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UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL
Reitor
José Carlos Ferraz chncmann
Vice-Reitor e Pró-Reitor
de Coordenação Acadêmica
Pedro Cezar Dutra Fonseca
EDITORA DA UFRGS
Diretora
Jusamara Vieira Souza
Conselho Editorial
Ana Lígia Lia de Paula Ramos
Cassilda Golin Costa
Cornelia Eckert
Flávio A. de O. Camargo
Iara Conceição Bitencourt Neves
José Roberto Iglesias
Lúcia Sá Rebello
Mônica Zielinsky
Nalú Farenzena
Sílvia Regina Ferraz Petersen
Tania Mara Galli Fonseca
Jusamara Vieira Souza, presidente
Acompanhamento Terapêutico
na Rede Pública
a clínica em movimento
Analice de Lima Palombíni
e colaboradores
Segunda ediçao
šl
uFRGS
EDITORA
© dos autores
1ª edição: 2004
Inclui referências.
CDU 159.964.2:316.6
ISBN 978-85-386-0007-7
CONVITE À LEITURA
Sandra Fagundes
Secretária Municipal da Saúde
Porto Alegre, 2004.
AGRADECIMENTOS
A.L.P.
SUMÁRIO
Apresentação / 17
PARTE I
A CLÍNICA DA PSICOSE NO ESPAÇO E TEMPO SOCIAL
o acompanhamento terapêutico entre a instituição e a rua
Introdução/ 23
Analice de Lima Palombini
A clínica em movimento mais
além das fronteiras institucionais / 23
A construção do caso: dispositivo metodológico/ 25
À guisa de conclusão / 69
Analice de Lima Palombini
Paisagens psíquicas / 69
Mínimas janelas / 71
Um estilo próprio à clínica/ 75
Referências / 84
PARTE II
A CENA PÚBLICA DA CLÍNICA
Os autores / 141
CONSTRUINDO POSSIBILIDADES
DE CLÍNICASMULTIFACETADAS:
CALEIDOSCÓPIOS COTIDIANOS
MIRIAM CHNAIDERMAN
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O livro começa e termina com ensaios que buscam estabelecer os parâ
metros teóricos para esse trabalho, ainda novo no contexto da psicose, na for
ma como é proposto. No meio, relatos lindos de acompanhamentos terapêu
ticos, nos quais qualquer intento de padronização do que seja essa prática cai
por terra. Muitas vezes o AT (abreviatura que é cada vez mais utilizada para
se falar do acompanhamento terapêutico) tem de trabalhar no exíguo espaço
de um quarto escuro, com sujeira por tudo que é lado, deve passar horas ven
do televisão até conseguir algum diálogo, lidar com mãe, irmã, filha...
É árdua a tarefa de encontrar os referenciais possíveis de nortear uma
tal prática. Nisso, o livro é pioneiro e, juntamente com outros poucos já lan
çados – e que vão sendo utilizados no decorrer dos textos –, busca, a partir da
psicanálise, uma reflexão sobre essa “clínica em movimento”. Assim é que
Winnicott, com seu conceito de espaço transicional, a teoria lacaniana desen
volvida por Contardo Calligaris no seu livro sobre a psicose, e mais outros
tantos caminhos, vão instrumentalizando o pensamento que só pode ser er
rante: “a pesquisa sustentou-se sobre um ‘trajeto linguageiro’ que compreen
de um vai-e-vem constante entre as modalidades orais e escritas da lingua
gem (ou mesmo visuais), entre diálogo e relato, história e ficção, ficção e teo
ria”. Houve um momento no qual ocorreu a produção de um vídeo, em que
cada acompanhamento era representado por uma imagem e um som associa
dos. É como se o discurso, o verbal, não desse conta da carga afetiva que per
meia o trabalho, e, no colocar em imagens, foi possível explicitar o que se
passava na transferência, cerne da experiência psicanalítica. Na proposta de
um trabalho com a imagem, já há algo disruptor: não é só na fala que o psica
nalista se instrumentaliza; é preciso ir à nascente da palavra, buscar o que a
origina para poder ter um melhor entendimento do que se passa. Colocar em
imagens, no trabalho com a psicose, parece ser um instrumento precioso.
Assim como o acompanhamento terapêutico questiona o mundo con
temporâneo ao propor formas inusitadas de ocupação do espaço urbano,
no trabalho de formação do AT, também formas tradicionais de transmis
são são postas em questão. Analice afirma, no texto que encerra a primei
ra parte do livro, que “(...) o at deve ser capaz de uma certa abstinência
daquilo que constitui o eixo básico da constituição de seu eu – a organi
zação espaço-temporal. Contudo, isso o lança no campo da experiência
sensível, não representacional, no encontro estético dos corpos, fora do
registro da palavra”.
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Todos os espaços são questionados, e a cidade, passando a ser maté
ria clínica, leva a uma reflexão sobre o espaço urbano. Na história da subje
tividade, é preciso buscar o sentido do que é a casa, o que é o privado, o
íntimo, mas sem cair em valorações, em preconceitos. Autores significati
vos como Sennett, Virilio, Foucault e Oury instrumentalizam o pensamen
to sobre o acompanhamento terapêutico.
Os casos de acompanhamento terapêutico relatados são todos de uma
poesia incrível. Vivenciamos junto com cada AT os impasses, a dificuldade
de sair à rua, a mãe invasiva, o ruído da televisão ligada, a busca de um tempo
de nascimento, de diferenciação. Em meio a um relato lemos que “o verbo
‘acompanhar’ assumiria um significado diferente: suportar a errância, o
desconhecido, o desabitado”. E, pouco mais adiante: “Ao AT cabia escre
ver com ela uma história que pudesse ser contada, imaginada, alterada (...)”
Parece que o desejo de construir histórias para serem contadas vai junto
com o trabalho de acompanhamento terapêutico. Assim é que nós, leitores,
vamos percorrendo as ruas de Porto Alegre, adentrando por casas amontoa
das, sem qualquer organização espacial; enclausuramo-nos em quartos es-
curos, acompanhamos nascimentos. Nós mesmos vamos sendo obrigados
ao abandono de parâmetros sisudos, descobrindo o lúdico, em uma abertu
ra para novas referências de trabalho.
Nisso tudo há uma proposta do que seja a clínica psicanalítica, não
apenas a clínica do acompanhamento terapêutico. Talvez a clínica mais co
nhecida nossa, aquela dos consultórios, possa ser entendida como uma mo
dalidade possível do acompanhamento terapêutico. Apenas no acompanha
mento terapêutico aquilo que é de toda e qualquer clínica, a inserção em um
tecido social mais amplo, fica mais evidenciado. É claro que pensar assim
questiona algumas hierarquias já bem cristalizadas, subvertendo uma ordem
estabelecida. Contudo, essa ordem já vem sendo questionada através de for
mas outras de clínica psicanalítica, às quais vem somar-se a proposta do
acompanhamento terapêutico.
Na parte 2 do livro, “A cena pública da clínica”, vamos tendo acesso
aos embates vividos com a proposta de formação de ATs para profissionais
de nível básico da rede. Há aqui uma postura que quer muito mais dar con
dições de trabalho com a psicose do que pensar em hierarquias, reservas de
mercado e outras mesquinharias tão comuns na luta capitalística que vive
mos em nosso mundo contemporâneo. Citando Analice: “A proposição de
um outro modelo, operando sob a base do estabelecimento de uma relação
15
de confiança entre seus atores, em que as responsabilidades sejam compar
tilhadas e a palavra circule de forma igualitária, abre, aos trabalhadores, a
possibilidade de invenção, transformando as suas ações em acontecimen
tos plenos de sentido, momentos de encontro genuíno com cada uma das
pessoas sob os seus cuidados”.
Agora, as histórias são dos trabalhadores. E são tocantes. O relato de
Maria Beatriz Severo e Vanir Terezinha Benetti de Freitas, do Hospital Psi
quiátrico São Pedro, contando sobre Vitória, mostra intervenções possíveis
no impossível dos espaços de internamento.
Cito o final do texto de Maria Cristina Carvalho da Silva: “Ao acom
panhar os sujeitos em momentos cruciais de sua jornada, do isolamento à
possibilidade de construção de laços sociais, desvelando a potência dese
jante de cada um, o tempo, o ritmo, as condições de enunciação de um su
jeito constituem as balizas para uma intervenção possível. Tempo de decan
tação, de espera, mas também tempo da produção de um ato...”
O livro que aqui está tem o estatuto de um ato. Ato que desencadeia mil
outros discursos possíveis para a nossa clínica. Ato de vida, engendrando lu
gares outros do que aqueles da inércia. A transmissão da experiência e a de
mocratização dos saberes passam a ser o cerne de uma postura condizente com
a revolução necessária que qualquer mergulho no inconsciente traz. Nada
como caminhar pelas bordas das ruas, pelo escuro dos cantinhos, nada como
descobrir a cidade não institucionalizada, para nos pensarmos em nossos co
tidianos. Na leitura dos textos pelos quais nos comovemos, torcemos, rimos
e crescemos, é como psicanalistas que somos levados a nos repensar.
16
APRESENTAÇÃO
distritos sanitários da cidade e de acordo com a legislação do Ministério da Saúde que regu
lamenta o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial.
17
pela equipe. A experiência viu-se ampliada no ano seguinte, com o ingres
so de novos estagiários, motivando-me a propor sua continuidade na forma
de projeto de pesquisa e extensão, no momento em que eu me desligava do
serviço para assumir como docente na Universidade Federal do Rio Gran
de do Sul, estabelecendo parceria entre a Universidade e a Prefeitura de Porto
Alegre. Assim, em 1998 seis alunos do curso de Psicologia da UFRGS de
ram início à parceria, realizando atividade de AT junto a três serviços da rede
de saúde mental do município de Porto Alegre.3 O Programa teve seguimento
no ano de 1999, através de curso de extensão, com vinte e dois participan
tes, entre estudantes e profissionais de diversas áreas, que estendeu a pro
posta de AT também ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, do Governo do
Estado do Rio Grande do Sul, e à Clínica de Atendimento Psicológico da
UFRGS. Em 2000, um grupo de dez alunos, vinculados ao curso de Psicolo
gia, deu continuidade ao trabalho junto à Secretaria Municipal de Saúde e à
Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS, ao mesmo tempo em que
participei, junto à Escola de Saúde Pública do Governo do Estado do Rio Gran
de do Sul, do planejamento e coordenação de um curso-piloto de qualifica
ção para o AT, dirigido a servidores de nível médio da rede pública de servi
ços de saúde. No ano seguinte, um novo grupo de alunos realizou as ativida
des de AT, estendidas também ao Ambulatório de Psiquiatria do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, enquanto a Escola de Saúde Pública deu início à
segunda edição do curso lançado no ano anterior. Em 2002, além dos servi
ços de saúde, o Programa passou a atender também as Escolas Especiais da
Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre, através de projeto inte
grado de estágio. Paralelamente, teve continuidade a experiência junto à Es
cola de Saúde Pública e, juntamente com os colegas Károl Cabral e Márcio
Belloc, eu dava início a atividades de assessoria e supervisão junto ao Proje
to Morada São Pedro, programa de Residências Terapêuticas implementado
pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro, possibilitando que seus usuários trans
pusessem o espaço fechado do Hospital e passassem a habitar a cidade.
Os textos que seguem dividem-se em dois blocos: o primeiro engloba
a fundamentação teórica que orientou a experiência do Programa e algumas
18
das narrativas clínicas que nela se produziram, bem como as conclusões daí
decorrentes; o segundo bloco apresenta um recorte da produção clínica e
teórica dos serviços de saúde mental que integram o projeto, o relato de uma
experiência de AT no Hospital Psiquiátrico São Pedro, produzida no con
texto do curso de qualificação da Escola de Saúde Pública,4 e, ainda, uma
reflexão sobre esse processo de capacitação e a assessoria prestada ao Pro
jeto Morada São Pedro. Embora de autorias diversas, marcadas pelas espe
cificidades dos serviços e pela singularidade da experiência que se viu pos
sibilitada em cada um deles, esses textos constituem uma trama única, teci
do discursivo a tornar visível o trabalho de uma clínica que cotidianamente
enfrenta o desafio de repensar e inventar os seus modos diante de uma de
manda que, mais do que qualquer outra (tratando-se da rede pública), apre
senta-se como efeito do social.5
1999a), trazendo a público um primeiro esboço do trabalho que aqui se publica. Encontra
mo-nos com o mesmo título em livro recentemente publicado por Ana Marta Lobosque (2003).
Longe de se furtar a essa coincidência, consideramo-la afirmativa de uma produção que, em
diferentes pontos do país, ocupa-se de engajar a clínica no espaço múltiplo e cambiante da
cidade, reinventando suas formas.
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PARTE I
A CLÍNICA DA PSICOSE
NO ESPAÇO E TEMPO SOCIAL
o acompanhante terapêutico
entre a instituição e a rua
INTRODUÇÃO
ANALICE DE LIMA PALOMBINI
23
se que, no hospital psiquiátrico, a dimensão do espaço ganha contornos pró
prios: muros altos, imensidões gramadas, pátios internos, longos corredo
res, grades e paredes; um espaço destacado do panorama da cidade, volta
do para dentro de si mesmo, fechado em muros. O tempo, por sua vez, não
tem cadência, é congelado, parado, eternamente o mesmo. Dentro do hos
pital, somos desabitados de tempo e presas do espaço.
O movimento pela reforma psiquiátrica tem implicado o deslocamen
to do espaço de atuação dos profissionais. O trabalho em saúde mental in
cide cada vez mais sobre um campo que é excêntrico ao hospital, inserin
do-se no contexto das trocas sociais estabelecidas na comunidade local.
Abandona-se o confinamento entre muros, a clausura dos gabinetes e se
ocupa o bairro, a rua, a praça, a igreja, o bar da esquina. Esse deslocamento
força uma mudança na postura dos profissionais envolvidos, para os quais
não é mais possível manter a atitude padrão, previsível e controlada, de quem
trabalha entre quatro paredes.
Seja no redimensionamento do espaço, seja no reordenamento do tem
po, a prática profissional em saúde mental encontra-se em questão. Propor
se à desmontagem dos clichês, dos saberes consagrados e lançar-se em um
espaço aberto de atuação, sem fronteiras demarcadas e sem medidas prévi
as de tempo, tem sido o desafio nesse campo. Desafio que torna necessário,
como apontou Eduardo Mourão Vasconcelos (1997), o esfumaçamento dos
limites das atribuições específicas a cada disciplina ou profissão, diversifi
cando e estendendo os espaços de atuação de cada profissional e criando
regiões novas de saber no intercruzamento das diversas disciplinas.
A prática do at surge, nesse contexto, como uma dessas novas regiões
a explorar. Com efeito, uma vez que o tratamento da psicose já não se cir
cunscreve ao âmbito restrito do hospital, ganhando terreno no espaço urba
no em sentido amplo, a possibilidade de acompanhar o sujeito na sua circu
lação pela cidade coloca-se como alternativa para a construção de um es-
paço transicional – no sentido que Donald Winnicott (1975) concede ao ter
mo – entre a referência institucional para o psicótico e seu acesso à via e
aos lugares públicos. Nesse ir e vir acompanhado, tecem-se, ainda que tê
nues, os fios que permitem enlaçar o psicótico, com sua estrutura psíquica
peculiar, ao tecido social (Maurício Porto e Deborah Sereno, 1991).
Nessa perspectiva, o Programa de Acompanhamento Terapêutico na
Rede Pública propõe-se como uma contribuição para a consolidação de uma
clínica da psicose tomada dentro dos princípios que o movimento pela re
24
forma psiquiátrica veio pautar, a qual deve incluir, necessariamente, no
âmbito do tratamento, além do corpo discursivo e do corpo biológico, o fa
miliar e o social. A psicanálise, na medida em que dispõe de uma teoria que
toma o homem como sujeito de desejo, constituído como tal em relação ao
outro, na qual se articulam as suas dimensões biológica, psicológica e social
(Alfredo País, 1996), coloca-se como fio condutor desta investigação, como
eixo teórico de base a orientar suas ações, entrelaçado, porém, aos diferen
tes saberes envolvidos no campo clínico, político e social da saúde mental.
Assim, toma-se lugar no embate já consagrado, nesse campo, entre a práti
ca médico-hospitalar e uma proposta político-social, alinhados a esta últi
ma, porém aproximando-a da clínica como contexto em que opera a função
do at – um contexto que, sem desprezar os determinantes político-sociais
do adoecimento psíquico, é capaz de dispensar especial atenção ao sujeito
implicado na constituição de uma psicose ou neurose grave, categorias em
que, via de regra, enquadra-se a clientela que tradicionalmente busca a hos
pitalização psiquiátrica e que potencialmente pode demandar AT.
A CONSTRUÇÃO DO CASO:
DISPOSITIVO METODOLÓGICO
25
sua vez, estabeleciam sua própria narrativa acerca do que escutavam do caso.
Um dos recursos de que se fez uso, nesse processo, foi a produção de um
vídeo no qual cada um dos acompanhamentos realizados era representado
por uma imagem e um som associados, tomando como base os relatos se
manais que faziam os ats, em uma certa referência à organização espacial e
temporal, respectivamente, de cada um dos casos que foram objeto desse
trabalho. A realização do vídeo, por sua vez, foi produtora de novas narrati
vas orais e escritas que, a seu turno, operavam a posteriori sobre os relatos
já produzidos. Assim, o trabalho de pesquisa sustentou-se sobre um “traje
to linguageiro (...) que compreende um vai-e-vem constante entre as mo
dalidades orais e escritas da linguagem [ou mesmo visuais], entre diálogo e
relato, história e ficção, ficção e teoria” (Dana Rudelic-Fernandez, 1999,
p.36). Esses atos narrativos, no seu conjunto, foram tomados em conside
ração desde a transferência que os implicou, mediatizada pela elaboração
teórica que, no entanto, assim como a supervisão do caso, não deixa de se
incluir em uma dimensão transferencial (Max Kohn, 1999). Ou seja, a trans
ferência é a mola propulsora da pesquisa. Cerne da experiência psicanalíti
ca originária, como fenômeno que permite acesso ao psiquismo, a transfe
rência é o que possibilita também a produção e transmissão de seu saber,
ponto de amarra que une experiência, produção e transmissão como termos
indissociáveis (Analice Palombini, 1999b; 2000).
Os encontros semanais da equipe envolvida com o projeto tomaram,
portanto, a forma de dispositivo metodológico de pesquisa, voltado à cons
trução do caso, tendo como referente a série de seis ATs realizados no percur
so do ano de 1998. A serialidade proposta não remete a uma identidade múl
tipla dos objetos observados, mas à diversidade de exemplos casuais, a qual,
ao mesmo tempo que emerge como realização do teórico, produz novas des
cobertas a que o acontecimento do caso instiga (Catherine Cyssau, 1999).
26
A PSICOSE NO ESPAÇO
E TEMPO DA CIDADE:
SUPORTES TEÓRICOS
ANALICE DE LIMA PALOMBINI
ELIANE RIVERO JOVER
ERNESTO PACHECO RICHTER
LAURA LAMAS MARTINS GONÇALVES
MARIANA BOCCUZZI RAYMUNDO
PAULA SANDRINE MACHADO
SIMONE GOULART KASPER
ESPAÇO-TEMPORALIDADES DO URBANO
o sujeito
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nência e circularidade marcam igualmente a constituição espaço-temporal
de seus indivíduos. Nas sociedades modernas, conforme aponta Joel Birman
(1999), a distinção entre o domínio público e o domínio privado do espaço
social vem inscrever uma disparidade radical entre a ordem do indivíduo e a
ordem da sociedade. Desfeita, assim, a unidade entre o homem e as condi
ções e finalidade de sua produção – a qual, antes, definia-se por suas necessi
dades –, a atividade do trabalho torna-se exterior à existência mesma do ho
mem (Augusto apud Frayze-Pereira, 1997). O tempo perde sua dimensão cí
clica, passando a se apresentar de forma linear, em uma escala quantificável
a operar os processos sociais de produção. Também o espaço sofre uma trans
formação, estabelecendo-se a distinção entre lugar de trabalho e lugar de ha
bitação. O sujeito, cuja expressão encontra-se circunscrita ao espaço da sua
privacidade, torna-se presa das montagens quantificantes do social, impedi
do de experienciar livremente seu tempo (Birman, op.cit.).
A psicanálise, nascida com a modernidade, ensina que um sujeito ape
nas pode surgir a partir de uma relação que sustente descontinuidades, es-
paços vazios, diferenças. Logo que vem ao mundo, o ser do bebê quase não
se distingue do de sua mãe, estando amparado pelo corpo e o psiquismo
desta. A carne, os órgãos, as vísceras do pequeno infante somente ganham
consistência e engendram seu funcionamento – tornam-se corpo – quando
impelidos pelo desejo materno, que toma o bebê como seu objeto. Mas, para
que esse corpo possa unificar-se em um eu, é preciso o estabelecimento de
um intervalo, um vazio, suspendendo o estado de completude narcísica en
tre mãe e filho, marcando a diferença entre este e o outro materno. A agres
sividade tem aqui sua entrada, como constitutiva do psiquismo, permitindo
que, no processo de identificação do eu, fique marcada, no corpo, a separa
ção com relação ao outro.
Fiedrich Bollnow (1969), no livro intitulado Hombre y espacio, ao
abordar a relação do homem com seu espaço vivencial, retoma a situação
de rivalidade entre o eu e o outro na perspectiva da fenomenologia e do exis
tencialismo: conquistar um espaço próprio, diz o autor, implica medir for
ças com os demais. É nesse jogo de forças que se dimensionam os espaços
diferenciados de uns e outros.
a casa
28
dissoluvelmente vinculado, Bollnow considera de forma análoga a relação
do homem com sua casa, a qual toma como uma expressão parcial da tota
lidade da pessoa, incidindo sobre as suas determinações e tendo o poder de
transformá-la. A casa estaria situada, para o homem, como centro do mun
do que o enraíza no espaço e ao qual estão referidas todas suas circunstân
cias espaciais. O mundo, diz Bollnow, está lá fora, em toda sua vastidão,
com seus pontos cardeais e regiões, com seus caminhos e estradas. Nesse
sentido, como vias comunicantes, a porta representaria a liberdade para se
abrir e se fechar com segurança, e as janelas, possibilitando a entrada de luz,
seriam como olhos abertos para o exterior. A cama, em contrapartida, re-
presentaria o centro de máxima proteção, no qual o homem encontra calor
e está em sua intimidade. Antes dela, a mesa teria sido o centro comum de
uma família, reunida em torno das refeições. A atomização das relações fa
miliares é o que levaria à busca de um centro correspondente para cada in
divíduo, em que se encontrassem vinculados todos os caminhos interiores
e exteriores à casa. A cama é, para o autor, esse centro, em que começam e
terminam os dias de uma vida inteira. O dormir, a que ela se destina, é um
abandono, um deixar-se cair em um espaço sem determinação. Ao dormir e
ao despertar, perdemos e voltamos a ganhar consciência do espaço vivencial.
Toda a vida humana, diz Bollnow, é um ir e vir: da casa ao trabalho,
da pátria ao estrangeiro, do sono à vigília; carregando energia para se sus
tentar e prevalecer. Nesse sentido, a casa representaria uma esfera de tran
qüilidade e paz em que o homem pode prescindir do constante alerta de uma
possível ameaça do mundo exterior, o qual, como espaço da atividade no
mundo, apresenta resistências e adversários para serem vencidos; o exterior
seria o espaço da falta de proteção, dos perigos, de estar à mercê de tudo.
Na conferência em que trata do simbolismo nos sonhos, Sigmund Freud
(1916-1917) vai estar de acordo com a interpretação corrente que relaciona a
imagem da casa com o eu. Ele aprofunda essa interpretação, investindo-a da
conotação própria à ordem sexual. Assim, paredes lisas simbolizam homens
e paredes rugosas, mulheres; janelas e portas representam os orifícios do cor
po; o ato de subir ou descer escadas associa-se ao ato sexual. Nessa mesma
acepção, o interior da casa e seus aposentos é relacionado com o útero mater
no, o que nos permite aproximar a interpretação de Freud da leitura que faz
Bollnow a respeito da casa como espaço de proteção.
Contudo, é precisamente essa perspectiva da casa como espaço iden
titário, de representação do eu, como expressão da elaboração simbólica de
uma fantasmagoria pessoal, que se encontra no centro das críticas que Luis
29
Antonio Baptista (2005) dirige às abordagens que, no campo da saúde men
tal, investem de sacralidade o lugar da moradia, como o espaço interior que
dá guarida à subjetividade. Assim como a distinção entre um espaço-tempo
subjetivo e um espaço-tempo social, a oposição salientada por Bollnow, entre
a casa e o mundo, entre interior e exterior, aconchego e risco, não é uma
imanência, mas uma produção histórica que ganha força no século XIX da
era cristã e tem, no ambiente familiar burguês, o seu ponto máximo de rea
lização: ambiente com a mínima porosidade, que não quer se deixar pene
trar pelos cheiros, pela sujeira, pelo ruído das ruas. Para o autor, a casa, as-
sim como a cidade, é potencialmente, não o espaço de confirmação da iden
tidade, mas campo de experimentação de vida, de encontros, de sociabili
dades, polissêmico, mutante e multifacetado.
Bollnow, porém, depois de se referir à casa e, mais especificamente, à
cama como centro de proteção, afirma a necessidade que o homem sente de
se libertar das amarras que a quietude de sua casa representa (da mesma
forma que o bebê necessita desprender-se do amor engolfante de sua mãe).
Ele identifica na viagem o símbolo de liberdade: o homem se faz viajante,
a quem interessa o trajeto e o gozo de percorrer um caminho, abrindo seus
panoramas e sofrendo as vivências de seus lugares e suas cidades. As ruas
não só organizam o espaço, como também criam propriamente novos espa
ços, coagindo a seguir adiante. Não há pressa em chegar. O que interessa é
“encontrar-se a caminho”.
Poderíamos dizer, concordando com Baptista (ibid.), que nos encon
tramos desde sempre, e mesmo em casa, a caminho. A cidade em movimento
é nosso chão.
a cidade
30
a idéia de modernidade, concebida em inúmeros e fragmentários caminhos,
perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade, e também perde sua
capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas. Em conseqüência,
encontramo-nos hoje em meio a uma era moderna que perdeu o contato com
as raízes de sua própria modernidade.” (p.16-17)
31
posta aos primeiros vagões ferroviários europeus que, a exemplo dos co
ches puxados por cavalos, mantinham, em cada cabine, de seis a oito pas
sageiros sentados de frente uns para os outros. O silêncio das novas máqui
nas, porém, diferente da movimentação barulhenta das carruagens, tornava
embaraçosa essa convivência forçada durante a viagem; ao mesmo tempo,
o conforto do trem permitia a cada um mergulhar em leituras. Nos vagões
lotados, com seus ocupantes absortos em ler ou observar a paisagem pela
janela, o silêncio vigora como garantia de privacidade, e o mesmo passa a
ocorrer entre os transeuntes, na rua. A expectativa da abordagem entre os
passantes dá lugar ao exercício do direito de não ser interpelado por um es-
tranho, interpelação essa que é considerada uma violação.
A sós e em silêncio torna-se igualmente o modo de estar nos cafés, de
início constituídos como espaço de conversa e troca de informações entre
pessoas que não se conheciam, de diferentes posições sociais: “conversan
do, ficava-se sabendo das condições da estrada, dos últimos fatos ocorri
dos na cidade e de negócios” (ibid., p.277). O silenciamento dos cafés tem
início no século XIX, com a colocação de mesas nas calçadas (estimulada
pela pavimentação de grandes avenidas), onde os clientes ocupavam-se mais
de observar a paisagem urbana do que de se envolver em conversações.
Os avanços tecnológicos vão aplicar-se também às edificações urbanas,
alterando profundamente as condições de moradia que se tornam independen
tes em relação ao meio exterior. É assim que os sistemas de calefação e refri
geração, aperfeiçoados ao longo de um século, através dos mecanismos de
circulação e aspiração do ar e do vedamento das paredes e aberturas, possibi
litam regular a temperatura ambiente sob as mais diversas condições climáti
cas. É assim também que a utilização da luz elétrica, em substituição aos lam
piões, prolonga as possibilidades de uso dos espaços interiores, prescindindo
da iluminação natural que, através das aberturas das casas, caracterizava o trân
sito entre exterior e interior. Finalmente, a invenção do elevador, que deso
briga o corpo do esforço motor da locomoção vertical, leva ao surgimento dos
arranha-céus e intensifica a experiência de desenraizamento dos corpos com
respeito ao espaço aberto da cidade, tornando possível os deslocamentos de
um lugar a outro sem nenhum contato físico com o mundo exterior. Do ele
vador à garagem subterrânea, desta à auto-estrada e novamente à garagem e
elevador; a circulação pelo urbano, longe de engajar o corpo no encontro com
a diversidade, lança-o na cômoda monotonia do individualismo.
A mobilidade própria à vida nos grandes centros urbanos, representa
da pelas auto-estradas, o fluxo ininterrupto de veículos, o crescimento con
tínuo e fragmentado da cidade em direção à periferia, tem como resultado
32
paradoxal a apatia dos sentidos, reduzindo-se a complexidade da experiên
cia urbana ao mínimo contato possível, em uma economia de gestos e per
cepções. Velocidade, fuga e passividade, conclui Sennett, determinam a
existência corporal na cidade.
a terceira janela
33
Assim, se, em um primeiro momento, o dia químico das velas e, de
pois, o dia elétrico das lâmpadas produziram um prolongamento da jorna
da, o advento do dia eletrônico dos meios multimídias desdobra, na propa
gação do espaço, esse prolongamento da duração do dia e da visibilidade.
Trata-se da extensão de um continuum que apaga as distâncias geográficas
e anula os intervalos de tempo. “A própria representação cinemática tende
a substituir a realidade da presença efetiva, a presença real das pessoas e
das coisas...” (op.cit., p.78). Com isso, desaparece a primazia do protocolo
de acesso da porta, da ponte, dos portos e dos outros meios de transportes
que, estendendo a natureza do limiar, cumpriam a função prática de entra
da, emprestando sentido ao espaço de uma residência e de uma cidade, li
gadas à primazia do sedentarismo sobre o nomadismo das origens.
Os meios de transporte e comunicação instantâneos reduzem a nada o
espaço geofísico, degradando, segundo o autor, as relações entre o homem
e seu ambiente. A paisagem perde sua espessura. O sentido do tempo vivi
do e a própria identidade do homem sofrem os efeitos desse processo que
Virilio vai denominar de poluição dromosférica e que chega a atingir
ESPAÇO-TEMPORALIDADES NA PSICOSE
aperda da realidade
34
das tentativas empreendidas pelo eu para refazer o seu contato com a reali
dade. Na medida em que a realidade que se perde é aquela que se inscreve
interiormente, o processo patogênico da psicose, no limite, coincidiria com
uma aniquilação completa da interioridade, o que às vezes pode resultar em
morte física. Ao invés de um indivíduo profundamente enclausurado em seu
mundo interior, o psicótico surge como inteiramente jogado no mundo ex
terno, como se virado do avesso. Se sua experiência é incompreensível para
outrem, é antes pelo que ele revela do que pelo que ele oculta. O que se
mostra claramente na alucinação e no delírio é tão-somente aquilo que, no
neurótico, é ocultado pelo recalque, mecanismo ausente na psicose.
Mas, que realidade é essa que se encontra em questão, na neurose ou
na psicose? Pois, diz Freud, nem todo desejo faz-se tão trágico de abando
nar nem toda realidade é tão cruel que se impõe recusá-la. A teoria psicana
lítica revela que é de um desejo e de uma realidade bem específicos que se
trata. Assim, enquanto a defesa neurótica dirige-se a uma moção pulsional
inaceitável, o mecanismo psicótico cancela um fato real, com o detalhe de
que este fato é tornado insuportável justamente por causa da moção pulsio
nal. A realidade que deixa de receber inscrição na psicose é a da castração,
entendendo-a como aquela que, ao impor as mais severas restrições à satis
fação do desejo (ao gozo), defende o bebê de permanecer preso ao desejo
de sua mãe. A estruturação do sujeito, portanto, corresponde a uma estrutu
ração de defesa diante do Outro primordial, seguindo caminhos distintos na
neurose e na psicose.
35
modo contínuo, de um saber total a seu respeito. Nesse sentido, o psicótico
não tem descanso. Se acontece desse saber falhar em defendê-lo da demanda
do Outro, é o seu eu, junto com seu saber, que entra em ruína, deixando-o
destituído de qualquer significação, completamente entregue à posição de puro
objeto do Outro. O delírio seria a tentativa de construção de uma referência,
análoga à referência paterna, capaz de reorganizar seu saber em ruína.
Assim, no processo de constituição subjetiva próprio à psicose, um
corte deixa de operar. Não havendo inscrição psíquica, simbólica, da cas
tração, não se sustentam as descontinuidades, os vazios que marcam a dife
rença entre o eu e o Outro, diferença que possibilita ao eu deslocar-se da
posição de objeto de desejo do Outro primordial, tornando-se sujeito de seu
próprio desejo. A ausência desse corte, a qual Jacques Lacan (1966) irá de
signar como forclusão do Nome-do-Pai, do lugar da lei, do interdito, afeta
radicalmente a experiência subjetiva do espaço e tempo.6
objeto a como causa do desejo, Lacan (1992, 2005) faz distinguir castração (falta do objeto
inerente à estrutura da linguagem) e ameaça de castração (falta do objeto elaborada pelo mito),
distinção que, inexistente em Freud, havia permanecido até então obscura em sua obra. Essa
distinção permite afirmar que, na psicose, a castração está à mostra, desprovida do véu da fan
tasia edípica com que a neurose a encobre; ela revela o vazio do significante na sua condição
de significante puro, cujas propriedades requerem sempre invenção (Santos, 1999). Com a teoria
dos nós, nos anos subseqüentes, o objeto a, causa de desejo, passa a figurar como ponto de
junção dos três registros da subjetividade – real, simbólico, imaginário – cujo modo de amar
ração, por meio de um quarto elo, é o que faz o sintoma (sinthome) que constitui ao sujeito. O
Édipo, então, do qual se serve o neurótico, é definido como um modo, entre outros, de amarra
ção dos três registros. Abre-se, assim, a possibilidade de que outros modos de amarração criem
respostas possíveis à existência, fora da norma fálica. O delírio, mas também a criação artísti
ca, a produção de teoria, alguma forma própria de se fazer um nome com o qual se apresentar
ao mundo e conduzir-se na vida, permitem a presença do psicótico no laço social, a seu modo,
sem apelo ao Nome-do-Pai, sem a exigência vã de uma edipianização que só pode malograr.
36
como abismo, horror, morte. Tal vivência é determinante de uma distorção
nas percepções visuais, cinestésicas, tácteis, do espaço, como, por exem
plo, as que afetam a noção de profundidade. O corpo, de frágil consistên
cia, dilui-se no vácuo de um espaço sem coordenadas.
Em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre a loucura, Peter Pal Pél
bart (1993) discorre sobre a loucura como sendo da ordem da desencarna
ção e da atemporalidade. Preso a um momento de suspensão anterior à pró
pria temporalidade, em que, em um estado de inacabamento, ainda não está
configurada uma imagem corporal, o louco, o psicótico, transita por uma
existência sem início nem fim, sem esquecimento nem surgimento, com uma
falta completa de concretude (ou excesso dela), “condenado a testemunhar
com inveja silenciosa a encarnação alheia” (op.cit., p.20).
Nesse sentido, a imobilidade e lentidão, características da burocracia
das grandes instituições, dizem também do regime temporal que aprisiona
a loucura, alheia ao escoar contínuo dos instantes, sem passado nem futuro.
Os manicômios, assim, constituídos como uma espécie de freio contra a tem
poralidade hegemônica da vida em sociedade, absorveram e impregnaram,
ao longo de séculos, todos aqueles que recusaram adaptar-se a essa tempo
ralidade – a da aceleração máxima, absoluta. Paradoxalmente, levado ao seu
extremo, o império da velocidade chega ao ponto do imediatismo, da abo
lição do tempo e das distâncias que, conforme a análise de Paul Virilio
(1993), as tecnologias midiáticas vêm propiciar. A desmaterialização pro
vocada pela velocidade absoluta equivale a uma inércia absoluta, fazendo
coincidir velocidade máxima e imobilidade total.
O mundo contemporâneo, porém, abriga múltiplos regimes temporais,
que se sobrepõem a esse regime da velocidade, transitando entre seus dois
pólos: o do tempo quase instantâneo do computador e o do ócio quase infi
nito. Sobre essa diversidade navega nossa existência. E é o domínio dessa
navegação de uma temporalidade a outra que na psicose se vê impossibili
tada, faltando ao sujeito um ponto de amarra para conectá-las. Ali onde, en
tre turbulências e calmarias, seguimos conduzindo nossas naus, ele termi
na por naufragar.7
volvida por Pélbart em O Tempo não reconciliado (1998). Em debate com o autor, por oca
sião de palestra pronunciada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1998, o
mesmo aludiu à idéia de uma navegação pela existência impossibilitada ao psicótico pela
incapacidade de lidar, não com um único regime temporal hegemônico, mas com a multipli
cidade de tempos que a vida em sociedade acarreta.
37
A CLÍNICA DA PSICOSE NO ESPAÇO E TEMPO DA CIDADE
múltiplos ritmos
“corte que cria a superfície, que a conduz ao II, onde o reencontro pode ter
lugar no Nada de uma cronogênese primordial. Ponto ético que duplica a in
trusão para contrariar o movimento natural em direção à morte. (...) Não ori
gem, mas começo; ou, mesmo, ponto ancestral do tempo.” (op.cit., p.91-2,
tradução livre)8
8No original: “... coupure qui crée la surface, qui la porte au Il, où la rencontre peut avoir
lieu dans le Rien d’une chronogénèseprimordiale. Point éthique qui double l’intrusionpour
contrer le mouvement naturel vers la mort.(...) Non pas origine, mais commencement; ou,
même, point ancestral du temps.”
38
temporais, levando a uma pulverização do tempo. O autor cita Gaston Ba
chelard que, no livro Dialética da Duração, critica a concepção bergsonia
na da continuidade de um fluxo interno temporal. Para Bachelard, tal con
tinuidade não existe, devendo ser constantemente construída. Ele vai valer
se de um autor brasileiro, Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos, que, em 1931,
teria publicado um livro, intitulado A ritmanálise, propondo-se a pensar o
sujeito a partir de sua heterogeneidade rítmica.
O AT, assim, poderia ser pensado como “uma espécie de ritmanálise,
em que a cidade se oferece com seus milhões de ritmos, para que ritmos
estrambólicos e a-ritmias frágeis (...) não sejam sufocados, nem orquestra
dos, mas conectados, ou simplesmente possíveis.” (op.cit., p.68). O tempo,
então, é concebido como diferença e multiplicidade. Trata-se não apenas de
que o psicótico, na sua insubordinação contra o sentido e a velocidade ha
bitual dos fluxos urbanos, possa sobreviver na cidade, mas que lhe seja pos
sibilitada a manifestação de sua densidade singular, sendo necessário, para
isso, acompanhá-lo em seu ritmo descompassado.
39
cançar nessa experiência corre o risco de se traduzir na dimensão radical
do horror ou do fascínio (Rosane Ramalho, 1993). O uso da conjunção, neste
caso, não é de importância menor. Não se trata do ou presente no registro da
dúvida. Esse ou remete-nos a uma lógica de exclusão; lógica na qual o sujeito
mesmo se insere: ele está fora. No entanto, algum laço esse sujeito mantém,
podendo incluir-se através de uma condição polarizada: ele vive nos limites da
subjetividade moderna. Augusto (apud João Frayze-Pereira, 1997), ao esboçar
as transformações que advêm com a modernidade, traz a idéia de que a sensibi
lidade moderna estrutura-se entre o fascínio e o medo. Aqui, a preposição entre
cria um meio, define um campo tridimensional para o sujeito, no qual a con
junção e faz uma inclusão dos dois aspectos polarizadores. Junto com o at, o
sujeito vai percorrer o entre, pois, como coloca Miriam Chnaiderman (1991,
p.65), “só o entre torna possível a linguagem.” O acompanhante vai dar lugar a
essas conjunções ou preposições, ainda que as vivenciando corporalmente com
o seu acompanhado. Ele mesmo, o acompanhante, produz, de início, essa pon
te até que o sujeito possa constituí-la por si próprio.
Efeito contemporâneo de uma paisagem que já não se oferece mais
ao fundo, mas está ali à frente, interpeladora, a cidade lança o sujeito em
uma proximidade imediata ao mundo. Aos olhos do ensaísta Davi Arriguc
ci,9 “o encontro com a cidade é um encontro repleto de surpresas, é como
olhar através de um caleidoscópio: a cada virada, uma imagem distinta.” Co
nhecer a cidade, caminhar por suas ruas, explorá-la e se deixar tocar por ela,
é, com certeza, uma experiência que poderá fundar um lugar melhor para o
seu habitante. É esse o horizonte que guia o trabalho do at.10
função do trabalho de AT. Entendemos tal função na mesma perspectiva apontada em Freud
e em Lacan, quando situam como direção possível no tratamento da psicose a produção de
uma passagem ao público, conforme assinala Philippe Julien (1999:71): “Vejam o que a prá
tica analítica da psicose nos ensina: não procurem o êxito na vida privada com o psicótico,
vocês fracassarão. Estou de acordo com Lacan nesse ponto. É uma falsa separação, o psíqui
co de um lado e o social de outro. Alguém esta manhã falou de amizade com o psicótico. Eu
disse sim, mas justamente em função desta inserção social mais além da vida privada como
meio de compensação, de suplência para uma estrutura psicótica. É isto a cura . Eu posso
dar centenas de exemplos de fim de análise em psicóticos nesta direção que Lacan nos indi
ca: ajudar um psicótico numa participação social e não se preocupar, nem se debruçar sobre
a vida privada, quer dizer, sobre o gozo fálico. Não é este o problema”.
40
ESPAÇO-TEMPORALIDADES
NO ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO
MANHÃS GAÚCHAS
Laura Lamas Martins Gonçalves
“Júnior, 37 anos, vive encerrado, com sua mãe, em casa, quase sempre em sua
cama, no quarto, olhar preso ao que mostra a tevê. Na sua casa não há relógios.
O tempo se marca pelos ritmos biológicos, a batida do coração, o arfar da respi
ração, e pelo ‘plim plim’ da tela da tevê. O acompanhamento foi solicitado com
a intenção de trazer Júnior ao mundo, fora da concha materna, e retomar o vín
culo com o serviço em que se atendia e ao qual deixou porque não queria ter
médico e terapeuta ocupacional, mas amigos. Laura, a acompanhante, por mui
tas manhãs assistiu Angélica na tevê com Júnior antes que ele pudesse olhá-la
nos olhos, encetar uma conversa. Nunca saíram à rua. Apenas puderam chegar
à sacada, observar o movimento e sonhar com o dia em que seria possível des
cer à calçada. Laura ouviu confissões de Júnior, sempre sob a vigilância pesada
e aflita de sua mãe. Júnior pouco a pouco deixou que Laura fizesse parte de seu
cenário. Vindo de outro estado, intitulou seus encontros com Laura de ‘manhãs
gaúchas’, como um programa de tevê a que ele assistisse.”11
11O texto que abre cada uma das narrativas clínicas a seguir e sua conclusão foi produzido a
partir do vídeo a que se faz referência no capítulo sobre o dispositivo metodológico e que é
objeto de reflexão, mais adiante, no capítulo sobre a formação clínica. Encontra-se publica
do na revista Educação Subjetividade & Poder (Palombini, 1999a).
41
objetivo de lhe facilitar o estabelecimento de relações sociais através da sua
circulação pela rua e espaços públicos e possibilitar o seu retorno ao servi
ço. Para tanto, era esperado, do at, que pudesse introduzir-se como uma ter
ceira pessoa na relação entre Júnior e sua mãe.
Quando iniciei o acompanhamento, Júnior não estava em crise. En
tretanto, ele apenas saía de casa na companhia do irmão, negando-se a cir
cular sozinho comigo. Deixava-se ficar assistindo televisão, com as janelas
do quarto fechadas. Foi desse modo que vivenciou toda sua infância, ado
lescência e vida adulta, somando hoje trinta e sete anos “trancado” dentro
de casa e sem amigos (sempre que sua mãe saía à rua, ela fechava portas e
janelas, deixando Júnior à sua espera).
Nos primeiros encontros ele sequer me olhava, falando compulsiva
mente com o irmão, bombardeando-o de perguntas, sem me disponibilizar
qualquer espaço. Eu tinha a sensação de estar diante de um imã humano,
vendo-o grudado ou com o irmão ou com a mãe. Com o tempo, passei a
perceber que tudo o que ele me dizia gostar era exatamente aquilo de que
seu irmão gostava. Seu desejo parecia não ser outro senão o do irmão. Eu
os via como “colados”: Júnior espelho do irmão, que era toda a sua identi
ficação, restando, na relação com sua mãe, uma simbiose que parecia al
cançar o nível fisiológico.
Foi aos poucos, em meio a falas sobre super-heróis, diretores de cine
ma, países, carros e perfumes, que demos nossas primeiras risadas. Sem troca
de olhares, mas com cumplicidade. Nossos diálogos eram de perguntas e
respostas, sendo as minhas respostas um tanto compridas, devido à minha
ansiedade, enquanto as dele, curtíssimas, muitas vezes não passavam de
monossílabos. Entre “sim”, “não”, “gosto muito” e “gosto pouco”, fomos
descobrindo nossas preferências, e Júnior passou a me olhar.
Nossos encontros começavam no café da manhã e terminavam diante
da televisão. Quarto fechado, escuro, cheiro de mofo, cama em desalinho,
televisor ligado e nós de frente para a tela. Enquanto assistíamos desenhos
e o programa Caça Talentos da Angélica, ele perguntava-me sobre dife
rentes assuntos.
Certa vez, perguntei-lhe o porquê de tanta dificuldade em sair à rua e
por que não confiava em mim para pequenos passeios que fossem. Expli
cou-me que seu temor de sair devia-se ao medo da violência e que conside
rava qualquer saída uma grande exposição aos perigos da rua. Contou-me,
então, que ele e sua mãe haviam vivido uma trágica experiência, há cerca
42
de dois anos, quando ainda residiam em outra cidade, na ocasião em que
dois assaltantes invadiram a casa em que moravam e deram socos em sua
mãe, que ficou caída no chão. Seu maior receio era de que os separassem.
Disse que rezou muito para Jesus, e esse, atendendo seu pedido, enviou-lhe
um anjo que lhes salvou a vida e possibilitou que permanecessem juntos.
Em outra ocasião, estávamos eu, Júnior e sua mãe sentados na sala e,
depois de percorrermos os mais variados assuntos, principalmente sobre
comida (nosso assunto preferido!), ele falou sobre apelidos, dizendo que os
meus seriam Laurinha ou Laurita. Perguntou para sua mãe qual ela prefe
ria. Laurita. Rimos muito com a possibilidade de um apelido para mim. Fa
lou então de sua cor preferida, cor-de-rosa, e disse que sua mãe gostava do
verde. “São as cores da bandeira da Mangueira, que a mamãe gosta!”. Sejá
se desenhava um espaço para mim, era ainda tênue, pois os seus desejos,
suas preferências, suas palavras, permaneciam presas de sua mãe. Diversas
vezes ela dirigiu-se a nós com perguntas sem outro propósito senão o de
interromper nossas conversas; outras tantas, tratou de responder às pergun
tas que eu dirigia a ele, o que me obrigava a reafirmar que Júnior e Guilher
mina não eram a mesma pessoa e que era com Júnior que eu estava conver
sando. Em outras ocasiões, ela ia até à sacada nos buscar, pedindo que en
trássemos às custas de quaisquer desculpas, ou, então, abria a porta do quarto
perguntando se não poderia ficar aberta, tendo eu de lhe lembrar que a con
versa era com o Júnior. De qualquer forma, conseguir acompanhá-lo até à
sacada ou fechar a porta do quarto foi uma conquista nossa. O avanço tor
nou-se evidente quando, em resposta a uma intromissão de Guilhermina no
quarto, perguntei a Júnior se sua mãe poderia ficar e tomar conhecimento
do que falávamos, e ele, encabulado, disse: “não”. Júnior dizia não para a
mãe, inaugurando um pequeno espaço seu, separado dela.
Sua vida esteve invariavelmente restrita a um pequeno apartamento, à sua
cama, à televisão e... ao corpo materno. O corpo de Júnior, seu espaço mais ín
timo, apenas ganhava espessura junto ao corpo de sua mãe. É no contorno des
ses dois corpos, unidos como se fossem um, que se desenhava o mundo interi
or de Júnior. Dois feitos um dentro de um apartamento que era todo o seu mun
do. Mundo no qual eu buscava encontrar alguma brecha, permitindo meu in
gresso como diferença a marcar alguma distância entre mãe e filho.
Na casa em que moraram a maior parte de suas vidas, comida, urina e
fezes misturavam-se. As janelas nunca se abriam, enquanto Júnior passava
seus dias deitado sobre a cama, sujo, barbudo e maltrapilho. Silvia Molina
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(1997) dá expressão teórica a esse quadro quando afirma que órgãos não
pulsionalizados não são capazes de fazer marca. A fome, os excrementos e
o ritmo biológico de Júnior estavam presos aos de sua mãe.
A porta de casa sempre bem trancada, as janelas igualmente fechadas,
não permitiam a entrada de luz nem de qualquer informação do exterior. Para
Júnior, não havia alternâncias: dormindo ou acordado, ele encontrava-se
mergulhado em um permanente abandono de sua individualidade, deixava
se cair em um espaço sem determinação, onde não se estabeleciam diferen
ciações. Instalado em sua cama – “centro de máxima proteção”, como afir
ma Bollnow (supra) –, Júnior passava os dias assistindo programas de tevê.
Eram os programas de televisão, desenhos e comerciais que pareciam mar
car, ainda que timidamente, o tempo de Júnior. “Manhãs Gaúchas”, nome
dado às manhãs de nossos encontros, inscrevia minha presença em seu
mundo televisivo. Se no começo do acompanhamento não fazia diferença
a minha ida a sua casa, no momento em que ele a nomeia, passa a fazer. Nela
eu tinha um lugar: conquistara um programa, um tempo e um espaço.
Passamos a jogar cartas, fomos ao cinema com seu irmão e estabele
cemos uma confiança maior. Certo dia, ele colocou uma música para tocar,
em um volume bastante alto, dizendo: “Gosto de músicas tristes, elas têm a
ver comigo, gosto dessas músicas. Gosto também de Roni Von e a música
Vida que diz ‘perdi minha vida trancado em um apartamento; marcas da
minha adolescência...’, é muito bonita...”. Júnior falava-me de sua vida, tra
zendo sua história e o modo como a vivenciava. Certamente outro avanço,
mas, no entanto, era tudo muito devagar, quase parado. Nossas conversas
perdiam-se de uma semana para outra. Eu me assustava com seu movimen
to em direção à morte, seu movimento negativo ou apenas lento. Por isso,
em muitas situações lutei contra o sono que despertava em mim seu quarto,
sua casa. Lutei contra a monotonia, contra a mesmice, o tédio e a morte.
Meu tempo é baseado no relógio, na correria da rua, nos diversos com
promissos, na pressa de aprender e viver: o tempo do imediato. O tempo de
Júnior era sem medidas nem limites; parecia parado, ou solto, sem referên
cias. Júnior podia falar das cavernas e planetas, da pré-história e do futuro,
utilizando-se apenas de sua “máquina do tempo”. Passado, presente e futu
ro nunca se delineavam claros em seu discurso e, por vezes, pareciam uma
coisa só. Navegar no tempo com Júnior teve como objetivo possibilitar-lhe
uma ancoragem em algum momento de sua história, propiciar novas cone
xões a partir da nossa interação, nascentes de um tempo que passasse a ser
entendido como diferença e multiplicidade.
44
Para isso, foi preciso abrir mão dos lemes de meu próprio tempo: dor,
medo e angústia eram sentimentos que costumeiramente me acompanha
vam. Por se tornar intensa demais a aventura de mergulhar em uma tem
poralidade outra, pelo medo de ser engolida por suas ondas e naufragar
com Júnior, eu, muitas vezes, precisei subir à tona, respirar e tentar trazê
lo junto comigo.
Foi dito acima que o eu apenas pode surgir a partir de uma relação que
sustente descontinuidades, espaços vazios, diferenças. Como at, minha fun
ção era fazer despertar, inaugurar um tempo e espaços novos, recriando essas
diferenças. O mundo de Júnior era aquele que o cheiro, o olhar, a presença de
sua mãe delimitava; encerrava-se entre as paredes de seu apartamento, na
quietude do quarto, na indolência da cama. Para além das paredes, da quietu
de, da indolência, apenas o abismo; não havia pontes que permitissem a tra
vessia para o mundo exterior, sustentando o trânsito entre o fora e o dentro.
Eu cumpria, então, a função de externo, alguém de fora que se introduzia en
tre Júnior e sua mãe, tentando fazer marca, ponte, âncora que lhe permitisse
lançar o olhar na direção de um mundo mais amplo. No final de nosso acom
panhamento, apesar de não termos saído sozinhos à rua, descemos até a cal
çada do edifício, eu, Júnior e sua mãe, e isso foi um grande acontecimento.
Da sacada à calçada, fomos juntos enfrentar o mundo, olhar a rua e retornar
ao apartamento. Do meu primeiro desejo de passear com ele pela cidade e,
quem sabe, responder à demanda do serviço de fazê-lo retornar para lá, a cal
çada do seu edifício, na companhia de sua mãe, foi o mais longe que alcança
mos. Contudo, ao longo dos meses, foi-se construindo um tempo e um espa
ço em que Júnior tomava a palavra, trocava idéias, expressava seus sentimen
tos, em que era possível fechar a porta do quarto, deixando sua mãe de fora,
marcando uma separação. Podíamos ter nossas “Manhãs Gaúchas”.
45
casa de Luciane, Paula precisou mostrar à mãe de Luciane que ela era uma,
una, inteira, fora dela. Paula fez função de terceiro em uma relação a três ge
rações: ao gestar um bebê, Luciane refazia seu lugar de filha, pela interven
ção de Paula junto à sua mãe.”
46
redes institucionais. É um espaço do imponderável, onde ritmos diferen
tes dialogam e caminham juntos: o do acompanhante e o do acompanhado.
Falamos, então, de uma necessidade de fundar um tempo e um espaço do
AT, na constante tensão entre o tempo e o espaço na psicose e aqueles pró
prios à neurose.
Inúmeros teóricos se debruçaram sobre as relações entre tempo e es-
paço. Para a psicanálise, conforme o viés que fundamenta este trabalho, o
que se coloca em questão não é a natureza em si dessas medidas, mas a re-
lação particular que estabelecem com cada sujeito. Isso equivale a dizer que
tempo e espaço interessam na medida em que participam da produção ou
do esfacelamento do sujeito, da produção ou anulação de sentido (Gondar,
1995). À Luciane, faltava uma amarra de significados, uma ficção habitan
do um espaço e ocupando um tempo. Ao at, cabia escrever com ela uma
história que pudesse ser contada, imaginada, alterada. Trabalho árduo de
construir com o sujeito algo de uma constituição psíquica.
Iniciamos este texto “entrando na casa”. Retornemos, pois, a ela. Por
onde se passa, tudo é muito pequeno, apertado e, mais que isso, “misturado”,
fusionado. Em um dos dois quartos dormem de quatro a cinco pessoas. O outro,
reservado a Luciane, é uma parte “anexada” à casa. Faz e não faz parte do
conjunto. É um apêndice. Um estorvo. Materialização do lugar subjetivo que
lhe é destinado: o que se rejeita, mas do qual, paradoxalmente, não se pode
efetivamente desgrudar, já que, separado, não constitui vida própria.
É nesse lugar que encontrei Luciane ao se iniciar o acompanhamento.
Com temor mortífero da mãe, não conseguia olhá-la nos olhos. Não reagia
às suas agressões, mesmo estas dizendo respeito à sua condição de pessoa
e futura mãe. É com propriedade que nos remetemos à idéia do desejo do
Outro como fundamental para a instauração de um lugar simbólico. É pre
ciso que o mesmo seja permitido na linguagem. Para Luciane, restava o lu
gar muito bem sedimentado de apêndice: ao mesmo tempo em que não faz
parte do todo, é extremamente colado a ele. Marília, a mãe, mantinha a fi
lha bem perto, o suficiente para, logo em seguida, rechaçá-la, impossibili
tá-la como sujeito. Não havia, pois, desejo dirigido a alguém, mas deman
da de um objeto voltado à satisfação da mãe.
Entre mãe e filha criava-se um circuito retroalimentativo, do qual a
resultante era um corpo que não pertencia nem a Luciane nem a Marília,
que estava sempre na fronteira do eu-não eu, tomando o corpo do Outro
como sua referência. É assim que Marília, em um momento crítico do AT,
47
trava uma séria discussão com Luciane, atribuindo, como, aliás, constan
temente fazia, seus próprios insucessos à filha. Culpava Luciane por ter
sido ela, Marília, abandonada por seu marido. Não conseguia arrumar
emprego porque Luciane existia. Era infeliz por causa de Luciane que tam
bém era acusada de ter “dormido” com o seu “homem”. Mãe e filha for
mavam uma díade inseparável. À Luciane cabia a parte que não prestava,
aquilo que era louco.
A mãe, então, não podia desligar-se desse corpo de ficção e tomava o
de Luciane como se fosse seu. Não tendo reconhecido a filha como dife
rente de si, não podia permitir que Luciane assumisse o corpo imaginário
como seu. Conseqüentemente, não havia investimento e ficava barrado o
desejar. Enquanto Luciane não formulasse um desejo, apenas colando-se na
mãe para existir, cabia a Marília o seu poder sobre ela. Essa mãe, a quem
parecia nada faltar, adiantava-se a toda possibilidade de demanda que pu
desse partir da filha. Luciane, tendo seu lugar na mãe, não reivindicava es-
paço para si como sujeito. Não sobrava espaço para o seu desejo. Toda pos
sibilidade de desejar para além do que a mãe desejava era vetada por esta,
que vinha ocupar um lugar imaginário castrador. Nesse medo de desejar,
peculiar à psicose, impedia-se, mesmo, a própria articulação de um desejo.
O espaço que sobrava era para Nara, irmã de Luciane. Em dado mo
mento do AT, Marília chega com um álbum de fotos, dizendo: “são fotos da
Nara”. E eu vislumbrava, em minha frente, Luciane estampada na grande
maioria das fotos. A mãe apagava-lhe a existência. Mais uma vez restava
lhe um pedaço na cena do outro, no instante do outro. O único espaço pos
sível a Luciane advinha da colagem. Era assim que se colava na mãe e, tam
bém, em Nara; que as suas fotos eram as de Nara; que seu filho, como su
geriu em um de nossos encontros, caso fosse homem, deveria chamar-se
como o de Nara; que sua própria filha, ao completar um mês, parecia-se com
Nara, segundo Marília.
Luciane, em meio a todas essas representações que a asseguravam cada
vez mais no seu lugar de apêndice, apagava-se como sujeito. Recolhia-se à
casa e, assim, cumpria o papel que lhe cabia: o da boa filha e da boa irmã,
que se rendia à loucura para que a matriarca não enlouquecesse e que se fa
zia vítima da clausura para que Nara pudesse transitar no fora. A casa engo
lia Luciane, matava-a como sujeito. Era o representante da mãe, o “mons
tro devorador”. Era, de longe, o inverso do aconchego. Não acolhia, como
se poderia supor; enclausurava. Criava amarras que desenhavam um retra
48
to fiel do cárcere. As janelas fechadas sugeriam o não-contato com o mun
do; o cachorro bravo demarcava a dificuldade de transitar entre o fora e o
dentro. De que se queria proteger? Quais ameaças a rua provocava?
Em uma condição de alteridade, eu, como at, ingressei feito intrusa
na casa, mas, aos poucos, o trânsito entre o dentro e o fora permitiu um ha
bitar a cena e um retirar-se dela no momento adequado. Eu passaria a teste
munhar os momentos de Luciane. Oferecia-lhe o meu olhar e ela autoriza
va-se, mesmo que de forma muito tímida ainda, a se olhar através dele. Há
uma passagem em que Luciane e eu dirigimo-nos, sem nenhum objetivo
definido, ao Teatro Renascença onde fomos até a biblioteca. Lá, folheamos
livros sobre gravidez e, em um deles, havia um esquema mostrando as di
ferentes etapas de desenvolvimento do feto durante a gestação. Apontando
para as gravuras de bebês de oito para nove meses de gestação, Luciane
exclamou: “está bem inteirinho”. Disse-lhe que era assim que estava o bebê
dela. Luciane, admirada, continuou a folhear o livro. Brincamos de imagi
nar onde estaria o bebê, por onde “sairia”. Divertimo-nos muito e, em meio
à surpresa e aos risos, tive a impressão de que, pela primeira vez, Luciane
compreendia o sentido de estar grávida. A materialidade de que se constituíam
as fotos sustentou para Luciane um imaginário que, em seu psiquismo, não
encontrara registro. Sustentou-lhe, ainda, um lugar.
O trabalho de AT, então, ganhava consistência como elemento possi
bilitador da conquista de novos espaços. A minha presença como acompa
nhante, as interpretações em ato, pareciam sustentar e preservar um outro
espaço para Luciane. Até mesmo porque, ao transitar, o at não se propõe a
“conhecer lugares novos”, mas a reconhecer um só lugar, o primordial, o
lugar do desejo do sujeito. Por isso, circular, tal como o entendi no trabalho
com Luciane, não necessariamente supunha sair, atingir grandes distâncias.
Circular consistia em experimentar uma nova dimensão do desejo, em es-
tabelecer marcas, “demarcar o território”.
Passados alguns meses do início do trabalho, chegou o grande dia: o
nascimento de Bibiana, filha de Luciane. Operou-se uma mudança na sua
casa, com a chegada da criança, que foi acompanhada por uma outra, de cará
ter vivencial. A cama da mãe de Luciane, que antes lhe trancava a passagem
de seu quarto para a sala, agora colocava-se entre seu quarto e o berço da
filha. Luciane, que sofria com os desafios da própria mãe desde os tempos
da gestação, sendo por ela destituída do papel de mãe, deparou-se, então,
com um impedimento real: a cama da mãe.
49
O momento do AT, contudo, era outro. Luciane iniciou um lento pro
cesso de aproximação em relação à filha, processo constantemente desau
torizado por Marília. Ela parecia, entretanto, começar a reagir às ofensas
da mãe sob a segurança do meu olhar. Eu, por outro lado, passei a operar
cortes em Marília. Sentia-me colocando os limites entre mãe e filha, ofere
cendo-me como terceiro na relação diádica. A casa vai sofrendo outras mu
danças ao longo do trabalho. As janelas, sutilmente, e por insistência do AT,
começavam a ser abertas. Podia-se ver um faixo de luz tímido entrando pela
sala empoeirada. Por que essa abertura? Porque Bibiana precisava pegar sol.
Porque Bibiana, que não se tornou mais um apêndice de Marília, precisava
respirar, experimentar o mundo e ocupar o seu espaço.
Assim, primeiro pela via do AT e, depois, por intermédio da filha, Lu
ciane passou a dirigir falas, sentimentos, atos à mãe. Vislumbrava alguma
possibilidade de se ausentar do lugar de “parte”, único permitido até então.
Ela passou a poder ver a própria mãe como diferente – diferente dela? Esta
belecia-se a criação em ato da separação do corpo materno, mesmo que o
fantasma da mãe retornasse. Foi assim que, certo dia, saindo para o shop
ping comigo e com a filha, Luciane disse, ironicamente à Bibiana: “Se a tua
avó não te leva pra sair, a mamãe te leva, né”. E em outro momento: “Larga
essa tua avó feia, vem com a mãe.”
Podemos pensar que, a partir de um valor – valor fálico – estabelecia
se uma identidade: o ser mãe. Pois é só a partir de um posicionamento em
um lugar diferenciado, valorizado, de sujeito, que se podem construir as
medidas das coisas, as marcas espaciais e temporais, por exemplo. O papel
de Bibiana não se deteve, contudo, à inauguração de um novo lugar para
Luciane, a partir do qual poderia haver um desdobramento para diversos
espaços, novas conquistas, vivências. Bibiana veio estabelecer, na história
de Luciane, uma marca temporal. Uma marca nesse tempo contínuo, nessa
história em que nada recebia importância ou pontuação.
Certo dia, na casa de Luciane, propus que fizéssemos uma “linha do
tempo” de sua vida. Ficamos durante muito tempo olhando para o papel com
um risco nele traçado. Nada parecia poder preenchê-lo. Até que o vazio de
significação foi interrompido por um evento: o dia do aniversário de Bibia
na. Era como se o nascimento da filha marcasse o nascimento da própria
Luciane em sua identidade de mãe e em seu reconhecimento de ser filha,
diferente da própria mãe. No álbum de fotografias mais um nome teria de
ser escrito na lista das personagens.
50
Dessa forma, perante a situação de apagamento subjetivo, Luciane
perfurava uma brecha. Dizia o quanto era possível ocupar um espaço e o
quanto poderia estabelecer marcas temporais. Dizia o quanto era possível
desejar. Durante o percurso do AT, foi-se construindo pequenos registros em
Luciane, ainda que por intermédio de Bibiana. O ritmo biológico da filha
imprimiu referências temporais para Luciane: a fome/hora de dar mamadeira;
o sono/hora de colocar para dormir; o funcionamento orgânico/hora do ba
nho, de trocar fraldas... Dessas marcas, destacava-se a mais fundamental: o
momento do nascimento como marca psíquica e inauguração de algo da
ordem do sujeito por excelência.
Aproximava-se o final de nosso trabalho. Um momento de despedida.
Luciane vinha apresentando preocupações como arrumar emprego para si e
uma creche para Bibiana. Eu voltava meu olhar para o longo caminho trilha
do em nosso percurso, a passos persistentes e cuidadosos. As evoluções ou
qualquer espécie de movimento durante o acompanhamento eram muito in
tensas, mas lentas também; respeitavam o tempo de Luciane. Um tempo com
o qual muitas vezes era difícil a convivência; ao qual, em inúmeros momen
tos, tentei sobrepor o meu tempo. O choque entre a minha relação com a di
mensão temporal e o tempo vazio vivenciado por Luciane exigiu de mim, at,
uma elasticidade bastante grande. Muitos inícios, meios e fins tentei costurar
com ela para poder pensar em uma sustentação de outra temporalidade.
Dois meses antes do final do acompanhamento, presenteei Luciane
com uma agenda. Dei-lhe o presente em uma de nossas saídas, dessa vez à
Feira do Livro. Após ensiná-la a utilizar a agenda, perguntou-me se não
poderia registrar nosso passeio na nova aquisição. Luciane solicitava a ins
crição daquele nosso momento no tempo; na verdade, não apenas daquele
momento. Era como se pedisse um sinal do acompanhamento. Marcas de
uma história que, agora, podia ser contada.
51
Valendo-se da presença de Ernesto, sai às ruas para transgredir as proibições
familiares: cachorro-quente, sorvete, vídeo-game, revista pornográfica, são
objetos de um desejo furtivo, que não vigora. Logo a vontade esmorece e Luiz
recolhe-se à sua cama, encolhe-se debaixo dos lençóis, evitando a presença
viva de Ernesto. Mas, naquela morada de morte, Ernesto escuta o delírio de
Luiz, os queixumes de sua avó. Dirige a palavra à sua mãe e escuta sua deses
perança. Com gestos, com palavras, com gana, Ernesto agita o pó que cobre
aquela casa, aqueles corpos, ainda que seja para, impotente, ver em seguida o
pó novamente depositar-se quieto sobre as mesmas superfícies.”
52
Já no primeiro encontro em sua casa, Luiz logo manifestou sua dis
posição em sair comigo, o que foi, para mim, uma agradável surpresa,
fruto da transferência estabelecida no espaço e tempo da sua internação.
Fomos até uma agência do correio para postar as cartas que, naquele
mesmo dia, em minha companhia, quis escrever a amigos antigos. Pare
cia que iniciávamos bem nosso trabalho. Essas saídas mantiveram-se por
longo tempo. Luiz sempre propunha um lugar diferente para irmos.
Muitos eram completamente novos para mim e, assim. conheci um pou
co mais de Porto Alegre.
Pouco a pouco, Luiz deixava o mundo estreito em que vivia, para ocu
par um mundo maior, mais amplo. Isso implicava ultrapassar as barreiras
que sua família lhe impunha e que o impediam de se movimentar livremen
te pela cidade. Luiz jamais ficava sozinho em casa nem estava autorizado a
sair desacompanhado. Sua mãe apenas deixava a casa quando a avó chega
va para tomar conta do neto. O vigiar era incessante. Seu espaço vivencial
via-se tolhido, apertado.
Luiz lutava por um espaço seu, buscava brechas, como na vez em que,
em um vacilo da vigilância de sua avó e mãe, enfiou no bolso uns trocados
que haviam sido deixados sobre a estante da sala e correu até a esquina para
comprar um cachorro-quente. Tendo realizado seu intento, retornou em se-
guida à casa. Esse gesto mínimo era de uma magnitude incalculável para Luiz,
pois continha toda a potência de sua vontade de viver para além do espaço
exíguo que sua família lhe concedia, para além das paredes do seu quarto. As
paredes daquela casa eram silenciosas, úmidas e sufocavam em um abraço
todos que ali viviam. As paredes que cercavam Luiz em seu quarto o lança
vam em uma asfixia de morte. Seus frêmitos de vida, no entanto, eram vistos
pela família como impertinências, as quais era preciso repreender e proibir.
Em outra ocasião, Luiz, aficcionado por música, propôs que fôssemos
até uma rádio local. A caminho, era ele quem me guiava, sabendo exata
mente o ônibus que nos deixaria em frente à Rádio e onde é que o tomaría
mos, demonstrando perfeito domínio do mapa viário da cidade. Dentro do
ônibus, estava bastante excitado, desfrutando com prazer de todo o trajeto.
No estúdio, olhava, atentamente, tudo e todos. Ninguém nos deu muita aten
ção, mas Luiz, visivelmente satisfeito de estar ali, sorria, interessado por
todos os movimentos que ocorriam. Quando havia troca de música e o DJ
aumentava o som, deixando-o no seu volume máximo, Luiz parecia redo
brar sua satisfação; olhava-me e sorria. Pude entender que ali, naquele es
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túdio, Luiz vivenciava, de forma compartilhada, seu próprio delírio, encon
trando maneira de encarnar o homenzinho que diz habitar a caixa de som
de seu quarto. A cidade, neste sentido, vem oferecer ao psicótico os supor
tes materiais que dão corpo à sua produção delirante.
Em muitos outros momentos, porém, Luiz deixava-se ficar em seu
quarto, deitado na cama em posição quase fetal, sempre coberto, fizesse calor
ou frio. A janela permanecia fechada, como de hábito. Dentro do quarto não
era possível distinguir o dia da noite; o tempo deixava de existir.
Aristóteles e Hume, em suas reflexões filosóficas, tecem considera
ções sobre o tempo que remetem a essa ausência de marcas temporais na
vida de Luiz. O primeiro afirmava que o tempo não existe sem a mudança,
enquanto o segundo dizia que, quando um homem dorme profundamente
ou está fortemente ocupado com um pensamento, fica insensível ao tempo,
pois não percebe as mudanças ao seu redor (Fraisse, 1957).
Com efeito, naquela casa, o tempo parara. Luiz morava nela sem que
nesse morar estivesse implicada qualquer dimensão temporal. Sempre absor
to em seus próprios pensamentos, não fazia registro da passagem do tempo,
vivendo uma espécie de inércia sepulcral. Sua avó, com quem ele invariavel
mente passava as horas do dia, já não se ocupava de celebrar os ritmos de um
tempo socialmente compartilhado. Certa vez, quando Luiz, finalmente toca
do por minhas palavras, deixou a cama em que se encontrava em estado qua
se exânime, foi direto à sala e pediu à sua avó seu almoço, pois estava com
fome. Eram dez horas da manhã. Sem pôr em questão o fora de hora daquele
pedido, a avó prontamente dirigiu-se até a cozinha, esquentou um prato de
comida e lhe serviu. Sem as marcas da sociabilidade, com a conivência de
sua avó, o tempo de Luiz tornava-se o de seu estômago.
Essa inconsistência temporal transparecia seja nas relações familiares,
seja no modo de organização dos móveis e utensílios da casa. Um exemplo
é o papai noel made in China, que eu podia ver, a cada visita, desde maio,
sobre a estante da sala, dentro de sua caixa – nem mesmo em dezembro foi
desencaixotado. Uma data culturalmente importante como o natal aparecia
retratada por aquele boneco, mas não encontrava registro temporal. A pre
sença continuada do papai noel dissolvia seu significado entre tantos obje
tos parados. Não se comemorava o natal. Não havia memória a pontificar o
tempo. Isso refletia-se diretamente em Luiz.
Após alguns meses de muitas incursões pela cidade, Luiz iniciou um
processo de ensimesmamento, recusando sair à rua e, dentro de casa, evi
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tando qualquer movimento. Não queria mais cachorro-quente, fone de ou
vido ou visita às rádios da cidade. Não queria nem mesmo ouvir música,
algo que lhe era tão caro antes.
Luiz parecia ter abdicado de lutar por um lugar, ampliar seus horizon
tes. Reduzido ao quase “não-lugar” que sua família lhe reservava, ele vol
tava-se para si mesmo, entregue à vivência alucinatória e delirante de um
espaço não compartilhado. O AT chegava, então, ao seu término. Retornei
ao meu mundo, com sua rapidez e seus movimentos incessantes, após ter
experimentado coabitar o de Luiz que, no entanto, apesar dos rasgos de vida
que partilhamos, permanecia preso à sua cama, espaço quase sepulcral que
somente ele habitava, seu único porto seguro.
Na casa de Luiz, a poeira acumulava-se pelos móveis. Os objetos es-
tavam, invariavelmente, fora de seus lugares, se é que tinham lugares. No
seu quarto, imperava a desordem. A pintura da parede, descascada, deixava
à mostra várias camadas de tinta. O armário não fechava e, em sua volta,
encontravam-se caixas de todos os tamanhos, repletas de utensílios, como
se houvessem se mudado há pouco ou estivessem às vésperas de uma mu
dança. Havia fitas-cassete espalhadas pelo chão e o aparelho de som estava
quebrado. Nada parecia ter importância e Luiz era apenas mais um objeto
em meio ao caos.
Recentemente, soube que, orientado pelo serviço em que é atendido,
Luiz deixou a casa materna, passando a viver em uma pensão. Quem sabe
ele possa ter encontrado nela mais do que uma cama como refúgio.
55
Quando, em abril de 1998, em nosso programa de estágio, começa
mos a receber as indicações para AT, um dos primeiros casos apresentados
foi o de Alessandra. Durante muito tempo questionei o motivo que me le
vou a escolher acompanhá-la. Sei que, desde o princípio, senti-me captura
da pelas incertezas que rodeavam a sua história e o fato de se tratar de uma
adolescente certamente fez me sentir mais segura. Ainda assim, apesar de
todas as hipóteses consideradas, penso que a minha ansiedade em iniciar o
trabalho como at teve papel determinante nesse momento inicial.
Meu conhecimento prévio sobre Alessandra resumia-se às informações
do prontuário, que, em termos de história pregressa, era muito vago, e aos
relatos de sua terapeuta ocupacional. Alessandra me foi apresentada como
uma adolescente “retardada”, desocupada, insolente, irritante. Minha mis
são: dar limites a sua conduta inadequada. Em outras palavras, ocupar o papel
de educadora da menina mal-comportada. Somente com o passar do tempo
é que pude realmente dimensionar o significado da expressão “dar limites
a Alessandra”.
O discurso que me foi apresentado acerca de Alessandra foi compon
do em minha cabeça a imagem cinematográfica de uma adolescente prosti
tuta: muitos exageros na maquiagem, roupas justas e chamativas e uma ati
tude provocante. Não estou certa de como cheguei a essa imagem, mas cer
tamente estava relacionada a sua história de fugas e promiscuidade. Con
fesso que, inicialmente, tive dificuldade em imaginá-la com apenas quinze
anos, tendo em vista sua conduta sexual. O fato é que carregamos conosco
nossos valores e preconceitos; não conseguir flexibilizá-los pode se tornar
um grande empecilho para o trabalho de AT.
Foi com essa imagem fragmentada, em parte reconstituída e em parte
criada por mim, que iniciei o segundo passo da minha investida como at:
conhecer pessoalmente Alessandra. O tão esperado primeiro encontro foi
marcado pela profusão de sentimentos, pelo esfacelamento de falsas impres
sões, pela criação de outras tantas, enfim, pelo impacto que provocou o con
fronto entre a realidade e a imaginação. Percebi, quase imediatamente, que
Alessandra era apenas uma adolescente tentando parecer uma mulher. Da
mesma forma, sua madrinha e ela constataram, talvez um pouco decepcio
nadas, que eu não era uma psicóloga “madura”, mas apenas uma estudante
nervosa e sorridente. No final das contas nenhuma de nós era exatamente o
que a outra esperava.
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Desde o primeiro contato, Alessandra observava-me atentamente, há
bito que persistiu no curso de nossos encontros. A primeira conversa foi
bastante difícil, repleta de comentários hostis, atitudes de descontentamen
to e revolta. Produziu em mim um sentimento de raiva, pelo desmerecimento
evidente das minhas incansáveis tentativas de aproximação. Aprendi, mais
adiante, que a hostilidade era apenas a sua forma de lidar com as pessoas,
protegendo-se de qualquer relacionamento próximo e significativo.
Alessandra era, para mim, um território estranho a ser desvendado. Eu
me aproximava cheia de dúvidas, medos e tabus. Depois do primeiro encon
tro, a primeira visita à casa de Alessandra; senti-me absolutamente constran
gida nessa investida sobre território estrangeiro. Alessandra dividia o aparta
mento de um quarto, no centro da cidade, com mais quatro pessoas: a mãe, a
irmã mais nova, a “dinda” e um sobrinho desta. Sem desconsiderar o contex
to socioeconômico como determinante de um certo modo de habitar, o que
mais chamava atenção na organização dos espaços da moradia era a falta de
delimitação entre suas peças. Quarto e sala misturavam-se, havendo camas
na sala, sofá no quarto e cadeiras da mesa de refeições por toda a casa. Da
mesma forma o guarda-roupa único, compartilhado por todos, não contava
com nenhum tipo de organização ou separação dos seus espaços internos.
Apossibilidade de construir uma identidade singular, diferenciada, em
um lugar onde tudo é de todos e nada é de ninguém, parecia bastante difi
cultada. A saída encontrada por Alessandra para se reconhecer nesse ambien
te foi justamente se espalhar pela casa, tanto concreta como psicologicamen
te, ocupando todos os espaços disponíveis. Há pertences seus, propositada
mente, por toda parte. Por onde anda, deixa marcada sua presença, de ma
neira que os demais estejam sempre em contato com ela, porém, a conse
qüência mais clara dessa falta completa de privacidade está na impossibili
dade de Alessandra constituir algo que seja seu. Nem mesmo seus pensa
mentos mantêm-se privados. Esse movimento é tão intenso em Alessandra
que cheguei a formular a hipótese de que aquilo que não é lançado ao mun
do, dividido, não é considerado por ela como real, o que me faz considerar
que a legitimação de sua existência não está internalizada, tendo de ser re-
forçada pelo outro repetidamente.
A vida de Alessandra dá-se em ato, sem discriminação entre o que lhe
pertence e aquilo que pertence ao outro. Não há respeito a fronteiras ou bar
reiras que se interponham em seu caminho. É certo que Alessandra carrega
consigo uma marca muito forte de transgressão de limites, não porque deixe
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de reconhecê-los, mas, primordialmente, porque não os considera como seus.
Alessandra age como uma criança pequena que explora o mundo através
da ação sobre ele e que, entre uma brincadeira e outra, esbarra com uma
proibição, com um limite que vem de fora. Ainda como uma criança, ela
tende a transgredir essa proibição, em uma tentativa de lhe atribuir um sen
tido próprio.
Nessa perspectiva, podemos pensar a dificuldade de Alessandra em
diferenciar exterior e interior pela falta de constância desses elementos em
sua vida cotidiana. Se a porta da casa é uma via de passagem, articulando
espaço interno e mundo exterior, ela possibilita que o indivíduo exerça sua
liberdade de se lançar ao mundo ou não, permitindo o trânsito entre o seu
ambiente familiar, do qual se esperaria proteção e tranqüilidade, e o exteri
or, que representaria o desconhecido. De certa forma, é através da porta de
casa que nos asseguramos de que há um lugar que nos pertence e ao qual
podemos retornar.
Na casa de Alessandra, a porta não representa essa via de comunica
ção, mas uma proibição. A porta deixa de existir em prol da liberdade de
escolha do indivíduo, funcionando como marca de um aprisionamento. O
ambiente que deveria acolher, aprisiona, e o desconhecido, que supostamente
traria perigo, lança um apelo irrecusável. Sem possibilidades de ser dentro
de casa, Alessandra foge à procura daquilo que lhe falta. Ela busca invaria
velmente fora de si o que precisa, porém, como não reconhece a sua exis
tência, não é capaz de definir o que busca e, por isso, suas fugas não são
mais do que um perambular sem sentido, no movimento incessante de pro
curar e não achar.
A busca por algo que está fora é característica não somente de Ales
sandra, mas também de sua família. Quando passei a freqüentar sua casa,
era sempre tratada com distinção, recebia a melhor caneca de chá, os me
lhores biscoitos, a melhor poltrona. Com o passar do tempo, ficou claro que
tal distinção não dizia respeito à boa educação, mas ao lugar que me era re-
servado dentro do sistema familiar: o de quem tem o poder sobre tudo aquilo
que está “errado”. Em muitos momentos, fui expressamente solicitada a in
tervir em situações domésticas familiares.
Durante meses, eu e Alessandra encontramo-nos em sua casa, sem
nunca sairmos juntas. Não por falta de oportunidade, mas por não me sentir
segura de levá-la para a rua, e ela, por sua vez, não demonstrava o menor
interesse em, de fato, fazer alguma coisa comigo. Foi um período marcado
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por grande ansiedade, na medida em que Alessandra mantinha-se firmemente
determinada a minar meu entusiasmo. Via de regra, eu chegava à sua casa
com alguma proposta de atividade, ela dizia algo que me agredia e eu me
sentia desmotivada, deixando-me permanecer imóvel, paralisada. Assim era
sempre ela que determinava o que iríamos fazer. Às vezes permanecíamos
quietas, em silêncio; às vezes dedicava-se a me provocar, e em outras, ain
da, contava, de forma desconexa, episódios de sua vida. Através do relato
desses episódios, ainda não endereçados a mim, uma história de vida foi se
constituindo, fragmentada, desvendada aos poucos.
A partir desses encontros, vi-me confrontada com a especificidade do
tempo na vida de Alessandra e pude perceber o quanto isso vinha influencian
do nossa relação terapêutica. Meu tempo – lógico e controlado – pouco ti
nha a ver com o de Alessandra – desconexo, às vezes frenético e descom
passado, às vezes lento e inexpressivo. Seu tempo era feito de instantes,
momentos sempre atuais que não se organizavam cronologicamente. Ales
sandra parecia viver apenas no presente, sem marcas de um passado ou es-
peranças de um futuro. Seus instantes pareciam ir se acumulando pouco a
pouco, até se confundirem completamente, como um quadro-negro que re-
cebeu inúmeras inscrições sem nunca ter sido apagado.
Boa parte de minha dificuldade inicial com Alessandra teve a ver com
a impossibilidade de adaptação a esse outro tempo. Era preciso desfazer
me de uma referência pessoal extremamente arraigada para que essa adap
tação pudesse efetivamente ocorrer.
Por me sentir paralisada, acabei permitindo que Alessandra tomasse
conta de nosso momento e dispusesse dele como bem entendesse. Hoje, po
rém, penso que, na verdade, não abri mão daquilo que era realmente o mais
importante: imprimir minha presença ali, tanto como um marcador de tempo
como de espaço, independente de qual fosse a atitude de Alessandra.
A sua primeira crise aconteceu em junho, pouco mais de um mês após
o início do acompanhamento. Posso dizer que fui pega de surpresa. O vín
culo entre nós, naquele momento, era ainda precário, e eu conhecia muito
pouco do modo como Alessandra relacionava-se com o mundo. Esse mo
mento de desorganização, ao mesmo tempo em que revelava a existência
de um descompasso entre acompanhante e acompanhada, vinha marcar o
nascimento de uma relação de maior proximidade.
Durante a crise, Alessandra intensificou sua revolta, tornando-se mais
agitada e irritante. Gritava com todos e passava os dias reclamando. Em casa,
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comia compulsivamente, dirigia ofensas principalmente à sua mãe e ao so
brinho de sua madrinha. Em nossos encontros, ignorava minha presença,
pulando freneticamente em seu quarto durante horas. No serviço de saúde
em que era atendida, destratava os funcionários, assim como os outros usuári
os. Por fim, em uma tentativa desesperada de fuga, Alessandra atirou-se de
uma janela, permanecendo imobilizada, com uma perna quebrada, em fun
ção da queda.
Com o limite colocado dessa forma tão real, Alessandra viu-se obri
gada a mudar de atitude. Já não podia fugir, pular ou mesmo agredir. Pare
cia assustada com o ocorrido, chegando a esboçar um pedido de ajuda en
dereçado a mim. Pude perceber, com esse episódio, o quanto sua vida psí
quica dependia do real, do ato, do concreto. O limite vinha de fora, direta
mente do outro; não havia simbolização possível.
Minha relação com Alessandra constituiu-se, de fato, a partir de então.
Foi o momento também em que pude entender quem era ela, como pensava e
de que maneira reagia às coisas que aconteciam a sua volta. Muitos aspectos
da sua vida familiar, então, vieram à luz para mim. Havia uma clara dissocia
ção da figura materna entre as duas mulheres que exerciam, para ela, o papel
de mãe: por um lado, a Dinda, que cuidava, educava e dava limites; por ou
tro, a mãe, que, indiferenciada da filha, tomava-se cúmplice, acobertava e to
lerava suas transgressões. Essa dissociação era evidente em todos os aspec
tos da sua vida. Alessandra não sabia como estabelecer limites a si mesma ou
como agir de maneira adequada diante das situações. Não havia unidade, mas
fragmentos, retalhos que ela, sozinha, ainda não era capaz de costurar. Essa
fragmentação estava dada tanto na sua relação com o espaço que a circunda
va como na noção precária de tempo e causalidade de que fazia uso.
As idas e vindas pelas ruas com Alessandra surgiram como uma evo
lução natural no AT. Passamos muito tempo dentro de casa e só optamos
por sair quando nosso vínculo já estava solidificado. Foi, para mim, um gran
de passo. Sair significava bem mais do que atravessar o portão do prédio
em direção à rua; era um ato de responsabilidade, um compromisso que se
lávamos e, mais importante de tudo, uma entrega mútua.
Como todo o curso do acompanhamento, nossa ida à rua também so-
freu uma evolução ao longo do tempo. No início, Alessandra me testava, ia
adiante, esperava que eu chamasse sua atenção para só então retornar. Logo,
já não era preciso chamar-lhe a atenção. Alessandra afastava-se sempre que
sentia vontade e eu já não sentia a necessidade de trazê-la de volta – sabia
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que ela também não queria estragar o que havíamos conquistado. Criamos
um código próprio de convivência e passamos a conhecer os limites uma
da outra. Arrisco-me a dizer que se criou entre nós uma relação de cumpli
cidade única, livre das imposições, temores e antecipações de sua família.
Não fomos a muitos lugares juntas. Limitamo-nos aos arredores de sua
casa e aos shoppings centers da cidade. No início, eu ficava muito incomo
dada com a impaciência de Alessandra dentro dos shoppings. Ela se mos
trava incapaz de passear, olhar vitrines, apreciar o movimento. Andava rá
pido, quase correndo, dando milhões de voltas pelo mesmo lugar sem se
cansar com a repetição do cenário. Aos poucos, visto que seu pedido era
sempre de retorno ao shopping, busquei ressignificar aquelas paisagens já
tão óbvias e conhecidas. Depois de ter finalmente conseguido compreen
der e acompanhar o tempo de Alessandra, senti-me segura para trazê-la para
mais perto do meu tempo e espaço, fazendo com que se interessasse pelo
lugar em si, pelas lojas, pelas pessoas... Aos poucos, ganhei uma compa
nheira, que não mais andava na minha frente a passos largos, mas que se
guia comigo lado a lado. Eu fazia comentários sobre o que nos cercava, in
citava-a a olhar para frente, desgrudar os olhos do chão e ver o mundo. O
outro, isto é, o que se apresentava diante dela, ia ganhando, assim, um certo
contorno, diferença, sentido, valor.
Quando já estávamos caminhando para a reta final de nossos encon
tros, Alessandra sofreu uma nova crise, que culminou em uma internação
de quase um mês. Bastante debilitada pela crise e, principalmente, pela
medicação, Alessandra atravessou a internação sem resistência, sem rebel
dia, sem energia. Foi um período de suspensão no nosso vínculo e que fi
cou marcado como o início do fim, na medida em que tive apenas uma opor
tunidade de visitá-la. Chego a me questionar sobre a possível relação da crise
com a proximidade do final do AT.
O retorno para casa foi marcado por diferentes sentimentos: um alí
vio para a família que, em nenhum momento, sentiu-se confortável com a
internação; para mim, uma certa apreensão em relação ao novo momento
que se iniciava e, para Alessandra, acredito que tenha sido uma sensação de
reencontro com o inexorável, na medida em que seu comportamento a par
tir desse evento voltou a ser o de reclusão e indiferença em relação ao fora.
Nossa relação terapêutica não foi mais a mesma depois da internação
já que Alessandra mostrou-se irredutível na sua decisão de não mais inves
tir nos nossos encontros. Retornamos aos encontros em sua casa, ao discurso
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desconexo e descompassado, à atitude de indiferença e, às vezes, hostili
dade diante da minha presença.
O final de nossos encontros foi, afinal, muito parecido com o seu ini
cio, na medida em que me senti novamente impelida a fazer uso dos meus
próprios recursos, espaciais e temporais, para lhe marcar um fim. Entendo
que, diante da indiferença absoluta de Alessandra, o meu papel era seguir
imprimindo, através de minha presença e ausência, marcadores de espaço e
tempo novamente confundidos como no início. Sei que o fim foi marcante
para Alessandra. A impossibilidade de entregar as flores que comprou para
mim em nosso último encontro diz da sua forma particular de sentir e en
tender o percurso que realizamos juntas.
62
Meu pessimismo era justificado: o grupo de humoristas estava desin
tegrado na época. Nada mais lógico: não há Trapalhões, logo, não pode ha
ver filme novo dos Trapalhões. Até surpreendia-me que César, na ocasião
com dezessete anos, não procedesse a uma relação tão óbvia.
Em janeiro de 1999, prestes a encerrar o trabalho de at, fomos ao ci
nema. Assistimos ao filme dos Trapalhões. Sete meses depois de nosso pri
meiro encontro, César mostrava-me que seu desejo era possível. Encerrado
meu acompanhamento, compreendo que partilhávamos tempos distintos.
A psicanálise deparou-se desde sempre com a questão do tempo. Já
nos seus primeiros escritos sobre “lembranças encobridoras”, Freud ques
tionava-se acerca da falta de organização cronológica da memória. Lembran
ças eram recuperadas e reportadas na situação de análise em uma organiza
ção temporal arbitrária. O tempo inconsciente desrespeita a cronologia dos
fatos. Como observa Alfredo Jerusalinsky (1996), o tempo subjetivo não é
métrico, nem linear; ainda assim, respeita uma lógica – a da significação. A
César sempre pareceu faltar uma significação da rotina. Foi o que tentamos
construir juntos.
Como o tempo subjetivo não é cronológico, o homem constrói e re-
constrói a história de sua existência e de sua origem em forma de ficção,
como observa Ana Costa (1998). Não se trata, é claro, de afirmar que nossa
memória não guarda qualquer relação com a realidade. O que ocorre é que
não são os fatos em si que a determinam, mas como esses fatos são signifi
cados a posteriori.
Nebulosidade, nitidez, aparência banal – nada de específico parece
definir ou caracterizar uma lembrança importante, a não ser a significação
singular que lhe é atribuída. Não fazemos um registro neutro e objetivo da
realidade. Nossas percepções sempre associam-se a traços que constituem
nosso inconsciente, com um sistema significando o outro. A primeira mar
ca da memória vem da alienação da fala, da significação que outra pessoa
(função materna) atribui às manifestações da criança. Desde sempre, nosso
lugar no mundo é dado a partir da relação com o outro.
César, nas suas andanças sem rumo pelo Centro de Porto Alegre, pare
cia procurar um lugar distinto daquele que sempre lhe fora reservado. Peram
bulando pelas ruas, entre camelôs, bancas e pequenas lojas, comprava e co
mia compulsivamente – engolia o mundo, para não ser engolido. Fugindo de
seu diagnóstico, de sua deficiência, de um mandado orgânico, corria ao en
contro de seu sintoma e acabava no mesmo lugar, fadado a repetir.
63
Sempre que dispunha de algum dinheiro, César gastava-o imediata
mente. Eventualmente, usava fichas de ônibus como moeda, vendia obje
tos de casa sem autorização (mas com toda a permissividade da família) ou
coagia as pessoas para conseguir algo. Para isso, fazia uso da violência ou
de sua condição de deficiente. Quando em casa, devorava toda a comida
(sintoma também relacionado à Síndrome de Prader-Willi, da qual César é
portador e cujas principais características são apetite insaciável e aquisição
rápida de peso). Os únicos compromissos que cumpria eram as consultas
médicas e os ATs. Faltava freqüentemente à escola e ao trabalho, arriscan
do-se inúmeras vezes a perder vaga nas instituições. Diante dessa perspec
tiva, oscilava entre a mais absoluta indiferença ou a preocupação profunda.
Costumava mentir, a fim de criar situações em que pudesse gastar e
comer sem ser vigiado. Quando frustrado, mostrava-se furioso, tendo cri
ses violentas seguidas de delírios persecutórios em relação à sua mãe, a quem
já agrediu mais de uma vez. Apesar disso, a mãe de César (que chamarei
aqui de Maria) jamais cogitou internar o filho ou tomar uma atitude mais
drástica em relação ao seu comportamento. Repetia com ele a história que
viveu com seu ex-marido, um homem que descreve como extremamente
violento e que eventualmente a espancava. Afirmava com orgulhosa abne
gação: “agüentei tudo sozinha”.
De acordo com Maria, a doença de César era também herança pater
na. Em certo sentido, ela tinha razão, pois a Síndrome de Prader-Willi é um
problema genético situado no cromossoma masculino. Porém, mais do que
esse dado científico, interessa a apropriação feita dessa informação – a sig
nificação construída e transmitida a César através do discurso da mãe. Inte
ressa que lugar a fala da mãe reservou a seu filho. Durante o AT, interessou,
sobretudo, a possibilidade de reconstruir a história de César para além do
sintoma próprio de sua mãe.
César, muitas vezes, adquiria algum objeto para logo em seguida ven
dê-lo e comprar qualquer outra coisa que, por sua vez, também seria vendi
da – um moto-contínuo de compra e venda sem sentido, sem ligação, sem
qualquer pausa. Lembro-me em especial do período em que César esteve
afastado do trabalho. Dizia-me que não via a hora de voltar, ganhar seu sa
lário e comprar. Eu perguntava o que ele gostaria de comprar. César não
sabia. Para ele, “comprar” era um verbo intransitivo, tal como o verbo “de
sejar” é para a psicanálise.
64
A ação de César trazia prejuízos concretos a ele e sua família: preocu
pação com seus sumiços, perdas materiais, riscos de expulsão das institui
ções que o abrigavam. Esses dados, somados à atitude dedicada e colabo
radora de Maria, faziam com que a equipe técnica e eu combatêssemos os
gastos infratores de César. Para aliviar sua mãe, nossa preocupação foi, a
princípio, abafar seu sintoma em vez de escutá-lo.
Ao longo do AT, percebi que o que eu combatia, na verdade, era minha
angústia diante da errância psicótica de César. Aprendi com ele a suportar sua
própria incapacidade de suportar a espera. O tempo para César não tinha me
diações, era um continuum. Segundo o conceito de ritmanálise retomado por
Pélbart (1993), a partir de Santos e Bachelard, aprendi a adaptar meu ritmo
ao de César, etapa fundamental para o sucesso de qualquer at.
Certa vez, César apareceu em um de nossos encontros sem o dinheiro
que a mãe lhe dera. Havia comprado, mais uma vez sem autorização e ao
contrário das nossas combinações, um dominó – objeto que seria cedo ou
tarde vendido. Cansada de censurá-lo, propus a César que jogássemos. Uma
proposta simples, que teve efeito de pausa, interrupção, suspensão dessa
relação de gato e rato que César promovia com todos.
Ele passou a vir a todos nossos encontros acompanhado pelo jogo. Fa
zíamos campeonatos cujos resultados César pedia que eu registrasse em bi
lhetes para sua mãe. Passou a falar de seu pai, que também teria um jogo como
aquele; lembrava de suas agressões; queixava-se das instituições em que tra
balhava e estudava; delirava. César passou a jogar com outros membros de
sua família. Divertíamo-nos sinceramente e eu, finalmente, acompanhava-o.
A partir do instante em que me dispus a conciliar meu ritmo ao de
César, a suportar sua errância e a escutar seu sintoma, foi-lhe possível des
locar-se, ainda que tenuamente, do lugar subjetivo que lhe reservou o diag
nóstico médico e o discurso de sua mãe. Comprar poderia, sim, ter um sen
tido, para além da sintomatologia de sua síndrome ou de sua herança fami
liar. Jogando dominó, César não precisava mais encarnar o pai. Este ganha
ra um lugar metafórico no jogo, no delírio, na palavra do filho. Ensaiáva
mos amarrar um nó em uma linha de tempo até então sem marcas.
Era também essa falta de marcas que conferia às caminhadas de Cé
sar pelo Centro a imagem de um corpo solto em um espaço aberto. O espa
ço urbano era dominado por César, mas não a sua fantasmagoria. Nada ser
via de registro em suas andanças. Suas compras e conversas fiadas com co
merciantes informais pareciam constituir-se em uma tentativa de ligação,
65
que logo revelava-se fracassada; um fracasso que não escapava à percep
ção de César e o fazia sofrer. Esse espaço aberto logo deixava de oferecer
oportunidades para tornar-se um vazio, no qual César poderia precipitar-se
a qualquer momento. Muitas vezes, senti meu corpo como um verdadeiro
muro protetor.
Maurício Porto e Deborah Sereno (1991), no capítulo “Sobre acom
panhamento terapêutico”, do livro A rua como espaço clínico, falam acer
ca das especificidades do setting de ação do AT: a rua. Nesse espaço impre
visível, o at por vezes tem de se posicionar ao lado do acompanhado (dan
do-lhe segurança para ação), à frente (incentivando um novo movimento
ou impedindo uma ação perigosa) ou um passo atrás (deixando que o pacien
te experimente seu jeito de estar no mundo). Pude experimentar essas dife
rentes posições com César.
Quando ele, por exemplo, tomou a iniciativa de paquerar uma menina
em um passeio no shopping, pediu que eu me mantivesse a seu lado. Comi
go ali, passou a mão nos cabelos de uma atendente da loja onde estávamos
e elogiou sua beleza. A moça simplesmente sorriu. César saiu feliz, dançando
pelos corredores, indiferente aos olhares dos outros; e eu fiquei feliz com
ele. Por diversas vezes, apenas aguardei na calçada, enquanto César entra
va em algum boteco para pedir um copo d’água, ou esperei sentada em um
banco, quando ele decidiu-se a andar de montanha-russa sozinho. Em ou
tras ocasiões, vi-me obrigada a antecipar seu gesto, para impedir que levas
se adiante provocações com pessoas da rua ou para impor um limite, im
possível de ser proposto apenas pela palavra.
Por parte da família de César, sobretudo de sua mãe, havia muitas quei
xas, mas nenhuma construção de limite ou de antecipação de seus movi
mentos. Era como se Maria necessitasse do sintoma do filho para manter
seu próprio sintoma, em uma verdadeira reedição da dinâmica estabelecida
com o antigo marido. Não há aqui qualquer intenção de atribuição de cul
pa. Essa era a forma até então possível e singular de Maria exercer sua ma
ternidade, seu papel de mulher e de ser sujeito no mundo. César, por sua
vez, sem limites, não tinha escolhas. Vagar, adquirir, consumir, estas eram
as defesas possíveis em um espaço tão abrangente.
A experiência mais dolorosa pela qual passei junto a César ocorreu
cerca de quatro meses depois de iniciado o AT. Nós dois havíamos combi
nado almoçar juntos. Ele, no entanto, apareceu dizendo que sua mãe não
havia deixado dinheiro – não era a primeira vez que César pedia dinheiro
66
para os nossos passeios e acabava gastando-o em outras atividades. Respondi
que eu iria almoçar, conforme havíamos acertado, e depois prosseguiríamos
com o passeio como ele preferisse. César, então, tentou dispensar-me, ale
gando outro compromisso (comportamento típico e aceito sem contra-ar
gumentação pelos ambientes em que César circula). Recusei-me a encerrar
o AT antes do horário, ao que César reagiu avançando contra mim e, com
dedo em riste, ameaçando: “eu te pego, hein. Tu não é nada minha”. Res
pondi que era, sim, alguma coisa sua: era sua at.
Se, por um lado, a amplidão das ruas representava um risco de perda
para César, por outro, o espaço de sua casa parecia insuportavelmente aper
tado, no sentido sugerido por Bollnow (1969). Por mais que insistisse, nunca
pude visitar a casa de César (um sítio em uma zona rural da grande Porto
Alegre). Sob a intolerância de seu irmão e a atenção, entre queixosa e per
missiva, de sua mãe, César parecia não encontrar em sua casa o espaço su
ficiente para a largura de seus gestos. Nosso trabalho não cabia nela.
Depois de uma crise, no final do ano de 1998, César hospedou-se na
casa da irmã e do cunhado, pessoas que pareciam conseguir olhá-lo para
além de sua doença. Para esta casa – não um sítio, mas uma peça única, muito
pobre e de área muito pequena – eu fui convidada. César e eu, sentados so
bre caixotes, jogamos dominó. Havia espaço para nós.
O acompanhamento de César encerrou-se definitivamente em março
de 1999, com nossa (minha e do grupo de pesquisa) avaliação de que ele
deveria contar com um novo at ao longo do ano que se iniciava. Ao nos des
pedirmos, César falava da importância que o trabalho havia tido para ele:
“tu me escutou”. Esperava ainda reencontrá-lo para fazer a passagem para
o novo colega que o acompanharia. O serviço de saúde, no entanto, avaliou
outros casos como prioritários para esse tipo de atendimento. César perdeu
seu AT e eu perdi aquele instante de despedida.
Conforta-me saber que César pôde dizer adeus melhor que eu e con
seguiu vislumbrar a cidade de um outro jeito. Na nossa penúltima saída,
passeando de barco sobre o Guaíba, ficamos olhando os prédios afasta
rem-se. O muro, que do lado de lá esconde o rio, era um nada de dentro
do barco. Ficamos em silêncio, como se fosse a primeira vez que víamos
aquela paisagem. César voltou-se para mim, deu um sorriso, apontou para
o Centro que ficava cada vez mais longe e comentou: “bonito, né?”. Foi
mesmo muito bonito.
67
NO VAZIO DA HISTÓRIA:
AUSÊNCIA QUE FALA
68
À GUISA DE CONCLUSÃO
ANALICE DE LIMA PALOMBINI
PAISAGENS PSÍQUICAS
69
entre o dentro e o fora, fornecem elementos que são constituintes da posi
ção subjetiva do acompanhado e de seus familiares. Se, dessa forma, é pos
sível ao at observar os efeitos do trabalho terapêutico nas mudanças que
ocorrem, sem sua interferência direta, no espaço habitado pelo acompanha
do, também se constata que uma intervenção direta no ambiente, levando a
modificações no espaço e no tempo da ordem familiar, pode produzir efei
tos no campo subjetivo, na direção apontada pelo trabalho terapêutico.
A constatação de que o primeiro – às vezes, por muito tempo único –
cenário do AT é o espaço interior da casa, contrasta com a idéia corrente
que situa a rua como o seu setting por excelência. No livro A ética e a técni
ca no acompanhamento terapêutico, Kleber Duarte Barreto (1999) chama
a atenção para o equívoco de se tomar o AT unicamente na perspectiva de
uma prática de saídas, como se pode ler na definição de AT apresentada no
livro A rua como espaço clínico (A Casa, 1991). Valendo-se de Winnicott,
Barreto vai situar, como uma das funções do at, o estar junto, dando ampa
ro e apoio, que caracteriza a função materna do holding, oferecendo uma
experiência de continuidade e constância, tanto física como psíquica. No
que se refere ao bebê, essa experiência é possibilitada pelo respeito ao rit
mo próprio do recém-nascido, de modo que, aos momentos de cuidado e
presença materna, vão-se alternar os períodos de ausência, na medida em
que o bebê se mostre capaz de suportá-los.
Na situação do AT, é fundamental que o acompanhante possa estar dis
ponível, durante o trabalho, no momento e no ritmo próprio do seu acom
panhado; fazendo-se continente daquilo que emerge como traços de um
sujeito, como rasgos de desejo em pulsações desordenadas, ou emprestan
do a força do seu desejo para deter um movimento contínuo – de destrui
ção, imobilidade ou silêncio – em direção à morte.
O encontro com essa outra espécie de ordem espaço-temporal – múl
tipla, heterogênea, caótica –, o seu acolhimento, implica o abandono de re-
ferências identitárias próprias e a abertura ao estranho que a psicose susci
ta, em uma experiência pela qual não passam imunes os sujeitos nela impli
cados. Daniel Vaz Smith, um dos integrantes do projeto, em seu relato do
AT que realizou, escreve a esse respeito:
70
diante dessa situação. Temos a sensação de um estranhamento. Poder vislum
brar alguma coerência num caleidoscópio caótico, perceber suas linhas de
sustentação através de uma ‘escuta’ que possa conduzir, como diz a psicana
lista Ana Maria da Costa, ‘aos registros heterogêneos do psicótico sem tradu
zi-los para formatos espaço-temporais dos neuróticos’, tem sido, desde o iní
cio do acompanhamento terapêutico, um desafio para mim.”
MÍNIMAS JANELAS12
Tomamos como elemento para esta análise o que pudemos escutar dos
ats em supervisão, em particular quando os sujeitos acompanhados eram
psicóticos cuja existência mantinha-se confinada no espaço de um quarto,
na intimidade da sua casa, para os quais a circulação pela via pública en
contrava-se, de saída, totalmente impossibilitada. Era preciso, primeiro,
ocupar o quarto, explorar possibilidades e lugares psíquicos, antes da geo
grafia da cidade. Foram cerca de cinco casos, dentre trinta acompanhamen
tos realizados em um dado período, nos quais o pedido de AT tinha, via de
regra, o objetivo de resgatar o vínculo desses sujeitos com o serviço em que
eram atendidos e ao qual eles pouco compareciam.
Embora o início dos acompanhamentos tenha se dado, na quase tota
lidade desses casos, em um momento posterior ao da adolescência, a eclo
são da crise e as condições presentes de sua vida psíquica levavam a evocar
a problemática da adolescência como operação de passagem psíquica: ope
ração fracassada, então, resultando em uma obstrução dessa passagem. É,
portanto, esse momento da adolescência como determinante do destino des
ses sujeitos que tomamos como questão aqui, com ênfase sobre o aspecto
espacial envolvido nessa operação.
Sabemos que o corpo materno é o espaço primevo em que um bebê
adquire existência psíquica, espaço que, ao aninhá-lo, empresta-lhe consis
12 Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada na Revista da Associação Psicana
lítica de Porto Alegre sobre Clínica da adolescência (Palombini, 2002).
71
tência e lhe confere uma forma, primeiros lampejos do Eu, que, no proces
so de separação e alienação, toma-se Um, diferenciado da Mãe. O intervalo
entre uma mãe e seu bebê, que a função paterna opera, permite à criança a
exploração do espaço para além do corpo que lhe deu origem e sua inclu
são na cultura.
A constituição do Eu, culminando no momento do estádio do espe
lho, opera a partir da voz e do olhar da Mãe, que, na relação pulsional com
seu filho, vem assinalar-lhe um lugar de sujeito no mundo. É esse olhar e
essa voz que conduzem a criança ao reconhecimento jubiloso de sua pró
pria imagem no espelho, possibilitando-lhe a aquisição da autonomia e a
abertura ao mundo objetal. A identidade, assim constituída, adquire signifi
cação fálica quando o que se dá ou não a ver na relação especular conduz
ao enfrentamento do complexo de castração, o que inclui o reconhecimen
to da castração da mãe e a diferença entre os sexos (Rassial, 1999).
A adolescência é, então, um momento de confirmação ou de relança
mento de todo esse processo e de colocação em ato da posição sexuada a
que ele dá curso, o que vem pôr à prova a consistência imaginária do Eu. É
preciso realizar a passagem, dessa vez em nome próprio, do espaço priva
do que o corpo materno representa, para o espaço da polis enquanto lugar
de alteridade, campo de experimentação e de representação simbólica, o que
requer, diz o autor (ibid.), a apropriação e simbolização, pelo sujeito, da voz
e do olhar maternos que primeiramente o constituíram.
É o momento prínceps da eclosão de uma psicose, quando essa passa
gem, do espaço privado para a polis, sofre a obstrução do que nós podería
mos chamar de hipertrofia do corpo materno, o qual apenas foi capaz de
suportar uma experimentação dos espaços sociais por parte do filho, enquan
to tomados como extensão de si mesmo (extensão do corpo materno) e não
como expressão de uma diferença. A reedição, na adolescência, de uma
imagem corporal unificada sofre os efeitos da ausência de inscrição simbó
lica dessa diferença, mantendo uma estreita dependência da imagem que é
oferecida pela mãe.
Nos casos que tomamos aqui como objeto para esta reflexão, a entra
da do at no espaço da casa, operando como terceiro na relação entre o su
jeito acompanhado e sua mãe, não era sem conseqüências no ordenamento
dos lugares psíquicos instituídos entre o par mãe/filho. Via de regra, era a
mãe quem, de forma bastante peculiar, primeiramente reagia a isso que era
vivido como uma intrusão. Assim, uma mãe, diante da demora do filho em
72
se apresentar devidamente vestido para receber a at que pela primeira vez
chegava à sua casa, assim lhe chamava a atenção: “uma baita loira dessas
na tua frente e tu não vais fazer nada?!”. Em outra situação, o primeiro en
contro tendo se dado em dia de chuva torrencial, a mãe da acompanhada
fez menção de secar os cabelos da at e trocar suas roupas molhadas por rou
pas secas de sua filha. Em um terceiro caso, a reação da mãe à presença da
at oscilava do enaltecimento à depreciação, dirigida à sua maneira de se
vestir, pentear-se etc, chegando a lhe oferecer um cheque-presente de uma
loja de roupas femininas.
Ou seja, diante da ameaça que passava a representar a presença do ou
da acompanhante a uma relação constituída em um continuum entre mãe e
filho, as atitudes da mãe vinham se antecipar a qualquer possibilidade de con
frontação do filho com o Outro sexo (condição sine qua non da passagem
adolescente). Ou essas atitudes tratavam de apresentar o acompanhante como
objeto de um gozo aludido (mas que, ao ser dessa forma oferecido pela sua
mão, deixava de ser signo da diferença sexual, tornando-se extensão de seu
próprio corpo – era a mãe que ali se oferecia); ou elas buscavam incorporar o
acompanhante, de igual modo que a seu filho ou filha, como objeto dos seus
cuidados, sempre em excesso, apagando quaisquer traços de uma diferença.
Contudo, no encontro com esses sujeitos no espaço apertado de seus
quartos, na atmosfera sufocante evocativa da asfixia mortífera do ventre
materno, alguma fresta mantinha-se aberta, através da qual se sustentavam
formas mínimas de conexão com o mundo para além do corpo da mãe; co
nexão que era condição, também, para a sustentação, ali, de um mínimo de
sujeito, efeito da diferença entre o Eu e o Outro. Era por essas frestas, míni
mas janelas, que o at podia ter entrada, nesses quartos à primeira vista tão
fechados e isolados do mundo.
Assim, em todos esses casos estava instituída uma forma particular de
relação a um objeto. Televisão, rádio, walkman, violão, revistas de moda
pareciam vir sustentar, para cada um desses sujeitos, um modo de ligação
com uma outra ordem discursiva para além dos significantes maternos. Uma
ligação não simbolizada, e que, por isso mesmo, não prescindia da concre
tude material dos objetos através dos quais era veiculada e que faziam fun
ção de suplência a uma simbolização faltante. Ao mesmo tempo em que se
dirigiam a essa relação com o mundo exterior, esses mesmos objetos, em
blemas de uma cultura, faziam-se signos da voz e do olhar maternos cuja
presença seguia sendo necessária para a sustentação de uma imagem do Eu,
uma vez que os traços desses objetos – a voz e o olhar – não puderam ser
73
apropriados pelo sujeito no momento da passagem adolescente. Não é por
acaso, então, que os objetos arrolados sejam evocativos, justamente, de uma
pulsão escópica e uma pulsão vocal.13 A possibilidade do estabelecimento
de uma relação transferencial com esses sujeitos, no contexto do AT, depen
dia da mediação desses objetos em um jogo de alternância entre o que ne
les operava como função especular (relativa à voz e ao olhar da mãe) ou
como função de suplência a um significante fálico faltante (relativa à cultu
ra). Evocamos aqui duas cenas em que essa mediação apresenta-se: na pri
meira, Júnior responde com monossílabos às perguntas que lhe faz Laura,
sua acompanhante há cerca de um mês, a quem Júnior mal ousa olhar. In
comodada com a atenção exclusiva que ele dirige aos programas de tevê,
um dia Laura deixa seu assento, ao lado da sua cama, e toma lugar exata
mente onde se encontra a tevê ligada, ocupando o espaço da tela, de frente
para Júnior. É desse lugar que Laura conversa agora, e Júnior, olhando-a
então, passa a interagir com ela. A segunda cena remete à ocasião em que
Luiz, aficcionado por música, propõe ao seu acompanhante que fossem até
uma rádio local, onde se compraz em observar os movimentos no estúdio e
o trabalho de locução e troca de músicas. Naquele cenário, Luiz parece dar
materialidade ao que se apresentava como esboço de um delírio, cujo núcleo
era a figura de um homúnculo que habitava a caixa de som em seu quarto.14
Finalmente, gostaríamos de tomar em consideração o espaço mesmo
do quarto como tema para uma breve reflexão. Se podemos concebê-lo –
de acordo com a interpretação corrente nas teorias psicológicas – como o
espaço da maior intimidade, como uma extensão do Eu no território da ci
dade, como centro de máxima proteção, é preciso não perder de vista a po
rosidade dos seus limites, através da qual o mundo tem entrada nele, ins
taurando uma interação entre o dentro e o fora, entre o quarto e o mundo. O
quarto é, nas palavras de Davi Arrigucci,15uma espécie de armazém da me
mória, em vinculação com o espaço urbano. A cidade, seus cheiros, ruídos,
história, perpassa o quarto através das frestas das janelas (e nas telas midiá
ticas), por entre os poros de suas paredes, mas também, parafraseando Ar
rigucci, a cidade encontra-se no quarto em cada coisa pequena que ele con
tém, em cada objeto humilde de que se faz uso nele. As possibilidades do
trabalho terapêutico, nesse contexto, estão condicionadas a nossa capaci
dade de não tomar como banal e repetitivo esse cotidiano, sustentando, na
13 Relativa à voz na condição, aqui, de voz “tocada”, que atinge o ouvido. Ver, a esse respei
to, O olhar e a voz, de Paul-Laurent Assoun (1999).
14 Cf. supra.
15 No vídeo “Paisagens urbanas” (Peixoto, 1998).
74
relação a esses objetos, um campo de criação e as significações de uma cul
tura. Tomemos, então, nessa perspectiva, a clínica como questão.
crítica, o seu fundamento, é bom lembrar, repousa sobre a filiação da psicanálise à vertente
crítica da tradição sobre a loucura em oposição à sua vertente trágica, ou seja, a uma leitura da
loucura como desrazão. (Joel Birman, 2000) Se Freud vem resgatar uma tradição do Renasci
mento, restituindo à palavra do louco seu valor de verdade, isso, no entanto, seria feito ao pre
ço de um assujeitamento do doente à figura do analista, o que situaria a psicanálise, não em
ruptura, como gostamos de pensar, mas em continuidade com o saber psiquiátrico positivista
do século XIX.Uma leitura fundamental, nesse sentido, é o seminário O poder psiquiátrico,
proferido por Foucault (2006) nos anos 1973-74, em que ele perfaz a genealogia do poder psi
quiátrico, lançando luzes novas às diversas e às vezes recônditas passagens de História da Lou
cura que se referem seja à psiquiatria, psicologia, psicanálise ou psicopatologia.
18 Remetemo-nos, aqui, ao conceito de fora tal como formulado por Foucault (1990) a partir da
obra de Maurice Blanchot, reportando-se ao ser da linguagem e à loucura: o fora como campo
do informe, do nada da origem; espaço de errância, devir; apagamento do eu, emergência do
Outro; força de resistência às formas constituídas da existência (ver, a esse respeito, o livro de
Tatiana Salem Levy (2003), A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze).
75
A produção do vídeo a que se fez referência anteriormente19 permite
uma reflexão sobre esses efeitos incidindo sobre o grupo de ats. Entende
se que o vídeo veio cumprir uma função particular entre as narrativas clíni
cas produzidas, constituindo-se, não em um acontecimento fortuito, mas em
um evento necessário, inerente à dinâmica do trabalho que se realizava.
O AT certamente pode ser descrito como uma clínica em ato, onde o
setting é a cidade: a rua, a praça, a casa, o bar. Uma clínica em que a pala
vra e também o corpo, os gestos, as atitudes contam. Assim, os relatos fei
tos em supervisão freqüentemente evocavam, mais do que séries discursi
vas, encadeamento de ações, descrição de gestos e expressões, cenas, enre
dos. O grupo, ali, era banhado em imagens. O vídeo, assim, poderia ser to
mado simplesmente como um modo de dar expressão, visibilidade, a essas
imagens. Mas sua produção se impôs de uma maneira absoluta, imperiosa,
que merece elucidação.
Era novembro de 1998, e eu assistia a uma apresentação do grupo Os re-
lógios de Frederico, misto de música, poesia, teatro, quando fui tomada, de modo
inesperado, por sons e imagens associados aos casos que eu escutava em su
pervisão, sucedendo-se na mesma velocidade das imagens projetadas em sli
des no espetáculo que eu assistia. Foi assim que surgiu a idéia do vídeo para
compor a apresentação do trabalho em um evento próximo. Logo, todo o gru
po engajou-se na realização da idéia, e, no espaço de duas semanas, com filma
dora na mão, viramos roteiristas, cinegrafistas, cenógrafos, atores, completa
mente mergulhados na captação de cenas que dessem corpo ao que, até então,
era apenas o exercício involuntário da imaginação. Em seguida, passamos a
garimpar as músicas que pudessem aproximar-se dos sons evocados junto com
as imagens.20 O vídeo pronto gerou o texto de minha narrativa no evento que,
naquele momento, já estava bem perto de se realizar.
Quando, pela primeira vez, esse vídeo foi levado a público, surgiu a
pergunta sobre as razões da sua produção. A resposta que pudemos esbo
çar, então, apontava para a necessidade, no trabalho com psicóticos, de sus
tentar a sua produção discursiva sobre os objetos concretos e que essa ne
cessidade transferira-se para o grupo, acossado por uma urgência em dar
concretude a um trabalho que se desenvolvia na invisibilidade. Entendemos
que, hoje, podemos ir um pouco além nessa resposta, instigados pelo pen
samento de Foucault.
Os Relógios de Frederico.
76
Retoma-se aqui o argumento já lançado, de que o alargamento do espa
ço de tratamento da loucura por meio do AT pode conter, em potência, o rear
ranjo do dispositivo transferencial, não mais em continuidade ao dispositivo
asilar do tratamento moral, mas, antes, na direção do fora a que aponta a lou
cura. Encontra-se uma primeira evidência disso na freqüência com que as nar
rativas da parte dos acompanhantes referem-se à vivência de um descompas
so no tempo e à necessidade de prescindir da sua organização temporal para
poder acompanhar ora o frenesi, ora a lentificação de uma temporalidade cu
jos parâmetros lhe escapam. Para que possa introduzir-se como presença em
pática na relação com o acompanhado, o at deve ser capaz de uma certa abs
tinência daquilo que constitui o eixo básico da constituição do seu eu – a or
ganização espaço-temporal. Contudo, isso o lança no campo da experiência
sensível, não-representacional, no encontro estético dos corpos, fora do re-
gistro da palavra. Como fazer a travessia dessa experiência sem submergir na
angústia que a mesma suscita? Como integrar, em um registro positivo, vi
vências temporais múltiplas, díspares, fragmentadas, instaurando continuida
des capazes de sustentar o trânsito entre o dentro e o fora, de modo que os
intervalos, o vazio entre os espaços ou a sua amplidão encontrem a mediação
de uma palavra que lhes desfaça a feição do horror?
Voltando ao vídeo, é certo que a concretude do corpo e dos objetos
que a sua película evidencia indica algo próprio à clínica da psicose, ou seja,
a recorrência a suportes materiais, para além da palavra, como continentes
das suas operações. Mas, prestando atenção ao modo como se realizou a
gravação dessa fita, percebe-se que não é outro corpo senão o do acompa
nhante que ela põe em questão – um corpo que, dado o dispositivo metodo
lógico da pesquisa, ganhou novos contornos, incluindo o grupo de ats e a
sua coordenação. Pois é esse corpo que se põe em cena, que vive na carne
(sensitiva, motora) a experiência que pretende transmitir, que já não é mais
a do outro, mas a do seu encontro.
Assim, com Júnior estivemos encerrados em um quarto, sem medida
de tempo, olhar fixo na televisão; com Luciane gestamos (e deixamos de
gestar21) uma criança; com Luiz refugiamo-nos em uma cama, enrodilha
dos no lençol; com Alessandra corremos riscos à beira de um precipício;
com César passeamos em vertigem por bancas de camelô em véspera de
dos integrantes do grupo inutilizou uma parte dessa gravação e, no seu mal-estar, era como
se tivesse atingido o feto mesmo em gestação.
77
natal; com Lúcia ausente, fizemo-nos ausentes, anônimos entre passantes,
para, ao longe, redescobrir a cidade.
A experiência intensiva, que assim se viu possibilitada de modo com
partilhado pelo grupo, parece significar o esforço de apreensão corpórea
daquilo que se fazia inapreensível ao pensamento na iminência da desra
zão. A ancoragem no corpo permitia que o vivido no AT se fizesse matéria
de elaboração teórica.
Contudo, retornando ao diálogo com a crítica foucaultiana, nos per
cursos em que se lançam acompanhante e acompanhado, desenham-se os
elementos que, longe de serem específicos desse trabalho, entendemos como
o alicerce mesmo da clínica, em particular a psicanalítica, naquilo que ela
pode conter de potência criadora e produtora de novos sentidos (em ruptu
ra, portanto, com sua dimensão asilar). Dessa forma, se a clínica, por um
lado, coloca-se como pressuposto orientador para a prática do AT, por ou
tro, o exercício dessa prática vem forjar um estilo próprio à clínica. Abrir
se para o novo, seguir fluxos alheios, deixar-se afetar, desinvestir o narci
sismo, suportar a ignorância para não precipitar um saber que aliena, são
vivências que se impõem ao acompanhante no encontro cotidiano com seu
acompanhado. Na medida em que essas vivências encontram expressão no
espaço de supervisão, sustentando-se desde a continência grupal e intensi
va e a amarra teórica que esse espaço possibilita, elas transformam-se em
experiência clínica fundante, que investe de forma produtiva as inserções
futuras do acompanhante no campo da prática clínica, de modo geral, e, mais
particularmente, no campo psicanalítico.
78
adendo
DA INCLUSÃO DO ACOMPANHANTE
TERAPÊUTICO NAS EQUIPES
DE SAÚDE MENTAL
Uma versão do texto que segue encontra-se publicada no artigo “O louco e a rua: a clínica
em movimento mais além das fronteiras institucionais” (Palombini, 1999a).
79
dificultava a realização dos procedimentos terapêuticos considerados ade
quados ao caso (“a mãe não colabora”, “a família não tem condições de tra
zê-lo ao serviço”); ou, ainda, porque o sujeito em questão resistia a aderir
ao tratamento proposto (“ele não vem ao serviço”, “não sai de casa”). Nes
ses casos, o AT representava, para a equipe, “a última cartada”, a qual se
lançava mão “para ver o que acontece”. O at via-se, muitas vezes, sozinho
nessa empreitada, estando lançada sobre si toda a responsabilidade pelo
curso de um tratamento a que a equipe parecia não dar mais crédito.
2) A que decidia os encaminhamentos com base em um prognóstico
favorável, ou seja, onde o acompanhamento somava-se a um conjunto de
procedimentos terapêuticos já em curso e ao qual o usuário vinha respon
dendo de forma positiva. O acompanhante era, então, um facilitador ou po
tencializador do processo terapêutico, cumprindo, geralmente, uma função
pontual nesse processo.
O curioso, em ambos os casos, é que, embora receptivas à proposta,
num segundo momento, já em 1999, com a ampliação do projeto, duas das
cinco equipes participantes encontraram dificuldades para designar os ca
sos para acompanhamento de acordo com o número de ats que, no entanto,
elas próprias haviam definido como compatíveis com as necessidades do
seu serviço.22 Os critérios estabelecidos, seja numa direção ou noutra, pare
ciam restringir demasiadamente as possibilidades do uso do recurso do at,
que, no entanto, justamente pela flexibilidade que caracteriza a função, ten
dem a ser amplas e variadas, ainda que não generalizáveis. Em que pese as
variáveis que certamente influíram no estabelecimento dessas dificuldades,23
parece-nos plausível tomá-las como índice de resistência ao trabalho pro
posto; uma resistência que já se anunciava no critério mesmo de que a equipe
se utilizava para decidir os casos para acompanhamento, colocando em pauta
questões de hierarquia, autoridade e domínio de saber. Somente quando a
equipe percebia-se com domínio do caso é que podia dividi-lo com o acom
panhante sem risco de se sentir desapropriada, ou, inversamente, apenas os
casos dos quais a equipe já havia desistido podiam ser repassados ao at sem
22 O número de acompanhantes solicitado pelas equipes variou de três a oito, ou, em alguns ca
sos, foi formulado como “quanto mais, melhor”, tendo sido inseridos de três a cinco acompa
nhantes em cada instituição, conforme o número de estagiários e extensionistas participantes
do projeto em curso.
23 No momento da realização do trabalho, estavam em curso algumas alterações na forma de
80
que isso se constituísse em uma ameaça para a equipe. O fato de que em ou
tros dois serviços participantes, embora não se configurando esse impasse com
relação ao número de acompanhamentos propostos, tenha havido dificulda
des iniciais e atraso no encaminhamento dos casos para a realização do tra
balho vem reiterar a idéia de um movimento resistencial das equipes à inclu
são efetiva do AT como modalidade clínica junto aos seus usuários.
Em suma, o at forçosamente se via às voltas com as dificuldades de
fazer interagir o seu trabalho com o conjunto de procedimentos terapêuti
cos que perfaziam o cuidado à saúde mental daquele determinado sujeito
que ele acompanhava. O que se constatava é que, ao mesmo tempo em que
a função do acompanhante atendia a uma necessidade da instituição, vinha
ao encontro do que o atendimento integral à saúde daquela determinada po
pulação demandava, ele também criava um certo tensionamento com a equi
pe. Uma tensão importante estabelecia-se, então, entre um pólo e outro do
trabalho, entre o serviço de saúde e o at.
Ocorre que, enquanto a instituição de tratamento sofre a pressão de uma
demanda crescente de atendimento (a referência aqui são os serviços públi
cos, que foram foco de nosso projeto), e, portanto, de uma política de exten
são do seu trabalho, a atividade do at, inversamente, incide com a máxima
intensidade sobre um único sujeito; e, dado o campo aberto em que se situa o
acompanhante para a realização do acompanhamento, ele acaba por traçar o
contorno daquilo que o serviço de saúde dá conta. Aquilo que o serviço não
consegue olhar, não consegue fazer-se encarregar e que diz respeito ao con
texto de vida (ou de morte) daquele sujeito que ao at cabe acompanhar, vai
emergir diante do at, aparecendo em relevo no seu trabalho.
Por um lado, então, a oferta do AT produz essa tensão entre os dois
pólos, o da máxima extensão, abrangendo o maior número de pessoas, e
o da intensidade máxima sobre um único caso; por outro, o acompanhan
te opera esse bordeamento, esse contorno demarcando as competências
da instituição e acusando aquilo de que ela não pode ou não quer se en
carregar. Se a instituição e as equipes não tiverem o mínimo de flexibili
dade, de pensamento crítico com respeito a si mesmas, o at vai ser, sim, o
estranho que chega de fora, desestabilizando a organização interna do ser
viço. Mas, se a equipe tiver a porosidade suficiente para deixar que o fora
adentre, para permitir outras janelas em seu trabalho, para além do enqua
dramento clínico ou administrativo que lhe concerne, outras janelas com
vistas para a rua, nesse caso, o at pode vir a cumprir um papel transforma
dor na dinâmica do serviço, que vai poder buscar rearranjar-se a partir do
retorno que o at lhe dá do seu trabalho, a partir do tensionamento entre os
dois pólos, o da extensão e o da intensão, que o caracterizam.
81
De fato, o AT, na medida em que desprende a clínica de suas amarras
institucionais e a lança no contexto do cotidiano de vida, pode enriquecer o
espaço terapêutico com toda uma nova gama de experiências que, mais do
que da evolução de sinais e sintomas, diz das evoluções do curso da vida
(Palombini, 1998), identificando recursos de que dispõe esse sujeito, talen
tos, habilidades e estratégias de sobrevivência até então insuspeitadas, seja
no âmbito de sua família, seja no da instituição de tratamento (Camargo,
1991). O acompanhante se faz conhecedor também das rotinas, das situa
ções vividas, das cenas em família e no social, às vezes cruciais para o en
tendimento do que se passa com aquele determinado sujeito, e, no entanto,
completamente ignoradas no contexto institucional do seu tratamento. En
fim, o campo aberto em que se realiza o trabalho do at possibilita-lhe uma
outra visão de quem ele acompanha e de sua família, diferente daquela que
se pode lançar-lhe desde o interior da instituição de tratamento. Assim, fre
qüentemente, essa outra visão, o conjunto de informações novas que o acom
panhante traz, como um mensageiro, para dentro do serviço, exige da equi
pe reposicionar-se em relação ao caso, abandonando estratégias que se tor
naram rotina, requisitando a intervenção de outros profissionais, fazendo
se cargo de novas frentes de trabalho, inventando formas inusitadas de ação.
O que se coloca em jogo é a destituição dos saberes já consagrados e o reco
nhecimento do espaço de ignorância inerente às práticas profissionais, espa
ço que, no entanto, o discurso técnico-científico esforça-se por recobrir. A
função do at carrega, portanto, potencialmente, uma incidência institucional
para além dos efeitos clínicos circunscritos ao caso acompanhado.24
Considera-se necessário, no entanto, o cumprimento de algumas con
dições a partir das quais oAT pode se inserir, como modalidade clínica de aten
ção à saúde mental, com toda a potencialidade a que faz jus a função, a saber:
a) A manutenção de uma certa autonomia do at em relação à equipe
do serviço em que atua, uma certa posição de fora, correspondendo ao lugar
(fora/dentro) em que exerce a função. Uma sugestão seria não incluir os
acompanhantes nas equipes específicas de cada serviço, constituindo, an
24Já em 2006, após nove anos consecutivos de seguimento desta experiência, constatamos
que os resultados obtidos não somente vinham confirmar essa incidência institucional do
dispositivo AT como ampliavam o seu alcance. Assim, passamos a identificar três âmbitos
em que opera o AT: primeiro, como tecnologia clínico-política de atenção na rede pública de
saúde mental condizente com a dinâmica dos seus serviços substitutivos; segundo, como
estratégia de formação clínico-política tanto no âmbito universitário das profissões do cam
po da saúde como na educação continuada dos trabalhadores da rede; terceiro, como ferra
menta útil ao processo de implantação e análise da Reforma Psiquiátrica (Palombini, 2007).
82
tes, uma espécie de central de ats, que atendesse às solicitações dos dife
rentes serviços, sem manter vínculo direto, exclusivo, com nenhum deles.
Dessa forma, preservar-se-ia essa condição de exterioridade, com maior isen
ção para realização do trabalho; possibilitar-se-ia, também, a pertença ao
grupo, favorecendo a troca de experiências, o debate em torno dos acom
panhamentos realizados, a continência grupal tão necessária ao exercício
de uma função em que a subjetividade encontra-se tão lançada.
b) A supervisão e acompanhamento do trabalho realizado através do
estabelecimento de programas de educação continuada. O AT não constitui
um campo de saber específico, mas uma prática, para a qual confluem múl
tiplos saberes. Não é uma profissão regulamentada. Embora venha sendo
incorporado com sucesso ao campo profissional da psicologia como uma
modalidade terapêutica própria, seu exercício não pode ser circunscrito a
esse campo. Também não se restringe àqueles que detêm diploma de curso
superior. Contudo, se a psicologia como profissão não é requisito para o
exercício da função de at, os conhecimentos produzidos no seu campo e pela
psicanálise são ferramentas cruciais para imprimir uma direção clínica ao
trabalho, dando expressão à sua potência terapêutica. A supervisão do tra
balho, portanto, adquire aqui total importância, na medida em que ela é de
terminante da direção que assume o acompanhamento. O seu exercício diz
da responsabilidade que nos cabe de colocar os saberes da psicologia e da
psicanálise a serviço da comunidade, afetando o modo de constituição das
práticas interdisciplinares em que tais saberes encontram-se lançados.
No que diz respeito àquilo que vem desenhando-se como uma políti
ca pública de inclusão da função AT nas equipes de saúde mental, é impor
tante situar se o que se busca é unicamente responder a necessidades de or
dem social, assistencial, ou se tal política comporta uma direção clínica ao
trabalho, pois as implicações são diversas num e noutro caso. Restrito ao
campo da assistência, o at seria como que um auxiliar, que conduz ou acom
panha o sujeito na realização de algumas ações que se colocam como im
perativas para ele, tipo: receber a aposentadoria, tirar carteira de identida
de, ir ao dentista, freqüentar um curso. É fato que essas ações podem inves
tir-se de um significado importante. Mas, subtraído de um pensamento clí
nico, o AT corre o risco de se impor unicamente como uma ortopedia, com
riscos mais ou menos iatrogênicos, variáveis de acordo com a sensibilida
de e condição subjetiva peculiar à pessoa do at.
83
REFERÊNCIAS
84
FOUCAULT, Michel. História da loucura (1972). São Paulo: Perspectiva, 1978.
85
PALOMBINI, Analice. “Psicopatologia na vida cotidiana”. In: Cadernos deAT: uma
clínica itinerante. Porto Alegre: Grupo de Acompanhamento Terapêutico Circula
ção, 1998, p. 45-51.
———. “O louco e a rua: a clínica em movimento mais além das fronteiras institu
cionais”. In: Revista Educação Subjetividade & Poder, n. 6, agosto, 1999a. Porto
Alegre: PPG Psicologia Social e Institucional / UFRGS.
Agora
———. “Fundamentos para uma crítica da epistemologia da psicanálise” In:
- Estudos em Teoria Psicanalítica. Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica / UFRJ,
v.2, n.2. Rio de Janeiro,jul./dez. 1999b, p. 53-70.
86
SANTOS, Tania Coelho dos. “As estruturas freudianas da psicose e sua reinvenção
lacaniana”. In: BIRMAN, Joel (Org.). Sobre a psicose. Rio de Janeiro: Contra Capa,
1999, p.45-73.
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental.
Rio de Janeiro: Record, 1997.
VASCONCELOS, Eduardo Mourão. “Desinstitucionalização e interdisciplinarida
de em saúde mental”. In: Cadernos do IPUB, n.7, 1997, Rio de Janeiro: Instituto de
Psiquiatria/UFRJ.
VIRILIO, Paul. Espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
87
PARTE II
DE TRABALHADORES
NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE
ANALICE DE LIMA PALOMBINI
HISTÓRICO
Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada no livro Loucura, ética e política:
escritos militantes, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia, São Paulo: Casa do Psi
cólogo, 2003.
25 Analice Palombini, Eduardo Pelliciolli, Károl Veiga Kabral, Márcio Mariath Belloc, Nara Cas
tilhos e Nauro Mittmann compunham a equipe inicial de trabalho, aos quais vinha somar-se o
apoio da direção da Escola de Saúde Pública, na pessoa de seu diretor, Ricardo Burg Ceccim, e
de Cândida Boemecke e Simone Machado. O curso, com duração de oito meses, em suas três
edições atingiu cerca de 120 trabalhadores e 30 serviços de saúde de diversas localidades em tor
no da região metropolitana do Estado, além dos abrigos de proteção especial, vinculados à Secre
taria do Trabalho, Cidadania e Ação Social. Sua terceira edição encerrou-se em janeiro de 2003,
com uma expectativa grande, por parte dos serviços, de que o governo estadual que então assu
mia viesse a dar continuidade à proposta, o que não chegou a ocorrer. Em 2004, a Secretaria Mu
nicipal da Saúde de Porto Alegre tomou ao seu encargo a tarefa de capacitação, para o AT, de
trabalhadores da rede municipal de serviços, convidando os colegas Károl Veiga Kabral e Már
cio Mariath Belloc a assumir a coordenação da proposta. Cinqüenta e dois trabalhadores – abran
gendo desde Programa de Saúde da Família e Unidades Básicas a CAPS e Unidades de Interna
ção Psiquiátrica – participaram do curso, que teve início em maio do mesmo ano.
91
Esse curso certamente tem uma história que começa muito antes da
sua criação, com o movimento que há mais de vinte anos luta para modifi
car a realidade da atenção em saúde mental no País. Os avanços desse mo
vimento resultaram na criação de serviços substitutivos ao hospital, trans
pondo para os espaços abertos da cidade o atendimento que antes ficava con
finado no interior do manicômio. Na medida em que o trabalho em saúde
mental passava a interagir com a cidade, o modo de atuação do conjunto de
disciplinas e hierarquias envolvidas via-se afetado. Do médico ao auxiliar
administrativo, ao guarda, ao cozinheiro, do diretor ao estagiário, todos pas
sam a se ocupar da circulação social dos seus usuários. Todos, em algum
momento, fazem-se ats, estabelecendo pontes e possibilitando passagens en
tre a referência institucional para um determinado sujeito e seu acesso à via
e aos lugares públicos.
Quando começamos a montar a proposta do curso, vimo-nos diante do
desafio de criar algo novo. Cada um de nós trazia uma bagagem própria rela
cionada à experiência do AT, mas era uma novidade, para o grupo, pensar essa
experiência dirigida à educação de trabalhadores de nível médio ou nível bá
sico da rede. Será que eles poderiam aproveitar, no âmbito dos serviços em
que atuavam, aquilo que queríamos transmitir? Não seria mais efetivo inves
tir na capacitação dos técnicos de nível superior, de forma que estes pudes
sem atuar como multiplicadores da proposta?
Apesar das incertezas, a Escola de Saúde Pública fez sua aposta na
formação daquelas pessoas que, via de regra, estavam cotidianamente ao
lado dos usuários dos serviços, que se ocupavam, da forma mais íntima, dos
seus cuidados ou das atividades de vida diária, que se encarregavam de re-
cebê-los na sua chegada e conduzi-los à saída, que iam até as suas casas
quando necessário.
O que se iniciou como uma aposta não demorou a se tornar, para nós,
convicção. Desde os primeiros meses de andamento do curso, os seus par
ticipantes, na maioria auxiliares de enfermagem, davam-nos mostras de que
havíamos tomado a decisão certa. Nós pudemos descobrir a potência trans
formadora contida na escolha de capacitar dessa forma aqueles trabalhado
res que, quase sempre incluídos no nível hierárquico inferior das equipes
de saúde, viam-se destituídos de qualquer espaço de transmissão de saber e
reflexão sobre o seu trabalho. Oferecer-lhes esse espaço subvertia a lógica
que a tradição impôs à organização do trabalho em saúde, gerando efeitos
que incidiam sobre o conjunto da equipe, levando-a a transformações pro
92
dutivas. Nesse processo, foi fundamental a acolhida que as equipes dos ser
viços puderam dar à proposta, tanto maior quanto mais permeáveis às mu
danças e mais capazes de inventar novas formas de atenção em saúde men
tal. Mas foi notável, em particular, o engajamento dos que participavam, o
afã de saber e trocar experiências, a capacidade de se deixar afetar e trans
formar posturas já arraigadas, buscando o máximo aproveitamento daquilo
que o curso disponibilizava em termos de idéias, vivências, afetos. Marcou
profundamente, a nós que acompanhávamos esse percurso, a dimensão que
passava a tomar, para essas pessoas, o espaço que se oferecia a elas, de escuta
de suas angústias, medos, desejos relacionados ao contexto do seu trabalho,
à problemática da loucura e aos seus atravessamentos institucionais.
HISTÓRIAS
93
gestos de ambos. Logo a urgência e enormidade do trabalho desfaziam esse
instante e o seu fazer retornava à forma mecânica que lhe impunha a insti
tuição. A experiência do curso reavivava-lhe o impasse vivido cotidiana
mente, ressignificava o valor contido nos pequenos gestos a que se permi
tia no encontro com aqueles moradores, ao mesmo tempo em que desve
lava o quão impossível era vestir de humanidade o espaço manicomial.
Ao deixar o trabalho nessa unidade para se engajar no projeto vinculado
às Residências Terapêuticas, Conceição buscou por todos os meios torná
las um lugar possível para os antigos moradores a quem primeiro se diri
giram seus cuidados.
Neusa é monitora em um abrigo de proteção especial. Seu trabalho
envolve a assistência a um grupo de crianças e adolescentes com transtor
nos graves do desenvolvimento, intensificados por uma história de aban
dono e privações sociais. Ao longo do curso, e especialmente no espaço das
supervisões, Neusa punha em dúvida o valor de conhecer a história daque
las crianças e adolescentes na relação de cuidado que mantinha com os
mesmos. Preferia manter-se distante dos seus prontuários e de qualquer in
formação factual que pudesse lhe ser transmitida. Sua atitude não era des
provida de razões: em seu ambiente de trabalho, não foram poucas as vezes
em que Neusa presenciou colegas fazendo uso dessas informações, não para
cuidar melhor, mas para tratar de forma preconceituosa e pejorativa crian
ças e adolescentes já extremamente frágeis em sua subjetivação. De forma
quase intuitiva, Neusa temia a incorporação da violência de um saber obje
tivado sobre aqueles sujeitos. E, no entanto, sem superestimar a importân
cia da história na condução do tratamento, os casos trazidos à supervisão
implicavam o trabalho de construção de um enredo através do qual o senti
do de uma vida pudesse emergir. Neusa hesitava entre a recusa de saber e a
busca de um sentido para o enigma que constituía cada um daqueles de quem
buscava cuidar. A dissolução desse impasse deu-se na forma de experiên
cia compartilhada com os colegas no espaço da supervisão. Neusa conta
va-nos o quão difícil fora, no dia anterior, dar continência a um menino, um
dos menores e de comunicação bastante precária, que vinha de um final de
semana na casa paterna – sua primeira saída desde a chegada à instituição.
Era quase hora de encerrar o seu trabalho e ela afligia-se em pensar que toda
a agitação do menino provavelmente não teria acolhida pelo plantão da noite.
Enquanto buscava contê-lo num abraço, ele já na cama, um sentimento di
fuso descortinou para ela o mal que o acometia. Com suavidade, falou-lhe
94
ao pé do ouvido: “aqui é tua casa, sempre que tu fores visitar teu pai, a gen
te vai estar te esperando na volta”. Imediatamente a agitação cessou e o
menino pôde adormecer, seguro do seu lugar, da guarida que não encontra
va junto ao pai. Neusa entendia que sua intervenção só fora possível por
que, alguns dias antes, vencera todas as suas resistências e se aproximara
da história que, desse menino, era narrada. Mas, ao nos relatar a cena, o que
se destacava era o quanto ela pôde estar próxima dele e como, no contato
intensivo que se estabelecera entre os dois, era uma espécie de transitivismo
o que se reavivava. Somente então o conhecimento de que se tornara porta
dora encontrou função.
OBRA
95
relação com a loucura, sendo mesmo condicionante dessa: uma subversão
da lógica manicomial que tem no tratamento moral o seu modelo – institu
indo a obediência como modo de relação, desautorizando a invenção e pres
crevendo comportamentos –, somente se faz efetiva se é capaz de subverter
também o modo hierarquizado, autoritário e prescritivo que historicamente
moldou a constituição das equipes de trabalho no campo da saúde.
Se esse modelo hierarquizado atravessa o conjunto de profissões e fun
ções desse campo, organizando-as segundo um ordenamento piramidal, é certo
que, na base dessa pirâmide, arcando com todo o seu peso e em interface com
os usuários do sistema, situam-se fundamentalmente a figura do auxiliar de
enfermagem e outros arrolados sob a categoria de “profissão de nível básico”
(auxiliar administrativo, de cozinha, de limpeza...). A proximidade que essas
profissões mantêm com os gestos e o contexto da vida cotidiana de seus usuá
rios investe suas ações de uma potência que, no entanto, submetida à lógica
institucional da obediência, é, em sua maior parte, direcionada, seja ao su
borno desse modelo, pela via do subterfúgio e da impostura, seja à sua reite
ração, através da imposição da obediência como reguladora do cotidiano das
relações vividas pelos usuários.26 A proposição de um outro modelo, operan
do sob a base do estabelecimento de uma relação de confiança entre seus ato
res, em que as responsabilidades sejam compartilhadas e a palavra circule de
forma igualitária, abre, aos trabalhadores, a possibilidade da invenção, trans
formando as suas ações em acontecimentos plenos de sentido, momentos de
encontro genuíno com cada uma das pessoas sob os seus cuidados.
Tal modelo implica, nós o vimos, um reposicionamento do conjunto
das profissões envolvidas no trabalho, desfazendo-se os limites de suas atri
buições específicas e constituindo espaços novos de interação entre os pro
fissionais e desses com os usuários dos serviços, de forma que os saberes
em jogo se deixem afetar reciprocamente. Atribuir valor de verdade à pala
vra do louco, reconhecer-lhe um saber acerca de si mesmo e do mundo, apos
tar na possibilidade de que a loucura produza obra,27 implica o abandono
de verdades únicas e absolutas como resposta ao enigma que o ser louco
26 Cf. Willians Valentini, em assessoria ao Projeto Morada São Pedro, do Governo do Estado
do Rio Grande do Sul, de 25 a 27 de outubro de 2002, em Porto Alegre.
27 Sem se opor à definição da loucura como ausência de obra (Foucault, 2002). O que se aponta
aqui como possibilidade de obra vai na direção do que Peter Pál Pelbart (1993, p.36) cha
mou de “caos-germe, (...) gestação a partir do informe, do indecidido”, que requer libertar o
tempo devolvendo-lhe “a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento
do insurgente.”
96
suscita; implica aceitação dos limites de nosso saber e o reconhecimento
do saber do outro. A ignorância faz aqui função: é no esburacamento dos
saberes vigentes que se constitui o espaço próprio à criação, articulando
saberes (disciplinares ou não), negociando posições, dividindo responsabi
lidades e riscos, compartilhando descobertas.
“Eu aprendi que não existem as respostas prontas que eu vim buscar
aqui...” – dizia-nos, ao final do curso, uma das suas participantes, o que sig
nificava o seu reconhecimento do espaço de ignorância inerente ao campo
dos saberes na relação com a loucura e, em conseqüência, a aceitação do
desafio de buscar inventar suas próprias respostas, fazendo-se autora do seu
trabalho, produzindo nisso, ela também, obra.
O texto que segue dá testemunho da potência de vida contida no en
contro entre duas auxiliares de enfermagem e uma moradora de longa data
do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.
REFERÊNCIAS
97
ACOMPANHANDO ASCOSTURAS
DE UMA HISTÓRIA
MARIA BEATRIZ RIBEIRO SEVERO
VANIR TERESINHA BENETTI DE FREITAS
APRESENTAÇÃO
99
escutávamos como desejo. Viemos a conhecer o funcionamento de alguns
setores do hospital, até então desconhecidos para nós, e, junto com Vitó
ria, interagimos com as diversas equipes e pacientes. Eram muitos os sen
timentos e a ansiedade que esse trabalho suscitava em nós. A experiência
que trazíamos como trabalhadoras em saúde mental somada à nossa von
tade de construir algo novo foram, com certeza, elementos fundamentais
para o êxito da proposta.
VITÓRIA
Vitória chega ao HPSP aos vinte e cinco anos de idade, em 1978, con
duzida pelo motorista da prefeitura da cidade em que morava, no interior
do Estado. É o motorista quem informa que Vitória tomou as crianças de
outra família dizendo que eram seus filhos, tendo sido, por esse motivo, re-
colhida ao presídio local. Ao psiquiatra que a recebe, Vitória diz que o ma
rido a tocou de casa, mas sabe que ele vai vir atrás dela para “tocar outro
filho”. Tem quatro filhos já, e não menstrua há dois meses. A avaliação so
ciofamiliar indica que Vitória está separada do marido e dos filhos, haven
do informação de que esses residem com a avó paterna. Permaneceu no
hospital no período de 1978 a 1982, tendo várias reinternações, altas por
abandono de tratamento e também alta melhorada. Retornou em 1984, man
tendo-se, desde então, numa mesma unidade de moradia.
Vitória é de estatura mediana, de peso um pouco acima do esperado
para seu porte físico. Mantém boa higiene pessoal, estando sempre bem ar
rumada para os padrões do hospital; seus cabelos lisos são tingidos e bem
penteados, e ela seguidamente os prende. Costuma chegar de mansinho,
sussurrando palavras obscenas, sempre em relação ao marido. É muito so
licitante em relação às suas coisas.
100
DIÁRIO DE UM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
Um pedido
História de vida
101
depois vendia para comprar comida”. Quando casou, foi morar longe da mãe,
pois esta não gostava muito do seu marido; ela “tinha ciúme”.
Vitória levou um irmão para morar em sua casa para aliviar sua mãe,
diminuindo-lhe as despesas. Precisou retornar ao trabalho devido a dificul
dades financeiras logo após o casamento.
Teve quatro filhos com o marido. Conta que o marido brigou muito
com ela, pois ele gostaria que tudo fosse homem. Diz que logo veio a trai
ção e a separação. Fala, com tristeza, que o marido a traiu com uma amiga
de trabalho. Nessa ocasião, levou os filhos para a casa de sua mãe, que sem
pre havia desaprovado seu casamento. Vitória relata que ficou muito doen
te desde então. Não sabe há quanto tempo reside no hospital e afirma que
não é paciente, mas funcionária: “eu moro aqui, eu trabalho aqui”.
Filhos
Vitória relata a vez que ganhou liberação para passar em casa o fim de
semana. Lembra do trajeto que fez de ônibus, da rodoviária; quando che
gou em casa, não encontrou as crianças, tendo a mãe lhe dito que não teve
condições de ficar com todos os filhos, de modo que, a mando do marido
de Vitória, alguns foram morar com a sua sogra. Vitória fica calada nesse
momento e termina a entrevista.
Fábrica de costura
102
A direção da escuta
Vencendo resistências
Recordações
Vitória coloca que sente falta do esposo, dos filhos e também da mãe,
apesar de sua mágoa com a mesma. Refere que, em outras vezes, tentou re-
conciliar-se com o marido, mas que não deu certo, pois ele mantinha uma
103
relação com “o puto”. Conta que caminhava muitas vezes sozinha pelas ruas
da cidade e que, então, resolveu vir para o São Pedro.
Reabilitação
Presente
104
Depois de vários encontros com a máquina, costurando em linha reta,
Vitória confecciona a sua primeira peça, uma roupa para cães, dando-a de
presente para o enfermeiro da unidade colocar em seu cachorro.
105
pode ser feito em relação ao conserto e ao preço. Quando retornamos para
saber a resposta, Vitória nos acompanha. Olha apenas, admirada, a enorme
quantidade de linhas e cores. O gerente informa que o técnico fará o con
serto a preço de custo, atendendo um pedido que vem da instituição.
O enfermeiro da unidade é informado sobre o valor do conserto e au
toriza o pagamento. A máquina é, finalmente, consertada.
De cuidados e projetos
106
Ofio de uma vida
Carteira de identidades
107
Trabalho de equipe
Cantinho da costura
108
O ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO COMO DISPOSITIVO
DA REFORMA PSIQUIÁTRICA:
DUAS EXPERIÊNCIAS
EM SAÚDE MENTAL COLETIVA
KÁROL VEIGA CABRAL
MÁRCIO MARIATH BELLOC
109
crorregião Metropolitana, que engloba a 1ª, 2ª e 18ª Coordenadorias
Regionais de Saúde.31 Os profissionais de nível médio dos serviços com
punham o público-alvo do curso por serem os mais carentes de capaci
tação específica em saúde mental coletiva, ao mesmo tempo em que eram
os que mais conviviam com os usuários de forma direta e sistemática.
Além das aulas e do espaço de supervisão, o curso oferecia uma asses
soria mensal aos serviços atendidos desde a sua primeira edição, na pers
pectiva de trabalhar uma forma singular de inserção do AT nas políticas
de atenção de cada serviço, levando em conta as suas peculiaridades.
A assessoria ao Hospital Psiquiátrico São Pedro ocorreu nos anos de
2001/2002, atendendo aos trabalhadores de nível médio, técnico e superior32
que, através de edital, haviam se candidatado a trabalhar no Morada São Pe
dro. Tal projeto foi concebido buscando minimizar duas formas de exclusão,
a saber: a que obriga milhões de pessoas a morar nas cidades sem acesso à
legalização da terra, infra-estrutura e serviços, e a que confina nos hospitais
psiquiátricos os portadores de sofrimento psíquico. Através da conjugação de
esforços dos programas da Secretaria da Saúde, Secretaria da Habitação e
Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social, tornou-se possível a
promoção de uma série de ações (entre elas podemos destacar a oficina de
geração de renda, os coletivos de trabalho, alfabetização de adultos etc.), que
viabilizaram a concretização do Projeto Morada São Pedro, permitindo que
ex-moradores do hospital voltassem a habitar a cidade.
Se o AT era o eixo norteador do curso oferecido pela Escola de Saúde
Pública, ele se fazia presente, na assessoria ao Projeto Morada, como ferra
menta capaz de dar suporte à proposta vigente de desinstitucionalização.
Assim, importa definir o que entendemos por AT, uma vez que tal modali
dade de atenção expandiu-se bastante, sendo possível encontrá-la associa
da às mais diferentes correntes teóricas e utilizada de diversas formas. Pro
pomos partir da reflexão suscitada através da obra de Francis Alÿs, intitula
da Zapatos Magnéticos. Durante a V Bienal de Havana, em 1994, o artista
fez percursos caminhando pela cidade com um par de sapatos magnetiza
Mariath Belloc.
110
dos. Através deles, coletou, de modo absolutamente aleatório, uma série de
objetos metálicos, despercebidos pelos demais transeuntes. Posteriormente,
colocou-os junto a mapas que atestavam o traçado de seus percursos diários
pela cidade. Durante as caminhadas pelas ruas de Havana, ele interagia tanto
com a cidade quanto com a população. Tal trabalho foi registrado em vídeo e
apresentado na 4ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, no ano de 2003.
É importante lembrar que esse artista, imigrante belga no México, é
um caminhante compulsivo e observador cuidadoso e incisivo do cotidia
no, como ele mesmo se intitula:
“(...) passo muito tempo caminhando pela cidade... Com freqüência, o con
ceito inicial de um projeto se concretiza enquanto caminho. Como artista mi
nha posição é igual à de um transeunte – tento constantemente situar-me no
entorno que se move. Meu trabalho é uma série de esboços e roteiros. A in
venção da linguagem vai de mãos dadas com a invenção da cidade. Cada uma
das minhas intervenções é outro fragmento da história que estou inventando
e a cidade que estou criando.”33
33Fragmento da entrevista concedida por Francis Alÿs na Cidade do México em 1993, que
faz parte do material da Curadoria Educativa para Formação de Professores da 4ª Bienal do
Mercosul.
111
Pública quanto no Hospital Psiquiátrico São Pedro, tudo nasce desses en
contros, dessa possibilidade de se acompanhar, de estabelecer conexões,
de constituir um laço social, o que talvez Evgen BavFar elevaria ao es-
tatuto de cumplicidade.
Evgen BavFar, artista e filósofo, cego desde os 12 anos de idade, ofe
rece visibilidade àquilo que queremos comunicar. Ele produz uma profun
da reflexão sobre o olhar, tanto em seus escritos quanto em sua produção
fotográfica, cujas fotos prefere denominar de escrituras feitas com luz. O
olhar de BavFar ensina-nos a ver de um outro modo a realidade que nos cerca,
a cidade em que vivemos, a multiplicidade de olhares com que nos encon
tramos também – e aqui se incluem os participantes do curso da Escola de
Saúde Pública e os trabalhadores do Morada, tanto quanto os artistas já ci
tados. Olhares díspares cruzam nosso olhar habitual, fazendo com que a ci
dadezinha onde vivemos e que reconhecemos possa se romper, permitindo
que, ao circular com os acompanhados, ou ao interagirmos com os profis
sionais a quem se dirige nosso trabalho, vislumbremos outras cidades que
passam a nos atravessar. Dessa forma, talvez possamos construir juntos uma
nova cidade a ser habitada, uma cidade que surge do nosso encontro no exato
instante em que a percorremos.
É nessa perspectiva que o AT, como modalidade de atenção em saú
de, constitui uma grande ferramenta da reforma psiquiátrica, através da qual
se investe na constituição de um enlace entre sujeito e social. Os pontos dis
cursivos oferecidos pelo sujeito em sua interação com o social são traba
lhados pelo acompanhante, que não faz mais do que ler o que faz sentido
para aquele sujeito singular, identificando, a partir dessa leitura, dispositi
vos que possam ser destacados deste social, articulando-os em rede capaz
de oferecer o suporte necessário ao acompanhado para a sustentação des
ses enlaces. Não esqueçamos, porém, que esta articulação é sempre dinâ
mica, um entorno móbil no qual o sujeito, com o apoio do acompanhante,
busca se situar, construindo um lugar possível para si, sentindo-se parte desta
rede e partícipe do fluxo da vida.
De forma análoga, a interação com os trabalhadores de saúde que ti
vemos a oportunidade de acompanhar, no curso da Escola de Saúde Públi
ca e no Hospital Psiquiátrico São Pedro, reproduzia a qualidade buscada na
relação entre acompanhante e acompanhado nos percursos por ambos de
senhados. Ao longo dessas duas experiências, vivenciadas por nós como
assessores, professores e supervisores, fomos constituindo uma narrativa que
112
aqui passamos a apresentar, utilizando, como já anunciado, o texto de Evgen
BavFar, “Porto Alegre”, publicado em seu livro Memória do Brasil (2003).
Nesse texto, o artista relata sua primeira viagem a Porto Alegre e as impres
sões que ele passa a construir no encontro com a cidade através da discursi
va de seus múltiplos interlocutores:
“Quando ouvi falar da primeira vez desta cidade ao sul do Brasil, uma parti
tura musical apareceu dentro de mim. Não fui capaz de lê-la, pois as palavras
turbilhonavam e não queriam fazer-se conhecer.
(...) Prosseguindo a dinâmica dos primeiros passos indefinidos, compreendi
que precisava de muito exercício para uma boa leitura desta partitura. Em re-
alidade, havia em mim a angústia habitual daqueles intérpretes que, já no pri
meiro contato, sentem-se incapazes de considerar uma interpretação inédita
dos papéis que lhe propõem. Havia em mim, portanto, sinais precursores de
uma realidade que eu ignorava até então, mas que, graças a este convite amis
toso, faziam-me tomar consciência de uma cumplicidade que teria um papel
importante para minhas futuras imagens.
(...) Foi assim que abordei esta partitura como um intérprete não experiente.
Apesar disso, pensei várias vezes nas significações secretas que esse convite
comportava, e que me obrigavam a considerar alguns ensaios, algumas revi
sões, sabendo que um dia eu poderia talvez decifrar melhor os sinais que tão
generosamente me ofereciam.” (BAVFAR, 2003, p.113-114)
113
a um momento vivido em um de nossos encontros com o grupo de traba
lhadores do Morada São Pedro. Juntos, escutávamos Caetano Veloso can
tando Sampa. A música expressava bastante bem a atmosfera do grupo –
fossem trabalhadores ou assessores. Compreendíamos que teríamos de ope
rar transformações em nosso fazer: e alguma coisa acontece no meu
coração...e Coisa esta que nos dava o impulso necessário para seguir em
frente apesar dos temores: e...é que quando eu cheguei por aqui eu nada
entendi...e. Foi necessário dispor-se a aprender com os colegas, com os as-
sessores e com os usuários, ao mesmo tempo em que o trabalho era desen
volvido. E e...foste um difícil começo, afasto o que não conheço...e, mas
nossa vontade de trabalharmos juntos com uma política real de inclusão
social era a mola propulsora que nos fazia percorrer as ruas ainda desco
nhecidas dessa cidade nova, aprendendo a lidar com as angústias e medos
do caminho, acreditando na possibilidade de estabelecer uma outra relação
com os usuários, desde um novo lugar, apoiados em uma outra lógica que
construiríamos juntos. Sem dúvida, as experiências nacionais, de Santos e
de Campinas, e as internacionais, como a de Trieste, serviram de ponto de
partida e foram de grande auxílio para a construção das políticas necessárias
à implementação da reforma psiquiátrica, mas não podiam ser tomadas como
cartilhas a serem seguidas. Fazia-se necessário assumir a autoria do processo
de reforma dentro do contexto local, e para isso era preciso, antes de tudo,
possibilitar a recuperação das capacidades narrativas.
Walter Benjamin, em seu texto de 1936, sobre o narrador, fala-nos o
quanto a capacidade de trocar experiências estava, desde então, em declí
nio. O emudecimento dos soldados que voltavam da primeira grande guer
ra é citado como exemplo radical desse declínio da narração. Benjamin apon
ta o quanto eles retornavam empobrecidos no que se refere à experiência
comunicável. Na condução de nosso trabalho, no curso e na assessoria, tam
bém nos deparamos com a enorme dificuldade, por parte dos profissionais
de saúde, em produzir uma narrativa, comunicar uma experiência. Não es
tamos nos referindo a algo como a incapacidade de falar sobre seu sofri
mento no trabalho, informando sobre os singulares obstáculos, impasses e
percalços de cada um ou os de todos vinculados a esse contexto. Para tanto,
era suficiente oferecer-lhes o espaço apropriado, do qual, em geral, mostra
vam-se carentes. A dificuldade a que nos referimos diz respeito ao que se
manifestava como impossibilidade de construir uma narrativa em que se
incluíssem como sujeitos do processo de mudança, em que pese a vontade
114
expressa de fazê-lo. Tampouco os usuários dos serviços eram capazes de
exercitar esse lugar de sujeito; encontravam-se enclausurados na institui
ção Manicômio, que transcende as paredes dos hospitais psiquiátricos e
alcança a rua, constituindo o silencioso – por vezes não tão silencioso assim –
do discurso cultural. Tanto aquele que há muito tempo chamava o hospício
de casa quanto o que freqüentava um serviço aberto sem nunca ter se sub
metido à internação sofriam profundamente os efeitos de uma alienação
extrínseca à sua condição psíquica.
Talvez estejamos falando mesmo de sobreviventes, como os da pri
meira guerra mundial. Pessoas que sobreviveram bravamente a anos de
alienação, seja a do trabalho seja a que outrora era tratada como sinôni
mo de loucura. Sobreviventes enclausurados na informação sobre as nor
mas institucionais – tomadas de forma maciça, constituem o germe da cro
nificação tanto do usuário quanto do profissional – e sobre os sintomas,
prenúncio de um diagnóstico-sentença psicopatológico. Sobreviventes,
enfim, de uma catástrofe cotidiana, prisioneiros de uma guerra não decla
rada, mantidos em cárceres às vezes sutis; como haveriam de se tornar
capazes de autoria, de narração?
A informação, de acordo com Benjamin, precisa ser comprovada. Já
a narrativa pode ser entendida como algo que vem de longe, como a voz
de um estranho – esse que, desde Freud, sabemos só poder causar estra
nhamento justamente por nos ser deveras íntimo. Nesse sentido, o discur
so delirante do usuário, não tendo comprovação imediata, é tomado como
inválido, como estranho, sendo, por isso, submetido a práticas ditas de
saúde mental que visam unicamente ao seu banimento. Da mesma forma,
os esforços individuais de quebra do discurso manicomial alienante, in
tentados por trabalhadores que buscam exercer de modo verdadeiramen
te digno sua profissão, vêem-se tolhidos pela Instituição, geralmente em
nome da observância das normas, sendo, muitas vezes, estigmatizados
como atuação, no sentido pejorativo em que o termo, tomado de emprés
timo da clínica, é nessas ocasiões utilizado
A intervenção que pudemos construir juntos, em ambas as experiên
cias, tem a simplicidade do grampo de metal que se incorpora ao caminhar
de Francis Alÿs com seus sapatos magnéticos. Em sala de aula e no espaço
de assessoria, buscávamos um resgate da narração. Tratava-se de poder con
tar sua história profissional, inserida no contexto da construção de um ou
tro fazer em saúde mental, tendo a prática do AT como horizonte. Ao trans
115
formar a singular vivência dessa construção em experiência comunicável
aos colegas, era o seu acontecimento mesmo o que a narração, então efeti
vada, vinha tornar possível.
Bernadete, Renita e Sílvia são trabalhadoras da saúde mental. Mais do
que isso, hoje são referência nesse trabalho em sua cidade. São profissio
nais de nível médio que realizam ações em AT junto à rede básica. Na pon
ta do sistema de saúde, na atenção primária, além de fazerem a articulação
entre o posto de saúde e o serviço especializado, desenvolvem um trabalho
clínico em saúde mental. Intervêm no sentido da prevenção a internações
psiquiátricas, outrora recorrentes na vida de seus acompanhados. Ao mes
mo tempo, o trabalho que elas realizam produz efeitos que não se limitam
ao campo da atenção em saúde, mas abarcam o contexto de vida da comu
nidade local, promovendo o início de uma mudança cultural, uma queda de
preconceitos. Aos poucos, a comunidade passa a se dar conta de que aquela
pessoa antes conhecida como a louca do bairro, de quem só era esperada
uma conduta bizarra, é capaz de outras produções, fazendo-se possíveis
novas formas de inclusão na mesma comunidade. Bernadete, Renita e Síl
via iniciaram o Curso Básico de Qualificação em Acompanhamento Tera
pêutico cheias de interrogações. Tinham pouca ou quase nenhuma experiên
cia em saúde mental. Em verdade, não conseguiam reconhecer como expe
riência a vivência que já possuíam, da qual pouco podiam falar. O seu pri
meiro desafio foi o de começar a construir um saber a partir de suas vivên
cias profissionais, associadas ao estudo teórico que se iniciava e, principal
mente, ao exercício da prática do AT. Na medida em que a dinâmica do cur
so, mantendo-se atenta às sensibilidades singulares, disponibilizava as fer
ramentas conceituais adequadas e possibilitava a reelaboração de suas his
tórias profissionais através da narração, no espaço de supervisão, desse novo
fazer em que se lançavam, foi possível acompanhar a transformação opera
da por essas três trabalhadoras em seu labor em saúde mental. Uma trans
formação que beneficiava não apenas os usuários atendidos, mas também
elas mesmas, significando cuidado com o cuidador. As angústias decorren
tes de seu trabalho já não mais as paralisavam, mas eram usadas como ma
terial clínico, entendidas como parte do processo transferencial em jogo na
relação terapêutica estabelecida entre acompanhante e acompanhado.
Como já foi dito, a supervisão era o espaço por excelência para exer
citar essa capacidade narrativa. Era, nesse momento, que melhor podiam elas
mesmas, pela alteridade ali personificada no supervisor e nos colegas de
116
grupo, observar o quão marcadas por singulares trajetórias eram suas nar
rativas, tal como as marcas que, diz Benjamin, o oleiro deixa, de suas cale
jadas mãos, nos vasos que produz.
O resultado alcançado, a construção empreendida por essas trabalha
doras, devia-se também à constante, dedicada e participativa presença de
um representante da gestão da saúde mental do seu município nas reuniões
de assessoria aos serviços, incluídas na programação do curso. É na coleti
vidade que se tornou possível tal construção. Cabe salientar, porém, que essa
solução encontrada, ou seja, a de ter profissionais de nível médio trabalhando
com AT na atenção primária, como referência em saúde mental, foi a que
esse município foi capaz de construir. Nesse sentido, outros profissionais,
outros equipamentos de saúde mental coletiva, outros municípios que par
ticiparam do curso, foram encontrando soluções singulares tão criativas
quanto a relatada, contudo diferentes para atender eqüitativamente às de
mandas de cada população.
Na sala de aula da Escola de Saúde Pública e nos encontros de asses
soria ao Projeto Morada São Pedro, tratou-se, portanto, de construir coleti
vamente esse espaço de recuperação de capacidades narrativas; sobretudo
um espaço de valorização do saber produzido por esses profissionais no
encontro com os usuários e que se desdobrava na valoração do saber do
usuário sobre sua própria vida, possibilitando-lhe, igualmente, o exercício
da narração de si mesmo.
Tal como o momento anteriormente descrito, em que Sampa nos foi
importante, muitos outros encontros aconteceram, e fomos construindo jun
tos um saber acerca de um outro jeito de cuidar, tanto no curso quanto no pro
cesso de assessoria. Fomos desconstruindo nosso manicômio mental, como
apontam Peter Pal Pelbart (1990) e Antônio Lancetti (1990), e construindo
em nossas práticas uma possibilidade real de auxiliar os usuários a retomar o
espaço da cidade, lidando com as pequenas e grandes dificuldades do dia-a
dia: fazer amigos, trocar o gás, divertir-se, decidir o que comer no almoço,
ter medos, ir ao supermercado, apaixonar-se, dançar, sonhar.
Uma situação singular, vivida pelo grupo de trabalhadores e usuários
do Projeto Morada na relação com a cidade, merece ser narrada. Ocorreu
quando, no calor da disputa eleitoral pelo governo do Estado do Rio Gran
de do Sul, em 2002, o grupo decidiu tomar as ruas de Porto Alegre e dar
visibilidade à luta pelo processo efetivo de desospitalização dos moradores
do São Pedro, buscando assegurar a continuidade do Projeto na perspectiva
117
de um novo governo. O Brique da Redenção, que funciona aos domingos
junto ao tradicional parque da cidade, ponto de encontro e palco de múlti
plas manifestações políticas e culturais, foi o local escolhido para a realiza
ção de uma passeata com distribuição de panfletos informativos sobre o
Projeto Morada São Pedro. No dia marcado, juntamo-nos a usuários e tra
balhadores, marchando pelas ruas desde o Colégio Júlio de Castilhos, ou
tro ponto emblemático das lutas políticas dos gaúchos. De lá, saímos en
carreirados, tremulando nossa bandeira por uma sociedade sem manicômios.
No meio do caminho, deparamo-nos com siglas partidárias que, também
circulando por aquele espaço, expressavam a sempre acirrada disputa elei
toral, característica de nosso rincão. Os participantes de nossa passeata fo
ram tomando posição, elegendo estrelas ou corações como símbolos que se
incorporaram ao nosso caminhar, de acordo com suas preferências pessoais.
Ao entrarmos na larga avenida que abriga o Brique, muitos já portavam
adesivos e até bandeiras dos partidos políticos envolvidos na disputa pelo
governo. O que aconteceu então nos dá uma clara visão da dicotomia social
diante de uma situação dessa ordem. Estabeleceu-se outro tipo de disputa,
e a massa que nos observava/participava dividiu-se em duas frentes contrárias:
alguns nos apoiavam, demonstrando simpatia pelo projeto, dando força e
até engrossando as fileiras da passeata, mas uma outra parte da população
que lá estava passou a nos agredir verbalmente, ameaçando chamar a polí
cia, pois, como muitos esbravejavam, estávamos “usando os pobres pacien
tes para carregar bandeiras partidárias”. Rapidamente, o clima festivo de
nossa investida desfez-se em tensão. A massa nos engolia, pressionava, de
dos em riste, vozes alteradas. No meio desse turbilhão, porém, surge a voz
firme de um dos usuários, que rebate: “tô aqui por que eu quero, lutando
pelo meu direito de ter uma casa e torcer para o time que eu quiser”. Suas
palavras ecoaram pelo meio da rua, intimidando a multidão que nos cerca
va. Lentamente, um grupo que até então obstruía o caminho deslocou-se,
permitindo nossa passagem. A passeata voltou a fluir pelos caminhos do
Brique. Ainda ouvíamos alguns murmúrios de contrariedade e caras feias,
mas pudemos voltar a evoluir e apresentar nossas idéias.
O fragmento que acabamos de relatar aponta o real tensionamento de
trabalhar com uma proposta de saúde mental que visa à desconstrução do
instituído, no caso o manicômio, e à substituição do mesmo por uma rede
de serviços que propõe a circulação da loucura pelo espaço social. Materia
lizar um desequilíbrio a partir desse tensionamento é tomar o AT como dis
118
positivo da reforma psiquiátrica; é quando, a partir dessa modalidade de aten
ção, podemos, como aponta Lourau (1993) sobre o dispositivo, macular o
sagrado; é colocar em funcionamento algo que desvele o jogo de forças, pos
sibilitando, assim, a quebra do instituído. Mas isso só é alcançado quando nos
dispomos a ser cúmplices nesse processo; ser instituintes, e não instituídos.
Para finalizar, gostaríamos de ressaltar, das linhas de BavFar, a sua
disponibilidade em conhecer, aprender, permitir a emergência do novo.
Imbuídos desse mesmo espírito é que buscamos nos relacionar com os par
ticipantes do Curso na Escola de Saúde Pública e com a equipe do Projeto
Morada São Pedro. Um grupo de assessores, professores, supervisores dis
poníveis para aprender, conhecer, trocar, dispostos a acompanhar o desafio
da construção de um novo fazer em saúde, cientes de não deterem um saber
total e absoluto sobre esse novo fazer, mas desejosos de colocar os seus sa
beres (e ignorâncias) a serviço da sua concretização.
Lancetti (1997), no texto A clínica como ela era, recorda-nos a céle
bre frase basagliana, “a liberdade é terapêutica” (p.184), e nos aponta que
“a clínica da cidadania mostra que a de consultório não é a única clínica
possível” (p.190). Apoiados nessas idéias, utilizamos o AT como base para
o trabalho de formação dos trabalhadores de saúde que aceitaram mais este
desafio da implementação da reforma. Juntos, fomos tecendo uma rede,
um conjunto de linhas em que se inscreve a partitura de BavFar. Linhas
de costura que seguem tecendo seus contornos nesse novo horizonte. Li
nhas cheias de vida e vontade de potência, personificadas nos membros
dessas equipes. São Renitas, Abrilinos, Conceições, Simones, Régis, Ve
ras, Magdas, Kátias, Rosanes, entre tantas outras que, de dentro ou de fora,
seguem apostando no projeto, costurando pontes com o social para a pro
moção do bem maior que é a vida.
REFERÊNCIAS
119
LANCETTI, Antônio. “A clínica como ela era”. In: LANCETTI, Antônio (org.).
Saúdeloucura 5. São Paulo: Hucitec, 1997.
LOURAU, René. Análise Institucional e Práticas de Pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ,
1993.
PELBART, Peter Pál. “Manicômio mental – a outra face da clausura”. In: LANCET
TI, Antonio (Org.). Saúdeloucura 2. São Paulo: Hucitec, p.131-138, 1990.
REFERÊNCIA MUSICAL
VELOSO, Caetano. “Sampa”. In: VELOSO, Caetano. Circulado Vivo – CD2. São
Paulo: Gravadora Polygran, 1992.
120
QUE GRUPO É ESTE?
JACQUELINE LA ROSA MESQUITA
121
também dados sobre cursos profissionalizantes, emprego etc. Após termos
algumas informações reunidas, colocamos cartazes pelo Serviço, chaman
do aqueles que quisessem dicas para seu tempo livre: “O CAIS tem dicas
para seu lazer: cinema, teatro, música etc.”
No primeiro encontro, três pessoas apareceram. Poucas? Bom, era só
o início. Buscamos saber deles o que faziam no que chamávamos de tempo
livre. Qual tempo livre? A maioria dos usuários não trabalhava ou estudava
e parecia que o tempo livre era todo do mundo. Como ocupavam seu tem
po? A maioria das respostas era: fico em casa, vejo televisão, vou ao CAIS,
visito algum parente... O que gostariam de fazer? Ir mais ao cinema, talvez,
era a resposta.
Quando no início apresentávamos a programação de cultura e lazer do
fim de semana na cidade, como alternativas para que construíssem um fi
nal de semana diferente, o que ouvíamos era: tenho medo de ir sozinho, posso
me perder, é perigoso, posso ser assaltado...
Quanta ingenuidade a nossa! Se as pessoas não faziam essas ativida
des é porque algo existia: combinação dos medos citados acima, falta de
dinheiro (a população usuária do serviço é muito carente), falta de hábito e
mais uma certa tendência ao congelamento (quando a agitação não está pre
sente), típica da psicose. E agora?
Em menos de um mês, decidimos marcar um primeiro “passeio”, nome
que soou agradável ao ouvido de todos. Surpresa! Por parte da supervisão
local, a observação de que os passeios que eram feitos no serviço, geral
mente no final de ano, eram organizados com meses de antecedência. Quem
iria? Estávamos seguros de sair com um grupo pela cidade? Ansiedade. Es
távamos “correndo” muito?
Uma primeira constatação: não estávamos no ritmo da instituição, que
ríamos acontecimentos. O que manteria este grupo em funcionamento? Con
versamos sobre os passeios, pois, se a proposta de existência do grupo era de
propiciar a circulação dos usuários pela cidade, teríamos de manter uma pro
gramação com alguma regularidade. Não se tratava de um grupo terapêutico
no sentido convencional. Nossa proposta não era compor um grupo fechado,
mas sim um espaço aberto, que por si mesmo promovesse uma outra circula
ção, ou seja, as pessoas viriam pela sua vontade em participar das atividades
programadas. Diferença com os demais grupos que lá existiam.
Aos poucos, meio sem saber o que fazer, fomos construindo o traba
lho neste grupo. O que faremos nas semanas em que não teremos “passeio”?
122
Surgiu a proposta de tentarmos dar alguma consistência ao que foi vivido, a
fim de construir significações, poder contar uma história. Propusemos que na
semana seguinte ao passeio faríamos uma atividade em que o grupo pudesse
relatar o que vivenciara. Entendíamos que era importante deixar algum tipo
de marca do que estávamos experimentando. Isto, por vários motivos. Um
deles era dar a consistência já referida, para que as saídas não fossem idas e
vindas sem sentido algum – um dos efeitos terapêuticos do acompanhamen
to é justamente servir de memória, de testemunho do que foi experimentado.
Outro objetivo era produzir um registro, servindo de informação para que os
profissionais e demais usuários se inteirassem do que havíamos feito.
Muitos destes encontros não alcançaram o objetivo inicial. As pessoas
que compareciam às saídas nem sempre estavam na semana seguinte para
o debate proposto. Outras lá estavam para saber o que faríamos naquele mês.
Assim, muitos encontros foram de bate-papo sobre assuntos diversos. Mais
adiante relatarei passagens significativas desses momentos.
As atividades do grupo configuraram-se da seguinte forma: uma vez
por mês um “passeio”, ou seja, saída do CAIS para conhecermos algum lo
cal, participar de algum evento etc. Na semana seguinte ao passeio, debate
sobre o que foi vivenciado e construção de algum registro. Como as saídas
eram mensais, começamos a passar filmes em vídeo na quinzena em que
não tínhamos o passeio. Assim, mais ou menos de quinze em quinze dias
havia uma atividade, passeio ou vídeo, e os encontros que se intercalavam
eram de “conversa”.
Que grupo é este? É certo que é um grupo, mas tantas vezes me per
guntei a respeito de que tipo de grupo se tratava. Das teorias que aprende
mos no curso de Psicologia, nenhuma conseguiu me responder plenamente
a natureza deste coletivo. E precisa teoria? Acredito que prática e teoria an
dem juntas. Se houver só teoria, teremos só modelos, representações. Se ti
vermos só prática, teremos experiência sem reflexão. Não tenho a preten
são de “teorizar” sobre o grupo, mas pretendo fazer uma reflexão sobre esta
prática a partir de alguns elementos teóricos.
123
Em geral podemos falar de características mínimas para definir gru
palidade: um certo número de pessoas, reunidas por constantes espaciais e/
ou temporais, com objetivo(s) em comum e que combinam certas regras para
poderem viabilizar o alcance desse(s) propósito(s). Todas estas caracterís
ticas estavam presentes no grupo que é aqui analisado. No entanto, esse gru
po possuiu particularidades.
Acredito que não havia somente um objetivo em comum para as pes
soas que participaram desta experiência. O convite feito aos usuários do
serviço era claro, mas as pessoas foram se vinculando conforme seus dese
jos. Havia um subgrupo (vou chamá-los de Juliano, Isabela, Vanessa, Ire
ne) que demonstrou interesse em fazer os passeios. Esses quatro usuários
participaram de várias atividades fora do serviço e, quando não podiam com
parecer aos encontros de sextas-feiras, buscavam se informar acerca da pro
gramação futura.
Um outro subgrupo (Tiago, Pedro, Eduardo, Vinícius) caracterizou
se por participar das sextas-feiras independentemente dos passeios. Vinham
para conversar e não se engajaram de forma completa nas saídas organiza
das. Houve também participação de outros em determinados momentos, não
se configurando uma permanência neste espaço, e ainda aqueles que vie
ram uma única vez, ou ver um filme, ou simplesmente conhecer a proposta.
Ao todo foram cerca de trinta encontros. Foram vistos cinco filmes em
vídeo, no próprio CAIS, saímos para ir ao Parque Farroupilha, ao Museu
Júlio de Castilhos, visitamos a Praça da Matriz, o Palácio do Governador e
o Planetário, assistimos uma peça teatral e fomos uma vez ao cinema.
Como atividade bem mais esporádica, propusemo-nos a dar uma “as
sessoria” para tirar documentos, fazer inscrição em cursos, obter informa
ções sobre locais de emprego.
A principal característica deste grupo foi sua abertura a estas dife
rentes formas de inserção nos acontecimentos coletivos. Elias Canetti, em
seu livro Massa e Poder, teoriza sobre os fenômenos sociais a partir de
uma reflexão sobre as características das massas humanas. Apesar das di
ferenças temáticas, gostaria de utilizar algumas idéias ali colocadas. Quan
do o autor fala de massa aberta, salienta que seu crescimento não conhece
limites, ao contrário, quer cada vez mais se expandir. Existe uma espon
taneidade nesta origem, que não é absoluta porque um núcleo central a
começou. O que eu gostaria de destacar é que essa certa espontaneidade
de origem provoca o temor de um fim súbito; a desintegração pode ser
124
tão rápida quanto seu crescimento. Ao contrário, as massas fechadas são
caracterizadas pelo seu limite, há uma certa estabilidade e, assim como
existe um certo ritual de entrada e de recepção, e mesmo de repetição, ou
seja, a perspectiva de voltar a se reunir, o fantasma de sua extinção é mais
distante. (Canetti, 1983, p.13-14)
Não posso afirmar que este temor estava colocado para os participan
tes, mas, para nós que tínhamos um papel de “animadores” do grupo, esse
fantasma da dissolução esteve sempre presente. Ao organizarmos alguma
atividade, nunca tínhamos a certeza se haveria pessoas que participariam
dela. Tivemos vários encontros em que uma única usuária comparecia, Isa
bela, que foi a mais assídua freqüentadora do grupo. Esse fantasma foi sen
do aos poucos esquecido, mas ele assombrava nosso grupo e, como todo
conteúdo imaginário, fez sua função.
Existiram também questões concretas que tiveram de ser enfrentadas a
partir deste modo de funcionamento. Em certas atividades, tivemos de esta
belecer inscrições prévias para que pudéssemos ter um mínimo de previsibi
lidade. Quando os eventos envolviam outras instituições, tivemos de garantir
que haveria
semos com bastante
um certoantecedência
número de participantes,
e ampliássemos
e isto
a divulgação
fazia com que
interna.
planejás-
125
teve de fazer escolhas, tomar decisões. Não foi fácil conduzir esse proces
so. Eram muitas vontades distintas. A falta de experiência dos usuários com
este assunto levou a que muitos nem soubessem o que escolher. Decidida a
peça que veríamos, passamos mais de seis horas na fila para a compra de
ingressos. Esse momento, que gostaríamos que fosse de experimentação
sobre a perspectiva de escolher a peça, comprar ingressos e ir ao teatro,
mostrou-se importante, apesar de ter sido também complicado. Como am
pliar o campo de vivências com tantas dificuldades?
Uma questão faz-se necessária discutir: como propiciar uma amplia
ção das possibilidades de circulação sem aporte de recursos? Como manter
o oferecimento de atividades desse tipo sem cair em um assistencialismo
que só engessaria as possibilidades de autonomia?
Fomos ver a peça teatral com quatro usuários e mais a mãe da Isabela.
Teatro lotado, muita expectativa. Juliano várias vezes perguntando o que era
o teatro, o que aconteceria. Ao começar a peça, ele pergunta: é assim o tea
tro? Respondo: sim, mas existem “teatros” dos mais variados tipos, alguns
com muitos atores, outros com poucos, com histórias divertidas, tristes...
Às vezes, tive um sentimento de dúvida, de questionamento. Afinal,
para que serve tudo isso? Algo está sendo ou não construído para essas pes
soas? O que é que está sendo importante, fazendo função terapêutica? É um
grande aprendizado descobrir que, talvez, nunca saberemos o que de fato
significou para eles essa experiência, por exemplo, de ir ao teatro.
A primeira atividade na qual havia uma tarefa a ser cumprida pelo gru
po deu-se após uma visita ao Museu Júlio de Castilhos. Naquele dia, além
das pessoas que efetivamente fizeram a visita, estavam mais uns três usuá
rios que não haviam participado do passeio. Ao todo eram sete pessoas, além
de nós, estagiários. Propusemos o relato através de um cartaz. Quem foi ao
Museu construiu um cartaz sobre a visita, quem não foi construiu sobre
museus em geral. Foi interessante esta primeira atividade “bem estrutura
da” junto ao grupo.
Como foi a construção do trabalho em grupo? Primeiro perguntamos
o que havia chamado mais atenção. Depois deixamos à disposição revistas,
tesoura, cola, canetas e falamos que poderiam ser procuradas imagens que
representassem nossa visita. O cartaz foi sendo criado, um pouco no cada
126
um por si, sem alguém organizando o conjunto. Às vezes eram discutidos
pontos como: esta imagem é ou não de museu? Como fazemos para colo
car tal coisa no cartaz? Ao final, o cartaz ficou bastante representativo, não
somente do Museu mas do que havia sido vivenciado.
Após anos de experiência com esse tipo de atividades em outros gru
pos, pudemos constatar que havia diferenças, mas também inúmeras seme
lhanças. As diferenças diziam respeito a um certo desprezo às próprias idéias,
pedidos de desculpas por não saber o que fazer, um trabalho em certa medida
isolado dos demais, mas que não era de todo individualista... As semelhanças
eram: cada um buscando dar a sua contribuição individual, querendo saber
dos demais o que colocar, às vezes rigidez para lidar com as diferenças...
A outra atividade estruturada foi a construção coletiva da história que
assistimos em vídeo, “A marca do Zorro”. Essa tarefa exige muito, pois é
necessário que se tenha uma boa noção do todo da história para contá-la com
certa coerência. É necessário respeitar uma certa ordem dos acontecimen
tos, é preciso saber continuar do ponto em que um outro parou... Aqui no
vamente compartilhamos uma experiência muito rica.
Temos uma certa tendência neurótica a começar as coisas rapidamen
te, para nos livrarmos delas, para que logo elas fiquem prontas; no entanto,
a criação exige um esperar que do caos surja alguma ordem, que propicie
um início.
Com os usuários do CAIS, estamos permanentemente vivendo este
tempo de suspensão, em que parece que nada vai acontecer. Se não dermos
tempo, por pura ansiedade neurótica nossa, nada acontecerá, mas, se tiver
mos este tempo gordo (Pelbart, 1993), dali onde parece que nada surgirá,
lentos movimentos se presentificam até que haja um ritmo próprio de pro
dução; nem a produção acelerada que a sociedade capitalista exige-nos nem
a paralisia dos hospícios: o tempo da criação.
O cartaz contando a história do filme do Zorro ficou inacabado, mas
foi tão discutido, tão intensamente as pessoas relataram a história, os pon
tos que elas mais gostaram, onde torceram para que tudo desse certo, onde
ficaram tristes, em que ponto se deleitaram, que escrever todas estas in
tensidades seria quase impossível. Quem for ver o cartaz, perceberá que
ele está composto por vários tipos de letras, com uma história que não está
lá muito coerente e que não tem bem um final e talvez só confirme que a
loucura é isto, incoerência, inacabamento... Creio que realmente a loucu
ra também é isso, e às vezes, predominantemente isso, principalmente
127
quando comparamos a loucura com a produção neurótica. Mas, quando
conseguimos dar um tempo para que a produção psicótica possa se apre
sentar com a sua própria face, temos ali também a possibilidade de um
outro resultado. Não buscar o acabamento das formas burocráticas pode
significar poder viver o presente dos processos. Talvez este presente seja
de difícil relato, de difícil apreensão racional, afinal, contamos as coisas
depois que elas acontecem! Mas permitir este tempo pleno, em que “os
movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho” (Pelbart,
idem), pode significar a vivência de uma temporalidade diversa daquela
em que a loucura se protege do horror.
Essa compreensão, que apresentei em um dos encontros de supervi
são na Universidade, foi questionada, tendo-me sido perguntado como fi
cava a questão de construir algo no concreto, que pudesse ser tomado como
referência; afinal, a clínica da psicose é justamente a obtenção, a partir do
real, de algum estatuto simbólico, alguma significação que permita ao su
jeito ser algo distinto do real de seu corpo (Calligaris, 1989).
Penso que não são visões antagônicas. Construir algo que tenha esta
tuto simbólico apenas faz função terapêutica se for apropriado pelo sujeito.
O simbólico é um campo de significados para alguém. Se a tarefa for “cum
prida” sem apropriação, não terá este resultado. Não faço, porém, a apolo
gia do processo pelo processo. Quando terminamos o cartaz sobre o Mu
seu, relatado acima, foi surpreendente o sentimento de satisfação das pes
soas no grupo. Algo tomava forma concreta ali, com a assinatura de todos,
e isto, sem dúvida, tem um grande valor.
O que é próprio da psicose em relação à grupalidade? Em uma de nos
sas supervisões foi comentado sobre a resistência dos profissionais e os
questionamentos que cercam a proposta do trabalho em grupo, tratando-se
de psicóticos. Que questão intrigrante, então “louco” não forma grupo?
Resposta bem humorada: cada um já é um grupo inteiro!
Em muitos encontros parecia que não havia grupo. Era um monte de
gente, cada um falando de si para um dos estagiários que se encontrava no
momento como “coordenador” ou fora escolhido como interlocutor. Con
tavam de sua doença, de suas internações, de seus problemas da semana.
Falavam como se quisessem que nós soubéssemos quem eles eram. O as-
sunto de um não tinha aparente vínculo com o do outro, e às vezes no meio
da fala de alguém outro começava a falar, ao mesmo tempo! A nossa pro
posta nunca fora de grupo terapêutico. Como lidar com esses conteúdos? O
que fizemos foi encarar tais falas como apresentação de si. Ouvíamos com
128
atenção e respeito, perguntávamos e falávamos o mínimo possível. Deixá
vamos um pouco a coisa acontecer, às vezes angustiados diante de um con
teúdo mais carregado de emoções, às vezes assustados com a agitação, às
vezes aborrecidos com os que tomavam conta do espaço ou com aqueles
que jamais falavam.
Lendo um artigo de Antonio Lancetti (1993), deparei-me com uma
questão levantada por ele: se, nas principais experiências de desinstitucio
nalização da doença mental, os trabalhos desenvolvidos sempre passaram
pelos grupos, por propostas que tinham sua viabilização através de coleti
vos, por que a relação entre grupo e loucura é tão pouco teorizada?
Para este autor, o grupo é muito poderoso exatamente nesse campo,
pois ele é possibilitador de continência acolhedora. “O simples fato, ao
mesmo tempo extremamente complexo, de estar-louco com-outros é forte
mente continente e terapêutico” (Lancetti, 1993, p.158). A simples coleti
vidade produz este efeito? É claro que não. É necessário estar em grupo, e
não somente ocupando o mesmo espaço e tempo.
Muitas vezes nós, estagiários, atuamos no grupo como receptores e
interlocutores de falas serializadas. Lancetti problematiza esta questão, co
locando que um dos desafios do coordenador deste tipo de grupo é dar es-
paço para a ressonância, para a invenção, para o ritmo próprio do grupo.
Ao reforçar a serialização, cortamos a possibilidade da instituição do que é
grupal. Por serialização compreendemos a intervenção para um único mem
bro, a polarização estagiário-usuário, por exemplo. Muitas vezes lançamos
para o grupo algumas questões para que outros falassem sobre algo que es-
tava em pauta, mas é necessário mais que isso. É necessário abrir ao grupo
a possibilidade permanente de atuar.
Em uma ocasião, pudemos perceber que, no meio de falas aparente
mente desconexas, havia um falar de um mesmo assunto, que um olhar ana
lítico externo jamais perceberia, reafirmando a falta de senso grupal na psi
cose; mas uma atenção a ritmos, gestos, olhares, que são motivados por
outros ritmos, gestos e olhares, permite ver conexão entre falas que não es-
tão ligadas pelo seu conteúdo explícito, mas pelo que provocam de emo
ções, identificações e sentimentos.
Jurandir Freire Costa relata uma experiência na área de saúde pública
com a “doença dos nervos”, em que aborda o preconceito dos profissionais
em relação a “outras falas”, por possuírem como paradigma um modelo
único de comunicação.
129
“Em alguns indivíduos destas camadas populares, observamos a tendência a
reagir direta, e às vezes imperativamente, à fala dos outros. No começo da
experiência, o fato foi tomado como indício de dificuldade que eles tinham
de ouvir o que estava sendo dito, por motivos inconscientes. A reação direti
va (conselhos, opiniões taxativas, discordâncias bruscas e peremptórias, etc)
seria indicativa de uma intolerância sintomática à manifestação do conflito
inconsciente. Pouco a pouco, reconsideramos esta impressão. As intervenções
diretivas nem sempre significavam incapacidade de ouvir. O que havia era a
inexistência do hábito de falar interrogativamente, mesmo quando o assunto
não comportava afirmações imperativas.” (Costa, 1989, p.37)
130
mória de alguém: um verdadeiro grupo – não sabemos se terapêutico no
sentido estrito, mas certamente saudável, propiciando uma experiência rica
de troca de vivências.
131
o seu corpo fogem de demonstrar o quanto está ali. Para nós, que “tagarela
mos” muito, esse comportamento é um enigma. Isabela, em alguma medida,
sentiu-se acolhida nesse espaço, ela e seu silêncio. Muitas vezes tivemos de
lhe dizer que estava na hora de fechar a sala, ir almoçar, voltar para casa.
Penso na meninice de Isabela, em sua alegria nos passeios, seu jeito
infantil de ir andando pelas ruas, seu olhar que busca e que foge. Penso nos
livros que ela levou para ler, nas horas que suportou conosco a fila para com
prar ingressos para o teatro, o cinema em que fomos só nós e ela... penso,
penso e penso e não sei mais o que dizer.
A palavra então para ela, escrita na avaliação sobre o grupo:
“Gostei muito dos passeios, principalmente o planetário. Também
gostei das pessoas que seguem o grupo. Os filmes são muito bons o que eu
mais gostei foi Robin Hood. O teatro foi bem divertido. O Museu muito
educativo, gostei muito. As moças são muito legais, simpáticas. O cinema
foi muito legal, gostei. O pessoal é muito legal.”
REFERÊNCIAS
132
PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO:
UM LUGAR POSSÍVEL
NA CLÍNICA DAS PSICOSES
NILSON SIBEMBERG
133
prias desta clínica e de seus modos de tratamento. Tais explicações não dei
xam de ter pertinência: nossa sociedade é intolerante à diferença do modo
de ser psicótico, principalmente quando ele aponta ao neurótico aonde pode
chegar o fantasma da autonomia absoluta, o discurso da liberdade sem fron
teiras. A psicanálise, porém, mostra-nos que essa dificuldade de convívio
social não é unilateral. O psicótico sente-se estrangeiro nos grupos sociais
cuja regulação simbólica dá-se sob o primado do falo. A forclusão da metá
fora paterna faz com que o encontro desse sujeito com a demanda fálica do
Outro seja fonte de incomensurável sofrimento. Não é sem razão que as pri
meiras crises psicóticas surjam em momentos cruciais da vida, em que o
sujeito defronta-se com a questão “o que o Outro quer de mim?”: a primei
ra saída de casa para escola, na infância; a assunção de uma posição sexua
da, quando o Édipo dá um novo giro, na adolescência; ou a exigência de
ingresso no mercado de trabalho, no jovem adulto, o qual tem de prestar
contas de sua suficiência fálica para sustentar a si e à família que o Outro
espera que ele venha a constituir.
Foi com base nas contribuições da psicologia social, nos avanços
da reforma psiquiátrica, mas atravessando-os pelas contribuições da psi
canálise, que se pensou na criação de uma outra modalidade de institui
ção. A insistência em vincular o tratamento da psicose a uma modalida
de institucional justifica-se na medida da importância que um lugar de
arrimo tem na vida dessas pessoas – um lugar onde sua loucura encon
tre espaço de acolhimento e de reconhecimento, na tentativa de uma or
denação subjetiva. Nessa direção, criou-se o Centro de Atenção Integral
à Saúde Mental – CAIS Mental 08 –, serviço ligado à Secretaria Muni
cipal da Saúde de Porto Alegre.35
Do nome do serviço, aproveita-se a homofonia para situar a institui
ção como um lugar que, sendo de referência, é, porém, passagem; como é o
cais do porto para o marinheiro. Pretende-se, com isso, que o vínculo que o
paciente possa estabelecer com a instituição não passe pela reificação da
impossibilidade do sujeito psicótico em constituir um lugar de saber. De
outra forma, o serviço estaria funcionando como uma Mãe de psicótico cujo
fantasma diz que a única coisa que importa é aquilo que à Mãe interessa.
Por isso incorporamos o conceito que Maud Mannoni implementou em
Bonneuil, o da instituição que se implode, para fugirmos do risco que têm
134
as instituições de vir a se fechar em torno do próprio umbigo. Dito de outra
forma, colocamo-nos como espaço transicional nos momentos cruciais da
vida do psicótico, acolhendo-o, na crise, para logo ajudá-lo a encontrar um
caminho na direção de outros lugares possíveis de convívio social.
Pode-se objetar que essa forma de conceber a instituição seja con
traditória com o que foi antes exposto, sobre a relação precária que o psi
cótico costuma estabelecer com a sociedade e a busca da instituição como
lugar de refúgio (nem sempre agradável). E é bem verdade que estamos
continuamente nos questionando para não cair nessa lógica. Buscamos en
frentar os desafios desse trabalho através da constituição de uma equipe
interdisciplinar, com psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, as-
sistente social, enfermeiras, bem como pessoal de apoio administrativo,
de cozinha, de serviços gerais e de segurança. A baliza desta equipe é o
saber psicanalítico e a possibilidade de que o mesmo possa circular entre
as diferentes disciplinas, conduzindo suas práticas de forma articulada na
mesma direção de cura.
Na psicose, conforme se dá a inscrição primordial, podemos aventar
duas direções possíveis do trabalho clínico: ou há a possibilidade de inscri
ção da metáfora paterna, como pode ocorrer na infância, ou nos resta diri
gir a cura no sentido da suplência, fazendo do sintoma uma amarra ortopé
dica entre os registros soltos do real, do imaginário e do simbólico – o que
não é pouco nem tão fácil. Como, no CAIS Mental, trabalhamos com uma
clientela de adolescentes e adultos, ficamos com a segunda opção. Para tanto,
criamos dispositivos institucionais que articulam o que é trabalhado no ga
binete psiquiátrico e psicológico com o que é desenvolvido junto ao servi
ço social; com o que se produz nos grupos de conversa, nas oficinas de ex
pressão, de teatro, de biblioteca (onde edita-se um jornal de circulação in
terna), de literatura, de beleza (uma das mais concorridas), de cinema; com
o que ocorre nas atividades de ambiente, como a hora do chá, que visam a
propiciar a livre circulação de significantes sociais, mas, também, permi
tindo falas e escutas mais particularizadas. Os usuários freqüentam a insti
tuição por períodos que variam desde o turno integral (Centro de Atenção
Diária I), passando por alguns turnos durante a semana (Centro de Atenção
Diária II), até chegar à modalidade ambulatorial, quando vêm especifica
mente para algumas oficinas de terapia ocupacional e consultas com seu
psiquiatra e/ou psicólogo. Alguns se beneficiam do trabalho de AT, desen
volvido por estagiários de psicologia da UFRGS, o qual faz a ponte entre a
135
organização da vida cotidiana e as atividades desenvolvidas no serviço. A
permanência de um usuário em CAD I, CAD II ou ambulatório depende da
intensidade necessária ao atendimento, dos riscos que a crise lhe impõe e
do grau de autonomia de que dispõe na sua circulação social.
Na medida em que o sujeito vai podendo articular um sintoma que lhe
permita um certo trânsito no meio fálico, buscam-se espaços sociais, geral
mente vinculados à área da cultura, da participação em organizações comu
nitárias, do trabalho, em outras oficinas fora do âmbito institucional, ou no
próprio núcleo familiar, onde ele possa seguir sua vida, sabendo que, quan
do precisar, poderá buscar novamente a instituição.
Ainda que não o tenhamos mensurado de forma objetiva, observa
mos uma redução significativa no número de novas internações psiquiá
tricas em muitos dos usuários do serviço. No entanto, o apego à institui
ção como lugar de referência parece persistir mesmo naqueles que já não
vêm ali com tanta freqüência. Isso nos faz pensar sobre o lugar que a ins
tituição pode vir a ocupar na transferência com sujeitos psicóticos. Para
alguns, ela termina por se constituir em um lugar de pertença, de filiação.
Porém, até que ponto essa filiação pode se sustentar no caráter significante
do nome, ou necessita da presença real da estrutura institucional como
suporte da produção de uma metáfora delirante? O objeto transicional, que
nos serve de metáfora para a passagem da instituição do lugar do corpo
materno na direção da circulação para o mundo externo, poderia em al
gum momento prescindir do seu suporte imaginário? Poderia haver reso
lução do laço transferencial sem que fosse dissolvido o sintoma capaz de
costurar, de forma ortopédica, uma subjetividade ali onde a crise psicóti
ca espalhou fragmentos? A permanência da ligação de alguns usuários com
o serviço não estaria relacionada à impossibilidade de encontrar um lugar
de reconhecimento fora do âmbito institucional? Sabemos que tal ligação
segue sustentando alguma forma de circulação social viável para essas
pessoas. Diferente seria se a instituição, colocada no real, seguisse atri
buindo-se o lugar inequívoco de saber. Operaria o retorno à lógica mani
comial, mesmo que sua roupagem fosse nova.
136
ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO:
DO UM AO OUTRO,
DO PORTO AO MAR
MARIA CRISTINA CARVALHO DA SILVA
137
A prática do AT, assim, vem circunscrever um território que pode
mos caracterizar como espaço de fronteira. Zona intermediária que sepa
ra e reúne, em um só tempo, o um e o outro. Lugar de transformação e
movimento, eis uma forma de situar o trabalho do AT. Fronteira para o
sujeito na relação com o outro; fronteira para a instituição, cujas coorde
nadas de espaço e tempo desdobram-se, criando um para além mediado
pela presença do outro.
O olhar e a palavra do outro constituem um acontecimento para o su
jeito, um modo particular de articular continuidade e transformação. Uma
escuta que descubra outro dizer no dito, um olhar que remeta a outra ima
gem e não apenas à especularidade da imago materna. O jogo no qual uma
criança transforma um simples carretel que toma do mundo – abranda-o,
deforma-o, metamorfoseia-o, e, com isso, ela mesma se transforma – e o
inclui, incluindo-se também, em outra cena, somente é possível porque há
um outro que sustenta isso como jogo.
A presença do at possibilita o trabalho de exploração dos múltiplos
matizes que o outro pode vir a assumir durante o percurso do tratamen
to. A cena transferencial é um prisma que reflete as dimensões do outro.
O semelhante, o duplo, o inimigo, o amparo. O familiar e o estranho re-
cortam as cenas e figurações que o outro assume no percurso peculiar
que a direção do tratamento pode tomar, especialmente quando se trata
da clínica das psicoses.
Suportadas muitas vezes no próprio corpo, estas muitas passagens do
sujeito desdobram-se, e o trabalho do AT, em sua especificidade, como dis
positivo que constitui um espaço móvel, permite o trânsito fluido do ir e vir,
da presença-ausência. A transferência, que aí tem lugar, tem suas particulari
dades, que precisam ser consideradas. Se a cena da transferência no setting
convencional não é a da vida real, ou da realidade fora dos limites do consul
tório, o AT acompanha seu paciente lá onde a vida acontece (ou está por acon
tecer). Se o amor de transferência é uma ficção capaz de alojar os desejos do
sujeito, o trabalho na transferência que o AT possibilita é, muitas vezes, a con
dição necessária para que algo da ordem do desejo possa ser colocado em
questão, para um sujeito desalojado, como sujeito de desejo, de si mesmo e
em seu próprio corpo, considerando-se os efeitos de uma crise psicótica.
A singularidade do fazer dessa clínica consiste em não silenciar o
sofrimento, mas acompanhar a travessia daquele que sofre. No trabalho com
cada sujeito confrontado com os desafios da vida cotidiana, da cidade, do
trabalho e da vida familiar, o AT constitui-se no dispositivo por excelência
138
na produção de amarraduras para novos laços sociais. Na experiência da
psicose, o outro é a principal fonte de desassossego e, contudo, paradoxal
mente, poderá se constituir em fonte de alívio e arrimo, desde que capaz da
alternância necessária entre sua presença e ausência, para a emergência da
palavra e o trabalho no campo do simbólico.
O AT com Inês iniciou em 1996 quando, saindo da Pensão Protegida
Nova Vida36 para morar sozinha em um apartamento, viu-se incapaz de cons
tituir uma rotina de cuidados para si e para a casa. Aparecia com freqüência
no CAIS, muito ansiosa, pedindo para voltar a morar na pensão, onde ha
via quem cuidasse das “coisas do cotidiano”, como lavar roupa, cozinhar,
ir ao supermercado e organizar seu orçamento doméstico. Quando vivia na
pensão, essas atividades eram realizadas por ela, com a supervisão da equi
pe. Percebíamos que a questão de Inês não era relativa à ausência de habili
dades para se ocupar dessas tarefas, mas à ausência de um terceiro que pro
duzisse ali algo da ordem do reconhecimento. Reconhecimento pelo olhar,
pela presença efetiva, que servisse de suporte para o exercício deste novo
lugar, sustentando suas idas e vindas, conquistas e fracassos cotidianos. O
AT desenvolveu-se com visitas semanais à casa de Inês. Esta referia-se a
sua acompanhante como “a visita”, aguardada com todos os preparativos a
que fazia jus, que implicavam arrumar a casa, preparar o café e um bolo e
vestir roupa “de domingo”. A organização progressiva de sua casa e cotidi
ano devolveram-lhe a possibilidade de se reconhecer como alguém com
capacidade de cuidar de si mesma e estabelecer relações com os outros. Fato
inusitado para quem, desde a adolescência, viveu em instituições psiquiá
tricas e em regime fechado. A travessia desde o isolamento dos muros do
hospital psiquiátrico, passando pelo residencial terapêutico, até o momento
em que se encontra hoje, tornou-se possível tanto devido à ponte que o re-
sidencial representou, no sentido de uma transição em ambiente ainda pro
tegido, mas fora dos muros do hospital, quanto ao testemunho que a pre
sença do AT pode constituir para Inês de que esta estava, sim, apesar de sua
limitação, habilitada para lidar com as vicissitudes da vida e do cotidiano.
José vivia trancado no quarto. Sua mãe buscara o serviço solicitando
medicação, já que José recusava-se a sair de casa. Iniciamos o trabalho com
o at indo até a casa de José. Nos primeiros encontros, José só recebia o at na
presença da mãe. Aos poucos, o vínculo foi se constituindo e José aceitou sair
de casa acompanhado e caminhar pelo bairro em que morava para, em segui
da, tomar um ônibus e ir até o CAIS. No primeiro dia, entrou, olhou a casa e
139
voltou a sair. No segundo, entrou para ver o espaço da oficina de pintura.
Começou a desenhar e, do desenho, passou para a escrita. Manteve-se no grupo
de pintura, mas hoje sua terapeuta o acompanha em sessões em que ele es-
creve e comenta seus escritos. Sua freqüência ao serviço ocorre três vezes por
semana e ele faz sozinho o percurso de sua casa até o local de atendimento. O
trabalho com AT seguiu por algum tempo. José propunha “passeios” aluga
res que desejava freqüentar, com os quais, porém, sentia-se “pouco à vonta
de”, por se tratarem de ambientes de grande circulação de pessoas, tais como
salas de cinema e jogos de futebol. Tendo podido se aventurar nesses percur
sos, incorporando, no seu cotidiano, tais “movimentações”, o estranhamento
familiar provocado por essa mudança precisou ser superado com a indicação
de acompanhamento sistemático à família. Hoje José participa do Projeto In
sere37 e avalia a possibilidade de retornar à escola regular.
Ao acompanhar os sujeitos em momentos cruciais de sua jornada, do
isolamento à possibilidade de construção de laços sociais, desvelando a po
tência desejante de cada um, o tempo, o ritmo, as condições de enunciação
de um sujeito constituem as balizas para uma intervenção possível. Tempo
de decantação, de espera, mas também tempo da produção de um ato, é disso
que se trata na condução da cura. Tempo outro que não o cronológico, tempo
único e singular daquele que sofre. O particular na clínica do AT é que o tem
po discursivo pode ser precipitado pela intervenção desse terceiro pela via do
fazer, emprestando sentido ao ato. A função simbólica aí tem lugar. As paisa
gens do Outro descortinam-se, abrindo novas possibilidades para o sujeito.
Mapa da cidade, geografia, cartas de navegação, movimento, travessia, me
táforas para pensarmos o percurso que enlaça o singular da produção de um
sujeito àquilo que, do social, pode se apresentar como referências e ancora
gens possíveis. O AT consolida-se, assim, como um dispositivo fundamental
para a clínica que se desenvolve nos Centros de Atenção Psicossocial.
37Projeto Insere Cultura, Lazer e Trabalho. As participações dos sujeitos, psicóticos em sua
maioria, nas produções culturais funcionam como espaços terapêuticos privilegiados de so-
cialização e construção de discurso; ao contrário do que ocorre em grupos de neuróticos que
privilegiam a interpretação do discurso da loucura. O estabelecimento de laços sociais é fun
damental para estruturação/reestruturação subjetiva de todo sujeito, pois são esses laços que
podem lhe proporcionar o reconhecimento de sua filiação e cidadania, como participante de
uma sociedade e de sua cultura. Nessa perspectiva, e na medida em que a palavra encontra
se, em muitos casos, impossibilitada, o desenvolvimento de outras formas de expressão e
comunicação, como a pintura, a escultura, a dança, o teatro, e outras tantas, vêm facilitar essa
direção da cura.
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OSAUTORES
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Károl Veiga Cabral
Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Participou da ela
boração e coordenação, sendo também professora e supervisora, do Curso de Qualificação
em AT da Escola de Saúde Pública/RS de 1999 a 2002, e, junto à Secretaria Municipal de
Saúde de Porto Alegre, do Curso de AT na Rede Substitutiva de Saúde Mental. Colaborado
ra e supervisora no Programa de Extensão e Pesquisa em AT da UFRGS, assessora e super
visora na implementação do Residencial Terapêutico Morada São Pedro. Doutoranda em
Antropologia Médica e Saúde Internacional pela Universitat Rovira i Virgili e membro da
Asociación Cultural Radio Nikosia.
karolveigacabral@gmail.com
Laura Lamas Martins Gonçalves
Nasceu em Porto Alegre. Formou-se em Psicologia (2000) pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul/UFRGS. Fez Residência em Saúde Mental Coletiva na Escola de Saúde
Pública do Rio Grande do Sul (2003), e Mestrado em Psicologia na Universidade Federal Flu
minense/UFF (2007), com dissertação sobre o Acompanhamento Terapêutico. Trabalha como
acompanhante terapêutica desde 1998. Reside na cidade do Rio de Janeiro desde maio de 2004.
lauralmg@terra.com.br
Márcio Mariath Belloc
Psicólogo e psicanalista, defendeu sua dissertação de mestrado sobre ato criativo e cumpli
cidade no PPG em Artes Visuais da UFRGS. Participou do desenvolvimento, da coordenação,
foi professor e supervisor de projetos de educação permanente em AT junto à Escola de Saúde
Pública/RS e à Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Prestou assessoria ao Projeto
Morada São Pedro, em sua implementação. Foi coordenador de disciplinas da Residência Multi
profissional em Saúde Mental, MS/Fundatec/EducaSaúde-UFRGS. Colaborador do Programa
de Extensão e Pesquisa em AT e membro do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Polí
tica, ambos da UFRGS. Doutorando em Antropologia Médica e Saúde Internacional junto à
Universitat Rovira i Virgili, é membro da Asociación Cultural Radio Nikosia.
mmbelloc@gmail.com
Maria Beatriz Ribeiro Severo
Nasci em Formigueiro, Rio Grande do Sul. Especialista em Saúde Mental pela UFSM,
auxiliar e técnica em enfermagem. Técnica em contabilidade. Trabalho em saúde mental des
de 1976, primeiro em Santa Maria e, desde 1978 em Porto Alegre, onde, além do HPSP tam
bém trabalhei como acompanhante domiciliar. Fiz diversos cursos, dentro e fora do HPSP, e
fui me aperfeiçoando. Em 2000 fiz o curso de AT na Escola de Saúde Pública do Estado. Tra
balho no Residencial Morada São Pedro desde sua inauguração, em 2002. Atualmente conti
nuo meu trabalho como at e estou estudando teatro no centro cultural que funciona nas depen
dências do São Pedro. Sou viúva e tenho uma filha...“Hoje aquela flor cresceu, se tornou uma
bela árvore, linda e forte... E as pedras?Algumas vieram e outras foram levadas pelo tempo.”
Maria Cristina Carvalho da Silva
Nascida em Porto Alegre, cursou Psicologia na PUC/RS. Com formação em psicanáli
se, foi membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e a seguir da Casa de
Cultura Guimarães Rosa. Constituiu a equipe de Coordenação da Política de Saúde Mental
da Cidade de Porto Alegre, de 1991 a 1996. Foi docente do Curso de Psicologia da UNIJUI e
do Curso de Qualificação em AT da Escola de Saúde Publica de 1999 a 2002. Coordenou o
CAPS CAIS Mental Centro, de Porto Alegre, de 1997 a 2005. Atualmente mestranda em
Educação e Saúde na UFRGS, compõe a equipe de coordenação da Residência em Saúde
Mental Coletiva da UFRGS e é representante do Fórum de Coordenadores de Residências
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Multiprofissionais na Comissão Interministerial de Residências Multiprofissionais e por
Área Profissional (CNRMS).
criscarvalhos@uol.com.br
Mariana Boccuzzi Raymundo
Nasceu em São Paulo em 1978. Formou-se em Psicologia (2000) pela UFRGS. Em de
zembro de 2003, concluiu a Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva pela Escola de
Saúde Pública do Rio Grande do Sul com a monografia “Saúde Mental na Atenção Básica:
um desafio para a cidadania”. Trabalhou como psicóloga da equipe que compõe a Estratégia
de Saúde da Família da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (CASSI),
onde, até 2007, desenvolveu atividades de promoção, prevenção e assistência em Saúde
Mental, incluindo a implementação do Programa de Acompanhamento Terapêutico. Atuou
como acompanhante terapêutica desde 1998. Atualmente trabalha como psicoterapeuta.
infinitamari@gmail.com
Nilson Sibemberg
Formado em Medicina pela UFRGS em 1986, concluiu, em 1990, residência em psiquia
tria social. Fez formação psicanalítica, sendo analista membro da APPOA. Trabalha no CAPS
CAIS Mental Centro, em Porto Alegre, e também na equipe interdisciplinar do Centro Lydia
Coriat, voltado ao atendimento de crianças e adolescentes com problemas de desenvolvimen
to. É membro do corpo docente do Centro de Estudos Paulo César D’Avila Brandão.
nsibemberg@brturb.com
Paula Sandrine Machado
Nasceu em Recife em 1979. Concluiu a graduação em Psicologia (2000) pela UFRGS.
Em janeiro de 2004, defendeu a dissertação de mestrado intitulada “Muitos pesos e muitas
medidas: um estudo antropológico sobre as representações masculinas na esfera das deci
sões sexuais e reprodutivas”, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PP
GAS) da UFRGS. Em 2008, concluiu o doutorado em Antropologia Social na UFRGS, com
a tese “O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico
e cotidiano da intersexualidade”. Trabalhou como acompanhante terapêutica em 1998 e 2000.
Atualmente, reside em Porto Alegre e é pesquisadora associada do Núcleo de Pesquisa em
Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) da mesma universidade.
paulasandrine@yahoo.com.br
Simone Goulart Kasper
Nasceu em Porto Alegre em 1964. É psicóloga, psicanalista. Fez especialização em Aten
dimento Clínico, pela Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS (1997), tratando de
pacientes psicóticos. Membro praticante da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA). Em 1998, ingressou no Programa de Pesquisa e Extensão em AT da UFRGS, tra
balhando em supervisão clínica até 2000. Trabalha em consultório particular e desenvolve
pesquisa com oficinas terapêuticas, interessando-se pelas relações entre a prática psica
nalítica e o ato criativo.
sigkasper@terra.com.br
Vanir Teresinha Benetti de Freitas
Nascida em Porto Alegre, é especialista em Saúde Mental Coletiva pela Faculdade Fe
deral de Santa Maria (1990-1992) e fez o Curso de Qualificação em AT pela Escola de Saú
de Pública/RS (1999-2000). Trabalha em Saúde Mental desde 1982 e há cinco anos atua no
Projeto Morada São Pedro. “Sou apaixonada pela loucura.” “Dedico esta segunda edição aos
meus netos Alexandre e Germano, que são a razão do meu viver.”
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