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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto


Departamento de Educação, Informação e Comunicação
Curso de Pedagogia

Isabela Martins Cazula

Texto apresentado à disciplina “A Filosofia


Educacional de John Dewey”, ministrada
pelos docentes Prof. Dr. Marcus Vinícius da
Cunha e Prof.ª Dr.ª Tatiane da Silva.

Ribeirão Preto
2021
Capítulo único: Uma experiência verdadeiramente singular
O caminho trilhado ao decorrer desta disciplina esteve cercado de descobertas,
situações inesperadas e conflitos. Desde o contato inicial, partindo da reunião ministrada
pelos docentes, em que nos comprometemos a realizar as atividades de maneira
participativa (mesmo sem ter a mínima ideia de qual eram), a curiosidade pairava, fazendo
com que eu me envolvesse logo de início e mergulhasse nessa experiência imprevisível
que se construía aula após aula pelas teorias e práticas apresentadas. Com um breve
roteiro da disciplina regido por Cronos, pudemos ter uma ideia dos conteúdos e teorias
que seriam apresentados. Por outro lado, os títulos misteriosos das atividades
apresentados por meio de Kairós só faziam aumentar a curiosidade e nos provocava a
tentar adivinhar o que seria cada uma das situações propostas. O que, é claro, não
aconteceu.
A disparidade entre o curso inesperado que a disciplina tomava toda semana e a
metáfora do percurso determinado é evidente. As propostas que nos foram apresentadas
simbolizavam uma chance de criar e pensar algo completamente diferente, enquanto ao
mesmo tempo não havia nenhuma possibilidade de prever o que os demais colegas
apresentariam também. Apenas no momento em que a aula acontecia e com ela,
igualmente as trocas entre nossas criações e pensamentos, que compreendíamos na prática
a teoria estudada.
A primeira proposta de atividade, “Criando criaturas” me causou surpresa,
despertando em mim uma animação e entusiasmo que há tempos não sentia no âmbito
acadêmico, inserindo em meu dia ultimamente tão cronometrado e turbulento, um
material incomum: massinha de modelar. A energia fornecida por esse momento kairótico
em que nos foi subitamente solicitado que criássemos qualquer coisa, proporcionou uma
experiência única e memorável e, na medida em que minha criatura tomava forma,
percebi que ela possuía mais de mim do que eu havia imaginado.
A atividade poética de criar um “ser” a partir de minhas ideias e deixando fluir a
imaginação, tornou visível a teoria deweyana de que ensinar é um ato poético e o aluno
possui inúmeras disposições emocionais e afetivas, com as quais o professor precisa saber
lidar se quiser educar poética e esteticamente. Ao observar as criações dos colegas em
aula, confirmei essa hipótese no momento em que percebi que poderia descobrir muito
deles apenas observando como descreviam suas criaturas, que possuíam muitas
características de seus criadores, o que construiu um vínculo inevitável entre nós e os
seres modeláveis.
Em “Uma viagem problemática”, a segunda atividade proposta, o método
educativo experimental sofístico se evidenciou, pois fomos guiados a assumir uma
posição investigativa diante de uma situação problemática que exigiu de nossos
conhecimentos, ideias e técnicas para a elaboração de uma possível solução. Ao atribuir
características reais a um meio de transporte inusitado, novamente a imaginação e a
criatividade precisaram tomar as rédeas, sem abrir mão da coerência para convencer o
professor de que viajar de tapete mágico era a melhor escolha. Após uma longa
investigação sobre quais argumentos utilizaríamos, pensamos cada detalhe do nosso meio
de locomoção incomum, que defendemos com unhas e dentes assim como o restante dos
colegas, o que tornou essa atividade algo muito marcante para mim.
Utilizando-se do método dissoi logoi, o professor ouviu os lados opostos e
analisou as possibilidades de transporte, baseando-se em nossas técnicas argumentativas
para decidir por qual meio optar. O longo debate repleto de atitudes sofísticas, cercado
por reviravoltas e interpretações diversas, tornou essa experiência educativa memorável
e reflexiva.
A compreensão da homonoia sofística se deu por meio da Atividade 5, com a
criação de uma comunidade para as criaturas. Em grupo, foi preciso utilizar o lógos e
considerar a individualidade de cada um para pensar em um mundo onde todas elas
habitariam de maneira harmônica e conviveriam juntas. Mesmo assim, foi preciso abrir
mão de certos conceitos individuais enquanto discutíamos as características de nosso
mundo para considerar alguns coletivos, atingindo a homonoia entre nossas criaturas.
Nessa mesma atividade, foi possível perceber o surgimento de conceitos deweyanos sobre
comunidade e democracia, que surgiam conforme pensávamos na vida em comunidade
que nossas criaturas levariam. A comunicação foi um conceito chave no desenvolvimento
da comunidade, levando o grupo a compartilhar interesses, ideias, valores e também abrir
mão de certas convicções para que o convívio coletivo se desse da melhor forma possível.
O conceito de kairós não poderia ter sido exemplificado de uma forma melhor do
que na Atividade 6, que revelou seu conteúdo apenas no momento exato da aula, nos
pegando desprevenidos e fazendo com que exercitássemos nossas capacidades de
raciocínio e criatividade, lidando com o mundo do possível e com uma situação
completamente imprevista, nos tornando sujeitos ativos do processo educacional. Mesmo
que tentássemos prever o rumo que a história levaria, não era possível saber de modo
algum, pois o sorteio dos dados ficava ao acaso e nos guiou a continuar a narrativa por
caminhos inesperados. As decisões tomadas mudavam drasticamente o curso dos
acontecimentos, tornando impossível saber qual seria o desfecho e causando uma
sensação diferente de euforia e anseio a cada trecho que era completado pelos colegas.
A atividade mais inesperada e marcante, porém, ficou para o final da disciplina.
Após idealizar nossas criaturas, desenvolver suas personalidades e pensar em um mundo
ideal para elas, novamente fomos colocados diante de uma situação que mudou o curso
das coisas. Tivemos de destruí-las. O percurso indeterminado se materializou diante da
imprevisibilidade da solicitação feita pelo professor, que com certeza, foi de grande
surpresa para todos. E, assim, tal como nos tornamos poetas, fomos responsáveis pela
morte da poesia, “destruindo” uma parte de nós estranhamente inserida em cores diversas
de massinha modelável.
O envolvimento na criação das criaturas foi tão emocional e ocorreu de maneira
tão intrínseca que foi difícil reunir a coragem para quebrar meu querido amigo imaginário
em diversos pedacinhos da minha cor favorita, desmanchar o sorriso inspirado em um
animal que tanto amo e arrancar a orelha em que ele possuía o mesmo adereço que eu.
Depois de compartilhar objetivos, deixando minhas disposições afetivas tomarem conta
e colocando muitos traços da minha própria personalidade, tal como alguns anseios e
sonhos, precisei me despedir superficialmente de um objeto inanimado com o qual criei
um certo apego. No final, o eu lírico da minha poesia era eu, por isso foi tão difícil me
desapegar e por isso hesitei por alguns segundos antes de destruí-lo.
A dificuldade, porém, foi apenas momentânea. Após alguns minutos de reflexão
pude constatar que nunca realmente precisaria me despedir da minha criação. Sei cada
detalhe dele, sei como foi o processo de cria-lo e certamente me lembro de todas as
emoções sentidas nessa atividade. A experiência proporcionada por essa disciplina e pela
minha poesia, não atingiu um desfecho que se encerra, mas sim, se consumiu no meu
interior e me ensinou tantas coisas que nem mesmo fui capaz de absorver todas ainda. O
fim na verdade é uma possibilidade de recomeço, porque o poeta nunca deixa de criar
poesias. As diferentes vivências proporcionam sentimentos muito distintos entre si e,
quem sabe em breve eu não crie outra criatura, apenas para destruí-la depois. Quem sabe
eu não dê voz ao kairós nas minhas futuras práticas educativas, ou me utilize dos impulsos
dionisíacos e dê origem a outras experiências singulares como esta que tive aos meus
alunos. É, quem sabe.

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