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Meu desespero me leva direto a Damiano De Rossi. Ele governa esta ilha
com punho de ferro e sob seu rosto incrivelmente bonito reside uma
escuridão perversa. Peço-lhe um emprego. Ele me dá muito mais do que
isso... degradação, ciúme e luxúria arrepiante.
Meu entorno escurece. Há uma camada de suor frio nas palmas das
minhas mãos. Debaixo da minha pele, um milhão de pequenos vermes
começam a resistir e a rastejar.
Sempre que Lazaro traz uma nova vítima, começa sempre assim. A
adrenalina corre pelas minhas veias e me dá vontade de vomitar. Às vezes,
gostaria que meu cérebro e meu corpo simplesmente desligassem.
Eu os chamo de vítimas, embora a maioria deles sejam homens maus.
São ladrões, criminosos e assassinos com currículos tão variados quanto
uma caixa de giz de cera. Mas todos morrem da mesma maneira.
Na minha mão.
— Quem é ela? — Eu pergunto.
Os lábios do meu marido se erguem nos cantos enquanto ele olha para
a mulher na tela. — Uma ratinha Casalese. Talvez possamos ficar com ela
por um tempo.
Eu franzo a testa. O que isso significa? E esse apelido estranho... Ele
nunca chama as pessoas que traz para cá de nomes especiais.
Ele estende a mão. — Vamos conhecê-la.
Ele deve sentir como minha palma está suada na sua mão fria e seca,
mas não diz nada sobre isso. Nunca descobri se ele está apenas fingindo não
notar meu desconforto ou se isso realmente não é percebido por ele. Eu
chorei, gritei, implorei – nada. Seu sorriso suave nunca sai de seu rosto
enquanto ele me dá meus comandos. Ele não muda nem quando ele me diz
o que fará comigo e com Lorna se eu não obedecer.
A saia do meu longo vestido estampado de flores farfalha ao meu
redor enquanto Lazaro e eu descemos para o porão. As solas dos meus
sapatos caros são finas. Posso sentir o frio cortante do concreto através
deles. A mulher no chão deve estar congelando.
Ela aparece e meu coração bate forte. Seu rosto não é visível sob um
véu de longos cabelos loiros. Ela está vestindo uma calça jeans e uma blusa
de botões que está rasgada em alguns lugares.
Onde eles a pegaram e como? Foi Lazaro quem a pegou?
Às vezes suas vítimas são trazidas até nós, e outras vezes ele
desempenha o papel de caçador e carrasco. É por este último papel que ele
é famoso entre os círculos criminosos. Os homens do submundo de Nova
York sabem que se ficarem do lado ruim de Stefano Garzolo, ele só precisa
dizer uma palavra, e meu marido irá atrás deles. E isso é suficiente para
manter a maioria deles na linha.
A mulher se mexe. Há um pequeno movimento, seguido por um
gemido de dor. Ela não está sangrando em nenhum lugar, pelo que posso
ver, mas deve ter sido sedada.
Lazaro se move com propósito. Ele agarra seus pulsos e puxa suas
mãos sobre sua cabeça. Ela começa a lutar lentamente, mas é infrutífera.
Lazaro é forte. Ele não leva mais de trinta segundos para amarrar os pulsos
dela com uma corda grossa. Quando termina, ele a levanta pela cintura e
amarra a corda em um gancho de metal pendurado no teto. A mulher
balança, suspensa pelos braços. Por fim, seu cabelo cai do rosto e vejo seus
olhos castanhos estreitados.
Pressiono a palma da mão sobre a boca. Meu Deus, ela é apenas uma
menina. Não mais que dezoito. Por volta da idade de Cleo. Uma corrente de
náusea atinge meu estômago e o joga de um lado para o outro.
Ela começa a ofegar, mas ainda está bastante fora de si. Sua cabeça
pende de um lado para o outro.
— Porque ela está aqui? — Eu pergunto baixinho. Tem que haver uma
explicação. Tudo o que Papà faz é para manter nossa família segura, então
ela deve ser uma ameaça.
Lazaro dá de ombros. — É apenas um trabalho.
— Um trabalho?
— Alguém a quer. Ela estava em nosso território. Um favor foi pedido,
então nós a levamos, agora eu e você podemos brincar um pouco com ela.
Alguém virá buscá-la amanhã à noite.
Minha respiração fica irregular. Pegá-la viva ou morta? De qualquer
forma, “brincar” é a palavra-código de Lazaro para tortura. Isso está de
alguma forma relacionado com o que Tito me disse antes? — Mas o que ela
fez?
— Nada. Ela nasceu com o sobrenome errado.
Não há gravidade em suas palavras. Nenhuma indicação de que ele
perceba o horror do que acabou de dizer. Meu marido não se importa com o
motivo de alguém acabar em seu porão, mas eu me importo. Preciso de
razões “desculpas” para o que fazemos a essas pessoas. Uso as migalhas que
ele me dá para justificar minhas ações.
Ele era um estuprador e agora está recebendo o que merece.
Ele roubou dinheiro do clã e poderia ter matado Tito se o tiro tivesse
acertado onde ele pretendia.
Ele cortou a cocaína com levamisol suficiente para causar convulsões
nos compradores.
Mas esta razão é tão frágil que nem mesmo pode ser usada por
alguém tão experiente em exercícios mental como eu.
De repente, um grito corta o ar. O efeito do sedativo deve ter passado.
A garota começa a se debater com tanta força que tenho medo que ela
desloque os ombros. Uma veia no pescoço de Lazaro lateja. Ele não está
preocupado que alguém a ouça. O porão é à prova de som e os vizinhos
sabem que não devem meter o nariz nos negócios dele. Mas Lazaro odeia
quando eles gritam sem motivo.
— Quieta agora. — diz ele, puxando uma seringa.
Os gritos da garota se transformam em gemidos. — Não, por favor.
Por favor, não me incomode com isso. — ela diz com um sutil sotaque
italiano.
Meu marido sorri para ela como faria para um entregador. Todos
simpáticos e bem humorados. — Você terminou? Se você prometer ficar
quieta, vou guardar a agulha.
Os olhos da menina passam da seringa para o meu marido e para mim.
Ela sustenta meu olhar por um segundo, confusão passando por sua
expressão. Não pareço uma assassina, especialmente quando estou vestida
para um chá de panela. Ela provavelmente está se perguntando o que
diabos estou fazendo aqui.
— Não vou gritar. — diz ela com uma voz trêmula e suplicante. Seu
peito sobe e desce com suas respirações rápidas e superficiais, mais uma
vez, fico impressionada com o quão jovem ela é. Nem uma única ruga no
rosto, nem um traço de cabelo grisalho.
Essa garota não parece ser do tipo que machuca alguém.
Fecho os olhos enquanto o horror cresce dentro da minha barriga.
— Por favor, isso é um erro. — diz ela, tentando manter a voz calma.
— Não sei quem você pensa que sou, mas sou apenas uma turista. Estou em
Nova York por duas semanas com minha amiga. — Seus lábios tremem. —
Imogen é…
Lazaro enfia as mãos nos bolsos da calça e se recosta na parede. —
Sua amiga está morta.
As feições da garota se contorcem.
O sorriso de Lazaro aumenta e ele balança a cabeça, como se estivesse
contando alguma piada secreta. — Confie em mim, de vocês duas, sua
amiga é a sortuda.
Ela leva um segundo para processar o que ele quis dizer, mas quando
o faz, lágrimas silenciosas escorrem por seu rosto. — Eu não entendo. — ela
balbucia. — Por que isso está acontecendo?
— Não é culpa sua. — ele diz calmamente. — Não se culpe. Realmente
não havia nada que você pudesse ter feito.
É como se ele estivesse tentando mexer com ela. Isso faz parte da
punição, eu percebo. Quem pediu ao Papà para capturar esta menina queria
que ela sofresse.
Meu marido se vira para mim. — Eu vou me trocar. Vocês duas podem
usar o tempo para se conhecerem.
A garota e eu o observamos subir as escadas, então somos só nós. O
fundo da minha garganta começa a doer. Eu sei o que está por vir. Ela vai
implorar. Todos eles fazem.
— Por favor, você tem que me ajudar. — ela resmunga. — Ele está
errado. Ele pegou a garota errada.
Dou um passo em direção a ela. Ela se afasta, obviamente sem saber o
que esperar de mim. Ela tem sardas no nariz redondo e bochechas
rechonchudas.
— Ele nunca está errado. — eu digo. Minha boca está tão seca que
minha língua parece uma lixa.
Ela também deve estar com sede.
— Você quer um pouco de água? — Eu pergunto.
Ela assente.
Pego uma garrafa de água do frigobar e levo para ela. Ela engole a
água enquanto eu faço o meu melhor para despejá-la em sua boca. De
perto, posso sentir o cheiro dela. Limão-verbena, hortelã e areia. Ela até
cheira a inocência. Essa garota não é uma ameaça. Ela não merece sentir
uma dor terrível.
Desvio o olhar enquanto um arrepio percorre meu corpo. Imagens
piscam dentro da minha cabeça como uma antiga apresentação de slides. Os
olhos cheios de felicidade de Lazaro quando eles dão seu último suspiro. A
maneira como suas calças ficam na virilha. O olhar orgulhoso que ele me dá
enquanto estou tremendo no chão com sangue nas mãos.
— Por favor, me ajude. — ela implora.
Sinto uma dor surda na garganta. — Eu não tenho escolha.
Eu gostaria de fazer isso. Gostaria de poder parar de ter tanto medo.
— Sempre há uma escolha. Você pode escolher me ajudar. — Outra
lágrima escorre por sua bochecha direita e escorre pelo queixo até a
camiseta. — Posso ver que você é uma boa pessoa.
Meus dentes cavam meu lábio inferior. Uma boa pessoa? Se eu fosse
uma, encontraria uma maneira de ser corajosa.
Lazaro me disse o que faria se eu parasse.
Ele matará Lorna e me torturará.
Ele me conhece bem o suficiente para saber que meu desejo de
proteger nossa governanta inocente me manteria na linha.
Mas essa garota também é inocente.
Ela sustenta meu olhar, seus jovens olhos brilhando com uma
determinação desesperada que parece muito familiar... Cleo. Ela me lembra
da minha irmã mais nova.
Ela pode ser irmã de alguém também. Uma filha. Talvez uma mãe um
dia.
Como posso tirar isso dela?
E é aí que a compreensão me atinge.
Não posso.
Se houver uma pequena chance de tirá-la disso, tenho que aproveitá-
la.
Meus pulmões se expandem com uma respiração profunda. É o
primeiro que tomo em semanas.
— Você não quer me machucar. — diz a garota em voz baixa.
Não, eu não. Acho que sempre soube que um dia chegaria a esse
ponto. Aguentei o máximo que pude, mas não aguento mais.
Vou tirá-la daqui.
O que significa que preciso de um plano e rápido.
Meu entorno fica mais nítido à medida que chego a um acordo sobre o
que terei que fazer.
Lazaro deve ser neutralizado.
Ando até as gavetas ao longo da parede e começo a abri-las uma por
uma.
— O que você está fazendo? — a garota pergunta.
— Ajudando você. Fique quieta. — Encontro uma faca e a enfio na
parte de trás da saia. Não é difícil encontrar armas aqui, mas seria bom se
houvesse uma…
Pistola. Pego-a no fundo de uma gaveta e verifico se está carregada. Já
estive no campo de tiro três vezes. Papà acha que é uma habilidade básica
que todos na família deveriam saber, até mesmo as meninas. Achei que era
progressista da parte dele, mas isso foi antes de ele me casar com um
assassino sádico.
— O que você vai fazer com isso? — a garota pergunta.
— Atirar nele.
Ela engole. — E então? Como saímos daqui?
Essa é uma ótima pergunta. Se conseguirmos passar por Lazaro, ela
poderá escapar pela entrada dos fundos. Nunca está vigiada quando Lazaro
está por perto. Ninguém é louco o suficiente para tentar atacar o principal
executor de Garzolo no conforto de sua casa. Se ela correr pelo quintal,
poderá atravessar a estreita área arborizada e acabar fora do bairro, na
beira da estrada.
E então o quê? Não, ela precisa de um carro. Mas Michael, o guarda
da entrada do bairro, está na folha de pagamento de Lazaro e soará um
alerta caso veja alguma mulher desconhecida dirigindo um de nossos
veículos.
Ele não o fará se for eu quem estiver dirigindo. Posso dizer que vou ao
supermercado comprar algo para o jantar. Isso nos dará pelo menos uma
hora. Isso é tempo suficiente para eu levar a garota para um lugar seguro?
Troco à faca enfiada na saia pela arma e corro para começar a cortar a
corda que prende suas mãos. Ela está respirando com dificuldade, mas há
um brilho em seus olhos agora.
— Você tem alguém em Nova York que possa ajudá-la? — Eu
pergunto.
— Não. Minha amiga foi a única que veio comigo, mas se eu recuperar
meu telefone, posso ligar para alguém.
— Eles virão atrás de nós rapidamente. — digo a ela. — Você precisa
estar longe antes que eles percebam que você se foi.
Meus pensamentos disparam. Vou colocá-la no porta-malas e ir para o
mais longe possível, mas ela precisa fugir para algum lugar mais longe do
que um carro possa levá-la.
— Preciso ir para o aeroporto. — diz ela, como se sentisse meus
pensamentos. — Eu preciso chegar em casa para...
— Não me diga. — eu interrompo. Se eu for pega, é melhor não saber
para onde ela foi. — Você está com seu passaporte?
— Estava na minha mochila. — diz ela. — Mas eu não tenho mais isso.
A mochila no balcão deve ser dela. — Eu sei onde está. — Termino de
cortar a corda e a garota cambaleia até mim.
— Você vai ficar bem. — murmuro, embora não tenha ideia se isso é
verdade. — Vou nocauteá-lo quando ele voltar, então você precisa me
seguir escada acima. Pegaremos suas coisas e levaremos o carro. Você
entrará no porta-malas. Vou dirigir diretamente para o aeroporto. A partir
do momento em que eu te deixar, você estará por sua conta.
Alívio e ansiedade dançam em seu rosto. — Ok.
A arma está fria, mas queima as roupas das minhas costas. Eu a pego
em minha mão e faço sinal para ela se mover atrás de mim.
Os minutos que esperamos pelo retorno de Lazaro são angustiantes.
Minhas entranhas se movem tão alto que tenho medo que ele as ouça assim
que abrir a porta do porão. Mas também sei que meu marido nunca
esperará isso de mim. Aos olhos dele, sou impotente. Dificilmente uma
ameaça. Posso usar isso a meu favor.
Finalmente, a porta se abre com um rangido abafado. Estamos fora de
vista, então quando ele chega ao pé da escada, é para suas costas que estou
olhando. Não há tempo para hesitações. Não posso permitir que ele
processe o fato de que a garota não está mais amarrada. Meu dedo
pressiona o gatilho e assim que ele se vira, eu atiro.
CAPÍTULO TRÊS
VALENTINA
A arma recua. Lazaro cai. O som do tiro faz vibrar meus tímpanos. O
momento se expande, absorvendo cada vez mais informações até que
finalmente explode e eu pulo em movimento.
— Vamos. — eu digo, agarrando a garota pelo pulso.
— Ele está morto? — Ela pergunta enquanto eu a arrasto escada
acima.
— Não sei. — Não há tempo para verificar onde acertei nele, tudo que
sei é que ele está caído e não se move. O pensamento de que posso tê-lo
matado mal é registrado. Eu duvido. Eu não tenho tanta sorte.
Subo as escadas tão rápido que quase tropeço. De alguma forma,
ainda tenho bom senso suficiente para trancar a porta do porão quando
sairmos. Viramos a esquina e irrompemos na cozinha.
— Aqui. — Eu jogo a mochila para a garota.
Ela vasculha e faz um som frustrado. — Meu passaporte está aqui, mas
meu telefone e carteira sumiram.
Como ela vai pagar o voo? Precisamos de dinheiro. Se eu der a ela
meu cartão de crédito, Papà poderá facilmente localizá-la.
— Venha comigo. — digo a ela enquanto vou em direção ao escritório
de Lazaro no segundo andar. Ele tem um cofre cheio de dinheiro, armas e
outros objetos de valor. Meus sapatos param no chão de madeira polida
quando chegamos ao cofre. É uma coisa poderosa, quase tão grande quanto
uma geladeira.
— Você sabe o código? — a garota pergunta.
Não me preocupo em responder enquanto digito a senha. Assim como
o tempo, as palavras parecem preciosas. Cada som que fazemos é um risco,
uma oportunidade para alguém nos ouvir. Há esta hora a casa está vazia,
Lorna saiu no início da tarde, mas estou paranoica. Olho por cima do ombro
enquanto abro a pesada porta do cofre. Metade de mim espera ver Lazaro
sangrando bem atrás de nós com uma faca na mão, mas ele não está lá.
Entro e pego uma pilha de dinheiro, depois de um momento, pego
meu passaporte também. Não tenho ideia do que farei depois de deixá-la,
mas voltar aqui não é uma opção e não irei longe sem nenhum documento.
Tudo está quieto enquanto caminhamos para a garagem, mas minhas
mãos tremem quando pressiono o botão para abrir o porta-malas.
— Entre. — digo à garota.
Eu modero o desejo de acelerar pela vizinhança. Isso pode alertar
Michael de que algo está errado. Quando estaciono do lado de fora de sua
cabine, esboço meu sorriso mais relaxado, embora esteja hiperconsciente
das gotas de suor acumuladas ao longo da linha do meu cabelo. Michael sai
e faz sinal para que eu abaixe a janela. Sempre fomos cordiais, mas não mais
que isso. Espero que ele não esteja com vontade de conversar.
— Saindo? — ele pergunta, arrastando o olhar para o interior do carro.
Ele está apenas fazendo seu trabalho. Não há nada aqui que deva levantar
suspeitas.
— Sim. Preciso pegar algumas coisas para o jantar no supermercado.
— digo.
Seus olhos se estreitam. — O que é isso na sua bolsa? — Ele pergunta,
apontando para onde minha bolsa está no assento ao meu lado.
Meu coração salta para a garganta. Por uma fração de segundo, acho
que o passaporte escapou e ele está se perguntando por que preciso dele
para ir ao supermercado. Em vez disso, quando olho para baixo, é a faca que
enfiei ali que caiu.
Deixei escapar uma risada envergonhada. — Oh, isso deve ser de
Lazaro. Ele sempre esquece suas coisas no carro.
Michael funga. — Talvez você queira guardar isso no porta-luvas
enquanto você estiver fora.
— Você está absolutamente correto.
Ele me encara enquanto espera que eu faça isso. Droga, eu escondi a
arma lá. Abro o compartimento apenas alguns centímetros e deslizo a faca o
mais rápido que posso.
Ele fareja novamente e depois se afasta do carro. — Vou abrir o
portão.
Prendo a respiração até virar na esquina e ele desaparecer de vista.
Estamos fora. Na verdade, nós conseguimos sair.
Há um breve momento de alívio até que percebo que tenho outro
dilema. Não sei como chegar ao aeroporto mais próximo, Newark, sem o
GPS, o que significa que preciso manter meu telefone ligado, mas isso
significa que os homens de Papà poderão me rastrear assim que souberem
que fui embora. Merda.
Abro o aplicativo de mapas, digito rapidamente nosso destino e
examino a rota. Não é tão ruim. Assim que chegarmos perto do aeroporto,
haverá placas por toda parte. Com uma última olhada, abro o
compartimento do cartão SIM e jogo o chip pela janela. Então desligo meu
telefone.
Meus pensamentos disparam quando entro na rodovia. Tenho um
curto espaço de tempo para decidir o que diabos devo fazer. Michael vai
soar o alarme assim que perceber que estive fora por muito tempo. Será
apenas uma questão de tempo até que os homens de Papà me prendam.
Se Lazaro estiver vivo, eles vão me devolver para ele. Se ele estiver
morto, Papà será o responsável pela minha punição. Aperto minhas mãos
com mais força ao redor do volante. Ele não me tratará bem por interferir
em seus negócios, libertar um de seus prisioneiros e matar um de seus
melhores homens. Papà odeia traidores. Ele não vai me mostrar nenhuma
piedade.
Três batidas fortes vêm da traseira do carro.
Pego a próxima saída e entro no estacionamento de uma Target
abandonada. Essa parada é um tempo que não podemos desperdiçar, mas
temo que ela esteja sufocando ali dentro. Abro o porta-malas e a ajudo a
sair.
— Eu ia vomitar se ficasse lá por mais um minuto. — ela diz enquanto
balança as pernas para fora da borda.
— Precisamos continuar dirigindo. — digo a ela. — Ainda estamos a
cerca de dez minutos do aeroporto. — Pego meu telefone e corro até uma
lata de lixo próxima. Não tenho como ficar com o aparelho. Mesmo sem o
cartão SIM, tenho certeza que eles conseguirão me rastrear assim que eu
ligá-lo novamente. Estou prestes a voltar correndo para o carro quando meu
olhar se depara com minha aliança de casamento. Depois de um momento,
tiro-a do dedo e jogo-a fora também.
A garota se senta ao meu lado e voltamos para a estrada. — O que
vamos fazer quando chegarmos lá? — ela pergunta.
— Você vai comprar um assento no primeiro voo. — digo. — Você
precisa estar em um avião o mais rápido possível.
Na minha periférica, vejo-a acenar com a cabeça. Não consigo
imaginar o que ela está sentindo e pensando. Quanto disso ela se lembrará
quando a adrenalina passar? Ela está se segurando, mas por pouco.
Não que eu esteja muito melhor, para ser honesta.
Dirigimos em silêncio por alguns minutos, mas posso sentir seu olhar
pensativo sobre mim. — Por que você decidiu me ajudar? — ela pergunta.
Apesar dos muitos motivos que imediatamente surgem na minha
cabeça, tenho dificuldade em lhe dar uma resposta.
Porque você é inocente.
Porque você me lembra da minha irmã mais nova.
Porque se eu machucar alguém mais uma vez, posso me matar logo
em seguida.
E eu quero viver, mesmo que não mereça. Por alguma razão, não
estou pronta para dizer adeus a este mundo feio.
— Porque eu posso. — digo finalmente.
Há placas para o Aeroporto de Newark agora. — Deixe-me no terminal
internacional. — diz a garota.
É uma boa ideia sair do país. A influência de Papà vai longe, mas ele
não é onipotente.
— O dinheiro está na minha bolsa. — digo. — Pegue o que você
precisar.
Ela pega a bolsa que está presa entre seus pés e tira o maço de
dinheiro. Então ela conta. — Vou levar quatro mil. Isso será suficiente para
me levar para casa. — Ela continua a contar. — Isso deixa você com seis.
Seis mil, uma faca, uma arma e as roupas do corpo. Isso é tudo que me
resta em meu nome.
— O que você vai fazer? — a garota pergunta.
Correr.
Correr e esperar que eles não me encontrem.
Minhas irmãs não vão entender por que saí porque não sabem nada
sobre os jogos sádicos de Lazaro. Meus pais nunca vão contar a elas, mas
talvez este seja o alerta deles para não fazerem com Gemma e Cleo o que
fizeram comigo. Eu me pergunto como eles explicarão meu
desaparecimento. Cleo ficará cética, não importa o que digam, mas Gemma
pode acreditar neles. Ela é leal. Empenhada. Assim como eu costumava ser.
Antes do meu casamento, Mamma me disse que estava satisfeita com a
forma como eu absorvi todas as suas lições.
Desculpe, Mamma. Estou prestes a me tornar sua maior decepção. Eu
não aguentaria a vida que você queria para mim. Ninguém vai me chamar de
esposa perfeita depois disso.
— Ouviu-me?
Olho para minha companheira. Ela está roendo as unhas. Ela parece
tão assustada. Isso faz uma dor aparecer no meu peito.
Ela vai conseguir sozinha? E se eu atirasse no meu marido só para ela
ser levada por outra pessoa? Não tenho ideia de qual seja a história dela, ou
por que Lazaro recebeu ordem de levá-la. E se ele não fosse o único atrás
dela?
— Não sei o que vou fazer. — digo.
Uma mecha de cabelo emaranhada cai em seu rosto. — Você vem
comigo comprar minha passagem? — Sua voz treme. — Não quero parecer
suspeita para os funcionários da companhia aérea. Você pode dizer que é
minha irmã e que está me comprando uma viagem de última hora.
Não quero saber para onde ela está indo, mas ela tem razão. Ela
parece jovem e está viajando sem bagagem. E se eles acharem que ela está
com problemas e não permitirem que ela embarque?
— Ok, eu vou com você. Assim que passar pela número de segurança,
compre uma muda de roupa e use um chapéu. Não fale com ninguém, a
menos que seja necessário.
— Você acha que eles estão nos seguindo?
— Se ainda não estão, estarão.
O terminal internacional fica bem aqui. Paro em uma zona proibida e
saímos.
— Eles não vão rebocar seu carro? — ela pergunta.
— Seremos rápidas. — Deixe-os rebocá-lo. Eu não vou voltar a isso.
Assim que conseguirmos a passagem da garota, comprarei a minha para
algum lugar longe daqui.
Paramos na tela de embarque e ela aponta para um voo para
Barcelona. — Aquele. Poderei ser pega de lá.
Está saindo em uma hora.
— Vamos. — eu digo e a levo até o balcão.
Apesar de toda a nossa preocupação, a agente não pisca enquanto
emite a passagem para a garota.
Segurando o passaporte na mão, ela se vira para mim. Seus olhos
castanhos encontram os meus.
Resta-me dizer uma última coisa. — Nunca mais volte para Nova York.
Nunca.
Ela suga uma respiração irregular. — Esta cidade pode ir para o
inferno.
Seus tênis Converse de sola rosa batem no chão enquanto ela corre
até a fila de segurança.
Espero até que ela desapareça de vista e depois vou até outro agente.
Quando lhe digo que pegarei qualquer voo que saia na próxima hora
além do voo para Barcelona, ele balança a cabeça. — Todos os outros voos
que partiremos na próxima hora estão lotados. — ele me diz. — Você pode
tentar ir a uma companhia aérea diferente para verificar o que eles têm.
Terminal dois.
Eu cerro os dentes. Não há tempo para correr pelo aeroporto. Papà
pode já estar descobrindo o que aconteceu. — Mas há disponibilidade no
voo para Barcelona?
— Temos um assento restante na classe executiva. — confirma.
A garota Converse conseguiu o último assento na classe econômica.
Comecei a chamá-la assim na minha cabeça, porque é estranho ter vivido o
momento mais intenso da minha vida com alguém cujo nome nem sei. Ela é
a garota Converse de agora em diante.
— Quanto isso custa?
— São três mil quinhentos e dois dólares.
Meus olhos se arregalam. Jesus, é caro, mas é o que ganho por
comprar uma passagem minutos antes do embarque do voo. Não quero ir
para onde ela está indo, mas realmente não tenho escolha melhor. Entrego-
lhe o dinheiro.
Os dois mil e meio que ainda tenho na bolsa não parecem nada,
especialmente porque não sei o que vou fazer quando chegar à Europa.
Quanto tempo isso vai durar para mim? Não tenho ideia de como encontrar
um emprego. O único “trabalho” que já tive foi ajudar mamãe a organizar
eventos de caridade, não precisei fazer entrevistas para isso. Que
habilidades eu tenho? Não acho que guardar segredos, cozinhar uma
lasanha ruim e ter uma aparência bonita grite “contrate-me”.
A voz do agente me salva de um colapso total.
— Aqui está seu cartão de embarque. — Ele me entrega um pedaço de
papel. — Você deveria se apressar para o portão.
Saio correndo pelo aeroporto, passo pela segurança e entro em uma
loja para comprar um moletom e um chapéu. Meu vestido é muito
reconhecível e não quero que a garota da Converse me veja e pense que a
estou seguindo.
No portão, eu a vejo sentada em um dos assentos, então me certifico
de não estar na linha de visão dela. São todas famílias e turistas
entusiasmados pensando, mas cada vez que vejo um único homem, meu
coração dispara. Ele está pegando o telefone na jaqueta? Para quem ele está
ligando? Ele apenas olhou para mim por um segundo a mais?
A paranoia é brutal. Eu me forço a respirar fundo. Não há como Papà
ter me rastreado tão rapidamente. Mesmo que eu apenas causasse um
ferimento superficial em Lazaro e ele se levantasse assim que saíssemos de
casa, ele precisaria de algum tempo para me localizar. Ele não pode saber
para onde eu fui.
A menos que eles tenham rastreado o carro.
Oh Deus. Eu sou tão estúpida. Claro, eles rastreariam o sinal GPS do
carro. Se Lazaro puder ver que deixei o veículo no aeroporto, significa que
ele sabe que estou aqui. Ele provavelmente está a caminho agora. Ele já
pode estar no terminal.
Quando eles começam a embarcar, mal consigo me controlar.
Eu fico para trás até o último grupo e passo pelo procedimento de
embarque atordoada. Meu corpo está firmemente preso no modo lutar ou
fugir, mas sou forçada a esperar em uma fila e depois na próxima. Estou
nervosa e suada. Se alguém perguntar, direi que tenho ansiedade de voo.
Quando entro no avião, vejo a garota Converse em uma das últimas
filas da classe econômica. Ela está com um boné puxado para baixo sobre o
rosto e nem está tentando olhar para ninguém. Bom. Deslizo para o assento
da janela na quinta fileira e viro o rosto para a janela. Sairei do avião antes
dela, então, enquanto eu permanecer na seção de executiva durante o voo,
não há chance de ela me ver.
Quando a porta do avião se fecha e começamos a nos mover, um
gemido de alívio passa pelos meus lábios. Com ele vão os restos da minha
energia. Achei que ficaria nervosa durante todo o voo, mas meu corpo
desliga e caio no sono.
CAPÍTULO QUATRO
VALENTINA
Minha mão dói, mas mal percebo a dor por causa do zumbido dentro
da minha cabeça. A fúria que inundou meu cérebro no momento em que vi
Nelo nela me fez sentir um homem diferente. Não sou um soldado de baixo
nível salivando por uma briga para mostrar a todos o quão durão eu sou.
Lido com meus problemas com uma combinação letal de crueldade,
estratégia e furtividade.
Mas não havia nada de estratégico em dar um soco em Nelo - o cara
que Sal enviou para me espionar - bem na cara.
Eu perdi o controle.
Tudo por causa da Ale.
Meu olhar pousa em sua cabeça de cabelos negros e sedosos, e um
arrepio percorre minha espinha. Então começa. Eu sabia que me
arrependeria de mantê-la perto de mim.
Ela se vira para mim, seus lábios entreabertos em choque.
Lanço um olhar para Nelo no chão, faço um gesto para Ras dizendo
que ele precisa resolver essa merda e pego o braço dela para arrastá-la para
fora do restaurante.
— Você está louco? — Ale exige assim que conseguirmos passar pela
multidão de observadores. — Quem pediu para você se envolver?
— Tudo o que acontece em minhas propriedades é da minha conta. —
digo.
— Você é clinicamente louco. Socar um cliente. Prepare-se para uma
série de críticas contundentes.
— Ele não é um cliente. Ele é meu primo.
Ela levanta a mão. — Outro? Como se isso tornasse tudo melhor.
Estamos no estacionamento. Onde diabos está meu motorista? Ele
precisa levá-la para casa e fora da minha vista. Essa mulher está mexendo
com a minha cabeça, eu não tenho tempo para essa merda com tudo mais
que está acontecendo.
— Oh meu Deus. — Ela começa a se livrar do meu aperto. — Astrid e
Vilde ainda estão lá. Precisamos voltar.
— Não vamos voltar.
— Droga, De Rossi! Eu não posso deixá-las. Você pode ter começado
uma briga.
Soltei um gemido frustrado e tirei meu telefone do bolso da calça. —
Vou dizer a Ras para garantir que elas cheguem em casa em segurança,
certo? Feliz?
— Feliz? Feliz? Não, não estou feliz.
Eu solto o braço dela e envio uma mensagem para Ras. Ela está
exagerando. Não vai haver briga. Nocauteei Nelo e vi com quem ele entrou:
apenas alguns traficantes de baixo escalão, seus novos amigos na ilha. Se ele
estivesse com o irmão, poderia ter sido uma coisa totalmente diferente.
— Por que você interveio?
— O Nelo é um merda. Você não quer se envolver com ele.
Ela ri sem acreditar. — Não preciso que você policie com quem estou
envolvida.
Ela não faz? Será que ela sabe o que provavelmente aconteceria se eu
permitisse que Nelo a levasse para aquele banheiro? É como se ela tivesse
tomado algumas bebidas e de repente perdesse todo o senso de
autopreservação.
— Você quer saber por que me envolvi? — Eu rosno. — Achei que
você talvez estivesse sendo pressionada a fazer algo que não queria. Eu vi
como ele agarrou você, como ele te moveu. Você não me pareceu muito
interessada.
Ela fica imóvel, de repente, não consigo encará-la.
Cazzo. Eu deveria me dar um soco na boca. Eu realmente acabei de
admitir para ela que estava tentando ser um cavaleiro de armadura
brilhante? Eu não sei que merda amorosa estou fazendo quando estou perto
dessa mulher.
— Você não me conhece. — ela finalmente diz, com a voz tão baixa
que mal percebo.
— Não, não quero. — respondo. — Talvez Nelo conheça você melhor.
Talvez ele estivesse certo quando te chamou de... — Fecho a boca com
força.
— Me chamou de quê? Uma vagabunda?
Eu cerro meu queixo em resposta. Ninguém tem permissão para
chamá-la assim. Ninguém.
Ela suspira. — Há coisas muito piores do que ser uma vagabunda, De
Rossi. Você não precisava se ofender tanto em meu nome.
Meu motorista aparece atrás do restaurante.
— Sinto muito, senhor, estava comendo alguma coisa na cozinha.
Viro a cabeça na direção de Ale. — Leve-a para casa. Eu preciso voltar
para lá. — Esta conversa acabou. Preciso limpar minha bagunça, tomar uma
bebida forte e descobrir o que vou fazer com essa mulher.
Ou eu a faço minha ou a apago completamente da minha mente.
Quando volto para o restaurante, vejo que Nelo se foi e os clientes se
dispersaram. A equipe está limpando a noite e ninguém se atreve a olhar
para mim.
Ras vem para o meu lado. — Compensamos as refeições de todos. Um
cara filmou, mas eu o fiz deletar na minha frente. Isso não vai vazar.
Talvez não chegue aos noticiários, mas Nelo reclamará com Sal. Sal
pode começar a fazer perguntas sobre Ale. Perguntas que não posso
responder.
— Eu quero ele e seu irmão fora da minha ilha.
— Depois desta noite, é improvável que isso aconteça. Vamos sair
daqui. A equipe fechará o local.
Entramos no carro de Ras e ele começa a seguir na direção da minha
casa. Quando não digo nada, ele funga e me olha de soslaio. — Importa-se
de oferecer uma explicação?
— Não há nada para explicar.
Ele estala o pescoço. — Meu trabalho é mitigar riscos. Não posso fazer
meu trabalho se você não me contar o que diabos está acontecendo entre
você e aquela garota.
— Eu já te disse que a contratei.
— Da última vez que conversamos, você disse que era altamente
improvável que isso acontecesse.
— Eu não esperava que ela sobrevivesse à semana, mas ela conseguiu.
— A contragosto, tenho que admitir que estava errado sobre ela. Ela teve
uma semana difícil – eu disse a Inez que ela precisava ser dura com ela –
mas Ale encarou tudo com calma. Mesmo as tarefas mais repugnantes não
estavam abaixo dela. — Não havia razão para eu não lhe dar o emprego.
— Um guarda-costas faz parte do pacote de benefícios dela?
Passo a mão no rosto. — Não.
— Então que porra foi essa?
— Nelo estava pedindo isso. — Ele estava, mas isso não significa que
eu tivesse que lidar com isso em público. Se eu tivesse mantido a calma,
poderia ter usado o comportamento dele como desculpa para expulsá-lo de
Ibiza. Agora terei que ligar para Sal e contar uma mentira convincente sobre
o que aconteceu. Se ele achar que tenho uma mulher, usará isso contra
mim. Terei que dizer a ele que Nelo estava assediando um cliente e não
poderia permitir que isso acontecesse em minha propriedade.
— Isso não é típico de você — diz Ras — Você sempre manteve seu
temperamento sob controle.
Porque foi isso que tive que fazer para sobreviver e manter aqueles de
quem gosto em segurança. Desde que me lembro, estive na mira do Don
Casalese. Não sei quantos movimentos errados cometi até que ele decida
puxar o gatilho.
Quando não digo nada, ele se vira para mim. — Essa garota vai ser
mais do que apenas uma funcionária?
Quem é Ale Romero? Desde que apertei a mão dela em meu
escritório, tenho essa pergunta em mente. Eu não sei nada sobre ela. Eu
poderia pedir a Ras para investigar isso, mas isso só alimentaria minha
crescente obsessão.
Preciso manter minha tentativa de paz com Sal até ter o que preciso
para tomar uma atitude real contra ele. Isso significa que o que aconteceu
esta noite não pode acontecer novamente.
— Não. — eu digo. Mas algo me diz que não demorará muito para que
minha convicção seja testada novamente.
Deixo Valentina e decido que não vou pensar nela pelo menos nos
próximos dias. Há um plano se formando dentro da minha cabeça e terei
que manter o foco para ter certeza de que será bem-sucedido. Cada um dos
meus circuitos cerebrais precisa estar funcionando cem por cento, o que
significa que não posso deixar aquela mulher tirar um pingo da minha
atenção.
Ras está olhando para a piscina quando entro em meu escritório.
— Deixe seu telefone aqui. Vamos dar um passeio. — digo a ele.
Algumas conversas são melhores realizadas ao ar livre e sem qualquer
tecnologia, então não há chance de alguém ouvir.
Ele faz o que eu mando e saímos do escritório, passando pela piscina
antes de seguir o caminho de pedra até o jardim. É minha parte favorita da
enorme propriedade que comprei há alguns anos para ser um lar adequado
para Martina e eu. Ela se apaixonou pela sala de estar cheia de luz assim que
passou pela porta da frente, e raramente resisto às oportunidades para fazê-
la feliz.
— O que Valentina disse a você? — Ras pergunta quando chegamos às
oliveiras. O cascalho range suavemente sob nossos pés.
— Temos a confirmação que precisamos. Sal estava por trás disso.
Os passos de Ras diminuíram por um momento. — Tem certeza disso?
— Conte disse a ela que era um favor para alguém. A razão para isso?
Martina tem o sobrenome errado.
— Isso não é definitivo...
— Conte a chamou de ratinha Casalese. De onde você acha que ele
tirou isso?
É o apelido que Sal deu a Martina. Assim que Valentina disse isso, eu
soube.
Ras pragueja. — Ele perdeu a cabeça. Sequestrando-a para manter
você sob controle? Ele devia saber o risco que corria se isso viesse à tona.
— Era apenas uma questão de tempo até que ele fizesse algo assim. —
digo. Eu deveria saber que o homem que assassinou meu pai para assumir o
controle do clã nunca deixaria de se preocupar com a possibilidade de um
dia eu me revoltar contra ele.
Há um banco na beira do jardim com vista para o oceano calmo. Nós
sentamos.
— Ele já tirou tudo de nós uma vez. — eu digo. — Não vou deixá-lo
fazer isso de novo.
Lembro-me de minha mãe parada na cozinha enquanto as chamas
engolfavam seu vestido. Os gritos frenéticos da minha irmã. Os homens
gritando em estado de choque. O cadáver do meu pai ainda quente no chão.
É esse momento, tão claro na minha memória que parece que foi gravado
em resina, que motivou a maioria das decisões que já tomei. Sem isso, eu
seria um homem completamente diferente.
Um homem melhor.
Um homem mais fraco.
Fecho os olhos com força e respiro fundo. — Martina chora em seu
quarto todas as noites desde Nova York. Cada vez que ouço isso, lembro-me
de como falhei com ela. Ela não pode mais ir para a faculdade como queria.
Ela não pode nem sair desta ilha. Nós dois somos prisioneiros aqui.
A mão de Ras cai no meu ombro. — Você sabe que pode contar
comigo.
— Só há uma saída para isso, Ras.
Sua expiração pesada me diz que ele entende.
A água bate nas rochas abaixo de nós. Eu me viro para encará-lo. —
Guerra.
Ele junta as palmas das mãos, os cotovelos nos joelhos, e posso ver
que ele já está analisando nossas opções. — Precisamos reforçar nossa
segurança aqui primeiro para garantir que Mari esteja segura.
— Seria melhor escondê-la em algum lugar até a poeira baixar?
Ele balança a cabeça. — É melhor concentrar nossas defesas em uma
área onde vocês dois estão. Além disso, movê-la tão cedo avisaria Sal de que
algo está acontecendo. Ele observa todos os pontos de entrada. Vou ligar
para Napoletano.
— Peça a ele para vir assim que puder.
— Quanto você quer que eu conte a ele?
— Mantenha isso vago. Ele e Sal têm uma história horrível, mas quero
falar com ele pessoalmente antes de decidir se devemos trazê-lo. Qual é a
sua leitura sobre os últimos sentimentos entre as famílias?
— Difícil de dizer. Terei que ir ao Casal falar com o meu pai. Da última
vez que conversamos, ele aludiu a alguns rumores de Elio. Se for verdade,
vamos querer nos encontrar com ele.
— Que rumores? — pergunto, pensando na última vez que vi tio Elio.
Já se passaram muitos anos.
— Algo sobre casar uma de suas duas filhas com Vito Pirozzi.
— Ambas as filhas são pré-adolescentes.
— Eles vão esperar até ela completar dezoito anos.
A ideia de dar uma daquelas garotas inocentes para alguém como Vito
me deixa doente. Ele é mais esperto que seu irmão idiota, Nelo, mas não
muito. — Essa é uma combinação perfeita, se é que já ouvi falar de uma.
— O patriarca Pirozzi quer que seus meninos se acalmem, e Sal adora
implicar com os De Rossi restantes.
— Se conseguirmos que os dois irmãos do meu pai me apoiem, junto
com os seus pais, isso nos dará uma chance real.
Ras pega um cigarro e acende. — Será um começo. Vou marcar as
reuniões.
— Eu deveria ir para Casal com você.
— Você não pode. Isso irá disparar muitos alarmes.
Levanto-me do banco. Eu quero dizer para o inferno com tudo isso. A
cautela, o equilíbrio, o autocontrole. Desenvolvi todas essas características
por necessidade. Eles eram a única maneira de garantir que eu e minha irmã
sobreviveríamos em meio a um mundo em colapso. Mas por baixo de todas
essas camadas civilizadas vive um bárbaro sedento de vingança. Sinto-o
dentro de mim agora, esticando os braços e pegando o taco enrolado em
arame farpado. Ele quer levantá-lo e bater na cabeça de Sal até que não
reste nada além de polpa sangrenta. — Vou fazê-lo pagar por tudo que fez,
Ras. Tudo.
Ras fica ao meu lado e espia pela beira do penhasco. — E a sua
prisioneira?
Os olhos assustados de Valentina brilham em minha mente. Será que
aquilo de que ela está fugindo pode ser pior do que o problema que estou
prestes a causar? Até que ela me conte toda a sua história, não posso saber
a resposta para essa pergunta, mas pelo menos aqui posso ficar de olho
nela. — Vou mantê-la até descobrir a melhor forma de ela ajudar nossa
causa.
— Ela é valiosa. — diz Ras.
— Quero saber se o marido dela está morto.
— Vou pedir ajuda ao Napoletano, mas não foi o marido dela quem
concordou em levar Martina. Você sabe disso.
Claro que eu faço. Lazaro é apenas um soldado, mas se estiver vivo, é
melhor que esteja contando seus últimos suspiros. Mesmo que ele não
tenha aterrorizado Mari, fica claro que Valentina não gosta dele. Isso é o
suficiente para eu eliminá-lo da face da Terra.
— A ordem deve ter vindo do don deles, o pai de Valentina. — digo. —
Mas foi Lazaro quem colocou as mãos em minha irmã. O don nos
compensará de outras maneiras. — Esfrego a palma da mão no queixo. —
Ele estava disposto o suficiente para conceder um favor a Sal. A questão é
por quê? Garzolo precisa de alguma coisa, e quando descobrirmos o quê,
poderemos ter uma conversa de verdade com ele. Se Valentina souber
alguma coisa sobre isso, vou arrancar dela.
Ras cruza os braços sobre o peito. — Você tem certeza disso? Suas
preliminares no jantar não inspiraram muita confiança em seus métodos de
interrogatório.
Eu faço uma careta. — Isso não foram preliminares. Foi você quem me
disse que eu não poderia deixá-la lá.
— Eu disse que você deveria explorar o ponto fraco que ela pode ter
por você, tratando-a bem, não se entregando às suas fantasias de BDSM na
frente de outras pessoas.
Meu rosto esquenta. — Foda-se.
— Você deixou Mari tão desconfortável que ela correu para se
esconder em seu quarto.
Eu olho para ele. — Tudo bem, chega de jantares em família com
Valentina. Vou lidar com ela em particular.
Voltamos para casa e Ras sai para passar a noite. Eu olho para a hora.
É quase meia-noite e a casa está silenciosa, exceto pelo zumbido suave da
máquina de lavar louça e pelos sons do oceano fluindo pelas portas abertas
do pátio.
Fecho-as, passo na cozinha para pegar um pouco de água e subo as
escadas. Música pop americana está tocando atrás da porta de Mari, mas
ela não está conversando com os amigos no FaceTime como costumava
fazer antes de tudo acontecer. Ela não faz muito hoje em dia além de rolar a
tela do telefone e passear pela casa. De vez em quando chegam pacotes –
roupas, bolsas, acessórios de moda – mas nunca a vi entusiasmada com
nenhum deles. Ela nunca sai.
Estou prestes a bater na porta dela quando paro, com o punho erguido
no ar. A verdade é que não sei como ajudá-la a seguir em frente. Tentei falar
com ela, mas isso nunca leva a lugar nenhum. Há algo dentro dela que a está
destruindo, e ela não quer me dizer o que é. Eu gostaria que ela tivesse
outra pessoa com quem conversar, mas não há ninguém em quem ela confie
o suficiente para compartilhar os detalhes do que aconteceu. Sempre fui seu
confidente mais próximo, mas agora que ela não quer falar comigo, não sei
como trazer seu antigo eu de volta.
Talvez depois que eu cuidar de Sal, ela possa frequentar a faculdade
pessoalmente no ano que vem. Isso a animaria.
Afasto-me da porta dela e continuo até o terceiro andar. Meu quarto
fica no corredor de onde coloquei Valentina. Quando chego mais perto do
quarto dela, digo a mim mesmo para continuar andando, mas então ouço
um som suave e paro.
Pressiono meu ouvido na madeira. Fungando. Ela está chorando.
Cazzo. Agora não tenho uma, mas duas mulheres miseráveis sob meu
teto. Afastando-me, belisco a ponte do nariz.
Talvez eu devesse ter sido mais suave com ela lá embaixo. Seus pulsos
pareciam quase machucados e ela não tinha nada para limpá-los.
Volto para a cozinha e pego o kit de primeiros socorros. Vou enfaixá-la
e tirá-la da cabeça, como disse que faria.
Quando entro, ela está enrolada como um camarão na cama, com
seus longos cabelos negros espalhados sobre um travesseiro. Ela se esforça
para se sentar quando me ouve entrar e puxa os joelhos contra o peito. —
Por que você está aqui?
Seu nariz está vermelho e inchado. Seus olhos estão brilhantes e
úmidos. Uma dor aparece dentro do meu peito.
— Quero dar uma olhada em você. — digo. Sento-me na beira da
cama e estendo a mão para ela, mas ela se afasta de mim. Isso me faz
querer socar a porra de uma parede. O fato de ela ter medo do meu toque
está entre as piores coisas que já aconteceram comigo.
Mostro a ela o kit de primeiros socorros. — Deixe-me ver seus pulsos.
Vou enfaixá-los e ir embora.
Ela estuda a caixa com desconfiança, franzindo as sobrancelhas. Eu
espero. Finalmente, ela dá um pequeno aceno de cabeça e estende os
braços.
As marcas rosadas ficam horríveis em seus pulsos delicados. Pego um
lenço antisséptico e passo suavemente nos pontos onde sua pele está ferida.
Não são muitos, mas ela sibila para cada um que toco. Mordo o interior da
minha bochecha com tanta força que sinto gosto de sangue.
Ela me deixa curar suas feridas superficiais em silêncio, deixando-me
ruminar sobre minhas ações. Ras está certo. Não tenho coragem de
interrogá-la dessa maneira novamente.
Por que ela não quer voltar para casa?
Há algo aí. Uma peça que está faltando. Um segredo que ela ainda não
contou.
Termino de amarrar suas bandagens e encontro seu olhar cansado.
— Tudo feito.
Ela puxa as mãos para trás, deita-se e se afasta de mim.
— Eles parecem melhor...
— Você disse que iria embora.
A ferocidade fria de suas palavras me corta como uma lâmina afiada.
Eu mereci, não foi?
Arrumei minha cama e agora tenho que deitar nela.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
VALENTINA
Eu sei que fiz uma coisa muito ruim. Eu me permiti ficar confusa. O
Damiano que eu quero é um homem que não existe. Ele não é o empresário
inteligente que me seduziu com suas palavras sujas e super inteligência.
Estendo a mão e desligo a água. À medida que caem as últimas gotas,
é como se a realidade tivesse recomeçado.
O mafioso parado na minha frente passa uma toalha grossa na minha
pele. Ele faz isso suavemente, como se estivesse com medo de que eu
pudesse quebrar com muita pressão. Ele não teve escrúpulos sobre minha
fragilidade quando me investiu momentos antes, mas talvez sua própria
realidade também esteja se estabelecendo.
Seus olhos escuros encontram os meus e sei que estou certa. Isto foi
um adeus. Ele vai me mandar para casa e sabe que nunca vou perdoá-lo por
isso. Tudo isso acabou.
É um final amargo e doloroso para algo que nunca esteve destinado a
ser uma história de amor.
Seco as solas dos pés no tapete ao lado do chuveiro e entro no quarto
com ele logo atrás. Quando subo na cama, ele me segue. Ele não teve o
suficiente? Acho que não conseguiria ter outro orgasmo. Ele arrancou todo
o prazer de mim e agora me sinto vazia. Não tenho mais nada para dar.
Quando me deito de lado, ele passa a palma da mão em volta do meu
ombro e me vira de costas. Ele está apoiado no cotovelo, olhando para mim
com as sobrancelhas franzidas.
Aqui está. Ele está prestes a me dizer que vou voltar para Nova York.
— Eu sinto muito.
Fechei os olhos. Por que eu deveria olhar para ele enquanto ele parte
meu coração pela segunda vez?
— Eu não deveria ter machucado você como fiz. — Seus lábios roçam
levemente meus pulsos. — Cada vez que vejo essas marcas em você, tenho
vontade de me jogar de um penhasco.
Uma dor aparece no fundo da minha garganta. Ele está prestes a me
machucar muito pior do que isso.
Ele deixa meus pulsos em paz e passa o polegar áspero sobre meus
lábios. Então ele suspira. — O que você faria se eu deixasse você ir?
Demoro um momento para processar suas palavras. Quando faço isso,
uma sensação estranha enche meu peito. Isso me lembra de quando abri a
gaiola de um pássaro que guardava quando criança e o vi voar para longe.
Eu pisco para ele. Ele espera pela minha resposta, seu olhar firme em
meu rosto.
— Eu iria para algum lugar longe. — eu digo. — Em algum lugar onde
não haja risco de topar com a máfia.
Os cantos de seus lábios se curvam em um sorriso amargo. — Esse
lugar não existe. O alcance do submundo se estende a todos os cantos do
mundo.
Eu me recuso a acreditar nisso. — Tem que haver algum lugar.
— E se não houver? O que você fará se seu pai te encontrar?
Minha boca fica seca. — Eu não posso voltar.
— Então você continua dizendo, mas ainda não me diz por quê. — ele
diz em um tom pensativo.
Pode parecer catártico contar a alguém o que aconteceu no porão de
uma casa que nunca pareceu um lar. Quem eu me tornaria se confessasse
meu maior segredo e minha maior vergonha? Isso me ajudaria a dormir à
noite? Isso me permitiria curar?
É tão tentador descobrir. Mas no último momento, eu me acovardei.
— Você está me pedindo para compartilhar algo muito pessoal. — digo
suavemente. — Eu quase não sei nada sobre você.
— Você me conhece melhor do que a maioria. — diz ele enquanto
traça um círculo ao redor do meu umbigo.
Uma risada amarga me escapa. — É porque você não deixa ninguém
entrar? Você esquece que passei minha vida cercada por made man. Eu sei
como você se relaciona com outras pessoas.
— Como é isso?
— Com uma arma escondida nas suas costas.
Ele respira fundo e balança a cabeça. — O que você gostaria de saber?
Uma oferta. Ele está perguntando o que será necessário para que eu
me sinta em pé de igualdade com ele.
Uma dúzia de perguntas vêm à mente, mas eu as reduzo às poucas
que me revelarão o verdadeiro Damiano. — Qual é o seu verdadeiro negócio
em Ibiza?
Ele mergulha o dedo dentro do meu umbigo. — Imóveis, restaurantes,
clubes e... drogas.
— Os traficantes das boates são seus?
— Todos eles trabalham para mim. — diz ele, movendo as pontas dos
dedos para roçar a parte inferior do meu seio.
— Todos eles?
— Sim. Mesmo nos clubes que não possuo. Ibiza é meu território e
tenho o mandato de mantê-lo assim, custe o que custar. A concorrência é
tratada de forma silenciosa e rápida.
Ele fala baixinho, como se o simples ato de tocar meu corpo fosse
hipnotizante. Uma dor sutil aparece entre minhas pernas quando ele atinge
meu mamilo direito. Tanta coisa para ser drenada. Acho que ele sabe
exatamente como me preencher.
Preciso manter o foco. Quem sabe quantas perguntas minhas ele
responderá? — Seu pai era o don. — eu digo.
— Hum.
— Por que você não é?
Seus movimentos param e a temperatura no quarto cai alguns graus.
Em seus olhos, vejo uma porta sendo fechada, mas no último momento,
algo dentro dele a força a abrir novamente. Ele me lança um olhar pesado,
doloroso e coloca a palma da mão no meu abdômen. — O poder do meu pai
foi tirado dele da maneira típica de Casalese. Para usurpar um senhor
sentado, você deve estrangulá-lo até a morte. Sal Gallo, um tio distante,
assassinou meu pai e começou a governar quando eu tinha onze anos. Para
me tornar don, terei que fazer o mesmo.
Meu coração acelera e sei que ele está perto o suficiente para
perceber. Isto não é um conto de fadas e Damiano não é um príncipe. Ele é
um made man, não é a ideia de cometer um assassinato que o impede de
fazer sua oferta. — Por que você não fez isso?
Ele inclina a cabeça para trás. — Essa é uma pergunta muito
carregada, Vale.
Esta é a primeira vez que ele me chama de Vale em vez de Valentina
ou Ale, e a familiaridade envia um calor que se espalha pelo meu peito. É
como minhas irmãs me chamam.
Ele tira a mão de mim e passa a palma sobre a boca. Posso dizer que
ele está tentando decidir o que deveria me dizer. — Há uma história que se
tornou uma lenda relativamente recente entre os Casaleses. Apresentam-no
às crianças como uma história de amor e traição, mas na minha opinião, é
um conto de advertência. A história é a seguinte. Uma mulher Casalese
amava tanto o marido que não suportava viver sem ele. Um dia, ele foi
assassinado. Quando cinco homens tentaram devolver-lhe o corpo ainda
quente em sinal de respeito, ela os viu pela janela de seu quarto e soltou um
grito de gelar o sangue. Ao passarem pela porta da frente, ela correu até a
cozinha, abriu a despensa e pegou a lata de gasolina sobrando. Ela se
encharcou com isso. Quando o primeiro dos homens entrou na sala, ela
acendeu um fósforo e ateou fogo em si mesma. O fogo matou todos os
homens e queimou o corpo de seu marido. Dizem que encontraram os
restos mortais do homem e de sua esposa um ao lado do outro, embora
ninguém soubesse explicar como eles acabaram assim. Talvez ela tenha
usado seus últimos momentos de consciência para chegar o mais perto
possível do corpo dele. Para que eles pudessem ficar juntos mesmo na
morte.
O ar ao nosso redor para.
Eu engulo o aperto na minha garganta. — A mulher era…
— Minha mãe. — Ele se senta na cama, sob a luz fraca do fim da tarde,
parece mais velho do que realmente é. — A versão que acabei de contar
omite o que considero uma parte importante. É uma pena, realmente. Acho
que isso torna a história muito mais interessante. O que não contam com
muita frequência é que naquela casa com a mulher estavam seus dois filhos.
Um menino de onze anos e uma criança de dois anos.
O horror engrossa o ar dentro dos meus pulmões até que não consigo
respirar. Minha mão alcança a de Damiano, mas ele não me deixa pegá-la.
Homens como ele não sabem aceitar conforto e talvez não seja hora de
ensiná-lo. Eu dou espaço a ele.
— O menino observou sua mãe despejar a gasolina nas sombras da
sala. Os gritos dela o acordaram e ele desceu correndo para ver como ela
estava. O que ele viu na cozinha... Pensou que ainda estava dormindo, tendo
um pesadelo. Quando o fogo começou a se espalhar, ele correu para tirar a
irmã do quarto e eles conseguiram escapar de casa antes que tudo pegasse
fogo. Eles viram toda a sua vida queimar. É uma imagem que nunca se pode
esquecer.
Eu respiro fundo. — Damiano, sinto muito.
Ele balança a cabeça como se pudesse se livrar da tristeza da
lembrança. — Mal me lembro das semanas que se seguiram, mas algumas
imagens se destacam. Sal me convidando para seu novo escritório - o antigo
do meu pai - e deixando claro que a única maneira de minha irmã e eu
permanecermos vivos seria se eu confirmasse que o corpo de meu pai tinha
marcas de estrangulamento para legitimar a aquisição de Sal. Veja, o código
especifica que deve haver uma testemunha viva, caso contrário a
reivindicação será contestada. Uma foto não é suficiente. Todas as suas
cinco testemunhas morreram no incêndio e Mari era muito jovem para falar.
Tive de ficar na frente de todos os capos - homens que me deram presentes
e jogaram cartas comigo - e descrever lhes como estava o corpo do meu
falecido pai. Eu realmente não conseguia me lembrar, então inventei um
monte de coisas.
— Os pais de Ras nos acolheram - a mãe dele é irmã da minha mãe.
Eles convenceram Sal a manter sua palavra e deixar Mari e eu vivermos.
Disseram-lhe repetidas vezes que eu era muito jovem para conter qualquer
raiva. Mas Sal sempre foi paranoico demais para acreditar nisso. Quando
minha perspicácia para os negócios começou a me dar reputação, ele
decidiu me mandar para cá, onde eu ficaria isolado e incapaz de estabelecer
conexões fortes com os outros capos. Eu concordei, porque proteger Mari
sempre foi mais importante para mim do que me vingar.
Meu Deus, ele não se parece em nada com o Papà. Ele colocou sua
família em primeiro lugar, mesmo que isso significasse sacrificar qualquer
chance real de ganhar mais poder. Não importa o quanto eu tente, não
consigo imaginar Papà fazendo algo assim por mim ou por qualquer um dos
meus irmãos.
— É Sal quem está por trás do sequestro de Martina? — Eu pergunto.
— Sim.
— Você soube disso depois que conversamos.
Ele concorda. — Você disse que Lazaro a chamou de ratinha Casalese.
Ratinha é como Sal sempre chamou Martina. Ele deve ter dito isso ao Lazaro
em algum momento.
— Por que Sal faria isso?
— Para ter algo para me manter na linha. Ele tem feito cada vez mais
decisões ruins nos últimos anos, e comecei a denunciá-lo. Ele precisa que eu
continue ganhando dinheiro para ele, mas quer que eu faça isso de boca
fechada.
Pego sua mão novamente e desta vez ele me deixa pegá-la. Nossos
dedos se entrelaçam.
— O que você vai fazer? — Eu pergunto.
— Reivindicar o que sempre deveria ter pertencido a mim. — O olhar
que ele me dá me faz sentir como se estivesse à beira de um precipício. — E
eu quero que você me ajude a fazer isso.
CAPÍTULO VINTE E SETE
VALENTINA
Minha cabeça gira. — Ajudar você como? — Eu nem sinto que posso
me ajudar no momento.
Ele deixa minha pergunta no ar, balança as pernas para fora da cama e
caminha até o banheiro, me dando uma visão de sua bunda esculpida. Eu
gostaria de estar no estado de espírito certo para apreciar isso
adequadamente, mas estou muito abalada com a nossa conversa.
Não consigo parar de pensar naquela fotografia de Damiano e Martina
que vi em seu escritório. Ele me contou naquela época que os pais deles
haviam morrido, mas agora que sei como isso aconteceu, o vínculo que ele
tem com a irmã faz muito mais sentido. Ele salvou Martina do que seria uma
morte certa para alguém da idade dela e passou a vida inteira protegendo-a.
Ela tem sorte nesse sentido, mais do que provavelmente imagina. Na minha
experiência, é raro que as pessoas que deveriam nos proteger realmente
cumpram isso. Meu pai me condenou, minha mãe me abandonou, meu
marido me arruinou.
Ele desaparece atrás da porta e eu caio de volta na cama, esfregando
os olhos com as palmas das mãos. Não posso acreditar no que ele acabou de
me dizer. Sua mãe se incendiou na frente dele. Como ela pôde fazer isso
com seus filhos? Estou dividida entre ter empatia por ela pela dor de perder
o amor de sua vida e culpá-la por não ser forte o suficiente para superar
isso.
Então me lembro de que também deixei a família para trás quando
fugi. Minhas irmãs precisavam de mim. Elas ainda precisam de mim agora?
Damiano sai do banheiro fechando o zíper da calça, a camisa jogada
por cima do ombro. — Aqui está minha proposta. — diz ele, passando os
dedos pelos cabelos molhados. — Preciso que seu pai concorde em ser meu
fornecedor temporário. Minha ideia inicial era usar você como moeda de
troca, mas depois de refletir melhor, identifiquei algumas falhas nesse
plano.
— Que alívio. — murmuro enquanto me sento e puxo o cobertor até o
peito nu.
— Se seu pai souber que estou com você, suspeito que ele irá direto
até Sal e exigirá que ele devolva você. Sal será avisado de que sei que ele
está por trás do sequestro de Mari e fará um movimento ofensivo antes que
eu esteja pronto para responder.
— Pelo menos você não estava planejando contar ao meu pai que me
mataria se ele contatasse Sal.
— Ele saberia que era um blefe. Você é inútil para mim morta.
— Você continua me demonstrando que é um romântico.
Ele desliza os braços pelas mangas da camisa e arqueia uma
sobrancelha. — Eu prefiro mantê-la viva. O que não há de romântico nisso?
Eu solto uma risada. — Então, qual é o seu novo plano?
— Meu novo plano é abordar seu pai com cenouras, em vez de paus.
Diga-me, seu pai dá muitos golpes em outras pessoas?
O fato de ele pensar que sou alguém que sabe disso me faz revirar os
olhos. — Como diabos eu saberia? Esse é um assunto reservado ao
escritório do meu pai, não à mesa de jantar da família.
— Você era casada com seu principal executor. Você conversou com
seu marido sobre o trabalho dele?
Porcaria. Eu fiz o trabalho dele para ele. Olho para minhas mãos. —
Um pouco.
— Quem eram seus alvos?
Lazaro não levou todo mundo para o porão. Eu não sabia quais eram
seus critérios. Eu nunca perguntei. Meu palpite é que foi baseado no humor
dele e se ele achava que eles mereciam. Mas das pessoas que vi…
— Principalmente associados do clã que roubaram ou foram contra o
clã. Alguns contatos fora do clã que causaram problemas ou não cumpriram
suas obrigações. Provavelmente membros de outros clãs de Nova York
quando houve algum tipo de disputa.
— Mas nunca resultados aleatórios. — diz Damiano.
— Eu não diria nunca. Quer dizer, não tenho ideia. Mas com base no
que... Lazaro me disse, não. Ele era um executor, não um assassino de
aluguel.
— Então deve haver uma boa razão para seu pai concordar com o
pedido de Sal. O que você acha que pode ser, Vale?
— Eu não sei. — eu digo.
Damiano balança a cabeça. — Pense.
Eu estreito meus olhos para ele. — O que você acha que estou
fazendo?
— Você ouviu ou viu algo que parecia fora do comum? Qualquer coisa
que parecesse... estranha?
Uma memória se encaixa. O chá de panela. Esse dia parece ter sido há
muito tempo, mesmo que tenha sido apenas um pouco mais de um mês.
Saio da cama e visto minhas roupas enquanto Damiano me observa
atentamente. — Eu não vi nada, mas minha irmã… — Gemma disse que
Papà aumentou a segurança. O que mais ela disse?
— Sua irmã? — Ele pergunta quando estou vestida.
Em vez de responder, vou até a janela. Sim, alguns comentários
estranhos foram feitos naquele dia. Comentários que não significaram muito
para mim, mas talvez significassem algo para Damiano, como o que Lazaro
me disse sobre Martina significou algo para ele.
Eu tenho algo com que negociar. Ele decidiu não contar ao meu pai
que me tem, mas onde isso me deixa?
Eu me viro e achato minha expressão. — Se eu lhe contar o que sei,
você me devolverá minha liberdade?
Seus olhos brilham com uma espécie de diversão irritada. — Ah,
estamos de volta a este jogo.
— Serei capaz de sair daqui?
— Eu estaria disposto a deixar você vagar pela casa.
— Isso não foi o que eu quis dizer. Você vai me deixar sair?
— Ainda não. — ele diz sem rodeios.
— Por que não?
— Porque você não tem um plano. As chances de você ser pega pelos
homens de Sal quando tentar sair desta ilha são excepcionalmente altas.
— Seu Don não me pegou quando cheguei aqui.
— Provavelmente porque seu pai não tinha intensificado a busca
naquele momento e chamado reforços. Você não teria tido tanta sorte se
tivesse esperado mais um dia.
— Eu vou aproveitar minhas chances.
— Vale, você não vai durar um dia.
— O que mais devo fazer?
— Fique aqui.
— Como sua prisioneira? Não, obrigada.
— Não como minha prisioneira. Como minha convidada. Quando eu
for o novo Don Casalese, você estará sob minha proteção.
Suas palavras me enfurecem tão rapidamente que não paro para
escolher as palavras com cuidado. — Isso de novo não. Vivi toda a minha
vida sob a proteção de um don poderoso. Adivinha? Isso me protegeu de
nada. Aprendi muitas lições importantes com meu pai, e minha favorita é
que homens como você fazem promessas que não têm intenção de cumprir.
São mentiras. Todas elas, sem exceção. Nunca mais colocarei minha vida nas
mãos de um don.
Posso ver que minha explosão é inesperada. Sua pele perde um pouco
da cor e sua expressão escurece. — Eu não sou seu pai. Você não vai me
contar o que ele fez com você, mas sei que nunca voltaria atrás em uma
promessa que fiz à minha filha.
— Isso é porque você ainda não tem uma filha. — respondo.
— Não, mas Martina é praticamente uma filha para mim e fiz tudo que
pude para mantê-la segura.
O que posso dizer sobre isso? Damiano suspendeu suas ambições por
mais de uma década para proteger sua irmã. Papà nunca faria um sacrifício
como esse por mim.
Mas Martina é do sangue dele, e eu não.
— E se eu quiser ir embora quando você se tornar o Don? Você vai me
deixar?
Seus ombros caem e há uma torção sombria em sua boca. Posso ver
que ele odeia a ideia, essa constatação faz algo quente se instalar dentro do
meu peito.
— Não vou mantê-la aqui contra a sua vontade. — ele diz finalmente.
Seria fácil para ele mentir para mim, mas de alguma forma, sei que ele
está dizendo a verdade.
Ele termina de abotoar a camisa. — Pense nisso esta noite e me dê sua
resposta amanhã.
Uma noite não é tempo suficiente, mas eu aceno e ele vai embora.
O quarto de repente parece muito vazio. Eu me sinto muito vazia.
Meus cotovelos encostam-se na cama e jogo a cabeça para trás para
olhar para o teto. Há muito em que pensar.
Os detalhes daquele dia com Gemma lentamente começam a voltar à
minha mente. Teve também aquela conversa com o Tito no carro. Papà
tinha Tito, Lazaro e Vince trabalhando para outra pessoa... Sal? Deve ser.
Mas como isso está relacionado com o aumento da segurança da família? Do
que ele tinha medo?
Gemma sempre se interessou mais pelos assuntos comerciais de Papà.
Quando ela era mais nova, ela escutava do lado de fora da porta do
escritório dele, mas nunca me contava o que ouviu quando eu perguntava.
Naquela época, pensei que ela gostava de guardar segredos. Agora, me
pergunto se ela foi capaz de perceber, mesmo naquela idade, que eu
realmente não queria saber. Preferia pensar em Papà como um protetor
valente, em vez de um bicho-papão, mesmo que este último estivesse muito
mais próximo da verdade.
Quando chega a noite, um guarda me traz o jantar. Descubro que
estou com muita fome, quando penso no porquê disso, imagens de Damiano
todo molhado no chuveiro fazem um calor subir ao meu peito. Bebo o
gaspacho frio e devoro a tortilla espanhola. Quando termino a sobremesa –
uma fatia de cheesecake incrivelmente cremoso – finalmente estou
satisfeita.
E se Damiano me protegesse com a mesma devoção que tem por
Martina? Eu ficaria então? Claro, esse não é um cenário realista. Ele pode
me querer fisicamente, mas ele não me ama. De jeito nenhum eu seria
alguém realmente importante para ele. Mesmo que ele pretenda cumprir as
suas promessas agora, há sempre sacrifícios a serem feitos pelo poder no
nosso mundo. Não há garantia de que um dia eu não seria um deles.
Ainda assim, que opções eu tenho? Se eu não cooperar com ele como
ele quer, o que acontecerá? Ele ainda pode mudar de ideia sobre as
cenouras e voltar aos palitos.
Não, recusar não é uma opção.
Direi a ele o que sei e então, quando ele for o don, irei embora.
CAPÍTULO VINTE E OITO
DAMIANO
Digo a Ras que decidi não devolver Valentina ao pai dela quando nos
sentamos para almoçar no terraço na manhã seguinte.
Quando termino minha explicação, ele coloca os talheres no prato e
cruza os braços sobre o peito. — Isso não vai funcionar.
— Por quê? — Eu pergunto. Faz todo o sentido para mim.
— Porque ela não sabe de nada. A frase sobre a irmã foi apenas uma
estratégia para ganhar mais tempo.
— Não foi.
Ele revira os olhos. — Mio Dio, você perdeu a cabeça por causa dela.
Quando você vai admitir isso?
— Admitir o que, exatamente?
— Que você está apaixonado por ela.
Minha boca fica seca e algo brilha dentro do meu peito. — Isso é um
absurdo.
— Quando ela ainda trabalhava no Revolvr, você começou a passar
muito mais tempo lá. Tudo para que você pudesse estar perto dela.
— Eu tinha trabalho a fazer.
— Você estava conversando com ela ou sonhando acordado com ela
em seu escritório.
— Como você saberia com o que eu sonho? — Eu retruco, não
querendo fazer uma pausa e refletir sobre a verdade em suas palavras.
Ras balança a cabeça. — Pensei que você seguiria em frente depois
que percebemos quem ela era, mas você acabou de se aprofundar cada vez
mais. E agora isso. Você quer trazê-la para o nosso plano. Um plano que
exige que eu, Napoletano e muitos outros homens coloquemos suas vidas
em risco. Você sabe que vou segui-lo até os confins da terra, mas você não
vai ganhar muito respeito dos outros capos se eles virem sua estratégia para
assumir o controle, já que Don tem seu pau como bússola.
Suas palavras acendem o estopim da minha raiva, mas respiro fundo e
apago antes que exploda. — Eu percebi quem ela era. A mulher que salvou
minha irmã. Isso faz dela alguém digna de respeito, meu e seu.
Ele ri. — Oh, eu a respeito. Muito. Ela fez o impossível. Ela deixou você
de joelhos.
Minha mão aperta o garfo. — Então talvez seja respeito por mim que
você está perdendo.
— Você sabe que isso é besteira. — Ele solta um suspiro. — Maldição,
Dem. Você sabe que eu quero que você seja don. E não apenas porque você
é um irmão para mim, mas porque, diferentemente de Sal, você é um
verdadeiro líder.
— Então tenha um pouco de fé. Ela não estava mentindo. Ela sabe de
alguma coisa. — Uma cintilação no monitor de segurança preso à parede
chama minha atenção para ele. — Os guardas acabaram de deixar entrar um
carro. Você está esperando alguém?
As sobrancelhas de Ras se juntam. — Não. É Mari?
Ando até a tela e dou um zoom no carro enquanto a apreensão invade
meu estômago. — Ela está no Mercedes com o motorista. Ela só deveria
voltar de sua viagem de compras dentro de algumas horas. Essa é uma BMW
branca. Por que os guardas deixariam alguém passar sem verificar com
você?
Ele vem ficar ao meu lado no momento em que o carro estaciona em
frente à casa. Observamos enquanto a porta se abre.
Ras pragueja. — São os Pirozzi. Nelo e Vito.
— Que porra é essa.
— Eles têm que estar aqui por ordem de Sal. É a única razão pela qual
o guarda os deixou passar. — O telefone de Ras toca e ele atende. — Fale.
Nem dois segundos depois, Ras desliga. — O guarda acabou de
confirmar.
— Diga ao motorista de Martina para não voltar até que lhe digamos
que está tudo limpo. — digo enquanto pego minha arma no armário mais
próximo e verifico se está carregada. — Eu vou cumprimentá-los. Fique aqui,
a menos que você ache que preciso de reforços.
Enquanto caminho até a porta da frente, a campainha toca. É um bom
sinal que eles a usaram em vez de invadir. Enfio a arma na frente da calça e
abotoo a jaqueta. Não sei por que estão aqui, mas prefiro não começar uma
guerra hoje. Ainda não estamos prontos para isso. Preciso ganhar tempo, o
que significa apaziguar seja lá o que for.
Eles estão parados do outro lado da porta com dois sorrisos de merda.
5
— Ciao, cugino . Estávamos com medo de que você não estivesse aqui
hoje. — diz Vito.
— Meu carro está bem ali. — eu digo, apontando para a Mercedes que
eles estacionaram ao lado. — Você achou que eu fiz uma longa caminhada
para contemplar a paisagem ou algo assim?
Nelo ultrapassa a soleira. Sua colônia está tão espessa que meus olhos
quase começam a lacrimejar.
— Você tem muito que contemplar hoje em dia. — diz Vito enquanto
passa a mão pelo cabelo com gel.
— Mesmo que sempre. O negócio não funciona sozinho.
— Martina está aqui? — Ele pergunta enquanto passa por mim.
Gelo pinga na minha corrente sanguínea. Por que diabos eles estão
perguntando sobre minha irmã? — Não.
Entramos na sala, onde Nelo se dirige imediatamente ao bar para se
servir de uma bebida, e Vito segue os cheiros que vêm da cozinha. A
cozinheira está preparando nosso almoço lá.
6
— Isso é spezzatino di manzo ? — Vito exclama com alegria
exagerada. — Cheira melhor do que o que minha mãe faz.
Paro atrás dele e faço um gesto para a cozinheira que ela deveria sair.
Seus olhos se transformam em pires, mas ela consegue dar um sorriso tenso
para Vito. — Isso é. Quase pronto. Só preciso deixar ferver por mais cinco
minutos.
— Faça uma pausa, Angela. — digo a ela, e ela não hesita em tirar o
avental e desaparecer pela porta dos fundos.
— Acho que ficaremos para almoçar. — diz Vito, me dando um tapa no
peito enquanto volta para a sala. Meus punhos cerram. Eu os forço a abrir.
Eles ficam confortáveis no sofá. Nelo está tomando o que parece ser
uma dose dupla de uísque enquanto estuda o lustre acima de sua cabeça. —
Essa é uma peça linda.
Sento-me na poltrona. — É de Murano.
— Trabalho deslumbrante. Meus copos são de lá. O don me
recomendou a mesma loja onde ele comprou todos os seus artigos de vidro.
Vito apoia o tornozelo no joelho e sorri. — O don é um cara muito
generoso.
— Ele realmente é. Não é, Damiano? Veja tudo isso. — Nelo abre os
braços. — Ele deu tudo isso para você.
Eu não me incomodo em corrigi-lo. Sal não me deu nada. Aumentei o
investimento inicial que o pai de Ras me deu em uma fortuna, foi só depois
de provar meu valor que Sal insistiu em me dar mais capital para investir. Fiz
um favor a ele pegando seu dinheiro e aumentando-o ano após ano.
— Por que vocês estão aqui? — Eu pergunto. Mesmo minha paciência
não é infinita.
Nelo toma um gole de sua bebida. — Lembra o que aconteceu comigo
no Revolvr? Você sabe, realmente não foi grande coisa. — Ele levanta a mão
e me mostra a ferida. — Está quase curado. Eu estava pronto para seguir em
frente e esquecer isso, mas de alguma forma isso voltou para o don...
— Eu me pergunto como isso aconteceu.
— Nenhuma ideia. Suponho que ele tenha olhos por toda parte.
Não tenho dúvidas de que o próprio Nelo lhe contou. Esses dois são os
olhos do Don em Ibiza.
— Ele não estava feliz. — diz Vito encolhendo os ombros. — Ele disse
que quando alguém nos insulta, é como se o estivessem insultando.
— E Sal não gosta de ser desrespeitado. — acrescenta Nelo.
Eles estão demorando para cuspir isso. — O que vocês querem?
O brilho preventivamente triunfante nos olhos de Nelo me deixa em
alerta máximo. — Tive algum tempo para refletir sobre toda a diversão que
tive e acho que já tive o suficiente para algumas vidas. — diz ele. — Estou
pronto para me estabelecer. O don aprovou a ideia. Ele sugeriu que Martina
poderia ser uma boa esposa para mim.
Meus dedos cravam com tanta força nos braços de madeira que sinto
minhas unhas quebrando. O vermelho preenche minha visão. Como ele ousa
sugerir uma coisa tão vil?
Sal ainda está tentando colocar minha irmã sob seu controle. Ele acha
que vou entregá-la a eles depois que a tentativa de sequestro fracassou? Ele
está vivendo na terra da fantasia. Martina nunca será esposa de Nelo. Vou
arrancar a garganta dele antes de deixar esse idiota tê-la.
O que quer que os dois vejam no meu rosto os faz sentarem-se mais
eretos. Vito faz um movimento sutil com a mão, aproximando-a da arma
escondida nas costas. Minha própria arma queima em meu abdômen.
— Ela é sua prima. — eu digo. — Mesmo para você, isso é doentio.
— Somos parentes pela nossa tataravó. — diz ele enquanto coloca o
copo vazio na mesinha de centro. — Vamos lá. Você sabe que isso mal
conta.
— Martina não está procurando um marido.
— Por que não? Ela tem quase dezenove anos.
— Solteira. — diz Vito.
— E linda — acrescenta Nelo — Eu posso vê-la aquecendo meu...
Se ele terminar essa frase, arranco-lhe a língua.
ESTRONDO.
Vito estremece na cadeira. — O que é que foi isso? — ele pergunta,
olhando para as escadas.
Nelo arqueia uma sobrancelha para mim. — Tem mais alguém aqui?
Deve ter vindo do quarto de Vale. Eu cerro os dentes. O que diabos ela
está fazendo lá?
— Achei que você tivesse dito que Martina não estava em casa. — diz
Nelo, olhando para mim enquanto se dirige para a escada.
Eu me levanto e bloqueio seu caminho. — Não é Martina.
— Quem é então?
Cazzo.
— Dê-me um momento — eu mordo. — Tenho um convidado
hospedado comigo.
Sem dar chance a Nelo de me fazer mais perguntas, subo as escadas e
entro no quarto de Valentina.
Ela está de pé ao lado da cama, a bandeja do café da manhã quebrada
a seus pés. Ela está vestindo as roupas de Martina: um short de elastano e
uma camiseta branca. Seus olhos disparam para mim. — Ela escorregou da
cama.
Tranco a porta atrás de mim. — Escute-me. Nelo e Vito estão aqui
farejando. O don os enviou. Você vai descer comigo. Você não sabe nada
sobre quem eu realmente sou, entendeu? Você é apenas uma funcionária
que está dormindo comigo.
Seus lábios se abrem em choque. — O cara que eu esfaqueei está
aqui?
Pego um dos suéteres da minha irmã do chão e jogo para ela. — Põe
isto. Sim. Você ouviu o que eu disse?
— Estamos dormindo um com o outro, entendi. Por que eu tenho que
ir até lá?
— Porque eles ouviram o estrondo. — Eu a agarro pelos cotovelos. —
Não temos tempo para explicações. Apenas siga meu exemplo.
Ela acena com a cabeça e saímos do quarto.
Nelo está esperando ao pé da escada, exatamente onde o deixei, e a
surpresa em seu rosto ao ver Valentina comigo é imperdível.
— Você. — A palavra é uma acusação.
— Eu — Valentina responde.
Quando ele não se move para nos deixar passar, eu lhe dou um olhar
irritado. — Você estava tão curioso para saber quem estava no meu quarto
que pensei em mostrar a você.
Uma veia proeminente aparece em seu pescoço. — Vito, você sabe
quem é?
— Quem? — seu irmão grita de onde ele ainda está sentado no sofá.
— A garçonete que me esfaqueou. — diz ele — Aparentemente, ela
também é a nova namorada de Damiano. — Sua expressão escurece
enquanto ele se afasta.
— Deixe-me vê-la. — diz Vito, vindo até nós. — Ah, que beleza. Não
admira que você pareça tão impaciente para se livrar de nós, cugino. — diz
ele. — Eu também estaria se a tivesse na minha cama.
Valentina mantém a cabeça erguida enquanto Vito olha para ela. Uma
vontade de arrancar seus olhos se solidifica em meu estômago. Eu passo
entre eles.
Por um momento, todos ficam em silêncio. Então Vito funga alto. — O
spezzatino cheira como se estivesse pronto. — Ele inclina a cabeça para
Vale. — Por que não vamos verificar isso?
— Vamos todos — diz Nelo, seu olhar passando entre Valentina e eu.
— Gostaria de conhecer um pouco melhor a nova paixão de Damiano.
Nossas duas reuniões anteriores foram interrompidas, você não acha?
Valentina fica quieta, mas quando Vito começa a ir para a cozinha, eu
a cutuco para me seguir. Não quero nenhum deles fora da minha vista.
Nós três nos sentamos nos bancos de madeira ao redor da ilha da
cozinha enquanto Valentina vai até a panela.
Não gosto da maneira como Nelo olha para ela. É claro que ele está
longe de superar sua lesão embaraçosa, e homens como ele lidam com o
constrangimento de uma maneira.
Violência.
— Ale, é isso? — ele pergunta na nuca de Vale.
— Sim — ela diz sem se virar. Ela pega uma colher de pau que a
cozinheira deixou na bancada e mistura o ensopado.
Ele direciona sua próxima pergunta para mim. — Ela está morando
com você?
Eu sei onde ele está tentando chegar. Ele quer saber se Vale é
importante para mim, o que significa que tenho que mostrar a ele que ela é
tudo menos isso.
— Ela passou a noite.
— Você não traz muitas mulheres de volta aqui, traz? Você deve
realmente gostar desta.
— Só porque você não consegue convencer nenhuma mulher a voltar
com você para sua casa, não significa que outras pessoas tenham esse
problema.
Vito dá uma risada, mas cala a boca rapidamente quando Nelo olha
para ele.
Vale abre vários armários antes de encontrar aquele que contém as
tigelas. Ela pega quatro e começa a despejar o ensopado dentro delas com
uma concha.
— Você está mais quieta do que antes. — observa Nelo. Seu olhar
mergulha em sua bunda, isso me faz querer estrangulá-lo. — O ato sexual de
Damiano foi tão deprimente?
Seus ombros caem. Ela se vira e traz a primeira tigela para mim.
— Obrigado. — eu digo.
— De nada.
O rosto de Nelo fica vermelho. — Você está me ignorando.
Lanço a Vale um olhar cauteloso. Não há insulto pior para um homem
com um ego como o de Nelo do que ser ignorado.
Ela serve a próxima tigela para Vito. — Tenha cuidado, está muito
quente.
— Claro — ele diz.
Uma veia na têmpora de Nelo se contrai enquanto ele observa
Valentina voltar para o fogão. Espero que ele tenha decidido ficar quieto
para se salvar de mais humilhações, mas sei que isso é uma ilusão.
Quando ela se aproxima dele, a tensão na cozinha atinge um nível
febril. A tigela cai na ilha de madeira com um som suave. Ela coloca uma
colher ao lado.
Nelo olha para o ensopado e cantarola alto. — Parece suculento.
Assim como sua bunda gorda, bella. — ele diz enquanto coloca a mão no
traseiro de Vale e aperta.
Forte.
Forte o suficiente para fazê-la estremecer.
Forte o suficiente para fazê-la ofegar de dor.
A cozinha ao meu redor começa a tremer.
Não há como segurar neste momento.
Vacilo. Suspiro.
Isso desencadeia um inferno de raiva.
Eu me movo tão rápido quanto um raio. Minha tigela e todo o seu
conteúdo fumegante acabam na cara de Vito. Ele grita por causa da
queimadura. Bom. Espero que ele fique cego.
Nelo dá um pulo, pegando sua arma. De repente, Ras está lá,
empurrando Vale para fora do caminho e tirando a arma de Nelo de seu
alcance.
Puxo Nelo pelo pulso e bato com a mão que tocou Vale na ilha. A
crosta escura olha para mim por um momento antes de eu cobri-la com o
cano da minha arma.
— Eu realmente pensei que você tivesse aprendido a lição na primeira
vez que a insultou.
Seus olhos selvagens encontram os meus. — Você é maluco. Que
merda...
Vacilo. Suspiro.
Eu puxo o gatilho.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
VALENTINA
A última vez que ouvi uma arma disparar foi quando atirei no meu
marido. Lembro-me do silêncio que se seguiu enquanto Martina e eu
olhávamos para seu corpo inconsciente e para a crescente poça de sangue.
Desta vez, o silêncio é substituído por gritos.
Gritos que desencadeiam uma série de outras memórias. Nelo, em
particular, soa exatamente como aquele homem mais velho que Lazaro
comprou para mim. Meu quarto. Ele estava tão barulhento. Era como se ele
pensasse que quanto mais alto falasse, menos doeria.
Quando meu olhar passa pelo buraco na mão de Nelo, começo a
vomitar.
Damiano está com a arma apontada para a cabeça de Nelo. — Tire-a
daqui. — ele grita com Ras.
Ras faz um movimento em minha direção, mas eu balanço a cabeça.
Ele precisa ficar aqui. Vito ainda está enrolado em posição fetal,
choramingando no chão com restos do ensopado grudados no rosto, mas a
dor acabará desaparecendo. Damiano não deveria estar aqui sozinho com os
dois.
— Estou bem. — digo a Ras e saio da cozinha.
Não paro de me mover até voltar ao meu quarto. Pela primeira vez,
gostaria de poder trancar a porta por dentro. As louças quebradas de antes
ainda estão espalhadas pelo chão, quando piso em um caco, uma dor aguda
atinge meu pé. Porcaria.
Afundo no chão e coloco o pé no colo. O pedaço de vidro está alojado
dentro, mas posso dizer que é apenas um corte raso.
O mesmo não se pode dizer de Nelo.
O que Damiano vai fazer?
Ele disse que eles estavam aqui farejando em nome do don, se o clã
deles for parecido com os Garzolos, atirar em um dos homens do don é uma
grande proibição. Dado o que sei agora sobre o relacionamento entre
Damiano e Sal, esta pode ser toda a desculpa que Sal precisa para lidar com
seu problema com Damiano de uma vez por todas. Tanta coisa para evitar
uma escalada.
Ele simplesmente colocou em risco todo o seu plano por... mim.
Ele me defendeu.
Pode ser a primeira vez que alguém da máfia realmente se importa
com o meu desconforto. Não deveria ser bom que ele se importasse o
suficiente comigo para fazer o que fez?
Mas não parece bom. Meu estômago revira.
Estou começando a acreditar que Damiano realmente poderia me
oferecer proteção, mas essa proteção seria desperdiçada comigo, não seria?
Ruídos de comoção irrompem abaixo. Parece que Damiano está
expulsando seus convidados. Considero ir até lá por um momento, mas
rapidamente decido ficar onde estou. Eu só atrapalharia o caminho deles.
Eu deveria tirar o caco, mas não quero ver mais vermelho. Se alguém
algum dia escrevesse a história da minha vida, ela seria escrita com sangue.
Às vezes, quando fecho os olhos, tudo que consigo ver sou eu banhada nele.
Senti empatia pelo Nelo quando ele gritou agora há pouco? Ou eu fiz aquilo
de novo? Aquela em que me tornei tão bem naquele porão úmido...
Os ruídos cessam, apenas para serem substituídos por passos rápidos.
Meus dedos ficam tensos em volta do meu pé assim que a porta do quarto
se abre e Damiano entra.
Ele me encontra sentada no chão e solta um suspiro ofegante. — Vale.
— Oi. — Minha voz é um sussurro.
Ele se ajoelha ao meu lado e deixa seu olhar pousar na sola do meu pé.
Sua respiração pesada faz seus ombros caírem para cima e para baixo
enquanto suas sobrancelhas se juntam. — Você se machucou. Vamos limpar
você.
— Não. — Eu me curvo, escondendo dele meu ferimento.
Ele franze a testa com o movimento e depois suspira. — Eu gostaria
que você não tivesse que ver isso. Deve ter sido um choque. Havia muito
sangue.
Meu corpo estremece.
Afasto-me de Damiano, mas ele não me deixa ir para longe dele. Uma
mão envolve meu ombro. — Fale comigo.
— Não foi muito.
Ele leva um batimento cardíaco para entender. — De sangue?
— Não foi muito. Você deve ter perdido a artéria radial. Se você
acertasse, ele teria sangrado por todo o chão da cozinha. Então, novamente,
se você passou por isso completamente, o corpo pode ter sugado e
interrompido o fluxo.
O ar no quarto é comprimido até certo ponto. — Como você sabe tudo
isso? — ele pergunta lentamente.
Olho para minha mão direita, aquela que sempre segurava a faca.
Manter um segredo não se torna mais fácil com o tempo. O peso disso se
acumula, até que você se depare com uma escolha: desmoronar sob ele ou
deixá-lo ir.
Eu não quero desmoronar.
— Aprendi um monte de anatomia depois que tudo começou. — digo.
— Pensei que talvez pudesse encontrar maneiras de matá-los rapidamente,
para que não sentissem tanta dor. Funcionou para alguns. Aprendi todas as
artérias e cortava a mais próxima em qualquer área que ele me dissesse
para cortar. Ele percebeu e me disse que da próxima vez que eles
morressem cedo demais, ele faria comigo o que eu deveria fazer com eles.
— Lazaro? — Damiano pergunta, sua voz tão baixa que parece um
tremor dentro do meu coração.
— Muitas vezes pensei que o que ele mais gostava era me ver decidir.
Eu seguiria seus comandos? Eu abandonaria minha empatia por outras
pessoas? Não, não abandone, apenas deixe de lado, reduza a zero. Acho que
foi interessante para ele porque sempre me deu a ilusão de uma escolha. Eu
poderia dizer não a ele. Mas foi apenas isso, uma ilusão. Se eu não matasse
quem ele trouxe para mim, ele mataria alguém que eu amava, como Lorna,
nossa governanta. No final do dia, sangue seria derramado.
— Ele fez você matar pessoas?
— Primeiro ele me fez torturá-las. Cortar os dedos das mãos e dos
pés. Marcar sua carne com palavras. Esfole-os vivos. Ele gostava de fazer
isso sozinho, mas por algum motivo gostava mais de me ver fazer isso.
A pele de Damiano perde toda a cor.
Minhas lembranças daquelas noites estão embaçadas. Eu sei o que fiz,
mas meu cérebro tentou esconder os detalhes.
Passo a mão pela lateral do meu pescoço. — Para fazer tal coisa com
uma pessoa, você tem que parar de vê-la como uma pessoa. É preciso
desumanizá-los para que se tornem um saco de ossos e carne. Irreal. Não
pessoas com vidas e famílias, por mais imperfeitas que sejam. Você tem que
fingir que eles são apenas um objeto físico que não pode sentir dor real. Ser
capaz desse tipo de dissociação é algo terrível. Isso também faz com que
você se dissocie de si mesmo.
— Muito rapidamente, parei de me sentir humana. Parei de ver minha
família. Achei muito importante não vê-los, mesmo que eu não conseguisse
explicar o porquê na época. Em retrospecto, foi porque eu tinha medo de
algumas coisas. Eu estava com medo de machucá-los. Eu não sabia como ou
por que faria isso, mas parecia uma possibilidade real. E tive medo que eles
vissem a verdade sobre mim. Eles me olhariam nos olhos e veriam que eu
não tinha mais alma. Eu não queria que eles soubessem disso, mesmo que
fosse verdade.
Ele arrasta a mão do meu ombro até meu pulso. — Vale…
Encontro seu olhar despedaçado. — Ele me fez fazer coisas horríveis.
Ele sentou o primeiro homem que trouxe para mim em uma cadeira do lado
errado. Ele amarrou os pulsos aos tornozelos para que ficasse imóvel. O
homem tinha costas carnudas cobertas de marcas e tatuagens. Lazaro disse
que gostou de uma das tatuagens e queria que eu desse para ele. Eu não
entendi. Ele explicou que queria que eu cortasse para ele.
— Realmente não computou. Fiquei olhando para ele enquanto o
homem na cadeira começava a implorar. Esse cara grande e corpulento com
quem você não gostaria de brigar implorou a Lazaro - e a mim - para não
cortar sua tatuagem. Eu disse ao Lazaro que não poderia fazer isso. Achei
que talvez meu novo marido tivesse um senso de humor sombrio que eu
realmente não entendia, mas ele me deu uma faca e com muita calma me
disse para tomar cuidado, que gostou da tatuagem e queria admirá-la
enquanto a segurava na mão dele.
É difícil forçar as palavras, mas preciso. Tenho que contar tudo ao
Damiano, porque se eu parar sei que nunca mais terei forças para fazer isso
de novo. — Entrei em choque. Acho que ri. Eu disse a ele que não faria isso,
mas ele não aceitou um não como resposta. “Faça isso, ou vou machucar
você, Valentina”, disse ele. Eu disse a ele que ele era meu marido. Ele não
poderia me machucar. Ele riu disso e disse que era o único que poderia me
machucar. Comecei a chorar e ele me pegou pela mão e me puxou para um
abraço, me confortando. Quando me acalmei, ele disse que eu era uma boa
pessoa, que via que eu protegeria alguém às minhas próprias custas, então
facilitaria a escolha para mim. Ele disse que se eu não fizesse o que ele
pediu, ele faria a mesma coisa com Lorna. E ao dizer isso, ele pressionou a
lâmina fria da faca nas minhas costas, no mesmo local onde esse homem
tinha sua tatuagem. Eu peguei a faca. Parecia que era a única opção naquele
momento. Nos meus pesadelos mais loucos, eu não esperava nada parecido.
Tínhamos acabado de nos casar.
Estou tremendo tanto que começo a tropeçar nas palavras. Damiano
se move de modo que fica agachado no chão bem na minha frente, o vidro
quebra sob seus sapatos sociais. — Ele era um homem louco. — conclui. —
Ele colocou você em uma posição impossível. Isso é difícil para você. Você
não precisa me dizer mais...
— Preciso te contar tudo. — digo. Se eu não tirar todo esse veneno,
vou engasgar com ele. — Perguntei ao Lazaro quem era o homem da
tatuagem. Lazaro disse que foi alguém que roubou um dos carregamentos
do meu pai e matou três dos nossos homens. Isso me fez sentir um pouco
melhor, mas assim que cheguei perto dele e ele começou a gritar de novo,
não foi o suficiente. Foi quando eu disse a mim mesma que ele não era uma
pessoa real. Ele era apenas carne. Cortei a tatuagem. Lazaro pegou o pedaço
de carne e admirou-o por muito tempo. Depois de um tempo, ele me
elogiou. Disse que me saí bem pela primeira vez.
— O próximo homem veio uma semana ou mais depois, não me
lembro. O tempo perdeu sentido depois daquela primeira noite. Eu não saía
da cama para nada além de usar o banheiro e pegar comida na cozinha
quando Lorna não estava por perto para trazê-la para mim. Disse a mim
mesma que queria morrer, mas estava mentindo. Se eu quisesse morrer,
não o teria obedecido por dois meses. Eu queria viver e queria que Lorna
também vivesse. Antes de vir comigo para a casa de Lazaro, ela trabalhava
para minha família há mais de uma década. Ela tinha cinquenta e cinco anos,
dois netos de quem falava o tempo todo e era uma boa pessoa que cuidou
de mim enquanto eu estava quase catatônica. Gostaria de saber onde ela
está agora. Rezo para que ela esteja bem.
— Quanto mais tempo eu ficava com Lazaro, mais resignada ficava
com meu destino. Demorou... — Respiro fundo. — Foi preciso que Martina
aparecesse para finalmente me fazer explodir.
A verdade parece uma escultura horrível feita de sangue, carne e
sangue. Isso prende nossa atenção por um tempo. Posso perceber o
pensamento de Damiano. Ele provavelmente está inventando maneiras
apropriadas de me fazer pagar pelos meus pecados. Ele não é como Lazaro.
Ele não adora a violência, mas para mim ele pode abrir uma exceção, agora
que sabe o que eu poderia ter feito com Martina.
Quando seus braços me envolvem, fico completamente imóvel. Ele
coloca um braço sob meus joelhos, o outro nas minhas costas e me levanta
do chão.
— Vamos limpar você. — ele diz rispidamente. — Tenho um kit de
primeiros socorros no meu banheiro.
Ele me leva para fora do meu quarto e pelo corredor até chegarmos ao
que deve ser o quarto dele. Lá dentro é fresco e escuro. As cortinas foram
fechadas. Sua cama está desarrumada e bagunçada, o lençol azul
emaranhado como se ele tivesse lutado com ele a noite toda. A governanta
obviamente não esteve aqui esta manhã. Talvez ele não goste de ter
pessoas em seu espaço, mas mesmo assim me trouxe aqui.
As luzes do banheiro se acendem e Damiano me coloca no balcão de
mármore frio perto da pia. Seu cabelo preto cai sobre sua testa enquanto
ele se abaixa para procurar alguma coisa nas gavetas, quando ele se
endireita com uma caixa de plástico branca na mão, ele não me olha nos
olhos. Ele não aguenta mais me ver. Essa é a reação que eu esperava, mas
por algum motivo ainda me machuca. Sua incapacidade de olhar para mim é
de alguma forma mais terrível do que qualquer intenção assassina que ele
possa ter.
Torço as mãos enquanto ele lava as dele na pia.
— Levante o pé. — ele diz e abre a palma da mão para pegá-lo.
Seu toque é gentil enquanto ele limpa meu ferimento. Quando ele
remove o caco, finjo que não sinto a picada aguda, mas a bola de algodão
embebida em álcool que ele pressiona depois me arranca um silvo.
— Não é profundo. — ele murmura. — Você não vai precisar de
pontos. Isso foi o pior de tudo.
Ele não parece alguém que está se preparando para cometer um
assassinato, mas nunca mais vai me querer sob seu teto com sua irmã, agora
que sabe do que sou capaz.
Quando ele coloca um curativo no corte, não aguento mais. — Eu sei
quem eu sou. Sou um monstro. O pior dos piores. Eu deveria ter te contado
tudo isso antes. O que o Nelo fez não foi nada. Eu mereço muito pior.
O rosnado que sai de sua garganta acalma meus batimentos cardíacos.
Sua mão envolve minha nuca e ele puxa meu rosto para o dele, seu olhar
finalmente fixando o meu. — Você nunca mais vai dizer isso, certo? Você
não é um monstro. Você é uma maldita sobrevivente. Você sobreviveu a
algo do qual a maioria dos homens endurecidos não seria capaz de se
recuperar e colocou seu pescoço em risco para salvar minha irmã. Só há um
monstro na história que você me contou: seu marido. Ele vai pagar pelo que
fez com você, Valentina. Meu Deus, ele vai pagar um preço alto.
Ele pressiona o rosto no meu pescoço e eu paro de respirar.
— E o mesmo acontecerá com todos que não conseguiram estar ao
seu lado. — ele sussurra contra minha pele. — Onde diabos estava seu pai
quando Lazaro estava forçando você a fazer todas essas coisas? Ele sabia?
— Ele sabe — eu digo. — Meu pai e minha mãe sabem que Lazaro não
era normal. Fui criada para obedecer ao meu marido e cumprir sua vontade.
Quando implorei por ajuda, eles me disseram que não seria certo
interferirem em meu casamento.
— E seus irmãos?
— Eles não tinham ideia. Eu não poderia contar a eles. Você é a única
pessoa que sabe toda a extensão disso.
Ele inspira profundamente e se afasta para encontrar meu olhar. — É
por isso que você não quer ir para casa.
Lágrimas inundam meus olhos. Tento afastá-las, mas em vez disso elas
escorrem pelo meu rosto. — Ainda não sei se Lazaro está vivo. Se estiver,
Papà me entregará de volta para ele. Já me afastei dele uma vez, mas sei
que não conseguirei duas vezes. E se Lazaro estiver morto, há uma boa
chance de eu ser forçada a me casar novamente com alguém que pode ser
um tipo diferente de monstro. Não posso fazer isso, Damiano. Você pode
me trancar aqui, mas estar de volta à Nova York me colocaria em uma prisão
muito pior.
Sua mão áspera segura minha bochecha. Ele está olhando para mim
com o tipo de simpatia que pensei que homens como ele não eram capazes
de sentir. — Eu não vou mais manter você aqui. Você está livre para sair se
quiser.
Inclino a cabeça quando um estranho vazio aparece em meu peito. Ele
está me deixando ir. Não era isso que eu queria? Eu deveria estar aliviada
por recuperar minha liberdade.
Mas quando levanto meu olhar para o dele, percebo que a liberdade
não vive além das paredes desta casa. Vive na compreensão refletida em
seus olhos.
Ele pega minha mão. — Mas eu não quero que você vá embora. Fique
comigo, Vale. Fique comigo e você nunca mais terá que travar outra batalha.
Eu lutarei contra eles por você. Eu protegerei você. Vou vingar você.
Eu me inclino em seu toque. O perdão é uma coisa complicada. Tentei
me perdoar muitas vezes depois que cheguei a Ibiza, mas minhas tentativas
sempre pareceram jogar um monte de sementes em solo seco e infértil e
esperar que brotassem. Elas nunca fizeram isso.
As palavras de Damiano parecem chuva.
Elas encharcam a terra empoeirada e chegam até o lugar onde minha
alma estava escondida.
Um dia ainda poderemos ter uma flor.
CAPÍTULO TRINTA
DAMIANO
Ela pressiona o rosto em meu peito e eu seguro sua nuca com a palma
da mão. No espelho do banheiro atrás dela, meu reflexo me encara. Ele
ferve de desgosto e raiva.
Não consigo apagar a imagem dela tremendo no chão do quarto.
Quando a encontrei assim, pensei que era porque ela me viu fazer um
buraco na mão de um homem. Eu me odiei por fazê-la passar por isso. Perdi
o controle perto dela mais vezes do que posso contar. É como se ela ligasse
todos os meus sentimentos até eles explodirem. É assustador o quão vivo
ela me faz sentir.
Passo meus dedos pelos cabelos dela e a puxo para mais perto. Sinto
uma dor surda no meu peito. O fundo da minha garganta dói. Quero
queimar todos que a machucaram, começando pelo marido.
Se ele estiver vivo, não ficará assim por muito tempo.
Meu sangue fica gelado. Justamente quando estou prestes a me
perder em fantasias de violência, ela desliza as mãos pela minha cintura e
pressiona os lábios nos meus.
Tudo derrete. Eu agarro seu cabelo e mergulho minha língua em sua
boca. Ela faz um som suave em resposta, um pequeno gemido tão doce que
dói. A necessidade de protegê-la é tão avassaladora neste momento. Parece
que estou caindo em um abismo. Eu não sou romântico. Eu me recuso a
acreditar no amor. Na minha experiência, é tóxico e leva as pessoas a
fazerem coisas estúpidas e imperdoáveis.
Mas não importa o quanto eu procure, não consigo encontrar outra
palavra para descrever o que estou sentindo.
Cazzo. Fiquei tão mole por esta mulher que estou surpreso por ainda
ser capaz de ficar de pé.
Ela envolve as pernas em volta da minha cintura e meus pensamentos
se voltam para coisas mais básicas. O sangue corre para minha virilha. Puxo
seu lábio inferior com os dentes. Eu quero tanto transar com ela.
Ela parece ter a mesma ideia. Seus dedos puxam meu zíper e ela me
segura com sua palma trêmula.
Por que ela está tremendo?
Eu me afasto e vejo que seus olhos estão vidrados e úmidos. — Vale,
você está chateada.
Ela não responde. Ela apenas começa a me acariciar. Deve ser
confirmação suficiente de que ela quer isso. Seria em qualquer outra
situação, mas não desta vez. Eu a paro. Dói fisicamente, mas eu a impedi. —
Agora não.
Ela suspira e abaixa a testa para descansar no meu peito. Então,
quando estou prestes a perguntar se ela está bem, ela começa a chorar.
Sim, isso vai ter que esperar. Eu me coloco de volta, levanto-a do
balcão e a levo de volta para o meu quarto para colocá-la na cama.
Ela engole o copo de água que lhe dou, o que considero um bom sinal,
por fim, fica quieta. Posso dizer que ela está processando alguma coisa,
então dou-lhe tempo. Ras provavelmente está lá embaixo se perguntando o
que diabos estou fazendo aqui. Ele pode esperar um pouco mais.
Ela coloca o copo vazio na mesa de cabeceira. — Você atirar no Nelo é
um problema, não é?
— Vou precisar ligar para Sal para tentar resolver isso. Se sou capaz ou
não, é outra questão.
— O que isso significa para o seu plano com meu pai?
— Precisamos nos mover rapidamente. — Perdi o luxo de demorar
com isso. Sal ficará em alerta máximo assim que Nelo lhe avisar sobre o
ocorrido. Ele pode ficar curioso sobre a mulher que tenho comigo, se
descobrir que é Valentina Garzolo, saberá que estou ciente do que ele fez.
Ele não vai esperar que eu tome uma atitude antes de enviar seu exército
aqui para me eliminar. Ele valoriza o dinheiro que ganho para ele, mas não o
suficiente para me arriscar a iniciar uma revolta que só pode terminar com
sua morte.
Valentina acena com a cabeça e enxuga o rosto. Quando ela olha para
mim, há uma convicção inconfundível em seus olhos. — Vou te contar tudo
o que sei. Não é muito.
A esperança me inunda. — Pode ser tudo o que precisamos.
Ela parece menos convencida, mas me dá um sorriso suave. — Deixe-
me limpar um pouco primeiro.
— Vá. Preciso verificar Ras. — digo, enquanto nos levantamos da
cama. Quando ela se dirige para a porta, enrolo minha mão em seu pulso. —
Eu quero você na minha cama.
Sua pele se arrepia. — Você?
— Traga suas coisas aqui.
— São coisas da Martina.
— Vou comprar um guarda-roupa novo para você amanhã.
Ela ri suavemente. — E a minha prisão?
— Como eu disse, acabou.
Seu olhar cai em meus lábios. Ela engole. — Vou lhe contar o que sei
sobre os negócios do meu pai, mas não sei se ficarei.
Ela vai, só não sabe ainda. Ela é minha e farei o que for preciso para
que ela perceba isso.
Vou contra meus instintos e solto sua mão. — Entendido. Você ficará
mais confortável aqui enquanto decide.
O alívio que sinto quando ela concorda com um pequeno sorriso é
palpável.
Lá embaixo, Ras está andando pela sala. Ele olha para cima quando me
ouve me aproximar e xinga. — Dem, você precisa falar ao telefone com Sal.
Ainda há uma pequena chance de Nelo não ter conseguido alcançá-lo, já que
provavelmente ele está sendo costurado.
Ele está com raiva de mim. Ele acha que estou estragando tudo por
causa dos meus sentimentos pela Vale.
Mas atirar em Nelo não parece um erro para mim, mesmo agora que
esfriei. Parece justiça.
— Você acha que eu não deveria ter feito isso. — eu digo.
— Não importa o que eu penso. O que importa é que façamos tudo o
que estiver ao nosso alcance para acalmar a situação.
— Ele não deveria ter tocado nela. — eu digo enquanto tiro meu
telefone do bolso. — A cozinha está limpa? Tudo precisa estar em ordem
antes de Mari chegar em casa.
Ras solta um longo suspiro. — Eles estão limpando agora. Eu disse ao
motorista para trazê-la de volta em duas horas.
— Vale vai compartilhar o que sabe sobre o pai. — digo. Isso deveria
ser suficiente para aliviar as preocupações de Ras sobre eu não estar
pensando com clareza neste momento por causa da Vale. Eu sei que é com
isso que ele está preocupado, posso ver isso em seu rosto. Por mais que eu
queira repreendê-lo por duvidar de mim, não posso negar que na minha
família há uma história de pessoas que tomam decisões precipitadas e
destrutivas por causa do amor.
Mas não estou apaixonado por Valentina. Eu não posso estar. Atração
não é amor. Necessidade não é amor. Essa coisa sem palavras que sinto por
ela... Não pode ser amor.
Enquanto disco o número de Sal, sinto arrepios só de pensar em ouvir
sua voz e fingir que não tenho ideia do que ele tentou fazer com minha
irmã. Não posso deixar minhas emoções aparecerem. Ele tem que pensar
que não tenho noção.
7
Depois de alguns toques, ele atende. — Damiano, ragazzo mio . Você
me pegou quando eu estava prestes a começar meu almoço tardio — ele diz
com voz rouca, cortesia de seu hábito de fumar um maço por dia. — Chiara
passou o dia todo comendo risotto alla piscatora.
Ele gosta de fingir que somos melhores amigos, mesmo que todos
saibam que é uma farsa. — Sortudo. Não vou deixar você com fome por
muito tempo.
8
— Eu gosto de ouvir isso. Como está minha topolina favorita? Ela se
recuperou da viagem à Nova York?
Esse maldito idiota. — Ela está se sentindo muito melhor.
— Encontraremos quem é o responsável pelo que aconteceu. — diz
ele. — Essas coisas podem levar tempo, mas a justiça sempre é feita.
Eu não sei disso.
— Houve um pequeno mal-entendido com Nelo e Vito. — digo.
— Oh? Eles visitaram você hoje como eu pedi?
— Eles fizeram.
— O Nelo te contou a boa notícia? Eu acho que ele e Mari formarão
um lindo casal.
Lembro a mim mesmo que o casamento deles tem tanta probabilidade
de acontecer quanto Sal morrer sufocado com seu risoto, mas suas palavras
ainda acendem uma chama de fúria dentro de mim. — Ele mencionou isso.
— eu digo secamente.
— O que você acha?
— Receio que o comportamento de Nelo hoje o tenha desqualificado
como potencial marido para minha irmã.
Há um silêncio prolongado antes de Sal responder com uma risada
sem humor. — O que meu sobrinho fez desta vez?
— Eu tinha uma mulher em minha casa quando ele passou por aqui.
Ele ficou com as mãos.
— Dificilmente uma grande ofensa.
— Ela não era dele para tocar.
Ouço um farfalhar e imagino que Sal esteja inclinado para frente em
sua cadeira. — De quem ela é?
— Minha.
Desta vez, ele dá uma risada alegre. Um novo ponto fraco para ele
investigar. — Você não deve ter ficado feliz com isso.
— Eu atirei na mão dele. Ele vai ficar bem.
— Mio Dio. Eu gostaria de ver essa mulher que o tornou tão
possessivo. Bem, direi ao Nelo que isso não foi bem feito. Afinal, ele era um
convidado em sua casa.
— Eu apreciaria isso. — eu forço.
— O negócio com Mari… Não vamos descartar isso tão rapidamente.
Nelo agirá como um cavalheiro perfeito na próxima vez que estiver por
perto. Você tem minha palavra nisso.
A esta altura, Nelo já sabe que, da próxima vez que aparecer, não sairá
vivo desta casa, mas não me preocupo em discutir isso com Sal. — Se você
diz. Vou deixar você voltar para o seu jantar.
— Diga meu olá para a sua nova amiga. A propósito, qual é o nome
dela?
— Ale Romero. — digo sem hesitação. — Ela é apenas uma
trabalhadora sazonal.
— Talvez eu tenha que passar por aí antes do final da temporada. —
ele reflete. — Adeus, Damiano.
Desligo e subo as escadas para chamar Valentina.
Encontro-a no meu quarto, dobrando as roupas na minha cama. Vê-la
em meu espaço é como uma carícia calorosa. Isso me agrada mais do que
gostaria de admitir.
Ela me ouve entrar e se vira, segurando as roupas nas mãos. — Eu não
tinha certeza de onde colocar isso.
— A empregada vai abrir espaço no closet para você. — digo. — Deixe
isso por enquanto. Ras está nos esperando lá embaixo.
Sua postura endurece. — Você contou a ele sobre Lazaro e eu?
Ela realmente acha que eu compartilharia seu segredo assim que a
deixasse? — Não, e não farei isso se você não quiser.
Ela relaxa. — Obrigada.
Posso dizer que ela ainda está envergonhada. Ela se culpa pelo que o
marido a forçou a fazer, aquele maldito desperdício de...
Não, suficiente. Vou esperar para saber se ele está vivo ou não antes
de contemplar todas as formas brutais que farei com que ele pague.
Descemos para a sala e seguimos para o meu escritório. Ras está
parado perto da estante, com os braços cruzados sobre o peito. Ele inclina a
cabeça para o lado quando me vê ajudando Vale a andar, para que ela não
precise colocar muita pressão no pé machucado. Ela se senta em uma
cadeira e olha para ele. — Não vou desperdiçar seu tempo. Aqui está o que
eu sei.
Um sorriso surge em meus lábios com sua franqueza.
— Na manhã do dia em que Martina e eu escapamos, houve um chá
de panela com todas as mulheres do círculo interno.
— Suas irmãs estavam lá? — Ras pergunta.
— Só Gemma foi. Cleo não sobreviveria. Ela e Mamma tiveram uma
grande briga, então ela não teve permissão de ir. Mamma disse que era
importante eu aparecer.
— Você ouviu alguma coisa interessante?
— Para ser honesta, eu não estava ouvindo muito profundamente. Eu
estava... — Ela esfrega as mãos para cima e para baixo nas coxas. — Eu
estava apenas tentando me manter sob controle na frente de todos.
A carranca de Ras afunda. — Por quê?
— As coisas estavam ruins com meu marido e eu não queria que
ninguém percebesse. — diz ela. — Os detalhes não são relevantes para esta
história. — Ela me lança um olhar. — De qualquer forma, Gemma estava
preocupada com nosso pai. Ela disse algo sobre ele parecer estranho. Ele
tinha acrescentado mais segurança adicionais para toda a família.
— Ele estava com medo de alguma coisa. — concluo.
— Papà sempre foi cauteloso quando se trata de segurança, mas
Gemma não teria exagerado algo que não era real. Ela sempre prestou
muito mais atenção às negociações dele do que eu.
— O que mais? — Ras pressiona.
— Saí da festa mais cedo. Lazaro me queria em casa. Meu primo Tito
me levou e começamos a conversar. Sempre fomos amigáveis. Ele aludiu a
estar frustrado por ter que trabalhar longas horas para algum idiota. Ele não
especificou quem era o idiota. Ele disse que ele, seu pai, Lazaro e meu
irmão, Vince, estavam todos envolvidos.
— Irmão? — Eu pergunto.
— Ele mora na Suíça.
Ras coça o queixo. — Ele é o cara do dinheiro do seu pai?
— Sim. Minha impressão foi que todos eles estavam essencialmente
emprestados a alguém de fora do clã e cumprindo suas ordens.
— Tem que ser Sal. — Ras reflete. — Sabemos que Lazaro estava
rastreando Martina.
— Seu pai tem o hábito de fazer favores?
Valentina puxa o lábio superior entre os dentes. — Não que eu saiba,
mas isso não significa muito. Preferi ficar longe dos negócios dele.
Ras se afasta da parede e se aproxima. — Mas sua irmã está mais
envolvida?
— Eu não diria que ela está envolvida. Apenas curiosa. Quando
éramos crianças, ela escutava do lado de fora do escritório do pai. Ela
gostava de ouvir seus segredos. — Vale cruza as pernas. — Eu não fiz.
Ras e eu trocamos um olhar. Não é muito, como a Vale me avisou.
Estamos mais perto de confirmar que Garzolo tinha algum tipo de acordo
com Sal, mas precisamos de mais detalhes.
— Tem certeza de que não tem ideia de por que seu pai teria
concordado em trabalhar com o don Casalese?
Ela balança a cabeça, sua expressão sombria, então seus olhos se
arregalam. — Oh! Gemma também disse que Papà estava insinuando
entregá-la a um dos Messeros. Eles são outra família em Nova York, mas até
onde eu sei, sempre mantivemos distância deles. Surpreendeu-me que se
falasse em casamento. Não tenho ideia de porque Papà estava procurando
uma aliança com eles.
— E se você pudesse falar com sua irmã? — Ras pergunta. — Veja o
que mais ela sabe. Se ela é intrometida por natureza, não posso imaginar
que seu misterioso desaparecimento a tornaria menos curiosa.
Valentina empalidece. — Falar com Gemma? Mas como? Não posso
simplesmente ligar para o celular dela. Papà sempre monitorou nossos
telefones.
— Se descobrirmos a logística, você falaria com ela? — Eu pergunto. —
Você confia nela para manter seu paradeiro em segredo?
Ela morde o lábio antes de responder. — Acho que sim. Ela sempre foi
leal à nossa família, mas não me trairia. Tenho que torcer para que isso não
tenha mudado.
Eu me viro para Ras. — É a nossa melhor aposta para obter mais
informações. Podemos colocar um descartável nas mãos dela?
— Posso ver quais contatos temos em Nova Y...
— Contatos podem ser comprados. — interrompe Valentina. — Não
quero arriscar envolver minha irmã nisso apenas para que Papà saiba disso
antes de falarmos com ela.
Ras a considera por um momento e depois olha para mim. — Eu posso
ir.
Enviar meu braço direito para fazer o trabalho garantirá que ele será
feito corretamente, mesmo que pareça um exagero para o que deveria ser
uma tarefa bastante simples. Mas o visível alívio de Vale ao ouvir sua oferta
me faz concordar. — Pegue o caminho mais rápido, quero você de volta em
quarenta e oito horas.
— O que sua irmã faz fora de casa? — Ras pergunta, pegando seu
telefone para começar a fazer os preparativos. — Existe algum lugar aonde
ela vai onde seus seguranças lhe dão espaço?
— Sim. Seu estúdio de pilates. Ela está lá quatro dias por semana. —
Vale chega mancando e encontra papel e caneta na minha mesa. — Vou
anotar o endereço e o horário das aulas particulares dela. Por serem só ela,
a instrutora e a recepcionista, os guardas ficam no carro. Se você conseguir
encontrar uma maneira de entrar, poderá encontrá-la sozinha no vestiário.
Ras pega o papel dela e balança a cabeça. — Nova York. Eu odeio
aquela maldita cidade.
Eu dou um tapa nas costas dele. — É uma viagem curta. Tente apreciar
as vistas.
E se Gemma tiver o que precisamos, pode ser a primeira de muitas
vezes que faremos uma visita aos Garzolos.
CAPÍTULO TRINTA E UM
VALENTINA
A adrenalina não diminui até que meus pés atinjam o chão sólido.
Saímos do barco e eu a levanto em meus braços. Ras fica para trás para
amarrar o barco e nos dar um pouco de privacidade.
Alguns guardas tentam correr até mim, mas eu os afasto com um
olhar. Preciso de um maldito minuto apenas para abraçá-la. Eles não
entendem que quase a perdi nas ondas?
Vale segura minha camisa encharcada e encontra meu olhar. — Ele
está morto?
— Você o matou, baby. Não sei como, mas você o matou.
Suas feições se contorcem. — Eu bati nele com uma pedra. — ela
choraminga. — Eu bati na cara dele.
Eu a aperto com mais força enquanto a culpa toma conta de mim.
Deveria ter sido eu. — Você fez o que tinha que fazer.
Ela funga e limpa a mão debaixo do nariz. — Ele não achou que eu
conseguiria. Colocar minha própria vida em risco para me livrar dele.
— Você não fez isso apenas para ser livre. Você salvou Mari. — Meu
batimento cardíaco encontra um ritmo irregular. — Nunca esquecerei isso,
Vale.
Quando entramos em casa, minha irmã está nos esperando na sala.
Ela pula do sofá e corre até nós, arregalando os olhos quando percebe
nossas roupas pingando. — Oh! Graças a deus! Você está bem?
Coloco Vale de pé e observo enquanto elas se abraçam. Vê-las juntas
faz algo mudar dentro do meu peito.
Vale passa a mão pelos cabelos de Martina e beija sua têmpora. —
Sinto muito que você tenha passado por isso.
O aperto de minha irmã sobre ela fica mais forte. — Não se desculpe.
Não foi sua culpa. O que aconteceu?
Vale respira fundo. — Eu bati nele com uma pedra que encontrei.
Quando pensei que ele estava prestes a morrer, mergulhei na água. O barco
explodiu acima de mim.
Ela o matou com a porra de uma pedra. Seu olhar encontra o meu,
vejo o horror daqueles poucos momentos refletidos dentro de mim. Ela não
queria mais machucar as pessoas, mas tinha que fazer isso.
Juro por Deus, é a última vez que ela terá que fazer algo assim
novamente.
Saímos de Mari e subimos para nos trocar. Quando Vale vai em
direção ao chuveiro do meu quarto, luto contra a vontade de segui-la. Quero
dar espaço a ela, mas ela olha por cima do ombro e me chama para frente.
Tiramos nossas roupas e entramos no chuveiro.
Quando ela liga a água, não aguento mais. Tenho muito a dizer a ela.
— Eu estraguei tudo. — eu falo rouco. — Prometi que iria mantê-la
segura, e não o fiz.
Ela pega o sabonete e passa no meu peito.
— Eu deveria estar totalmente focado em proteger você, mas em vez
disso, metade da minha mente estava em Sal e em como eu iria derrubá-lo.
Eu falhei com você. — Tiro o sabonete da mão dela e levo as pontas dos
dedos aos meus lábios. — Mas eu nunca vou falhar com você novamente.
Fique comigo. Dê-me outra chance de mostrar como podemos ser bons
juntos.
Ela suspira. — Eu não quero ser sua mulher mantida. Durante toda a
minha vida fui um pequeno bote sacudido por ondas criadas por navios
muito maiores. É hora de definir meu próprio rumo.
Eu empurro seu queixo para cima. — Eu não quero uma mulher
mantida. Eu quero uma parceira. Uma igual ao meu lado. É você. Se estou
prestes a me tornar rei, você será minha rainha.
Ela pisca para mim e posso ver que ela ainda não está convencida. —
Dons não têm parceiras.
— Talvez seu pai não saiba, mas eu não sou ele, os Casalesi têm uma
forte tradição de colocar mulheres em papéis de poder. Você pode fazer o
que quiser. Escolha uma parte do império para governar.
Um pouco de cor retorna às suas bochechas. — Eu sei como as máfias
funcionam bem o suficiente para saber que você não pode simplesmente
trazer uma estranha para um clã e dar a ela todo esse poder.
Eu dou a ela um sorriso suave. — Uma estranha, não. Mas posso dar
para minha esposa.
Sua boca se abre. — Você está me pedindo em casamento?
— Sim.
— Nós nos conhecemos há apenas um mês.
— Meu pai pediu minha mãe em casamento no segundo encontro.
Eles se amavam mais do que qualquer pessoa que já conheci. Pode ter se
passado apenas um mês, mas não há a menor dúvida dentro de mim. Você é
a única mulher que eu vou querer. Eu te amo, Vale.
Seus cílios tremulam e ela baixa o olhar para meu peito. — Eu preciso
pensar.
— Claro. — Não espero uma resposta dela agora. Ela já passou por
muita coisa. Mas todos os dias, trabalharei para convencê-la a ser minha.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
VALENTINA
Uma hora depois, estou sentado em meu escritório. Meu cabelo ainda
está úmido depois que convenci Vale a tomar um segundo banho comigo
assim que terminarmos nossa conversa.
Pego o telefone e ligo para Napoletano.
Ele atende no terceiro toque. — Ouvi dizer que parabéns são
necessários.
— Como você... — Meus olhos saltam para os cantos da sala. — Você
está me observando agora?
— Ras me ligou mais cedo.
Eu me recosto na cadeira e belisco a ponte do nariz. — Certo.
Há uma risada entrecortada. — Como é ser um homem casado?
— Excelente. Está pensando em tentar?
— Não.
Espero que ele diga mais alguma coisa, mas aparentemente é tudo o
que ele sabe sobre o assunto, então, depois de um momento, continuo. —
Estou prestes a puxar o gatilho.
— O momento é certo. Há muito descontentamento nas fileiras.
Acredito que você encontrará o suporte que precisa mais rápido do que
esperava.
— Bom. Ainda assim, tenho que planejar o pior. — Girando minha
caneta sobre os nós dos dedos, solto um suspiro. — Não posso ter as duas
pessoas de quem mais gosto em um só lugar. Vale insiste em ficar, mas Mari
continua... indisposta. Ela não se recuperou totalmente do que aconteceu e
eu a quero em um lugar seguro. Em algum lugar ela será capaz de se curar.
Há um longo silêncio do outro lado da linha que suspeito ser
sublinhado com desgosto. Ele provavelmente está chateado por eu ter
ligado para ele sobre isso, em vez de algo mais adequado para seu conjunto
de habilidades.
— Olha, eu sei que você não é babá. Estou pedindo um favor...
— Eu vou levá-la.
Não há emoção na maneira como ele diz as palavras, mas a fala é
quase monótona. Como se ele estivesse tentando ativamente manter sua
voz neutra.
Uma pitada de desconforto se prende à minha espinha. Eu encolho os
ombros. É quase impossível ler Napoletano quando você fala com ele cara a
cara, muito menos por telefone. O homem é um enigma. É uma das muitas
razões pelas quais ele é tão bom no que faz. Odeio a ideia de mandar Mari
embora, mas além de Ras, ele é o único em quem posso confiar com ela.
— Não sei quanto tempo levará até que as coisas esfriem.
— Ela pode ficar comigo o tempo que precisar.
Deixo cair à cabeça para trás e olho para o teto rebocado. É a coisa
certa a fazer, mas isso não torna as coisas fáceis. — Obrigado. Para onde
você a levará?
— Em algum lugar na Itália. É melhor eu não dizer. Você poderá
manter contato por uma linha segura.
— Tudo bem.
— Vou buscá-la amanhã de manhã.
Isso não me dá muito tempo para dar a notícia a ela, mas sei que ela
não resistirá como Vale fez. Ela pode reclamar, mas irá com Napoletano e
ficará com ele até que seja seguro voltar.
— Eu te devo uma. — eu digo.
— Sim, você deve.
Nós desligamos e eu solto um suspiro.
Uma garantia da segurança da minha irmã para um favor futuro.
Dou de ombros. No papel, é o acordo mais simples que já fiz.
O que quer que Napoletano me peça, valerá a pena para manter Mari
segura.
E agora que isso está resolvido, não há mais motivos para atrasar. É
hora de colocar nosso plano em ação.
Envio uma mensagem para Ras e coloco meu telefone na mesa.
É o som do primeiro dominó caindo.
BÔNUS
A NOITE DE NÚPCIA
VALENTINA
FIM
Notas
[←1]
Expressão usada pela Cosa Nostra para definir um membro em pleno direito e efeito na
organização, como “associados” ou “soldados”.
[←2]
Ela chamou sua atenção.
[←3]
Licor de ervas.
[←4]
É o nível mais baixo na cadeia de comando
[←5]
Olá. Primo.
[←6]
Ensopado de carne.
[←7]
Meu garoto.
[←8]
Ratinha.
[←9]
Saúde.