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PRODUZIR

E EXISTIR
R E F L E X Õ E S S O B R E A P R O D U Ç Ã O
C U L T U R A L E M T E M P O S D E
P A N D E M I A

HELOÍSA OLIVEIRA

DEZEMBRO 2020
"Os livros não são

feitos para que alguém acredite neles, mas

para serem submetidos à investigação.

Quando consideramos um livro, não devemos

perguntar o que diz, mas o que

significa."

UMBERTO ECO
Pra começar 1

Umas definições 4

OIRÁMUS
A(s) Cultura(s) 5

O Estado na Cultura 11

Os mecanismos de fomento 15

Editais emergenciais 19

Articular para Existir 22

O Produtor Cultural 25

Uma nota de esperança 28

Referências 30
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pra começar
É necessário começar contextualizando. Sou uma mulher, mãe, produtora cultural e

educadora. Todas essas coisas me definem, todas essas coisas me limitam. Desde 2002,

trabalho com produção cultural, em uma trajetória que já passou por diferentes papéis,

diferentes tempos e lugares, diferentes funções e diferentes ideais. Em todas as situações,

desde o sonho até hoje, no entanto, mantenho a ideologia de que a Cultura é o meu

norte, e que é potencialmente ferramenta e fim para uma sociedade mais justa e

equilibrada, para cidadãos mais conscientes e ativos. Ao longo do tempo, em diversas

oportunidades fui convidada a falar sobre o tema, e a explicar o que vem a ser a

Produção Cultural, sobre políticas culturais, falar sobre cultura, como é ser produtora,

como é ser produtora e mulher, mãe, como é ser produtora no interior de São Paulo, em

Jundiaí. Pela primeira vez, minha razão falar vem de dentro, em um momento em que a

vontade de falar é maior do que o espaço para ser ouvida.

Importante dizer que esse material vem da minha vontade, porque estamos em uma

pandemia, ainda em uma situação de isolamento social – que é parcial, mal definida, mas

ainda existe – e a forma de trabalhar, produzir, existir, mudou. E com estas mudanças, o

papel da arte, da cultura e principalmente do produtor cultural passou de um lugar de

viabilização e construção, com muita luta, para um de busca pela sobrevivência própria e

de seus pares. Não estou falando (só) de sobrevivência material. Qualquer um que

trabalhe com arte ou que seja próximo o suficiente dos artistas entende que o impulso da

criação e da apresentação de sua criação é vital.


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Percebi em várias amigas e amigos, parceiras e parceiros de trabalho a agonia de

constatar o desmantelamento de todo um setor, sem ter como ajudar, sem ter como

consolar, uma vez que padeço do mesmo. Alguns conseguiram facilmente aderir a novos

formatos e experiências, outros passaram por períodos densos de luto e reflexão que se

alternavam com tentativas frustradas de se reinventar e ainda viver, ainda esperançar.

Acho que os que aderiram muito rapidamente ao mundo virtual podem tê-lo feito por

desconsiderando o cenário completo, como em um estado de negação, e que em algum

momento sentirão o impacto e a consequência de suas escolhas. Validar o lugar da

cultura como esse fiapo de existência ainda vai nos amargar mais do que imaginamos.

Ainda neste cenário, vivemos um período de estrangulamento do espaço da cultura

dentro do estado, e uma negação da sua importância, por vezes velada, por vezes

veemente, passando por extinção de projetos, programas e até de ministério. A negação

inclusive parece ser a moda do momento, e a cultura é só mais uma das coisas cuja

necessidade, relevância ou valor é contestado, sem qualquer argumentação lógica ou sem

qualquer explicação. Em épocas de movimento anti-vacina, terraplanismo,

conspiracionismos dos mais diversos, de conceitos dogmáticos superarem a ciência, criar

espaços para a cultura se torna mais desafiador a cada dia. No início, parecia uma piada,

vozes poucas e pequenas que eram só ignoradas ou satirizadas, num lugar de insanidade

ou ignorância, agora é assim que parte da população se orgulha em ser, e o reflexo disso

se dá nas instâncias de representação.

Neste momento, neste espaço-tempo, falar em produção cultural, cultura ou política

cultural parece gritar no vazio, é o momento também em que me sinto mais inclinada a

fazê-lo, em uma tentativa de ordenar o que já foi, articular com quem ainda persiste e de

projetar o que pode vir a ser. Por isso, aqui trago algumas definições e históricos sobre a

cultura e as políticas culturais, esboço informações sobre a importância da articulação e

do fortalecimento dos profissionais da cultura, principalmente o produtor cultural, e faço

um exercício bastante pessoal de projeção da produção cultural, principalmente em

Jundiaí.
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Considero importante um aviso de que aqui compilo uma visão – a minha. Aqui há

muito espaço para contraposições e complementações. Algumas coisas, ao longo de

quase 20 anos de produção cultural, aprendi na prática, alguma coisa nos livros, muitas

coisas com pessoas que admiro e respeito. Assim como crio este espaço para minha

manifestação, abro o convite para que o debate se amplie. Afinal, como perceberão até o

final desta leitura, nada aqui se faz só.

Articulemos.
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umas definições
O trabalho cotidiano do produtor cultural é essencialmente prático. Lidar agilmente

com as informações e possibilidades, buscando sempre viabilizar e concretizar. A

formação nesta área, embora exista hoje alguns cursos que colaborem bastante, precisa

acontecer em campo. A produção cultural envolve a realização de ações, projetos e

programas – não necessariamente eventos – na área da cultura, e o profissional

geralmente tem um perfil transversal, capaz de articular com artistas, fornecedores,

mídias, espaços, patrocinadores e entidades, a fim de viabilizar e executar a proposta. O

produtor cultural precisa, necessariamente, compreender a cultura para realizar o seu

trabalho, conseguindo enxergar tanto os detalhes quanto a amplitude da produção. Por

isso, apesar do caráter pragmático do trabalho, a reflexão e o confronto de suas razões

de ser com o conhecimento é essencial para que se conscientize sobre quem é e qual seu

papel.

Paulo Freire (2004) percebe a construção da consciência e do conhecimento através

do que chama de ciclo gnosiológico, partindo sempre de uma concepção de ser humano

inacabado, incompleto e inconcluso, refletindo sobre seu conhecimento atual, sua ação, e

principalmente dialogando com seus pares, e assim saímos de um estado para um

patamar mais elevado. Considerando essa espiral de construção do conhecimento, parto

aqui de uma fundamentação que pode ser de alguma utilidade para qualquer artista ou

produtor cultural, inicialmente na análise sobre seu papel e depois sobre quais as possíveis

formas de atuação, ou em outras palavras, conhecer e revisitar alguns autores e conceitos

é uma das formas de ampliar nossa criticidade e de basear nossas reflexões e ações.
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a(s) cultura(s)
Impossível tratar de conceitos de cultura sem trazer mais de uma visão – além de ser

um termo imensamente abrangente, ele também é usado em diferentes circunstâncias

com diferentes conotações, todas com algo a nos acrescentar. Mario Vargas Llosa (2013)

faz uma análise: “É provável que nunca na história tenham sido escritos tantos tratados,

ensaios, teorias e análises sobre a cultura como em nosso tempo”. Há mesmo fontes

diversas, e aqui vou relacionar e comentar sobre algumas das reflexões e definições que

mais me provocam e que mais me tocam.

A maioria dos autores traz múltiplas concepções de cultura, e quase todos ainda

preservam em suas bases a origem relacionada ao cultivo. Cultura como a capacidade

humana de semear, cuidar, criar, multiplicar, colher seu alimento. Essa forma de

entendimento se estende para outras áreas: cultivamos relações, sentimentos, hábitos e

valores, no sentido de intencionar e atuar por seu desenvolvimento. Imaginar o ser humano

como capaz de estabelecer para si, para sua comunidade e para seu lugar algo que

pretendeu e construiu é a derivação deste conceito radical de cultura que nos leva para

outras definições. Compreender o cultivo, portanto, do que se considera o ideal de

humanidade, é o que seguiu sendo considerado como cultura ou fundamentando novas

definições. A questão é: qual é esse ideal?

Considerando a história do mundo ocidental, fica claro que a cultura criou este

ideal, ao mesmo tempo em que o protegeu durante séculos de ser questionado. O

conceito hegemônico de civilidade do homem branco europeu religioso e pertencente à

elite foi este modelo, que toda e qualquer sociedade devia almejar, e ao qual deveria se

submeter. Os valores vistos então como universais foram nas últimas poucas décadas,
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sendo questionados e desconstruídos, e outras formas de viver foram emergindo como

possibilidades, quebrando o padrão anterior. É um processo que ainda está em curso, e

como toda mudança social tem suas ondas e refluxos.

Llosa (2013) analisa que, apesar de tantas teorias, o termo Cultura está prestes a um

esvaziamento de seu conceito para ser substituído por um que seja uma desnaturação do

que era no início. Ele traça uma linha a partir de visões antiquadas de cultura como um

patrimônio da elite, vem desconstruindo o termo historicamente, passando por um

momento bonito e esperançoso, em que a cultura é fonte – e não reflexo – dos fenômenos

sociais, econômicos, políticos e até religiosos, e vai chegando a uma trágica resolução em

que a cultura venha a ser somente aquilo que tem valor de mercado. Esta visão de Llosa

traduz muito do que estamos vivendo e sentindo como trabalhadores da cultura. Depois

de um momento prolífico de valorização e fomento, a cultura está relegada ao seu valor

econômico.

Trata-se de um autor que tem suas peculiaridades, um homem bastante culto, na

acepção elitista do termo, e que mesmo sendo latino-americano, formou-se e atuou

dentro da linha eurocêntrica, sendo membro da academia e da política. Llosa tem uma

vasta e importante produção literária, que sempre foi permeada por polêmicas, como suas

declarações e posicionamentos políticos. Observar a linha que ele traça ao debater a

cultura nos leva quase que instintivamente a uma comparação com as concepções de

cultura na política do nosso país, e mais intensamente ainda no estado de São Paulo. É

fácil perceber um momento de enaltecimento de grandes monumentos, símbolos, de

restauros e criação de espaços e corpos artísticos grandiosos na capital, seguidos de um

segundo momento de pulverização dos investimentos públicos na cultura de minorias e da

abertura para a cultura popular, buscando contemplar o interior e os invisibilizados, e hoje

uma mudança essencial que reflete até na nomenclatura da secretaria, e que apesar de

sugerir que a cultura seria tratada como um setor econômico a ser fomentado, acabou na

prática por diminuir as verbas e prestígios de espaços, corpos, convênios, editais e

prêmios.
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Um gigante que sempre traz alguma luz para os debates desta área, Raymond Williams

(2007) diz que a cultura é “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua

inglesa”. Em um exercício léxico-histórico-sociológico, ele se debruça sobre termos que

usamos correntemente, entre eles a cultura. Uma das concepções que ele propõe é que

ela seria um processo de desenvolvimento, que inclui aspectos intelectuais, espirituais e

estéticos. Uma segunda proposta dele pode ser lida como um determinado estilo de vida,

de uma pessoa, de um grupo de pessoas ou de um período. E uma terceira possibilidade

de definição traz a cultura como um conjunto de trabalhos e práticas de atividades

intelectuais e artísticas.

A primeira conceituação de Williams se relaciona diretamente com o ímpeto de criação

artística. O ato de olhar para dentro de si, para o mundo e transformar seus sentimentos,

pensamentos, angústias e inspirações em obras é a essência de nossa humanidade. O ato

de refletir e criar algo sem imediata utilidade, apenas como forma de expressão, é a

característica que nos diferencia enquanto espécie. O desejo de conhecer, de

compreender e de compartilhar sua visão é a expressão mais aguçada e particular do ser

humano. Na segunda conceituação, ele traz uma visão mais antropológica da cultura, que

observa os costumes e formas de uma sociedade ou situação: cultura europeia, cultura

dos povos originários, cultura de violência, cultura pop: aqui não há limite, um juízo de

valor ou uma tentativa de hierarquização, mas uma leitura deste conjunto de hábitos, ritos

e valores. A terceira conceituação traz o termo mais para perto da prática do produtor

cultural: a partir de um ímpeto de criação, observando as características deste tempo e

lugar, viabilizar a concretização; e aqui também são mais óbvias as ligações com as

políticas públicas de cultura.

Além de Williams, outros importantes autores já definiram e redefiniram o termo,

trazendo todas as suas construções e consequências antropológicas e sociológicas.

Durante muito tempo, cultura foi considerada somente como aquela diretamente

associada à civilização,
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na concepção mais colonizadora da palavra, ou seja, representações dos grupos

hegemônicos. O debate sobre qual seria então a genuína, válida cultura, a que deve ser

fomentada permanece em debate, passando pelo italiano Umberto Eco (1979) e suas

definições e subversões do que é a cultura e, principalmente, a contracultura ou cultura de

massa e como ela seria mais representativa do que a própria cultura, e segue por John

Storey (2015) e suas teorias sobre a cultura popular, sua transição ente um objeto de

policiamento e controle por parte dos poderosos até seu lugar de direito, a partir da

industrialização e da urbanização, quando qualquer esforço para a contenção das

manifestações culturais populares, comunitárias e autodidatas por natureza, se desse por

frustrado. Tanto Eco quanto Storey enxergam a cultura como inadestrável, ou seja, seus

ímpetos são fortes como uma correnteza, e os esforços para contê-la podem retardar,

mas não impedi-la. As mudanças, principalmente no sentido da popularização, da

representação das massas, não são reprimíveis por muito tempo.

Após a segunda guerra mundial, o status da cultura de manifestação divina de

civilidade vem a ser completamente substituído pelo modelo estadunidense, onde a

cultura de massa, representativa das classes trabalhadoras e em contraponto à chamada

então de alta cultura, viesse a ser compreendida, de forma ambígua, como uma função

benigna de socialização, e também como um potencial para vir a ser um meio de controle

social. Estas discussões nos provocam a olhar o que entendemos como cultura, e

procurarmos os pontos em que ela se consolida ou se contesta, e como, enquanto

produtores de cultura, podemos interferir neste processo. As diferentes manifestações

culturais, elaboradas ou cruas, regionalizadas ou globalizadas, elitistas ou popularizadas,

são todas formas de expressão de grupos sociais, e nenhuma delas pode ser

compreendida com certeza como a correta, ou a melhor.

Desta concepção de cultura de massa enquanto potencial meio de controle social,

vivemos um exemplo no Brasil durante a ditadura militar, que começa a entender então o

estado como um regulador da cultura, claramente delimitando quem podia falar, escrever,
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ler, publicar, atuar e discursar o que, onde e quando. Esse adestramento cultural,

enquanto projeto social, tinha o claro objetivo de formatar a sociedade como uma massa

de “cidadãos de bem”, uma massa acrítica, acomodada e a favor dos intuitos do poder

estabelecido. Naquele momento, a censura não era apenas em relação a quem poderia

ser apoiado e fomentado, o que já é uma forma de coerção, mas uma completa cessão

dos direitos de expressão.

Em tempos mais recentes, Zygmunt Bauman (2012) também debate o significado da

cultura, tratando-a como um inimigo natural da alienação, como um audacioso movimento

humano para se libertar da necessidade e conquistar a liberdade de criação. Em uma

visão muito mais atual, com uma leitura de uma sociedade global e plural, Bauman fala de

culturas, e de como elas se relacionariam entre si. Conhecido como o sociólogo dos

tempos líquidos, ele analisa a sociedade pós-moderna como esvaziada de sentidos e de

vínculos, onde todas as relações e intenções são frágeis e fugazes, ao mesmo tempo em

que os indivíduos sofrem de medos e angústias. Mesmo com essa visão quase trágica da

sociedade, ele ainda vê na cultura uma ferramenta poderosa para a transformação. A

cultura, no entanto, também ganha em suas teorias a sua versão líquida. Enquanto o

Iluminismo forjou a cultura como única e universal, hoje a cultura instiga e acompanha a

fluidez das mudanças e a volubilidade dos valores, ou seja, ela é tão maleável e

permeável quanto a própria sociedade.

Com uma releitura brasileira sobre o tema, Roque de Barros Laraia (2002) detalha

aspetos da cultura com um enfoque voltado à concepção antropológica da palavra,

aquela em que verificamos os modos de vida e expressão de diferentes povos, locais e

tempos. Ele apresenta os confrontos entre diferentes culturas e analisa a dinâmica da

cultura, na qual os hábitos, padrões de beleza, regras morais e códigos de conduta

passam por constantes atualizações. Em sua contribuição, percebemos que as influências

e mudanças não são possíveis de serem contidas, e que faz parte da mobilidade própria

de todas as culturas adicionar, retirar ou adaptar elementos umas das outras. Esta visão

antropológica de cultura foi utilizada no início dos anos 2000 em diversas políticas

públicas de cultura, como os Pontos de Cultura, uma experiência muito bem sucedida que
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repercutiu internacionalmente, e como praticamente todas as ações da nossa política

cultura, foi aos poucos sendo desmantelada e enfraquecida.

Se considerarmos que pode haver um ponto de encontro entre todas as possíveis

definições, percebemos que a força e a fluidez da cultura, enquanto significado e

significância, a fazem difícil de fechar em uma interpretação única. É bastante

interessante ler e considerar as diferentes visões de grandes pensadores sobre o tema,

principalmente se tivermos a disposição de consulta-los na fonte, e refletir a partir da

nossa própria realidade enquanto fazedores de cultura. O pragmatismo do dia a dia do

produtor cultural é, então, contraposto a essa etérea inconclusividade em palavras do que

é sua essência. O equilíbrio destes dois extremos é o lugar exato onde atuamos.
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o estado na cultura
A relação do Estado com a Cultura é uma dança em par. Se aproximam, um conduz o

outro, se distanciam, rodopiam. Tensão e resolução, o outro conduz o um. Os passos se

alinham, sincronizam, depois se desalinham. A dança não pode cessar, embora em alguns

momentos pareça que um dos pares sai de cena, estão em onstante ligação. Essa dança

acontece porque os dois são produtos da sociedade, com função de estabilizar e

desestabilizar, de ordenar e de progredir.

A política pública de cultura se baseia exatamente no que o Estado concebe como

cultura, qual é o papel que enxerga nas artes e nas manifestações culturais, e a partir

disso, como organiza as ações públicas e investimentos. Dificilmente percebemos na

política cultural brasileira uma clareza, tanto no que se refere à concepção de cultura

quanto na constituição de entidades, implantação e manutenção de programas, projetos

e ação. Por vezes, a difusão de documentos e visões dos gestores culturais traz a clareza,

mas ela não se reflete na prática, e vice versa. Philippe Urfalino (2015) debate o tema das

políticas culturais a partir de uma análise da experiência francesa, mas nos oferece

algumas reflexões relevantes para o caso brasileiro. Se pudemos anteriormente constatar

que a cultura é plural, ele nos chama a conceber uma política cultural no singular: a

política cultural deve levar em conta a pluralidade, mas ao estabelecer um plano de

práticas políticas e administrativas, não pode ser uma sobreposição de ações isoladas ou

setoriais. Em outras palavras, não podemos olhar para a cultura como pequenos

fragmentos e criar políticas para cada um destes fragmentos. Podemos sim criar

programas e ações para cada setor, para cada local, mas a política de cultura deve ser

uma, que abranja esta complexidade.


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Um dos grandes obstáculos à elaboração de uma consistente política cultural é a

aparentemente ambígua distinção entre democratização da cultura e a democracia

cultural. Outro Philippe, também francês, Coulangeon (2014), apresenta a democratização

da cultura como tornar acessíveis as obras capitais da humanidade, aqui claramente

usando a acepção de cultura como patrimônio da elite, a relacionando a monumentos,

obras de arte clássicas, que podem ser entendidos no momento social objeto de sua

análise como a alta cultura, ou cultura erudita. Em contraposição, define a democracia

cultural como, em reconhecimento às desigualdades sociais e à pluralidade, permitir a

todos que cultivem sua capacidade de inventar, criar e expressar livremente seus talentos,

bem como receber formação artística de sua escolha. Coulangeon traz os dois conceitos

como separados, pois está realizando uma análise histórica da política cultural francesa.

No Brasil de 2020, faz muito mais sentido propor uma política que contemple a união da

democratização da cultura com a democracia cultural, considerando que o acesso às

obras criadas pela cultura democrática deve também ser democratizado, em nome de

uma sociedade que possa se enxergar tão plural quanto se é. A ideia não é uniformizar,

ou adestrar, mas sim oferecer uma visão mais acurada do que é a cultura brasileira: como

um povo reconhecidamente diverso, a partir de qualquer visão histórica, sociológica ou

demográfica, sua cultura é diversa e sua política cultural deve ser tão diversa quanto.

Diversa dentro de sua complexidade, porém enquanto instrumento de política pública,

única.

É claro que ter uma política cultural diversa não significa fomentar com migalhas

todas as manifestações em todos os lugares. A gestão pública é baseada em priorizações,

escolhe-se um investimento em detrimento a outros. Por essa razão, a gestão pública da

cultura é tão desafiadora. O primeiro grande problema é a escassez dos recursos, que

contradiz o discurso de valorização de todas as esferas políticas. Com poucos recursos,

não há como promover uma real democratização. Este problema, porém, não é o único:

mesmo que houvesse uma grande quantidade de recursos, ainda é nebulosa a forma mais

efetiva de aplicação dos mesmos.


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Algumas linhas de investimento público possíveis são: a formação artística e cultural; a

pesquisa; a difusão de manifestações artísticas; a criação de estruturas e espaços;

integração e fortalecimento setoriais; reconhecimento e preservação de identidades,

acervos e memórias; garantia do direito de produzir e difundir arte e cultura. São muitas

as possibilidades e infinitas as demandas, sendo que cada uma dela ainda se desdobra

em outras tantas. Quais destas ou outras linhas ou recortes o estado vai adotar depende

essencialmente de dois fatores: um é o modelo político ideológico que tem da sociedade

e da cultura; o outro, a capacidade técnica de sua equipe. Sem a formação do gestor

público de cultura, sem a articulação social e sem considerar a complexidade, não há

recurso que chegue para se fazer política cultural, e a pasta vira uma contratante de

eventos, projetos e ações, sem critérios, mais ou menos elaborada, mais ou menos eficaz.

Quanto ao modelo político ideológico e sua relação com a cultura, Marilena Chauí

(1995) traz algumas das possíveis relações entre estado e cultura. Na relação liberal, o

estado identifica a cultura como as belas-artes, como um privilégio das elites

escolarizadas e consumidoras. Na relação do Estado autoritário, o estado é um produtor

oficial de cultura, bem como um censor da produção cultural da sociedade. Na relação

populista, a cultura popular se coloca como representativa, mas se limita ao pequeno

artesanato e ao folclore, e toma o espaço das belas-artes como a única e válida cultura.

A relação neoliberal é a que consagra as manifestações de massa, e tende a privatizar as

instituições e manifestações culturais, permitindo ao mercado decidir o que deve ou não

ser fomentado. Além de escritora e filósofa, Chauí foi secretária de cultura do município

de São Paulo no início da década de 1990, quando propôs um conceito de cidadania

cultural que contrapusesse as relações anteriores, em nome de um reconhecimento dos

direitos culturais dos cidadãos. Neste conceito, seu propósito é de desmistificar a cultura

como manifestação elitista e de visibilizar as desigualdades.


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Assim como ela, diversos gestores de cultura experimentaram conceitos e políticas,

com diferentes experiências, e nos últimos anos se consolidou a política cultural como uma

instrumentalizadora do fomento, seja através das leis de incentivo, que claramente trazem

essa visão neoliberal em que o mercado define os interesses, seja através dos editais de

fomento, que a princípio visam a pulverização do fomento, mas que na prática necessitam

de um juízo de valor artístico hierarquizante para selecionar os contemplados, frente a

tanta concorrência. Uma terceira via de execução das políticas culturais se dá através dos

convênios com entidades gestoras, que fazem a manutenção de espaços e corpos

artísticos, em esferas e locais que os possuem.

Outro avanço nas políticas culturais nos últimos anos foi a proliferação de esferas da

participação social em conselhos e fóruns. Ainda bem longe de ser ideal, a abertura das

entidades de elaboração e implantação de política cultural para a escuta e debate com

artistas, produtores e população traz para a gestão pública, principalmente na esfera

municipal, uma possibilidade de compreensão mais precisa de qual é a sua cultura, quais

são os valores mais relevantes para estes representantes, e como sua ação interfere na

movimentação cultural. É pena que diversas instâncias de representação sejam

protocolares, ouvidas como uma forma de capitalização política, mas ignoradas na

formulação e execução da política cultural.


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os mecanismos de
fomento
Com a consolidação das leis de incentivo fiscal e os editais de fomento como

principais formas de financiamento da cultura, a política cultural segue um perigoso

caminho. Idealizados como forma de contemplar as diversidades e de permitir um

direcionamento regional e local dos fomentos, estes mecanismos trazem um aspecto de

canibalização do mercado da cultura que afeta a grandes e pequenos produtores. A

lógica mercadológica acaba permeando os instrumentos, hierarquizando propostas,

profissionais e manifestações. Toda a desconstrução da cultura hegemônica em direção

da democracia cultural esbarra agora nos mesmos mecanismos que foram criados para

fortalecê-la.

Primeiro, todas as leis de incentivo fiscal, convênios e editais trazem uma

burocratização do fazer cultural. Empurram os produtores, artistas, técnicos e outros

profissionais do setor para uma pejotização, similar a alguns outros setores econômicos,

em que um CNPJ, certidões, contas bancárias e estruturas empresariais, contábeis e

jurídicas se fazem necessárias. Raramente existem empregos na área, com carteira

assinada, com garantias trabalhistas. Com isso, todo o ônus e risco da cultura como

atividade econômica foi empurrada para os trabalhadores do setor, e sua participação

em projetos, editais, produções e eventos ficou impossibilitada sem a formalização, atuem

eles como proponentes, produtores, artistas ou fornecedores.


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Depois, os valores das funções artísticas e culturais foram padronizados, a partir de

tabelas orientando quais são os valores adequados para cada situação. No início, como

um parâmetro de fomento público para evitar grandes distorções, e depois, sendo

adotado pelo mercado. Não seria exatamente um problema, se não fossem esses valores

difíceis de serem equiparados em projetos sem incentivos fiscais. Toda a força de trabalho

do setor passa para a atuação prioritária nos projetos, e as instituições, grupos e artistas

que ficaram fora do alcance dos mecanismos, se tornaram inviáveis e novamente invisíveis.

O mercado do fomento também não é capaz de abarcar todos os profissionais e

iniciativas, e como consequência, algumas manifestações culturais passam a correr riscos

de apagamento.

A partir de então, o jogo das políticas culturais inicia um malabarismo, em que cria

novas linhas de fomento para os setores ameaçados, como aconteceu, por exemplo, com

a ópera e com o circo, com uma linha de ação frágil e sem continuidade, que inicia com

relativa força e aos poucos vai minguando, em número de oportunidades e de valores de

aporte. O movimento se assemelha a uma imagem tragicômica de um recipiente onde

vazamentos surgem em vários locais, e o responsável se desdobra em usar suas mãos,

braços, pernas e corpo para tentar evitar o esvaziamento do recipiente. Os setores

artísticos então, ao invés de pleitear uma política cultural forte, passam a se digladiar por

migalhas, para ser a bola da vez. A luta por um orçamento global para a cultura decente

ou por uma política cultural eficiente é ofuscada por lutas setoriais, como se ao diminuir o

fomento a um corpo artístico de dança fosse resolver o fomento à literatura, e vice versa.

O canibalismo dos setores famintos resultou em um momento em que os produtores com

melhores estruturas e conhecimento das linhas de fomento conseguem viabilizar suas

propostas, e os que não têm essa estrutura, vivem de esperanças e pequenas gorjetas.

Enquanto isso, o orçamento da cultura é diminuído e sequestrado sistematicamente, com

a justificativa de necessidade de investimento em outras áreas.


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Não há o que se comemorar num mínimo de democratização que foi atingido entre os

diferentes setores, linguagens e locais, porque esta democratização se deu na escassez.

As artes clássicas, espaços culturais consolidados e corpos artísticos tradicionais hoje

sentem na pele a míngua dos recursos, ou seja, criamos um nivelamento, mas ao contrário

do que se desejou ele se deu na diminuição dos investimentos para todos. Algumas

iniciativas de políticas de fomento à fruição surgiram na tentativa de remediar a situação,

visando aumentar a demanda por eventos e produtos, como o vale-cultura, mas ainda sem

grandes efeitos práticos. Os gestores de cultura encontram-se então em um dilema, entre

continuar insistindo e tentar aperfeiçoar estes mecanismos, que apesar dos efeitos

colaterais ainda mantêm o setor em movimento, ou repensar novas formas de política

cultural. Os artistas exploram outras fontes de financiamento, como o crowdfunding ou

financiamento coletivo para viabilizar suas ações. Alguns se amparam em setores como a

educação e a assistência social para levantar recursos para a sobrevivência permanecer

criando.

Não estou apresentando essas críticas achando que as políticas culturais anteriores

funcionavam: elas também eram carregadas de vícios e defeitos, como a chamada

“política de balcão”, onde os grupos e artistas mais bem relacionados tinham o privilégio

de ter suas propostas compradas, sem critérios, pelo poder público. O alto investimento

em um ou outro espaço ou corpo artístico, apesar de ter criado grandes referências,

nunca atingiu a população em geral de fato. Ou seja, houve avanço, mas ele ainda está

longe de ser um modelo sustentável para o setor e mesmo para o estado.

Enquanto isso, a população leiga traz críticas aos modelos de fomento e

financiamento, sem conhecer e considerar que a dependência do produtor cultural foi

incentivada pelo próprio Estado, e que a cultura é um dos setores fomentados com maior

lucratividade e índice de geração de empregos e trabalho. Não questionam as políticas

de fomento a instituições financeiras, indústrias e outras como questionam o fomento à

cultura, talvez pela proximidade da população das mais diferentes localidades e níveis

socioeconômicos com os que recebem o fomento, talvez pela própria transparência.


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Quando o governo intervém em qualquer outro mercado não é alardeado, e os

mecanismos pelos quais isso ocorre não são normatizados e divulgados como na cultura. É

fácil encontrar detalhadamente quem recebeu quanto nas listas de projetos culturais

aprovados. Já se perguntou onde estão os dados dos fomentos aos outros setores? Quem

os recebe, como e para quê? Se há prestação de contas do uso destes recursos? Sim, eles

existem e não são poucos, em forma de incentivo fiscal ou de financiamentos a baixíssimo

custo, na maioria das vezes, mas não vemos seus rostos e nem seus resultados.

A padronização do edital como ferramenta de fomento tira do produtor cultural a

espontaneidade de criar suas próprias demandas, principalmente em se tratando de

projetos maiores, ou fora dos padrões. Há anos que, na busca de viabilizar uma proposta,

o produtor fica mapeando os editais e possibilidades em que sua proposta se encaixaria,

ou pior, deturpa sua proposta em função de adequar ao escopo do edital. Como

consequência, projetos sem relevância e sem alcance são aprovados, às vezes por mera

capacidade técnica de quem o escreve e inscreve, em detrimento de projetos relevantes,

mas de produtores que não alcançam ou não se encaixam no modelo solicitado. Estes

últimos podem sempre buscar a viabilização através do patrocínio, incentivado ou não.

Porém, na prática, são na maioria das vezes os que mais têm dificuldade para alcançar o

patrocínio menos alcance midiático e menos relação com o mundo burocrático.

Não podemos ser ingênuos a ponto de imaginar que a iniciativa privada e o estado,

maiores interessados na manutenção do status, fomentarão projetos disruptivos,

controversos, contestadores, divergentes. Em qualquer dos mecanismos, os grupos e

produtores que atuam com maior enfoque político, de forma contestadora, os ativistas e

que transpassam as fronteiras acabam à margem dos fomentos. Estes grupos continuam

produzindo sua cultura, ou sua contracultura, de forma independente e sem recursos, até

que tomem um corpo significativo que os represente enquanto setor, e pleiteie seu espaço

nas políticas públicas. Por vezes, no caminho, deixam boa parte de sua ideologia, mas são

também os que conduzem novas linhas e as ampliações dos horizontes.


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editais
emergenciais
Com o isolamento social decorrente da pandemia de Covid19 todo o setor cultural foi

paralisado. Espaços foram fechados, atividades interrompidas, e até mesmo os projetos

em execução, suspensos. Em março, nos deparamos com a perspectiva já tensa de uma

retomada em 15 dias ou um mês, que foi muito rapidamente se desdobrando em

incertezas e preocupações. Os artistas, produtores, técnicos e outros profissionais da área

passaram a olhar incrédulos para o cenário que se desenhava, sem entender muito bem

sua dimensão e suas consequências. E chegamos agora a dezembro, depois de nove

meses completos de isolamento, com flexibilizações, reaberturas parciais e volta ao

fechamento de alguns segmentos e setores, porém sem alterações significativas na área

da cultura.

Os projetos foram readequados, não sem uma longa negociação com as prefeituras e

estados, e muitos deles se tornaram virtuais. Os produtores tiveram um retrabalho, tendo

que refazer os projetos completamente. Com a proibição de eventos com plateia e o risco

de contaminações, mais uma vez a criatividade dos artistas e produtores foi colocada à

prova. Enquanto lamentávamos a perda de pessoas queridas e de grandes artistas, a

busca pela sobrevivência material e artística construía túneis em busca da luz e do ar. Em

junho, surge a Lei Aldir Blanc, homenageando o artista recém-falecido em decorrência da

Covid19. A lei propunha auxílios financeiros ao setor da cultura e seus trabalhadores, até

então excluídos dos apoios governamentais de renda emergencial e de financiamento das

atividades econômicas, prejudicadas pelo isolamento.


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O caráter dos editais da Lei Aldir Blanc ficou no meio do caminho entre uma ação

assistencialista e um fomento à cultura. Teoricamente, deveria contemplar os mais

vulneráveis e ajudar o setor economicamente, mas os critérios de acesso foram

padronizados como editais regulares, exigindo documentação, certificação de

regularidade fiscal, currículos, referências, padrão de qualidade artística, bem como

contrapartidas artísticas e de acesso. Com o setor todo estrangulado, a concorrência aos

editais estaduais foi surreal, com a participação de artistas consagrados competindo pelo

recurso e com uma ânsia de todos os trabalhadores da cultura de viabilizar qualquer

iniciativa e de receber qualquer recurso. Os editais para projetos foram complementados

com auxílios financeiros a pessoas físicas e auxílio a espaços culturais, estes últimos

também relacionados a uma contrapartida.

Os valores dos projetos e auxílios foram pequenos, se comparados com a série

histórica dos editais. Em alguns casos, o prazo para inscrição e para a entrega do projeto

após a aprovação, inviável. Na prática, apesar de trazer um mínimo alento para o setor,

ainda não resolveu a questão da cadeia produtiva, ou seja, mobilizou artistas e alguns

produtores, mas não necessariamente os profissionais que suportam o setor, tais como

técnicos, montadores, e outros fornecedores e assessores do processo, que em situações

normais trabalham em diversos eventos e projetos simultaneamente. A exceção foram os

profissionais de áudio e vídeo, que foram beneficiados pelo grande aumento do modelo

de projetos em vídeos e lives, mas ainda assim com remunerações bem reduzidas.

Os artistas se viram então em uma encruzilhada, em que participar destes editais,

fosse para conseguir uma mínima movimentação financeira, fosse para extravasar seus

ímpetos criativos por tanto tempo contidos, ou pelos dois motivos, se contrapunha à ideia

de fazer algo pequeno, tosco, mal feito. Os projetos propostos foram muito aquém das

capacidades, e isso só corrobora a imagem deturpada de que a cultura é como uma

pastelaria ruim que vende uns pastéis queimados e outros murchos, atendendo

imediatamente aos pedidos sem nenhuma qualidade, ou seja, um desprezo por parte de
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fomentadores e contratantes pelo processo de produção artística e cultural, seus tempos,

custos e ritos.

A situação não é das melhores. Mesmo quem está produzindo, criando e repercutindo

mantém dentro de si a angústia da limitação, uma concreta, dolorosa e sufocante

limitação. As conversas sempre começam com um “bem, na medida do possível”, sendo

que a medida do possível não é suficiente. Pergunto a mim mesma onde vai desaguar

toda essa contenção, como se houvesse um represamento de ímpetos que não vão pra

qualquer outro lugar, a não ser para o esgotamento. Enquanto isso, a sociedade nunca

precisou tanto da arte quanto agora. Lembrar o tempo todo quem somos, o que estamos

buscando e quais são nossas ligações é o farol que pode nos acalmar e conduzir.
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articular para
existir
O setor da cultura não é composto só por artistas. Os artistas são uma parte

importante do setor, mas diversos profissionais estão envolvidos no fazer cultural. A figura

caricata da “banda de um homem só”, apesar de refletir muito os sentimentos de quem

atua na área, não representa a cultura: precisamos de muita gente para realizar. Mesmo o

homem da “banda de um homem só” precisa de produção, divulgação, logística,

iluminação, sonorização, apoio, montadores, carregadores, assessoria jurídica, financeira

e contábil, entre outros. Mesmo o homem da “banda de um homem só” precisa de seus

pares, de compositores, arranjadores, instrumentistas, luthiers, afinadores, preparadores

vocal e corporal, engenheiros de som e uma lista infinita que se amplia a cada linguagem,

a cada setor, a cada momento.

Fazer cultura é um fazer coletivo, sem exceções. Além de toda uma cadeia produtiva e

criativa, é preciso que haja o público, porque a cultura é dialógica. Se não há uma plateia

não há show. Se não há um público, não há museu. Um corpo artístico sem trocas é como

um monumento coberto por um pano preto, cego e surdo, absolutamente sem sentido. A

cultura não se faz só a partir da realidade, mas para a realidade. Ela pode sair do

indivíduo, mas ela sempre deve chegar até o público, seja ele do tamanho que for. Nesta

troca entre o que produz e o que recebe é que a cultura exerce seu papel construtor,

contestador e transformador.
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No momento atual, de tantas dificuldades, as articulações na cultura se tornaram

vitais. Não aumentou a importância, mas um holofote foi direcionado para este aspecto, e

ele trouxe, para alguns, a esperança e a solidariedade. Enquanto o luto e as leis nos

conduziam ao isolamento, o desejo de criar e a necessidade de renda nos levaram a

fortalecer os vínculos, achar em nossos pares força e amparo. Enquanto nos vimos

obrigados a não sair, a não ter contato direto com o público, impossibilitados de vender

ingressos, de captar patrocínios, de viabilizar projetos, também nos vimos com tempo para

refletir sobre o que realmente estamos buscando com essa corrida frenética que é o

padrão no meio cultural. E para uma boa parte das pessoas, a resposta vem da

articulação.

Algo mudou neste momento. A chance de olhar para si e para a rotina frenética da

produção cultural, dentro desta pausa, chama a atenção para alguns aspectos. Um deles

foi a respeito do tempo e energia que dispendemos em busca das oportunidades, do

fomento, do financiamento, proporcionalmente grande em relação aos tempos de

execução e de planejamentos. Isso deve nos dizer alguma coisa sobre como as coisas

estão estruturadas, sobre a ação do produtor é na maior parte do tempo intensa e não

remunerada, e sobre como a competitividade aproxima nossa atividade na cultura de um

bem mercadológico, mas só em alguns aspectos. Outro aspecto relevante foi

compreender o quanto as ações coletivas são tão mais potentes do que as individuais. Ter

em seus pares uma fonte de consolo, de poio e de motivação, além de uma ampliação

das redes de possibilidades, faz com que este momento de tantas angústias seja

amenizado para aqueles que pertencem.

O pertencimento deveria ser mais abrangente. Uma das características da cidade de

Jundiaí, e dizem que de várias outras mas aqui é onde a sentimos, é que a cidade se

divide em círculos muito fechados de relacionamentos, pessoais e profissionais. Uma

herança difícil de contornar, mesmo com o crescimento da cidade nas últimas décadas.

Não conseguimos tolerar uma convivência ou uma construção coletiva com pessoas que

tenham valores divergentes dos nossos, mesmo que seja em um único aspecto.
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É uma questão bastante profunda, mas que impacta neste fazer cultural. Cada círculo só

faz e prestigia sua própria cultura. É claro que há exceções, e poderíamos dar diversos

exemplos, mas se elas se chamam exceções é porque não são como o padrão.
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o produtor cultural

Enquanto organizava este texto, minha primeira ideia foi conceituar o papel do

produtor cultural com as definições do início. No entanto, ao compreender a amplitude do

que eu gostaria de dizer, percebi que este o papel do produtor tem características

constantes, e outras que foram sendo desenvolvidas nestes tempos de pandemia, sendo

que algumas são próprias da situação, e outras devem permanecer. Falar sobre o produtor

cultural agora, então, faz mais sentido depois de expostos outros pensamentos.

O produtor cultural é um profissional de características muito próprias, algumas

beirando o paradoxo. Só o fato de ter que dominar a complexidade ao mesmo tempo em

que se ocupa do detalhe já é por si só uma habilidade peculiar. No Brasil, o produtor

cultural acaba acumulando uma série de funções que não são necessariamente suas, em

nome de viabilizar e manter dentro do orçamento as produções. Ter uma mente aberta e

um vasto conhecimento da cultura é um dos extremos; o outro é conseguir lidar com

prazos, equipes e recursos, muitas vezes bastante limitados. E entre um lado e outro, há

múltiplas nuances do trabalho e das características deste profissional, que variam e se

ampliam a cada nova experiência.


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O profissional da cultura pode se beneficiar da inquietude, da busca eterna por

aprendizado e conhecimento. Uma vez que compreende que sua vivência, história e

formação não são as únicas possíveis, se abrir para o diferente é uma via sem retorno. E

nesta área da cultura, de tantas e tão diversas manifestações, formas, ideias, ideologias e

propostas, conseguir criar pontes e associar o que é pertinente a cada situação faz do

produtor a peça de integração entre as pontas, entre artistas de diferentes linguagens,

escolas, locais e experiências, ente artistas e públicos, entre artistas e patrocinadores.

Observar que cada um deles tem um propósito, um idiomatismo, um modelo mental

diferentes e procurar os pontos de possíveis afinidades e uma convergência de interesses

é o que traz para o plano da realidade os projetos, programas e ações culturais. Muitas

vezes é um exercício de tolerância e de paciência, uma vez que nem todos os valores são

convergentes ou nem mesmo possíveis de coexistência com os nossos. Isto não quer dizer

que devemos aceitar qualquer ligação em prol da realização: é uma decisão muito

pessoal definir quais são seus limites.

O produtor cultural então precisa se reconhecer como o elo, e com isso buscar se

desenvolver neste sentido. Ele precisa observar, estudar e compreender as políticas

culturais, interferir quando possível e quando necessário. Precisa se familiarizar com as

formas jurídicas, com conceitos contábeis, entender alguma coisa sobre orçamento

público e sobre ações de marketing, comunicação, e muito sobre planejamento e

organização. E por fim, precisa ter as habilidades práticas de colocar tudo o que é

necessário dentro de um local, em um determinado tempo, ordenando os espaços,

profissionais e recursos.

São muitas as responsabilidades para uma única pessoa, mas é assim que funciona

por aqui. O trabalho não é individual, mas as atividades em boa parte sim. Com exceção

de grandes estruturas, entidades e eventos gigantescos, não cabe nos orçamentos a

divisão destas tarefas entre muitas pessoas, e na prática, todo produtor, mesmo o que

trabalha com as exceções, acaba conhecendo e sendo capaz de fazer um pouco de tudo.

Parece que faço uma apologia ao grande alcance das habilidades deste profissional, e
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talvez o faça, mas basta fazer um questionário a qualquer produtor para confirmar que é

verdade: como faço para abrir uma microempresa? Qual é o valor dos impostos se eu

pagar como pessoa física? Como substituo este equipamento do rider técnico por um

equivalente? Onde eu posso locar uma escada alta? Quanto tempo leva pra gráfica

entregar os folders? Qual é o melhor horário para postar nas redes sociais? Não importa a

pergunta, se o produtor não sabe, ele alcança em uma mensagem quem saiba, e se

necessário, aprende a fazer.

Como um propulsor da realização, o produtor também precisa conseguir achar meios

de se manter sempre motivado. Mesmo quando tudo mais dá errado, ele precisa continuar

abrindo portas e achando caminhos, articulando e planejando. É como um malabarista

girando muitos pratos, sem deixar nenhum cair. Os tempos de cada projeto raramente

coincidem, e a idealização de um acontece simultaneamente à execução ou finalização

de outros, e os prazos de gestação, viabilização, execução e finalização de cada projeto

criam um ciclo longo, fazendo com que qualquer pausa mal planejada acarrete em um

problema.

Outra característica que não posso deixar de mencionar em relação ao produtor

cultural é a habilidade que ele precisa desenvolver em relação à gestão de expectativas.

O artista quando cria, tem uma ideia do que pretende. O patrocinador quando aporta

recurso, tem uma ideia do que deseja. E as ideias nem sempre são viáveis, e dificilmente

coincidentes. Lidar com sonhos e expectativas enquanto gerencia uma planilha financeira

não é uma habilidade nata, e é bem difícil de se alcançar se não tiver o próprio produtor

um jeito equilibrado de lidar com as suas próprias expectativas. Os tempos de pandemia

vieram para explicitar quem está e quem não está pronto para lidar com isso.
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uma nota de
esperança
Eu gostaria de ter oferecido mais soluções do que perguntas este texto. Não há muitas

novas soluções, e há muitos novos problemas. A única clareza que tenho no momento é a

necessidade de nos fortalecemos enquanto classe, enquanto coletivos, compartilhando

nossas experiências sem medo. Nossa concorrência não é interna, ela sequer é real: para

disputarmos um mercado, tem que existir um mercado a ser disputado, e na cultura temos

a possibilidade de criar as nossas próprias oportunidades, mas nunca sozinhos. O aspecto

mercadológico da cultura existe, mas a cultura é muito, muito mais do que isso.

Mesmo com todo o medo e tristeza que este 2020 nos trouxe, vimos novas experiências

surgindo, novas conexões se formando. Ouvir e ser ouvido foi o que fez de nós mais

esperançosos, e perceber que existe um espaço a ser preenchido, fora da correria da

produção. Ao sermos tolhidos de ser quem sempre fomos, nossos sentidos se aguçam, e

pudemos nos abrir para uma nova realidade.

Não há uma orientação sobre como seremos depois da pandemia. O setor cultural

todo sofreu um grande impacto, mas para além disso temos reflexos em todos os aspectos

– sociais, culturais, emocionais, econômicos – que ainda demorarão a serem absorvidos,

trabalhados e concluídos. Os espaços e entidades passarão certamente por revisões,

programas e projetos serão repensados. O importante é que todos estejam atentos e

dispostos a participar deste processo de repensar, oferecer suas visões e demandar suas
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necessidades. O diálogo, mais do que nunca, é a chave. Um diálogo genuíno, de escuta,

compreensão e posicionamentos, que possa nos levar a um novo patamar de estruturas e

de políticas para o setor.

Apoiarmos uns nos outros, dentro de nossa imensa diversidade, é desafiador uma vez

que não fomos educados para sermos cooperativos, colaborativos, mas sempre

competitivos. Fechamos com nossos pares, desde que haja uma completa convergência

de ideias e interesses. Neste momento, é justamente essa visão segregacionista e

intolerante que pode nos prejudicar mais. É necessário que nós abramos os olhares, que

enxerguemos aos outros e a nós mesmos como pequenas peças deste imenso cenário, sem

as quais a figura não se completa.


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referências
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BAUMAN, Zigmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. Estudos avançados, v. 9, n. 23, p. 71-

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COULANGEON, Philippe. Sociologia das práticas culturais. Tradução Constancia Egrejas.

Edições Sesc. São Paulo, 2014.

DE BARROS LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Zahar, 2002.

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LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São

Paulo: Paz e Terra, 2004.


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STOREY, John. Teoria cultural e cultura popular: uma introdução. São Paulo: Edições Sesc

São Paulo, 2015.

URFALINO, Philippe. A invenção da política cultural. Edições Sesc, 2015.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-Chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Boitempo,

2007.

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