, tive uma
estranha sensação ao mexer sob minhas saias na sua presença e enrolar as
meias e ligas por minhas pernas. Entreguei-lhe as botas ensopadas e as
meias de lã encharcadas. Ele pendurou as primeiras acima do fogo e
envolveu as últimas sobre a perna quebrada de uma cadeira, que manteve o
mais próximo que pôde do fogo sem escaldar as meias.
Enrodilhei as pernas nuas sob as saias e apoiei a cabeça de encontro
ao ombro de Martin, sentindo-me terrivelmente cansada e – oh, sim, bem
faminta. Meu estômago roncou.
Senti o peito de Martin se mover quando ele riu. Ele pôs a mão no
bolso do casaco pesado que vestia e deixou cair um pacote envolvido em
couro curtido no meu colo.
— O que é isso? — perguntei, me sentando.
— Pemmican, uma mistura de carne e gordura. — Mas o sorriso de
Martin desapareceu enquanto me observava puxar as tiras do couro. Ele
tocou o machucado em meu rosto e sua boca enrijeceu.
— Esse é um machucado de luta. Você não apenas caiu na neve, caiu?
Balancei a cabeça com cuidado. Eu ainda tremia, mas apenas
pontualmente, fazendo-me sentir mais normal entre um tremor e outro.
— Judah me bateu. Para ser justa, bati nele primeiro.
— Por quê? — A voz de Martin era suave, mas uma olhada para seu
rosto me mostrou que estava longe de estar tranquilo.
— Ele estava tentando… Ele pôs a mão… Não sei o que aconteceu
comigo, Martin. Eu fiquei enlouquecida; não acho que queria de fato me
forçar, mas havia algo… Que me fez pensar em Jack.
Me concentrei intensamente no pacote que abria. Eu sabia que minhas
bochechas – ou ao menos a que não estava machucada –assumiram um tom
vermelho profundo.
— Nell. — Martin pôs a mão sobre a minha e esperou até que eu o
olhasse nos olhos. — Você não quis me contar antes... Jack Venton a
forçou?
— Não. Sim. Eu não sei. — Talvez fosse a fome que fizesse minhas
lágrimas subirem tão facilmente aos olhos. — Eu queria o que estávamos
fazendo, os beijos, ele me tocando… Então como poderia ter me forçado?
Eu simplesmente não sabia o que aconteceria depois. Ninguém nunca tinha
me dito. — Abaixei a cabeça, com vergonha de minha ignorância, na época
e agora. — Mas, desta vez, com Judah, eu tive medo.
Martin me puxou de encontro a ele e senti seu queixo repousar no
topo de minha cabeça.
— Pobre Nellie — suspirou. — E aqui estou, perturbando-a para me
dar uma resposta que irá satisfazer meu próprio ciúme egoísta enquanto
você desfalece de fome. Mas deixe-me dizer uma coisa. Jack Venton não
deveria ter tomado uma garota sozinha, inocente, que não sabia o que iria
acontecer em seguida, e ter feito o que fez. Ele se estabeleceu como
cavalheiro e tanto, seu primo. Mas um cavalheiro não faz isso – não a
menos que esteja bastante certo de que a mulher quer. Ainda assim, tenho
minhas dúvidas se ele pode levar para a cama uma mulher que não é sua
esposa e ainda se considerar um cavalheiro. Não tenho certeza disso em
meu próprio caso. Eu fui um tolo, Nell, e pagarei por isso pelo resto da
minha vida.
Ele pegou o pacote que eu deixara cair em meu colo e terminou de
desamarrar as tiras, sem olhar para mim. Desdobrou o quadrado de couro e
o estendeu.
— Coma — falou. — Você está machucada e assustada. É
inconcebível que eu fale de coisas que não possa mudar e te machucar e
assustar ainda mais.
— Não sou uma criança, Martin — eu disse, mas peguei um dos
bolinhos marrons rugosos e cheirei. Descobrindo que não cheirava tão mal
quanto parecia, dei uma mordida. O gosto era peculiar e gorduroso, mas eu
estava esfomeada e consegui dar algumas mordidas sem recusar, tentando
não mastigar com o lado machucado do rosto.
Martin pegou outro dos bolinhos e deu várias mordidas em rápida
sucessão, antes de me entregar seu cantil de água, esperando que eu tivesse
bebido minha parte antes dele mesmo beber. Então me puxou de volta para
si e acomodei a cabeça em seu ombro, minha pele formigando por causa da
gola de pele em seu casaco.
— Obrigada por ter ido me buscar, Martin.
— Estou irritado comigo mesmo por não ter chegado antes — foi a
resposta dele. — Por ter levado um tempo para procurar Lehmann quando
cheguei em Saint Louis. Mas preciso dizer que ele tem sido
excepcionalmente útil. Não acho que eu poderia ter nos equipado para as
planícies tão rápido quanto ele.
— Como sequer conhecia ele? — perguntei, a voz abafada pela pele.
— Fiz questão de me familiarizar com ele no caminho de volta para
Chicago depois que deixamos o seminário. Fiz muitas perguntas no
seminário, sabe, particularmente aos criados. Eu soube, pelo que me
contaram, que ele tinha uma boa razão para desgostar e desconfiar de
Poulton, e eu precisava de um aliado. O pensamento de você com Poulton
simplesmente me aterrorizava, Nell.
Seus braços apertaram-se mais ao redor da pele de búfalo que me
cobria.
— Não me importava com o que pensava de mim, e estava
determinado a tirá-la de perto dele. Eu apenas sabia que ele era errado de
alguma forma. Então recebi sua carta e cada um dos meus medos pareceu se
tornar realidade. Imagino que eu tenha alguns cabelos brancos agora.
Ri com isso, relaxando no abraço de Martin.
— Como poderia saber? — Contorci uma mão para libertá-la do
couro de búfalo e coloquei de volta uma mecha do cabelo loiro claro que
havia caído sobre a testa de Martin.
Eu estava bastante aquecida agora, e sonolenta. O decoro indicava
que eu deveria sair do colo de Martin agora que a necessidade de me
aquecer fora resolvida mas, com certeza, cinco minutos a mais não fariam
mal. Estava segura com Martin; nisso eu podia apostar minha.
— O que havia na carta sobre Judah? — perguntei, bocejando na
última palavra, então ela saiu como “Judaaaah”.
— Em resumo, o homem é um mentiroso, trapaceiro, sedutor e,
provavelmente, um assassino — Martin respondeu. — Contarei a história
toda quando estiver um pouco mais desperta. Percebeu que cochilou por um
momento agora há pouco?
— Não seja bobo. — Enganchei meu braço com mais segurança ao
redor do pescoço de Martin, me perguntando como ele tinha ido parar ali.
— Não estou nem um pouco sonolenta. — Pisquei, percebendo que o rosto
de Martin estava inclinado sobre o meu, seu nariz bicudo contornado pelo
brilho da lamparina. — Me conte a história sobre Judah.
— Vá dormir, Nell.
— Boa noite, Martin.
Talvez fosse um sonho eu ter erguido meu rosto para o de Martin e o
beijado nos lábios. E talvez também tenha sido um sonho ele ter me beijado
de volta, longa e avidamente, antes de desembrulhar a pele de búfalo e
estendê-la no chão de terra. Senti meus ossos amolecerem enquanto ele me
abaixava até a pele grossa e me cobria com seu casaco pesado. A última
coisa que vi foi um breve vislumbre do perfil de Martin, iluminado pela luz
do fogo, seu cabelo incandescente com uma luz laranja e vermelha, e uma
expressão sombria no rosto.
Capítulo quarenta e seis

Arrependimento
Sentei-me ereta de repente quando o estalo do tiro de um rifle rasgou
o ar. Estava longe do chalé, mas era, sem dúvidas, um tiro.
Quando o sono me libertou, fiquei consciente de algumas coisas.
Martin havia partido, assim como seu cavalo. Seus odores perduravam e eu
ainda estava coberta por um casaco pesado que cheirava agradavelmente a
Martin e ao ar livre. O fogo era uma pequena pilha de cinzas brilhantes, as
duas cadeiras agora desaparecidas. A lamparina estava oscilando, prestes a
se extinguir. As meias estavam de volta às minhas pernas, bastante secas —
Martin as tinha colocado ali? Meu cabelo parecia estar sendo arrastado na
cabeça, causando-me um desconforto considerável.
Afastei o casaco pesado e comecei a puxar os grampos de meu
cabelo, suspirando de alívio quando a sensação de puxão acabou e as
mechas pesadas caíram sobre meus ombros. Enfiei os grampos no bolso e
empurrei os pés para dentro das botas, que estavam úmidas, mas não
intoleráveis.
O resto do Pemmican e o cantil de Martin estavam perto da lareira.
Bebi alguns goles de água e dei meia dúzia de mordidas no Pemmican,
engolindo sem mastigar.
Assim, saí do chalé. Não era dia ainda, mas uma luz fraca brilhava a
oeste, e o céu estava claro. A neve amontoada refletia a luz. Eu conseguia
enxergar bem o bastante para avistar dois cavaleiros galopando em minha
direção na estrada, um perseguindo o outro. O rifle do perseguidor estalou
de novo e me encolhi de volta pela soleira da porta do chalé. Onde estava
Martin?
A resposta à minha pergunta quase me matou de pavor. À medida que
os dois cavaleiros se aproximavam, houve um movimento repentino à
minha esquerda, um corpo massivo passou tão rápido por mim que senti o
vento agitar meu cabelo. Neve e terra voaram em meu rosto, vindas das
patas do cavalo e então Martin estava na estrada, cavalgando num ângulo
até o cavaleiro e interrompendo sua fuga.
O percheron enorme afundou sobre as pernas dianteiras e derrapou
até parar de uma forma pouco elegante na neve, lançando Judah para a
frente. Ele não caiu e, por um segundo, admirei tanto a rapidez com que
obteve do grande cavalo de carga, quanto sua habilidade em manter-se
sobre seu lombo largo e nu.
Ele puxou a cabeça do animal para escapar de Martin, mas o capão
dele era muito mais ágil que o percheron. Uma explosão de velocidade o
levou perto o bastante para que Martin lhe desferisse um soco que atingiu
Judah na lateral e o lançasse para fora do cavalo num redemoinho de braços
e pernas.
O impulso de Martin o fez cair também. Por um momento nauseante,
vi sua bota ficar presa no estribo, mas ele a girou e conseguiu soltá-la
enquanto o animal recuava, sem querer pisotear seu cavaleiro.
A neve amorteceu a queda dos dois homens e eles estavam de pé em
um instante. Judah seguiu para o cavalo de Martin com um olho em Reiner,
o segundo cavaleiro, que se aproximara do grupo e estava erguendo o rifle
sobre o ombro. Antes que Judah pudesse chegar ao animal, Martin lançou o
punho em sua barriga, fazendo-o dobrar-se como o som de uma fole, e
caindo de joelhos.
Reiner freou o cavalo e deslizou para o chão, mas Martin não
precisava de ajuda. Ele arrastou Judah para uma posição ereta e desferiu um
golpe em seu rosto que fez eu me contorcer com a lembrança da dor.
Sangue vindo do nariz e boca de Judah respingou na neve, espalhando-se
numa mancha rosada.
— Não! — Percebi que havia gritado quando Martin bateu em Judah
novamente, um soco forte nas costelas, e ergueu o punho para lançar mais
um em seu rosto. — Martin, não! — O rosto de Martin era uma máscara,
quase tão branco quanto a neve, seus olhos cinzentos quase pretos de raiva.
Ele mataria Judah se eu não o parasse. — Ele não vale a pena. — Atirei um
braço ao redor de Martin, colocando-me entre ele e Judah, que estava de
joelhos mais uma vez. Reiner estava próximo, observando, a mão
levemente curvada ao redor do suporte do rifle. — A menos… — Os pelos
arrepiaram-se em minha nuca e virei-me para fitar Reiner. — Ele não
machucou Tess ou Sarah, machucou? Porque se o fez, eu mesma irei matá-
lo. — Pensar em Tess e Sarah deixou minhas pernas fracas e o Pemmican
subiu como uma massa gordurosa por minha garganta. Fiz um esforço
enorme para manter-me de pé e não vomitar, atendo-me à resposta de
Reiner.
Os olhos do rapaz arregalaram-se e ele balançou a cabeça.
— Elas estão bem — ele falou. — Eu o encontrei conversando com
Tess, que estava na frente da carroça com a arma à postos como se fosse o
próprio Davy Crockett, o caçador. Acredito que ela teria atirado caso ele se
aproximasse mais. Pude ouvir Sarah gritando que ele era um homem mau e
era melhor que não tivesse machucado sua mamãe. O fogo estava extinto,
mas obviamente sobreviveram à noite inteira.
— Preciso chegar até elas. — Minha parte irracional queria saltar
imediatamente no cavalo mais próximo e seguir de volta pela estrada. Ao
invés disso, virei-me para Martin, que havia deixado as mãos caírem ao
lado do corpo e estava observando Judah com uma expressão atordoada no
rosto. — O que irá fazer com ele?
Judah ergueu a cabeça e olhou para nós. Seu lábio superior estava
partido e inchado, o nariz era um desastre sanguinolento. Seus olhos azuis
oblíquos eram zombeteiros enquanto olhava primeiro para Reiner, então
para Martin e eu.
— Sim, Rutherford, o que irá fazer comigo? Agora que nossa querida
Nell salvou minha vida, não poderá me acusar de nada pior do que bater
numa mulher. Ainda que pouco cavalheiresco, dificilmente é uma
ocorrência incomum aqui na fronteira. Se ela não tivesse te parado, você
seria um assassino. Precisa tomar cuidado com esse seu temperamento.
Ele ficou de pé rígida e dolorosamente, apalpando a barriga com
cuidado.
— Acho que você quebrou uma costela ou duas — ele disse. — Onde
quer que você me leve, farei questão de levantar este ponto. — Ele olhou
para Reiner. — E é bom que seja um atirador tão ruim.
— Eu não estava atirando em você, seu vigarista de boca frouxa —
Reiner respondeu, com um sorriso de escárnio nos lábios. — Estava apenas
garantindo que Rutherford soubesse que eu estava chegando. — Ele olhou
para Martin. — Eu diria que o melhor seria levá-lo a Springwood assim que
tivermos certeza de que as damas chegaram à salvo na missão. Aquela sua
carta deve garantir que o expulsem da cidade de uma vez por todas.
A expressão atordoada estava deixando o rosto de Martin e seu olhar
tornou-se aguçado.
— Seu tio também já deve estar com a cópia que lhe enviei. Você está
certo Lehmann; se não pudermos acusá-lo de nada diretamente, ao menos
podemos garantir que todos conheçam seu verdadeiro caráter. E é possível
que, quando Cam Calderwood souber de seu escândalo, seja um pouco mais
cooperativo em certos pontos se quiser salvar o próprio pescoço.
— O diabo que vai — falou Judah. Por um momento, ele pareceu
enrodilhar-se em si mesmo e então saltou, veloz como um gato e lançou
Martin voando de costas para cima de mim com um empurrão usando as
duas mãos.
Aterrissei na neve sobre a lateral do corpo, descendo com força sobre
o quadril, mas sem nenhum machucado real. Martin girou sobre um joelho
para evitar cair sobre mim, dando tempo a Judah para saltar no capão que
Martin cavalgava. Ele o puxou, virando-o, seguindo não para a estrada, mas
para as planícies. Os cascos do cavalo reviraram pedaços do solo e da
grama sob a neve enquanto ele pulava à frente, os olhos revirando, os
estribos sem uso voando ao redor dos joelhos de Judah.
Reiner atirou, bombeou a alavanca do rifle, e atirou de novo. O cavalo
deu um pulo um tanto de lado e aterrissou mal, todas as quatro pernas
lutando para dominar a neve. Judah rolou na sela, de forma que estava meio
caído na lateral do corpo do cavalo. Por um momento, pensei que fosse se
erguer novamente – e então a perna dianteira do capão cedeu e Judah
deslizou para a neve, o cavalo aterrissando pesadamente sobre ele.

Nós corremos.
O tempo se estende quando algo impensável acontece bem diante de
seus olhos. Não deveria ter se passado mais do que dez segundos em que o
corpo enorme do cavalo balançou para frente e para trás sobre a forma
esparramada de Judah, enquanto ele lutava para pôr as pernas sob si e
encontrar equilíbrio, mas a cena se passou numa lentidão agonizante.
E havia sangue. Gotas espessas voavam sobre a neve e manchavam-
na com respingos carmim de bordas rosadas que evaporavam, apenas por
um segundo, no ar gelado.
Quando o cavalo finalmente ficou de pé, se tornou claro que parte do
sangue vinha de um machucado em seu flanco, um corte lívido de cerca de
quinze centímetros que brilhava vermelho contra a lateral peluda. Ele se
esquivou, arisco, enquanto nos aproximávamos e nos fitava com olhos
esbugalhados, como se nos desafiasse a chegar perto.
Todos o ignoramos e paramos de imediato ao lado do homem
destruído, que sibilava fracamente, as pernas se contorcendo. Um casco
instável havia esmagado uma mão, deixando o osso e a cartilagem dos
dedos e das juntas horrivelmente expostos. O polegar fora quase totalmente
arrancado e formava um ângulo macabro com o resto, unido por um mero
retalho de pele, pelo qual o sangue se infiltrava na lama que o cavalo havia
raspado sob a neve.
— O que vamos fazer? — ofeguei, agachando e pondo as mãos
indecisas nos ombros de Judah como se pudesse levantá-lo. Seus olhos
estavam vidrados de choque e dor mas, com minha aproximação, seu corpo
deu um solavanco convulsivo e então caiu de volta na neve, pesado e inútil.
— Não me toque.
Recolhi minhas mãos enquanto os lábios de Judah repuxavam-se
sobre os dentes num longo estremecimento.
— Dói.
Reiner afastou os olhos do homem machucado para fixá-los no
horizonte. Ele ficou parado, gesticulando para o oeste.
— O grupo da missão está chegando. Talvez possam ajudar.
O olhar de Judah estava direcionado para o céu, mas suas palavras
mostravam que ouvira.
— O pastor está com eles?
— Com certeza.
— Bom. Eu posso… precisar. — As palavras saíram a intervalos
irregulares enquanto Judah lutava para respirar.
Lancei um longo olhar para o corpo de Judah, flácido e indefeso no
solo nevado, e direcionei meu olhar para Martin. Ele leu a pergunta em
meus olhos e assentiu. E também percebeu que Judah estava morrendo.
— É melhor se mandar o pastor aqui e for com o restante dos homens
buscar Tess e Sarah — ele falou para Reiner. — Não há muita coisa que
qualquer um de nós possa fazer por ele.
Reiner partiu numa corrida e Martin pôs a mão em meu braço.
— Quer ir com ele, Nell?
— Não. — Minha resposta veio tão rápido que até me surpreendi. —
Ficarei com Judah. — De súbito, tive uma forte sensação de que tanto Sarah
quanto Tess estavam a salvo; mais seguras do que há muito tempo. Eu não
vi meu padrasto morrer e parecia estranhamente importante que
testemunhasse agora. Como se alguma força maior, me dissesse que isso,
naquele momento, era onde estava meu dever.
Judah virou um pouco a cabeça e sorriu para mim. Apesar do nariz
ensanguentado e do lábio partido, ainda havia beleza em seu rosto e senti
minha respiração ficar presa com algum tipo de melancolia.
— Você… quase me amou… uma vez, não é, Nell? — Judah
sussurrou.
Ajoelhei ao lado dele, sentindo o frio da neve através das saias, e
tomei sua mão que não estava machucada nas minhas, com o máximo de
gentileza que pude.
— Quase.
Judah sorriu, o sangue aparecendo entre seus dentes. O sorriso
transformou-se numa careta de dor e a mão que eu segurava se contorceu.
— Você olhava… para mim… e me amava. Sempre funcionava.
Quando eu… queria.
O pastor Lombardi se aproximou silenciosamente de nós e uma
expressão de tristeza profunda inundou seu rosto quando ouviu as palavras
de Judah.
— Não — ele disse, balançando a cabeça. — Esse não é o momento
para orgulho. Você está prestes a encontrar seu criador, homem. Pelo bem
de sua alma, se arrependa agora de qualquer pecado que macule sua
consciência.
Judah começou a tremer e, por um momento, agarrei sua mão com
mais firmeza, acreditando que a convulsão da morte havia chegado. Mas
então percebi, com um arrepio de horror, que ele estava rindo – até um
espasmo de dor o tomar com tanta força que suas costas arquearam e ele
gritar.
O pastor desceu sobre um joelho ao seu lado.
— Arrependa-se — ele sussurrou de novo, soando tão horrorizado
quanto eu.
— Achei… que eu tivesse… tempo. — O peito de Judah subia e
descia rapidamente, enquanto apertava os olhos contra o sol se erguendo. —
Consertar… o mundo… depois. Quando eu tivesse… tudo que precisava.
Senti a mão de Martin repousar em meu ombro quando ele veio ficar
ao meu lado.
— Era verdade? — ele perguntou a Judah. — Todas aquelas coisas
que estavam na carta?
— Nunca a li. — As pernas de Judah moviam-se fracamente. —
Provavelmente… verdade o bastante. Mas faltaram algumas coisas, aposto.
— Você o matou? — Eu precisava saber. — O professor Wale?
— Não pessoalmente. — Judah soava quase indignado. — Não… não
vá procurar pelo mestiço que puxou o gatilho. Ele… hum… já está longe.
Ele respirou fundo algumas vezes antes de continuar, fitando
diretamente o céu claro se transformando em azul.
— Confesso, pela misericórdia, ter matado Hendrik Adema.
A última palavra saiu como um grunhido angustiado quando outro
espasmo de dor o tomou, e estremeci. O movimento me fez perceber quão
gelada eu estava, e envolvi meu corpo com os braços.
— Martin, ele deve estar com frio. Poderia pegar seu casaco? Não
posso… Vamos aliviá-lo o máximo possível.
— Você é gentil, Nell. — Judah sorriu para mim e lambeu o sangue
de seus dentes. — Não se incomode. Não consigo… sentir frio.
— O dr. Calderwood teve algo a ver com essas mortes? — A voz do
pastor Lombardi era apenas um fio de um som.
— Não. Mas ele… sabia. Compromete… vidas para sua própria…
glória. A esposa dele… não sabe.
Todo o corpo de Judah começou a tremer. A cor desapareceu de seu
rosto, deixando-o num tom branco doentio de encontro o qual o nariz e a
boca exibiam o carmim.
— Arrependa-se. — A voz do pastor ergueu-se num lamento
angustiado. — Pelo amor de Deus, homem. Sua hora chegou.
— Por todas… essas diversas coisas e mais… Eu… — Os olhos de
Judah se arregalaram. — Eu… me arrependo.
A última palavra transformou-se em um gorgolejar, quando uma
pequena gota de sangue esguichou da boca de Judah e fluiu por ambos os
lados de seu rosto, luminosa e vaporizando no ar frio. E então ele ficou
imóvel, seus belos olhos violeta-azulados abertos para o amanhecer límpido
acima.

Por alguns instantes, todos ficamos em silêncio, nossos olhos fixos na


forma imóvel deitada, esmagada e partida na neve. Comecei a tremer, não
os calafrios violentos da noite anterior, mas um estremecimento contínuo
devido, apenas em parte, ao frio.
Os olhos do pastor estavam redondos de choque com o fim abrupto de
Judah. Seu rosto, geralmente alegre, estava cinzento com todas as suas
linhas puxadas para baixo, a boca pendendo aberta.
Então ele tomou uma respiração grande e trêmula, quebrando o
silêncio. Inclinou-se para impulsionar para baixo as pálpebras sobre o olhar
fixo. Limpou o sangue do rosto de Judah com um lenço limpo, usando um
pouco de neve para ajudar no processo, e então se abaixou para rezar pelo
homem morto, sua voz estável enquanto realizava o ritual familiar.
Curvei a cabeça e tentei ouvir as preces do pastor, até sentir uma mão
grande e quente logo acima do meu cotovelo, me impulsionando para cima.
— Você está tremendo — Martin sussurrou. — Deixe-os. Reiner
voltará em breve com Sarah e Tess e não será muito útil para elas se
desmaiar de frio.
Ele me conduziu em direção ao chalé, pondo levemente um braço ao
redor de meus ombros e então deixando-o cair de novo, com um olhar para
trás para o pastor. Os cavalos – o capão de Martin e o grande percheron –
haviam seguido até um local não muito longe do chalé e estavam
socialmente cutucando a neve em busca de grama. O sangue parou de fluir
da lateral do capão, e ele parecia imperturbável.
Martin me conduziu para o chalé escuro e pendurou o casaco em
meus ombros. Fechando a porta, ele voltou para fora, presumivelmente para
prender os cavalos e fazer o que pudesse pelo machucado do capão.
Afundei dentro da pele de búfalo, cambaleando com a fadiga peculiar
que surgiu ao entrar, depois de estar lá fora no vento e sob o sol. E, percebi,
a fadiga resultada da investida de emoções que passaram por mim enquanto
observava Judah Poulton respirar pela última vez. Houve alívio, tristeza e
horror com a visão terrível de seu corpo antes esbelto contorcido e
esparramado no solo como um trapo descartado. Ele havia partido, e nunca
mais poderia me ameaçar nem a ninguém de novo, mas eu não podia me
regozijar com tal morte.
Uma corrente de ar e uma explosão de luz me avisaram que Martin
entrara no chalé. Ele se empoleirou no estrado partido e tirou o chapéu,
passando a mão no cabelo claro e grosso e pressionando uma mão sobre os
olhos. Ele apertou e massageou a testa, como se tentasse expurgar os
pensamentos.
— Precisa do fogo? — ele perguntou. — Suponho que não vá
demorar muito antes de Reiner voltar, mas se estiver com frio…
— Eu estou bem — garanti a ele. — Parei de tremer. Martin, você
parece terrivelmente cansado. Não dormiu?
— Não muito — confessou, e então sorriu para mim. — Você, por
outro lado, dormiu feito uma pedra, o que me permitiu caminhar e me
afligir e ir lá fora vinte vezes procurar por Reiner. E te observar dormir. —
Sua voz suavizou. — Está me transformando em um tolo sentimental.
Suas palavras foram se perdendo e ele fitou o chão sujo e então a
porta do chalé, como se estivesse tentando evitar meu olhar. Mas quando
finalmente falou, sua voz tinha um som estranho, desolador e
desesperançado.
— Preciso contar a você. Parece egoísta em face à morte, mas…
posso não ter outra chance. Falei com um advogado; um que lida com
assuntos referentes a casamento. Acordos e coisas assim. Divórcio.
Assenti, mas não respondi. Meu coração começou a bater mais
rápido, empurrando meu peito, surpreendentemente dolorido. Eu sabia pelo
rosto de Martin que não recebera as respostas que queria.
Ele pigarreou.
— A nova lei torna o divórcio possível sem uma legislação especial
mas, de forma alguma, o torna fácil.
Ele revirou o chapéu nas mãos, esfregando o polegar na aba.
— O homem listou as causas possíveis tantas vezes que já sei de cor:
impotência, bigamia, adultério, abandono do lar, embriaguez, malícia,
crueldade – ou a interessante descoberta de que se casou com um criminoso
infame.
Me aproveitei imediatamente na única palavra que me saltou aos
olhos. Adultério.
— Você me disse que Lucetta não era fiel— titubeei.
Martin olhou para o chapéu que estava torcendo nas mãos e o atirou
em meio ao chalé. Ele bateu na parede com um leve som rasante e caiu no
chão.
— Walters, o advogado, me incentivou a contratar um detetive de
Pinkerton para segui-la por aí, reunindo evidências contra ela. Evidências
que serão discutidas por completo no tribunal. Ao mesmo tempo, devo
permanecer acima de qualquer suspeita porque se ambas as partes cometem
adultério, não haverá divórcio.
Ele me fitou como se estivesse desejoso que eu compreendesse
alguma coisa. Quando não falei, continuou, enunciando cada palavra com
precisão.
— É possível, por exemplo, que o advogado de Lucetta tente buscar
evidências de meu… afeto por você, como prova de que também estou
errado. — Ele pressionou as palmas das mãos nas têmporas. — Pois me
correspondi com você em termos afetuosos; enviei presentes, garanti que
suas finanças tivessem uma base sólida. É bastante provável que você – e
seu passado – se misture aos procedimentos, e isso não posso tolerar.
Assumindo, é claro, que Lucetta esteja relutante em se divorciar.
— E ela está relutante — interrompi. — Ela deixou claro que lutaria
para manter você. — Tive a sensação de que meu estômago estava
despencando e cerrei meus dedos na pele grossa do couro do búfalo para
que o mundo parasse de girar.
— Já é ruim o bastante eu ter que arrastar Lucetta para uma situação
dessas — Martin falou. — Trazer um escândalo para qualquer mulher, não
importa o que tenha feito, é repulsivo para mim. Mas se tiver que ser sobre
você e, por extensão, Sarah, é insustentável.
Me acovardei por dentro, por saber que o que estava preocupando
Martin não era o mero pensamento de arrastar meu nome para o tribunal.
Era a maré de desonra pública que iria cair sobre minha cabeça e a de
Sarah, assim que o fato de sua ilegitimidade se tornasse amplamente
conhecido. Eu de novo. Minhas decisões, minha teimosia, minha fraqueza,
minha arrogância. As consequências daquela tarde de maio em que segui
Jack Venton para trás de uma proteção de jovens salgueiros, minha mão na
dele, sua risada quente em minha bochecha, ainda ondulavam para o
exterior em um movimento sem fim.
— Minha única esperança — Martin continuou — é que eu possa de
alguma forma persuadir Lucetta a se divorciar; por abandono, suponho. Eu
já estou morando em um hotel, Nell, não em nossa casa. — Ele soltou um
leve ronco de escárnio. — Ela pode não ter notado, é claro. Eu estava
habituado a passar um tempo longe de casa sempre que podia. Que
bagunça, Nell. Que maldita bagunça fiz em minha vida.
Eu queria passar meus braços ao redor dele, dar o conforto que eu
pudesse, mas é claro que não poderia fazer isso. Ergui meus joelhos sob as
saias e encarei o chão miseravelmente, o grande peso do casaco de Martin
sendo a única proximidade com ele que eu podia, com toda a franqueza,
aspirar.
Foi quase um alívio ouvir o grito do pastor Lombardi e ver Martin
precipitar-se para a porta. Quando me ergui do chão, dificultada pelas
roupas, senti como se eu tivesse envelhecido dez anos numa manhã. Judah
havia morrido e eu estava livre dele – mas, por um momento, me permiti
imaginar que aquela liberdade poderia incluir Martin e isso claramente não
iria acontecer.
Capítulo quarenta e sete

Fim da linha
— Está exausta — Catherine falou enquanto despejava a água
fervente do enorme jarro na pequena tina ao lado do fogão da cozinha. —
Por que não descansa e dou banho em Sarah?
Eu ri.
— Obrigada, mas não vou me deitar numa cama até eu mesma estar
limpa. Tess e eu temos planos de levar a tina grande para nosso quarto e
tirar a sorte para ver quem vai primeiro e estou feliz por você ter uma
lavadeira que podemos contratar. Como uma criança pequena e um tanto
exigente consegue atrair tanta sujeira é um mistério para mim.
Envolvi um pano na alça do jarro que havia colocado no chão e usei
outro pano para incliná-lo, para que a água caísse na tina.
— Aí está, acho que está pronto.
— Mas está quente demais.
— Na hora que eu encontrar Sarah, arrastá-la para longe de Teddy,
ouvi-la tagarelar sobre cada animal e criança da missão, persuadi-la de que
é hora de entrar e renunciar a sua jardineira pelo vestido e de fato fazê-la se
despir, a água estará bem no ponto.
Fiquei de pé, alongando minha coluna para resolver as torções na
lombar.
— Pobre Teddy. É esperar demais de um garoto de quinze anos,
brincando de babá com uma menina de quatro anos.
— Eu espero que seja uma boa mudança em relação a cortar lenha,
consertar cercas, buscar água e realizar tarefas. — Catherine pegou os dois
jarros e seguiu para a porta. — Preciso ir ver Roderick. Ele passou tempo
demais nas planícies com o corpo do sr. Poulton. Ainda que eu me
simpatize com você por não desejar ter um cadáver dividindo a carroça e
deixar aquilo… ele sozinho teria convocado os lobos, com certeza. Irei
insistir que Roderick me deixe aplicar um emplastro de mostarda, como
prevenção.
— Onde está Martin?
— Adormecido numa cadeira no escritório de Roderick. — Catherine
sorriu. — Ele se manteve ocupado hoje, com a retirada do corpo e ajudando
a envolvê-lo em neve para a viagem de volta a Springwood. Também
supervisionou a sutura do ferimento do cavalo e garantiu que atendessem o
cavalo de carga. É uma pena que não tenhamos encontrado o outro.
Assenti enquanto segurava a porta aberta para Catherine. Reiner se
oferecera para levar o cavalo saudável de volta para o fazendeiro com
desculpas abundantes e dinheiro o suficiente – fornecido por Martin – para
pagar por uma nova parelha de percherons. Ele partiria no dia seguinte.
Martin planejava esperar mais um dia e então acompanhar o pastor – e o
corpo de Judah – de volta para Springwood.
Depois disso, ele, Reiner e o pastor Lombardi planejavam continuar
para Saint Louis, o que levaria alguns dias. De lá, Martin começaria a
viagem de volta a Chicago, Reiner voltaria para seu escritório e o pastor
iniciaria o delicado processo de informar à congregação sobre a confissão
de Judah e as implicações que teria para os Calderwoods. A morte de Judah
não seria o único choque que receberiam como presente de Natal. Era bem
merecido, pensei com frieza.
Catherine estava certa, eu estava exausta. Minhas pernas e costas
ainda doíam da longa caminhada pela neve. As pontas dos meus dedos
anelar e mínimo da mão esquerda estavam brancas, dormentes e
formigando alternadamente. Queimadura de frio, Martin havia dito –não
achava que era sério, mas seus olhos escureceram quando informou que se
eu colocasse na cabeça que iria arriscar uma morte fria e solitária de novo,
ele mesmo iria me trancar e jogar a chave fora.
Sorri com isso, mas eu não era imprudente o bastante para esquecer o
vento mordaz e o toque suave e mortal da neve. E então havia o
conhecimento de que, se houvesse passado por Martin e Reiner à noite sem
vê-los – ou se a noite estivesse um ainda mais fria – eu estaria tão morta
quanto Judah.
Foi com pensamento nele que me levou a superar a exaustão,
desejando que minha recompensa fosse ser uma noite sem sonhos. Eu não
queria ficar acordada por um minuto pensando em Judah, não mais do que
eu queria fechar meus olhos apenas para ver a neve rodopiando.
— Mas eu sobrevivi, papai — murmurei em voz baixa, enquanto
envolvia um xale em meus ombros e saía em busca de Sarah. — E agora
tenho uma ideia muito melhor de como seu fim deve ter sido. O senhor
pensou em mamãe e em mim enquanto estava deitado na neve? Sua cabeça
ficou repleta de sonhos e visões como a minha? Vi mamãe e uma bela
enseada – e eu não estava assustada, não realmente. Acho que posso ter
perdido meu medo da neve, ainda que tenha aprendido a respeitá-la.
Enquanto enfiava os pés nas galochas colocadas na porta da frente da
missão, tive uma lembrança repentina de meu pai, com a qual eu nunca
havia me deparado antes. Ele estava sentado na poltrona grande de Bet,
perto do fogo, um reduto favorito dele, apesar da repreensão de minha mãe
que era inadequado passar tanto tempo na cozinha. Com os pés apoiados na
lareira, o sol do verão deixara seu cabelo em chamas num tom cintilante de
cobre, ruivo e dourado.
Ele estava lendo, com a atenção que caracterizava tudo que fazia. O
sol deveria o ter incomodado, brilhando em seu rosto, mas o ignorou, seus
olhos grandes azuis-acinzentados ternos enquanto ele vivia a história que se
desdobrava sob os olhos.
Minhas lembranças de papai sempre foram manchadas pela figura
imaginada do homem congelado sob o arbusto, seus lábios azuis e as mãos
cruzadas sobre o peito. Eu tinha entreouvido a descrição de Bet sobre ele
enquanto brincava num canto da cozinha, meu pequeno coração de criança
ainda machucado por sentir falta dele. As lágrimas haviam corrido por meu
rosto enquanto eu construía uma imagem de que nunca iria me deixar,
mesmo quando eu não fosse mais criança. Uma imagem que assombrara
meus sonhos.
Havia lágrimas agora, ardendo no fundo de meus olhos e umedecendo
os cantos, então a mancha luminosa do cabelo de Sarah avistada do outro
lado do quintal embaçou e rodopiou. Mas aquelas eram lágrimas de alegria
e alívio, pois, de alguma forma – eu sabia com certeza –, que tinha me dado
uma nova visão de papai, uma que ajudaria a substituir o homem congelado
em minha mente. A neve finalmente perdera seu poder sobre meu pai e eu.

— Então está livre agora.


Reiner estava segurando minha mão, mas decididamente de uma
forma fraternal. Ele não falou nada sobre Martin e eu, mas tinha visto-o
olhar para nós com frequência o bastante para supor que entendia – e,
estranhamente, dada sua reação original às revelações da sra. Drummond,
simpatizava.
— Estou livre de Judah, ao menos. — Minha resposta era um
reconhecimento, assim como uma confirmação e ele apertou minha mão.
— Eu deveria ter ficado por perto para protegê-la, tolo que fui. Já que
sempre soube que Poulton era alguém ruim.
— Mas morrer tão horrivelmente… — Minha voz foi se perdendo e
olhei para Reiner, de repente percebendo que a morte macabra de Judah foi
em grande parte graças ao homem jovem à minha frente.
Ele encontrou meu olhar diretamente, os olhos arregalados e a
expressão aberta.
— Não ache que não dediquei um pesadelo ou dois à minha própria
culpa na questão. Se eu não houvesse lançado uma bala de raspão naquele
cavalo, Judah Poulton teria sem dúvidas vivido para caçar outra pessoa.
Tenho sentimentos confusos sobre isso, como consequência.
— Se… — eu falei. — Se eu não o tivesse provocado até se irritar e o
mandado embora e mantido meu plano original de dispensá-lo aqui, onde
eu poderia me esconder atrás da proteção dos Lombardis, e se não tivesse
sido tão idiota em consentir em viajar com ele em primeiro lugar… Sabe,
Reiner, acho que irei desistir de viajar atravessando a região em qualquer
tipo de transporte conduzido por cavalos. Parti numa charrete uma vez, e
alguém morreu por causa disso. Voltei para o seminário de carroça e ali
estava o professor. E agora isso.
O rosto acolhedor de Reiner iluminou-se com malícia.
— É uma coisa boa que Martin não esteja retornando com você então.
E é uma coisa ainda melhor, no que me diz respeito, que estou viajando
sozinho.
— Então seu coração não ficará partido por mim, afinal? Oh… Isso
soou mais galanteador do que eu pretendia. — Eu estava envergonhada,
mas também agradecida a Reiner por este momento leve.
Reiner sorriu, cativado por meu humor.
— Estou num caminho reto em direção à completa recuperação de
todos os meus traumas, Nell, então não se preocupe. Uma certa senhorita
Amy Larke tem algo a ver com isso. Ela tem cachos escuros magníficos e
olhos verdes intensos. Tenho organizado um encontro entre ela e papai
assim que eu puder persuadi-lo a deixar a empresa por tempo o bastante.
Uma carreira e uma boa esposa em perspectiva devem convencê-lo de que
enfim cheguei à idade da razão.
— Uma esposa respeitável… Diferente de mim. — Eu sorri, meu
humor se elevando mais alto enquanto o rosto de Reiner enrubescia.
— Por Deus, Nell, não precisa ser tão dura com um homem. — O
começo de uma ruga transformou-se em uma risada triste. — Eu deveria ter
confiado mais em você ao invés de ser tão apressado, não é? Nos deixei cair
nas mãos de Poulton e sinto muito por isso. — Ele estendeu a mão. — Me
perdoa por meus erros?
— Somente se perdoar os meus. — Coloquei minha mão na dele e as
apertamos afetuosamente. — Então, gosta de ser advogado? — continuei.
— Estou feliz por ter encontrado um trabalho no qual acredita de verdade.
— Ficará satisfeita quando eu for juiz, então. — Reiner sorriu, mas
então seu rosto ficou sério. — Não é adulação, Nell. Ficar sentado na sela
pensando que eu poderia ser enforcado sabendo que o verdadeiro assassino
iria se safar me deu todo um novo conjunto de ideias sobre justiça. A
fronteira precisa de uma aplicação da lei correta, organizada. Agora,
qualquer homem que ache que é um diabo de um durão, tem muitas formas
de evadir a lei e continuar roubando bancos e diligências o quanto quiser.
Veja os irmãos James – ora, o Missouri chegou perto de recebê-los de
braços abertos. É uma vergonha, pura e simplesmente.
Pensar em Reiner desafiando os irmãos James me causou um receio
momentâneo.
— Tenha cuidado — falei. — Não dê à senhorita Amy Larke um
motivo para se lamentar de sua escolha de carreira. Mas acho que será um
ótimo juiz, Reiner.
— E você? — Reiner perguntou. — Suponho que esteja pensando em
deixar o seminário, não?
Assenti, olhando para fora da janela onde o sol do começo da manhã
transformou a neve em dourado.
— Não vejo como ou por que eu ficar, mesmo depois do pastor
garantir que os Calderwoods recebam o que está chegando para eles. Ora, já
têm até mesmo uma costureira substituta. Vim para o Kansas em busca de
uma nova vida, Reiner, mas sinto como se tivesse chegado ao fim da linha.

Falei o mesmo para Catherine enquanto observávamos Teddy –


dificultado, mais do que auxiliado por Sarah – descarregar a última de
nossas caixas da carroça, que foi recuperada nas planícies.
— Posso não saber para onde quero ir, mas sei que chegou o
momento de ir embora.
— Sim, é sábia a mulher que ouve seu coração no que se refere a
fazer o que é o melhor para sua família. — O rosto de Catherine assumiu
linhas sombrias enquanto observava o filho. — Mesmo que algumas vezes
signifique renegar um compromisso.
— Isso soa ameaçador. — Fitei Catherine.
Ela estava mais magra que nunca. Vincos verticais haviam surgido em
suas bochechas e quando sorriu – o que fazia muito menos do que
costumava – me preocupou ver que faltava um molar de seus dentes
brancos e uniformes.
— Viajará na primavera, suponho, desde que o clima não esteja muito
úmido. Bem, nós viajaremos também, porém mais tarde, quando realmente
pudermos. Roderick finalmente me ouviu.
— Para onde irão?
— Onde quer que possamos encontrar um médico para Lucy. — A
boca de Catherine afinou numa linha determinada. — Não irei ficar parada
e ver minha filha morrer, Nell. E até mesmo Thea está disposta a cooperar
com meus planos se significar que ela terá uma oportunidade – quando
estiver crescida o bastante, é claro – de buscar um marido que não seja
fazendeiro ou missionário. Teddy talvez fique aqui, no entanto. Ele gosta da
fronteira e fará dezesseis anos em fevereiro. Crescido o suficiente para
tomar as próprias decisões.
Observei o jovem magricela caminhar em direção à casa com um baú
equilibrado displicentemente num ombro largo, com Sarah em seus
calcanhares.
— Isso está causando um conflito entre você e seu marido?
— Não mais. — A voz de Catherine não estava de todo firme. —
Roderick admitiu que meu dever com Deus pode ser um pouco diferente do
dele. Como mulher, e como mãe, estou habilitada a responder ao chamado
primordial de meu dever com meus filhos, sendo assim, disse que pode
suportar um pouco de desapontamento para o nosso bem.
Coloquei o braço ao redor da cintura de minha amiga, obrigando-lhe a
virar e olhar para mim.
— Você aceitará um presente meu em dinheiro; não irá nem pensar
em recusá-lo. Esse médico vai cobrar uma taxa alta e Lucy sem dúvidas vai
precisar de uma enfermeira, comidas nutritivas e um lugar saudável para
viver. Um hospital, até. Então não me negue o privilégio de ajudá-la.
Catherine não falou por alguns instantes, e quando o fez, sua voz
estava rouca:
— Pelo bem de Lucy, não negarei. Afinal de contas, tenho rezado por
um milagre. E Deus respondeu às minhas preces, através de você.
Então uma sugestão de alegria penetrou nos belos olhos castanhos
que agora eram, mais do que nunca, seu traço mais bonito.
— Quando você desceu da carruagem naquele dia frio, jamais
imaginei que a garota desonrada e sem amigos que eu via diante de mim um
dia se tornaria nossa benfeitora. Roderick sempre diz que o Todo-Poderoso
tem um estranho senso de humor e eu acredito que Ele se deleita em virar o
jogo quanto às nossas pretensões.
— Que pretensões você tem? — perguntei. — Não notei nenhuma.
Catherine sorriu, mas seus olhos ficaram tristes.
— Eu as escondo bem. Mas irei admitir que, quando viemos para o
Kansas, meu coração estava cheio de orgulho. Eu tinha certeza de que nossa
missão seria um sucesso retumbante e que seríamos reconhecidos por toda a
fronteira. Havia sido uma boa supervisora na Fazenda dos Pobres, eu sabia
bem, mas machucava meu orgulho saber que seria o sr. Schoeffel, e não eu,
que seria superintendente. Que a mera sugestão de que uma mulher poderia
ser elegível para uma posição tão alta suscitaria olhares de assombro, se não
risadas sem rodeios. Eu achava que era notável, e me atormentou perceber
que mais ninguém compartilhava minha elevada avaliação sobre mim
mesma.
— Você é notável. — Agarrei a mão de Catherine a apertei. — E irei
garantir que tenha o bastante para alimentar, vestir e abrigá-la por um
tempo. Não me veja como uma benfeitora, Catherine. Isso é simplesmente
um pouco do excesso da pilha de riqueza que Martin construiu para mim.
Não fiz nada para merecê-la ou conquistá-la.
— Nenhum de nós merece riqueza ou fortuna — Catherine falou. —
E você trabalhou duro o bastante, não é? Mas Martin… — Ela parou de
repente, hesitando sobre o que dizer em seguida. Me preparei.
— Acredito que ele seja um bom homem — Catherine disse
lentamente. — Mas… Me preocupo quando vejo ele te olhando. E quando
vejo você olhando para ele.
O que foi que Judah dissera? O amor e uma tosse não podem ser
escondidos. Senti as bochechas queimarem, mas me recusei a baixar os
olhos e fitei Catherine com firmeza enquanto falava:
— Não há, e nem haverá, nada de errado entre nós, Catherine. Eu
juro. Parece que não conseguimos evitar nossos sentimentos um pelo outro
– ou escondê-los –, mas está certa, Martin é um bom homem. E não sou
aquela garota que chegou à Fazenda dos Pobres, não mais. Sim, preciso
seguir em frente, mas não será para ir de mal a pior.
Capítulo quarenta e oito

Chicago
Sempre me levantando cedo, na manhã da partida de Martin, já estava
acordada bem antes do amanhecer. O tempo esquentara um pouco e uma
leve névoa pendia no ar, parecendo iluminada por baixo pela neve aninhada
entre a grama das planícies.
Mais perto da casa, a neve se misturou à terra do jardim para formar
uma lama viscosa e pálida. Ela se agarrava com afinco às bainhas das saias
e calças e respingava nas mulas que jogavam as cabeças e zurravam com a
atividade ao seu redor.
O primeiro item colocado na carroça foi um caixão simples de
madeira clara. As mulas capturaram o cheiro de Judah, e se mexeram
desconfortáveis mas, sem dúvidas, haviam puxado muitas cargas de carne
abatida. Isso pareceria muito diferente para elas? Me senti um pouco
enjoada enquanto observava os homens trabalhando, iluminados por um sol
pálido que lutava para queimar os fragmentos de nuvens que difundiam sua
luz.
Depois de um tempo, não pude suportar mais e segui para a cozinha,
suspirando de alívio ao encontrá-la vazia. Alguém varrera o forno e
descartado as cinzas da noite, então as chamas ardiam quentes e ferozes e
não levei muito tempo para aquecer o café.
Sentei-me sorvendo a bebida amarga e escaldante, minha mente
parecia mais com uma tela em branco na qual um artista perturbado estava
lançando pensamentos aleatórios. Martin… Judah… Sarah… Catherine…
Tess…
Tess suportara nossa aventura melhor do que qualquer um, lembrei
com um sorriso. Quando a carroça da missão finalmente chegou ao chalé,
Sarah estava carente e inclinada a choramingar, mas Tess estava
positivamente exultante. Ela se gabou para qualquer um que quisesse ouvir
sobre sua maestria com o rifle e seu sucesso em rechaçar Judah. Tiveram
até que arrancar o rifle das mãos dela.
Eu ainda ria sozinha sobre Tess quando Martin entrou no local.
Levantei-me e servi café numa caneca esmaltada e a empurrei pela mesa na
direção dele. Ele assentiu em agradecimento e bebemos em silêncio por
alguns minutos, num companheirismo tranquilo.
Foi Martin quem rompeu a paz do ar parado, sua voz abafando o
crepitar da madeira enquanto ela queimava no fogão.
— Você virá para Chicago comigo, não é, Nellie? Apenas por
algumas semanas. Pois precisa de tempo para pensar, para fazer planos,
então irei te ajudar. Pelo amor de Deus, não me dê um motivo para me
mudar para o Kansas. — As linhas do riso juntaram-se nos cantos dos seus
olhos enquanto ele falava aquilo e sorri em resposta, mas minha mente
estava em turbilhão.
— Mas depois do que disse… sobre os advogados…
— Eu sei. Tenho pensado nisso.
Ele sorriu de novo e meu coração deu um pequeno pulo no peito.
— Acharia difícil de acreditar quanto tempo dedico a pensar em você,
Nell. Até mesmo antes de notar que eu estava apaixonado, pensar em você
era uma das minhas ocupações favoritas. Agora, preenche meus dias – e
noites.
Ruborizei com aquilo e nós dois baixamos o olhar para nossas
xícaras, buscando a normalidade no simples ato de desfrutar de nosso café
da manhã. Martin respirou fundo.
— Eu te falei antes, o motivo de ter trabalhado tanto para dar todo o
dinheiro que precisava, e mais, para garantir sua liberdade. Para fazê-lo de
forma que possa viver uma vida de uma maneira que poucas mulheres
experimentaram; dar horizontes que com tanta frequência são reservados
apenas aos homens. Sei muito bem que nunca quis se casar. Se
estivéssemos livres… Bem, eu estaria de joelhos agora pedindo que se
casasse comigo. Mas se me recusasse devido à aversão ao estado conjugal,
eu não a consideraria nem um pouco menos feminina por causa disso.
Engoli para eliminar da garganta um nó que havia surgido nela.
— Não fale sobre o que poderia ser, Martin. Que bem isso faz?
E não faria bem nenhum dizer a ele que, se de fato estivesse de
joelhos diante de mim, minha aversão ao casamento poderia simplesmente
colapsar como um castelo de areia. Que a ideia de passar o resto dos meus
dias – e noites – com um homem, administrando sua casa e tendo os filhos
dele, não parecia nem de perto tão ruim se fosse o rosto de Martin que eu
visse sorrindo quando eu acordasse. Se ao menos tivesse percebido isso
antes.
— Não. Bem, o dinheiro. — Martin falava rapidamente agora, como
se decidindo ater-se a assuntos práticos. — Não é hora de finalmente
assumir seu lugar na sociedade? Ou irá se esconder dela para sempre por
causa de Sarah? Chicago não é uma cidade fofoqueira como Victoria. Há
mulheres – e note, não estou tentando fazer uma comparação – há mulheres
de reputação ruim que chegam à minha loja em carruagens elegantes e
encomendam seus vestidos com os modos de uma duquesa. Com riqueza,
uma mulher pode ser qualquer coisa que ela quiser. Lucetta sabe bem disso.
Olhei para cima a tempo de ver o toque sarcástico em sua boca, o
cinismo fugaz que me dizia, melhor que qualquer coisa, o que seu
casamento estava fazendo com ele.
— Não quero ficar no seminário — confessei. — Estive pensando
sobre para onde deveríamos ir. Não esqueça que Tess e Sarah terão opiniões
sobre isso também.
— Então use Chicago como seu ponto de partida — Martin falou. —
Quero apresentá-la ao seu banqueiro. Ele irá lhe instruir sobre como retirar
seus fundos e decidir sobre os investimentos, se quiser lidar com seu
dinheiro sozinha. Farei outras apresentações; posso te dar acesso a uma
vasta rede de pessoas que têm interesses por todo o país. Seja uma modista
da sociedade se desejar, ou uma grande dama da sociedade, ou viaje de uma
ponta a outra da Europa; está tudo aberto para você. Deixe-me ajudá-la a
começar, e então, se tivermos que nos separar, o faremos como amigos, em
que cada um tem seu lugar num mundo mais amplo.
— Então aceitará qualquer decisão a que chegarmos? — perguntei. —
Se eu decidir ir embora de Chicago depois de um mês, não evitará que eu
vá? — Envolvi os dedos com firmeza ao redor da xícara para fazê-los parar
de tremer.
— Vou agarrar-me à esperança de um futuro com você até que o
último fragmento de esperança tenha desaparecido — Martin disse com
seriedade. — Irei trabalhar para ficar livre de Lucetta, qualquer que possa
ser o custo; desde que seja apenas eu, e não você, que seja prejudicado. Mas
vou esperar. E ainda assim, se me disser com absoluta convicção que
estamos terminados, a deixarei partir. Sua liberdade é sua, Nell. Era seu
dinheiro em primeiro lugar, eu simplesmente o fiz aumentar. Sim, irei sofrer
– de ansiedade, por sua causa, de ciúme – confesso isso. Mas lhe deixarei
partir.
Ele estendeu as mãos num gesto de libertação, e apertei meus dedos
com mais firmeza contra a urgência de segurar os dele.
— E supondo que eu conheça outro Judah? — perguntei suavemente.
— Um com quem eu queira me casar.
Martin cobriu os olhos com as palmas, então apenas sua boca e nariz
eram visíveis.
— Eleanor Lillington, se por acaso se envolver com um assassino
pela terceira vez, irei renegá-la definitivamente. Primeiro Hiram e depois
Judah… Não, não é possível que aconteça de novo.
Ele deslizou as mãos pelo rosto e abriu bem os olhos. De súbito, nós
dois irrompemos em risadas, nossas mãos se estendendo e se unindo uma à
outra por reconhecermos que tudo que passamos nos últimos dois dias havia
acabado. Estávamos vivos e Martin estava certo – o futuro desconhecido
guardava possibilidades sem limites. Senti uma pequena bolha de otimismo
expandir dentro de mim num zumbido de empolgação.
Apertei a mão de Martin uma última vez e então a soltei quando
gritos vindos do quintal lá fora penetraram na cozinha.
— O dia já nasceu — Martin comentou. — É hora de irmos. Dê um
beijo em Tess e Sarah por mim. — Eles se despediram na noite anterior, já
que Tess e Sarah estavam tão cansadas de suas aventuras que era
improvável que se levantassem cedo.
— Até logo, Martin. — Eu não ousava dizer mais. Me inclinei por
sobre a mesa e beijei seu rosto, recém barbeado e cheirando a sabonete.
Recolhendo as xícaras, dei a volta na mesa, seguindo para a copa.
Martin levantou-se, claramente decidido a partir – mas, quando passei
por ele, estendeu um braço comprido e me puxou para perto.
Ele me beijou profunda e demoradamente e, apesar de minhas
reservas quanto a ser beijada na cozinha, onde o pastor poderia entrar a
qualquer momento – e uma leve estranheza causada pelas xícaras em minha
mão – me deleitei ao senti-lo. Parecíamos nos encaixar um no outro como
se fôssemos duas metades de uma pessoa inteira. Sua boca movendo-se
sobre a minha acordou todo o meu corpo, fazendo-o estalar com uma
energia deliciosa e ardente.
— Chicago — ele disse com a voz rouca, me soltando e alcançando o
chapéu que repousava sobre a mesa. — Me prometa, Nell.
— Chicago — falei. — Tenha… tenha cuidado, Martin.
Eu não diria que o amava. De qualquer forma, ele já sabia, e
verbalizar as palavras tornaria nossa despedida pior – ou impossível.
Esperei alguns minutos antes de seguir para a frente da casa, fazendo
o melhor para recompor meu rosto em seu estado de todos os dias.
— Segredos e mentiras — falei ao meu reflexo no pequeno espelho
pendurado perto da porta da cozinha. — Eles não combinam com você, não
é, Nell?
O rosto que olhou de volta para mim tinha manchas escuras sob os
olhos, resultado de uma noite passada refletindo sobre o momento diante de
mim – mais uma separação de Martin – e sobre um caixão que seria um de
seus companheiros de viagem. As sobrancelhas retas e castanho-
avermelhadas pareciam um pouco mais desordenadas que o normal. A pele
branca de meu rosto ainda guardava traços do vento frio que o explorou por
horas no final, e meus machucados estavam descolorindo para um roxo
pálido rodeado de verde. Meus olhos… Seriam mesmo janelas para a alma?
Poderiam o medo, o anseio e o pequeno núcleo de esperança e alegria que o
amor de Martin continuavam despertando, ser lidos ali?
— Não, eles não combinam comigo. Mas são o que tenho. — Girei
nos calcanhares resolutamente e ergui a cabeça enquanto as botas estalavam
sobre as tábuas lisas do corredor.
E lá estava Martin, já sentado no banco, examinando as rédeas e
aguardando o pastor, que estava dando um beijo de despedida na esposa.
Catherine juntou-se a mim no pórtico, enquanto o pastor erguia-se
para dentro da carroça, sentando-se ao lado de Martin e me
cumprimentando com um aceno alegre.
— Um bom dia para viajar! Teremos sol mais tarde.
Olhei para a névoa e depois para cima, para o sol batalhador e pálido,
e tentei não estremecer.
— Seu marido é um otimista — falei a Catherine.
— Sempre. — Havia uma nota de diversão em sua voz que não era de
todo sincera. — Ele ama o começo de uma jornada.
Martin fez um som de clique para as mulas e a carroça moveu-se
lentamente, suas rodas esmagando a lama. Do nosso ponto de observação,
eu podia ver o caixão.
— Adeus, Martin. Adeus, Judah.
E quando Catherine notou as lágrimas em meu rosto, eu não sabia
explicar exatamente por que estava chorando.
1876

Capítulo quarenta e nove

Mudança
28 de fevereiro de 1876
Querido Martin,
Pediu-me para informá-lo assim que fixássemos nossa data de
partida, e finalmente tenho um dia – vinte de março. Como não recebi
nenhuma resposta à última carta que enviei, presumo que esteja viajando,
como disse que faria, assim que o clima mais frio houvesse passado.
Não irei culpá-lo se não estiver em Chicago quando chegarmos,
dadas as incertezas da viagem durante esse período do ano. Nossa espera
pelo fim do inverno se tornou ainda pior por ter pouco o que fazer, exceto
nos inquietarmos. Jane Holdcroft está firmemente no comando como
costureira e não suponho que fique surpreso de saber que sinto falta de
minha antiga posição.
Com os Calderwoods longe, sem Judah, Eliza Drummond morta e o
seminário tendo retornado à sua antiga sobriedade modesta sob a direção
do dr. Spedding, finalmente tenho a existência pacífica pela qual ansiei
logo que cheguei aqui com um bebê em meus braços. Eu não quero isso.
Eu quero Chicago e um novo desafio e – bem, outras coisas que não
posso ter. Sei quais são os obstáculos de mudar-se para um novo lugar e
estou determinada a fazer melhor desta vez, mesmo que isso signifique que
eu tenha que ser mais enganosa do que o normal. Mas, pelo bem de Sarah,
farei.
Faltam apenas três semanas até que eu esteja na porta do seminário
Vida Eterna pela última vez, Martin. Não chegará rápido o bastante.
Sua,
Nell

O ar da pradaria me envolveu enquanto eu empurrava as portas


pesadas para abri-las e saía sob o arco rebaixado que as abrigava. Depois de
uma semana de uma mistura de chuva e sol, a brisa carregava um toque
acentuado de frio, uma lembrança do gelo do inverno, para nos recordar que
a estação ainda estava no começo.
O horizonte que eu podia ver da porta da frente do seminário era
cinza, tingido de um leve rosa. Enquanto eu observava, uma faísca de luz
dourada apareceu no ponto em que o céu e a terra se uniam, iluminando
alguns retalhos de nuvens que flutuavam fantasmagóricas através do céu do
amanhecer.
O fogo dourado crescia, trazendo à vida a pedra amarela da fachada
do seminário. A luz, eu sabia, iria refletir em suas fileiras de janelas e faria
as pequenas partículas incorporadas em sua pedra cintilarem com
minúsculos brilhos nos tons do arco-íris.
Olhei para o leste, a fronteira atrás de mim. Eu estava retornando para
de onde tinha vindo, sóbria pelas experiências dos últimos quatro anos, mas
um pouco – talvez muito – mais preparada para o que esse mundo havia
reservado para mim. Eu tinha as condições de sobreviver por minha conta –
se eu não pudesse ter Martin.
Querer Martin era a maior mudança de todas e guardava implicações
incalculáveis para mim, minha filha e minha amiga mais querida.
Um passo leve soou atrás de mim e uma mão pequena enroscou-se na
minha.
— Mamãe, a carroça está toda carregada no quintal. Podemos ir
agora, não podemos?
Carreguei Sarah, admirada com o peso dela em meus braços. Ela
ainda era magra e delicada, não particularmente alta para sua idade, mas
havia uma força de músculos e ossos que demonstravam saúde e vitalidade.
Lembrei-me do bebê rechonchudo que eu havia trazido ao seminário e a
abracei mais forte apenas por um momento.
— Está triste por ir embora do Kansas?
Sarah apertou os olhos contra a luz crescente, olhando para as
planícies. A luz do sol transformara suas íris em poços profundos de verde-
jade, nos quais nadavam pequenas partículas de preto, como peixes
congelados para sempre numa pequena lagoa.
— Não realmente — ela disse. — É tão grande e bonito, mas não tem
muita coisa para fazer, tem, mamãe? Poderemos ter muito mais aventuras
em Chicago. E desde que você e Tess estejam lá, sempre terei um lar
comigo, então não importa para onde formos.
Beijei sua bochecha macia.
— Como ficou tão sábia?
— Bem, eu tenho cinco anos agora, mamãe. E Tess diz que ler livros
te torna mais inteligente e você sabe que eu gosto de ler.
— Tess está certa. — Não pude evitar o sorriso enquanto acariciava
seus cachos acobreados, espessos e macios sob meus dedos.
— Nós iremos agora ou quer olhar para a pradaria mais um pouco?
Posso dizer a Tess para esperar um pouco mais.
— Não precisa. — Beijei Sarah de novo, a abaixei e segurei sua mão.
— Estou pronta.
A aventura de Nell continua em:

Não havia qualquer perspectiva de conciliar meus desejos conflituosos,


os quais pareciam todos centrados em Chicago.
Para a mãe solteira Nell Lillington, Chicago em 1876 - e sua nova
riqueza - oferecem a promessa da tão almejada independência. Ela sonha
com um lugar na sociedade para sua filha Sarah e contentamento para sua
amiga Tess. No entanto, como ela pode se estabelecer em uma cidade onde
é muito provável que encontre Martin Rutherford e sua brilhante e infiel
esposa, Lucetta? Será que poderá resistir ao seu amor por Martin, por causa
de Sarah?

Sem dúvida, Martin estava brincando quando disse a Nell que se ela se
envolvesse com um assassino pela terceira vez, ele a renegaria. Mas quando
o próprio Martin é preso por assassinato, os sonhos de Nell parecem ser
engolidos na nova teia de segredos que ela constrói para ajudá-lo. Segredos
que ameaçam afastar Tess, Sarah, e até mesmo Martin.
O terceiro livro da série Casa das Portas Fechadas o levará a uma
Chicago repleta de novos e oportunistas americanos, príncipes mercantes
amantes do luxo e cidadãos de coração duro do submundo.
A casa das portas fechadas

Livro1

9786588382707
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Pequena cidade de Illinois, 1870: Desesperada para evitar o casamento,
Nell Lillington se recusa a divulgar o nome do pai de seu filho e aceita a
decisão de seu padrasto de que o bebê nasça em uma fazenda pobre e seja
adotado discretamente.

Até que uma cela almofadada não utilizada é aberta e dois cadáveres
pequenos aparecem.

Nell é a única residente da Fazenda Pobre e está convencida de que


essa mãe solteira e seu bebê foram assassinados, e o incidente a leva a
repensar sua própria vida. Mas esse segredo que acaba descobrindo pode
significar que ela não terá um lugar seguro para onde fugir.
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Mensagem da autora

Querido leitor,
Eu espero que tenha gostado de ler Decepção eterna tanto quanto
gostei de escrevê-lo. Sou uma autora indie pagando contas fazendo o que
mais amo – criando entretenimento para outras pessoas. Portanto, meus
recursos mais importantes são VOCÊS, os leitores, sem os quais eu estaria
apenas conversando comigo mesma. De novo.
Minha promessa para você é que farei meu melhor. Farei pesquisas
para tornar o pano de fundo histórico o mais fiel possível. Vou editar e polir
até que o livro esteja de acordo com meus (altos) padrões. Lhes darei uma
bela capa para a qual olhar, e garantirei que meus livros estejam disponíveis
no máximo de formatos e lugares possíveis. Manterei meus preços mais
baixos quanto forem compatíveis com a manutenção de meu negócio de
publicações.
O que você pode fazer por mim? Se amou este livro, há algumas
formas de me ajudar.
Me diga o que achou. Se você acessar www.janesteen.com, verá um
pequeno ícone de envelope perto do final da página. É assim que pode me
contactar por e-mail. Ou pode usar a página de contato no site. Eu amaria
saber o que achou do livro. Ou me encontre no Facebook, Twitter ou
Goodreads.
Deixe uma avaliação. Uma avaliação honesta – mesmo que queira
apenas dizer que não gostou do livro – é de grande ajuda. Deixe-a no site
onde comprou o livro, ou num site de leitores como o Goodreads.
Conte a um amigo. Eu amo quando as vendas vêm através do boca a
boca. Melhor ainda, mencione meu livro nas redes sociais e amplifique seu
poder de ajudar minha carreira.
Me siga na Amazon ou no BookBub para se informar sobre promoções
de meus livros e novos lançamentos.
Se inscreva na minha newsletter em www.janesteen.com/insider. É um
ganha-ganha: na minha newsletter é onde ofereço cópias gratuitas, extras
não publicados, informações internas e te aviso quando um novo livro vai
sair.
E obrigada de novo por ler.
Nota da autora

Minha inspiração para o cenário de Decepção eterna foi uma velha


fotografia do Seminário Teológico da Virgínia, um prédio que parecia um
bolo de casamento, cercado por pequenas árvores. Eu tinha mandado Nell
para o Kansas, não para a Virgínia – ainda assim, este não é um romance
sobre o Kansas de forma alguma, em forma ou estrutura, e com certeza não
é um romance sobre a Virgínia.
O objetivo era dar a Nell o isolamento que ela acha que precisa para
criar Sarah longe das fofocas, e para que descobrisse que seu Jardim do
Éden tem algumas serpentes. A configuração do seminário estava bem à
mão, já que à medida que a fronteira forçava o caminho para as vastas
planícies centrais dos Estados Unidos, as comunidades religiosas também o
faziam. Pessoas cujo recurso primário era a determinação, ergueram
enormes construções em meio a lugar nenhum sob a premissa de que uma
cidade iria, um dia, crescer ao seu redor, e muitos desses prédios ainda
existem no coração das universidades espalhadas pelos Estados Unidos.
Eu queria lembrar ao leitor que a expansão para o oeste não foi apenas
sobre os colonos, caubóis e indígenas e salões cheios de garimpeiros com
armas em punho que víamos nos filmes e na TV. Durante a última parte dos
anos 1800, a América estava sob a influência de um forte movimento de
temperança que buscava restringir o uso do álcool (e finalmente conseguiu).
O Terceiro Grande Despertar varreu partes do país com fervor evangélico e
movimentos sabatistas lutaram para reforçar um regrado descanso nos
domingos.
Ao mesmo tempo, igrejas estavam sendo desafiadas por descobertas
científicas e secularismo, sem mencionar um grande número de novos
movimentos religiosos e experimentos da vida comunitária. E as fronteiras
recebiam notícias (e bens) mais rápido do que você imaginaria, graças às
crescentes ferrovias, comerciantes empreendedores como Montgomery
Ward e Marshall Field, que mandavam seus vendedores para as regiões
selvagens, e empresas de comunicação como os telégrafos da Western
Union e os serviços de postagem e banco da Wells Fargo.
O Seminário Vida Eterna e a cidade satélite de Springwood existem
apenas em minha imaginação, e a congregação que o mantém foi mantida
deliberadamente vaga. Sinto que devo deixar claro que não tive nenhuma
intenção de criticar qualquer congregação em particular ou até mesmo o
protestantismo cristão em geral – eu simplesmente estava interessada na
ideia de que um local isolado poderia facilmente ficar sob o controle de
pessoas cujos motivos subjacentes não tinham nada a ver com religião. Os
tacanhos, mercenários e ávidos Calderwoods foram bem divertidos de
imaginar, e não foram baseados em nenhum modelo histórico.
Judah tem toda uma história prévia que nunca chegou à versão final do
romance, e se estiver frustrado pelo conteúdo da carta nunca ter sido
explicado, pode ter certeza de que o remetente da carta não sabia nem a
metade de tudo, então aceite minhas desculpas pela decisão de não diminuir
o ritmo da história para explicar Judah. Eu amo mesmo meus vilões e
espero escrever uma história sobre Judah qualquer dia. O fato dele carregar
uma leve semelhança com Benedict Cumberbatch como Sherlock Holmes é
um presente à minha parceira crítica, Katherine Grubb. E já que o assunto
são atores, eu gostaria de me desculpar com Meg Ryan e Billy Crystal pelo
capítulo nove.
Os vestidos que Nell faz no curso desses quatro anos cobertos pelo
romance são todos inspirados em vestidos históricos reais, e sou grata a
todos os museus, institutos de pesquisa e entusiastas do século dezenove
que tornam fotos e roupas originais disponíveis na internet. Vá até meu
quadro no Pinterest em https://www.pinterest.com/janesteen/eternal-
deception/ para ver os originais. Este provavelmente será o romance mais
repleto de vestidos de Nell porque é onde ela de fato desenvolve suas
habilidades, então obrigada por me satisfazer.
Agradecimentos

Este romance foi tão extenso em sua criação que tenho quase certeza
de que irei esquecer alguém que foi de ajuda decisiva para que ele visse a
luz do dia. Particularmente, já que a escrita de Decepção Eterna teve lugar
durante um estágio da minha vida onde nós (a geração adulta) estávamos
nos ajustando à transição das crianças para a idade adulta e vendo nossos
mais velhos mudarem para um estágio mais tranquilo e menos ativo da
vida. Mas nunca esquecerei de ter recebido o primeiro rascunho de minha
parceira de crítica, Katherine Grubb, coberto de caneta laranja – uma visão
que levava à decisão extremamente frutífera de reescrever a coisa toda
desde o começo e continuar reescrevendo até que tivesse a história certa.
Sou grata por suas avaliações honestas e rigorosas de meu trabalho e suas
ideias criativas sobre meus personagens.
Alguns outros autores (e um leitor!) tiveram paciência para ler uma ou
mais versões do manuscrito e dar sua opinião sobre o que estava e não
estava funcionando. Agradeço em particular a Maureen Lang e Judy Knox
por suas avaliações detalhadas e qualificadas da penúltima versão e
obrigada em geral a Sherri Gallagher, Myra Wells, Tonja Brice, Megan
Krizman, Tracey Stewart e Mary Walter por serem leitoras maravilhosas e
críticas que são completamente responsáveis por uma mudança vital ou
outra.
Poucos autores são talentosos o bastante para produzir um livro, assim
como escrevê-lo, então meus agradecimentos vão para minha editora, Jenny
Quinlan, por corrigir com paciência minha pontuação rebelde e indicar
alguns casos em que usei um termo moderno demais, ainda que tenha
pensado que havia eliminado todos eles.
Muito obrigada à designer extraordinária Rachel Lawston
(lawstondesign.com) pela capa maravilhosa, ainda que eu nunca vá
esquecer o desenho original de Derek Moore e a fotografia de Steve Ledell.
E, é claro, obrigada a minha família por aturar ter sido negligenciada
enquanto eu cuidava de meus amados ficcionais. Amor e agradecimentos
eternos em particular a Bob, por apoiar minha escrita, nunca colocar
obstáculos no caminho das minhas diversas ambições e, geralmente, ser um
ótimo marido.
Sobre a autora
O fato mais importante que você precisa saber sobre
mim é que meu nome foi escolhido (ao menos de acordo
com minha mãe) em homenagem a Jane Eyre, que até
hoje permanece sendo um dos meus livros favoritos. Eu
claramente estava destinada a amar tudo que era
vitoriano, e acabei estudando tanto autores ingleses
quanto franceses do século XIX com profundidade.
Essa foi uma base muito boa para começar a
escrever romances que se passam no século XIX. Estava morando na
pequena cidade de Libertyville, Illinois – parte da área da grande Chicago –
quando comecei a escrever a série A casa das portas fechadas, inspirada
por uma fotografia há muito desaparecida da Fazenda dos Pobres do
Condado na rua principal de Libertyville.
Agora, de volta à minha Inglaterra nativa, tenho a sorte de viver em
uma antiga cidade idílica perto do mar. O local desencadeou uma nova série
sobre uma família aristocrática com mais segredos que a maioria: The Scott-
De Quincy Mysteries.
Escrevo para leitores que querem uma série impossível de largar. Amo
misturar narrativas épicas, mistério, aventura e um toque de romance, sobre
um plano de fundo dos problemas da vida real de mulheres no fim do
século XIX.
Sou membro da Aliança de Autores Independentes, da Sociedade de
Romances Históricos, Romancistas Inc. e da Sociedade de Autores.
Informaçõ es Leabhar
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