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2 ANCHIETA ou AS FLECHAS OPOSTAS DO SAGRADO A poesia de José de Anchiet, imersa que est nu devosto cx 1, cote o rsco de se lida como um todo homogénee, Mas, exami nada de pero, reveladifeengas inceraas de forma e sentido que vale 2 pena aprofundar, ALEGORIA F CATEQUESE Quando escrevia para os nativos, ou pata colonos que i enten liam a lingua geral da costa, o missiondrio adotara quase sempre 0 idioma tupi. O crabalho de aculeuraczo Linguistica €, nesses textos, ‘marca profunda de uma situacio historicamence original. O poeta procua, no interior dos digo pit, moldar ma forma poeticabis- {ante prOxima das medidas trovadorescas em suas variates populares ‘ibéricas: com o vers redondilho forja quadras e quiclhas nas quais se arma um jogo de rims ora alternads, ofa oposas Redondilhos, quintilhas, consonincas finals: estamos ao cota- ‘io das praxes métricas da peninsula, agora transplantadas para um péblico e uma cultura tio diveros onde, mabe lv, “Jondé rebobé meena ‘imomborsanubath Jondé amotareymbira Jesus, nso vetdadeio Pa ‘enhor da nos exséncia, aniguilon ‘os inimiga’ 4 As palavias to tupis (com excegHo de Tes), tupi€asintane: mas ‘rium do perfede, cm scusacentos c pausas, nfo €indigens, € por tugués. O ritmo, mas nZo a misia toda, pois corrente dos sons pro: v¥ém do cupi Aculturar também é sindoimo de traduai. ( projeto de transpor para a fala do dio a mensagem catlica demandava um esforgo de penetzar no imaginatio do outro, ¢ ete foi oempenho do primeiro apéstola, Na passagem de uma esferasim- boliea para a outta Anchieta enconttou Sbices por veesincontorns- els Como dizer us tps por eactuply a palaena peca eels reciam até mesmo da soa aoco, 0 menos Bo registro que eta a8s- mira ao longo da Made Média exropéia? Anchieta, neste €em outros casos exttemos, peefete enxertaro voedbulo portugués no tranco do idioma nativo, o mesmo faz e com mais fortes raz, com 2 palavta smissa © com a invocasio a Nossa Senhora Bjork, Santa Maria, se anima rou! erm, Sana Maria, proetors dos meus! “This casos sto, porém, atipicos, O mais comum é busca de alu: ‘ma homologia entre as uas linguas com resultados de valor desigual Bispo € Aa-guax, que dizer, pajé maior. Nossa Senhora 35 ve- ves aparece sab 0 nome de Tipansy, mae de Tapa. O reino de Deus € Typaretamea, terra de Tupa. igre, coerentemente € rapa, casa de Tapa. Alms € ange, que vale tanto para toda sombra quanto parz ‘© espitito dos antepassdos, Demnio € amhanga, esptto erante & perigoso. Para afiguta biblico-rstd do anjo Anchiera cunha o voc blo Aarsbeba, profeta voador. ‘A nova teptesentago do sagrado assim produzida ji nto era nem ‘a teologia erst nem a crenga tapi, mas uma terceiraesler simbili ca, uma espécie de mitologia paralla que s6asicuasio colonial tor nara posivel Gomesando pela atbitria equaczo Tups-Deus judeu-cisto, todo ‘o sinema de cottespondéncias asim criado procedia por atalhes in ‘certs, Tupd eta o nome, calvez onomatopaico, de uma fora césmica fdentficada com o tovko, endmeno celeste que tera ocrtido a pri- -meita vez com 0 atebeatamento da cabeca de uma personagem mi- 6 tia, Mata-Mood-*De qualquer modo, o que podeta signifies, pa ‘24 mente dos tps, fundito dome de Tupd com a nolo de umn Deus uno etna, 20 mesmo tempo eodo-podetso, eo wlnervel Ino do Homer dos Evangelos? ‘0 paradowo cisto aparece 2 nu em veros como estes Piterginame eri Taponamo ebb be xumacriancioba, cembors un Deus também, Aqui a homologia com Tapa rselas cabalmente inadequada Problema similar cia a palavea que o poeta inventou pata tnd os seus auto, como eds acima, a nogao de anja, Kane peta sea dus incerpretaies diversas: Karat € ant ohomem brant ( hoje no Pagusi dara serve de ratamentorespeiton, e malesenbor), aquaato 0 profeacanor guaran a satidade que ai de ib emt bo anunciando a Tra sem Mal Mas em que pesatiam os indie ao plando dara idea de woo express em bee? Nos seus prdptios a is némades e videnes, mas agora docados de ass? Ou enti em portuguese alados No Auo de Sio Seburito Anchicta se encanta com a fantasia de um eioo de aos: keaibebé rapapel A aculeuragto catlico-api fo pontuada de solos exanhas «quando no violeacas. O ral sagrado dos indigens pcde au dade forementeaticulada que mantinka no estado ible feparte- se,sob a aro da catequese, em zonas poss «icone, Deu Indo, Mal, oseino de Anhangu, que assume oettuo de im aes gador Anci-Deus, tl qual oDeméniohiperofiado da fantasia me dienais. De out lado 0 teino do Bem, onde Tupi se invest de i tudes ctiadoras esalviies, em abertacontedigio com o mito org tal que Ihe atbuta preciamente os podetesaniquiladors do rio ‘Nara Anchiee este caso de coonersio de ui indo reliisimo (gue iio pass de cena nano"), moar dae de [1] falamos.the que o questamos baiar ara que sa alma nio se perdese, masque per eno zo podiamos ensinartheo que era ne= {esto poe fils de tempo, e que eves preparado pars Quando vol- ‘ems Fogo ee tanto com esa oot, com vnda do Of, eee ‘anto em meméria, que agora quando vemos e Ihe petguntamos se 66 qua ser ind, epoca om i sn os of dee ‘hrs oe eapernd (-] 0 gue Ie primi mito Sh Resse, qe ele mpta mas ee diced "Deu eda Ski ¢ Jum, guests da spree min ao Ce, «dep de Ait mut indo» uci tls cuss” [-] Chega 3 por {nigra o nvm em un een onde cam supa thor Com one coe exper AiThe one! die qoe de ‘dane de oo» que qt le expo om grande feo aoe jun er iad, gue ts aquel teers pensindo na ‘Erbe auc havi deter pre ima odo o mundo, dei ‘sar chun cde como haar de reswce o Depoisdo bam o velo adi supds “qu dl sabia a0 Céo, tendo voltado sua casa omesoua chore seus ns ene com e's “A marrtna os dum exemplo de fuso de Cristo ge resin indivdoalmenee Topi que dei em dimenstescxmics fur ete now Tap que ena na economia humansads ds Enear- ago es em mie Tapansy. aqua amber ua fla, Tp gyre (embers Dante, "Verpine Madre Fig de oo Fg, no Cano Soout do Para} e tem eat € tino "Nounivenn ecu de Anbang perlam so: mou bios: no casos antrpofigia, = plizami, x embriagues pelo cai ens. tag do fur quimado nos marci. Para falar 38 do primer © titval de dvorsto do nimigoremevia, na verdade, um ber sobs ‘ancl pata ida da comanicade, send um ao deter eminent sent acral que dave a qvantos elebravam rava identidade en ‘oom Mas ew fungdo sacramental da anropoaga era corirada pelo catquita que va nla obra de Satands, um vco efando {ue o indo deve absoutamenerenuncar. Pata qualia ese € Gute tals Anchicta foo o temo agai, comps, Sua dou anise de Maca de Lourdes de Paula Mans, de ang (lt) Sib (ni) aba uo nominal) algo ue sou como coi da ame bere, com gue o missonario ream «nog de pecao oma Ao asim mais rielo objeto da soa execgio ‘Cm o fim de comer nativo Anchiets crc uma poe: sia cum eat ej comet magindvio € um mando maniquita ‘ind coe fogs em perpen: Tups-Devs om sia conse do familiar de anja santos, e Anhange-Demnio com 2548 cone 6 de espiitos malévolos que se fazem presentes nas ceriménias eupis, ‘Um dualism ontologico preside a esa concepfototalizante da vida Jndigena: um de seus efeitos mais podetosos, em rexmos de acultura- 40, €0 fo de o misiondtio vincalat o erbar da tribo a poderesexte- Flores e superiors & vontade do fnio, std claro que essa demonizacto dos rts tupis ado produzia uma Ptiticaceligiosa de que emergise a figura da pessoa moral como su- jeito de suas ages, O catectimeno era visto (eva) como um set pos- suido por forgasestranhas das quai vita salar um deus ex-machina progede pelo chon o pade, edistibufde pulvssatsininan vit sjuda de ees obrenauis como os ajo ea alma dos santo fos autos assiste-se & dramatizasto de um process que se ins ‘aura de fora para dent da vida wal. J aponte a sua estratura ddualista, lngamence sustentada e vaiamente desdobrada pelos ta- balhos posteriores de aculturasto. Caberia ainda insistir em uma dstinglo prévia: os misiondtios fizetam uma partlhactica no conjunto das expresses simbélicas dos nativos.Cotheram ertiveam das ntrativas corentes 3 aquelas pas- sagens miticas nas quas apaeciam entidadescésmica (Tipa), ou en- to herbs civiizadores (Sumé),capazes de se identificater, sob al eum sspecto, com as figuras pesoai ¢biblias de vim Deut Crador ‘ou de seu Filho Salvador. Como, 20 que se sabe, os tupis no pres vam culo omganizado a deusese herbi, fo relaivamente fil 208 je- suas infetir que eles nao tveisemereligio algurma e preencher ese ‘azio reolégico com as certezas nucleates do eatolicisme, precsamen- tea ctiasio e a redengto, Ess impressio € geral,figurando nto 56 nos textos jesuitics co ‘20 em outras fonts, independentes: Hans Staden, Jean de Léry, An- ee Thevet, Gabriel Soares de Sousa, Gandavo, Cito uma passagem sxemplr da Iformaro do Bra ede ua capiana (388) de An. ahr tint dota pot Deut, sment sons xia gue ‘so Deus, mas sem prio thes fem hon algun, se com tet ts ols ach sre nem comune coo ded, ato eet oan ie pr ee mat ns es {0 nosis porgue he ago ga mal em slgut laps edonbos € infaados do. quando passa por ce, Ines den uma fe ha oa ene on onset come pote 6 Linhas abaixo, falando dos feticeitos (pats). © misionteio ad- mite que estes, sim, teriam parte com o demo ‘A ordem das observaces tanto dos missionstios como dos cro- nisas €, em geral, a mesma: 42) negam cedondamente a exstenca de rligito ente os tupis 3) telerem o medo 20s tovees que seriam tomados como uma max nifestagio de uma divindade, Tips; )_natram casos de perseguigo e more dos fndos pr espttos maus, Anbanea ¢ luriban. identifieados com deménios, 4) cafim, reportam se influéncia dos pajes¢ dos caraibas. A medida, porém, que avancavam no conhecimento da vida in- digena, os misiondros foram percebendo que aquela absoluta au séncia de rtuaisconsagrados a Tups ou a Sum estava a indicar que se deveris buscar em outro locus simbico o cere da religiosidade ‘pi. O centro vio, doador de sentido, ndo se encontrava nem em lieorgias a divindades criadoras, nem na lembranca de mios ata, mas n0 calto dos mortr, no conjuro dos bons expiivs €n0 exonju- ro dos maus. Bis 2 fungao das ceriménias de canto e dance, das bebe- ragens (cauinagens), do fumo inspirado e dos transes que cabia 20 pale predic [Bram estas pritiasverdadeiramente rica de significado, ests os ritos que atavam a mente do indio 20 seu pasado comunitiro a0 mes- ‘mo tempo que gusantitm a sua identidade no intesior do grupo. A antropofagia no podia entender se fora da cenga no aumento de for fae que se receberiam pela absorgao do corpo e da alma de inimigos ‘mortos em peleja hontosa ‘Afestava, portanto, 0 alvo real a ser destrtdo pela pregusioje- suttca, © método mais eficaz ndo tardou 2 ser descobero: general zar 0 medo, o hottr,jé to vivo no fadio, aos espritos malignos,€ ‘etendé-lo a todas as cntidades que se manifesassem nos tanses. En- fim, diabolizat toda ceriménia que abrsse caminho para a volta dos ‘A doutrina catélica oficial, nesselimiar da modernidade liga ‘ou hererodaxa, que € 0 sculo da Remascenca da Reforma, procurava pagat 0: vestigios animistas ou meditinicos do comportamento rel- iota. Eo tempo da perseguicto implacivel A magia, tempo de caga As bras e aos feiiceirs, de resto nfo 6 na Espana e em Porugal oe Comprenese ne coe. eth do dk om pons 1 amy as de Ane, compe mus al ge © jd al pu coma to ines nena pea ix de mp ut fas oman nese Sorter openelons rape cnescee ip dol cx a en soap lsh do em epic ss dc Chases toro ao inado Ne ie dS Loren Nene ti rn Cosine te me a rss trio tod ina) (80 eon ous et cai ine sue ea es Sta Maltin ne vs tra a een is Goon edn Pear sme ST cme ‘om enn eee ie mink is te Eo vi ce i Quer son ex? En sou conctado, sou 0 diab aad, Gass cbamad, por ai sfmods Mew tema &agrdivel do quere gue to comtrongido sem sbolde Prtonde tro as aba toda, Bio cous & beber Iso @ grids, Io se ecomenda, Jo ¢ admin! 7 Sao aye conceteados os mogaracas Beberes (Quem bebe af exgotsrse 0 cui, ce @ alee nso por lata E bom dancar sadomar se, tngirse de vermelho, Cmpenar 0 coro, inser at Peres, (fserse negro, fons. ‘rami. De enfurecer re, andar matand, comer wo a0 onir, ponder apuias, lamancebar se ser desoneso, ‘ipso adler, tno quero que o genio de Pars io comrio com 05 fds, Induindo ota creitsrem em mim. Ve inusmente sfutarme tit padres agora, “pregoando let de Deus? ‘A tradusto, por devr de esrtaliteralidade, toga 3s vezes o pro stico. Masque ardido flteto de code! rendesia nas maos de um poeta popular nordestino este elenco de vanglias do coisa-uim! “Tudo quanto a fala de Guaiatd vai nomeando como obras suas, ‘o que representa se nfo o proprio sistema ritual dos eups? Ea inges tu do ioe ment € «dasa potngads oi eno soo fadotnos, € a pintura corporal verrelha e negra €a atuagem, £4 em- ‘Dhumagem, € 0 famo, sioas consults 20 paj-orculo, €a anropofagia “Acende-se aqui o conflito entre culeuas. As religies que ten dem a edificar a figurs da consciéncia pessoal unitéia, como 0 ju idfsmo eo crstianismo, temem os itis mégicos, canto 0s nacualis- tas quanto os xamanistcos,suspeitando-o de feichistas ou idlacrs Dai, a recusa de gesos que lembrem fenbmenos medidnicos ou de possesso eo horror de atos que facam submerg no trans a identi ade pessoal. H4 uma tradigho multisecular de lua judew-crise (a {que no escapou o islamismo) para depurar o imaginirio;tradigo 1 {que remonta 4 lei mossice, aos profetas, s Caras paulinas, Bo medo lo polietsmo ressurgentelevou, na sua dindmica 3 aco exttema don iconoclast. A litugia crise européia, na sua verente mais moder ‘a, protestant, afinavase, desde o século xv, pelo tom ascétco de tum calvinismo avesso a figuras a gestos, no limite, eftaticio a qual: ‘Quer simbologia que nto fose o verbo descatnado das Estturas. A telacio com 0 wanscendente ais fazia mediante a letura dizeta do ‘oxo, a nua palavra da Biblia, 56 intetrompida, em rarose bem mat. ‘cados entretempos, pela sobria entoarto do canto sacro: nada mais ot nesse momento histrico de vtagem pata urn culo mats in teleetualizado que o ctstio da Europa entrou em contacto com 38 pe ‘cas animisas da Africa eda América As lechas do sagradocrucaram- Se. Infelizmente para os powos natives, «teligito dos descobridores vinha municiada de cavalo ¢ soldados, arcabuzese canhes, O re onto ose ttavou apenas entre duasteodictias, mas ente duas ce. nologas portadoras de instrumentostragicamente desiguais O res «ado foi o massacre puro e simples, ou a degradacio com que o ven- cedor péde sear os cultos do vencido, [No caso luso-brasileiro, a ponte entre a vida simbilica dos eupis €ocristianismo acabou-sefazendogracas 0 crite mais seasivel, mais sdictl € mais terrenal do eatoicismo portagués ¢ comparado com © puritanismo inglés ou holandés dominance nas cldnias da Nova Inglaterra. A devogao popula ibétia no dspensava o recurso 3s ima gens; ances, mulkiplicara-as. Por outro lado, valia-se muitissimo das figuras mediancias entre ofiele 2 divindade, como os anjos bons © ossantos, 0s quais final sio almas de mortos que interedem pelos ‘Nessa linha de mediagdescangives, a catequese no Brasil vali 204, quanto pode, a prtica dos sacramento, sins corp6teos date lacio entre os homens ¢ Deus. E, 20 lado da linguagem simbéliea do Doe do vinho (a Bucanistis). da igua (0 Barsmo), do leo (a Conf. ‘maz20 ou Crisma) ¢ dos compos (o Matrimsnio), difundiam-se veicu- los modestos, mas constantes, os objecos dits sacraments, como 0 incenso.ea agua benta, as religuia, as medalhas, os rositios eters, 2s santinhos, os escapultos, o§citis eof ex-votos, um semm-nGmeto de signos que rornavam aresivel a doutrina ensinada as ndios e ne 0s da Colbaia 2 ee pus a bat oo ede ee de use dv oat eases ca ee ae Se ee rer Sees eee Igreja. Ce er mage ae het ed aa oe eels frm cease ee ene ra Sere eee oeeen ean See eerie ease eter ene on one aoe ean ees Se eee ene eee oe Sorin eee ie : oo errr err Se eee a ocune Ce ne ee eee ees ee ee crea 3 ‘dus grenhude, guabiru,rato-de-case; guaibutta, cuca, rato-do-mato, dururs, saporcaruu; sariguéi, gurbd; mborabors,abelha peta mia: ‘rutabaka, cangamba; sebsi, sanguessuga; tomaruisha, espécie de ke gosta, saassuguaia, potco. ‘Todo quanto no reino animal metia medo ou dava nojo 10 euro- pea viza sign dibio de entidades funestas em ambos os planos, 0 natural €o sobrenatural. O mal seespalha nos matos ou se exconde as furnas€ nos pincanos, de onde si noite sob as espécies da co- bra e do rato, do morcego e da sanguessuga. Maso petigo moral se a quando tis fogas, ainda exteriors, penetram a alma dos ho- mens. Aqui o olho inguisdor acusa modos de possesso coetiva em todas as priticas da tbo que potenciam a vitalidade do corpo até cos espasmos do transe. O cauim slivado na boca das velhasfermenta fo sangue, sobe 3 cabeca e arasta o indio & luxiria 3 brualidade. A iguais excess leva 0 furmo que expira dos sagrados maracts, cabesas ‘abagas onde moram e de onde falam os ancesteas. A bebida e 20 tabaco junte-s o mais potente dos exctantes, a carne crua dos hers, _mortos em guerra. Para 0 misionéro af se enlacavam em n6 vipetino 0s pecados capitas da ira, da gua eda impenitente soberba. A cate- {quese vai colsficar como gestos de Anhanga esses e outosrituais vi- vidos no interior das comunidades indigenas, (utra relagzo de exterioridade impoe-se com toda a evidéncia ‘no poema joco-srio "°O pelote domingueio”,provivel ncleo dra- mitico do Auto de pregardo amiveral, 0 mais reptesentado dentre os textos de Anchieta durante as suas andancas pelasvlas do ioral A alegoria do poema persegue a iia da graca dina que Adfo recebeu do alto. © pelot, isto €, 0 elo capote envergado aos domia. 0s, € ese dom de que o primeito homem foi reestida no Eden, mas Perdew quando deixou que 0 Anjo do Mal furrase. ‘Atentesse para sequéncia: o bem, ofertado de fora para dentro, como o taje est para o corpo, & também subtraido ao homer por injungBes exermas, no caso a esperteza fapinante do capeta (“A co- bra ladra e malina/ com iaveja do molezo! apanhou-lhe 0 domin- poco”), Mais tarde, isto €, com a vinda de Jesus Cristo, 0 ovo Adio 6 resacido da sua perda orginal: $6 encio recobra a honra com 0 uso do pelote (© homem recebeu de grag, foi roubado de chofte, enfim recu- 7% rou, também sem iniciatva sua, 0 dom da vida eterna. “Graga” ivinos des", tudo sto sinbnimos de gratuidade: Hh, demo de gras porque "Graga”se chamava com ele paseaes ‘nut alone, pol pags ‘Mat frtara be, 2 romaee (0 pobre do molto, 0 pelote dominguewo. 0s pobretercachopinbos fesnom moras de fi, ‘quando 0 pa, com desearia, den na lama de foinbo. Cercow todos or cominbos lade, com seu bie, rasp be 9 dominguei De graca the foi tomado, at cattow mat dinbeito 0 nel, que fo treo ‘par ter desempenbado Fo mat caro respatado (ditoro de , mole!) ten pelotedomingaciro® (0 prego do resgate, quem o pagou nto foi o pecador, mas “ ‘nero do moleio, Jesus Cristo, saido da estipe de Ado. A alma ainda e sempre, o palo de uma justa entre poténcias maléwlase be- névolas que a transcendem e a objetivam, 0 auto Na vile de Vtéria srk alvez 0 exemplo mais coerente do proceso alegivio tabalhado por Anchieta. Nele no hi, a rigor, petsonagens: sto wozes, ou porta-vozes, que femietem a entes poi 0s, moras 04 religioss. Ea Vila, €0 Governo, € Ingratidio, € 0 ‘Temor, €0 Amor de Deus, sem falar nos indefectiveisanjos do mal, Lifer e Satanis, que desta ver se insultam um ao outro antes de Calter com estrondosa derrota sob as milicias celestes de Sto Mauti- cio e do arcanjo Miguel % Se por alegoria entende-se um mézodo de pensar e dizer que se fixa no abstrato das grandes nogbes(recobrindo a riqueza das dife- fengasvividas pela experiacia), enti as figuras embleméticas desse auto ilustram com justeza a definigto do proceto. As falas morali- zantes do Governo © do Temor escondem e, 20 mesmo tempo, bus- ‘am resolver for alfoalgumastensbes politics agudas que, nos Gli ‘mos anos do século,dilaceravam a eapitania do Espitta Santo, Avila de Vitoria conheceu, nesse momento, 2 ambigua e incd- ‘moda stuagio de ser, a um 56 tempo, cabega de wma capiania por- ‘uguesa vacante, em 1389 (pela morte do seu donatatc, Vasco Fee ‘andes Coutinho), ¢ uma cidade feita jutidicamente cstelhana pela ‘unito dos Estados ibérics sob Filipe , desde 1580. Governava a cx pitania dona Lutsa Grimaldi, dama da nobteza monegasca, vidva de Feanandes Coutinho, quando estalou um movimento pro-castelhano {que se interessava em fazer reverterditetamente & Cofeao senhotio do Espitico Sunto. O partido contririo,luso, pteendia asegurar aos parentes préximos do mort a regéncia de Vit6ra,reclamando asim tum estatuto especial para a vila, “‘um titulo nove com nova go- vernagio" Em meio a tanca discérdia os esutas apoiaram,disceta mas fit- smemente, o partido de Filipe, fazeido genes diplomsticas junto 2 dona Luisa para que se mantivesse no leme da captania, mas eai- pre formalmente sujeta 20 poder central espanol (0 auto reflee 0 momento sob os véus de urna alegora poitico- religiosa. A cidade fala como grave matrona, a vidva Grimaldi ceta- ‘mente, perplerae dvidida entte o bom zelo,acasoindisteto, dos het deizos de seu matido ea obedigncia 3 sutoridade de Castela, esta afi nal rudo vence pela boca de um sudo conselhito roculada sem maiores ‘mistrios de Gorerno,e prestante te6rico do diteco divino dos mo- fnarcas, ‘porque a verdadeiraf€/ & governo desansada (vw. 712-3) As ras e tudo quanto pudesse saber 2 disiio aparecem como sensimencos inspitsdos pelo Maligna e, mais paciclarmente, pela figura catdeal do auco, a Ingrario, wena vela sista que jé fora barregi de Locifer e de Adto, instilzndo em ambos tevolta contra Deus, Na abertura do auto Liciferaribui 3s suas prSpraeartimanhas 2 cizfnia que lavtou na hora da suceso. O zopor € 0 do mundo as 76 q itn pairs sn yo. Sind oc otf heen hacer ira? Pet dss rvs Dobe mandy el ober. Bi ae so py, mi debe? re pci, onde pre ets mod ares Jae be pus Us pt be cabs? (re 92400) de diabo auibuise, portato papel de ssbresio por exe- Ici, No eno do ato sera em ia joss a Inga dim. que tem evidemte parce com o demo, eum Embatzader jst, paselfano, mandado do Paraguai para retard vila de Vita elguis de Sto Mauri ques cidade, enguanto subi, s tmontanindigna de argue Come o preso€ todo Figured rebaid para ura cena em guesemmemenaenblenion cpa nov nem ob {pero ama histo eal nem que sas polites ds gr po! suporenense ‘possuidos pela megera Ingratidao. Os tragos ex- tenos sas. um tempo tees ees, segundo uma tela pre comico de miata atades ocalment epo- ‘fresco aa € pss roteor , pot hips, agadaan + bls letados Amo occ elaadon servo de un inte: ‘exe pica ingrid ena em cena sbragando um veh tacho que cla retle sem pa, magem das inrigs que coninuaneate po Eu sou 3 qus sempre sou sevedors dards (06 951-2) [A sua fala € inolenie e descomposta; mal véo Embaixador cas: telhano, cobre-o de impropéries: 6 casetbano que exams, ‘laroadorsmdalz (0. 8623), ” © corgulho ferido de Embaixador ditathe resposta & leurs (0b, sdlpame Sn Francia! Penséme que eras dagin, o aguél rave cant, (gee 10 lama basse, el fiero tonscin™ (re S771) AA Ingratdao € uma velha bojuda que se vanglotia de tet sido ‘cgstvidals pelo Anjo do Male pelo pimelro dos homens, embora {caf o groreso toca 2 froneitas do monstruaso) 3 sua preahe? 280 Finde com 2 hora do pare: [Nao sabes que cada die pairs, sem munca part, com mai exrmhs alegre? (1019-21) Cada ato de taiao comerido pelos siditos rebeldes de Vis6ria € um novo parto da Ingato cujo estado habitual € por ela mesma desert: Sim, mas sempre be de fear (prone, sem pant de todo, (Porgue repre bio de pecar 25 bomens, por algum modo, fenguanto 0 bomem darar (ov 1069-73) A insprasao dos motivos intemos ¢ a sua seqiéncia obedecem 8 logica do pensamento mitico, mas tudo vem preso a um ponto de vista alegrico-poltco fundamenteenraizado na dindmica dos nte- resses e do poder. ‘Verna memoria a alegoria dancesca da Loba, a thkima e mais er svel das feras que barram ao poeta 0 aceso 20 deletoxo monte do Paralso, a Loba, que os intézptetes temetem ora 3 fraude, ora 2 avi dz, ora ao mais grave pecado da trig comet a ito contra o amigo « benfeiror. Hi caraceres comuns 3s duas concepgdes. A figura an- chietana compée-se paradoxalmente, como a Lupa do Inferno, do va- 2io€ do cheio, sco sem fund, fauce hiante e magrém voraz, peivida dos proprios desejos nunca siciados, sempre ressurgetes: 8 Parees mors encenida (que agora viene de Argel, Gl renire como fonch, pla care i te chupada |) sce como papel! Explica a lngeatidice A rio © porgue 2 Ingravidio ‘em ama tal ualidade (ue, cheia de malo, ‘gots a fot e benedo (de divins piedade (re 1028-38) Em Dante: dana Lapa, che di ttte brane sembjona cara nell sua magrezea E nba que de tds os desejos parece givide na sun agers (1, 490) E mais abaixo: ha natura manag ra che msi non empie ls bramora rol, fe dopo ' pasto a pie fame che ria tao mf e pene tem a naturera ave 0 yeu feos desc no saci ao fim do paso volta mais faminea (lat, 97-9) ‘Tanto a velha megeta quanto a Laba eruzamse fecundamente, nasenda novos males deses acasalamentos: Ingato Ta nto saber gue emprenbei <4 formosa Lacfer ‘quando quis somanbo ser como Dews,etemo re, (ter supremo poder? 9 Depots fo men barendo me fomon por amiga 0 tngreo padre Adio Nao sae tembo rardo 4 ter emanba barign? (x 100110) Note-se com que habilidade Anchieta aproxima, em clave gro- tesca, baregao © barge. Em Dante Melt som li animal 2 ex sammopiia, ‘pi sara score Emits so as estas com que cruza ce mais sek ainda (a, 1, 1004) ‘A lgrtidtoe a tragdo aparecem como vicios sornadosafins pe- la cupidez que os ew a semeat nos homens ates de infidelidade, Mais uma vez, na alegora,ocotidiano des grupos secais ¢ of seus descjos ce confltsreduzem:s a exremes de fungio exemplar ou degradam-se 20 nisl do bestia, ov sublimam-se pelo mecanismo ideologico que consiste em assumi los figuradamente pelo "dizeurso sobre ma ci sa para fazer entender out Para 2consciéncia modemnae, especialmente, para a estética de filing ideaista que vai do humanismo de Goethe a Croce a0 pie ‘meizo Lukics, o uso da alegoria € tesiduo de uma antiga subordina so da arte a outros fins ~ religiosos, politicos ou moms; e, como tal, comerte-e em uma negasio da autonomia poftica. Alegoriza- so, para essa linba de pensamento, € 6 dominio do absrato sobre © concteto da live expresio do sujeito. A revisto dese julgamento Atdsico comeca com Walter Benjamin: € com seus enstios sobre o drama barroco que a critic Iiteriria contemporinea passa a atibuit 2alegnria um eenticideologicamentecompleno de forma reveled. +72 (c 0 necessaviamente mistifcadora) da desumanizasio que vémn suportando, hi milénos, os oprimidos. Haveria, na semantca das ima. gens alegoricas, um juzo radical do Poder, esse outroesfinge, que despreza os homens enquanto pesonssingulares e dferenciadas, © «todos apaga sob a cara vazia das grandes abstrasdes. Benjamin quer surpreender esa fora denuuciance da alegoria no verso moderno de 0 Buudelite, na prosa ua de Kafka, no teatro diditico de Brecht, 20 Angelus Novas de Paul Klee E problemético tabalhar com essa incuiedo critica de Benjamin para reavaliar 0 auto anchietano, no qual oalegorco é cfta de uma, visto legitimista do mesmo poder. Para.o teatro do jesuitavaletiaan- tesa afiemagio de Lakics: "A velhaalegoria, determinada por uma ‘anscendéncia relgios,tioha a miss de humilhar a realidade tr rena, contrapondo-2 a ultramundana ou celeste, até 2 sua plena nu- lidade’' Talando para nativos ou colonos Anchieta parece ter feito um acto com as expresses mais hiriticas da cultura acaico-popular aquela crengas e aqueles titos em que no reponta, porque nfo po- de determinar-se com clarera, a consciéncia da pessoa moral livre. Nas entranas da condigio colonial concebiase uma re6tica para as massas que s6 podetia sssumir em grandes esquemasalegéricos 0s conteddos doutrindrios que © agente aculturador se propusera ‘A alegotiaexerce um poder singular de persuasio, nfo aro tet- tivel pel simplicidade das suas imagens e pela uniformidade da le- ‘ura coletva. Dai o seu uso como ferrameata de aculeuraczo, dai sua presenga desde a primeira hora da nossa vida espiitual, plantada ‘na Contea Reforma que unia as pontas do Glkimo Medievo e do pr- ‘meio Bartoco. ‘A forgada imagem alegérica nao se move na diteczo das pessoas, cenquanto sujeitos de um proceso de conhecimento; move-se de uta aco de poder ao mesmo tempo distance eonipresente, que os espec- tadotes andnimos recebem, em geral pasivs, ndo como um signo 4.ser pensado e interpretado, mas como se a imagem {6ra a propria ‘origem do seu sentido Mais do que um simples “outro discuss, como a define o seu ‘ximo prego. a alegons & 0 discurso do outro, daquele ouro que fla nas calz, fz temer e obedecer, mesmo quando 0s fantoches grotes- ‘os da sua representagto (Diabo ou Megera) nos facam ri. A alegoria fi o primeir instrument de uma arte para masas ctiada pelos itelectusis orginieos da acalturagi, a SIMBOLO E EFUSAO Depois de conhecer 0 teatro de Anchiet 0 Ieitor moderna da ‘ua lirica se surpreende com certos momentos de intense personaliza- ‘io € atdente acento subjetivo que o poeta consegue dar 2 sua fala {qoando, em ver de pregar 20 cupi e 20 colono, diz as suas proprias tensOesespitituais mediante arelacdo ea-tu que a alma enrerém com Jesus Cristo. A reterinriéade pura que confinava com o sublime do sserado fo cam o grotesca do demonfaco no cendtio construido para os ae tos, cede har, em algunas itcas composts em espank ou em por ‘ugués, a uma introjesio vim do transendente, A f€atinge 0 nivel da expert Dias linhas de formasto poftica combinam-se para dizer 0 en- timento de intimidade com o divino: (2) pritica de simbolos toma dos vida cocina; () 2 prolferaio da linguagem mistico-fusva. ‘A ptimeira € a via pela qual se busea revelaro transeendente pe- la atribuigio de auta ao imanente — via sacramental por exceléniz ‘Deus fa sensivel e nomeivel nos mltiples snais dos corpos eme- dliante a fala do alimento, da bebida, do calor € do éxtae amoroso. Deus € pio, sianda, & bolo macio chamado fogara,€ divino boca- do, fonte que embebeda, & delete de namorados,&fogo gastador. E mais:codo grau de pareatesco, afeivo ou carnal, conve para ta duzir a telagdo entre o humano ¢ o divino, como se depreende dos vocativos que se enfeisam nesta passagem de “Ao Santisimo Sa- Mex bem, mew amo, se expor, meu renbor, sew amigo, mew irmio, ent do mew eory30, Deas «pat! Pois com antronbas de mie eres de mim ser comido, roubat todo 0 meu tet, ara vs! Casto €simultaneamente pai, mle, imo ¢ esposo, amigo ¢s ‘hot! Teat-se,evidentemente, de uma tentaiva de aproximaslo que a superptecfunde modo elaconais muito dios, ea frmalmente incomposrves, fora de todo sistema dogmicoe denro de uma = fica do cored capuz de abrigar em si tendéncias cotta, mov ‘entos paradomis. Nao por aus Gime fase diz: “toabai todo © meu sentido, para ws! "No empenho de dar algum nome ou contorno singular ao ser amado, to vida do corpo é metaforzeda,esublimada toda vida de relate. Transpdemse ara o ideal de um coovivo homendeus ‘atdore a enerpia que produ oconeacto fic docrente coma ma: {Glin como semelhante Relsmo e migiismo encanta Um I far de convergencia norco sacramental também verdade que ese proceso de asimilaio universal do corpo pela alma amorosarequet, fa mente ascvica do esta, 0 cortlato dominio sobre os istintos ‘ue, porsi mesmo, entegucs suas propia cendéncas, no resp tariam a opscidade do sangue ¢ do Sex, e po iso devem aparecet ‘como fogo impuro que out fogo, mistic, cmbacers= te manjr sproveita (pares arama Tudo quano se condenava como inspira dabslica na vida das, comunidades tupia — 0 uso ea celebrao tribal de comida e da be- bida, da dang edo canco, da oaszoe do tanse — revere post mente 3 Euctinia come expiesio de um cult de teo interpessal aque se vale do alimento para santificila Eo plo-orpo, €0 vinho-sangue de um homemdeus faterno e-shador. Em ermos de psicologia isc, datseia aqui um embate ene dois process de misticsmo ques disinguiiam em geau? Uma it ‘da consctnca religions ees, pla qul sagaadojé € mareada sente pessoal, vé como stiicas (regress) certs pris twas ices onde parece elipear-se todo sentimento da ciatua humana emo um st uno, consent, avncenead (ideal dawn incl ‘als, que a tcologia css herdou dos neoplatéizos,rcus-se 20 ‘tans Gio deventrado e plural dos pajés eupi-guaranis. A unito ‘catia eta com honor acruetarefeigaoantopotigic.O lago ‘national Gnicoreaega + poligamia O monotesmo, duamente

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