Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1º ATO: O Ensaio
- imagino as necessidades orgânicas e as fantasias do paladar;
- penso no prato do dia: o que quero compartilhar?;
- projeto o requinte do ritual da última ceia;
- busco receitas nas prateleiras das estantes e ingredientes nas
despensas da memória;
- elejo o que se ajusta ao tempo e fôrmas que não tenho;
- tempero: o agora de depois;
- preparo: misturo- sinto- palavreio- experimento- penso- saboreio;
- entrego-me: fogo forte, fervura; fogo brando, vigília.
expõe, o[s] sujeito[s] (expõem-se dirige a um grupo bem definido Sendo a aula um acontecimen-
a penosas aventuras)". Expomo- — o dos alunos — que ocupa um to inter-subjetivo, até mesmo a
nos à recusa e à aceitação, damos lugar social hierarquicamente sub- recitação do livro didático, enor-
a ver nossas escolhas, damos a ver metido ao do professor (por mais memente criticada, tem seu fa-
nossa relação com o texto. ‘democráticos’ que sejamos), a fala migerado automatismo posto sob
A "aula", que se realiza pre- professoral é uma lâmina de dois desconfiança nas muitas e muitas
dominantemente pela fala, tem gumes, a ferir quem a profere. Sua vezes em que, afetados por nosso
especificidades que a configuram posição hierárquica, se por um la- auditório social, sentimo-nos sem
como um gênero discursivo. A fala do antecipa a possibilidade de que saber como dar continuidade a ela.
professoral, analisa Barthes, é seja levada em conta pelos interlo- Como professores, podemos
"uma fala pública", na qual não há cutores, por outro configura-a como realizar a leitura pelo aluno, numa
refúgio. No comentário público "uma fala de autoridade", à qual se aula expositiva. Podemos ignorar
que do texto fazemos, estamos em pede clareza, nitidez, transparên- os alunos enquanto falamos, acre-
exposição à dança de olhos que cia, ilusões que pouco a pouco ditando que detemos o controle
nos cerca. Pelo tom que imprimi- vamos desconstruindo ao nos de- dos sentidos que se produzem na
mos a nossos dizeres, damos a ver frontarmos com os desdobramen- sala de aula, através da determi-
emoções, concordâncias e dis- tos daquilo que dizemos. nação da perspectiva de onde
cordâncias apaixonadas que o Como lugar de autoridade, de devem ser vistos e ditos os fatos
texto suscita em nós e também saber legitimado que vale por si que apresentamos a eles. Mas não
nossa relação com o grupo a quem mesmo, continua Barthes, a fala temos como controlar os proces-
nos dirigimos. Nosso titubear, nos- professoral é também uma fala sos de compreensão que acompa-
sas correções, nossas imprecisões que pode ser resumida, "...privilé- nham nossos dizeres.
e nossos acertos são acompa- gio que partilha com o discurso Porque o outro a quem a aula
nhados, acolhidos, desdenhados dos parlamentares". No resumo, se dirige não é "um ser privado de
por nossos interlocutores, entre pensamento e estilo são cindidos: palavras" (Bakhtin,1986) de sig-
sussurros, sorrisos, cara feia, "a 'forma', assim se pensa, é com- nificados, de vivências e de expe-
deboche. Quantas e quantas vezes, primível, e essa compressão não é riências: a compreensão é sempre
no pleno exercício da aula, perce- julgada essencialmente prejudi- uma réplica à palavra do outro,
bemos a fragilidade do lugar que cial". Nos resumos em que somos produzida pelo encontro/confronto
ocupamos! convertidos, vemo-nos, então, pas- entre as palavras ‘alheias’ e as
Assim, ainda que investida de teurizados. Algumas vezes sequer palavras de que já nos apropria-
autoridade, na medida em que se neles nos reconhecemos. mos . Podemos impedir, então, que
dos emergindo em enunciações parte dela, as formas de suas habituamos a pensar as relações de
concretas, produzidas em con- relações morfológicas e sintáticas ensino, bem como a transparência,
dições específicas de interação, etc.) quanto pelos elementos não a clareza dos sentidos em circu-
são acolhidos, rejeitados, modula- verbais da situação em que é pro- lação nessas relações.
dos, disputados pelos interlocu- nunciada, de tal modo que se per- Dos aperitivos ao licor, em
tores. Dessa perspectiva, a pedra é dermos de vista uma ou outra de sobressaltos, vamos experimen-
um fragmento material da reali- suas dimensões, perdemos tam- tando a crise entre uma identidade,
dade tanto como massa física bém a possibilidade de com- pessoal e profissional, conferida e
quanto como signo historicamente preendê-la. estável e as alterações que a expe-
produzido, que constitui e sustenta Essa discussão nos remete à riência do acidental e do impre-
categorias fundadas em coorde- complexidade e singularidade da visível nos proporciona. Nos
nadas sociais, culturais e de subje- "aula". Os lugares sociais de pro- olhos, nos gestos e nas palavras de
tivação que, mediatizando nossas fessor e de aluno e as relações de nossos alunos encontramos nossa
relações sociais, nos constituem. ensino que se produzem entre eles imagem reafirmada, desdobrada,
A situação sugerida explicita a não existem em si. Eles existem e multiplicada, feita em pedaços,
complexidade dos processos de se materializam à medida que vão apagada...
produção de sentidos. As enuncia- sendo ocupados por indivíduos Mas também podemos optar
ções tomadas em sua amplitude reais, que se diferenciam em ter- pelo silenciamento da diversi-
concreta, como fenômeno históri- mos de sexo, idade, etnia, classe dade e dificultar a co-respondên-
co, têm tanto uma significação social, credo, valores, experiências cia, ou seja, a escuta daquilo que
unitária, "propriedade de cada vividas, enfim, indivíduos históri- dá o que dizer, daquilo que fica
enunciação como um todo" que se cos, indivíduos que encarnam por dizer frente ao texto que da-
apresenta como a expressão do histórias singulares, que interagem mos a ler, frente ao comentário
instante histórico singular e não em uma situação histórica concre- em que nos damos a ver. Embora
reiterável ao qual ela pertence, ta numa escala microscópica. o silêncio dos alunos muitas ve-
quanto se apoiam sobre elementos Essas singularidades mediatizam- zes nos tranqüilize — não há sus-
reiteráveis, idênticos, fundados se reciprocamente e são constituti- tos, não há dúvidas, não há per-
sobre uma convenção, destaca vas de toda a dinâmica interativa guntas sem resposta (Orlandi,
Bakhtin (1986). Elas são determi- que se produz na sala de aula, 1987) — acabamos, como nos
nadas tanto pelas formas lingüísti- implodindo a simplicidade, a natu- alerta Barthes, privados de uma
cas que entram em sua com- ralidade, o poder conformador e a imagem, mesmo ofensiva, que
posição (as palavras que fazem homogeneidade com que nos nos constitua.