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E EXISTIR
R E F L E X Õ E S S O B R E A P R O D U Ç Ã O
C U L T U R A L E M T E M P O S D E
P A N D E M I A
HELOÍSA OLIVEIRA
DEZEMBRO 2020
"Os livros não são
significa."
UMBERTO ECO
Pra começar 1
Umas definições 4
OIRÁMUS
A(s) Cultura(s) 5
O Estado na Cultura 11
Os mecanismos de fomento 15
Editais emergenciais 19
O Produtor Cultural 25
Referências 30
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pra começar
É necessário começar contextualizando. Sou uma mulher, mãe, produtora cultural e
educadora. Todas essas coisas me definem, todas essas coisas me limitam. Desde 2002,
trabalho com produção cultural, em uma trajetória que já passou por diferentes papéis,
desde o sonho até hoje, no entanto, mantenho a ideologia de que a Cultura é o meu
norte, e que é potencialmente ferramenta e fim para uma sociedade mais justa e
oportunidades fui convidada a falar sobre o tema, e a explicar o que vem a ser a
Produção Cultural, sobre políticas culturais, falar sobre cultura, como é ser produtora,
como é ser produtora e mulher, mãe, como é ser produtora no interior de São Paulo, em
Jundiaí. Pela primeira vez, minha razão falar vem de dentro, em um momento em que a
Importante dizer que esse material vem da minha vontade, porque estamos em uma
pandemia, ainda em uma situação de isolamento social – que é parcial, mal definida, mas
ainda existe – e a forma de trabalhar, produzir, existir, mudou. E com estas mudanças, o
viabilização e construção, com muita luta, para um de busca pela sobrevivência própria e
de seus pares. Não estou falando (só) de sobrevivência material. Qualquer um que
trabalhe com arte ou que seja próximo o suficiente dos artistas entende que o impulso da
constatar o desmantelamento de todo um setor, sem ter como ajudar, sem ter como
consolar, uma vez que padeço do mesmo. Alguns conseguiram facilmente aderir a novos
formatos e experiências, outros passaram por períodos densos de luto e reflexão que se
Acho que os que aderiram muito rapidamente ao mundo virtual podem tê-lo feito por
cultura como esse fiapo de existência ainda vai nos amargar mais do que imaginamos.
dentro do estado, e uma negação da sua importância, por vezes velada, por vezes
inclusive parece ser a moda do momento, e a cultura é só mais uma das coisas cuja
espaços para a cultura se torna mais desafiador a cada dia. No início, parecia uma piada,
vozes poucas e pequenas que eram só ignoradas ou satirizadas, num lugar de insanidade
ou ignorância, agora é assim que parte da população se orgulha em ser, e o reflexo disso
cultural parece gritar no vazio, é o momento também em que me sinto mais inclinada a
fazê-lo, em uma tentativa de ordenar o que já foi, articular com quem ainda persiste e de
projetar o que pode vir a ser. Por isso, aqui trago algumas definições e históricos sobre a
Jundiaí.
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Considero importante um aviso de que aqui compilo uma visão – a minha. Aqui há
quase 20 anos de produção cultural, aprendi na prática, alguma coisa nos livros, muitas
coisas com pessoas que admiro e respeito. Assim como crio este espaço para minha
manifestação, abro o convite para que o debate se amplie. Afinal, como perceberão até o
Articulemos.
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umas definições
O trabalho cotidiano do produtor cultural é essencialmente prático. Lidar agilmente
formação nesta área, embora exista hoje alguns cursos que colaborem bastante, precisa
de ser com o conhecimento é essencial para que se conscientize sobre quem é e qual seu
papel.
do que chama de ciclo gnosiológico, partindo sempre de uma concepção de ser humano
inacabado, incompleto e inconcluso, refletindo sobre seu conhecimento atual, sua ação, e
aqui de uma fundamentação que pode ser de alguma utilidade para qualquer artista ou
produtor cultural, inicialmente na análise sobre seu papel e depois sobre quais as possíveis
é uma das formas de ampliar nossa criticidade e de basear nossas reflexões e ações.
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a(s) cultura(s)
Impossível tratar de conceitos de cultura sem trazer mais de uma visão – além de ser
com diferentes conotações, todas com algo a nos acrescentar. Mario Vargas Llosa (2013)
faz uma análise: “É provável que nunca na história tenham sido escritos tantos tratados,
ensaios, teorias e análises sobre a cultura como em nosso tempo”. Há mesmo fontes
diversas, e aqui vou relacionar e comentar sobre algumas das reflexões e definições que
A maioria dos autores traz múltiplas concepções de cultura, e quase todos ainda
humana de semear, cuidar, criar, multiplicar, colher seu alimento. Essa forma de
valores, no sentido de intencionar e atuar por seu desenvolvimento. Imaginar o ser humano
como capaz de estabelecer para si, para sua comunidade e para seu lugar algo que
pretendeu e construiu é a derivação deste conceito radical de cultura que nos leva para
Considerando a história do mundo ocidental, fica claro que a cultura criou este
elite foi este modelo, que toda e qualquer sociedade devia almejar, e ao qual deveria se
submeter. Os valores vistos então como universais foram nas últimas poucas décadas,
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Llosa (2013) analisa que, apesar de tantas teorias, o termo Cultura está prestes a um
esvaziamento de seu conceito para ser substituído por um que seja uma desnaturação do
que era no início. Ele traça uma linha a partir de visões antiquadas de cultura como um
momento bonito e esperançoso, em que a cultura é fonte – e não reflexo – dos fenômenos
sociais, econômicos, políticos e até religiosos, e vai chegando a uma trágica resolução em
que a cultura venha a ser somente aquilo que tem valor de mercado. Esta visão de Llosa
traduz muito do que estamos vivendo e sentindo como trabalhadores da cultura. Depois
econômico.
dentro da linha eurocêntrica, sendo membro da academia e da política. Llosa tem uma
vasta e importante produção literária, que sempre foi permeada por polêmicas, como suas
cultura nos leva quase que instintivamente a uma comparação com as concepções de
cultura na política do nosso país, e mais intensamente ainda no estado de São Paulo. É
uma mudança essencial que reflete até na nomenclatura da secretaria, e que apesar de
sugerir que a cultura seria tratada como um setor econômico a ser fomentado, acabou na
prêmios.
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Um gigante que sempre traz alguma luz para os debates desta área, Raymond Williams
(2007) diz que a cultura é “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua
usamos correntemente, entre eles a cultura. Uma das concepções que ele propõe é que
estéticos. Uma segunda proposta dele pode ser lida como um determinado estilo de vida,
intelectuais e artísticas.
artística. O ato de olhar para dentro de si, para o mundo e transformar seus sentimentos,
de refletir e criar algo sem imediata utilidade, apenas como forma de expressão, é a
humano. Na segunda conceituação, ele traz uma visão mais antropológica da cultura, que
dos povos originários, cultura de violência, cultura pop: aqui não há limite, um juízo de
valor ou uma tentativa de hierarquização, mas uma leitura deste conjunto de hábitos, ritos
e valores. A terceira conceituação traz o termo mais para perto da prática do produtor
lugar, viabilizar a concretização; e aqui também são mais óbvias as ligações com as
Durante muito tempo, cultura foi considerada somente como aquela diretamente
associada à civilização,
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hegemônicos. O debate sobre qual seria então a genuína, válida cultura, a que deve ser
fomentada permanece em debate, passando pelo italiano Umberto Eco (1979) e suas
massa e como ela seria mais representativa do que a própria cultura, e segue por John
Storey (2015) e suas teorias sobre a cultura popular, sua transição ente um objeto de
policiamento e controle por parte dos poderosos até seu lugar de direito, a partir da
frustrado. Tanto Eco quanto Storey enxergam a cultura como inadestrável, ou seja, seus
ímpetos são fortes como uma correnteza, e os esforços para contê-la podem retardar,
então de alta cultura, viesse a ser compreendida, de forma ambígua, como uma função
benigna de socialização, e também como um potencial para vir a ser um meio de controle
social. Estas discussões nos provocam a olhar o que entendemos como cultura, e
são todas formas de expressão de grupos sociais, e nenhuma delas pode ser
vivemos um exemplo no Brasil durante a ditadura militar, que começa a entender então o
estado como um regulador da cultura, claramente delimitando quem podia falar, escrever,
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ler, publicar, atuar e discursar o que, onde e quando. Esse adestramento cultural,
enquanto projeto social, tinha o claro objetivo de formatar a sociedade como uma massa
de “cidadãos de bem”, uma massa acrítica, acomodada e a favor dos intuitos do poder
estabelecido. Naquele momento, a censura não era apenas em relação a quem poderia
ser apoiado e fomentado, o que já é uma forma de coerção, mas uma completa cessão
visão muito mais atual, com uma leitura de uma sociedade global e plural, Bauman fala de
culturas, e de como elas se relacionariam entre si. Conhecido como o sociólogo dos
vínculos, onde todas as relações e intenções são frágeis e fugazes, ao mesmo tempo em
que os indivíduos sofrem de medos e angústias. Mesmo com essa visão quase trágica da
cultura, no entanto, também ganha em suas teorias a sua versão líquida. Enquanto o
Iluminismo forjou a cultura como única e universal, hoje a cultura instiga e acompanha a
fluidez das mudanças e a volubilidade dos valores, ou seja, ela é tão maleável e
Com uma releitura brasileira sobre o tema, Roque de Barros Laraia (2002) detalha
e mudanças não são possíveis de serem contidas, e que faz parte da mobilidade própria
de todas as culturas adicionar, retirar ou adaptar elementos umas das outras. Esta visão
antropológica de cultura foi utilizada no início dos anos 2000 em diversas políticas
públicas de cultura, como os Pontos de Cultura, uma experiência muito bem sucedida que
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é sua essência. O equilíbrio destes dois extremos é o lugar exato onde atuamos.
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o estado na cultura
A relação do Estado com a Cultura é uma dança em par. Se aproximam, um conduz o
alinham, sincronizam, depois se desalinham. A dança não pode cessar, embora em alguns
momentos pareça que um dos pares sai de cena, estão em onstante ligação. Essa dança
cultura, qual é o papel que enxerga nas artes e nas manifestações culturais, e a partir
política cultural brasileira uma clareza, tanto no que se refere à concepção de cultura
e ação. Por vezes, a difusão de documentos e visões dos gestores culturais traz a clareza,
mas ela não se reflete na prática, e vice versa. Philippe Urfalino (2015) debate o tema das
políticas culturais a partir de uma análise da experiência francesa, mas nos oferece
que a cultura é plural, ele nos chama a conceber uma política cultural no singular: a
práticas políticas e administrativas, não pode ser uma sobreposição de ações isoladas ou
setoriais. Em outras palavras, não podemos olhar para a cultura como pequenos
fragmentos e criar políticas para cada um destes fragmentos. Podemos sim criar
programas e ações para cada setor, para cada local, mas a política de cultura deve ser
obras de arte clássicas, que podem ser entendidos no momento social objeto de sua
todos que cultivem sua capacidade de inventar, criar e expressar livremente seus talentos,
bem como receber formação artística de sua escolha. Coulangeon traz os dois conceitos
como separados, pois está realizando uma análise histórica da política cultural francesa.
No Brasil de 2020, faz muito mais sentido propor uma política que contemple a união da
obras criadas pela cultura democrática deve também ser democratizado, em nome de
uma sociedade que possa se enxergar tão plural quanto se é. A ideia não é uniformizar,
ou adestrar, mas sim oferecer uma visão mais acurada do que é a cultura brasileira: como
demográfica, sua cultura é diversa e sua política cultural deve ser tão diversa quanto.
única.
É claro que ter uma política cultural diversa não significa fomentar com migalhas
cultura é tão desafiadora. O primeiro grande problema é a escassez dos recursos, que
não há como promover uma real democratização. Este problema, porém, não é o único:
mesmo que houvesse uma grande quantidade de recursos, ainda é nebulosa a forma mais
acervos e memórias; garantia do direito de produzir e difundir arte e cultura. São muitas
as possibilidades e infinitas as demandas, sendo que cada uma dela ainda se desdobra
em outras tantas. Quais destas ou outras linhas ou recortes o estado vai adotar depende
recurso que chegue para se fazer política cultural, e a pasta vira uma contratante de
eventos, projetos e ações, sem critérios, mais ou menos elaborada, mais ou menos eficaz.
Quanto ao modelo político ideológico e sua relação com a cultura, Marilena Chauí
(1995) traz algumas das possíveis relações entre estado e cultura. Na relação liberal, o
artesanato e ao folclore, e toma o espaço das belas-artes como a única e válida cultura.
ser fomentado. Além de escritora e filósofa, Chauí foi secretária de cultura do município
direitos culturais dos cidadãos. Neste conceito, seu propósito é de desmistificar a cultura
com diferentes experiências, e nos últimos anos se consolidou a política cultural como uma
instrumentalizadora do fomento, seja através das leis de incentivo, que claramente trazem
essa visão neoliberal em que o mercado define os interesses, seja através dos editais de
fomento, que a princípio visam a pulverização do fomento, mas que na prática necessitam
tanta concorrência. Uma terceira via de execução das políticas culturais se dá através dos
Outro avanço nas políticas culturais nos últimos anos foi a proliferação de esferas da
participação social em conselhos e fóruns. Ainda bem longe de ser ideal, a abertura das
municipal, uma possibilidade de compreensão mais precisa de qual é a sua cultura, quais
são os valores mais relevantes para estes representantes, e como sua ação interfere na
os mecanismos de
fomento
Com a consolidação das leis de incentivo fiscal e os editais de fomento como
da democracia cultural esbarra agora nos mesmos mecanismos que foram criados para
fortalecê-la.
profissionais do setor para uma pejotização, similar a alguns outros setores econômicos,
assinada, com garantias trabalhistas. Com isso, todo o ônus e risco da cultura como
tabelas orientando quais são os valores adequados para cada situação. No início, como
adotado pelo mercado. Não seria exatamente um problema, se não fossem esses valores
difíceis de serem equiparados em projetos sem incentivos fiscais. Toda a força de trabalho
do setor passa para a atuação prioritária nos projetos, e as instituições, grupos e artistas
que ficaram fora do alcance dos mecanismos, se tornaram inviáveis e novamente invisíveis.
de apagamento.
A partir de então, o jogo das políticas culturais inicia um malabarismo, em que cria
novas linhas de fomento para os setores ameaçados, como aconteceu, por exemplo, com
a ópera e com o circo, com uma linha de ação frágil e sem continuidade, que inicia com
artísticos então, ao invés de pleitear uma política cultural forte, passam a se digladiar por
migalhas, para ser a bola da vez. A luta por um orçamento global para a cultura decente
ou por uma política cultural eficiente é ofuscada por lutas setoriais, como se ao diminuir o
fomento a um corpo artístico de dança fosse resolver o fomento à literatura, e vice versa.
propostas, e os que não têm essa estrutura, vivem de esperanças e pequenas gorjetas.
Não há o que se comemorar num mínimo de democratização que foi atingido entre os
sentem na pele a míngua dos recursos, ou seja, criamos um nivelamento, mas ao contrário
do que se desejou ele se deu na diminuição dos investimentos para todos. Algumas
visando aumentar a demanda por eventos e produtos, como o vale-cultura, mas ainda sem
continuar insistindo e tentar aperfeiçoar estes mecanismos, que apesar dos efeitos
financiamento coletivo para viabilizar suas ações. Alguns se amparam em setores como a
criando.
Não estou apresentando essas críticas achando que as políticas culturais anteriores
“política de balcão”, onde os grupos e artistas mais bem relacionados tinham o privilégio
de ter suas propostas compradas, sem critérios, pelo poder público. O alto investimento
nunca atingiu a população em geral de fato. Ou seja, houve avanço, mas ele ainda está
incentivada pelo próprio Estado, e que a cultura é um dos setores fomentados com maior
cultura, talvez pela proximidade da população das mais diferentes localidades e níveis
mecanismos pelos quais isso ocorre não são normatizados e divulgados como na cultura. É
fácil encontrar detalhadamente quem recebeu quanto nas listas de projetos culturais
aprovados. Já se perguntou onde estão os dados dos fomentos aos outros setores? Quem
os recebe, como e para quê? Se há prestação de contas do uso destes recursos? Sim, eles
custo, na maioria das vezes, mas não vemos seus rostos e nem seus resultados.
projetos maiores, ou fora dos padrões. Há anos que, na busca de viabilizar uma proposta,
consequência, projetos sem relevância e sem alcance são aprovados, às vezes por mera
mas de produtores que não alcançam ou não se encaixam no modelo solicitado. Estes
Porém, na prática, são na maioria das vezes os que mais têm dificuldade para alcançar o
Não podemos ser ingênuos a ponto de imaginar que a iniciativa privada e o estado,
produtores que atuam com maior enfoque político, de forma contestadora, os ativistas e
que transpassam as fronteiras acabam à margem dos fomentos. Estes grupos continuam
produzindo sua cultura, ou sua contracultura, de forma independente e sem recursos, até
que tomem um corpo significativo que os represente enquanto setor, e pleiteie seu espaço
nas políticas públicas. Por vezes, no caminho, deixam boa parte de sua ideologia, mas são
editais
emergenciais
Com o isolamento social decorrente da pandemia de Covid19 todo o setor cultural foi
passaram a olhar incrédulos para o cenário que se desenhava, sem entender muito bem
da cultura.
Os projetos foram readequados, não sem uma longa negociação com as prefeituras e
que refazer os projetos completamente. Com a proibição de eventos com plateia e o risco
de contaminações, mais uma vez a criatividade dos artistas e produtores foi colocada à
busca pela sobrevivência material e artística construía túneis em busca da luz e do ar. Em
Covid19. A lei propunha auxílios financeiros ao setor da cultura e seus trabalhadores, até
O caráter dos editais da Lei Aldir Blanc ficou no meio do caminho entre uma ação
editais estaduais foi surreal, com a participação de artistas consagrados competindo pelo
com auxílios financeiros a pessoas físicas e auxílio a espaços culturais, estes últimos
histórica dos editais. Em alguns casos, o prazo para inscrição e para a entrega do projeto
após a aprovação, inviável. Na prática, apesar de trazer um mínimo alento para o setor,
ainda não resolveu a questão da cadeia produtiva, ou seja, mobilizou artistas e alguns
produtores, mas não necessariamente os profissionais que suportam o setor, tais como
profissionais de áudio e vídeo, que foram beneficiados pelo grande aumento do modelo
de projetos em vídeos e lives, mas ainda assim com remunerações bem reduzidas.
fosse para conseguir uma mínima movimentação financeira, fosse para extravasar seus
ímpetos criativos por tanto tempo contidos, ou pelos dois motivos, se contrapunha à ideia
de fazer algo pequeno, tosco, mal feito. Os projetos propostos foram muito aquém das
pastelaria ruim que vende uns pastéis queimados e outros murchos, atendendo
imediatamente aos pedidos sem nenhuma qualidade, ou seja, um desprezo por parte de
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custos e ritos.
A situação não é das melhores. Mesmo quem está produzindo, criando e repercutindo
que a medida do possível não é suficiente. Pergunto a mim mesma onde vai desaguar
toda essa contenção, como se houvesse um represamento de ímpetos que não vão pra
qualquer outro lugar, a não ser para o esgotamento. Enquanto isso, a sociedade nunca
precisou tanto da arte quanto agora. Lembrar o tempo todo quem somos, o que estamos
buscando e quais são nossas ligações é o farol que pode nos acalmar e conduzir.
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articular para
existir
O setor da cultura não é composto só por artistas. Os artistas são uma parte
importante do setor, mas diversos profissionais estão envolvidos no fazer cultural. A figura
atua na área, não representa a cultura: precisamos de muita gente para realizar. Mesmo o
e contábil, entre outros. Mesmo o homem da “banda de um homem só” precisa de seus
vocal e corporal, engenheiros de som e uma lista infinita que se amplia a cada linguagem,
Fazer cultura é um fazer coletivo, sem exceções. Além de toda uma cadeia produtiva e
criativa, é preciso que haja o público, porque a cultura é dialógica. Se não há uma plateia
não há show. Se não há um público, não há museu. Um corpo artístico sem trocas é como
um monumento coberto por um pano preto, cego e surdo, absolutamente sem sentido. A
cultura não se faz só a partir da realidade, mas para a realidade. Ela pode sair do
indivíduo, mas ela sempre deve chegar até o público, seja ele do tamanho que for. Nesta
troca entre o que produz e o que recebe é que a cultura exerce seu papel construtor,
contestador e transformador.
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vitais. Não aumentou a importância, mas um holofote foi direcionado para este aspecto, e
ele trouxe, para alguns, a esperança e a solidariedade. Enquanto o luto e as leis nos
fortalecer os vínculos, achar em nossos pares força e amparo. Enquanto nos vimos
obrigados a não sair, a não ter contato direto com o público, impossibilitados de vender
ingressos, de captar patrocínios, de viabilizar projetos, também nos vimos com tempo para
refletir sobre o que realmente estamos buscando com essa corrida frenética que é o
padrão no meio cultural. E para uma boa parte das pessoas, a resposta vem da
articulação.
Algo mudou neste momento. A chance de olhar para si e para a rotina frenética da
produção cultural, dentro desta pausa, chama a atenção para alguns aspectos. Um deles
execução e de planejamentos. Isso deve nos dizer alguma coisa sobre como as coisas
estão estruturadas, sobre a ação do produtor é na maior parte do tempo intensa e não
compreender o quanto as ações coletivas são tão mais potentes do que as individuais. Ter
em seus pares uma fonte de consolo, de poio e de motivação, além de uma ampliação
das redes de possibilidades, faz com que este momento de tantas angústias seja
Jundiaí, e dizem que de várias outras mas aqui é onde a sentimos, é que a cidade se
herança difícil de contornar, mesmo com o crescimento da cidade nas últimas décadas.
Não conseguimos tolerar uma convivência ou uma construção coletiva com pessoas que
tenham valores divergentes dos nossos, mesmo que seja em um único aspecto.
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É uma questão bastante profunda, mas que impacta neste fazer cultural. Cada círculo só
faz e prestigia sua própria cultura. É claro que há exceções, e poderíamos dar diversos
exemplos, mas se elas se chamam exceções é porque não são como o padrão.
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o produtor cultural
Enquanto organizava este texto, minha primeira ideia foi conceituar o papel do
que eu gostaria de dizer, percebi que este o papel do produtor tem características
constantes, e outras que foram sendo desenvolvidas nestes tempos de pandemia, sendo
que algumas são próprias da situação, e outras devem permanecer. Falar sobre o produtor
cultural agora, então, faz mais sentido depois de expostos outros pensamentos.
cultural acaba acumulando uma série de funções que não são necessariamente suas, em
nome de viabilizar e manter dentro do orçamento as produções. Ter uma mente aberta e
prazos, equipes e recursos, muitas vezes bastante limitados. E entre um lado e outro, há
aprendizado e conhecimento. Uma vez que compreende que sua vivência, história e
formação não são as únicas possíveis, se abrir para o diferente é uma via sem retorno. E
nesta área da cultura, de tantas e tão diversas manifestações, formas, ideias, ideologias e
propostas, conseguir criar pontes e associar o que é pertinente a cada situação faz do
é o que traz para o plano da realidade os projetos, programas e ações culturais. Muitas
vezes é um exercício de tolerância e de paciência, uma vez que nem todos os valores são
convergentes ou nem mesmo possíveis de coexistência com os nossos. Isto não quer dizer
que devemos aceitar qualquer ligação em prol da realização: é uma decisão muito
O produtor cultural então precisa se reconhecer como o elo, e com isso buscar se
formas jurídicas, com conceitos contábeis, entender alguma coisa sobre orçamento
organização. E por fim, precisa ter as habilidades práticas de colocar tudo o que é
profissionais e recursos.
São muitas as responsabilidades para uma única pessoa, mas é assim que funciona
por aqui. O trabalho não é individual, mas as atividades em boa parte sim. Com exceção
divisão destas tarefas entre muitas pessoas, e na prática, todo produtor, mesmo o que
trabalha com as exceções, acaba conhecendo e sendo capaz de fazer um pouco de tudo.
Parece que faço uma apologia ao grande alcance das habilidades deste profissional, e
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talvez o faça, mas basta fazer um questionário a qualquer produtor para confirmar que é
verdade: como faço para abrir uma microempresa? Qual é o valor dos impostos se eu
pagar como pessoa física? Como substituo este equipamento do rider técnico por um
equivalente? Onde eu posso locar uma escada alta? Quanto tempo leva pra gráfica
entregar os folders? Qual é o melhor horário para postar nas redes sociais? Não importa a
pergunta, se o produtor não sabe, ele alcança em uma mensagem quem saiba, e se
de se manter sempre motivado. Mesmo quando tudo mais dá errado, ele precisa continuar
girando muitos pratos, sem deixar nenhum cair. Os tempos de cada projeto raramente
criam um ciclo longo, fazendo com que qualquer pausa mal planejada acarrete em um
problema.
O artista quando cria, tem uma ideia do que pretende. O patrocinador quando aporta
recurso, tem uma ideia do que deseja. E as ideias nem sempre são viáveis, e dificilmente
coincidentes. Lidar com sonhos e expectativas enquanto gerencia uma planilha financeira
não é uma habilidade nata, e é bem difícil de se alcançar se não tiver o próprio produtor
vieram para explicitar quem está e quem não está pronto para lidar com isso.
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uma nota de
esperança
Eu gostaria de ter oferecido mais soluções do que perguntas este texto. Não há muitas
novas soluções, e há muitos novos problemas. A única clareza que tenho no momento é a
nossas experiências sem medo. Nossa concorrência não é interna, ela sequer é real: para
disputarmos um mercado, tem que existir um mercado a ser disputado, e na cultura temos
mercadológico da cultura existe, mas a cultura é muito, muito mais do que isso.
Mesmo com todo o medo e tristeza que este 2020 nos trouxe, vimos novas experiências
surgindo, novas conexões se formando. Ouvir e ser ouvido foi o que fez de nós mais
produção. Ao sermos tolhidos de ser quem sempre fomos, nossos sentidos se aguçam, e
Não há uma orientação sobre como seremos depois da pandemia. O setor cultural
todo sofreu um grande impacto, mas para além disso temos reflexos em todos os aspectos
dispostos a participar deste processo de repensar, oferecer suas visões e demandar suas
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Apoiarmos uns nos outros, dentro de nossa imensa diversidade, é desafiador uma vez
que não fomos educados para sermos cooperativos, colaborativos, mas sempre
competitivos. Fechamos com nossos pares, desde que haja uma completa convergência
intolerante que pode nos prejudicar mais. É necessário que nós abramos os olhares, que
enxerguemos aos outros e a nós mesmos como pequenas peças deste imenso cenário, sem
referências
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Zahar, 2012.
BAUMAN, Zigmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. Estudos avançados, v. 9, n. 23, p. 71-
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ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Coleção debates. Estética. São Paulo, 1979.
STOREY, John. Teoria cultural e cultura popular: uma introdução. São Paulo: Edições Sesc
2007.