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Trânsitos na cena latino-americana


contemporânea
Inés Pérez-Wilke

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MITsp 2014 Cart ografia


Fernando Mencarelli

T EAT RALIDADES DO REAL: significados e prát icas na cena cont emporânea


Julia Guimarães

O QUE É DIREÇÃO T EAT RAL?


Walt er Lima T ORRES NET O
Trânsitos na cena
latino-americana contemporânea
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
Naomar Monteiro de Almeida Filho
Vice-Reitor
Francisco José Gomes Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


Diretora
Flávia Goullart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial
Titulares
Ângelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Ninõ El-Hani
Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria do Carmo Soares Freitas

Suplentes
Alberto Brum Novaes
Antônio Fernando Guerreiro de Freitas
Armindo Jorge de Carvalho Bião
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Cleise Furtado Mendes
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Trânsitos na cena
latino-americana contemporânea

Héctor Briones & Cacilda Povoas (Org.)

Salvador | 2008
© 2008, by R

Editoração e Arte Final


Rodrigo Schlabitz

Revisão final
Ana Lígia Leite e Aguiar

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa - UFBA

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo,
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – BA
Tel: +55 71 3283-6164
Fax: +55 71 3283-6160
www.edufba.ufba.br
edufba@ufba.br
SUMÁRIO

Prefácio: |7
Diálogos que Alargam Fronteiras
Raimundo Matos de Leão

A Cena Híbrida Contemporânea na Venezuela |11


Inés Pérez-Wilke

Teatro Argentino Contemporâneo |31


Paula Fernández

Pulsões Cênicas do Teatro Chileno Contemporâneo: |59


Radiografando uma virada estética
Héctor Briones

Breve Reflexão Sobre o Teatro de Grupo no Brasil |85


Angela Reis

Fronteiras de Areia: |91


Perspectivas do acontecer cênico costarriquenho contemporâneo
Leonardo Sebiani

Os Reflexos de um Prisma: |107


Considerações sobre o fazer teatral contemporâneo no Equador
Consuelo Maldonado Toral

O Grupo de Teatro no Peru: |121


A transformação dessa prática cênica nos últimos trinta anos
Manuel Guerrero

A Poética do Oculto: |135


O teatro cubano como forma de expressão de uma ilha cercada pela Utopia
e Censura
Luis Alberto Alonso

Sobre os Autores |151


DIÁLOGOS QUE ALARGAM FRONTEIRAS

Raimundo Matos de Leão

A presente edição, iniciativa auspiciosa, coloca em pauta oito artigos


produzidos em torno de um tema: o fazer teatro nos países latino-america-
nos. Os autores, oriundos da Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba,
Equador, Peru e Venezuela, apresentam um panorama das idéias e ações
que marcam a cena teatral dos seus países, partindo, em sua maioria, das
décadas de 60 e 70, avançando nos anos iniciais do século XXI.
Em uma primeira visada, ressalte-se o caráter acadêmico dos textos,
visto que são produzidos por profissionais ligados ao ensino e à pesquisa do
teatro, atividades que se embaralham com as do palco, aproximando fron-
teiras. Os autores caminham nos territórios do ensino e da encenação, e
essas atividades se alimentam em um processo constante de trocas signifi-
cativas para ambos os campos.
Se levarmos em conta o tempo histórico em que o pensar-fazer tea-
tro se deu nos países citados, as semelhanças indicam o caráter fronteiri-
ço presente nos relatos, ainda que se considere como fator determinante
os contextos, as diferenças e as subjetividades construtoras das diversas
manifestações teatrais que aparecem em cada lugar. Em suas reflexões, os
autores indicam a busca por um teatro local e a presença do diálogo entre
propostas estéticas, proporcionadas pelos deslocamentos das idéias e dos
sujeitos nas rotas mundializadas.
Um traço marcante nas abordagens sobre a produção teatral na Amé-
rica Latina é a constatação de que essa atividade se dá em meio a intensa
instabilidade política e econômica. A região oscila entre governos de direita

7
ou de esquerda, tensionados pelas questões que afloram desde a Guerra
Fria. Se por um lado, a defesa dos princípios conservadores ou progressis-
tas fratura a vida cultural e artística pondo em risco a liberdade de criação,
por outro lado anima a gente de teatro. As narrativas revelam as tensões
provocadas por essas quebras, mas os artistas encontram meios para agen-
ciar suas propostas na cena em transe latino-americana, como aponta Inés
Pérez-Wilke em A Cena Híbrida Contemporânea na Venezuela, ao dizer que
“propostas híbridas, além do texto, plenas de recursos, corajosas, vão para
o palco, não sem dificuldades, mas decididas”.
O que se pode apurar é que os artistas, ainda que reprimidos, reagiram
ao sistema supressor da liberdade, continuando o trabalho criador, que veio
a se ampliar sensivelmente por ocasião da redemocratização, como apon-
tam os textos Teatro Argentino Contemporâneo, de Paula Fernández e Pulsões
Cênicas do Teatro Chileno Contemporâneo, de Héctor Briones. Nesse apa-
nhado histórico da realidade teatral portenha e chilena, pode-se apreciar o
cunho das experiências e dos fluxos inovadores que animam a cena nos dois
países. Esse pulsar está presente também no olhar que Angela Reis lança
sobre o teatro de grupo no Brasil. Em seu texto Breve Reflexão Sobre o
Teatro de Grupo no Brasil, a autora toma como referência os grupos Arena
e Oficina, surgidos em São Paulo, na década de 50, para discorrer sobre
essa prática em várias capitais do país nas décadas seguintes.
De maneira geral, depreende-se, da leitura dos artigos, que a atividade
artística, mesmo perseguida e sem o apoio estatal ou privado, encontrou ca-
minhos e se renovou a cada década, amenizando o fechamento das fronteiras.
Os respiradouros foram encontrados, idéias e pessoas circularam e
intercambiaram-se, proporcionando entrelaçamentos que se refletiram na
dramaturgia, na encenação e, em especial, no trabalho para e com os atores.
Esse deslocamento imposto ou prazerosamente desejado/realizado diminui
sensivelmente as distâncias. Assim, podemos conhecer os teatros locais e
também a atuação dos que se deslocam para fora de suas fronteiras, parti-
lhando experiências e contribuindo para o desenvolvimento do teatro, como
atesta o artigo Fronteiras de Areia, de Leonardo Sebiani, ao afirmar que a
imigração de “irmãos latino-americanos” para a Costa Rica em desenvolvi-
mento e livre de conflitos bélicos contribuiu para que o teatro fosse animado
pelo trabalho de artistas descendentes de outras regiões do continente.
O alargamento das fronteiras possibilitou também o contato dos artis-
tas latino-americanos com o teatro mundial, dando-se a interlocução entre
artistas de diversas procedências e estéticas, resultando desse diálogo as

8
Prefácio

aberturas e rupturas, afirmações e negações que pontilham a marcha por


um teatro que se revele espelho da realidade de cada país, ao mesmo tempo
em que mostre suas afinidades eletivas com o outro, seja ele próximo ou
distante.
Do colóquio entre as variadas tendências estéticas disseminadas desde
os anos 60 até o presente, percebe-se um acento fortíssimo no sentido da
pesquisa, experimentação e produção teatral, visando estabelecer códigos
comunicativos com o seu tempo e espaço; vê-se também a iniciativa de não
se amofinar diante das condições econômicas necessárias para a afirmação
e crescimento do teatro compreendido como fenômeno estético. Detecta-
se, ainda, o hibridismo nas produções e o choque entre a cena teatral “ofi-
cial” e a emergente.
Ainda que as condições sejam desfavoráveis e, por vezes, amargas, o
que se retira da leitura dos artigos é a capacidade dos artistas de criar alter-
nativas para a realização dos projetos, perseguindo a autonomia que por
muitas vezes lhes foram negadas, principalmente por políticas culturais equi-
vocadas. A não execução de políticas não é indicativa da paralisação da
atividade nos centros geradores que se espraiam pelo continente latino-
americano. Os artigos em tela situam muito bem o fenômeno teatral, apon-
tando a conjuntura, a diversidade, a fragilidade e, sobretudo, o empenho
dos artistas na consecução de suas idéias e práticas.
A presença de espaços alternativos é visível nas reflexões que com-
põem a publicação, assim como a ênfase e a constância dos grupos como
catalisadores de uma ação criativa renovadora e diversificada, colocando
em cena temas e abordagens que iluminam o nacional e o transnacional. Em
seu artigo Os Reflexos de Um Prisma, Consuelo Maldonado Toral (Equa-
dor) enfatiza as “vivências grupais” e parte da questão levantada por Franklin
Rodrigues a da “Latioamericanizacion del teatro latinoamericano” em um
espaço plural. Manuel Guerrero apresenta em O Grupo de Teatro no Peru,
um apanhado das transformações que marcam a “noção de grupo no interi-
or dos coletivos teatrais peruanos nas últimas décadas”, decorrente da situ-
ação sócio-política ocasionada pela “única experiência de ditadura militar
Latino-Americana com tendência de esquerda” (1968-1975). Esse quadro
se altera na mesma medida em que se altera o sistema político do país, ao
longo das décadas descritas pelo autor.
Enfrentando as adversidades, os artistas se colocam frente ao real sem
abandonar o sonho e a utopia, elementos constitutivos do seu pensar-fazer
teatro, como indica Luis Alberto Alonso em A Poética do Oculto, Cuba e

9
um Teatro “Político”, cujo texto descreve com bastante lucidez o
enfrentamento dessas questões pelos artistas cubanos, transitando entre a
censura e a utopia, em uma demonstração das tensões que balizam esse
estado fronteiriço e a complexidade entre o real e o imaginário.
Por esses motivos, entre tantos que os artigos iluminam, é que esta
publicação é construtiva e pertinente, pois reúne distante-próximos; um
passo significativo para tornar real o desejo do poeta Jorge Debravo: “Gos-
taria de ter mãos enormes / violentas e selvagens / para arrancar fronteiras
uma a uma / e deixar de fronteiras só o ar.” Assim, poderemos conhecer de
fato o que se faz em cada centro produtor e intercambiar experiências tea-
trais, experiências de vida.

Salvador, outubro de 2008

10
A CENA HÍBRIDA CONTEMPORÂNEA
NA VENEZUELA

Inés Pérez-Wilke

Professora da Universidad Bolivariana de Venezuela


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas /UFBA.
Bolsista da Fundación Gran Mariscal de Ayacucho/ Venezuela

Um é o mundo… o mundo transpassa o corpo... processamos no corpo este


mundo e comunicamos através do corpo nossa resposta às situações que
vivemos. Mas repito, este mundo nos faz sentir e nos provoca reflexões
específicas... o corpo se expressa em todos os níveis... isto é a obra... isto é a
poesia da expressão corporal. (BARNSLEY, 2008, sem número de página)

Falar em cena latino-americana é falar de um amplo território, tanto


geográfico quanto cultural, pouco explorado. Rastros de universos múlti-
plos e singulares estão associados na denominação latino-americana por
uma história política e cultural com marcas convergentes. Nesta aborda-
gem, partirei de uma leitura pessoal baseada em uma relação direta, tanto
como pessoa envolvida na cena quanto como espectadora, com grupos que
acompanhei entre 1993 e 2006. Pela natureza singular, o propósito deste
texto não é produzir conclusões sobre o teatro contemporâneo na Venezuela
em geral e, sim, dar conta de um momento importante no desenvolvimento

11
Inés Pérez-Wilke

da cena venezuelana contemporânea através de uma mostra mínima, mas


significativa, de grupos e de peças que foram determinantes na minha leitu-
ra do que se passou nos fluxos criativos desses anos. Metodologicamente
este texto se alimenta de um trabalho de reconstrução a partir de progra-
mas, textos pessoais dos autores e diretores, assim como de material de
arquivo dos grupos que amavelmente me cederam. Este é um esforço para
aproximar essa história do leitor.
Para tanto, é importante introduzir as circunstâncias políticas prévias.
A história política contemporânea da Venezuela tem transitado por uma
série de sobressaltos. Desde a caída da ditadura de Carlos Pérez Jimenez,
em 58, veio instaurando-se uma democracia convencional, que já nos anos
60 dava sintomas de fraqueza. A burocracia e a corrupção minavam suas
bases. É o momento em que, na cena venezuelana, desenvolve-se um teatro
crítico potente desde o Teatro Universitário, especialmente na década de
60, do qual sairiam vários grupos que, por sua vez, aprofundaram pesquisas
e iniciaram novos caminhos marcantes no teatro nacional. Dentre eles, o
Taller Experimental de Teatro TET (1972), sob direção de Eduardo Gil, ou,
a partir de um caminho diferente, El Nuevo Grupo (1967), integrado pelos
dramaturgos Isaac Chocrón, José Ignacio Cabrujas e Roman Chalbaud,
que salienta a importância do texto dramático e alimenta a reflexão em
torno do teatro da época com textos teóricos como: Tendencias del teatro
contemporáneo (1968). Nos anos 70, seria o nascente Grupo Rajatabla
(1971) que levaria a bandeira de um teatro de crítica voraz, iniciando sua
produção e constituindo-se como grupo com a peça Tu Pais está Feliz (1972),
baseada em poemas do brasileiro Antônio Miranda e sob a direção do ar-
gentino Carlos Gimenez radicado na Venezuela. O fato desta peça basear-
se em um texto brasileiro e ser dirigida por um argentino na Venezuela nos
fala de um trânsito entre estes países, provocado, em boa medida, pelas
ditaduras na região e pelos movimentos políticos de esquerda que se faziam
visíveis na atividade teatral. Como linguagem estética este grupo alcançaria
o amadurecimento com a peça Señor Presidente (1977). Já nesta peça, o
interesse por recursos visuais e uma representação não naturalista impu-
nham introduzindo uma poética que, sem deixar de se reconhecer crítica e
política, se assume na resolução estética.
No começo dos anos 80, a nossa democracia estava esgotada como pro-
messa, do mesmo modo que os movimentos de esquerda organizados não
pareciam retomar a força que tiveram nos anos 70. Já essas duas decepções
habitavam em nós. O pensamento dialético estava em crise e prefigurava a

12
A cena híbrida...

aparição de novas poéticas que fossem elaborando novas matrizes na cena,


mas, também, em uma subjetividade coletiva que, precocemente, podería-
mos considerar pós-moderna. A vivência, tanto dessa democracia falida, as-
sim como do anacronismo de certas utopias, deixou sob a responsabilidade
das novas gerações a tarefa de se pensar por outras vias. E essa tarefa de
pensar o ser humano e as suas necessidades, de pensar-nos e sentir-nos como
coletivo, de entender o que estava se passando, exigia novas poéticas e estéti-
cas que pudessem transcender os discursos bipolares do progresso tanto quanto
os discursos intangíveis da utopia. Colocar-se além dos marcos esgotados e,
ainda, pensar-se politicamente fora dos esquemas vazios ou apáticos era um
grande desafio. A grande dívida social que o país carregou e os constantes
fatos de corrupção trouxeram uma situação que iria explodir no ano de 1989,
a partir de um conjunto de políticas econômicas que levariam a um intenso
levantamento de protestos populares, duramente reprimidos pelos corpos
policiais e militares gerando não poucas mortes.
Esse estado de decepção ocasionou, durante os anos 90, um período
de revisão profunda em muitos sentidos e foi estimulando novos espaços de
criação, amadurecendo pesquisas iniciadas nos anos 80. Desde 1985, o gru-
po liderado por Julie Barnsley, Acción Colectiva, apontava para um teatro
físico além das fronteiras entre dança e teatro, e incorporava vídeo e foto-
grafia. Esse caminho iria amadurecer, multiplicar-se e dar lugar a formas
cênicas que se assumem além da pureza de qualquer estilo com uma ampla
liberdade de pesquisas. Na cena, acontece, de fato, ainda no espetáculo
naturalista, uma polifonia de línguas: som, imagem, formas visuais, inter-
pretação autoral. Mas o que se dá a partir dos anos 90 é uma pesquisa
deliberada, consciente, própria, desmistificada em torno dessas possibilida-
des polifônicas da cena. Encenações que vão além do texto, da fábula, da
mensagem previsível, transitando entre várias linguagens: teatro, dança,
vídeo, música, entre outras mídias. É isso o que vou chamar de natureza
híbrida, é essa condição, a forma como ela se apresentaria em espetáculos
no fim do século XX e começo do XXI. Quero dedicar esta reflexão a estes
espetáculos.
O singular caminho que alguns artistas da cena iniciam não será fácil
de definir. Das linguagens híbridas vinham falando já desde os anos 80, mas
parece-me que a multiplicidade de recursos usados a partir dos anos 90 foi
além de uma simples mistura de meios que havíamos visto na década ante-
rior em performances multimídia. A poética desses grupos trouxe um
hibridismo orgânico que fez parte de uma nova época. O que lograram es-

13
Inés Pérez-Wilke

tes artistas foi uma verdadeira integração na pluralidade de recursos, não


só de meios de expressão, mas também de discursos, de texturas cênicas.
Vou referir-me, dentre outros que pesquisaram e que alimentaram esse
fluxo, ao já mencionado Acción Colectiva, que hoje corresponde a Aktion
Kolectiva (1985), e a mais três grupos nascidos nos anos 90 na Venezuela,
especificamente na cidade de Caracas. Eles seriam: DRAMO (Apocope de
Dramaturgia do Movimento), fundado em 1996 pelos dançarinos Leyson
Ponce e Miguel Issa; o grupo Teatro La Bacante, sob direção da atriz e
pedagoga Diana Peñalver, fundado em 1992; e Rio Teatro Caribe, sob dire-
ção de Francisco Denis e Tália Falconi, fundado em 1995. Nos trabalhos
destes quatro grupos, todos eles com poéticas muito diferenciadas, eu reco-
nheço algumas características que singularizaram esse momento na cena
venezuelana. Eles percorreram um caminho sinuoso na pesquisa das lin-
guagens híbridas que teve avanços e recuos e que tem já uma história para
ser contada, influências e motivações particulares em cada caso. Vou, en-
tão, tratar cada caso em particular, esperando evidenciar os paralelos e as
singularidades destes quatro grupos.

Aktion Kolectiva /Acción Colectiva

Liderado por Julie Barnsley, Aktion Kolectiva é um laboratório de


dança contemporânea, teatro físico e vídeo, fundado em 1985 na Venezuela.
Barnsley, de origem britânica, vinha de importantes experiências como ar-
tista independente, na Europa com grupos como Companhia D.V.8, e, em
Nova York, com a companhia de Poppo Shiraishi and the GoGo boys, de
butô. Na Venezuela, vai dar outro viés a essa formação que ela trazia e que
iria alimentar a formação do Instituto Superior de Danza do qual ela foi
professora fundadora. Quando inicia o projeto Acción Colectiva apresenta
uma reflexão sobre o corpo mecanizado e anestesiado. A pesquisa e os
resultados que desenvolveram transformaram, sem dúvida, o panorama da
dança na Venezuela.
Levantou-se, a partir da dança, uma crítica contra a cultura racional oci-
dental, que nos últimos anos veio encontrar a forma de reflexões teóricas no
livro El cuerpo como territorio de rebeldía, onde encontramos textos como este:

O relato histórico herdado é uma seqüência de eventos, um relato de ficções


dos homens, contos inanimados onde não podemos nos relacionar

14
A cena híbrida...

emocionalmente, onde se manipula a memória do passado para manipular


o relato do presente. Mas o relato cultural histórico é uma outra coisa, estas
ficções que são as obras de arte contêm energias históricas vivas, fazendo
transcender aspectos verdadeiros do homem do passado, ajudando-lhe a
conectar-se e arraigar-se no presente para poder construir seu futuro.
(BARNSLEY, 2006, sem número de página, tradução nossa)1

Carlos Paolillo, que tem sido um importantíssimo pilar no desenvolvimen-


to da dança na Venezuela, pois, além de estudioso e crítico, foi o fundador do
Insituto Universitário de Dança e promotor do Festival de Jovenes Coreógra-
fos, apresenta o livro dizendo: “Para ela, a dança tem sido, antes de tudo, um
inadiável processo através do qual tem-se aprofundado com dor e com humor
negro na interioridade humana, assim como nos grandes mitos da sociedade
contemporânea ocidental”. (PAOLILLO, 2006, tradução nossa)2. O caminho
que desenvolve este grupo ao longo dos últimos 22 anos até a contemporaneidade
tem oferecido aportes sempre surpreendentes e pertinentes.

Poucos projetos artísticos irromperam com a voracidade de Acción Colectiva


nos sediciosos anos 80 da Venezuela… – pouca ou nenhuma adesão aos
códigos formais da dança ou do teatro como veredas separadas – … um
trabalho cimentado no pulso do corpo, matéria do inconsciente, leito de
escuras e potentes forças… (um ponto referencial da criação em nosso
país)… agora quando os espetáculos de teatro físico/dança são comuns e
quase uma moda, Acción Colectiva conserva seu status de visionária neste
particular território… mestra intérprete de profunda versatilidade e criadora
indiscutível, Julie Barnsley não pára de abrir caminhos a suas necessidades
vitais. (BLASCO, 2007, sem número de página.)3

1
El relato histórico heredado es una secuencia de eventos, un relato de ficciones de los hombres,
cuentos inanimados en donde no podemos relacionarnos emocionalmente, en donde se manipula la
memoria del pasado para manipular el relato de la actualidad. Pero el relato cultural histórico es otra
cosa, estas ficciones que son las obras de arte contienen energías históricas vivas, haciendo trascender
aspectos verdaderos del hombre del pasado, ayudándole a conectarse y arraigarse en el presente para
poder construirse su futuro. (BARNSLEY, sem número de página, 2006) OBS: As citações dessa
obra não contam com número de página, porque foram tomadas de fragmentos enviados pela própria
Barnsley, a autora deste artigo, via e-mail: inespw@gmail.com
2
“Para ella, la danza ha sido, ante todo un inaplazable proceso a través del cual ha profundizado con
dolor y con negro humor en la interioridad humana, así como en los grandes mitos de la sociedad
contemporánea occidental” (PAOLILLO, sem número de página, 2006)
3
“Pocos proyectos artísticos irrumpieron con la voracidad de Acción Colectiva en los sediciosos años
80 de Venezuela… – poca o ninguna adhesión a los códigos formales de la danza o el teatro como
veredas separadas – … una labor cimentada en el pulso del cuerpo, materia del inconciente, cauce de
oscuras y potentes fuerzas… (un punto referencial de la creación en nuestro país)… ahora cuando los
espectáculos de teatro físico/danza son comunes y casi una moda, Acción Colectiva conserva su
estatus de visionaria en este particular territorio… maestra interprete de profunda versatilidad y
creadora indiscutible, Julie Barnsley no cesa en abrir caminos a sus necesidades vitales.” (BLASCO,
sem número de página, 2007)

15
Inés Pérez-Wilke

Um tema recorrente desta criadora nas suas pesquisas na liberação do


fluxo corporal é o universo feminino, em Delicada decapitação (1999), La
rosa mutilada (2000) e Shakti en Ascensión o Rainbow Revisited (2004). Des-
tes trabalhos vamos nos deter sobre o primeiro deles que, segundo a própria
Barnsley, foi pensado como uma encenação para despedir-se do século XX.

Delicada Decapitación (1999)

De acordo os criadores, Julie Barnsley na produção de material corpo-


ral e na interpretação, e Armando Holzer no roteiro e na direção, Delicada
decapitação foi uma obra concebida para ser uma reflexão sobre a
contemporaneidade, sob o pretexto do fim do século. Ainda que nenhuma
obra de Acción Colectiva possa ser entendida fora do impulso criador do
corpo e este se rebelando além da “pequena ração”, como eles mesmos cha-
mam a racionalidade estreita que limita a verdadeiras capacidades do pensa-
mento e saber humanos, ainda assim, essa foi uma obra concebida primeiro
conceitualmente, diferentemente de outras, em que o grupo descobre na sala
de ensaio, no material que vão produzindo, do que se trata a peça.

Acción Colectiva. Espectáculo Delicada Decapitación, 1999.


Foto: Arquivo Acción Colectiva

16
A cena híbrida...

Em Delicada Decapitação, a partir do diálogo entre os criadores, se


fez um roteiro que iria transitar e fazer transitar o espectador pelo espírito
dos tempos através de cinco personagens. A linha que uniria os persona-
gens teria a ver com as dicotomias terríveis e as excisões íntimas com que
vivem os personagens típicos do nosso tempo: “Cada personagem revela
uma terrível e debilitante dicotomia onde não tem relação entre os impul-
sos físicos corporais e os ideais mentais, não obstante, meu próprio corpo
dentro de cada papel é uma verdadeira e organizada unidade integrada.”4
(BARNSLEY, 2006, sem número de página, tradução nossa)
Os desafios de interpretação que são colocados transitam por imagens
como a de uma mulher grávida que se protege pela sátira e que responde ao
jogo social com indiferença. Isto se faz perceptível nas palavras que Holzer
escreve para ela: “O que me surpreende não é que tudo esteja se derruban-
do, senão a grande quantidade de coisas que ainda está em pé.”5. Depois,
vemos avançar sobre o palco uma velha dançarina tentando ainda se sus-
pender, luta com seu corpo que já não quer mais se adaptar a esses códigos,
mas ela persiste até quase à loucura. Um homem isolado em uma caixa, sem
conexões, parece consumir-se em si mesmo. Segue uma dona de casa, clas-
se média, com os sonhos, as fantasias e as máscaras que a aprisionam e que
ela aceita viver e, por último, uma mulher jovem, contemporânea, entregue
às ansiedades destes tempos, “corpo produto dos modismos predominan-
tes, corpo fashion, corpo drogado, corpo techno, um corpo com uma estru-
tura e uma musculatura solta, que se molda a todas as tendências sem ser
capaz internamente de conectar-se com coisa alguma.”6 (BARNSLEY, 2006,
sem número de página, tradução nossa.) É então um panorama de subjetivi-
dades, contradições, dores e possibilidades do contemporâneo. Os parado-
xos do real, nas imagens alcançadas nessa encenação, levam a um exercício
reflexivo que não se utiliza do racional, mas que reage às imagens propostas
através do corpo vivo do espectador. Acordar a partir e no corpo é o nó
central na pesquisa deste grupo.

Nesta obra, somos testemunhas dos devastadores efeitos dos distintos


espaços e ideologias sobre os corpos/espíritos das diferentes personagens.

4
“Cada personaje revela una terrible y debilitante dicotomía en donde no hay relación entre los
impulsos físicos corporales y los ideales mentales, no obstante, mi propio cuerpo dentro de cada rol
es una verdadera y organizada unidad integrada.” (BARNSLEY, sem número de página, 2006)
5
“Lo que me asombra no es que todo se esté derrumbando, sino la gran cantidad de cosas que todavía
siguen de pie.” (Holzer, 1999, sem número de página)

17
Inés Pérez-Wilke

Quando estes se comprometem com idéias e comportamentos que vão contra


os impulsos e as energias naturais de seus corpos, debilitam não só suas
capacidades físicas, senão também suas capacidades mentais, levando-os até
a enfermidade, a inércia e talvez até a loucura… (BARNSLEY, 2006, sem
número de página, tradução nossa)7

No final, um novo ser aparece, corpo nu. Uma atmosfera diferente,


uma certa suavidade, uma outra textura por um instante levantam o fim da
obra indo além de um pessimismo ou da apatia que, às vezes, parece carac-
terizar a pós-modernidade. Para esses criadores, tem-se sim uma responsa-
bilidade e possibilidades de assumi-la através da honestidade ética e da es-
cuta do corpo. Vemos aqui o quanto essa proposta se afasta de uma narra-
tiva tradicional, naturalista, de ideologias racionalistas ou dilaléticas, para
adentrar-se e levar o espectador a territórios plurais e complexos, sem dei-
xar, por isso, de posicionar-se politicamente.

Dramo

Fundada em 1995 pelos coreógrafos Miguel Issa e Leyson Ponce,


DRAMO vem a ser um projeto maduro destes dois dançarinos que acha-
ram, no trabalho comum, um caminho de pesquisa para ambos. As suas
pesquisas já haviam se iniciado junto ao grupo Acción Colectiva e, no caso
de Leyson Ponce, junto a outras experiências na Europa. Eles têm crescido
em outros âmbitos de pesquisa e docência. O trabalho conjunto destes dois
coreógrafos tem resultado em uma proposta estética caracterizada por abor-
dar a criação através da mistura de linguagens: teatro, dança, vídeo, cabaré,
circo, ilusionismo, ópera.
Dentro da trajetória do grupo, temos uma série importante de mon-
tagens que agregam força ao seu discurso e o mantém produzindo, como
eles mesmos comentam: “Desta travessia criativa temos colhido experi-

6
“cuerpo producto de las modas predominantes, cuerpo fashion, cuerpo drogado, cuerpo tecno, un
cuerpo con una estructura y una musculatura suelta, que se moldea a todas las tendencias sin ser capaz
internamente de conectarse con alguna”. (BARNSLEY, 2006, sem número de página)
7
En esta obra, somos testigos de los devastadores efectos de los distintos espacios e ideologías sobre
los cuerpos/espíritus de los diferentes personajes. Cuando estos se comprometen con ideas y
comportamientos que van en contra de los impulsos y energías naturales de sus cuerpos, se debilitan
no sólo sus capacidades físicas, sino también sus capacidades mentales, llevándolos hasta la enfermedad,
la inercia y quizás hasta la locura. (Barnsley, 2006, sem número de página)

18
A cena híbrida...

ências que somam sempre, que integram sempre e que avivam uma paixão
que aniquila qualquer crise de nossa mutante realidade” (DRAMO, ar-
quivo, tradução nossa)8. A partir de 1996 não têm parado de produzir:
em 1996 estréiam duas peças, Gastone e Meraviglioso. Em 1997, também
duas, Ella Maria Callas e Nosferatu, ladrón de cuerpos. Em 1998 apresen-
tam Medea Material, de Heiner Mûller. Em 1999 trazem El Divino Narci-
so de Sor Juana Inés de la Cruz e Pascua. No ano 2000 trazem a Divina
Comédia dirigida a quatro mãos. Em 2001 apresentaram Canción de los
niños muertos. Em 2002, R.S.V.P., versão de Esperando Godot, de Samuell
Beckett e Chez Raimunda. No ano de 2003 estréiam El Mistral. Em 2004,
La Gata Cenicienta. Em 2005, Café inmigrantes. Em 2006, Esperando a
los dos e La Zaranda, e sua última produção, El vuelo del ilusionista,
estreou em 2007.
Desde a sua fundação, DRAMO desenvolveu uma face própria. Cada
espetáculo tem sido um convite a uma dimensão na qual, por meio da poe-
sia e de uma pesquisa técnica e estética própria, se toca muitas vezes, de
maneira tragicômica, em temas sensíveis à nossa sociedade atual. Nesse
caminho, seguindo as apresentações de DRAMO, fui, um dia, surpreendi-
da por uma peça que guardava singularidades: a entrada em cena de um
risco vinculado a uma estética que me parecia um pouco mais austera em
relação ao seu jogo conhecido, mas frágil. Era como se o trabalho deles,
neste caso, sob direção de Leyson Ponce, tivesse entrado em um outro es-
paço mais delicado e, também, mais perigoso. A implicação pessoal dos
intérpretes, assim como a delicadeza do tema, fez dele um trabalho, em
muitos sentidos, diferente. Refiro-me a Canción de los niños muertos (2001).
O crítico René Sirvin, no Le Fígaro, o expressou desta maneira:

Da Venezuela vem a obra contemporânea mais estranha “Canción de los


niños muertos” inspirada pelo Kindertotenlieder, de Malher. Os sete bailarinos
da companhia Dramo participam da criação trazendo cada um uma
lembrança da infância inquietante, já que estão carregados de símbolos que
nos escapam. (SIRVIN, 2002, sem número de página, tradução nossa)9

8
De esta travesía creativa hemos recogido experiencias que suman siempre, que integran siempre y que
avivan una pasión que aniquila cualquier crisis de nuestra cambiante realidad. (DRAMO, arquivo)
9
De Venezuela viene el obra contemporánea más extraña “canción de los Niños Muertos” inspirada
por el kindertotenlieder de Mahler. Los siete bailarines de la compañía de Dramo participan en la
creación mencionando cada uno un recuerdo de infancia inquietante ya que están cargados de símbo-
los que se nos escapan” (SIRVIN, sem número de página, 2002)

19
Inés Pérez-Wilke

Canción de los niños muertos (2001)

Como é sabido, existe, na maioria dos países latino-americanos, uma


prática ritual especial de sepultamento para as crianças: muerte-niña, no
México; mampulorio, na Venezuela; velório de guaguita, nos Andes. Essas
crianças mortas são chamadas de angelitos (anjinhos), acreditando que, por
sua pureza, irão tornar-se anjos. Nesta peça, esse ritual é o fundamento
tanto conceitual quanto estético e, por que não, filosófico, já que traz uma
dessas perguntas eternas do diálogo entre vida e morte. Essas imagens se
cruzam com a música de Gustav Malher intitulada Kindertotenlieder, o que
significa “música das crianças mortas”.
Durante a pesquisa, a participação dos intérpretes foi estimulada para
carregar a temática da infância morta ou quebrada com as lembranças in-
fantis deles e, a partir daí, construírem personagens. Como resultado, ela-
boraram personagens complexos cruzando uma tênue linha entre beleza e
dor. “Mas esta personagem, de alguma forma era a somatória de lembran-
ças infantis muito próprias, muito escondidas, não faladas”, explica Ponce.10
Para ele, essa peça convida a ficar com a memória nua, a relembrar a infân-
cia, a festa, os jogos, mas no contexto da celebração da morte, baseado em

*(DRAMO: Espectáculo Canción de los niños muertos. 2001. Foto: Arquivo DRAMO.)

10
Pero este personaje de alguna manera era la suma de recuerdos infantiles muy propios, muy ocultos,
y no dichos. (PONCE, 2008, sem número de página).

20
A cena híbrida...

histórias de vida, pequenos momentos que foram dando forma a persona-


gens frágeis em um espaço de revelações através do corpo.
Vejo nessa peça a emergência de uma preocupação profunda com os
fluxos da memória e seu resguardo. Neste sentido, aparece uma outra for-
ma de abordar a sensibilidade contemporânea: ir atrás do ritual e das lem-
branças da infância frente ao mundo caótico, rude, que em muitos sentidos
nos atropela. Já no ritual da morte, o chão coberto por um tecido azul,
penumbras, entra uma figura angelical, feminina, o corpo seminu, muito
magra, frágil, tremendo no andar em meia ponta. Canta. É de uma beleza
não isenta de dor, já que o risco e a nudez do autor naquele personagem
atingem o espectador deixando-o em um território um tanto desconfortável.
Cada uma das personagens que, segundo o diretor, demorou meses para ser
construída, caminha por esse espaço entre dor e beleza: Camila, Ifigênia,
Ella, La doctora, Andrea, Las mujeres flacas e Aquiles. Sete personagens
diferentes se entrecruzando entre brincadeiras, desejos, obsessões, cele-
brações que, nesse espaço, se repetem até o esgotamento. Ao fundo, uma
tela vai oferecendo imagens que parecem vir da memória das personagens.
Olhos muito abertos, figuras sombrias em volta. É uma peça que tem muito
de oculto, muito material metafórico, o que a torna nada fácil. É um apelo
para aprofundar-se no próprio ser, em contraste com a realidade, através
de cenas entrelaçadas de situações que chegam a ser de um intimismo sem
atenuantes. Essa intimidade se sustenta no risco posto em jogo pelos intér-
pretes, pois eles colocam em cena aquilo que lhes é mais íntimo.
Trazer o paradoxo da morte de uma criança como espelho para nos
olharmos, descreve o processo que vivemos de vida e morte simultâneas.
“São estes rituais de “anjinhos” uma grande festa de corpo e espírito.”
(PONCE, 2008, sem número de página, tradução nossa).11
Canción de los niños muertos traz à cena uma honestidade singular
que oferece a possibilidade, se quisermos, de ouvir vozes do seu contexto,
da realidade da qual aquela peça é fruto. Apresenta perspectivas políticas
que nos colocam além dos grandes temas, na memória coletiva, e promo-
ve o reconhecimento de uma sensibilidade coletiva silenciada ou auto si-
lenciada nos tempos de hoje, tempo áspero demais para essas texturas da
memória.

11
“Son estos rituales de “angelitos” una gran fiesta de cuerpo y espíritu. (PONCE, 2008, sem número
de página)

21
Inés Pérez-Wilke

Teatro La Bacante

No ano de 1992 aparece no cenário um grupo que hoje tem uma traje-
tória e forte presença na cena Venezuelana. O grupo Teatro La Bacante é
uma particularidade em nosso panorama artístico. Foi fundado por Diana
Peñalver que é docente no Instituto Universitario de Teatro (IUDET), já o foi
no Instituto Universitário de Danza e tem ditado oficinas para o Teatro de La
Sombra, TNJ, Taller del Actor e no Programa de Formación da Compañía
Nacional de Teatro (CNT) a cargo da cátedra de Actuación.
Para seguir as influências artísticas na estética do grupo, temos que
falar do trabalho da sua diretora junto ao Taller experimental de teatro
(TET), que é um dos grupos mais importantes e de longa trajetória na
Venezuela no que se refere à pesquisa em teatro de grupo. Também deve
ser considerada a passagem que essa atriz e diretora fez no Odin Teatret.
No importante grupo Danes, teve contato com as pesquisas de antropolo-
gia teatral e o teatro físico, ambos com o acompanhamento da atriz Roberta
Carreri e que marcaram seu trabalho. Segundo ela mesma, o Odin lhe
dera uma técnica clara e tangível que lhe permite desenvolver uma lingua-
gem própria e autonomia criativa para contextualizar elementos diversos
fora do texto.
Dá-se, no trabalho desta diretora, uma singular mistura de pesquisas
das formas tradicionais antigas com um diálogo frutífero com a
contemporaneidade, ou seja, o estudo da tradição grega do teatro e as
suas releituras e versões contemporâneas, a pesquisa sobre tradições cê-
nicas populares da Venezuela que incluem cantos e danças, assim como a
incorporação da realidade urbana. Esse apelo ao passado ocidental antigo
para dar conta de assuntos contemporâneos, junto à valorização do popu-
lar latino-americano (a dança, a música, a máscara) se misturam dando
como resultado uma dramaturgia que se alimenta de diversos tipos de
textos e de materiais para o processo de criação na procura de um teatro
para além do texto.

La Casa Rota (2002)

Em plena crise social, fruto das tensões internas na Venezuela entre


opositores e partidários do Presidente Hugo Chavez, este grupo estréia o

22
A cena híbrida...

espetáculo La Casa Rota, montagem teatral baseada em crônicas e relatos


do livro Deste mundo e do outro, de José Saramago. A peça se constrói
através de uma seqüência de relatos selecionados levados por um fio temático
que personifica o protagonista. Narra a viagem que Tirésias decide empre-
ender, o mítico sábio e vidente da tradição grega, na procura da resposta
para o dom perdido: sua visão. Em uma atmosfera sonora de pequenos
instrumentos, aparece uma imagem feminina com um pano que cobre os
seus olhos e um homem cego, que fala da sua casa em ruínas e sai ao encon-
tro do mundo. Atravessa histórias de amor, de perda, de suicídio, de espe-
rança, de pequenas conquistas, histórias fantásticas, histórias cotidianas.
Os quatro atores vão compondo um quadro com faces do ser humano.

*(Foto 3: Grupo Teatro La Bacante. Espectáculo La casa rota. 2002. Foto: Arquivo Teatro La
Bacante)

O argumento que parece simples vai se desnudando de um relato


para outro em uma dramaturgia que surpreende. Coloca perguntas que,
uma vez em cena, aparecem como inadiáveis, a surpresa do ser humano
frente a si mesmo e as suas complexidades são tratadas aqui e tomadas
com afirmativa capacidade teatral pelo Grupo La Bacante. O único per-
sonagem constante é Tirésias, ele que se vê como a casa, que lida com a
própria alma ou seu corpo em ruínas, quebrado, a casa em chamas, as
pontes de comunicação estão rotas, a solidão e as falsas promessas, a hi-

23
Inés Pérez-Wilke

pocrisia, a maldade, o desejo, a ilusão, pequenas histórias onde tudo isso


é visitado. Em uma atmosfera de cores profundas como verde escuro,
azul índigo, violeta, e com uma pequena casa de transparências e luzes ao
fundo, em uma estética inspirada na obra pictórica do artista surrealista
Marc Chagall, alcança-se uma textura metafórica mais próxima, em que
os personagens falam da natureza profundamente contraditória do ser hu-
mano. Como aponta Diana Peñalver na sinopse:

Neste trajeto, no qual vai reconhecendo o mundo e o ser humano nele,


descobre a loucura do homem, suas fraquezas, sua grande sombra e ao
mesmo tempo adverte a beleza que a alma humana guarda, que a natureza
oferece e que define essa grande contradição que somos, somente espera
uma inspiração para refazer o que destrói. (PEÑALVER, 2002, tradução
nossa) 12

A narração de histórias, a dança e a música vão levantando distintas


atmosferas. A encenação baseada no trabalho tanto criativo quanto
interpretativo e corporal dos atores leva-nos para um canto denso do imagi-
nário teatral. Em determinados aspectos, junto ao texto de Saramago, pode
se dizer que La casa Rota traz, sobretudo, uma reflexão ética, só que apa-
rece como fato real e humano, não é moral e nem doutrinária, mas também
não é fracassada e nem pós-moderna. “Há pontes!”13 fala Tirésias no final
da obra. Depois de muita dor e solidão também há pontes entre os seres
humanos.
Traz o “viver junto” como um assunto político que leva as perguntas
para um espaço além das ideologias, os fatos particulares e pequenos na
vida de personagens, na lembrança, o olhar ao vizinho, as promessas do
final do ano. Ouvir Tirésias na rua, ouvir seu clamor, suas visões a tempo,
são fatos simples que em La Casa Rota virarão motivos e temas centrais de
uma política vital. Nesse sentido, é recorrente naqueles artistas dos quais
viemos falando, preocupações sobre o modo como vivemos, a relação com
o outro, com o futuro, não como grandes temas ideológicos, mas como
inquietações inadiáveis relacionadas à alteridade.

12
“En este recorrido, donde va reconociendo al mundo y al ser humano en él, descubre la locura del
hombre, sus flaquezas, su gran sombra y a la par advierte la belleza que el alma humana encierra, que
la naturaleza ofrece y que en definitiva esa gran contradicción que somos, sólo espera una inspiración
para rehacer lo que destruye.” (Diana Peñalver, 2002, programa da peça)
13
¡Hay Puentes!” (PEÑALVER, 2001, sem número de página)

24
A cena híbrida...

Rio Teatro Caribe

Interessados em um teatro das imagens e do movimento, este grupo nasce


em 1995, em um pequeno povoado do litoral nordeste da Venezuela, que deu
nome ao grupo: Rio Caribe. Lugar onde os experientes artistas Francisco Denis,
ator e diretor, e Tália Falconi, dançarina e atriz, foram se refugiar para iniciar
seu próprio processo criativo depois de passagens por diversas escolas e grupos
de fama internacional, como Malayerba, do Equador; a L’Ecole internationale
de théâtre Jacques Lecoq; a companhia de Philippe Genty, etc. A partir desse
canto do país, o grupo começou um laboratório, do qual se aproximaram ou-
tros artistas, e cresceria até 1999, quando se mudaram para a capital, Caracas.
Já em Caracas criaram um espaço de trabalho próprio, a Sala Rio Teatro Caribe
que, além de ser a sede do grupo, é um espaço dirigido à apresentação de
grupos, laboratórios e oficinas. Nesses anos, tem demosntrado uma grande
capacidade em acolher pesquisadores da cena e os seus códigos têm transitado
por diversos e surpreendentes caminhos. Eles falam:

Reconhecemos que somos um grupo com certo caráter mutante. Cada


montagem, cada proposta, cada encenação representa para nós uma nova
aventura, uma experiência desafiante que pede para incorporar linguagens
e experimentar códigos estéticos. (RIOTEATROCARIBE, página da Web,
2008, tradução nossa)14

Nas das tendências internacionais de teatro, eles se reconhecem den-


tro das linhas de um teatro gestual, de imagens, inclusive inseridos na dan-
ça-teatro. Nesse sentido, o grupo seria a continuidade de uma tradição. No
entanto, a apropriação que eles têm feito desses recursos e o modo como
têm entrelaçado isso com o contexto latino-americano, fazem com que o
fenômeno Rio Teatro seja realmente singular tanto na pesquisa estética, téc-
nica-tecnológica, quanto nas escolhas temáticas: “No fundo os significados
se repetem: a incapacidade de encontrar a manhã dos homens, as simplóri-
as imagens de felicidade com que nos alimentamos. E isto o fazemos de
bom humor e com uma grande ironia.”15 Juanita en traje de baño rojo, que

14
“Reconocemos que somos una agrupación con cierto carácter mutante. Cada montaje, cada propuesta,
cada puesta en escena representa para nosotros una nueva aventura, una experiencia retadora que
invita a incorporar lenguajes y experimentar códigos estéticos.” (RIOTEATROCARIBE, página da
WEB, 2008)
15
“En el fondo los significados se repiten, la incapacidad de encontrar la mañana de los hombres, las
baratas imágenes de felicidad con que nos alimentamos. Y esto lo hacemos de buen humor y una gran
ironía.” (Idem)

25
Inés Pérez-Wilke

entra no universo poético do pintor venezuelano Armando Reverón (1995),


Bosque humedo (1996), Celebre especialista en el gran hotel europa (1999),
Terra nostra, baseada na novela de mesmo nome do autor mexicano Carlos
Fuentes (2001), Tarkari de chivo (2003), aludindo à vida urbana e seu caos
e, principalmente, El Temblor de la Sonrisa (2005) falam de um interesse
central por temáticas singulares do contexto latino-americano e venezuelano
e que, no mundo metafórico, híbrido e ousado de Rio Caribe, atingem in-
quietações centrais da contemporaneidade.
Em relação à proposta estética o Rio Teatro Caribe passa por diversos
caminhos, mas se apóia fundamentalmente no poder da metáfora, cuja pro-
posta está além de todo tipo de realismo ou de naturalismo. Tal como Rio
Teatro Caribe opera, o teatro é basicamente a convenção, no sentido de licen-
ça, de acordo de um espaço de liberdade semântica, onde tanto o ator quanto
o espectador trabalharão na construção das imagens produzidas e recebidas
em relação aos seus próprios referentes. Fazem pontes surrealistas que po-
dem promover uma complexidade no discurso, uma certa fragmentação e
que vai se alimentar em diversas raízes: o antigo, o tecnológico, a técnica, a
poética metafórica, todos apresentados como paradoxos da simplicidade, como
sendo “assim mesmo” e, jamais à espera de uma explicação.

El temblor de la sonrisa (2005)

No contexto em que viemos falando, El temblor de la sonrisa é um caso


paradigmático por várias razões o encara frontalmente o assunto das utopi-
as no mundo de hoje, o trabalho de espaço cênico com uma estrutura de
tramóia vertical no palco que modifica os planos e as direções, relativizando
as falas de um discurso paradoxal. Momentos da nossa história e persona-
gens que aparecem fora de seu contexto dão a impressão de que, na
contemporaneidade, os contextos são muito móveis e os personagens estão
sempre um pouco ou muito fora do tempo e de lugar. Na platéia temos um
disk jockey singular e até esquisito, que dá voz a todas as personagens e se
assume Deus. A aparência de mundo feliz totalmente condicionado vai jun-
to com o desejo utópico e transgressor, tudo a ser posto em xeque. A mis-
tura de tecnologia, comédia, acrobacia e discurso político produz uma
imbricação de conceitos:

26
A cena híbrida...

*(foto 4 Rio Teatro Caribe. Espectáculo El temblor de la sonrisa. 2005. Foto: Arquivo Rio Teatro
Caribe)

O espectador tem a sensação de que alguns conceitos básicos são lançados


como dados, o que cria combinatórias inesperadas, polifônicas, equívocas e
capazes de abrir campos de sentido inovadores e, digamos a palavra batida,
poéticos – esse signo que alude e esquiva seus referentes, do caos aparente
sai a inquietação e a surpresa. (DENIS, 2008, sem número de página,
tradução nossa)16

Tecnicamente o que vemos é uma grade imensa feita com uma malha
metálica, com polias e braços na parte superior. E três bancos móveis na
parte inferior. Então, vemos três espaços cênicos importantes: o chão, onde
os personagens andam e que inclui as cenas sobre os bancos, a superfície da
malha metálica, onde as personagens também andam ajudadas por cordas,
e o espaço tridimensional, onde, através do sistema de polias, eles conse-
guem fazer uma dinâmica acrobática que evoca imagens futuristas.
As leituras políticas possíveis para esta peça são tão inevitáveis quanto
plurais. Ecoa na história contemporânea da América Latina, sem nenhuma
concessão a leituras dialéticas, consciente de entrar em um território caóti-

16
El espectador tiene la sensación de que algunos conceptos son lanzados como dados, lo cual crea
inusitadas combinaciones, polifónicas, equivocas y capaces de abrir campos de sentido innovadores y,
digamos la palabra manida, poéticos –ese signo que alude y esquiva sus referentes. Del aparente caos
sale la inquietud y el asombro. (DENIS, 2008, sem número de página)

27
Inés Pérez-Wilke

co, como é o imaginário contemporâneo com seus profundos temores, ob-


sessões, entregas, e vai aí mesmo ao centro colocar imagens instigantes.
Inspirados por um material amplo e variado, mencionam como chave o
trabalho gráfico de Alan Moore e a leitura de Um mundo feliz, de Huxley.
O resto é sensibilidade para olhar a própria realidade, o dia-a-dia da nossa
cidade e de tantas outras na América Latina, o cotidiano e fazê-lo explodir
metaforicamente no palco.

E depois?

A última peça da qual falamos é de 2005, e estamos falando de um país


com intensas mobilizações políticas e sociais nos últimos anos. A atividade
teatral tem passado por diversos momentos, as políticas têm mudado, des-
centralizando-se e tentando favorecer o crescimento dos grupos jovens e
do interior, o que tem afetado alguns grupos profissionais e tornado o pa-
norama teatral um pouco imprevisível. No entanto, estes quatro grupos,
entre outros, têm continuado suas pesquisas. No caso de DRAMO, levou à
cena El vuelo del ilusionista. Rio Caribe, por sua vez, trouxe Sueño de Gol-
pe, e La Bacante estreou Islas. A Pesquisa gestual e de imagens continua e
se aprofunda, o encontro de matérias estranhamente heterogêneas como
do antiqüíssimo e o atual, como o onírico e o concreto continuam a se
encontrar nesses universos que vêm falar do que se passa com o ser huma-
no em um outro patamar. Os resultados estéticos destes grupos e sua evolu-
ção podem ser vistos em relação à sensibilidade, flexibilidade e honestidade
com que têm encarado o mundo em que vivemos, desenvolvendo pesquisas
estéticas que possam dar conta de nosso tempo.
Propostas híbridas, além do texto, plenas de recursos, corajosas, vão
para o palco, não sem dificuldades, mas decididas. Levantando questões,
além da razão e da palavra, vão operando aquela política vital, agenciando
de imagens, desejos, forças, territórios coletivos. E, para isso, todo o purismo
é vácuo, abre-se mão de definições fechadas e opta-se por noções híbridas,
dinâmicas, heterogêneas e múltiplas que garantam a flexibilidade necessá-
ria para não fixar nada de maneira artificial, e sem cair na dissolução, afir-
mando-se em estéticas próprias, com suas próprias combinações e vetores
de sentido.

28
A cena híbrida...

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29
Inés Pérez-Wilke

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30
TEATRO ARGENTINO CONTEMPORÂNEO

Paula Fernández

Diretora teatral, atriz e Mestre em Artes Cênicas


pela Universidade Federal da Bahia

A arte é antes de tudo um problema de amor; se queremos conhecer a


verdadeira posição do artista devemos perguntar: de que está enamorado?
(GOMBROWICZ, 1968, tradução nossa)1

O teatro argentino das últimas duas décadas (1990 e 2000) foi renova-
do e enriquecido pelas obras de um grupo de artistas, entre os quais se
destacam: Rafael Spregelburd, Ricardo Bartís, Daniel Veronese, Alejandro
Tantanian, Javier Daulte, Lola Arias, Patricia Zangaro, Vivi Tellas, Mariano
Pensotti, Ignacio Apolo, Luciano Suardi, Pompeyo Audivert e Federico León,
entre outros. O trabalho destes autores foi objeto de inúmeros estudos teó-
ricos e de diversas denominações, como por exemplo: Teatro Novo ou Nova
Dramaturgia Argentina, Teatro Underground, Teatro da Desintegração, Te-
atro Off Corrientes, Teatro Pós-moderno, etc.
A produção destes criadores pode ser lida como a manifestação mais
recente de um fenômeno de transformação da cena nacional que começou
1
El arte es ante todo un problema de amor; si queremos conocer la verdadera posición del artista
debemos preguntar: ¿de qué está enamorado? (GOMBROWICZ, 1968)

31
Paula Fernández

em meados da década de 80, uma vez superada a última ditadura militar


(1976 – 1983). Nos anos 80, com a volta ao regime democrático, artistas e
grupos retornaram do exílio com uma concepção diferente da arte e do
teatro. Buenos Aires restabeleceu seus laços com as capitais artísticas do
mundo: personalidades como Tadeusz Kantor, Eugenio Barba, Pina Bausch,
Jacques Lecoq, Augusto Boal e Peter Brook – entre outros – transforma-
ram-se em interlocutores dos elencos locais. A visita de alguns destes teóri-
cos e grupos ao país (Kantor, Barba, La Fura Dels Baus, Boal, etc.) permi-
tiu conhecer melhor a singularidade das suas estéticas. As leituras das teo-
rias de Meyerhold, Craig, Artaud, Grotowsky e Barba, levaram à
revalorização do trabalho do ator como centro e raiz do fato teatral.
Estas inovações levaram a repensar a importância do teatro como ma-
nifestação artística e questionar a validade dos modelos e formas de produ-
ção que dominavam a cena local. Como conseqüência deste fato, produziu-
se uma proliferação de poéticas heterogêneas que o autor Jorge Dubatti
agrupa sob o cânon da multiplicidade:

Este cânon caracteriza-se pela atomização, diversidade e coexistência pacífica,


só excepcionalmente beligerante, de micro-poéticas e micro-concepções
estéticas. […] O cânon da multiplicidade aparece com o enfraquecimento
das polêmicas de oposição fechadas (realismo - absurdo, tradição - vanguarda,
esquerda - direita); com o qual já não se pensa dentro dos limites de um
discurso ideológico rígido (como o comunismo ou o socialismo) ou científico
(como a psicanálise). (DUBATTI, 1999, p. 13, tradução nossa)2

Ante a ausência de certezas e modelos sólidos, tudo é permitido neste


teatro cujo traço predominante é a diversidade. Trata-se de um teatro que
trabalha a mistura, a fusão de técnicas e distintas formas, como teatro de
imagem, clown, performance, dança-teatro, acrobacia, teatro de objetos,
repertório clássico adaptado, música, contact-improvisation, etc. Este tea-
tro subverte elementos do passado e se abre a universos não teatrais em
busca de material para criar. É um teatro híbrido, mestiço e também –
como aclara o dramaturgo Rafael Spregelburd – um teatro órfão de pais
que pertençam ao ofício:

2
Este canon se caracteriza por la atomización, la diversidad y la coexistencia pacífica, solo excepcio-
nalmente beligerante, de micropoéticas y microconcepciones estéticas. […] El canon de la multiplicidad
aparece con el debilitamiento de las polémicas de oposición cerradas (realismo-absurdismo, tradición-
vanguardia, izquierda-derecha); con lo cual ya no se piensa dentro de los límites de un discurso
ideológico rígido (como el comunismo o el socialismo) o científico (como el psicoanálisis). (DUBATTI,
1999, p. 13)

32
Teatro argentino...

A minha geração tem tido uma enorme brecha genealógica produto da


ditadura, os grandes mestres da dramaturgia neste país costumam ser da
geração dos nossos avôs, não de nossos pais. Tem tido um corte muito
grande na passagem da tradição, do conhecimento, da técnica e os autores
da minha geração não têm interesse em nada que essa outra geração estava
escrevendo, da sua experiência e saber, a geração do meio estava praticamente
sumida, sem representantes. Kartun3 é um deles. Por isto tudo, acho que
somos uma geração que não se aproximou do teatro tentando continuar a
linha de uma tradição prévia. E nossas influências mais diretas vieram de
outros lugares. No meu caso fundamentalmente do cinema. Mas no caso de
outros autores, as influências também vêm quase sempre de lugares muito
afastados do teatro: a música, a política, etc. (GARDEY, 2005, p. 46, tradução
nossa) 4

Embora resulte difícil traçar as linhas estéticas que configuram esta


multiplicidade de poéticas, em seguida serão esboçados os principais traços
da produção teatral desses artistas na cidade de Buenos Aires, centro cul-
tural hegemônico do país. Cabe aclarar que o intuito não é delinear uma
poética global, mas delinear os pontos de contato subjacentes nas expres-
sões particulares desta nova dramaturgia portenha, ou seja, os traços e ele-
mentos de composição que resultam semelhantes e recorrentes.

O Corpo Sobre a Palavra

Um dos traços presentes na nova dramaturgia portenha consiste no


afastamento de posições hierárquicas que durante muito tempo antepuse-
ram a figura do dramaturgo à do diretor e a figura deste à do ator, atribuin-
do a cada um deles um papel específico e fixo. Os novos artistas são porta-
dores de múltiplos saberes e realizam diferentes tarefas vinculadas à cria-

3
Mauricio Kartun é dramaturgo e diretor argentino, representante – quase por excelência – da geração
de dramaturgos anteriores aos chamados “novos”; foi também mestre da maioria deles. Entre suas
últimas peças figuram La madonnita (2006) e El niño argentino (2007).
4
Mi generación ha tenido una enorme brecha generacional producto de la dictadura, y los grandes
maestros de la dramaturgia en este país suelen estar en la generación de nuestros a buelos, no de
nuestros padres. Ha habido un corte muy grande en el pasaje de la tradición, del conocimiento, de la
técnica, y a los autores de mi generación no nos interesa nada de lo que esa otra generación estaba
escribiendo, de su experiencia y saber, y la generación intermedia estaba prácticamente desaparecida,
sin representantes. Kartun es uno de ellos. Por todo esto creo que somos una generación que no se
acercó al teatro tratando de continuar la línea de una tradición previa. Y nuestras influencias más
directas vinieron de otros lugares. En mi caso fundamentalmente del cine. Pero en el caso de otros
autores, las influencias también son casi siempre muy alejadas del teatro: la música, la política, etc.
(GARDEY, 2005, p. 46)

33
Paula Fernández

ção cênica. Quase todos atuam, dirigem e escrevem; alguns também tradu-
zem suas obras em diversas línguas (R. Spregelburd), cantam (A. Tantanian),
trabalham com bonecos e objetos (D. Veronese), ou escrevem roteiros e
dirigem filmes (F. León). Para referir-se aos criadores que somam na sua
atividade teatral o manejo de praticamente todos os ofícios da arte do espe-
táculo, a crítica especializada, e os mesmos artistas, costumam utilizar a
palavra teatrista.
O trabalho destes teatristas implica em uma forma diferente de produ-
ção, onde se privilegia a criação grupal. O texto dramático se escreve a
partir do trabalho do ator. A fidelidade ao texto – a pièce bien faite – é
substituída pelo texto tomado como roteiro, ou diretamente por improvisa-
ções definidas a partir dos interesses do grupo. Assim, a função do drama-
turgo é suprida em grande parte pelo trabalho dos atores e do diretor.
Federico León é verdadeiramente paradigmático quando afirma:

Não concebo a escrita separada da direção, quer dizer, sempre escrevo para
mim e é uma escrita muito ligada ao trabalho cênico […] Comecei atuando e
construindo espetáculos grupais, nos quais todos nós tomávamos conta da
direção, da dramaturgia, da luz, da cenografia, etc. Atores que escrevem e
organizam um material para se criar um espaço de atuação. (LEÓN, 2005, p.
19, tradução nossa)5

De acordo com J. Dubatti (1999), com a criação grupal se produz a


atomização da noção de dramaturgia, a qual já não se utiliza só para indicar
a atividade do escritor dramático, mas é aplicada aos demais papéis cêni-
cos. Dependendo das características específicas de cada processo de cria-
ção pode-se falar de uma dramaturgia de ator, de grupo ou de diretor.
A dramaturgia de ator alude aos textos criados de maneira individual
ou grupal pelos mesmos atores que interpretam as obras. Os espetáculos de
Guillermo Angelelli, Favio Posca e Fernando Peña, são exemplos deste tipo
de produção textual. Por outra parte, a dramaturgia de grupo tem lugar
quando os atores e o diretor criam de maneira conjunta o texto espetacular
e o texto escrito. Grupos como Los Melli, Los Prepu e Las Gambas al
Ajillo, na maioria dos seus espetáculos realizam este tipo de dramaturgia.

5
No concibo la escritura separada de la dirección, es decir que siempre escribo para mí y es una
escritura muy ligada al trabajo escénico […] Empecé actuando y construyendo espectáculos grupales,
en los cuales todos nos hacíamos cargo de la dirección, de la dramaturgia, de la luz, de la escenografía,
etc. Actores que escriben y organizan un material para crearse un espacio de actuación. (LEÓN, 2005,
p. 19)

34
Teatro argentino...

Por um lado, a dramaturgia de direção é a que o diretor gera quando


realiza a adaptação livre de algum texto prévio, ou quando constrói a peça a
partir de improvisações que efetuam os atores. As peças Muñeca (1994),
Hamlet o la guerra de los teatros (1991) e El pecado que no se puede nombrar
(1998), adaptadas pelo diretor R. Bartis a partir de textos dos autores A.
Discépolo, W. Shakespeare e R. Arlt, respectivamente, podem ser tomadas
como exemplos do primeiro caso. Por outro, as obras realizadas pelo grupo
Krapp, sob a direção de Luis Biasotto e Luciana Acuña, podem ser exem-
plos do segundo caso.
A noção de dramaturgia de direção designa uma forma de produção cêni-
ca e textual que a maioria dos teatristas tem incorporado nos seus processos
criativos. Este procedimento implica uma dinâmica de criação em que o traba-
lho dramatúrgico e o de direção se realizam simultaneamente: as improvisa-
ções realizadas pelos atores produzem um determinado texto e a comprovação
cênica desse texto, por sua vez, produz um novo material cênico. Desta forma,
gera-se um contínuo movimento de ida e volta entre cena e texto que vai defi-
nindo o tom da obra e a qualidade dos personagens que moram nela.
A retro-alimentação que se estabelece entre texto e cena encontra sus-
tento em um tipo de improvisação que o ator e investigador Matteo Bonfitto
define como “espaço mental”:

A improvisação enquanto “espaço mental” pode gerar ações a partir de


diferentes matrizes em um mesmo espetáculo. Ela pode envolver em ações
de outras formas de arte, como a pintura, escultura, música ou literatura:
pode envolver a tradução em experiências pessoais abstratas ou complexas:
pode envolver a tradução em diferentes conteúdos, conceitos, temas... Ou
seja: nesse caso o ator não só deverá ser apto a “traduzir” em ações as
múltiplas referências que poderão ser utilizadas no processo criativo -
operando assim traduções intersemióticas - como também deverá ser capaz
de constituir um sentido a partir da utilização e concatenação de materiais
de diferentes naturezas. [...] Uma característica que atribui especificidade a
esse processo é a atitude de busca, por parte do diretor e dos atores, de um
“desconhecido” gerador de experiências pregnantes e transformadoras
(BONFITTO, 2002, p. 126).

Este tipo de prática centra-se na investigação cênica. A improvisação é


tomada como um recurso que utiliza matrizes ou estímulos de diferentes
índoles para gerar ação. Não há um caminho nem um resultado definido de
antemão, não se sabe onde se pretende chegar. A obra vai se construindo
mediante a indagação, a experimentação e a comprobação cênica: “o traba-
lho é permeado por uma atitude de ‘abertura existencial’, de ‘suspensão do

35
Paula Fernández

juízo’ que tem como objetivo perceber o não percebido, descobrir o que
está escondido, tornar visível o invisível” (BONFITTO, 2002, p. 122).
A materialidade textual e cênica surge dos procedimentos que se utili-
zam nos ensaios. O ator funciona ao mesmo tempo como origem e destina-
tário de uma multiplicidade de propostas que vão construindo sentidos e
definindo um tipo de atuação que assume as ressonâncias associativas do
grupo como totalidade.
O ator se transforma no principal elemento de composição. Sua pre-
sença física e mental é orientada à criação de formas e intensidades que
transcendem a linguagem verbal: trabalha na construção do não dito; da-
quilo que não pode se verbalizar, mas que se manifesta de forma concreta
na potência de uma ação ou um impulso físico; na manipulação – absoluta-
mente pessoal – do tempo e do espaço, e na condensação de energias e
estados emocionais.
Na dramaturgia de direção, a organização formal do texto escrito fica
totalmente subordinada à linguagem de atuação e de encenação que se gera
no processo de ensaios. No prólogo de Fractal, peça criada por Rafael
Spregelburd junto com quatorze atores, o diretor assinala:

Os atores e eu escrevemos Fractal no palco. […] Cada ator teve que se imbuir
da idéia de que a atuação não é uma segunda representação de uma idéia
literária, a atuação é operar sobre a situação, para fabricar, além disso, como
um resíduo, essa literatura tão especial que é a que se “vê” e não a que se
“lê” (SPREGELBURD, 2001, p. 8, tradução nossa)6.

No mesmo sentido se exprimem os atores quando dizem:

Como atores, nosso objetivo principal é ser produtores de sentido. Escrever


com nossos corpos. Ser autores. Os textos que vão ler são resultados de provar
e errar, não em termos literários, mas nos ensaios, no palco. Não são textos
representados por nós: são um produto do descarte, da reciclagem e do
acidente que tem lugar no ensaio. Entendemos que cada vez mais é esse o
trabalho que lhe concerne ao ator, e não outro. Ali radica a especificidade da
criação literária no teatro. (SPREGELBURD, 2001, p. 13, tradução nossa)7

6
Los actores y yo escribimos Fractal sobre el escenario. […] Cada actor tuvo que hacerse cargo de que
la actuación no es representación segunda de una idea literaria, la actuación es operar sobre la
situación, para fabricar además, como un residuo, esa literatura tan especial que es la que se “ve” y no
la que se “lee”. (SPREGELBURD, 2001, p. 8)
7
Como actores, nuestro objetivo principal es ser productores de sentido. Escribir con nuestros
cuerpos. Ser autores. Los textos que van a leer son producto de probar y errar, pero no en términos
literarios, sino en los ensayos sobre el escenario. No son textos representados por nosotros, sino que
son producto del descarte, el reciclaje y el accidente que tiene lugar en el ensayo. Entendemos que
cada vez más es ese el trabajo que concierne al actor, y no otro. Allí radica la especificidad de la
creación literaria en el teatro. (SPREGELBURD, 2001, p. 13)

36
Teatro argentino...

Um procedimento utilizado por vários autores (León, Bartís, Brisky,


etc.), no exercício da dramaturgia de direção, consiste em realizar improvi-
sações nas quais o diretor participa intervindo com a palavra: fisicamente
permanece fora da cena, mas sua voz intervém ativamente dizendo textos,
sugerindo ações, estabelecendo pausas, etc. Assim, o trabalho realizado
nos ensaios supõe uma interação contínua entre as propostas dos atores e
as do diretor.
No transcurso de uma improvisação o diretor realiza uma espécie de
desdobramento: observa a cena por fora; permanece atento ao que os ato-
res exprimem física e verbalmente, e em determinados momentos – como
se assumisse o papel de um ator em particular – introduz (emite) um pe-
queno texto que automaticamente é repetido e continuado pelo ator em
questão. Isto provoca uma modificação no agir dos demais atores e/ou gera
uma resposta por parte de outro ator que, por sua vez, pode ser retomada e
preenchida pelo diretor, e assim por adiante.
A cena avança por meio de uma proliferação de ações e textos que
resultam do universo de associações íntimas e pessoais que cada integrante
do elenco põe em funcionamento durante as improvisações. O material dra-
mático é gerado mediante o cruzamento e a interação das diferentes formas
de atuação e subjetividades que estão presentes no ensaio. Esta forma de
trabalho garante a fusão do papel de dramaturgo e de diretor em um só.
Federico León explica:

Eu sinto que meu trabalho é dizer, o tempo todo, os textos de todos os


personagens. Porque eu não posso dizer os textos, sozinho, na minha casa.
Preciso do contato com o ator, enxergar o olhar que tem em um determinado
momento e lhe dizer: “é isso mesmo Germã, está acontecendo isto com
você, diga, diga tal coisa. Paula: você está entendendo o que falou Germã?
Não está entendendo. Falou “isto”; responda. Jimena: Está percebendo o
que acontece? Estão deixando você fora da situação, reaja…” Os compreendo;
mas no que se refere à escrita, muitas vezes, eu preencho os espaços. O sentido da
atuação vai se armando aí, entre eles; mas o texto (LEÓN apud
FERNÁNDEZ, 2006, tradução nossa)8

8
Yo siento que mi trabajo es ir diciendo los textos de todos los personajes todo el tiempo. Porque yo
no puedo decir solo en mi casa los textos. Yo tengo que ver una mirada que hace un actor y decirle:
“claro, Germán te está pasando esto, decíle; decíle tal cosa”. “Paula: ¿entendés lo que te dijo Germán?
No lo estas entendiendo. Te dijo “esto”; respondele”; “Jimena ¿ves lo que está pasando?, te dejan
afuera, reaccioná…” Entiendo con ellos; pero en término de escritura, muchas veces, yo lleno los
espacios. El sentido de actuación se va armando ahí, entre ellos; pero el texto (LEÓN apud
FERNÁNDEZ, 2006).

37
Paula Fernández

Durante os ensaios o diretor realiza algumas anotações: frases soltas, te-


mas, palavras que surgem nas improvisações, entre outras coisas, e, posterior-
mente, reformula todo esse material em um texto. Como dramaturgo, não ten-
ta respeitar literalmente os textos emitidos nos ensaios, mas recuperar a forma
particular e única que cada ator, mediante seu agir, constrói a narração e senti-
do cênico. Assim, no transcurso do processo de ensaios apresenta três tipos de
textos, aos que Dubatti identifica como: “Texto proto-cênico (escrito em, com
e durante os ensaios), texto cênico (o texto dramático que se manifesta no
texto espetacular), e texto pós-cênico (resultado da notação a posteriori do
texto cênico).” (DUBATTI, 2005, p. 213, tradução nossa)9
O texto pós-cênico funciona como uma partitura que se origina e se
preenche com o relato de atuação que constroem esses atores. Por essa
razão, a maioria dos novos teatristas não está interessada em que outros
diretores ou elencos montem as suas obras. Fora do processo criativo que
lhes deu origem estes textos se transformam em materiais herméticos e
difíceis de encenar.

O Micro Sobre o Macro

Que temáticas abordam estes teatristas? Quais os conflitos e obsessões


que estão presentes nas suas propostas? Os temas que interessam à nova
dramaturgia variam de uma micro-poética para outra, e também de uma
obra para outra na produção de um mesmo artista.
Neste contexto de diversidade, um traço comum a todos eles é a de
valer-se da percepção subjetiva e/ou grupal da realidade como material-
suporte para a criação. Segundo explica J. Dubatti: “Os dramaturgos já não
escrevem a partir de um discurso hegemônico internacional, já não se reú-
nem na abstração de uma superestrutura, mas trabalham a partir da própria
visão molecular, a partir da subjetividade individualista ou de tribo.”
(DUBATTI, 1999, p. 22, tradução nossa)10

9
Texto proto-escénico (escrito en, con y durante lo ensayos), texto escénico (el texto dramático que
se manifiesta en el texto espectacular), y texto post-escénico (resultado de la notación a posteriori del
texto escénico). (DUBATTI, 2005, p 213)
10
Los dramaturgos ya no escriben desde un discurso hegemónico internacional, ya no se reúnen en la
abstracción de una superestructura sino que trabajan desde la propia visión molecular, desde la
subjetividad individualista o de tribu. (DUBATTI, 1999, p. 22)

38
Teatro argentino...

O micro-social é colocado em primeiro plano e evidencia a negativa


destes autores em inscrever suas obras sob dogmas ou modelos totalizadores.
Já não há temáticas ou idéias a serem trabalhadas, mas estímulos de diver-
sos tipos (visuais, sonoros, biográficos, literários, etc.) que transformam o
ensaio em uma instância de busca e criação do material dramático.
Os artistas rejeitam a função didática de transmitir mensagens ou de
instruir o espectador revelando a verdade das coisas. Sua verdade reside
mais no procedimento lúdico de construção de sentidos a posteriori, que na
exposição de verdades conhecidas a priori. É um teatro que antepõe a pró-
pria expressão, o íntimo e o ambíguo, à certeza e ao racionalismo.
A realidade político-social imediata funciona como material sobre a
qual os teatristas produzem associações e opiniões absolutamente pessoais,
sem nunca cair em alusões diretas ou explicitas. Como aclara Rafael
Spregelburd: “É um teatro que não opera sobre os temas do conjuntural,
mas sobre a maneira que temos de perceber o real.” (GARDEY, 2005, p.
52, tradução nossa)11. A revisão que faz este autor dos argumentos de algu-
mas obras que foram escritas por seus colegas, embora extensa, permite
dimensionar o tipo de transcendência que atinge o real quando é submetido
à interpretação subjetiva de um artista e/ou grupo:

Em Mujeres soñaron caballos, Daniel Veronese apresenta três ridículos irmãos


tentando desarmar a empresa familiar, levada à ruína por manipulações
secretas e ruins, enquanto a mulher de um deles descreve, com luxo de
detalhes, o roteiro de um filme que nunca vai filmar, a segunda das mulheres
chora desconsoladamente o desaparecimento misterioso de um cavalo […],
e uma terceira mulher, a mais nova, descobre que esta não é a sua família e
que teria sido roubada do berço dos seus pais, com uma arma acaba com a
vida de todos eles. O argumento, que parece absurdo, talvez “mágico” ante
os olhos dos europeus, é apresentado como se se tratasse do realismo mais
cruamente verossímil, seco e contundente. […] Em Cine quirúrgico, o autor
Alejandro Tantanian recria a figura do Doutor Alejandro Posadas, um
visionário cirurgião argentino que, apenas dois anos aparecido na França o
invento dos irmãos Lumière, corre à Paris para comprar uma câmera para
filmar suas operações no quintal do Hospital Municipal […] A peça percorre
com desopilante humor e extravagante crueldade o caminho para o
esquecimento que este ilustre personagem […] tem transitado em um país
que condena seus grandes homens e premia com piscada cúmplice, argentina,
seus criminosos e medíocres. Em El pecado que no se puede nombrar, o diretor
Ricardo Bartís rearma a monumental obra de Roberto Arlt. Aqui, um grupo
muito anômalo e extremamente reduzido de revolucionários (são sete)
planeja derrocar o capitalismo mundial, para isso começam a tentar conseguir

11
Es un teatro que opera, no sobre los temas de lo coyuntural, sino sobre la manera que tenemos de
percibir lo real. (GARDEY, 2005, p. 52)

39
Paula Fernández

o dinheiro que necessitam para a sua organização subversiva mediante a


administração de um prostíbulo. Mas na falta de mulheres confiáveis para
explorar essa tarefa, eles decidem se prostituir segundo um sorteio que
determina quem serão os homens e as mulheres, fazendo do hermafroditismo
psíquico a clave ideológica da revolução. […] Não faço mais que repassar na
minha cabeça e constato que as obras mais interessantes que têm dado
nossos palcos nestes últimos anos de confusão, de caos cultural e de
depressão econômica, são monstros indomáveis, bizarros, de comportamento
incerto e de bom gosto muito duvidoso. Isto possibilita pensar em todos estes
exemplos como um mecanismo de conhecimento daquilo que ocorre em
nosso país. Mas, é claro que é um mecanismo não jornalístico, sujeito sempre
à interpretação. E a interpretação é privada. A interpretação é a mais divertida
das formas que cobra a liberdade. (SPREGELBURD, 2001, p. 12, tradução
nossa) 12

A maior inovação deste teatro centra-se na sua liberdade para cons-


truir o novo, fato que se traduz em duas modalidades de produção diferen-
tes: por um lado os teatristas confiam plenamente na experimentação e na
investigação como meios para gerar formas cênicas inéditas; e por outro
lado, estão convencidos de que o novo como categoria artística não existe;

12
En Mujeres soñaron caballos, Daniel Veronese presenta a tres ridículos hermanos tratando de
desarmar la empresa familiar, llevada a la ruina por malos y secretos manejos, mientras la mujer de uno
de ellos describe con lujo de detalles el guión de una película que nunca filmará, la segunda de las
mujeres llora amargamente la misteriosa desaparición de un pony […], y una tercera mujer, la más
joven, descubre que esta familia no es la suya sino que ha sido robada en la cuna de sus padres, en
misteriosas circunstancias, y -arma en mano- acaba con la vida de todos ellos. El argumento, que
suena absurdo, tal vez “mágico” a los ojos europeos, es presentado como si se tratara del realismo más
crudamente verosímil, seco y contundente. […] En Cine quirúrgico, el autor Alejandro Tantanian
recrea la figura del Doctor Alejandro Posadas, un visionario cirujano argentino que, a los dos años de
aparecido en Francia el invento de los hermanos Lumière, corre a París a comprar una cámara, con la
que filmaría sus operaciones en el patio del Hospital Municipal […] La obra desanda con desopilante
humor y extravagante crueldad el camino hacia el olvido que este ilustre personaje […] ha transitado
en un país que condena a sus grandes hombres y premia con guiño cómplice, argentino, a sus criminales
y mediocres. En El pecado que no se puede nombrar, el director Ricardo Bartís rearma la monumen-
tal obra de Roberto Arlt. Aquí, un grupo muy anómalo y extremadamente reducido de revolucionarios
(son siete) planea derrocar al capitalismo mundial, para lo cual comienzan por intentar conseguir el
dinero que necesitan para su organización subversiva mediante el regenteo de un burdel. Pero a falta
de mujeres confiables, a las que poder explotar para esta faena, deciden prostituirse ellos mismos,
según un sorteo en el que determinan quiénes harán de hombres y quiénes de mujeres, y haciendo del
hermafroditismo psíquico la clave ideológica de la revolución. De toda revolución. […] No hago más
que repasar en mi cabeza y encontrar que las obras más interesantes que han dado nuestros escenarios
en estos últimos años de confusión, de caos cultural, y de depresión económica, son monstruos
indomables, bizarros, de incierto comportamiento y de muy dudoso buen gusto. Esto hace que sea
posible pensar en todos estos ejemplos que he dado como un mecanismo de conocimiento de lo que
ocurre en nuestro país. Pero como se ha visto, es un mecanismo no periodístico, siempre sujeto a la
interpretación. Y la interpretación es privada. La interpretación es la más divertida de las formas que
cobra la libertad. (SPREGELBURD, 2001, p. 12).

40
Teatro argentino...

que tudo já foi provado e feito, levando-os a recuperar recursos e procedi-


mentos cênicos pertencentes à diferentes poéticas do teatro nacional e/ou
mundial.
A nova dramaturgia portenha faz uma revisão do teatro popular sub-
vertendo suas convenções e potencializando aspectos que não foram con-
templados em montagens anteriores. A releitura que os teatristas efetuam
sobre as peças do passado evidencia seu interesse por questionar e pôr à
prova textos que em outros tempos tinham garantia segura.
A ambigüidade e a imprecisão destes espetáculos encontram na
comicidade um recurso eficaz, capaz de legitimar as associações mais dispa-
ratadas. Quase todas as obras utilizam um humor, corrosivo, que instaura o
código no qual se constrói o verossímil cênico. Como aclara o teatrista R.
Spregelburd, trata-se de um humor que evita a piada e que reivindica o teatro
como lugar de mistério e de não entendimento: “O riso é um reflexo que
libera uma tensão. Essa tensão é necessária para que se produza o pensamen-
to lúdico, artístico, a arte é o lugar onde há tensões indissolúveis que a razão
não pode compreender.” (GARDEY, 2005, p. 52)13

O Real Sobre a Cena

Outro rasgo presente na produção dos novos dramaturgos de Buenos


Aires reside na aparição do real na cena, sob diferentes formas. Nos últi-
mos anos multiplicaram-se as obras que utilizam o biográfico, o registro
documental e o autobiográfico como suporte material da ficção teatral. A
importância dada para o real traduziu-se na incorporação de cenografias
hiper-realistas, instalações; animais, objetos cotidianos (adereços reais),
pessoas sem formação artística e atores que em lugar de representar uma
personagem, apresentam-se a si mesmos em cada apresentação.
Em meados dos anos 90 diferentes projetos e ciclos teatrais organiza-
ram-se sob o princípio (muito utilizado no percurso da história do teatro e
das artes em geral) de pesquisar a relação entre o real e o ficcional. A
diretora Vivi Tellas assinala:

13
La risa es un reflejo que libera una tensión. Esa tensión es la necesaria para que se produzca el
pensamiento lúdico, artístico, el arte es el lugar donde hay tensiones indisolubles que la razón no
puede comprender. (GARDEY, 2005, p. 52)

41
Paula Fernández

Depois de quase duas décadas de simulacros e simulações o que volta é a


idéia de que ainda há experiência e que a arte deve inventar alguma forma
nova de entrar em relação com ela. A tendência, que é mundial, compreende
desde fenômenos de cultura de massa como o reality show até expressões
mais adiantadas da arte contemporânea, passando pela ressurreição de
gêneros considerados até agora menores, como o documental, a testemunha
ou a biografia. O retorno da experiência é também o retorno do pessoal,
volta o eu, sim, mas é um eu cultural, social e inclusive político. (DURÁN,
2005, p. 15, tradução nossa)14

A composição cênica a partir de vidas reais esteve presente, por exem-


plo, em Proyecto Museos (1995 - 2001); Proyecto Biodrama (2002 - 2007),
Proyecto Archivos (2003 - 2006) e Proyecto 05 (2005), entre outros. Em
Proyecto Museos, Vivi Tellas (nessa época diretora do Centro Cultural Ricardo
Rojas) convocou diretores da cidade de Buenos Aires para que pesquisassem
e criassem espetáculos sobre museus não artísticos dessa cidade. Neste con-
texto, Federico León trabalhou sobre o Museu Aeronáutico e criou Museo
Miguel Ángel Boezzio (1998); obra na qual o senhor Miguel Ángel Boezzio
(ex-combatente das Malvinas e ex-paciente de um hospital neuropsiquiátrico)
relata e documenta fatos da sua própria vida.
Esta experiência, sobre a qual voltaremos mais adiante, deu lugar a
Proyecto Biodrama: um ciclo de peças em que diferentes diretores deviam
escolher um argentino contemporâneo (uma figura pública ou anônima) e
transformar sua vida em material dramático. No marco deste projeto, o
dramaturgo e diretor Alejandro Tantanián estreou Los mansos (2005). Nesta
obra o diretor toma três personagens e algumas situações da novela El idi-
ota – de Dostoievski – e as cruza com dados que pertencem à sua própria
vida, à de Dostoievski e à dos atores, sem que exista, entre uma e outra
informação, uma delimitação precisa.
Em um momento da obra, por exemplo, os atores que interpretam os
personagens de Dostoievski apresentam-se ante o público com seus verda-
deiros nomes e narram alguns detalhes das suas vidas; mas não se trata de
uma apresentação pura, já que no relato eles misturam fatos e dados pesso-
ais com outros pertencentes à biografia do diretor. Por outro lado, algumas

14
Después de casi dos décadas de simulacros y simulaciones lo que vuelve es la idea de que todavía hay
experiencia y de que el arte debe inventar alguna forma nueva de entrar en relación con ella. La
tendencia, que es mundial, comprende desde fenómenos de cultura de masas como los reality shows
hasta expresiones más avanzadas del arte contemporáneo, pasando por la resurrección de géneros
hasta ahora considerados menores como el documental, el testimonio o la biografía. El retorno de la
experiencia es también el retorno de lo personal, vuelve el yo, si, pero es un yo cultural, social e incluso
político. (DURÁN, 2005, p. 15)

42
Teatro argentino...

anedotas que pertencem à vida do escritor russo confundem-se com a vida


do diretor, por exemplo, a alusão feita à epilepsia: doença padecida por
ambos os autores. Na obra convivem, de maneira indiscriminada, comentá-
rios sobre a vida de Dostoievski, o relato da própria experiência e a
enunciação na primeira pessoa do discurso alheio. A. Tantanian afirma:

O propósito do espetáculo é ir misturando esses diferentes níveis até que


não se saiba quem fala […] Mas aclaro que não se trata de uma obra sobre a
vida dos atores ou a minha. Trata-se de um espetáculo cujo eixo narrativo é
El idiota, em uma versão mínima, mas com um limite muito impreciso entre
o biográfico e o ficcional, entre a apresentação e a representação, entre o
que mostro e o que sou. (CRUZ, 2005, p. 17, tradução nossa)15

Os cruzamentos efetuados entre realidade e ficção são revelados pelo


diretor através de alguns fatos que transcendem a obra, como por exemplo:
uma mostra com fotografias dos ensaios realizada na mesma sala onde se
efetuava a obra; uma caixa com fotos, desenhos e textos do espetáculo que o
espectador podia adquirir na saída do teatro e um blog onde o elenco docu-
menta o processo de criação e os espectadores acrescentam comentários.
Por outra parte, com Proyecto Archivos (2003), Vivi Tellas se propôs a
construir um teatro documental a partir das histórias de vida de pessoas
alheias ao âmbito teatral (não atores). Neste ciclo, estrearam as peças: Mi
mamá y mi tía (2003), interpretada pela mãe e a tia da diretora; Tres filóso-
fos con bigotes (2004), interpretada por três professores de filosofia da
Universidade de Buenos Aires; e Cozarinsky y su médico (2005), interpre-
tada pelo cineasta e escritor Cozarinski e seu amigo médico.
Nestas experiências, Vivi Tellas tentou diminuir o protocolo e as con-
venções próprias da instituição teatral a partir de vários pontos de vista.
Por exemplo: Mi mamá y mi tía não se realizou em um teatro; as apresenta-
ções se efetuaram na própria sala de ensaio da diretora. O ingresso foi de
graça e esteve limitado a um total de 25 pessoas. Os que quiseram assistir
tinham que ligar para a diretora e eram convidados.
Antes de começar a obra, Vivi Tellas conduzia o público por uma esca-
da, enquanto mostrava uma foto de duas mulheres jovens em biquíni e iden-

15
La intención del espectáculo es ir mezclando esos distintos niveles hasta que uno no sepa quién
habla […] Pero aclaro que no se trata de una obra sobre la vida de los actores o la mía. Se trata de un
espectáculo cuyo eje narrativo es El idiota, en una versión mínima, pero con un límite muy impreciso
entre lo biográfico y lo ficcional, entre la presentación y la representación, entre lo que muestro y lo
que soy. (CRUZ, 2005, p. 17).

43
Paula Fernández

tificava-as como sua mãe e a sua tia no verão de 1974. Posteriormente, os


espectadores passavam para uma sala pequena na qual as mulheres da foto
– trinta anos mais velhas – jogavam um jogo de mesa. Durante uma hora, as
duas judias revisavam fragmentos das suas vidas; narravam sucessos da in-
fância, casamentos, traições, viagens, mortes de familiares, nascimentos,
concursos de beleza, receitas de cozinha, confissões íntimas, etc. A mãe e a
tia executavam, sem estridências, uma partitura cênica que apelava à emo-
ção e ao riso do espectador.
No percurso da obra a diretora entrava e saía da cena para ajudar as
mulheres (oferecia água, cigarros, abraçava-as quando estavam emociona-
das, etc.). Por outro lado, os objetos que intervinham na obra (vestidos,
jogo de mesa, cinzeiro, vestido de noiva, fotos, etc.) eram objetos pessoais
de Graciela e Luisa (a mãe e a tia). No final do espetáculo alguns destes
pertences eram exibidos como mostras? Resquícios? Souvenires? Docu-
mentos? ... de momentos intensos ou representativos das suas vidas. O cli-
ma íntimo e familiar da peça se prolongava em uma refeição que o elenco
compartilhava com o público, ao fim do espetáculo. A crítica Cecilia Sosa
diz:

O efeito é difícil de descrever; a ausência de ficção parece autorizar as


identificações mais brutais. O público […] ri e chora como e com as
protagonistas. […] O teatro renuncia à representação para recuperar uma
função comunitária mítica: purgar e criar laços. Tudo resulta catártico, e de
vez, maravilhosamente reconciliatório. […] Como chamar a este pedaço de
fatias de vida crua? Happening familiar? Neopsicodrama? Autobiografia
étnica? E que estatuto dar-lhe? É arte? É um ritual privado? E se fora assim,
por que produz um efeito de comunhão tão inapelável? Ou trata-se por
acaso de um reality teatral? (SOSA, 2004, p. 13, tradução nossa)16

Menos preocupada em classificar a obra, Vivi Tellas, afirma que com


Proyecto Archivo se propôs indagar mundos íntimos e rastrear o mínimo
teatral, quer dizer, os sintomas de uma teatralidade que de forma implícita
está presente nas histórias de vida das pessoas. A diretora explica:

16
El efecto es difícil de describir; la ausencia de ficción parece autorizar las identificaciones más
brutales. El público […] ríe y llora como y con las protagonistas. […] El teatro renuncia a la
representación para recuperar una función comunitaria mítica: purgar y crear lazos. Todo resulta
catártico y, a la vez, maravillosamente reconciliatorio. […] ¿Cómo llamar a este puñado de rodajas de
vida cruda? ¿Happening familiar? ¿Neopsicodrama? ¿Autobiografía étnica? ¿Y qué estatuto darle?
¿Es arte? ¿Es un ritual privado? Y si fuera así, ¿por qué produce un efecto de comunión tan
inapelable? ¿O se trata acaso de un reality teatral? (SOSA, 2004, p. 13)

44
Teatro argentino...

De tudo o que minha mãe e minha tia me contavam, por exemplo, eu lhes
pedia que repassássemos as mortes, as traições, as mentiras e todas as
histórias familiares que venho escutando, contadas sempre da mesma maneira,
desde que tenho seis anos. Neste caso, a repetição é o que ativa a teatralidade,
e isso é o que eu chamo o mínimo teatral. (…) Algo que me interessa muito
é a falta de solvência cênica das pessoas com que trabalho: o que se vê na
cena é algo frágil, com muitos erros: o tempo todo se produzem imprevistos
que me hipnotizam. Não são experiências fechadas, como quando há uma
destreza ou um ofício no palco. (SOSA, 2004, p. 13, tradução nossa)17

Por outro lado, o ciclo Proyecto 05 (2005) - coordenado pelo diretor


Rubén Szuchmacher – reuniu diferentes artistas com a proposta de pesquisar
e criar espetáculos a partir de personalidades históricas que tivessem morrido
ou nascido em algum ano 05. As pesquisas deram lugar à obras sobre a vida
de Julio Verne, Greta Garbo, Christian Dior, F. Schiller e J. P. Sartre, entre
outros.
Apesar de respeitarem fielmente os dados biográficos, os espetáculos
não ilustravam a vida das personalidades escolhidas: construíam uma ficção
baseando-se em aspectos curiosos, pouco conhecidos, ou que podem ser
considerados menores no contexto das biografias célebres. O diretor
Luciano Suardi, por exemplo, na obra Quiero estar sola trabalhou sobre a
vida de Greta Garbo, centrando-se na etapa em que a diva se retirou do
ambiente artístico de Hollywood para enclausurar-se na solidão de sua casa.
O diretor diz: “Em uma biografia achei uma frase sua: ‘Se alguma coisa me
acontecesse durante este fim de semana, ninguém saberia. Minha criada
não vem durante o fim de semana.’ Comoveu-me como ela, a divina, podia
morrer tão sozinha, como tantos que estivemos tão sozinhos em um fim de
semana.” (DURÁN, 2005, p. 23, tradução nossa)18
Quiero estar sola (2005) consistia em um monólogo no qual Greta
Garbo expunha momentos da sua vida e convocava diferentes personagens
com os quais tinha se relacionado. Mas na cena não havia diálogo nem

17
De todo lo que me contaban mi mamá y mi tía, por ejemplo, yo les pedía que repasáramos las
muertes, las traiciones, las mentiras, y todas las historias familiares que vengo escuchando, contadas
siempre de la misma manera, desde que tengo 6 años. En este caso, la repetición es lo que pone en
marcha la teatralidad, y eso es lo que yo llamo el mínimo teatral. […] Algo que me interesa mucho es
la falta de solvencia actoral de las personas con las que trabajo: lo que se ve en escena es algo frágil, con
muchos errores: todo el tiempo se producen imprevistos que me hipnotizan. No son experiencias
cerradas, como cuando hay una destreza o un oficio en escena. (SOSA, 2004, p. 13)
18
En una biografía encontré una frase suya: “Si algo me pasara durante este fin de semana, nadie se
enteraría. Mi mucama no viene durante el fin de semana”. Me conmovió cómo ella, la “divina”, podía
morir tan sola, como tantos que estuvimos tan solos en un fin de semana. (DURÁN, 2005, p. 23)

45
Paula Fernández

interação: os personagens se limitavam a repetir suas palavras que, somado


ao trabalho efetuado em relação ao espaço e à iluminação, instalava na cena
um profundo sentimento de renuncia e solidão.
Nos ciclos e obras mencionadas anteriormente, a narração biográfica,
autobiográfica e testemunhal não são utilizadas de forma pura. O real é
submetido a diferentes tratamentos cênicos para construir uma ficção au-
tônoma que de maneira fragmentada, diluída, e/ou distorcida permite infe-
rir um referente (objeto, pessoa, história) tomado da realidade. Como acla-
ra Daniel Veronese, o jogo que se estabelece entre realidade-ficção implica:
“Criar uma experiência de raças cruzadas […] Estabelecer cartograficamente
na representação, linhas de flotação do imaginário. […] Teatro da outra
realidade. Teatro de uma realidade revelada; degradada, que abra: que des-
componha os limites do real.” (DUBATTI, 2005, p. 217, tradução nossa)19
O teatro testemunhal utiliza o real para criar um espaço intermediário,
um espaço entre realidade e ficção que subverte as convenções do gênero
biográfico submetendo-o a contínuos cruzamentos e pulos entre diferentes
registros. Neste caso, como aclaram G. Deleuze e F. Guatarri: “Entre as
coisas não designa uma relação localizável que vai de uma a outra e recipro-
camente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que
arrasta uma e outra, riacho sem princípio nem fim que desgasta as duas
beiras e adquire velocidade no meio.” (Deleuze- Guatarri, 2004, p. 29, tra-
dução nossa)20
A instauração do real na cena postula a indagação da teatralidade do
íntimo, do cotidiano e do mínimo mediante recursos que não pretendem
elucidar a verdade das histórias de vida e fatos pesquisados, mas construir
um verossímil cênico.
A experimentação realizada pelos teatristas sobre o real gerou múlti-
plas hipóteses e estéticas muito heterogêneas. Para a professora Beatriz
Trastoy, a importância desta experimentação reside no fato de assumir o
desafio de esticar e desestabilizar as convenções do gênero biográfico e, ao
fazê-lo, não só se questiona a relação entre realidade-ficção, mas:

19
Crear una experiencia de razas cruzadas […] Establecer cartográficamente en la representación,
líneas de flotación de lo imaginario. […] Teatro de la otra realidad. Teatro de una realidad develada,
degradada, que abra, que descomponga los límites de lo real. (DUBATTI, 2005, p. 217)
20
Entre las cosas no designa una relación localizable que va de la una a la otra y recíprocamente, sino una
dirección perpendicular, un movimiento transversal que arrastra a la una y a la otra, arroyo sin principio
ni fin que socava las dos orillas y adquiere velocidad en el medio. (Deleuze- Guatarri, 2004, p. 29)

46
Teatro argentino...

[…] questiona a relação entre pessoa e personagem, entre ator e espectador,


entre autor e narrador, entre imagem e conceito, entre verdade e invenção,
entre o relevante e o trivial, entre tradição e inovação, entre integridade e
fragmento, entre o individual e o social, entre o público e o privado. Coloca
em crise os limites e os alcances dos gêneros e das categorias, suas possíveis
rupturas, suas quebras, suas fissuras, suas transformações, mas também
coloca em crise o teatro como linguagem estética, como ato criativo, como
prática espetacular, como gerador de estratégias escriturais, como espaço
de encontro e confrontação. (TRASTOY, 2007, tradução nossa)21

Modalidades Emergentes Sobre Dominantes

Quais são os recursos e formas de produção presentes na criação dos


novos teatristas e como incidem nas suas estéticas? Nas duas últimas déca-
das o campo teatral argentino resultou afetado por políticas culturais
ineficientes que produziram uma redução notável nos fundos destinados a
financiar a manutenção dos teatros, a produção de obras e eventos artísti-
cos. A partir de 1989, com a ascensão do presidente Carlos Saúl Menem e
a aplicação de sua política neoliberal, a falta de recursos cresceu afetando
não só o teatro oficial, mas também os fundos privados dos empresários
que financiam o teatro comercial.22
No âmbito oficial, instituições como o Teatro Cervantes, o Teatro Gene-
ral San Martín, o Centro Cultural General San Martín e a cadeia de teatros
agrupados sob o Complejo Teatral Enrique Santos Discépolo (entre os que
se destacam tem-se o Teatro Sarmiento e o Teatro Presidente Alvear) viram-
se obrigados a reduzirem o pessoal técnico-administrativo, e a suprimirem
os elencos estáveis. As autoridades desses teatros (designadas pelo gover-
no) fizeram contratos temporários com os artistas escolhidos para fazer
parte da programação. Os recursos destinados à iluminação, cenografia,
figurino, imprensa, dentre outros, e o cachê dos artistas convocados dimi-
nuíram notoriamente.

21
[…] Cuestiona la relación entre persona y personaje, entre actor y espectador, entre autor y
narrador, entre imagen y concepto, entre verdad e invención, entre lo relevante y lo trivial, entre
tradición e innovación, entre integridad y fragmento, entre lo individual y lo social, entre lo público
y lo privado. Pone en crisis los límites y los alcances de los géneros y las categorías, sus posibles
rupturas, sus quiebres, sus fisuras, sus transformaciones, pero también pone en crisis al teatro como
lenguaje estético, como acto creativo, como práctica espectacular, como despliegue de estrategias
escriturales, como espacio de encuentro y confrontación. (TRASTOY, 2007)
22
Por teatro comercial entendemos o teatro que é financiado por fundos privados de empresários que
concebem a produção teatral, principalmente como atividade (ou inversão) lucrativa /rentável.

47
Paula Fernández

Contra qualquer prognóstico, os artistas não reduziram sua atividade


criativa; mas idealizaram novas formas de produção e de resistência, como
por exemplo: o Movimiento de Apoyo al Teatro (MATE) criado em 1995
com o fim de defender, promover e preservar os direitos da atividade tea-
tral ante os organismos de poder.23
A precariedade dos recursos de produção se tornou visível na redução
dos espaços de ensaios: frente à impossibilidade de conseguir lugares am-
plos, os novos teatristas ensaiam em salas pequenas ou nos seus próprios
apartamentos ou casas. Geralmente as salas onde apresentam suas obras
são espaços que não foram concebidos como teatros, com capacidade para
poucos espectadores e com uma infra-estrutura (iluminação, aparelhos de
som, cenografia, vestuário, maquiagem) mínima. Todas essas característi-
cas definem um teatro de câmara: um palco ou espaço de atuação pequeno,
praticamente vazio, com capacidade para 30 ou 50 espectadores que se
situam muito perto dos atores. Para a jornalista Graciela Massuh:

Estas peças são um espelho côncavo do lugar (in)visível que para nosso
Estado e nossa sociedade ocupa a criação artística: um espaço reduzido a
nada. Todas elas desenvolvem-se em âmbitos mínimos, cantos, palcos ínfimos,
interstícios aos quais se chega como atravessando um labirinto. […]
Geralmente, as obras não duram mais que uma hora, apenas o tempo
necessário para tolerar o desconforto transformado em recurso. Este teatro
se constitui no anti-espaço, na anti-declamação, o anti-corpo ainda resistente
de uma sociedade devastada pela cultura do mega-espetáculo. (MASSUH,
2000, p. 5, tradução nossa)24

A maioria destas salas e espaços se localizam no circuito Off Corrientes,


quer dizer, fora da Avenida Corrientes que é onde se encontram os teatros
legitimados por uma boa parte da crítica e que trabalham com peças que
respondem a um formato de produção tradicional e/ou comercial. O teatro

23
O insistente trabalho desta entidade contribuiu para que em 1997 fosse aprovada a Lei Nacional del
Teatro, que tinha sido vetada pelo presidente Menem. Mediante esta lei criou-se o Instituto Nacional
del Teatro: um organismo destinado a financiar projetos teatrais (salas, espetáculos, turnês, capacitações)
em todo o país.
24
Estas obras son un espejo cóncavo del lugar (in) visible que para nuestro Estado y nuestra sociedad
ocupa la creación artística: un espacio reducido a la nada. Todas ellas se desarrollan en ámbitos
mínimos, recovecos, escenarios ínfimos, intersticios a los cuales se accede como atravesando un
laberinto iniciático. […] Por lo general las obras no duran más que una hora, apenas el tiempo
necesario para tolerar la incomodidad transformada en recurso. Este teatro se constituye en el anti-
espacio, en la antideclamación, el anticuerpo todavía resistente de una sociedad devastada por la
cultura del megaespectáculo. (MASSUH, 2000, p. 5)

48
Teatro argentino...

Off Corrientes tem lugar em salas ou lugares alternativos (casas antigas res-
tauradas, centros culturais, bares, porões, etc.) que funcionam como espa-
ços onde se realizam diversas atividades como por exemplo: obras de tea-
tro, ensaios, oficinas, seminários, concertos, encontros literários, recitais,
exposições pictóricas e fotográficas, exibição de filmes, palestras, entre
outras atividades.25
Muitos destes espaços gestaram-se como cooperativas e foram consoli-
dando seu funcionamento através de atividades pagas (principalmente ofici-
nas de atuação, direção e dramaturgia) e, em menor medida, de subsídios ou
apoios provenientes do Estado (tal é o caso do Instituto Nacional del Teatro).
Mediante o teatro de câmara, os novos diretores lograram transformar
as limitações e condicionantes materiais em um eficaz instrumento de cria-
ção. A utilização deste tipo de espaço implica em uma escolha estética-
ideológica que se posiciona distante das modalidades de produção e recep-
ção vigentes nos teatros oficiais e comerciais. O diretor Federico León ex-
prime-o com clareza quando diz:

O teatro que faço é um teatro íntimo, no qual é importante a proximidade: que


o público tenha a sensação de que está quase dentro da cena, que possa relacionar-
se com os atores [...] Por outro lado, me interessa que as obras proponham um
“volume baixo” e que o espectador tenha que se aproximar, que tenha que
trabalhar para acessar o material. Isto não acontece nos grandes teatros onde
o espectador está totalmente separado da cena e não pode participar desse
interagir. Aonde a obra vai até os espectadores, que não precisam fazer nenhum
tipo de trabalho porque a obra “lhes apresenta”. O “volume alto” é também
uma história clara demais, uma mensagem gritada. É o oposto de um teatro que
não assinala o que se tem que ver, onde cada um escolhe as linhas e faz seu
próprio percurso. (LEÓN, 2001, p. 13, tradução nossa)26

Outro traço que distingue a dramaturgia emergente é que seus espetá-


culos são curtos – duram uma hora ou pouco mais de uma hora – e seus

25
Alguns destes espaços são: Andamio 90, El Sportivo Teatral, El Kafka, El callejón de los deseos, El
portón de Sánchez, El Camarín de las Musas, El Club del Vino, Centro Cultural Ricardo Rojas, etc.
26
El teatro que hago es un teatro íntimo, en el cual es importante la cercanía: que el público tenga la
sensación de que está casi dentro de la escena, que se produzca una interacción real con los actores
[…] Por otro lado me interesa que las obras propongan un “volumen bajo” y que el espectador tenga
que acercarse, hacer un trabajo para acceder al material. Algo que no ocurre en teatros grandes
donde el espectador está totalmente separado de la escena y no puede participar de esa interacción.
Donde la obra va hacia los espectadores, que no tienen que hacer ningún tipo de trabajo porque la
obra “se les presenta”. El “volumen alto” es también una historia demasiado clara, un mensaje gritado.
A diferencia de un teatro que no señala lo que hay que ver, donde uno elige las líneas y hace su propio
recorrido. (LEÓN, 2001, p. 13).

49
Paula Fernández

processos de criação costumam ser longos, estendendo-se por períodos de


tempo que vão de seis meses até dois anos. Para os novos diretores, a expe-
rimentação cênica implica provar e descartar materiais, e depurar uma lin-
guagem que vai sendo gestada paulatinamente no processo de criação e
que, necessariamente, demanda períodos de ensaios prolongados.
No que se refere à atuação, os atores deste tipo de obras geralmente
contam com uma sólida formação artística, produto de uma vasta experiên-
cia prática e por terem estudado em oficinas ditadas por artistas que per-
tencem ao mesmo circuito Off Corrientes. Assim, é comum que diretores
como Ricardo Bartís, Rafael Spregelburd, Pompeyo Audivert ou Norman
Briski montem obras nas quais participam seus próprios alunos. Apesar do
alto grau de profissionalismo destes atores – reconhecidos no exterior como
uma das manifestações mais vivas e talentosas do teatro hispânico contem-
porâneo – seus trabalhos não costumam ser remunerados. Quase todos os
atores que trabalham no circuito independente não vivem de fazer obras de
teatro. O mesmo acontece com os diretores e os dramaturgos que, para
sobreviver, têm que recorrer a outros trabalhos, como por exemplo, a
docência.
A aceitação desses teatristas no âmbito teatral foi lenta e sofreu muita
resistência. Se por um lado a crítica especializada via nessas peças um claro
exemplo de renovação e mudança, por outro, as instituições legitimadoras
(tradicionalmente conservadoras) as ignoravam deixando-as fora da sua
programação e continuavam outorgando prêmios a dramaturgos e direto-
res de estéticas realistas consagrados durante a década de 60, como por
exemplo: Ricardo Halac, Roberto Cossa, Carlos Somigliana, Bernardo Carey,
Augusto Fernándes e Agustín Alezzo.
Os enfrentamentos entre os autores já consagrados e os novos manti-
veram-se solapados, até que em meados da década de 90 teve lugar um
incidente que cristalizou suas diferenças e que pode ser exemplo dos
desencontros que persistem atualmente entre ambas as gerações. Em l995,
o Teatro Municipal General San Martín, sob a direção de Juan Carlos Gené,
convocou oito autores jovens para formar uma oficina de dramaturgia des-
tinada à produção de peças que iam estrear pela Comedia Juvenil dessa
instituição. A oficina foi coordenada por Roberto Cossa e por Bernardo
Carey, e os autores convocados foram Rafael Spregelburd, Javier Daulte,
Alejandro Tantanian, Alejandro Zigman, Ignacio Apolo, Jorge Leyes,
Alejandro Robino e Carmen Arrieta, que posteriormente formaram o gru-
po Caraja-jí. A dinâmica da oficina consistia em se encontrarem semanal-

50
Teatro argentino...

mente para ler os trabalhos e trocar sugestões e comentários sobre o mate-


rial produzido. Spregelburd resume:

As devoluções [dos dramaturgos jovens] eram muito boas e muito técnicas.


[…] Com a geração que coordenava havia um problema real: toda discussão
técnica conduzia a dogmas, a afirmações axiomáticas sobre o funcionamento
do drama. Depois de dois meses de trabalho pediram nossos rascunhos e nós
negamos: não estavam prontos, não eram totalmente legíveis e então
propuseram: “façam o resumo do que falta” Isso já falava de uma forma de
escrever que não era a nossa, eu não começo as peças pelo começo e termino
pelo final […] Nossos rascunhos - com a duvidosa “síntese do que faltava” -
acabaram na mesa de Gené, e o diretor falou que a convocatória dissolvia-se
porque as peças não tinham valor […] Não convinha investir dinheiro nisso.
Dinheiro que por outra parte não era para nós: só recebiam os coordenadores.
[…] Uma geração que está fazendo uso dos espaços públicos, julga a seguinte
para lhe dar lugar, ou não. (GARDEY, 2005, p. 49, tradução nossa)27

Depois da dissolução da oficina e da renúncia dos coordenadores, os


oito dramaturgos continuaram trabalhando juntos. O incidente se fez pú-
blico através da imprensa e chamou a atenção das autoridades do Centro
Cultural Ricardo Rojas (dependente da Universidade de Buenos Aires) que
lhes propuseram publicar o material que estavam escrevendo. Spregelburd
aclara que, na realidade, eles não tinham sequer lido o material, mas esta-
vam interessados em publicá-lo devido ao incidente no qual haviam sido
expulsos do espaço público. Pouco depois da sua publicação, as oito peças –
totalmente diferentes entre si – obtiveram numerosos prêmios, foram
traduzidas para várias línguas e estreadas em muitos países. A imprensa e a
opinião pública rapidamente classificaram os integrantes do grupo Caraja-
jí como os representantes da nova dramaturgia argentina, motivo pelo qual,
depois de dois anos de trabalho juntos, o grupo decidiu se separar.
Spregelburd explica: “Nos dissolvermos foi uma decisão inteligente, por-
que não queríamos repetir a experiência da geração passada, que – graças a

27
Las devoluciones [de los dramaturgos jóvenes] eran muy buenas y muy técnicas. […] Con la
generación que nos apadrinaba había un problema real: toda discusión técnica solía conducir a
dogmas, a afirmaciones axiomáticas sobre el funcionamiento del drama. A los dos meses de estar
trabajando nos pidieron nuestros borradores y nosotros nos negamos: no estaban listos, no eran
totalmente legibles y nos propusieron “resuman lo que falta” Eso ya hablaba de una forma de escribir
que no era la nuestra, yo no empiezo las piezas por el comienzo y las termino por el final […] Nuestros
borradores -con la dudosa “síntesis de lo que faltaba”- fueron a parar al escritorio de Gené, y el
director dijo que el taller se disolvía porque las obras no tenían valor […] No convenía invertir dinero
en eso. Dinero que por otra parte no iba a nosotros: solo cobraban los coordinadores. […] Una
generación que está en uso de los espacios públicos, juzga a la siguiente para darle cabida o no.
(GARDEY, 2005, p. 49)

51
Paula Fernández

seu talento e sua paixão – tinha se proclamado representante do teatro ar-


gentino na sua totalidade.” (GARDEY, 2005, p. 50, tradução nossa)28
O incidente protagonizado pelo Caraja-jí explicitou a briga que existe
em torno dos espaços de poder e permitiu constatar que as condições de
produção sempre respondem a uma determinada ideologia e geram uma de-
terminada estética. Neste caso, a estética oficial do Teatro General San Martín
e demais salas estatais não está determinada unicamente pelas obras clássicas
e/ou realistas que costuma incluir na sua programação, mas que se traduz
também em fatos concretos, como a diferença de salário entre atores princi-
pais e secundários, o tempo destinado para ensaios (dois meses), a convoca-
ção de atores legitimados pela televisão, a ordem dos agradecimentos no final
dos espetáculos29 e até a distribuição dos espaços: a sala experimental fica no
subsolo e a mesa do diretor no quinto andar. Como assinala o dramaturgo
Mauricio Kartun, as modalidades de produção dos oito dramaturgos convo-
cados eram incompatíveis com o modelo vigente na instituição:

[Os coordenadores] Estavam tentando gerar novas peças para um âmbito.


O mal entendido trágico foi que as obras que seriam geradas não
correspondiam às necessidades desse âmbito. […] Há materiais que são
atípicos nos teatros, que não parecem estar feitos para esse teatro e o teatro
os expulsa totalmente ou pior, os aggiorna30 ou os domestica, são devorados
pelos tapetes vermelhos do teatro. Essa foi a grande crise, o teatro que eles
produziam não tinha a ver com os modelos do teatro San Martín […] O
Caraja-jí foi o catalisador de um monte de coisas que estavam dando voltas.
E por outro lado, foi um ponto de descolagem de filhos que se transformavam
em pais. Em alunos que se transformavam em mestres. Começavam a pensar
o deles como modelo. Esse momento foi extraordinariamente rico. (BAYER,
2007, tradução nossa)31

28
Disolvernos fue una decisión inteligente, porque no queríamos repetir la experiencia de la generación
previa, que - merced a su talento y su tesón - se había llamado a representar al teatro argentino en su
totalidad. (GARDEY, 2005, p. 50)
29
Ao final da apresentação aparecem primeiro os atores “secundários” de “menor importância”, o
público aplaude e eles ficam do lado do palco, por último aparecem os atores “principais”, o público
aplaude mais alto e durante um tempo maior, e eles ficam no centro do palco.
30
Aggiornar: Do italiano “renovar, modificar externamente”.
31
[Los coordinadores] Estaban buscando generar nuevas obras para un medio. El malentendido
trágico era que las obras que se iban a generar no se correspondían con las necesidades de ese medio.
[…] Hay materiales que son atípicos en los teatros, que no parecen estar hechos para ese teatro y el
teatro los expulsa totalmente o peor, los aggiorna o los domestica, se los comen las alfombras
coloradas del teatro. Esa fue la gran crisis, el teatro que ellos producían no se correspondía a los
modelos del teatro San Martín […] El Caraja-ji fue el catalizador de un montón de cosas que
andaban dando vueltas. Y por otro lado, fue un punto de despegue de hijos que se transformaban en
padres. En alumnos que se transformaban en maestros. Empezaban a pensar lo suyo como modélico.
En ese momento fue extraordinariamente rico. (BAYER, 2007)

52
Teatro argentino...

A crescente consolidação das textualidades emergentes no país e no


exterior obrigou os espaços oficiais a abrir o jogo e incluí-las na sua progra-
mação. O Teatro General San Martín, por exemplo, convocou artistas como
R. Spregelburd, R. Bartis, A. Tantanian, D. Veronese, I. Apolo, J. Daulte,
e F. León para fazerem temporada na sala Cunill Cabanellas.32 Por outro
lado, desde 1997, esta instituição participa de diferentes programas de co-
produção destinados a financiar, conjuntamente com organismos privados
nacionais e estrangeiros, ciclos e espetáculos desta dramaturgia. Para o di-
retor Rubén Szuchmacher o ecletismo estético em que incorrem os teatros
oficiais é produto de uma falsa democratização, com a qual suas autorida-
des pretendem dissimular a ausência de uma verdadeira política cultural:

O teatro oficial está absolutamente perdido porque quer concorrer em


termos de mercado. […] O teatro oficial sempre tem sido vampiresco, um
teatro que nunca pôde pensar uma linha própria. Diferentemente da França
ou Alemanha onde o teatro oficial estabelece o eixo e as contestações são a
esse mesmo eixo. Como o Estado funciona como tal, tem políticas nas quais
vemos o que é o [eixo] oficial. Na Argentina não, como o Estado é um
disparate sempre, o teatro oficial é um vampiro. Tomou o culto que se fazia
fora do [eixo] oficial e o tornou oficial, ou o grande projeto “Kive Staiff”33
que é o reciclado com meios do teatro independente. […] Este modelo está em
crise. Se permite tomar a Nova Dramaturgia, mas não tem nada próprio.
(BAYER, 2007, tradução nossa)34

32
O Teatro General San Martín é um prédio de cinco andares que conta com três salas: Martín
Coronado, Casacuberta e Cunill Cabanellas. Esta última é a menor das três e se localiza no subsolo
do prédio, abaixo da linha do metrô. O tamanho da sala é de 10 metros de largura por 20 de
cumprimento e 2,70 metros de altura até o teto. Não há palco fixo. Tem uma arquibancada separada
em dois módulos de dois metros cada um. Utilizada de maneira frontal tem capacidade para 120
espectadores. Neste lugar funcionava o bar do teatro, até que em 1979 o diretor do teatro - Kive Staiff
– decidiu transformá-la em um espaço de experimentação.
33
Kive Staiff foi Diretor Geral e Artístico do Teatro San Martín entre os anos 1971-1973, 1976-
1989, e de 1998 até hoje. Segundo Martín Rodríguez sua gestão caracteriza-se pelo “manejo limitado
da utopia da modernidade, o progresso ideológico, o cosmopolitismo e o culto à originalidade”.
(1999, p. 23)
34
El teatro oficial está absolutamente perdido porque quiere competir en términos de mercado. […]
El teatro oficial siempre ha sido vampírico, un teatro que nunca pudo pensar una línea propia. A
diferencia de Francia o Alemania donde el teatro oficial establece el eje y las contestaciones son a ese
eje. Como el Estado funciona como tal, tienen políticas para ver qué es lo oficial. En Argentina no,
como el Estado es un disparate siempre, el teatro oficial es un vampiro. Ha tomado de lo culto que se
hacía fuera de lo oficial y lo vuelve oficial o el gran proyecto “Kive Staiff” que es el reciclado con
medios del teatro independiente. […] Ese modelo está en crisis. Se permite tomar la Nueva Dramaturgia
pero no hay nada propio. (BAYER, 2007)

53
Paula Fernández

Outro exemplo de inclusão sem apropriação de peças emergentes em


instituições legitimadas o constitui a convocatória feita pela Fundação Carlos
Somigliana (SOMI). A fundação é integrada por Roberto Cossa, Carlos
Pais, Eduardo Rovner e Bernardo Carey, entre outros, e tem a seu encargo
a direção artística do Teatro del Pueblo: uma instituição destinada a estimu-
lar de diferentes formas (montagens, concursos, palestras, etc.) o trabalho
do autor argentino.
Em 1999 a Fundação C. Somigliana convocou os dramaturgos Ignácio
Apolo e Federico León para realizarem um Ciclo de Obras Jovens. A expe-
riência foi menos polêmica e midiática que o episódio do Caraja-jí, mas as
diferenças fundamentais mantiveram-se intactas. I. Apolo explica: “A
convocatória (SOMI) foi ‘finalmente não intervimos, mas não fazemos nada
com vocês’, ou seja, ‘compartilhamos sala, compartilhamos o entorno e lhes
oferecemos o marco, mas não […] Mas advertimos que somos coisas muito
diferentes e que não há possibilidades de trabalharmos juntos.”
(PELLETIERI, 1999, p. 38, tradução nossa)35
Depois do Ciclo de Obras Jovens, o teatrista Javier Daulte, em uma
clara tentativa de mediação e aparente democratização, foi nomeado as-
sessor artístico do Teatro del Pueblo. Em relação a seu trabalho, Daulte
exprime:

Eu queria ser um nexo, mas cheguei a dizer a Tito [Cossa]: “Você não sabe
ver nem ler as coisas novas, mas sinto que confia em mim. Então, deixe que
eu te diga o que é que vale a pena e o que não”. Porque acho que uma sala
dedicada ao autor nacional não pode ignorar certas expressões atuais. O
Teatro Del Pueblo só casualmente tinha sido sede de alguns experimentos
interessantes, como Mil quinientos metros sobre el nivel de Jack [de F. León],
por exemplo. Mas continuava a faltar uma apropriação consciente das novas
dramaturgias. (CONSENTIDO, 2004, p. 17, tradução nossa)36

35
La convocatoria (SOMI) fue “finalmente no intervenimos pero no hacemos nada con ustedes” o sea
“compartimos sala, compartimos el entorno y les ponemos el marco pero no […] Pero advertimos que
somos cosas muy diferentes y que no hay posibilidades de trabajo en común”. (PELLETIERI, 1999,
p. 38)
36
Yo quería ser un nexo, pero llegué a decirle a Tito [Cossa]: “Vos no sabés ver ni leer las cosas nuevas,
pero siento que tenés confianza conmigo. Entonces, dejame que te diga qué es lo que vale la pena y
lo que no”. Porque me parece que una sala dedicada al autor nacional no puede ignorar ciertas
expresiones actuales. El Teatro del Pueblo sólo casualmente había sido sede de algunos experimentos
interesantes, como 1.500 metros sobre el nivel de Jack [de F. León], por ejemplo. Pero faltaba una
apropiación a conciencia de las nuevas dramaturgias.(CONSENTIDO, 2004, p. 17)

54
Teatro argentino...

O Menor Sobre o Maior

Os traços delineados até aqui permitem constatar que o novo teatro


argentino reivindica nas suas produções formas dramáticas que podem ser
consideradas frágeis, fracas ou menores, sem que isto suponha uma valoração
negativa ou pejorativa. O escritor Wiltod Gombrowicz, utiliza a expressão
“o menor” para referir-se a formas artísticas instáveis, fragmentadas e am-
bíguas que se opõem à superioridade, à maturidade e ao dogmatismo das
formas artísticas consagradas culturalmente.
O autor polonês, que viveu durante 24 anos na Argentina, afirmava
que só assumindo a sua imaturidade natural – a imaturidade que é inerente
ao homem – o artista seria capaz de escapar das formas fossilizadas da arte
e de exprimir sua própria e não acabada forma, sua própria e não acabada
maturidade. A juventude e a imaturidade se transformam, para este autor,
nas ferramentas capazes de devolver ao artista a liberdade de criar reco-
nhecendo-se na sua própria indefinição e incerteza; antepondo sua pessoa
aos fins didáticos/altruístas da arte: “[O artista] não escreverá porque está
maduro e já conseguiu a forma, mas justamente porque ainda é imaturo e só
na humilhação, ridículo e suor esforça-se por pegá-la, porque é ele quem
sobe, mas ainda não subiu, e é ele quem se faz, mas ainda não se fez.”
(GOMBROWICZ, 1968, p. 105, tradução nossa)37
De acordo com Gombrowicz é necessário inverter os termos e fazer
com que o menor, o baixo, o imperfeito, o inacabado, prevaleça sobre o
superior: sobre os gêneros, os cânones e as formas legitimadas pelos enten-
didos em arte e por um sentido comum – comum demais – que amolda a
arte a sua imagem e semelhança, domesticando-a, quer dizer, privando-a de
seu poder desestabilizador. O escritor polonês diz: “[O artista] Compreen-
deria que o único modo de liberar-se daquela pressão [cultural] formidável
é reconhecê-la; e tentaria que no seu mesmo estilo, sua atitude, seu tônus,
sua forma, tanto artística como cotidiana, se notasse com toda evidência
essa vinculação com o baixo.” (GOMBROWICZ, 1968, p. 108, tradução
nossa) 38

37
[El artista] no escribirá porque está maduro y ya consiguió la forma, sino justamente porque es
todavía inmaduro y sólo en la humillación, ridiculez y sudor se esfuerza por atraparla, porque es él
quien trepa, pero no ha subido todavía, y es él quien se hace, pero todavía no se ha hecho.
(GOMBROWICZ, 1968, p. 105)
38
[El artista] Comprendería que el único modo de liberarse de aquella presión [cultural] formidable
es reconocerla; y trataría de que en su mismo estilo, su actitud, su tono, su forma, tanto artística como
cotidiana, se notase con toda evidencia esa vinculación con lo bajo. (GOMBROWICZ, 1968, p. 108)

55
Paula Fernández

A vinculação com o baixo, com o menor, está presente nas múltiplas


poéticas que conformam a dramaturgia argentina emergente e se converte
em seu principal traço comum. Este teatro baseia sua produção em modali-
dades que antepõem o inferior ao superior, o múltiplo ao único, o inacabado
ao acabado, o indefinido ao categórico, o imaturo ao maduro, o instável ao
rígido, cristalizado e certo. Como assinalam as pesquisadoras D. Ferrari e
J. Lavatelli, suas obras “surgem com o encanto […] do inacabado, do im-
perfeito, do jovem, que não é nem o balbucio tímido da infância nem a
rigidez da maturidade” (2001, p. 165, tradução nossa)39. A particularidade
que distingue estas obras é que, paradoxalmente, sua força reside na fra-
queza das suas formas dramáticas:

Podemos falar de formas dramáticas fracas quando não há intenção de


construir um modelo dramatúrgico, quando deliberadamente se evita fundar
uma forma dramática estável e firme: quando se escapa à árdua honra do
superior, do perdurável, quando em lugar de quebrar radicalmente com as
linguagens teatrais precedentes, as retoma distorcidas, confusas e relativas,
quando se aposta no conflito: do tradicional, do moderno, do privado e do
público, do épico e do dramático, do profissional e do amateur, do nacional
e do estrangeiro… Quando se solicitam os recursos, os materiais e os discursos
em função das demandas do ato criador, quer dizer, segundo as
circunstâncias da prática cênica. (FERRARI e LAVATELLI, 2001, p. 165,
tradução nossa)40

Nesse sentido, a diversidade e a fragilidade das formas dramáticas pró-


prias da nova dramaturgia argentina não devem ser interpretadas como sig-
nos de empobrecimento cultural, mas como expressão viva das formas com
que os teatristas concebem e percebem a arte e a realidade.

Salvador, 2007

39
[Sus obras] surgen con el encanto […] de lo inacabado, de lo imperfecto, de lo joven, que no es ya
ni el balbuceo tímido de la infancia ni el anquilosamiento de la madurez. (Ferrari – Lavatelli, 2001,
p. 165)
40
Podemos hablar de formas dramáticas débiles cuando no hay intento de construcción de un modelo
dramatúrgico, cuando deliberadamente se evita fundar una forma dramática estable y firme: cuando
se escapa al arduo honor de lo superior, de lo perdurable, cuando en lugar de romper radicalmente con
los lenguajes teatrales precedentes, se los retoman distorsionados, confusos y relativos, cuando se
apuesta al conflicto: de lo tradicional y de lo moderno, de lo privado y lo público, de lo épico y lo
dramático, de lo profesional y de lo amateur, de lo nacional y de lo foráneo… Cuando se solicitan los
recursos, los materiales y los discursos en función de las demandas del acto creador, es decir, según las
circunstancias de la práctica escénica. (FERRARI e LAVATELLI, 2001, p. 165)

56
Teatro argentino...

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58
PULSÕES CÊNICAS DO TEATRO
CHILENO CONTEMPORÂNEO
Radiografando uma virada estética

Héctor Briones

Ator, Doutorando e Mestre em Artes Cênicas


pela Universidade Federal da Bahia

[…] buscando em outras esferas do sentido, explorando, a partir do trabalho


teatral em si […] em uma grande ambigüidade das situações e dos
personagens: tudo está flutuante, está em recomposição, não há
protagonistas nem antagonistas definidos. As leituras que permite, portanto,
são muito diversas e abertas. (HURTADO, 1987, p. 105, tradução nossa)1
Teu teatro misterioso desvela só em parte o que não sei nomear. (LORCA,
1999, p. 45, tradução nossa)2

Se há uma peça exemplar para iniciar uma reflexão – e revisão panorâ-


mica – sobre a criação teatral chilena destes últimos anos, esta é La Negra

1
Texto original em espanhol: […] buscando en otras esferas del sentido, explorando, desde el trabajo
teatral mismo […] en una gran ambigüedad de las situaciones y de los personajes: todo está flotante,
está en recomposición, no hay protagonistas ni antagonistas definidos. Las lecturas que permite, por
tanto, son muy diversas y abiertas. (HURTADO, 1987, p. 105)
2
Texto original em espanhol: Tu teatro misterioso devela a medias lo que no sé nombrar. (LORCA,
1999, p. 45)

59
Héctor Briones

Ester, da companhia Gran Circo Teatro, pela intensa repercussão que pro-
vocou no seu meio teatral e na sociedade chilena, na época de sua estréia,
no final dos anos 80. A proposta cênica desse espetáculo levou inclusive a
alguns críticos proporem a existência nesse país de um teatro pré- e outro
pós- La Negra Ester.3 Esta afirmação, do ponto de vista da sua inovação
cênica, não é de todo errada, mas seria algo injusto. Já em 1985, peças
como Cinema Utoppia, da companhia Teatro Fin de Siglo (com uma poética
cênica radicalmente diferente do Gran Circo Teatro), tinham impactado
fortemente o meio teatral chileno, em plena clandestinidade durante a dita-
dura militar no Chile (1973 – 1988). Porém, do ponto de vista de sua reper-
cussão popular, de notoriedade pública, La Negra Ester foi, sem dúvida, um
fenômeno nunca antes visto no Chile. Sua estréia ocorreu poucos meses
depois do plebiscito que levou a ditadura de Pinochet ao seu fim (1988), o
que implicou uma abertura democrática muito favorável aos artistas tea-
trais chilenos. Neste sentido, La Negra Ester pode ser tomada como exem-
plo emblemático da legitimação artística de todo um movimento teatral que
vinha modificando a maneira de se entender e realizar teatro no Chile, em
um processo artístico que ainda influencia a cena atual. Em que consiste
esse processo? Somente em inovações do ponto de vista formal, ou há tam-
bém variantes de porte sócio-político? Quais são os grupos mais significati-
vos deste movimento? Quais são os grupos jovens que reprocessam hoje
essas influências? Há que se começar pela peça La Negra Ester.
O Gran Circo Teatro foi formado por um grupo de atores reunidos
pelo diretor teatral chileno Andrés Pérez (1951 – 2002)4. O primeiro espe-
táculo dessa companhia, e que lhes deu reconhecimento artístico tanto na-
cional como internacional, foi La Negra Ester, estreado em uma lona de
circo instalada em um bairro marginal da cidade de Santiago, capital do
Chile, em dezembro de 1988. Havia nessa época, no Chile, um clima festi-
vo, a estréia da peça ocorreu, como já foi dito, poucos meses depois do
plebiscito que significou o final da ditadura; e também um pouco antes das
eleições do primeiro presidente depois de restaurada a democracia (1989).
Um aspecto muito surpreendente da peça, significativo para pensar no tea-

3
Dentre eles o dramaturgo chileno Marco Antônio de la Parra (1989), posição que foi asseverada
também por investigadores chilenos como Maria de la Luz Hurtado (2001) e Sérgio Pereira Poza
(1998).
4
O diretor chileno Andrés Pérez faleceu no ano 2002. A direção da companhia Gran Circo Teatro foi
assumida pela sua esposa, a atriz Rosa Ramírez, que foi a protagonista da peça La Negra Ester. A
companhia funciona de forma independente até os dias de hoje.

60
Pulsões cênicas...

tro chileno atual, é que pela primeira vez no Chile, depois de 15 anos de
ditadura, uma montagem não falava de temas diretamente políticos e, de
fato, a peça retratava uma história de amor entre dois seres marginais. Isso,
justo em um momento em que já se podia começar a falar mais abertamente
de política, de temas como a configuração econômica abertamente neoliberal
que começara a tomar o país, a desigualdade social, os direitos humanos,
entre outros temas. E algo mais inusitado ainda: foi justamente uma peça
considerada apolítica que provocou a maior afluência de público que o tea-
tro chileno viu até os dias de hoje.5
O espetáculo La Negra Ester se originou de um pequeno livro de poe-
mas em décimas homônimo, de um poeta popular do Chile, chamado
Roberto Parra. O texto conta a história de seu próprio autor com uma pros-
tituta, da qual provém o nome do pequeno livro e, portanto, da peça. Roberto
Parra narra uma história de amor, de encontros e desencontros, onde ela, a
prostituta Negra Ester, quer casar com ele. Mas ele, sempre confuso, nun-
ca quer assumir esse amor; de fato, vai embora buscar não se sabe o que,
nem ele mesmo sabe. Ele, na sua covardia, abandonando-a, mas voltando
vez por outra para tentar reconquistar esse amor, em uma de suas voltas
descobre que La Negra Ester já não está mais. A Negra Ester tinha morrido
de amor por ele. Este é o fim trágico dessa história de amor popular.
A montagem contou com um intenso tom melodramático.6 Seu univer-
so ficcional estava repleto de personagens populares constituídos por pros-
titutas, cafajestes, gigolôs, chineses, etc. Sua estética aproveitava elemen-
tos circenses, figurino trabalhado com exuberância, uma gestualidade que
intensificava os movimentos corporais dos atores, com deslocamentos cê-
nicos extremamente calculados, acompanhados de maneira muito precisa
por sons, ruídos, onomatopéias. Um trabalho musical, ao vivo, que acom-

5
Segundo Hurtado, o espetáculo, pelo menos até as temporadas que se deram de forma intermitente
até o ano 2000, no país e no estrangeiro, tinha contado com um público aproximado de cinco milhões
de pessoas (2001, p. 158). Leve-se em conta que, como se trata de um teatro popular, era apresentado
geralmente em espaços abertos ou muito amplos, como lonas de circo, onde cabem pelo menos 800
ou 1000 pessoas.
6
Uma investigadora que vem pensando com sistematicidade os caminhos do melodrama na história do
teatro chileno é Maria De La Luz Hurtado. A respeito de alguns dos espetáculos do Gran Circo
Teatro, entre eles La Negra Ester, a pesquisadora vai comentar justamente que possuem uma forte
carga melodramática. Para ela, o melodrama se opõe a um teatro exclusivamente racional e medido.
Frente aos versos renascentistas de um Racine ou um Corneille, ou frente aos já instituídos teatros à
italiana, o melodrama opõe uma carga espetacular “extravagante, hiperbólica, de recursos cênicos
múltiplos e atrativos espaços teatrais para públicos massivos.” (HURTADO, 2001, p. 157) Todos
estas são também características existentes em La Negra Ester.

61
Héctor Briones

panhava e ia configurando (narrando) todos os climas emocionais do espe-


táculo. Era uma peça cheia de referências a personagens populares chilenos
o que criou uma sensação de forte identificação sócio-cultural, a crítica
comentava que ele tinha chegado aos nervos da identidade nacional. Na
realidade, a montagem estava operando uma hibridização transnacional,
que falava já de um mundo globalizado, de identidades híbridas, em uma
vertigem criativa delirante, de personagens populares chilenos, mas tam-
bém onde havia um chinês, uma prostituta japonesa, um negro africano,
entre outros, trabalhados em forma de personagens tipos. As técnicas de
atuação utilizadas no espetáculo se referiam à Comedia Dell Arte, a panto-
mima e ao teatro oriental. A sua visualidade, cheia de cores contrastantes,
de movimentos cênicos e cantos corais operísticos, junto a uma orquestra-
da sonoplastia e trilha musical de ‘Jazz huachaca’7, faziam dela uma monta-
gem provocadora de intensas sensações no corpo dos espectadores. Enfim,
este espetáculo significou uma festa, um ritual, uma comunhão para o pú-
blico chileno. Daí se pode dizer que foi realmente um fenômeno teatral, no
sentido da comunhão provocada no público, até hoje não superado no tea-
tro Chileno. Nem seus próprios artistas suspeitavam o enorme impacto que
o espetáculo iria provocar, em um momento tão crucial que foi a retomada
da democracia no Chile pós-ditatorial.
Seriam muitos fatores, inabordáveis, que se precisaria levar em conta
para tentar entender o fenômeno sócio-cultural que foi La Negra Ester no
Chile democrático, pela sua abrangência sociológica, cultural, política, en-
tre outras possíveis linhas de entendimento desse acontecimento teatral.
Contudo, acredita-se que é possível derivar dele alguns aspectos chave para
mapear certas pulsações poético-cênicas do teatro chileno atual. Há, na já
referida peça, uma preponderância do jogo espetacular por sobre o texto
dramático: não é um espetáculo textocentrista, nem realista, nem se filia a
nenhuma estética cênica pré-existente (teatro stanislavskiano, brechtiano,
do absurdo, grotowskiano, etc.), senão que o Gran Circo Teatro procura no
seu fazer cênico uma poética que seja própria do grupo. Reprocessando,
obviamente, toda uma herança proveniente do teatro ocidental e até mes-
mo do oriental. Todas essas são também características dos grupos mais
significativos da cena chilena atual, os quais serão abordados nas suas

7
Um tipo de jazz chileno que se origina no Chile, criado por Roberto Parra, o mesmo autor das
décimas de La Negra Ester. Os músicos da peça aproveitaram esta modalidade crioula de jazz e
fizeram toda a trilha neste estilo.

62
Pulsões cênicas...

especificidades e diferenças mais adiante. Na realidade, e La Negra Ester


confirma isto, o Chile estava reeditando a partir da década de 80 uma dis-
cussão muito cara ao teatro ocidental contemporâneo,8 sobre a problemáti-
ca texto e cena, sobre o status da teatralidade, sobre uma concepção cênica
que envolvem todos os seus componentes. Mas se poderia dizer que foi
exclusivamente isso que outorgou ao teatro chileno a sua contempo-
raneidade? Não.
Não se pode dizer que La Negra Ester se torna exemplar somente por-
que dá importantes sinais para demonstrar como o teatro chileno tem se
equiparado, e entrado em consonância, com o teatro ocidental mundial. Há
que se frisar, neste contexto, o fato de que essa peça utiliza toda uma carga
espetacular, circense e festiva, para contar uma simples história de amor
popular chilena, e que lhe valeu a consideração, por parte da crítica teatral,
de ser um espetáculo apolítico. Este ponto é chave para lançar uma inter-
pretação do que motivou toda essa exploração eminentemente cênica no
teatro chileno, inusitado dentro de sua história teatral, podendo ser equipa-
rada somente ao momento em que surgiram no país os teatros universitári-
os na década de 40.9
La Negra Ester, por um lado, foi criticada por ser “dês-historizante”,
ou seja, de oferecer uma leitura da história sem conflitos sociais, como se
estivesse esquecendo o passado. Esta é a visão, por exemplo, de Villegas
(2000, p.15-38), pesquisador teatral chileno, para quem as inovações feitas
pelo espetáculo dentro do teatro chileno são meramente formais, não im-
plicando uma maior repercussão crítica. De fato, segundo ele, retoma uma
história de amor melodramática como muitas que existem no universo po-

8
Existem vários estudos, principalmente europeus, também alguns latino-americanos, que teorizam
sobre essas características na cena contemporânea, entre eles se pode consultar o estudo dos seguintes
autores europeus: Patrice Pavis, Anne Ubersfeld, Hans-Thies Lehmann, Roland Barthes, Marcos de
Marinis, José A. Sánchez, entre outros. Também pode-se consultar os seguintes teóricos teatrais
latino-americanos: Alfonso De Toro, Fernando De Toro, Magaly Muguercia, Fernando Peixoto, Juan
Villegas, Lola Proaño-Gómez, Ramón Griffero, Walter Lima Torres, Renato Cohen, entre outros.
9
Na década de 40, no Chile, surgem os teatros universitários, momento importante de profissionalização
do trabalho teatral nesse país. Entre os mais importantes teatro/escola universitárias se tem o Teatro
Experimental da Universidade do Chile, criado em 1941, e o Teatro de Ensayo da Universidade
Católica, criado em 1943. Eles foram exemplos de renovação da cena chilena, montando diversos
clássicos da literatura universal e também contemporâneos de sua época. Conectaram-se, também,
com as técnicas de atuação de Stanislavski, depois de Brecht, entre outros. Inclusive, geraram um
grupo de dramaturgos que ficou conhecido como ‘a geração dos anos 50’, onde se destacaram
Alejandro Sievekig (realismo costumbrista), Isidora Aguirre (teatro de denúncia social), Jorge Díaz
(teatro do absurdo), Egon Wolff (realismo-psicológico), entre outros.

63
Héctor Briones

pular. Por outro lado, em uma visão positiva desse aspecto apolítico da
peça, existem comentários do próprio diretor Andrés Pérez, quando, por
exemplo, a trupe se apresentou em Glascow, no Reino Unido, em 1989.
Glascow, cidade acostumada naquela época a receber chilenos exilados da
ditadura de Pinochet, e acostumada também a receber grupos teatrais des-
se país cujas peças se caracterizavam por um intenso discurso político
contestatório, ficou perplexa com o espetáculo do Gran Circo Teatro
(BOYLE, 1989, p.16). Sara Hemmig, crítica teatral escocesa, perguntou a
Andrés Pérez sobre o que o tinha levado a escolher “[...] uma peça tão
obviamente apolítica” (BOYLE, 1989, p.18, tradução nossa)10, ao que ele
respondeu falando da necessidade que existia naquele momento no Chile,
depois de uma longa ditadura, de realizar uma história de amor.
Dentro de toda a festa comunitária que significou La Negra Ester para
o Chile do final dos anos 80, do seu caráter circense e cômico, dois fatos
chamam a atenção. O primeiro é que no decorrer da peça, a briga de alguns
gigolôs vai provocar a morte de um travesti e de uma prostituta chamada
Esperança. O segundo, é que a peça vai terminar com o seu protagonista,
Roberto, pedindo um minuto de silêncio pela morte da Negra Ester. Im-
portante notar que esse ato é pedido não só aos personagens da peça, Roberto
o pede a toda a platéia, é ela quem realiza esse silêncio. Desta maneira, tem-
se: que a peça começa com a música do hino nacional, no meio morre uma
prostituta chamada Esperança, e no final, se termina pedindo um minuto de
silêncio por um amor que já não está. Que reflexões se podem realizar a
partir daqui sobre La Negra Ester, considerando também que foi vista como
apolítica, para pensar o teatro chileno contemporâneo? De La Parra, im-
portante dramaturgo chileno, vai comentar na época que:

A história de Roberto Parra é uma tragédia: a tragédia do Chile, a


incapacidade de alcançar o sublime […] Se o teatro chileno deve assumir
algo nestes tempos de imprensa aberta e televisão que abre pouco a pouco
as janelas, é o de revisar um luto imensamente pendente, o dos sonhos
despedaçados do Chile […] Andrés [Pérez] nos tem aberto novas
possibilidades. (DE LA PARRA, 1989, p. 26, tradução nossa)11

10
Do texto em espanhol: “[...] uma obra tan obviamente apolítica” (BOYLE, 1989, p.18)
11
Do texto em espanhol: La historia de Roberto Parra es una tragedia: la tragedia de Chile, la
incapacidad de alcanzar lo sublime […] Si el teatro chileno debe hacerse cargo de algo en estos
tiempos de prensa abierta y televisión que abre poco a poco los ojales, es de revisar un duelo
inmensamente pendiente, el de los sueños rotos de Chile […] Andrés [Pérez] nos ha dado nuevas
posibilidades. (DE LA PARRA, 1989, p. 26)

64
Pulsões cênicas...

Como essa peça despertou tantas sensações diferentes? Por que al-
guns a consideraram apolítica? E por que uns viam essa característica de
forma negativa e outros de forma positiva? E como De La Parra pôde
realizar uma leitura do espetáculo que, a notar pelo seu comentário, se
poderia considerar política? O que significou para cada um dos especta-
dores dessa época, por exemplo, no final de um espetáculo intensamente
festivo, esse minuto de silêncio? Um espetáculo circense, cômico, festivo,
que finaliza com um silêncio trágico? Interessa aqui ressaltar não a
linearidade de uma festa que termina triste, como se dissesse que tudo não
passa na realidade de uma tragédia, não, o que interessa e comentar a
simultaneidade desses dois sentimentos no espetáculo, onde se instaurou
a perplexidade, a ambivalência. Esse minuto de silêncio pode ser conside-
rado, então, uma pergunta aberta ao público, onde cada um poderá elabo-
rar sua resposta, seduzidos por todo um sentir comunitário de festa, de
comunhão. Pode-se falar aqui de uma qualidade tátil12 que opera La Negra
Ester, sendo “...atraente para o olhar e sedutor para o ouvido” (BENJA-
MIN, 1993, p.191), o que impediu uma apreensão unilateral do discurso
cênico, permeado de ambigüidades, despertando os mais inusitados senti-
mentos, fantasias e fantasmagorias próprias do espectador ao defrontar-
se com essa obra. Esta abertura à polissemia da cena é algo pelo qual já
vinha lutando, em plena ditadura, a companhia Teatro Fin de Siglo (1984),
dirigida por Ramón Griffero.
Em 1973, Griffero estava estudando sociologia na Universidade do
Chile, momento no qual essa escola foi enclausurada pela ditadura. Ele
opta por um auto-exílio na Europa, onde termina seus estudos de socio-
logia e também estuda teatro e cinema, três áreas de estudos que Griffero
vai aproveitar para produzir um teatro que remexerá o ambiente teatral
chileno nos inícios da década de 80, quando regressa a esse país. Na
Europa, na Bélgica, Griffero escreveu e montou duas peças, Ópera pour
un Naufrage (1980) e Altazor, Equinoxe (1981), esta última foi montada
em um espaço alternativo, uma igreja abandonada. Griffero, talvez in-
fluenciado por um sentimento europeu de desconfiança pós-moderna
para com os sistemas totalitários, fossem estes de esquerda ou de direi-

12
Benjamin aponta essa ‘qualidade tátil’, em seu ensaio (1935/1936), sobre os espetáculos dadaístas,
mas é de utilidade para explicar o que acontece em La Negra Ester. Os dadaístas, segundo Benjamin,
inauguram na cena algo que o teatro do século XX vai considerar fortemente: que este é uma arte
eminentemente cênica, cujo impacto se dirige à sensorialidade do espectador. (BENJAMIN, 1993,
p.164-196)

65
Héctor Briones

ta, vai comentar que, com essas peças, queria dar conta do naufrágio das
utopias. Mas não havia nessas peças uma irrisão paródica (pós-moder-
na, falsamente alegre, celebrando o fim da história e do pensamento13)
frente a esse fim das utopias, senão que a possibilidade de evidenciar de
outra maneira esse aniquilamento utópico, por meio de imagens ambí-
guas, personagens esquizofrênicos, mundos grotescos. Griffero, como
ele mesmo conta, percebeu que na realidade ele estava na Europa reali-
zando um teatro diretamente contra um ditador e que era no Chile onde
seu teatro poderia cumprir a “[...] função de ser efetivamente uma arma
de resistência” (GRIFFERO, 2000b, p. 133, tradução nossa).14 Um te-
atro pós-moderno de resistência? É com esta idéia que Griffero decide
voltar a um Chile, em 1982, quando o país estava imerso em uma de
suas mais violentas ditaduras.
O teatro foi uma das poucas artes que durante a ditadura chilena (1973
– 1988) ergueu, com suas peças, uma resistência dissidente ao poder; e viu-
se obrigado a trabalhar de forma independente frente à negação, por parte
do governo, de qualquer apoio econômico.15 Além disso, a ditadura impôs
aos grupos de teatro, e à arte chilena em geral, elevados impostos (dos
quais o governo anterior16 os tinha isentado), promovendo a cultura so-
mente nos seus aspectos nacionalistas e folclóricos, apoiando qualquer
manifestação artística que fosse condescendente com ele. É neste contexto
que surge Ramón Griffero na cena teatral chilena, depois do seu longo
auto-exílio. Em 1984, junto com um grupo de amigos artistas, Griffero alu-
ga um galpão em uma zona marginal da cidade, em um bairro decadente de
prostitutas e gigolôs, o qual ficou conhecido como El Trolley. Era um galpão
abandonado e que estes artistas transformaram em um centro cultural al-

13
Como aconteceu nas mais ortodoxas manifestações artísticas pós-modernas, desenvolvidas por
países europeus altamente desenvolvidos, numa diminuição ou perda de orientação utópica, que por
desconfiar dos perigos de um sentir político transcendente (que tinha gerado, por exemplo, o fascis-
mo), terminou caindo também numa intranscendência muito próxima a banalidade (MUGUERCIA,
1987, p. 88-100)
14
Tradução do texto original em espanhol: “[...] función de ser efectivamente un arma de resistencia.”
(GRIFFERO, 2000, p.133)
15
Estes foram grupos que na sua maioria já estavam constituídos antes da ditadura e, uma vez que esta
se instaura no poder, rearticulam seu fazer teatral para resistir a Pinochet. Entre os grupos mais
destacados se encontram: El Aleph, ICTUS, Teatro La Comedia, El Riel, La Feria, Teatro Imagen,
entre outros.
16
Isto, no governo socialista de Salvador Allende, que chegou o poder presidencial por voto popular
em 1970. (GONZÁLES, 199?)

66
Pulsões cênicas...

ternativo e clandestino na época da ditadura. Foi aqui que surgiu a compa-


nhia Teatro Fin de Siglo, com a qual trabalharia Griffero.17
Mas, naquele momento, a prática cênica do Teatro Fin de Siglo não
conseguiu encontrar um lugar dentro do meio teatral chileno. As noções
teatrais, os procedimentos cênicos de Griffero, influenciado pela sua for-
mação européia, eram radicalmente diferentes das noções teatrais dos gru-
pos de resistência-política já existentes no Chile. Isso leva essa companhia a
ficar em uma peculiar dissidência dupla: não só contra uma ditadura de
direita (comandada por Pinochet), mas também contra um teatro político
de esquerda anti-ditatorial. Frente a isto, Griffero vai levantar uma crítica
extremamente virulenta contra o teatro de esquerda, ao dizer que eles esta-
vam realizando um teatro de cunho ideológico anti-burguês, mas dentro
dos marcos formais do realismo burguês. Essa crítica vai apontar para o
fato de que eles – o teatro de esquerda – estavam priorizando o discurso
social por sobre o fazer cênico, o que invalidava as suas intenções de resis-
tência política. Como diz Griffero: “O teatro de ‘esquerda’ havia perdido
sua verdade cênica, por conseguinte, a capacidade de assombrar. Era ne-
cessário re-elaborar uma poética política que voltasse a provocar os espec-
tadores, no meio de uma realidade estremecedora” (GRIFFERO, 2000b,
p.134, tradução nossa).18
Alguns teóricos teatrais chilenos, como Juan Andrés Piña e Maria de
La Luz Hurtado (1987, p. 87-105), vão chamar a atenção, em 1987 (pou-
co antes de terminar a ditadura e pouco antes da estréia de La Negra
Ester), da existência no Chile de um desconcerto sócio-histórico, provo-
cado pela violência do regime militar. Ambos os teóricos, principalmente
Hurtado, argüiam que os grupos de teatro deveriam confiar mais na po-
tência da expressão cênica e abandonar o acostumado didatismo do tea-
tro político de esquerda, ainda preocupado em manter uma coerência
discursiva em um momento intensamente incoerente e desconcertante. É
como se eles dissessem: Não há como falar da violência ditatorial, ela nos
supera enormemente, ela tem provocado uma crise social que é justamen-

17
No El Trolley também se desenvolveram outros artistas que, como Griffero, indagavam outras
possibilidades de exploração cênica, dentre eles: Vicente Ruiz, Juan Andrés Penha e Octávio Meneses.
Eles seguiram as idéias propostas por Griffero, mas nenhum teve a continuidade de trabalho que este
alcançou, mantendo-se em atividade até hoje.
18
Tradução do texto original em espanhol: “El teatro de ‘izquierda’ había perdido su verdad escénica
por ende la capacidad de asombrar. Era necesario reelaborar una poética política, que volviera a
remecer a los espectadores, en medio de una realidad estremecedora. “ (GRIFFERO, 2000b, p.134)

67
Héctor Briones

te a base da crise do que quer se dizer e de como se quer dizer


(HURTADO, 1987, p.104). Como então continuar delimitando de forma
maniqueísta o lugar dos bons e o dos maus em uma peça teatral? E “Por
que não confiar na estrutura e expressividade teatral que contém cada
uma das propostas, e na capacidade de compreensão (inclusive intuitiva)
delas por parte do público?” (HURTADO, 1987, p. 105, tradução nos-
sa).19 Aqui se encontram indícios teóricos que dão sinais não só do im-
pacto provocado pela peça La Negra Ester, mas de todo esse processo de
transformação cênica aludido no início deste artigo, e que continua até
hoje. Griffero e o Teatro Fin de Siglo são os precursores mais significati-
vos deste processo, mesmo na ditadura, quando montam a trilogia com-
posta pelas seguintes peças: Historias de un Galpón Abandonado (1984),
Cinema Utoppia (1985) e 99 La Morgue (1987). Vale ressaltar, dentro
das três montagens, Cinema Utoppia (1985), pelo jogo cênico que propõe
e pelo fato de Griffero a ter remontado no ano 2000.
Cinema Utoppia, tanto na montagem de 1985 como na de 2000, con-
tou com uma cenografia de estilo hiper-realista: uma velha sala de cinema,
antigamente importante, ambientada no Chile dos anos 40, mas com um
filme dos anos 80 passando na tela. A narrativa do espetáculo se desenvol-
veu em dois espaços diferenciados: o primeiro é a mesma sala de cinema,
com suas velhas poltronas, onde personagens (dos anos 40), todos muito
solitários, comparecem ali para assistir a filmes e também para falar do teor
melancólico de suas vidas. O estilo de atuação aqui é melodramático, de
paixões fortes e exageradas, inclusive dançam musicais antigos, tudo isto de
forma intermitente com o filme que estão assistindo por episódios. O nome
do filme que está sendo passado na tela é Cinema Utoppia, e conta a histó-
ria de um jovem exilado chileno que mora nos subúrbios de Paris nos anos
80. Este jovem era um socialista desiludido, homossexual (na realidade,
bissexual), e que tinha perdido sua noiva, morta pelos militares na argenti-
na ditatorial; e essa aparece algumas vezes em forma de fantasma. Houve
todo um jogo espacial nessa montagem: em um primeiro plano existia a
platéia, com personagens dos anos 40 atuando em um estilo melodramáti-
co; já em um segundo plano (acima do espaço da platéia) tinha-se o espaço
da tela: um pequeno cenário cuja cenografia era a de um apartamento nos

19
Tradução do texto em espanhol: “¿Por qué no confiar en la estructura y expresividad teatral
contenedora de las propuestas, y en la capacidad de comprensión (incluso intuitiva) de ellas por el
público?“ (HURTADO, 1987, p. 105)

68
Pulsões cênicas...

subúrbios de Paris dos anos 80, aqui personagens em um estilo realista con-
tavam a história dramática daquele exilado. Também havia um terceiro pla-
no de profundidade, dado pela janela do fundo do apartamento, que dava
para às ruas de Paris. Griffero criou aqui uma temporalidade impossível,
personagens dos anos 40 assistindo a um filme dos anos 80, filme que não
entendiam. Estava, na realidade, sugerindo que o Chile assistia a um filme
que lhe era dolorosamente incompreensível.
Com sua trilogia, e Cinema Utoppia é exemplo disto, a companhia de
Teatro Fin de Siglo radiografou os pesadelos e sonhos ocultos da população
chilena, apontando um presente em que “[...] os sonhos da utopia tinham
sido estilhaçados. As obras não podiam se erguer [portanto] como defenso-
ras de um futuro sob este ou outro regime.” (GRIFFERO, 1990, tradução
nossa).20 As peças se mostram como um jogo de perspectivas, como um
quadro cubista acerca da realidade chilena, elaborando uma visão crítica
em constante tensão com a oficial. Nelas Griffero “[…] potencializa os es-
paços visuais, sugere atmosferas de pesadelo e terror, e apela ao espectador
a outras cordas de sua sensibilidade, se libertando da razão como único
fator para compreender um espetáculo” (PIÑA, 1998, p. 218).21 Griffero
montaria outras peças no período ditatorial chileno, antes e depois da trilogia,
como foram Historias de Un Hombre com su Tortuga (1982) e Santiago-
Bauhaus (1987).
Uma vez chegada a democracia no Chile (1988), Griffero e outros
artistas muito ativos na época da repressão passaram por um recesso criati-
vo, não tinham mais um inimigo claro contra quem resistir. Griffero só
montaria sua primeira peça, em tempos democráticos, em 1994 e esta foi
Extasis, o La Senda de la Santidad. Dos grupos de teatro de esquerda,22 um
dos poucos que se mantiveram, tentando modificar seu fazer cênico, ade-
quando suas temáticas ao tempo democrático, foi o ICTUS. Juan Radrigán,
importante dramaturgo durante a ditadura pelas suas peças de contestação
política, e que também passou alguns anos sem escrever, o faria em 1996

20
Tradução do texto original em espanhol: “[…] donde los sueños de la utopía habían sido rotos. Las
obras no podían erigirse en defensor de un futuro bajo tal o cual régimen.” (GRIFFERO, 1990)
21
Tradução do texto original em espanhol: “[…] potencia los espacios visuales, sugiere atmósferas de
pesadilla y terror, y apela en el espectador a otras cuerdas de su sensibilidad, liberándose de la razón
como único factor para comprender un espectáculo.” (PIÑA, 1998, p. 218)
22
Os pricipais grupos teatrais reconhecidos como de esquerda seriam: ICTUS, La Feria, El Riel, entre
outros.

69
Héctor Briones

com El Encuentramiento. O caso deste dramaturgo é emblemático, porque


ainda que tenha desaparecido nos primeiros anos democráticos do Chile,
em meados dos anos 90 seu trabalho começou a ser reconsiderado, sendo
um dos dramaturgos de maior renome no teatro chileno atual. Obviamente,
sua dramaturgia superava com maestria o acostumado maniqueísmo dos
grupos de esquerda, o que chamou a atenção para sua obra. Porém, houve,
com o decorrer dos primeiros anos da transição democrática no Chile, um
mais que agudo desencantamento social e político para com o novo gover-
no, o que explicaria esse renovado interesse pelos textos de Radrigán que
continham incisiva crítica social (falando dos excluídos da sociedade).
Que Chile é esse que surge na democracia? Certamente, não o que
todos esperavam, não houve (nem há até hoje) aspiração muito cara aos
artistas, a promessa nunca cumprida da criação do Ministério de Cultura;
a isso soma-se uma continuidade de políticas econômicas ditatoriais que
desejam tornar o país quase que um paraíso neoliberal, aumentando a
desigualdade social e um quase sistemático esquecimento dos casos pen-
dentes de direitos humanos. Pode-se lembrar, aqui, do minuto de silêncio
que pedia Roberto, de La Negra Ester, ao público (no início da democra-
cia), desvelando que o espetáculo sim era uma história de amor, sim era
uma tragédia, sim era uma pergunta aberta ao futuro do Chile. Griffero,
com a Teatro Fin de Siglo, vai montar uma segunda peça em tempos demo-
cráticos, Rio-Abajo (1995), retratando um bloco marginal, construindo
em cena uma instalação de três andares, com dez apartamentos à vista do
espectador. Nele, Griffero retrata a vida de um bairro marginal, abordan-
do o tema do choque de gerações, uns com suas vidas ligadas diretamente
ao passado ditatorial (sejam vítimas ou algozes) e os outros com total
indiferença à essa memória dolorida e recente do país. Griffero ainda hoje
mantém o nome de sua companhia, Teatro Fin de Siglo,23 talvez como um
novo ato de resistência, agora não mais dirigido a um inimigo em particu-
lar, mas sim com uma visão crítica plural, que quer atender a uma memó-
ria dolorosa esquecida pelos poderes democráticos ou a sonhos passados
que não encontram lugar neste novo Chile, o qual ainda não se atreve a
enfrentar as lacunas do século que passou. Outras peças de Griffero fo-
ram: Brunch (1999), Tus Deseos em Fragmentos (2004) e Fin del Eclipse
(2007), nesta última peça, reinstalando uma reflexão sobre a violência. O

23
A companhia já não possui o mesmo elenco. Griffero mantém o nome como uma marca, porém não
constitui um grupo estável de atores, estes mudam a cada montagem nova.

70
Pulsões cênicas...

seu protagonistas depois de se suicidar com um tiro na cabeça, diz: “Ado-


ro as balas da ficção já que nunca mancham de sangue o cenário”
(GRIFFERO, 2007).
Esse mutismo criativo de Griffero e de outros artistas no início do
Chile pós-ditatorial não foi generalizado. Aqueles artistas cujas atividades
estavam ligadas à docência universitária, em contato com gerações mais
jovens, tiveram menos problemas em continuar com suas atividades artísti-
co-teatrais. De fato, muitos grupos surgiram nos primeiros anos da década
de 90 e se mantêm em importante atividade até os dias de hoje. Essa
multiplicidade de grupos, de peças, de propostas cênicas são desdobramen-
tos do que se vinha experimentando em ditadura, principalmente no El Trolley
e também nas experimentações de rua feitas por Andrés Pérez. O mesmo
Griffero vai comentar que “Durante os 90 se torna público o teatro ‘artísti-
co clandestino’ dos anos 80, que é o principal referente para o movimento
artístico criativo até os dias de hoje” (GRIFFERO, 2002, tradução nos-
sa).24 Esta multiplicidade teatral não esteve isenta de críticas, Hurtado, no
início da década de 90, advertia sobre o perigo de que com todas aquelas
mudanças cênicas, se pudesse cair no erro de “cultivar o impressionismo da
imagem sensitiva sem rigor conceitual [...] a emoção como única prova de
verdade e autenticidade” (HURTADO, 1990, p. 111, tradução nossa).25
Sem negar que realmente existiram diversas tentativas teatrais que dão
razão a Hurtado, também se demonstrou que muitas das jovens companhi-
as surgidas na democracia (que negavam o didatismo político, o teatro de
tese) assimilaram de forma muito própria essas experimentações cênicas;
que aqui vêm sendo exemplificadas com o Teatro Fin de Siglo e o Gran Circo
Teatro. Neste contexto, o Gran Circo Teatro não pode se considerar neces-
sariamente um grupo jovem, ainda que tenha surgido na democracia, em
1988, sendo o seu primeiro espetáculo o fenômeno que foi La Negra Ester.
Seus integrantes já contavam nessa época com uma vasta experiência em
teatro de rua e tinham formado no início dos anos 80 o grupo TEUCO
(Teatro Urbano Contemporâneo). Em 1983, Andrés Pérez se retirou desta
última companhia porque viajou para a França com a finalidade de partici-

24
Tradução do texto original em espanhol: “En los ‘90 se hace público el teatro “artístico clandestino”
de los ’80 y es el gran referente para el movimiento artístico creacional hasta ahora.” (GRIFFERO,
2002)
25
Tradução do texto original em espanhol: “cultivar el impresionismo de la imagen sensitiva sin rigor
conceptual […] la emoción como única prueba de verdad y autenticidad” (HURTADO, 1990, p. 111)

71
Héctor Briones

par como bolsista do Théâtre du Soleil, dirigido pela diretora Arian


Mnouchkine; companhia na qual teria uma destacada participação.26 Desta
maneira, a partir de sua intensa atividade no Chile com o teatro de rua, em
contato direto com a cultura popular (de referências rurais e urbanas, sem-
pre falando de personagens marginais), em conjunto com sua experiência
no Théâtre du Soleil, que Andrés Pérez retira alimento artístico para reali-
zar La Negra Ester.
Outros dois espetáculos, que dão continuidade à investigação de cultu-
ra popular do Gran Circo Teatro foram El Desquite (1995), texto também
de Roberto Parra, e Nemesio Pelao ¿que es lo que te ha pasao? (1999), do
jovem dramaturgo chileno Cristián Soto. Ambas as peças tiveram uma ex-
celente recepção por parte do público, porém nenhuma com a repercussão
de La Negra Ester. Andrés Pérez ainda incursionaria em outro tipo de
dramaturgia, não necessariamente popular, como foi a sua montagem Popol
Vuh (1992), a partir do relato homônimo clássico da literatura latino-ame-
ricana, da Guatemala, datado de 1550, e que apresenta uma versão mitoló-
gica da criação do mundo. Outra montagem foi Madame de Sade, do dra-
maturgo japonês Yukio Mishima (1925 – 1970). E seu último espetáculo,
antes de falecer em 2002,27 seria La Huida (2001), um relato autobiográfi-
co, no qual abordou a questão de ser homossexual do ponto de vista da
discriminação. Diferentemente da maioria de seus espetáculos, festivos e
com elementos circenses, este teve um forte tom intimista, violento, “[...]
uma espécie de tragédia contemporânea” diria o crítico chileno Eduardo
Guerrero (2007, p. 183).
Os elementos circenses, a mímica, a gestualidade exagerada ao modo
expressionista, que dão às peças do Gran Circo Teatro um caráter espetacu-
lar, festivo e exuberante, também seriam aproveitados por outro grupo chile-
no, o Teatro Del Silencio, dirigido por Mauricio Celedón e que surgiu no Chile
em 1989. Porém, todos estes elementos associados no Gran Circo Teatro ao
festivo, no trabalho artístico do grupo de Celedón adquirem um tom trágico,
uma densidade e violência levadas ao extremo. A formação artística deste
diretor é particular, pois ele, não vem dos tradicionais centros de estudos de
teatro que existem no Chile (os universitários). Começou sua formação artís-

26
Na companhia francesa Andrés Pérez teve uma destacada participação como ator, chegando até
mesmo a protagonizar uma peça, como foi a L’Indiade ou a India de Nossos Sonhos, no papel de
Gandhi. Peça estreada em 1987.
27
Ver nota n° 4.

72
Pulsões cênicas...

tica na Academia de Mimos del Teatro Petropol (1975) dirigida, pelo mímico
chileno Enrique Noisvander, depois estudaria na Europa, na Escola interna-
cional de mimodrama de Marcel Marceau e também mímica corporal dramá-
tica com Etienne Decroux. Outra influência no seu teatro é, como em Andrés
Pérez, o Théâtre du Soleil, onde participou como ator.
Celedón chama os espetáculos de sua companhia de mimodramas, nos
quais não utiliza palavras, explorando neles intensamente a potencialidade
visual e sonora da cena. Isto, por meio da gestualidade dos atores, assim
como da relação espacial entre eles, onde existe um diálogo sinestésico pre-
ciso entre música e gestualidade, entre música e movimentos corporais
grupais (ao modo de um coro). A trilha musical (sempre ao vivo) é de
capital importância, responsável pelos climas emotivos que vão se criando
nas suas peças, passando de um momento a outro, de uma musicalidade
rock-punk a um pequeno e delicado som contínuo, o que provoca mudan-
ças rítmicas e contrastantes. Também amplifica a densidade e violência de
seus espetáculos ao utilizar elementos de sonoplastia, tais como: ruídos,
expressões guturais, gritos e lamentos. São espetáculos de uma impactante
beleza visual, cujas ressonâncias são decididamente políticas, tornando-se
uma reflexão estética sobre os excluídos da história, dos outsiders, abordan-
do e propondo pontos de vista sobre os desastres provocados pelas lutas de
poderes na sociedade ocidental dos séculos XX e XXI.
A primeira peça do Teatro del Silencio foi Transfusión (1989), apresen-
tadas nas ruas de Santiago (capital do Chile), cuja temática foi a das gran-
des migrações que povoaram o continente latino-americano. Transfusión se
refere às diversas transfusões de sangue que o povo deste continente tem
vivenciado na sua história a partir da colônia. Neste espetáculo, realizado
na rua, por meio de vários carrinhos de hospital, doentes mentais iam tendo
sonhos que narravam episódios históricos, utilizando gestos e movimentos
corporais. Depois montaria Ocho horas (1991), Malasangre (1991) e Taca-
Taca mon amour (1993), peças que lhe renderam o reconhecimento inter-
nacional, ganhando, inclusive, uma residência na França, onde atualmente
trabalha com seu grupo. Entre essas peças se destaca Malasangre, cujo per-
sonagem principal foi o poeta maldito Arthur Rimbaud (1854 – 1891).
Segundo Celedón, neste espetáculo a poesia desse autor foi realizada com o
silêncio (GUERRERO, 2007, p. 181). Taca-Taca mon amour aconteceu
em uma gigantesca instalação cenográfica que representava uma mesa de
totó, onde o mundo era uma esfera metálica (referência a Leonardo Da
Vinci) manipulada por diversos personagens. Estes eram os grandes

73
Héctor Briones

ideólogos e líderes políticos do século XX, como Lenin, ditadores como


Stalin e Hitler, os quais eram contrapostos a intelectuais que modificaram a
noção do mundo e do homem, como Einstein e Freud (HURTADO, 1997,
p. 28). Interessante notar a gestualidade com que foram trabalhados estes
personagens, transformados em tipo, com maquiagem expressionista, e
movimentos frenéticos e mecânicos, como o gesto único e repetitivo em
ritmo rápido da conhecida saudação de Hitler. Estas foram as últimas mon-
tagens do Teatro del Silencio no Chile.
Residindo na França, o grupo montaria Nanaqui (1997), sobre a vida e
obra de Antonin Artaud (1896 – 1948) e Alice Underground (1999), que ao
ser montada no final do século XX, consistiu em uma reflexão poética sobre
as revoluções utópicas igualitárias desse século. Montado dentro de uma lona
de circo, a cenografia era um picadeiro, havendo um enorme buraco no cen-
tro desse espaço, por onde entrava e saía Alice (referência a Lewis Carrol)
para se encontrar com personagens como Marx, Lenin, Che Guevara, Salva-
dor Allende, entre outros. Seus últimos espetáculos correspondem a uma
trilogia, realizada a partir da Divina Comédia, de Dante, onde montou El
Infierno (2003), Madre Coraje – y sus hijos em El purgatório (2006) e Paraíso
(2007). Com essas peças, Celedón dá continuidade a suas inquietantes histó-
rias sociais e políticas, refletindo sobre as repercussões violentas e abismais
das guerras, por meio do desenvolvimento de propostas cênicas de alto vôo
imaginativo, de forte poder imagético, sinestésico, para remexer a sensibili-
dade dos espectadores contemporâneos.
Em uma outra linha estética, em espaços pequenos, em uma proposta
intimista, com uma investigação exaustiva da corporeidade do ator, de sua
gestualidade, de suas emoções, assim como da relação dos atores com o espa-
ço cênico, se encontra o grupo Teatro La Memória. Este, sob a direção do
ator, diretor e dramaturgo Alfredo Castro, inicia suas atividades em 1987
com a peça Estación Pajaritos e logo montaria El paseo de Buster Keaton
(1988) e La Tierra no es Redonda (1989); mas foi com a Trilogia Testimonial
de Chile que o grupo alcançaria notoriedade dentro do contexto nacional
chileno. Esta trilogia, composta pelas peças La Manzana de Adán (1990), La
Historia de la Sangre (1992) e Los Días Tuertos (1993), propõe uma maneira
de abordar a memória do país a partir de suas margens. A visão da
marginalidade proposta pelo Teatro La Memória é intensamente onírica, frag-
mentária, em ruptura com um teatro social didático, se interessando por se-
res cujas patéticas relações estão permeadas de dor, horror, desamparo, sem-
pre nos confins esquecidos do sistema social. Seus textos são monólogos, ou

74
Pulsões cênicas...

diálogos surdos entre esses seres cênicos, criados a partir de relatos autobio-
gráficos, provenientes de livros, artigos de jornais, observações in situ, entre
outros. Castro prioriza, sobretudo, o trabalho do ator e a sua emoção, em
uma gestualidade despojada, sem configurar o personagem e o que o ator
mostra em cena é assumidamente a sua própria emoção em ressonância com
aqueles testemunhos reais. Seu teatro é de corte testemunhal, o que se mos-
tra em cena são símbolos do real, processados pelo registro intuitivo e afetivo
dos atores, o que influencia a encenação, a configuração do espaço, a música
e a direção geral dos espetáculos de Castro.
La Manzana de Adán, por exemplo, parte do livro homônimo da jorna-
lista Claudia Donoso e da fotógrafa Paz Errázuriz, que retrata a vida de tra-
vestis chilenos marginais, abordando algo inusitado no Chile até aquele mo-
mento: uma marginalidade erótica. Castro opera na atuação um travestismo
das emoções, que apontam os desejos, os sonhos quebrados, as discrimina-
ções sofridas por essa parte esquecida do corpo social da nação, sem cair na
caricatura paródica, lugar comum ao tratar este tema. Historia de La Sangre
parte de jornais da crônica vermelha, falando de seres excluídos por assassi-
natos, por crimes passionais, focando principalmente no testemunho de Rosa
Faúndez, vendedora de jornais que em 1923, esquartejou o seu marido. São
seis histórias de sangue que se entrecruzam, produzindo um texto também
esquartejado, pulverizado na boca dos atores. A encenação foi elaborada a
partir de uma estética Kitsh, de cores fortes, em contradição irônica àqueles
seres em plena desolação, sentimento dado pelo trabalho emocional intenso e
violento dos atores. Los Días Tuertos, em uma encenação que opera com uma
estética próxima ao luxo televisivo e dos programas estelares, aborda seres de
diversos âmbitos da marginalidade: vagabundos, mágicos de rua, lutadores
clandestinos (luta livre), anciãos, guardas de cemitérios, entre outros. São
fragmentos de textos, cuja dramaturgia e encenação se interessam mais pelos
seus alcances poéticos do que pela sua veracidade testemunhal. Essa caracte-
rística vale para toda esta trilogia com a qual Teatro La Memória reflete sobre
estes desconhecidos do país.
Outras peças da companhia de Alfredo Castro são: Hombres Oscuros/
Pies de Mármol (1997), Patas de Perro (2000), Las Sirvientas, de Jean Genet
(2002), Mano de Obra (2004), Casa de Bonecas, de Ibsen (2006), entre
outras. Dentro destas últimas peças vale destacar Mano de Obra, monta-
gem realizada a partir do livro homônimo da escritora chilena Diamela Eltit,
onde se retrata a vida de funcionários de um hipermercado que moram
juntos. Eles vão sendo despedidos e substituídos aos poucos em seu traba-

75
Héctor Briones

lho, sem nada para fazer que remedie essa situação. A cenografia desse
espetáculo consistiu no interior de uma casa de classe média, em um estilo
não-realista ao ser elaborada em diferentes níveis de altura, uma cozinha
dentro de um buraco feito no chão, uma sala de estar no nível dos especta-
dores e no fundo do palco, e em um nível sobre os espectadores estava a
entrada da casa: um porta de meio porte, onde todos os personagens se
curvavam para poder passar por ela. Essas diferentes perspectivas, ângulos
de observação estranhos ou incômodos para o espectador, falavam também
da convivência completamente anormal e violenta entre esses funcionários.
Mano de Obra retrata a vida em um sistema de trabalho cujas relações se
estabelecem a partir do desamparo, da incomunicação e da violência, sinto-
mas de um fracasso político que corroeu a representatividade social desses
trabalhadores. É a evidência da ferocidade de um sistema de trabalho (onde
o hipermercado é utilizado de forma metonímica) que permite entrever,
diante de um problema laboral, problemáticas existenciais e afetivas com-
plexas que são os fragmentos de testemunhos perdidos de uma nação. Esta
é a memória com a qual opera poeticamente esta companhia.
Outro grupo teatral significativo, que tem contribuído com toda esta
transformação estética do teatro chileno que aqui vem se descrevendo, e sen-
do também um dos mais joviais grupos desta marejada poética iniciada na
década de 80, é o grupo La Troppa. Eles iniciaram sua atividade artística em
1987, quando se chamavam Los Que No Están Muertos, montando espetácu-
los como El Santo Patrono (1987), Salmón-Vudú (1988) e El Rap del Quijote
(1989). Nestas peças, o grupo começa a experimentar um teatro que parte de
textos não dramatúrgicos, com uma forte influência do cartoon, do comics e
do cinema, o que desenvolveriam em suas peças cada vez com maior refina-
mento. Foi tal o impulso e necessidade criativa que vivenciou este grupo que,
com pouco tempo de formado e criticando a insuficiência que significou para
eles o aprendizado na escola de teatro, se declararam “sem mestres”
(HURTADO, 1999, p. 9). Eles partem com sua proposta poética de se re-
pensar todos os âmbitos do ofício teatral, operando um sistema de criação
coletiva, mas não em seu sentido usual, em que, por meio de improvisações
feitas por atores se construía um espetáculo. Os três artistas deste grupo,
Laura Pizarro, Jaime Lorca e Juan Carlos Zagal, improvisam, indagam, não
só como atores, mas em todos os âmbitos da prática teatral (dramaturgia,
direção, cenário, trilha musical) levando os seus papéis enquanto artistas e a
sua variante da criação coletiva, ao extremo de seu potencial cênico, em uma
revolta inventiva que impactou o teatro do Chile.

76
Pulsões cênicas...

Em 1990, vigorando no Chile um regime democrático, o grupo passa a


se chamar La Troppa. Este nome remete a uma tropa militar, porém trata-
se de uma brincadeira, pois eles mudam a grafia dessa palavra duplicando a
sua letra ‘p’. Pode-se perceber nesse jogo uma crítica ao passado ditatorial
– tempo no qual seus três integrantes viveram suas infâncias e parte de suas
juventudes – como uma forma paródica de lidar com essa memória, de
subvertê-la. Contudo, o nome La Troppa denota, na realidade, uma vigoro-
sa e apaixonada relação com a arte teatral, demonstrado nos seus longos
processos de ensaios, que levam em média um ano cada montagem. Consti-
tuíram uma trupe solidária e multifacetada, sendo eles mesmos os drama-
turgos, diretores, atores, cenógrafos e músicos de suas peças. Suas monta-
gens, principalmente as dos anos 90, são praticamente todas de fama inter-
nacional, com turnês pelo estrangeiro de, no mínimo, um ano de duração, o
que revela o alcance internacional deste grupo se apresentando em países
latino-americanos, europeus e inclusive, asiáticos.
Na década de 90, La Troppa montou Pinocchio (1990), Lobo (1994),
Viaje al Centro de la Tierra (1995) e Gemelos (1999). Já no século XXI, em
2003, montaria Jesús Betz, a última peça antes da sua dissolução, ocorrida
em 2005.28 Destas peças vale destacar Gemelos, baseado no livro O Grande
Caderno, da escritora húngara Agota Kristof, por ser um dos trabalhos
mais consistentes dentro da experimentação que operou poeticamente La
Troppa, do cinema e do comics na cena. Em Gemelos, noções como
enquadramento, zoom, close up, entre outros códigos cinematográficos, são
basilares para perceber o jogo cênico que realiza La Troppa (não utilizando
telas de cinema em cena). A peça, assim como o livro, trata da história de
dois irmãos gêmeos que chegando a guerra (sugere-se que é a 2° Guerra
Mundial) vão morar com sua avó, a qual muito amargurada pelas diversas
guerras que tem presenciado, os aceita de má vontade e os criará na crueza
e no horror que ela impõe. A história, tomada como uma mistura de conto
infantil com conto de horror, fez com que La Troppa se decidisse a contá-
la a partir de um teatrinho de bonecos, de guignol que, feito na escala huma-
na, constituiu a cenografia do espetáculo.

28
Hoje seus integrantes formaram dois grupos separados: Jaime Lorca funda a companhia Viaje
Inmóvil, contando até a data com dois espetáculos: Gulliver (2006) e El Último Heredero (2008);
Laura Pizarro junto a Juan Carlos Zagal fundam a companhia Teatro-Cinema, sendo sua primeira
peça Sin Sangre (2007).

77
Héctor Briones

No já referido teatrinho de guignol, os atores atuavam como autômatos


e se relacionavam com bonecos de diferentes portes, o que permitiu um
variado jogo de tamanhos, criando-se múltiplos tipos de focalizações próxi-
mos a um zoom in ou a um zoom out cinematográfico. Também a dramaturgia
estava composta por vários quadros-cenas, de vários ambientes, o que per-
mitiu a exploração de diversos enquadramentos visuais, com mudanças de
planos que davam visibilidade aos diversos lugares onde se passava a peça.
A cenografia era de tal flexibilidade que permitia ao olhar espectador ir do
quarto da avó para o campo, depois para uma igreja, logo para um carteiro
(boneco), para uma arma, uma sapataria, um lago, embaixo da água desse
lago, entre outros lugares ou objetos. Gemelos ativa uma vertiginosa,
ludibriante demonstração das capacidades cinéticas da arte teatral, assim
como entra em zonas sombrias da história, ao tratar com ternura e crueza o
relacionamento desses personagens em um estado de guerra. Devido a es-
sas características, somadas à beleza visual de suas precisas imagens, Gemelos
vai captar, sobretudo, a atenção sensível do espectador, não só pela história
que se conta, mas pelos próprios jogos cênicos utilizados. La Troppa, desta
maneira, indagou durante toda sua trajetória de teatro imaginativo, lúdico,
apaixonou e também comoveu ao extremo (eles só colocavam em cena algo
que, durante os ensaios, os emocionasse intensamente), tornando suas pe-
ças uma porta ao espectador para realizar uma íntima, bela e assombrosa
viagem poética.
Dos grupos jovens que surgiram no fim da década de 90 ou no início
desta (a primeira do século XXI), existem alguns que têm marcado presen-
ça no meio teatral chileno. Ainda que estes sejam grupos que não tenham
apontado radicalmente uma ruptura em relação aos diretores anteriormen-
te nomeados, implicam em alguns importantes desdobramentos desse mo-
vimento, conseguindo com seus trabalhos uma marca poética própria. Pode-
se perceber, ainda, uma diferença pontual entre esta geração de “novos
talentos” (CARVAJAL e DIEST, 2007) e a anterior, porque se antes a
importância do grupo se radicava exclusivamente no diretor (veja-se a im-
portância de Griffero, Pérez, Celedón e Castro), agora esta se radica no
grupo. O sentimento de coletivo artístico, algo nunca abandonado por La
Tropppa nos seus processos de montagem, começa, a partir desta década, a
caracterizar o trabalho destes jovens artistas. Serão destacadas aqui três
companhias: La Patogallina, que inicia suas atividades em 1997; Teatro La
Maria, iniciada em 2000 e Niños Prodígio, que começa em 2002.

78
Pulsões cênicas...

La Patogallina, configurada como um coletivo artístico composto por


atores, diretores, músicos e artistas plásticos, tem como proposta cênica
um teatro imagético sem palavras, de rua, e com forte influência do cinema.
Conta na sua trajetória artística com as seguintes montagens: A Sangre e’
Pato (1997), El Húsar de la Muerte (2000), Karrocerías (2003), 1907- El
Año de la Flor Negra (2004) e Los Caminos de Don Floridor (2008). A peça
de maior notoriedade até o momento desta companhia é El Husar de la
Muerte, baseado no filme homônimo de cineasta chileno Pedro Sienna, rea-
lizado em 1925, em preto e branco e mudo. Eles aproveitaram a estética do
filme para fazer uma peça também em preto e branco, com uma gestualidade
exagerada, ao modo do cinema mudo, o que resultou em uma montagem de
grande porte, com música ao vivo, que acompanhava de maneira precisa os
gestos e movimentos dos atores. Utilizaram também efeitos que rompiam a
convenção do preto e branco, com elementos coloridos que irrompiam na
cena durante o sonho de um dos seus personagens. A temática da peça foi
um tema histórico, as estratégias de um guerrilheiro da época da colônia no
Chile, Manuel Rodríguez (1785 – 1818), que lutou pela independência des-
se país. Porém, a peça vai demonstrando uma versão não oficial dos fatos,
vendo como este guerrilheiro foi sabotado por outro libertador, Bernardo
O’Higgins (1778 – 1842), reconhecido na história como o oficial. Inclusive
fazem uma irônica relação deste último com a figura de Pinochet. La
Patogallina, declaradamente anarquista, que mostrar versões históricas nas
suas montagens que façam repensar o presente chileno, em uma poderosa
proposta imagética, onde o gesto, a iluminação, assim como a trilha musi-
cal, se tornam as principais armas de resistência.
Niños Prodígio, com direção de Francisca Bernardi e Ana María Harcha,
ambas sendo as dramaturgas e diretoras desse grupo, começam seu traba-
lho escrevendo e montando Kinder (2000), logo depois viria Lulú, de Harcha,
(2003), Norway Today, do suíço Igor Bauersima (2004) e Mi Joven Corazón
Idiota, da alemã Anja Hilling (2007). Suas propostas se caracterizam pela
utilização do humor irônico, ácido, paródico, em encenações de pequeno
porte, em salas pequenas, com dramaturgias constituídas como fragmentos
de textos, memórias esparsas que se apresentam em cena pela voz dos ato-
res. Há nessas montagens fortes referências a uma sociedade globalizada,
contemporânea, vendo o Chile por meio desta ótica, com problemáticas
transnacionais, a partir de um olhar que não pretende clarificar este pano-
rama, senão vê-lo na sua vertiginosidade social.

79
Héctor Briones

Chama a atenção entre as peças desse grupo, Kinder, que ganhou um


prêmio de melhor dramaturgia no Chile em 2003,29 um ano depois de sua
estréia. Nesta peça, em diversas cenas-quadros, sem personagens muito
definidos, as autoras falam da infância de sua geração. Os aspectos paródicos
se encontram já no título, que remete a um jardim infantil. A cenografia
consistiu efetivamente em um jardim infantil hiper-realista, onde os atores
desenvolviam seus diversos personagens e jogos cênicos em móveis feitos
para crianças. Nesse jardim, seres ficcionais iam recriando momentos de
suas vidas: a infância na ditadura, quando todos os alunos da escola saiam
às ruas para cumprimentar o chefe de estado (Pinochet) com lencinhos
brancos, ou a relação dos seus pais, atordoados pelas novidades trazidas
pela globalização, em um inferno doméstico de propaganda, pornografia,
divórcio, entre outras situações. Todas estas tratadas com humor, paródia,
denotando um sentimento de perplexidade nesta etapa democrática e
globalizada do Chile.
Uma das companhias mais profícuas desta jovem geração teatral, com
uma proposta que, declaradamente, se quer em ruptura com a geração
proveniente dos anos 80, é o grupo Teatro La María. Esta intenção de
ruptura é uma crítica a certas montagens herméticas que diretores de re-
conhecida trajetória realizam, às vezes, no meio teatral chileno. É tal a
atividade deste grupo, contando com quinze montagens estreadas até a
data, que inclusive já se percebem mudanças poéticas na sua proposta, o
que fala da seriedade e da maneira visceral com que estes artistas assu-
mem o seu ofício. Iniciam sua trajetória com a Trilogia Negra: El
Apocalipsis de Mi Vida (2000), Trauma (2001) e Lástima (2002); a qual
se caracterizou por um intenso tom melodramático, a ponto do paroxis-
mo–utilizando referências do pop televisivo chileno dos anos 80 (ditadu-
ra), em um humor ácido que pretendia entreter–contar histórias, muitas
delas ridículas, as quais remetiam a seres cruzados pelo fracasso, sendo
este o tema central da trilogia. Depois, o grupo montou Diarrea (2002),
Sin Corazón (2002), Amor en Lota (2003), El Rufián em la Escalera (2004),
textos da literatura universal, tais como Pelícano, de Strindberg (2002),
Hamlet, de Shakespeare (2003) e La Gaviota, de Tchekov (2004), e tam-
bém História de Amor (2006) e Abel (2007). Vale ressaltar que em 2005
montaram a Trilogia Pública: Superhéroes, Numancia e La Tercera Obra,

29
Elas ganharam o prêmio Altazor de teatro, um dos prêmios nacionais mais importantes do Chile,
dado pelos próprios artistas, no ano de 2003.

80
Pulsões cênicas...

com as quais começam a modificar sua poética, retomando algumas expe-


rimentações feitas com os textos clássicos, abordando agora temas relaci-
onados aos discursos de poder de um trabalho dramatúrgico não mais
estruturado em uma história, mas em fragmentos soltos, intertextuais, como
foi o caso de La Tercera Obra.
Em La Tercera Obra, dando continuidade à pesquisa do grupo em pen-
sar o público, esse grupo vai re-criar o texto de Brecht, Terror e Miséria no
Terceiro Reich, adaptação que vai interligar o nazismo com as reminiscênci-
as ditatoriais existente no Chile democrático. A encenação conta com refe-
rências da Performance Art e o distanciamento brechtiano: quatro atores,
quatro cadeiras, uma mesa, sobre um palco praticamente vazio, interpre-
tando os diversos quadros da peça, comentando também as suas opiniões
políticas e estéticas sobre o teatro de Brecht e o Chile atual, isto em um
vídeo que era mostrado concomitantemente à montagem. A peça também
utiliza efeitos como repetições constantes de algumas palavras, cantos de
hip-hop sobre o tema do poder, um vidro, no qual jogam violentamente
tinta vermelha e é quebrado repentinamente, entre outros. Tudo isto vai
demonstrar que Teatro La María, que é o que comentam Carvajal e Van
Diest (2007), umas das poucas investigadoras que começam a teorizar so-
bre esta nova geração teatral no Chile, passa do entretenimento caracterís-
tico da anterior trilogia, a um tom mais provocativo, mais violento em rela-
ção ao espectador.
As diversas pulsões cênicas tratadas neste panorama do teatro chileno
contemporâneo, onde se propôs como ponto inicial, para efeito deste arti-
go, as instintivas e clandestinas pulsões cênicas da década de 80, que adqui-
ririam visibilidade principalmente no Chile democrático, seja pela mão dos
gestores dessas pulsões ou pelas gerações mais novas, ainda buscam canais
de expressividade mais democráticos no Chile atual. Todos estes grupos
trabalham de forma independente, sem subvenção contínua do estado ou
do setor privado. Todos desenvolvem seus trabalhos na cidade de Santiago,
capital desse país, faltando ainda políticas de descentralização dessa ativi-
dade para as outras regiões do Chile, o que tem acontecido de maneira
esporádica com uma pequena parte destes ou outros grupos, que pela limi-
tada extensão do artigo, aqui não foi possível comentar. Dentre eles, alguns
grupos: La Puerta, Teatro Circo Imaginário, El Cancerbero, La Peste, Tryo
Teatro y Banda, El Hijo, entre outros; e alguns diretores: Rodrigo Pérez,
Andrés Céspedes, Claudia Echenique, Verônica García-Huidobro, Carla
Achiardi, Victor Carrasco, entre outros. Ainda assim, estes grupos conti-

81
Héctor Briones

nuam suas atividades, principalmente os mais jovens, que não deixam de


querer falar do Chile por meio de outras óticas, não oficiais, cujas instigantes
críticas estão intrincadas em suas instigantes poéticas, para tentar desvelar
o que ainda não se sabe como ou não é possível nomear na vida da socieda-
de chilena globalizada atual.

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82
Pulsões cênicas...

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83
BREVE REFLEXÃO SOBRE O
TEATRO DE GRUPO NO BRASIL

Angela Reis

Atriz, Doutora e Mestre em Teatro pela Uni-Rio.


Professora da Escola de Teatro e do PPGAC
da Universidade Federal da Bahia.

[Vários grupos] Movidos por objetivos e experiências sociais comuns, na


produção de uma série de trabalhos conseguem desenvolver pesquisas
consistentes, em longos processos de auto-expressão artística que se
amparam na criatividade do ator e na teatralização de experiências subjetivas,
com a exploração de temáticas do cotidiano. (FERNANDES, 2006, p. 153,
comentário nosso)

O teatro de grupo é um dos fenômenos mais pulsantes na cena brasilei-


ra contemporânea. A cada dia, mais pessoas reúnem-se para desenvolver
pesquisas em torno da cena teatral, como indica o aparecimento de coope-
rativas em todo país e movimentos que congregam grupos em torno de dis-
cussões sobre o seu fazer teatral (como o Redemoinho – Movimento brasi-
leiro de espaços de criação, compartilhamento e pesquisa teatral, que teve
sua origem em um encontro realizado pelo Galpão Cine Horto, em dezem-
bro de 2004, na cidade de Belo Horizonte). No entanto, se é intensa a

85
Angela Reis

atuação dos grupos, a bibliografia especializada ainda não se voltou especi-


almente sobre o assunto: “O próprio fenômeno de organização coletiva é
um objeto pouco estudado, que merece maior visibilidade” (CARREIRA,
s/d). As maiores discussões têm sido promovidas por estudiosos relaciona-
dos a programas de pós-graduação em todo país (CARREIRA;
FERNANDES; TELLES; TROTTA), ou no interior dos próprios grupos,
que buscam divulgar material teórico sobre o assunto.
O que pretendo, aqui, é de forma ainda que superficial (não apenas
pela delimitação espacial como principalmente pela minha recente aproxi-
mação com o tema), formular um panorama histórico sobre o teatro de
grupo no Brasil, identificando no passado experiências que de alguma for-
ma tenham contribuído para a existência deste fenômeno no teatro brasilei-
ro contemporâneo.
O projeto coletivo estava presente na forma de fazer teatro de duas
importantes experiências da dramaturgia brasileira já na década de 50, o
Teatro de Arena (1953) e o Teatro Oficina (1958), que, opondo-se ao tea-
tro comercial e principalmente calcados na militância política,

conformaram o eixo do modelo de grupo do século XX. [...] Isso representou


a abertura de um espaço que não apenas reivindicava a independência, se
não que fazia da forma grupo uma plataforma de intervenção direta no
contexto teatral nacional. Com discursos ideológicos bem articulados, estes
grupos articularam um padrão de trabalho que associava as propostas
artísticas com uma necessária fundamentação política. Esse padrão
organizacional passou a funcionar como referência para a maioria dos
projetos grupais dos anos 60 e 70. (CARREIRA, s/d)

Segundo Fernandes (2006), a partir dos anos 70 os grupos dividem-se


em duas vertentes claramente delimitadas: de um lado, os que se definem
pelo teor político de suas propostas, desenvolvendo atividades artísticas
nas periferias urbanas – como o União e Olho Vivo, de São Paulo (1969).
Sua principal característica é “a intenção de exercitar uma linguagem popu-
lar, conjugada a uma motivação política, projeto que os afasta do circuito
comercial de produção e veiculação do teatro, e envolve uma intensa
militância junto à população das periferias” (FERNANDES, 2006, p. 152).
A outra orientação do trabalho de vários grupos no período é o envolvimento
com a pesquisa de linguagem cênica,

em que a investigação do teatro e a experimentação de novos modos de fazê-


lo aparece, senão como proposta, ao menos como resultado evidente dos

86
Breve reflexão...

processos criativos. Movidos por objetivos e experiências sociais comuns, na


produção de uma série de trabalhos conseguem desenvolver pesquisas
consistentes, em longos processos de auto-expressão artística que se
amparam na criatividade do ator e na teatralização de experiências subjetivas,
com a exploração de temáticas do cotidiano. (FERNANDES, 2006, p. 153)

Alinhado com esta vertente criativa, o grupo carioca Asdrúbal Trou-


xe o Trombone (1974) desenvolveu um trabalho de formalização de lin-
guagem baseado em improvisações, ancorado na experiência particular de
seus criadores e na teatralização do cotidiano. Neste processo, prescindi-
ram do amparo de técnicas tradicionais e elegeram o ator como elemento
central do processo artístico. Assim como o Asdrúbal, também o grupo
paulistano Pod Minoga (1965) pautou sua pesquisa na criação coletiva,
conjugando a maior estabilidade de integrantes à menor hierarquização
de funções:

não há autor nem diretor. [...] O grupo realizou, entre 1972 e 1980, sete
espetáculos em criação coletiva sem que o texto, à exceção dos dois últimos,
jamais fosse escrito: em cada apresentação, o roteiro de ações criado a
partir das improvisações permitia que a palavra se mantivesse permeável ao
imprevisto. (TROTTA, 2006, p. 102)

Nos anos 70 são criados ainda importantes grupos que permanecem


em atividade até hoje no panorama teatral brasileiro: o Teatro Ventoforte,
que, fundado pelo diretor Ilo Krugli em 1974 no Rio e radicado em São
Paulo a partir dos anos 80, voltou-se especialmente “para as potencialidades
artísticas de qualquer pessoa (seja ela uma expressão profissional ou não),
razão pela qual se dedicou ao universo infantil, por meio da criação de
espetáculos e de atividades integradas em um projeto maior de educação”
(Enciclopédia Itaú Cultural); o Imbuaça, de Sergipe, fundado em 1977,
que “tem trilhado um caminho estético intrinsecamente vinculado à cultura
popular tradicional nordestina, especialmente à sergipana, configurando uma
proposta teatral de rua relacionada ao chamado teatro popular” (TELLES,
2008, p. 53); a Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, do Rio Grande do
Sul (1977), um dos principais grupos de teatro de rua do Brasil, cuja pro-
posta teatral está pautada “no entendimento do teatro como uma arte ca-
paz de contribuir para a transformação social”, e cuja pesquisa teatral “está
calcada em três vertentes: o teatro de vivência, o teatro de rua e as ativida-
des de ensino do teatro” (TELLES, 2008, p. 67-68); e o TAPA, fundado em
1979, no Rio de Janeiro (e atualmente sediado em São Paulo), que, lidera-

87
Angela Reis

do pelo diretor Eduardo Tolentino de Araújo, “desenvolve um trabalho ri-


goroso, essencialmente voltado para um “teatro de dramaturgia” e um in-
discutível empenho em investigar os processos de criação através de pes-
quisa e análise” (Enciclopédia Itaú Cultural).
Nos anos 80, “a produção em grupo apresenta certa retração, diante
do predomínio do teatro de encenadores” (FERNANDES, 2006), o que
não impede o surgimento de conjuntos como o Tá na rua, fundado no Rio
de Janeiro em 1980, sob a direção de Amir Haddad, ou o Galpão, fundado
em Belo Horizonte (MG) em 1982 e atualmente consagrado como um dos
mais importantes grupos de teatro brasileiro. O Lume (Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais), ligado à UNICAMP, fundado em
1985 pelo ator e diretor Luiz Otavio Burnier, apresenta duas característi-
cas que marcarão muitas das experiências a serem desenvolvidas dali em
diante no Brasil: a prática do treinamento como elemento central do traba-
lho de grupo, a partir da adoção do instrumental oferecido pela Antropolo-
gia teatral (sendo importantes neste movimento as inúmeras visitas feitas
ao país por Eugênio Barba e pelos grupos relacionados ao projeto da Inter-
nacional School of Theatrical Anthropology- ISTA); e o intercâmbio com os
cursos de formação de atores das universidades brasileiras, a partir da atu-
ação de profissionais ligados tanto às instituições formais de ensino como a
grupos teatrais que desenvolvem pesquisa continuada (“a diminuição da
fronteira entre os espaços da universidade – importante local de formação
do ator no Brasil – e o cotidiano dos grupos contribuiu para intensificar a
noção de investigação que está associada a estas práticas de treinamento.”)
(CARREIRA, s/d).
Nos anos 90, segundo André Carreira (s/d), a carência de modelos
fortes de trabalho (como os proporcionados pela militância política, no qual
o foco estava colocado no contato e diálogo com um público ao qual se
dirigia para acionar o coletivo) fez com que uma nova geração de grupos
desenvolvesse uma intensa relação com a noção de grupalidade; ou seja, o
grupo, sua estrutura funcional e organizativa, geradora do trabalho criador,
passa a ser o ponto chave neste processo,

em uma “militância” sobre o próprio teatro, quer dizer, sobre a construção


de linguagens e sentidos para a prática espetacular. Esta “militância” também
lutava para garantir espaços para a produção independente, e isso começou
a constituir uma nova referência que se apropriou dos modos grupais como
instrumento de trabalho e objeto de atenção. (CARREIRA, s/d)

88
Breve reflexão...

Também nesta década o teatro colaborativo surge como um fenô-


meno de grande destaque no panorama teatral brasileiro, a partir princi-
palmente da ação do Teatro da Vertigem, grupo paulistano dirigido por
Antonio Araújo, que desenvolveu este processo em seus três primeiros
espetáculos, ao longo de dez anos: Paraíso Perdido, O Livro de Jó e
Apocalipse 1,11.
A experiência do Teatro da Vertigem revela o modo como se estrutura
esta forma teatral. Surgindo da necessidade de

um novo contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas relações


criativas, prescinde de qualquer hierarquia pré-estabelecida, seja de texto,
de direção, de interpretação ou qualquer outra. Todos os criadores envolvidos
colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do
espetáculo, de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da
atuação de cada um deles, estando a relação criativa baseada em múltiplas
referências. (LIMA, 2006, p. 253)

Além da horizontalidade nas relações entre os componentes do grupo,


rompe-se também com a primazia do texto teatral no processo da monta-
gem; não existindo a priori, o texto teatral é construído juntamente com a
cena (a partir da presença de um dramaturgo); esta passa a ser o elemento
principal no trabalho, local de reunião, experimentação e desenvolvimento
de todo material pesquisado e criado pelo grupo.
À guisa de conclusão, encerro este brevíssimo panorama sobre o
teatro de grupo no Brasil acentuando a necessidade de que nos debruce-
mos intensamente sobre este universo, cada vez mais em expansão. Ri-
cas experiências ficaram no passado (como as dos grupos Avelãz e aves-
truz ou Teatro da Encruzilhada, na Bahia); outras, incontáveis, permane-
cem vivas e atuantes. Aqui em Salvador, por exemplo, pode-se destacar
a experiência de trabalho continuado com os seis grupos residentes do
Teatro Vila Velha (Teatro dos Novos, Bando de Teatro Olodum, Vilavox,
Viladança, Novos Novos, A Outra Companhia de Teatro). Estas experi-
ências, desde o Arena e o Oficina, testemunham uma escolha que busca
modificar as relações de trabalho ligadas à produção teatral, em um cru-
zamento no qual as opções estéticas estão ligadas a questões éticas e
políticas.

89
Angela Reis

BIBLIOGRAFIA

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90
FRONTEIRAS DE AREIA:
Perspectivas do acontecer cênico costarriquenho contemporâneo

Leonardo Sebiani

Acadêmico da Escola de Artes Cênicas da Universidad Nacional de Costa Rica e


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA

Gostaria de ter mãos enormes,


violentas e selvagens,
para arrancar fronteiras uma a uma
e deixar de fronteira só o ar.

(DEBRAVO, 2005, p. 85, tradução nossa)

Fronteiras de areia

Durante o período colonial, a Costa Rica foi a província mais pobre da


Capitania Geral da Guatemala, situação que beneficiou a criação de nossa
identidade e economia pós-colonial, e, desde sua independência da Espanha,
em 1821, conseguiu consolidar uma República Democrática, sobretudo a
partir da criação das garantias sociais e da abolição do exército na década
de 1940. Mas, ainda assim, as guerras, os movimentos revolucionários e
ditatoriais fora de nossas fronteiras tiveram logicamente um impacto na
economia e na estabilidade do país.

91
Leonardo Sebiani

A arte cênica esteve sempre presente no país desde o período pós-


colonial, e foi assim que, em 1837, deu-se a construção do primeiro edifício
teatral que apresentou programas tanto com grupos amadores, como com
grupos internacionais. As constantes turnês de companhias européias e la-
tino-americanas estimularam a construção do Teatro Nacional inaugurado
em 1897. No ano de 1985, com a aquisição do antigo Teatro Raventós, cuja
construção original é de 1928, inaugura-se um dos atuais e principais edifí-
cios: o Teatro Popular Melico Salazar.
Até 1951, criou-se o grupo de teatro da Universidad de Costa Rica,
chamado Teatro Universitario (TU), levando essa arte ao grau universitário,
opção que se mantém até os dias atuais. Outro centro de formação artística
consolidado como um dos pilares nacionais é o Conservatório Castella (1953),
instituição de ensino primário e secundário que implementa disciplinas ar-
tísticas além das tradicionais, graduando jovens com uma postura artística.
Do final dos anos 60 até o final dos anos 70, manteve-se uma forte
migração de irmãos latino-americanos, que foram amparados por nosso país,
em pleno desenvolvimento e livre de conflitos bélicos. Resumindo, poderí-
amos dizer que o crescimento das artes cênicas deu-se a partir do fim dos
anos 60, já que apareceram, naquele momento, alguns artistas estrangeiros
provocando mudanças substanciais no meio artístico do nosso país:

Um acontecimento importante para o desenvolvimento do teatro


costarriquenho sem dúvida constitui-se, no ano de 1967, na chegada do
grupo de teatro De los 21, de Santa Fé, Argentina. Formado por Carlos,
Alfredo y Gladis Catania, que vieram [para a Costa Rica] para administrar
umas oficinas […] em 1968 criaram sua escola de teatro. (GUILLEN, 2006,
p. 76, tradução nossa)1

No ano de 1968, depois de realizar estudos de dança no México, na França,


na Alemanha e nos Estados Unidos, e de ter feito um trabalho como bailarina,
Mireya Barboza regressou ao país para incorporar-se ao incipiente ambiente
cultural. (ÁVILA, 2006, p. 97, tradução nossa)2

1
Original em espanhol: Un acontecimiento importante para el desarrollo del teatro costarricense sin
duda lo constituye la llegada en 1967 de grupo de teatro de los 21, de Santa Fé, Argentina, conforma-
do por Carlos, Alfredo y Gladis Catania, vinieron a ofrecer talleres […] en 1968 fundaron su escuela
de teatro. (GUILLEN, 2006, p. 76)
2
Original em espanhol: En 1968, después de realizar estudios de danza en México, Francia, Alemania
y los Estados Unidos, e de haber desarrollado una labor como bailarina, Mireya Barboza regresó al
país para incorporarse al incipiente ambiente cultural. (ÁVILA, 2006, p. 97)

92
Fronteiras de areia...

Estas foram sementes que germinaram a partir do impulso dos Catania


(os argentinos) e de trabalhadores do teatro costarriquenho. Funda-se, en-
tão, no ano de 1968 a Escola de Artes Dramáticas da Universidad de Costa
Rica, assim como Mireya incitou projetos que originaram um reconheci-
mento e inclusão da dança na instituição formal e governamental.
Além dos Catania, provenientes da Argentina, existiram outras migra-
ções importantes como a chilena, da qual poderíamos mencionar Marcelo
Gaete e Sara Astica. Outro precursor do teatro é o colombiano Luis Carlos
Vásquez. Na dança, as bailarinas Cristina Gigirey (Uruguai) e Elena
Gutiérrez (Chile) foram estimuladoras dos movimentos na dança no âmbi-
to institucional e independente. Não poderíamos deixar de mencionar, no
âmbito do ballet clássico, os mestres María Monákova e Anatoli Danilytchev
(Rússia) junto com o mestre Pedro Martin Boza (Cuba), os quais consegui-
ram desenvolver até agora a formação de excelentes intérpretes nas suas
escolas. Das últimas migrações que ficaram na Costa Rica e estão ajudan-
do, ainda em uma constante renovação, temos Verónica Yañez (México),
Domingo Tejada (Espanha), Felix Morejón, Pedro Baró y Luisa de la Torre
(Cuba), cujas contribuições abrangem os campos da formação, interpreta-
ção, e até mesmo a encenação, no território costarriquenho.
Os anos 70 foram marcantes pela criação de vários centros de forma-
ção, produção e extensão artística, tais como: O Ministério da Cultura Ju-
ventude e Esporte (1970), a Compañía Nacional de Teatro (1971), as escolas
de Artes Cênicas (1973) e de Dança (1974) da Universidad Nacional, o Taller
Nacional de Teatro (1977), a companhia Danza Universitaria da Universidad
de Costa Rica (1978) e a Compañía Nacional de Danza (1979). Estas insti-
tuições foram nutridas pelos múltiplos grupos independentes, tais como Tierra
Negra (1973), dirigido por Luis Carlos Vásquez e influenciado pela criação
coletiva teatral colombiana, assim como foram na dança - entre tantos outros
- os grupos danzacor (1975) e o Ballet Moderno de Camara (1975).

Os anos 70 têm se denominado como a época de ouro do teatro


costarriquenho, período que se estende até o início dos anos 80. Lembram-
se com nostalgia muitos espetáculos da Companhia Nacional de Teatro,
alguns sob a direção de figuras emblemáticas como Atahualpa del Cioppo
(GUILLEN, 2007, p. 40, tradução nossa)3.

3
Original em espanhol: Los años 70, se han denominado como la época de oro del teatro costarricense,
período que se extiende hasta inicio de los años 80. Con añoranza se recuerdan muchos espectáculos
de la Cía. Nacional de Teatro, algunas bajo la dirección de figuras emblemáticas como Atahualpa del
Cioppo. (GUILLEN, 2007, p. 40)

93
Leonardo Sebiani

Tanto para o teatro como para a dança, as mudanças sociais, políticas e


econômicas mundiais desses anos geraram na cena um efeito multiplicador
que nos anos posteriores foram lembrados com saudade. A partir dos anos
80 até os anos 90, o panorama muda, já que os processos econômicos em que
a Costa Rica viu-se envolvida implicaram em muitas ocasiões na eliminação
de verbas para os crescentes grupos artísticos emergentes. Houve uma virada
no Estado costarriquenho, naquele momento o país se instaurava e se
aprofundava sob o modelo neoliberal. Foi um processo de debilitamento das
políticas sociais derivadas do Consenso de Washington e das políticas de ajuste
estrutural dos anos 90 que afetaram toda a América Latina.
Essa transformação favoreceu a privatizações dos serviços do Estado,
e a cultura não foi a exceção. A arte cênica, cujo desenvolvimento em nosso
país teve uma ligação histórica com iniciativas públicas, encontrou-se com
poucos recursos públicos e ferramentas inoperantes para assumir a produ-
ção a partir do setor privado. As repercussões imediatas sobre a cultura
foram o aniquilamento das políticas da produção cultural e artística. Essas
políticas de “desenvolvimento” provocaram grandes dificuldades na
concretização de produções, o que, de certa maneira, contribuiu para que a
arte se tornasse um produto exclusivo da capital metropolitana, San José.
Desta maneira, se perdeu uma grande quantidade de ações como o poder
crítico, transformador e de mobilização social que tiveram as artes cênicas
em anos passados.
Apesar das restrições, cria-se o Taller Nacional de Danza (1980),
Compañía Camara Danza UNA (1981), Festival de Coreógrafos (1981),
Festival Nacional de Danza (1986), os grupos independentes Condanza
(1981), Diquis Tiquis (1983), Danza Abend (1983), Losdenmedium (1988)
e Teatro UBU (1989). Nos anos 90, consolida-se o Festival Internacional de
las Artes – FIA (1992), os grupos independentes Speculum Mundi (1992),
Abya Yala (1991), Núcleo de Experimentación Teatral – NET (1992) e o
grupo Contravacío (1998).
Durante a última década, a economia continuou sendo afetada por
modelos neoliberais que pretenderam eliminar ou amordaçar o setor cultu-
ral. Apesar disso, nos últimos anos, a classe artística conseguiu se consoli-
dar e demandar ao governo mudanças nas estratégias econômicas para o
setor. Além disso, o setor privado tem tido um importante aporte para as
produções independentes, assim como projetos de cooperação, provenien-
tes sobretudo da Europa, para fomentar a criação de novos grupos.

94
Fronteiras de areia...

Diversidade Cênica

A partir daqui, meu foco se intensificará no trabalho de alguns grupos


emblemáticos, apesar de que, nos últimos anos, os grupos de dança cresce-
ram consideravelmente, facilitando a criação de mais e novos grupos inde-
pendentes, evento que no teatro aconteceu em menor medida. Esses grupos
independentes são: Diquis Tiquis, Danza Abend, Teatro UBU e Abya Yala, e
foram fundados antes do ano 2000, mas trabalham até hoje e são, em boa
medida, pilares e guia para novos grupos. Analisando-os, pretendo expor o
momento atual das artes cênicas, já que eles são autores, criadores, intér-
pretes, coreógrafos e dramaturgos. Pretendo refletir também, nos seus pro-
cessos criativos, propostas e encenações, destacando a sua importância como
grupos independentes.

Diquis Tiquis (1983)

Viaje al Lugar de la Quietud –Diquis Tiquis-

O jeito não usual como o Diquis Tiquis mistura a dança, o teatro e a


mímica constrói particulares e originais criações, que se têm apresentado
tanto na Costa Rica, como fora dela. Pelo fato de ter um estilo muito pesso-

95
Leonardo Sebiani

al nas suas interpretações e criações, não é fácil elaborar um conceito que


defina seu trabalho.

Porém, no ano de 1993, Anna Kisselgoff do New York Times esboçou uma
definição: “inovadores miniaturistas teatrais”. No ano de 1996, Irene Sieben
no Tanz Actuel/ Ballet Internacional escreveu que são criadores de “algo
desconhecido e até agora indescritível no reino da mística arlequinesca”.
(DIQUIS TIQUIS, 2008, tradução nossa)4.

Nas décadas de 70 e 80, Sandra Trejos e Alejandro Tosatti participaram


como artistas independentes das experiências e agrupações mais inovadoras
do teatro e da dança costarriquenha. Desta maneira, contribuiriam para o
enriquecimento e a expansão do panorama das artes cênicas na Costa Rica.
No ano de 1993, Diquis Tiquis recebe o Premio Nacional de Danza do
Ministério da Cultura da Costa Rica. Diquis Tiquis já tem uma larga trajetó-
ria atuando, bailando e dando oficinas na Europa, no Japão e em quase os

Paredes de brillo timido -Diquis Tiquis-

4
Original em espanhol: Sin embargo, en 1993 Anna Kisselgoff del New York Times esbozó una
definición: “innovadores miniaturistas teatrales.” En 1996 Irene Sieben en Tanz Actuel/ Ballet Inter-
nacional escribió que son creadores de “algo desconocido y hasta ahora indescriptible en el reino de
mística arlequinesca.” (DIQUIS TIQUIS, 2008)

96
Fronteiras de areia...

países do continente americano. Atualmente, Diquis Tiquis continua com seu


trabalho, que inclui oficinas, produções e apresentações, em uma pesquisa
constante para continuar criando novas experiências em torno do teatro e da
dança.
A linguagem de Diquis Tiquis, desde seu início, gera a típica questão: é
dança ou é teatro, ou será mímica? Esta questão perde a importância quan-
do nos sentamos na platéia e nos deleitamos com um bom espetáculo. A
magia, o mítico e o simples geram neles uma articulação de imagens e de
sensações que faz reconhecer uma pesquisa corporal autêntica, além de
uma identificação com um imaginário que lembra o realismo fantástico
hispano-americano e que suscita uma empatia imediata. Essa identificação
que o público tem com as peças de Diquis Tiquis parte das viagens através
de uma estética que rompe com a realidade cotidiana e explora os sonhos, o
místico e mágico do imaginário latino, em um lirismo expressivo que o leva
a imaginar, dentro do mundo ordinário, situações extra-cotidianas.
Atualmente, Diquis Tiquis está sob a direção de Alejandro Tosatti já
que, a partir de 2006, Sandra Trejos passou a ter sua própria produtora,
“La Pulpe”, em que pesquisa elementos nas artes cênicas a partir da
pluralidade de sabores, de cores e de cheiros, fazendo comparação com a
multiplicidade de elementos das quase desaparecidas Pulperías5.

Danza Abend (1983)

Danza Abend caracterizou-se como grupo independente – sem apoio


oficial, nem privado – para mostrar uma outra possibilidade de fazer dança.
Cristina Gigirey foi fundadora e diretora deste grupo, sendo, ainda, um dos
pilares fundamentais do desenvolvimento da dança na Costa Rica, não ape-
nas como professora, mas também como coreógrafa e bailarina. Danza
Abend tem conseguido dançar nos palcos nacionais e internacionais por
mais de 20 anos.
Cristina Gigirey (1940-2006), nascida em Montevidéu, Uruguai, ini-
ciou sua carreira como bailarina ainda muito jovem. Fez parte do Ballet de
Cámara de Montevideo e do Ballet Nacional de Chile. No Chile trabalhou
5
Pulpería: referenciada muitas vezes na América Hispânica a um local de venda de polvos, em outros
casos, de venda de polpas de fruta. Na Costa Rica este termo utiliza-se para o local onde se vendem
diferentes gêneros de alimentos, produtos de limpeza, etc. Normalmente é pequeno, muito popular e
em todo barro tem um.

97
Leonardo Sebiani

FOTO- La Casa de Bernarda Alba- Danza Abend-

com o mestre Patricio Bunster6. No ano de 1970, como conseqüência do


ambiente político, migra para a Alemanha, onde formou-se na Hannover
Hoschshule, trabalhando em diferentes lugares da Europa. Em 1974, chega
na Costa Rica onde incorpora-se como professora na recém formada esco-
la de dança da Universidad Nacional. A vida e obra da mestra Gigirey foi
um complexo espectro de eventos, danças e de uma vida vivida com grande
intensidade dramática.
As peças de Danza Abend têm uma importância na utilização do espa-
ço e da qualidade do movimento, junto com um rigor na interpretação.
Outro ponto importante é a reutilização de obras de repertório, como, por
exemplo, La casa de Bernarda Alba (1978). Esta obra foi dançada por ela
até o ano de sua morte. Os espetáculos de Gigirey são interessantes por
vários elementos coreográficos, como assegura Ávila:

6
Nascido em Santiago de Chile, Patricio Bunster (1923-2006), iniciou sua carreira na dança com os
mestres Ernst Uthoff, Lola Botka e Rudolph Pescht, fundadores da escola de dança na Universidad
de Chile. No ano de 1951 tomou parte no Ballet Jooss e atuou como solista da companhia nas suas
turnês. No ano de 1954, regressou a sua pátria para trabalhar com o Ballet Nacional. Durante vários
anos, desempenhou um papel de professor das escolas de Dança e de Teatro da Universidad de Chile,
participando ativamente nos movimentos da reforma desta instituição educativa. Depois de seu exílio
na ex-República Democrática da Alemanha, regressou novamente a sua pátria. No ano de 1984 foi
nomeado para o Prêmio Nacional de Arte e, no ano de 2004, recebeu o Prêmio Altazor como melhor
ator de cinema chileno pelo filme Subterra.

98
Fronteiras de areia...

Cristina Gigirey na La Casa de Bernarda Alba –Danza Abend-

Dentro dos componentes que configuram a linguagem coreográfica, está a


temática, e na obra de Cristina Gigirey foi interessante sua utilização.
Ela dedica espaço para a reflexão de vários temas que vão desde os
autobiográficos até os de caráter geral. Trabalhou com obras de denúncia,
alternando-as com criações líricas. (ÁVILA, 1999, p. 96, tradução nossa)7

Estes componentes foram constantes nos trabalhos de Danza Abend,


mantidos até hoje sob a direção de Gabriela Dorriës Gigirey, filha da mes-
tra Gigirey. A importância da obra de Danza Abend está na crítica e de-
núncia, e essa forma de lidar com a denúncia é reconhecida até nas peças
mais recentes do grupo.

Teatro Ubu (1989)

O Teatro UBU constitui-se como um núcleo permanente e indepen-


dente de produção, pesquisa e experimentação teatral, reconhecendo o te-

7
Original em espanhol: Dentro de los componentes que conforman el lenguaje coreográfico, está la
temática; y en la obra de Cristina Gigirey ha sido interesante su manejo. Ella ha dedicado espacio para
la reflexión de varios temas que van desde los autobiográficos hasta los de carácter general. Ha
trabajado con obras de denuncia, alternándolas con creaciones líricas. (ÁVILA, 1999, p. 96)

99
Leonardo Sebiani

Maria e jaula, em La mujer que cayó del cielo -Teatro UBU-

atro como um instrumento de expressão e comunicação. O grupo tem se


apresentado em diversos teatros e comunidades na Costa Rica, assim como
na Europa e outros países da América. Como núcleo de pesquisa e experi-
mentação tem vários focos, entre eles “uma das preocupações constantes
do Teatro UBU é a procura de uma linguagem teatral, elemento vital de
identidade de qualquer criador” (Teatro UBU, 2008). Uma identidade que
é criada através de suas propostas, as quais, por sua vez, estão matizadas
pelo seu entorno imediato. Dentro dessa exploração, o grupo tem quatro
aspectos fundamentais que estruturam sua procura:
· O ator-atriz - seu treinamento e a experimentação, assim como sua
participação ativa na tomada de decisões que concernem a cada encenação
e cada projeto;
· A interdisciplinaridade - diálogo de várias artes sobre a cena: foto-
grafia projetada, música, dança, títeres, etc;
· A mensagem do texto, do autor ou do grupo de autores;
· O repertório.

Esses quatro pilares podem ser observados em seus trabalhos. O Tea-


tro UBU está sob a direção de Maria Bonilla que, além de diretora-funda-
dora, é atriz e elemento capital das pesquisas sobre o trabalho autoral,
dramatúrgico e estético do grupo.

100
Fronteiras de areia...

Maria Bonilla en La mujer que cayó del cielo –Teatro UBU-

Outra preocupação do grupo é a analise da realidade costarriquenha:

Cremos, hoje mais que nunca, na importância de ter uma posição ideológico-
estética nas produções interdisciplinares que enfrentarmos, posição que
reconhece sua função social no planteamento de problemas nacionais, como
espaço de debate, na revelação de novas perspectivas ante os problemas que
sofre a sociedade costarriquenha. (TEATRO UBU, 2008)8

Estes espaços de debate, que o grupo toma na cena, geram no especta-


dor uma re-leitura dos problemas nacionais, sendo que o espectador tem a
possibilidade de reconsiderar sua posição dentro dos conflitos expostos,
ampliando seu critério sobre eles. Além de espetáculos independentes, o
grupo tem trabalhado em conjunto com o Teatro Universitário (TU), dan-
do possibilidade a jovens intérpretes de pesquisar e ter uma experiência
cênica na trilha pesquisada por eles.

8
Original em espanhol: Creemos, hoy más que nunca, en la importancia de tener una posición
ideológico-estética en las producciones interdisciplinarias que enfrentamos, posición que reconoce su
función social en el planteamiento de problemas nacionales, como espacio de debate, en la develación
de nuevas perspectivas ante los problemas que sufre la sociedad costarricense. (TEATRO UBU,
2008)

101
Leonardo Sebiani

Abya Yala (1991)

Yvonne- Abya Yala

Seus diretores-fundadores são Roxana Ávila e David Korish que, jun-


to com seu grupo, mantêm duas formas de trabalho: treinamento e ensaios.
E esta dinâmica permite um desenvolvimento integral, intenso e pessoal. É
assim que desde o ano de 1996, o Teatro Abya Yala tem mantido três labo-
ratórios de treinamento autoral e de pesquisa teatral. No ano 2000, Abya
Yala realizou uma turnê centro-americana, oferecendo oficinas, organizan-
do intercâmbios culturais e apresentando espetáculos. Durante o ano de
2003, organizou a Oficina Intensiva de Treinamento Autoral, dirigida a 14
intérpretes da região centro-americana para receber, durante três semanas,
aulas intensivas com Richard Armstrong, Tage Larsen e Luis de Tavira.
Teatro Abya Yala foi agraciado com o Prêmio Nacional do Melhor
Grupo Teatral nos anos 1999, 2002 e 2006; assim como o prêmio Aquileo J.
Echeverría em dramaturgia no ano 2002 pela peça Nós Esperamos. Sua obra
original Sade ganhou menção honrosa do prêmio Uchimura da UNESCO
no ano 2001.
O teatro de Abya Yala é um grupo que procura uma linguagem própria,
por meio das pesquisas autorais, corporais e vocais, sempre em um diálogo
com a teoria, a qual é parte fundamental dos seus estudos, numa experimen-
tação constante que trabalha com a contribuição de seus integrantes. Assim,

102
Fronteiras de areia...

eles conseguem organizar as experimentações e informações dando para o


público encenações originais, partindo de uma dramaturgia própria ou de re-
leituras de peças clássicas. O papel desse grupo tem a importância de ser a
vanguarda na construção de um novo teatro contemporâneo costarriquenho,
de pesquisa teatral contínua e de produtos cênicos, artísticos e acadêmicos,
assim como de uma crítica e estética delicadamente cuidadosa.

Cenizas –Abya Yala-

Acontecer Contemporâneo

Durante os anos de 1990 a 2006, criaram-se novas migrações de lati-


no-americanos, além de uma pré-abertura ao neo-capitalismo e a aprova-
ção do TLC (Tratado de Livre Comércio), que impõe os Estados Unidos na
área centro-americana. O Governo deu curso a esse tratado, apesar de ter
uma forte oposição popular. Atualmente encontra-se em processo de apro-
vação na Assembléia Legislativa.
A partir dos anos 90, deu-se uma crescente formação de grupos inde-
pendentes. Em teatro podemos mencionar: Teatro Yicrá, Contraluz, Teatro
50 al Sur, La Carne Teatro, La Polea, Quetzal e Teatro Punto Cero. Na dan-
ça, grupos como Stratego Danza, Danza Introspectiva, Tanz Project, Danzalfa,
Átropos, Vicky Cortes, Metamorfosis e El Proyecto Lince-Corpus Erigo tra-

103
Leonardo Sebiani

balham sob a direção de intérpretes com uma grande experiência. Mas tam-
bém os mais jovens têm formado agrupações para poder pesquisar e produ-
zir espetáculos de maneira independente. Alguns exemplos são: Danzasí,
Arrendajos, Cuatro Pelos, Las Hijas de Otro, Los que somos, Los Tres Tris-
tes Tigres, Desterrados Danza-Teatro, Las Tres Marías, Tomahawktheatre, Ex-
Ánima e Danza Grafitti.
Durante a última década, com vários esforços e projetos, tem-se unido
a classe artística, criando assim uma cena nacional mais democrática e uni-
da. Um deles foi o projeto do Carromato, patrocinado pela Agência de
Cooperação Sueca, que gerou uma série de capacitações no âmbito teatral
centro-americano (Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa
Rica e Panamá). Esse projeto gerou uma comunicação maior com os ir-
mãos de teatro centro-americanos – na dança esta relação já tinha sido feita
através da Red Centroamericana de Danza – mas como produto do
Carromato, cria-se nacionalmente, a Red Costarricense de las Artes Escénicas.

Nasce, no ano de 2006, a Red Costarricense de las Artes Escénicas que reúne
várias organizações que aglutinam distintos setores das artes cênicas:
Anatradanza (Associação Nacional de Trabalhadores da Dança), Agitep
(Associação Nacional de Grupos Independentes de Teatro Profissional),
Educarte (Teatro Infantil) e o ITI-UNESCO (Centro Costarriquenho do
Instituto do Teatro), assim como também inicialmente a UTI (União de
Teatros Independentes). Esta rede nasceu com o fim de unir esforços para
construir um espaço plural, abrangente e democrático que concentre a maior
parte dos artistas cênicos do país, que repercute na divulgação, promoção,
legislação e capacitação do setor artístico e nas políticas culturais, legislação
e articulação do setor cênico. (GUILLEN, 2007, p. 53, tradução nossa)9

Essas políticas de união dos profissionais das artes cênicas fez com
que, no ano de 2007, a Assembléia Legislativa aprovasse o Estatuto do
Artista, que eleva o trabalho artístico à categoria profissional dentro do
Serviço Civil, gerando uma reivindicação do profissional das artes,
potencializando e dignificando o ofício.

9
Original em espanhol: Nace en 2006, la Red Costarricense de las Artes Escénicas que reúne a varias
organizaciones que aglutinan distintos sectores de las artes escénicas: Anatradanza (Asociación Naci-
onal de Trabajadores de la Danza), Agitep (Asociación Nacional de Grupos Independientes de Teatro
Profesional), Educarte (Teatro Infantil) y el ITI-UNESCO (Centro Costarricense del Instituto del
Teatro) e inicialmente la UTI (Unión de Teatros Independientes). Esta Red nació con el fin de unir
esfuerzos para construir un espacio plural, incluyente y democrático que agrupe a mayor parte de los
artistas escénicos del país, que incida en la divulgación, promoción, legislación y capacitación del
sector artístico y en políticas culturales, legislación y articulación del sector escénico. (GUILLEN,
2007,p. 53)

104
Fronteiras de areia...

Sem Fronteiras

Em conclusão, a cena contemporânea costarriquenha está influenci-


ada pela diversidade de propostas, uma grande quantidade de artistas jo-
vens no ambiente independente e uma crescente união da classe artística
através de questionamentos políticos e acadêmicos, onde se discute o fa-
zer artístico, gerando-se espaços para treinamento, ensaios e produção,
assim como uma constante atualização com intercâmbios e festivais inter-
nacionais.
A pesar da dificuldade em fazer uma produção independente, cada vez
mais grupos se dão a tarefa de procurar seus próprios recursos com a idéia
de gerar suas propostas cênicas. É assim como a cena contemporânea
costarriquenha coloca intérpretes-criadores com diferentes formações téc-
nicas e acadêmicas, em constante pesquisa cênica, com a construção de um
ambiente nacional plural. Ambiente no qual se percebem diferentes ten-
dências, pesquisas e elaborações do artista cênico, em um território peque-
no, em uma terra que parece ter fronteiras de areia – fronteiras dinâmicas e
instáveis – abarcando territórios, aprofundando-se em um legado artístico
que está em constante crescimento.

BIBLIOGRAFIA

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cuaderno 4. Heredia-Costa Rica. Escuela de Danza, Universidad Nacional, 1999.
AVILA, Marta. Panorama de la Danza Contemporanea. La Habana-Cuba, Revista
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DEBRAVO, Jorge. Antología Mayor. San José- Costa Rica, Ed Costa Rica, 2005.
GUILLEN, Marco. Apuntes en torno a una historiografía de la escena. La Habana-
Cuba. Revista Conjunto, Revista de teatro latinoamericano, Casa de las Americas. N
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GUILLEN, Marco. La Actividad Teatral En Costa Rica: Un acercamiento a su
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Leonardo Sebiani

SITES

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TEATRO UBU. Disponível em: <www.mariabonilla.com>; Acesso em: 10 Out 2008

Outros Sites de Interesse:

DANZA TICA: www.danzatica.com


MINISTERIO DE CULTURA: www.mcj.go.cr
(Taller Nacional de Teatro, Taller Nacional de Danza, Compañía Nacional de Danza,
Compañía Nacional de Teatro)
Festival Internacional de las Artes: www.festivalinternacionaldelasartes.com
UNIVERSIDAD NACIONAL (UNA).
Centro de investigación y extensión artistica (CIDEA)
(Escuelas de Danza y Artes Escenicas): www.una.ac.cr/cidea
UNIVERSIDAD DE COSTA RICA (UCR).
Escuela de Artes Dramaticas: www.teatro.ucr.ac.cr
TEATRO NACIONAL
Festival de Coreográfos: www.teatronacional.go.cr
TEATRO POPULAR MELICO SALAZAR
Festival Nacional de Danza: www.teatromelico.go.cr

106
OS REFLEXOS DE UM PRISMA
Considerações sobre o fazer teatral contemporâneo no Equador

Consuelo Maldonado Toral

Atriz e pesquisadora de teatro na área de ação cênica e dramaturgia


do ator. Professora substituta no curso de Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Alagoas.

“Latinoamericanización del teatro latinoamericano”1: é dessa forma


que Franklin Rodríguez (1990, p. 183) inicia seu estudo Apuntes para una
Poética del Teatro Latinoamericano. A expressão pertence à análise realiza-
da sobre o teatro dos anos 70 que está caracterizado por gerar reflexões
sobre a criação, produção e função do teatro e iniciar uma comunicação
entre os fazedores no continente.
O denominado Novo Teatro Latinoamericano distingue-se por uma fun-
ção crítica, social procurando a transformação social, política e econômica.
Os grupos articulam-se como reflexo destes anseios e se estruturam a ma-
neira de cooperativas e associações. Propõem uma forma de trabalho hori-
zontal que desintegra as hierarquias e procuram temas entre os dramas
cotidianos e históricos que determinam as identidades nacionais. O grupo
de teatro define-se como um espaço de coletividade e de contestação aos
regimes autoritários. Ao mesmo tempo em que, o exílio, produzido pelas

1
Latino-americanização do teatro Latino-Americano. (tradução nossa)

107
Consuelo Maldonado

ditaduras dentro de um contexto violento, configura-se, simultaneamente,


como um território de encontros, festivais, publicações e intercâmbios.2
Essas manifestações estão acompanhadas pela corrente denominada
Pensamento Latinoamericano, que procura desenvolver uma filosofia pró-
pria do continente. Segundo Rodríguez “[...] são muito importantes os avan-
ços realizados dentro da ‘História das Idéias’ por filósofos como Leopoldo
Zea, Arturo Ardao, Arturo Andrés Roig, Abelardo Villegas, Augusto
Salazar Bondi e tantos outros que trabalham ao redor de um discurso filo-
sófico latino-americano que expresse a especificidade do ‘ser’ latino-ameri-
cano.”3 (1990, p.191, tradução nossa.) Abraçando este pensamento, surge
uma forma de trabalho denominada criação coletiva. A apropriação crítica
tanto de pressupostos estéticos como de encenação desenvolvem novas
poéticas dentro do teatro.
Passados trinta anos, no marco da VI Edición do Mayo Teatral, promo-
vido pela Casa de las Américas, celebra-se o encontro de teatristas4 em tor-
no do tema: O futuro do teatro latino-americano. Dentro das reflexões,
Patricia Ariza5 questiona: “[...] o trabalho de grupo (dos anos 70) permitiu
construir um nós, mas ao falar de teatro atual precisamos falar de uma
matriz maior.”6 (2001, p.32, tradução nossa.) Os grupos nos anos setenta
se conformaram como coletivos muitas vezes herméticos como parte de um
auto-reconhecimento e a necessidade de construir um nós. Ariza afirma
que precisamos de uma matriz maior que possa considerar a todos e permi-
tir a circulação dos grupos, atores, etc. Aponta também para a necessidade
de se criar um pensamento que nos abarque: “O que pode nos conter a
todos? Onde está a cultura que pode nos conter e nos tornar diversos?”7
(ARIZA, 2001, p. 34, tradução nossa.)

2
Cabe destacar o trabalho realizado pela instituição cubana Casa de las Américas, fundada em 1959.
3
[...] son muy importantes los avances realizados dentro de la “Historia de las Ideas” por filósofos
como Leopoldo Zea, Arturo Ardao, Arturo Andrés Roig, Abelardo Villegas, Augusto Salazar Bondi
y tantos otros que en América Latina vienen laborando en torno a un discurso filosófico latinoamericano
que exprese la especificidad del “ser” latinoamericano. (RODRÍGUEZ, 1990, p. 191)
4
Termo usado em espanhol para denominar as pessoas que fazem teatro.
5
Dramaturga, diretora de teatro e fundadora do grupo La Candelária (Colômbia).
6
[…]el trabajo de grupo (de los años 70) permitió construir un nosotros, pero al hablar de teatro
actual necesitamos hablar de una matriz mayor. (ARIZA, 2001, p. 32)
7
¿Qué nos puede contener a todos? ¿Dónde está la cultura que nos puede contener y que nos vuelve
diversos? (ARIZA, 2001, p. 34)

108
Os reflexos de...

A este respeito, Santiago Garcia,8 da Colômbia, que desenvolve o traba-


lho de grupo através da criação coletiva, aponta uma característica que permeia
as práticas desta forma de fazer. Sustenta que a o teatro de grupo advém de
uma atitude. “[...] o ponto de partida decorre de uma atitude que o grupo,
como célula viva, tem em relação ao universo exterior no qual se insere.”9
(GARCIA apud GARCIA E., 2001, p.58, tradução nossa) Segundo essa
atitude, as circunstâncias que rodeiam o grupo vão mudando e as pessoas
entram em um processo de adaptações. As criações aparecem como parte
dessas mudanças. Uma atitude que podemos encontrar ainda hoje no deno-
minado teatro de grupo. Faz-se necessário caracterizar esta forma de traba-
lho, na procura de entender as novas articulações que conformam as práticas
teatrais no nosso continente. Valeria M. de Oliveira10 sugere que:

O teatro de grupo pressupõe uma estabilidade de elenco, conformado de


um esquema de treinamento atorial, criação de material espetacular e
principalmente, busca fazer um teatro que confronta suas dificuldades e
hegemonias. Assim, esse teatro se dá na margem periférica, não por
imposição e sim por opção, criando um espaço outro de reflexão espetacular,
o desenvolvimento de ética e de estética. (OLIVEIRA, 2003, p.3)

Sem buscar aprisionar o desenvolvimento de um teatro ao contexto do


teatro de grupo, podemos pensar que essa forma de trabalho se torna um
fator comum e seu desenvolvimento nos últimos anos foi marcado pelo
questionamento que Ariza coloca. 11 O teatro de grupo, mais que uma
metodologia é uma forma de trabalho que, hoje, se encontra permeado pelo
fluxo constante de indivíduos que se encontram, se comunicam e trocam
idéias, métodos, técnicas e maneiras de fazer. Conforma-se, assim, um ter-
ritório de comunhão e tensão.
Enrique Buenaventura12, no escrito Ator, criação coletiva e dramaturgia
nacional aponta que a criação coletiva vem a ser uma “[...] revolução na maté-

8
Fundador e diretor do grupo La Candelária (1966), é uma referência para o Teatro Moderno da
América Latina, contribuiu para a difusão da criação coletiva como método de pesquisa de uma
dramaturgia nacional, crítica e popular.
9
[...] el punto de partida se deriva de una actitud que el grupo, como célula viva, tiene en relación con
el universo exterior en el que se inserta. (GARCIA apud GARCIA E., 2001, p.58)
10
Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Atriz/pesquisadora do
Grupo Porto Cênico da cidade Itajaí SC, docente da Universidade do Vale do Itajaí, membro da
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas ABRACE.
11
cf. p. 2
12
Fundador, dramaturgo e diretor do Teatro Experimental de Cali, Colômbia.

109
Consuelo Maldonado

ria do fazer teatral que permita os erros, os fracassos e as tentativas que todo
novo modo de produzir sentido deve necessariamente afrontar para expressar
uma nova época, uma nova vida.”13 (BUENAVENTURA, 1985, p.1, tradução
nossa.) Se pensarmos na consideração de Oliveira, podemos ampliar esta refle-
xão para o âmbito de teatro de grupo. Assim, a pesquisa do grupo, que se
depara com descobertas, mas também com fracassos e erros, está inserida num
território de risco, dúvidas, crise e contradições que suscitam novos modos de
produzir sentido para expressar uma nova época, uma nova vida.
Estamos em época de mudanças e profundas controvérsias. Beatria
Risk, no seu estudo sobre pós-modernismo e teatro na América Latina,
estabelece a impossibilidade de realizar a análise de qualquer sociedade
dada, sem levar em consideração o elemento de mobilidade “[...] do seu
estado perene de evolução que se define em termos de processo e não como
estrutura fixa ou estável.”14 (RISK, 2001, p. 26, tradução nossa.) Territóri-
os sinuosos de risco e dúvida, adaptações inevitáveis, cultura para conter e
não para segregar, são expressões que advertem novos olhares diante do
trabalho de teatro contemporâneo na América Latina.
Diante do reflexo desse prisma que se descompõe em milhares de fra-
ções, por onde podemos começar? Na necessidade de sintetizar costurei
um denominador comum, mas não único dentro do teatro na América La-
tina. Usarei como coluna vertebral o teatro de grupo dos anos 90 no Equa-
dor, já que muitos deles vivenciaram as mudanças sociais, políticas e econô-
micas e como células vivas reformularam seus questionamentos gerando
novas formas de fazer. Intuo que a dita análise permitirá criar
horizontalidades para outras formas de criação do teatro equatoriano con-
temporâneo.
É necessário esclarecer que meu olhar está guiado pelas inquietações
artísticas, vivências grupais e percepções singulares que, definitivamente,
nortearam este artigo. Desde minha prática como atriz, meu interesse em
refletir sobre as formas que o ator encontra para se articular dentro do
grupo e a partir da minha experiência, que acredito se constituir em um
saber prático, falo, ou melhor, tentarei explicar o que pode caracterizar um
teatro constituído por uma multiplicidade de poéticas e estéticas.

13
[…] revolución en la materia del quehacer teatral que permita los errores, los fracasos y los tanteos
que todo nuevo modo de producir sentido debe necesariamente afrontar para expresar una nueva
época, una nueva vida. (BUENAVENTURA, 1985, p. 1)
14
[…] de su estado perenne de evolución que se define en términos de proceso y no como estructura
fija o estable. (RISK, 2001, p. 26)

110
Os reflexos de...

Imagens do Prisma

Podemos começar por escutar os próprios fazedores sobre o que signi-


fica teatro de grupo. O Grupo Callejón del Agua iniciou suas atividades em
1990, sob a direção de Jorge Mateus, professor da Faculdade de Teatro da
Universidade Central do Equador. É necessário esclarecer que Mateus tra-
balha com teatro há mais de 37 anos. A dita agrupação estrutura-se como
uma corporação cultural e artística que promove e divulga: “[...] espetácu-
los que permitam a criação de um espaço de reflexão desde a prática tea-
tral, com temáticas vinculadas a exploração no que consideramos ‘ser
equatoriano’”.15 (CALLEJÓN DEL AGUA, 2008, tradução nossa.)
Por outro lado, o Grupo Espada de Madera trabalha com um conjunto
de técnicas do teatro de bonecos, títeres, sombra, música e teatro negro. As
ditas técnicas têm possibilitado uma linguagem própria. Sob a direção de
Patricio Estrella é uma organização que, em 1989, reuniu profissionais da
arte com o objetivo “de criar um espaço experimental de investigação e
prática cênica onde desenvolver uma atividade artístico-social [...] integrou
variadas técnicas teatrais e artísticas [...] para ir encontrando uma autênti-
ca forma de criar ilusões, de contar histórias de nosso povo [...]”16 (ESPA-
DA DE MADERA, 2008, tradução nossa.)
Um teatro que se afirma na realidade social do continente e, neste
sentido, encontra novas formas de expressão. Uma poética que procura
histórias de “nosso povo” e experimenta formas de contá-las. Uma cena
que procura refletir aquilo que consideramos “ser equatoriano” e ao mes-
mo tempo permita uma reflexão sobre a própria prática teatral.
Continuando com nosso percurso, encontramos o Grupo Malayerba17,
que se define como:

15
[…] espectáculos que permitan la creación de un espacio de reflexión desde la práctica teatral, con
temáticas vinculadas a la exploración en lo que se considera como el “ser ecuatoriano”. (CALLEJÓN
DEL AGUA, 2008)
16
[…] de crear un espacio experimental de investigación y práctica escénica donde desarrollar una
actividad artístico – social […] integró variadas técnicas teatrales y artísticas […] para ir encontrando
una auténtica forma de crear ilusiones, de contar historias de nuestro pueblo […](ESPADA DE
MADERA, 2008)
17
Coletivo que nasce 1979. Em 1989 cria o Laboratório Teatral Permanente e em 1998 inaugura a
Casa Malayerba onde o grupo desenvolve seus trabalhos artísticos e pedagógicos. Em 2001 nasce a
Revista Hoja de Teatro, um lugar de reflexão sobre o fazer teatro no Equador, que conta com 12
edições.

111
Consuelo Maldonado

O GRUPO MALAYERBA, formado por uma equipe de atores profissionais


de diversas origens, diversas nacionalidades, diversas culturas e procedências,
logra expressar que esta mistura não é só possível, mas que pode constituir
uma identidade e uma unidade sobre a base das diferenças e enriquecida
por elas.

O teatro é para nós a procura de uma linguagem que expresse a vida, o ser
humano e seus conflitos, para enfrentá-los, para tentar compreendê-los e
assumir uma posição crítica, ativa e construtiva diante dos processos sócio-
políticos de nossa realidade. (GRUPO MALAYERBA, 2007, p.1, tradução
nossa) 18

Assim, o coletivo se transforma em um lugar de encontros e desencontros


de indivíduos com a capacidade de compartilhar as próprias necessidades. A
qualidade de pesquisa que adquirem seus processos criativos revela objetivos
comuns que transpassam o resultado de uma montagem. Os questionamentos
que geram as práticas do grupo estão marcados por uma reflexão do momen-
to histórico, político e social no qual está inserido.

Espelhos: O Laboratório

Desde os anos 90, o teatro de grupo no Equador está re-configurado


por uma qualidade de laboratório e escola que forma, integra e abre um
espaço de trabalho para futuros atores. Isto implica que sua filosofia se
articule desde e para o campo da formação. Este é o caso de vários coleti-
vos, como: Contraelviento, Teatro del Cronopio, La Espada de Madera, La
Trinchera, Sarao, Grupo de Teatro Experimental de Guayaquil, entre muitos
outros. Sobre esta particularidade pedagógica cabe expor as diferentes vi-
sões que a acompanham, como podemos constatar nas palavras de Fernando
Moncayo, diretor da Rana Sabia19:
18
El GRUPO MALAYERBA, conformado por un equipo de actores profesionales de diversos
orígenes, diversas nacionalidades, diversas culturas y procedencias, logra expresar que esta mixtura no
sólo es posible, pero que puede constituir una identidad y una unidad sobre la base de las diferencias
y enriquecida por ellas. El teatro es para nosotros la búsqueda de un lenguaje que exprese la vida, al
ser humano y sus conflictos, para enfrentarlos, para intentar comprenderlos y asumir una posición
crítica, activa e constructiva delante de los procesos socio-políticos de nuestra realidad. (GRUPO
MALAYERBA, 2007, p.1)
19
Rana Sabia (teatro de títeres) mantém uma atividade permanente desde 1973. Representou o
Equador em festivais de teatro na França, Espanha, Paquistão, antiga Iugoslávia, México, Costa Rica,
Colômbia, Bolívia, entre outros. Dirigida por Fernando Moncayo, criador e mentor, junto com
Claudia Monsalve.

112
Os reflexos de...

“[...] nós acreditamos no [estilo] medieval, ter um aprendiz que se vincule


com o mestre e aprenda o ofício [...] o que nos interessa é uma outra forma
distinta de viver, o que nos preocupa é ser independentes e auto-suficientes
para nos desligar do mecanismo exterior que controla e condiciona.”20
(MONCAYO apud HOJA DE TEATRO, 2004, p.21, tradução nossa)

Moncayo também salienta a dificuldade de manter um grupo, já que se


precisa de uma organização e estrutura particular. De qualquer forma, seu
estilo não formal de ensino é responsável pela formação de muitos artistas
na arte do teatro de bonecos no Equador. Encontramos, também dentro
dos laboratórios, os que focalizam no trabalho do ator como campo de
pesquisa. Assim, o grupo Contraelviento21 expõe: “O Laboratório de Experi-
mentação Teatral é um espaço de pesquisa nos âmbitos da arte do ator, da
dramaturgia do ator, da mise-en-scène, da teoria e da história do teatro, e
qualquer inquietação individual ou grupal refere-se ao mundo do teatro.”22
(2006, p.8, tradução nossa). Vemos aqui a referência ao sentido que o gru-
po tem para seus integrantes, como um território de questionamentos para
serem compartilhados.
Neste aspecto, o Grupo Malayerba, ao se referir sobre o trabalho no
laboratório, explica:

O laboratório é um espaço e um tempo para praticar a liberdade, a pergunta;


para procurar uma ética e a exercer; para nos devolver o sentido de ser
indivíduos dentro do coletivo, condições que acreditamos necessárias para
sustentar uma técnica teatral.23 (GRUPO MALAYERBA, 2004, tradução
nossa)

Para o Grupo Malayerba as ferramentas técnicas e conceituais coloca-


das à disposição dos integrantes significam caminhos de reflexão, alimen-

20
[…] nosotros creemos en el [estilo] medieval, tener un aprendiz que se vincule con el maestro y
aprenda el oficio […] lo que nos preocupa es ser independientes y autosuficientes para irte desligando
del mecanismo exterior que te controla y te condiciona. (MONCAYO apud HOJA DE TEATRO,
2004, p.21)
21
O coletivo nasce em 1991, dirigido por Patricio Vallejo. Se define como um espaço de experimen-
tação da Arte do Ator. Mantém um laboratório de formação em Quito desde 1996.
22
El Laboratorio de Experimentación Teatral es un espacio de investigación en los ámbitos del arte del
actor, la dramaturgia del actor, la puesta en escena, la teoría y la historia del teatro, y cualquier
inquietud individual o grupal referida al mundo del teatro. (Contraelviento, 2006, p.8)
23
El laboratorio es un espacio y un tiempo para practicar la libertad, la pregunta; para buscar una ética
y ejercerla; para devolvernos el sentido de ser individuos dentro del colectivo, condiciones que
creemos necesarias para sustentar una técnica teatral. (GRUPO MALAYERBA, 2004)

113
Consuelo Maldonado

tando o princípio de pesquisa e respeitando o seu ritmo no desenvolvimen-


to individual, sem dissociá-lo do grupo e de seu contexto. Não existe um
modelo a seguir, as noções são colocadas em prática segundo a compreen-
são individual. O questionamento guia todo o processo criativo e de apren-
dizagem.

Refratar: Desvios na Criação

Essa característica do grupo se verticaliza nos seus processos artísti-


cos se pensarmos no prisma da dinâmica de criação. Arístides Vargas afir-
ma que o teatro de grupo tem relação com a forma na qual se cria. E, no seu
caso específico, este coletivo busca “potencializar a poética das diferenças,
esses diferentes olhares que existem num grupo.”24 (VARGAS e FRANCÉS,
2001, p. 8, tradução nossa). Vargas define a criação dentro do grupo como:

[...] um âmbito de confluências subjetivas que encontram um continente,


este continente está conformado pelos mitos comuns que nos unem. Isso
nos dá uma identidade, ou melhor, identidades, já que de repente as
mudanças no estilo de trabalho não surgem somente da direção, mas é o
ator quem as opera. Deixou de ser uma entidade única e monolítica e é um
continente de percepções diferentes.25 (VARGAS apud BOUDET, 1997, p.
47, tradução nossa)

Podemos considerar o processo de criação como um território que se


configura, intrinsecamente, a partir de espaços de tensão entre os diversos
olhares tanto da direção como dos atores. Toda criação implica em um nas-
cimento: caótico, desordenado e confuso, um universo começa a surgir.
Criar significa pular no vazio e as matrizes não compõem o chão para a
queda, mas a base de onde pular. As tensões geradas pelos diversos pontos
de vista, os lugares incertos de chegada, configuram-se instáveis e dentro da
criação de uma dramaturgia aberta, poderíamos pensá-los como forças em
movimento que tecem a criação.
24
[…] potencializar la poética de las diferencias, esas diferentes miradas que existen dentro del grupo.
(VARGAS e FRANCÉS, 2001, p. 8)
25
Un ámbito de confluencias subjetivas que encuentran un continente, este continente está compuesto
por los mitos comunes que nos unen. Y eso nos da una identidad o mejor identidades, ya que de
repente los cambios en el estilo de trabajo no parten sólo de la dirección, sino es el actor que opera los
mismos...dejó de ser una identidad única y monolítica y es un continente de percepciones diferentes.
(VARGAS apud BOUDET, 1997, p. 47)

114
Os reflexos de...

Neste sentido, Cecília A. Salles estabelece (2004) que se partimos da


noção do gesto criador como um movimento com tendência, existem vários
aspectos de tensão, dentre eles, a confluência das ações do propósito e do
imprevisto. “O tecido do percurso criador é feito de relações de tensão,
como se fosse sua musculatura. Pólos opostos de natureza diversa agem
dialeticamente um sobre o outro, mantendo o processo em ação.” (SALLES,
2004, p. 62). Encontramos no grupo um trabalho que procura procedimen-
tos individualizados que dialoguem gerando tensões dentro da criação. Nes-
tas circunstâncias, os integrantes se deparam com caminhos que não são
desenhados, senão apenas apontados/assinalados e onde ninguém detém as
respostas; pelo contrário, são descobertas ao longo do processo.
A dinâmica da criação, então, é estabelecida em movimento, fluxo. E aqui
podemos fazer um paralelo com a dilatação do ofício do ator. Se por um lado
existe um ator voltado ao estudo das suas qualidades expressivas como técnica de
representação, também aquele ator vai contribuir nos caminhos a serem segui-
dos pela própria criação. A interseção gerada marca o rumo dos processos cria-
tivos, pedindo, assim, um ator-criador, ou seja, um ator que não só aprende uma
técnica para responder a, mas apreende uma linguagem para falar de. Uma cria-
ção articulada a partir de tensões próprias a uma teatralidade que procura a
multiplicidade de pontos de vista e uma dramaturgia centrada no processo.
A este respeito, cabe pontuar que as pesquisas sobre o teatro, a partir
do século XX, foram norteadas, primordialmente, pelas investigações so-
bre o ator. Estas inquietações fizeram parte dos grupos nos anos 70 e se
tornaram marcantes para as poéticas atuais.
Nos anos 90, o trabalho do ator alarga-se. Desde os anos 70 técnicas das
mais variadas origens foram apropriadas e re-organizadas, entre elas, encon-
tramos aquelas que se concentraram no trabalho psicofísico do ator. Mas é
no final do século que se criam territórios de fronteira. Limites entre áreas
como dança e teatro são quebrados e linhas divisórias deixam de existir.

Cristais de Puesta En Escena26

Como mencionado anteriormente, a prática dos atores está re-de-


finida por uma pesquisa dos seus materiais expressivos. O corpo-men-

26
Palavra usada em espanhol para fazer referência a mise-en-scène.

115
Consuelo Maldonado

te 27 entra como catalisador dos elementos das mais diversas naturezas


que constituem o material do ator, entre eles, memória, emoções, mo-
vimento, energia, voz, etc. Esta pesquisa caracteriza muitos trabalhos
dos coletivos equatorianos, como, por exemplo, na montagem Al final
de la noche otra vez 28, do grupo Contraelviento, onde podemos obser-
var uma dramaturgia de ações físicas e vocais. Escolho o termo de
dramaturgia já que as ditas ações e suas concatenações revelam e pro-
duzem um sentido, não a partir de um significado dado a priori (por
um texto, por exemplo), mas pela relação que o ator estabelece entre
sua dimensão interior e exterior. Desta forma, o ator, transeunte den-
tro de um fluxo de tensões, se torna um signo.
Por outro lado, a montagem de Vallejo revela-se em planos oníricos.
Símbolos da tradição da cidade de Quito, como o anjo do cemitério, a
curandera29 e o som de um pasillo30 equatoriano, são re-configurados e re-
significados para caracterizar uma cidade desgarrada, em ruínas. As pala-
vras, antes de gerar um diálogo possível entre seus habitantes, parecem
ecoar nas paredes dos prédios, nas janelas trancadas, e nos milimétricos
espaços vazios deixados pelas pedras da cidade antiga.
No release do grupo, a obra está definida como:

[...] um diálogo interior. Um trânsito pelo vivido. A lembrança de uma noite


ou muitas noites que são a mesma. Eva é a filha das sucessivas derrotas que
vão afundando uma sociedade que perde a esperança. Espectadora da
primeira fila da diáspora na que se dilui um país, uma nação, um povo que
não termina de nascer quando já parece que prefere morrer. 31
(CONTRAELVIENTO, 2006, p. 6, tradução nossa)

27
A partir dos recentes avanços nas pesquisas das ciências cognitivas, novas perspectivas aparecem
para refletir sobre o funcionamento do corpo-mente. Por um lado, sabemos agora que a mente não
está separada do corpo nem funciona como um piloto. Isso implica em pensar que o funcionamento
do corpo não é uma resposta à mente, ou seja, não corresponde a uma modus operandi linear. Nosso
corpo não funciona como um conjunto de causas-efeitos e se revela como uma organização muito
mais complexa.
28
Estreada em Quito, o dia 13 de abril de 2006. Dirigida e escrita por Patricio Vallejo.
29
Da tradição indígena, mulher que cuida da saúde da sua comunidade a partir de medicina natural e
saber ancestral.
30
Gênero musical muito popular na América Latina.
31
La obra es un diálogo interior. Un tránsito por lo vivido. El recuerdo de una noche o muchas noches
que son la misma. Eva es hija de las sucesivas debacles que van hundiendo a una sociedad que pierde
la esperanza. Espectadora de primera fila de la diáspora en la que se diluye un país, una nación, un
pueblo que no termina de nacer cuando pareciera que prefiere ya morir. (CONTRAELVIENTO,
2006, p. 6)

116
Os reflexos de...

O tempo se desconstrói na cena e o os diferentes níveis espaciais (mu-


lher/proscênio, transeuntes/palco, estátuas/lateral e deuses/fundo) configu-
ram um mapa tecido pelo presente abstrato, a memória, a herança e o espí-
rito dos antepassados. Eva é uma jovem no tempo que é perigoso ser mu-
lher. Encarna a cidade que habita, os transeuntes e sua sensação de fracas-
so que demanda chegar ao limite para destruir e reconstruir: “Foi assassina-
da pelos avôs e os filhos, lhe arrebataram a memória e banalizaram seus
sonhos. Ancorada em um presente reduzido ao valor em dinheiro, é uma
sobrevivente.”32 (CONTRAELVIENTO, 2006, p.6, tradução nossa)
A imagem visual inserida em uma atmosfera cinzenta e o tratamento
da temporalidade e espacialidade convidam o espectador a transitar nos
mundos íntimos desta personagem que inevitavelmente nos levam à beira
do abismo desta noite ou de muitas noites. Uma estética que reflete e
reflexiona sobre uma realidade. Não desde uma perspectiva representati-
va, mas através de um espelho que reflete a vida e, segundo Risk, está
“[...] um tanto distorcida já que agora se trata de espelhos côncavos e
convexos [...] Em um mundo dominado pelas aparências, o espelho às
vezes produz imagens que não foram refletidas; cópias sem original.”33
(2001, p.39, tradução nossa)

Decomposição: O Sentido no Texto

A distorção se apresenta como esse olhar que se reconhece impossibi-


litado de agir, mas que apela a uma construção onde a ironia aparece como
o último recurso da existência. “A origem da ironia é o fato de que toda
atualidade leva consigo mesma a semente da sua própria dissolução.”34
(KIERKEGAARD apud RISK, 2001, p. 41, tradução nossa) O impasse
que a contemporaneidade imprime no ser humano apela como um último

32
Le asesinaron los abuelos y los hijos, le arrebataron la memoria y le frivolizaron los sueños. Anclada
en un presente reducido a un valor en dinero, es una sobreviviente. (CONTRAELVIENTO, 2006,
p.6)
33
[…] un tanto distorsionada pues ahora se trata de espejos cóncavos y convexos […] En un mundo
dominado por las apariencias, el espejo a vedes produce imágenes que no fueron reflejadas; copias sin
original. (RISK, 2001, p.39)
34
El origen de la ironía es el hecho de que toda actualidad conlleva en sí misma la semilla de su propia
disolución. (KIERKEGAARD apud RISK, 2001, p.41)

117
Consuelo Maldonado

recurso à ironia. E assim nos encontramos com a montagem Jardín de


Pulpos35, do Grupo Malayerba. A história se desenvolve em um lugar onde
é possível recuperar a memória. Antonia leva a Don José a um espaço onde
os sonhos permitem reconstruir uma memória que o tempo manuseia. Du-
rante o reencontro de Don José com seus sonhos vemos desfilar a lista
grande de parentela e os personagens simbólicos de um tempo de tradições.
Nada fica definido, assim, José não lembra quando perdeu a memória:

[...] Só sei que um bom dia acordei e as coisas não tinham nome, era um
mundo vazio de rótulos e pintado com uma cor só. [...] Agora sonharei o
último sonho, o sonho remoto, e que estranhamente sentirei que avanço,
para trás de forma estranha; os sonhos são o raio infinito da memória.36
(VARGAS, 1992, p.15, tradução nossa)

Essa ambigüidade, que segundo Risk, cria uma “distância crítica auto-
reflexiva própria da arte da nossa época, é, entre outras coisas, o produto
da ironia [...]”37 (2001, p. 40, tradução nossa). Ironia e ambigüidade que
não pretende se tornar superficial ou incursionar em um subjetivismo abs-
trato, mas pelo contrário, propõe um território para a memória e novas
utopias. No início do texto, Vargas salienta: “Jardin de Pulpos é uma obra
contra o esquecimento, que aqueles que desapareceram imaginando um
mundo mais justo não sejam reduzidos à crônica policial de uma época,
para que vivam no jardim das utopias, felizes para sempre.”38 (VARGAS,
1992, p.1, tradução nossa)
As temáticas que Vargas aborda nos seus textos reconstroem univer-
sos de ausência, olvido e memória. Por um lado, usando uma ironia desen-
volve uma visão crítica do que significa ser cidadão, pertencer a uma nação,
fazer parte de uma sociedade. Por outro, surge uma possibilidade de cons-
truir um continente que nos abarque, uma experiência que nos narre para

35
Dirigida e escrita por Arístides Vargas. Estreada em Quito, 1992.
36
[…] Sólo sé que un buen día desperté y las cosas no tenían nombre, era un mundo vacío de rótulos
y pintado de un solo color. […] Ahora he de soñar el último sueño, el sueño remoto, y extrañamente
sentir que avanzo, hacia atrás de manera extraña; los sueños son el rayo infinito de la memoria.
(VARGAS, 1992, p.15)
37
[…] distancia crítica autorreflexiva propia del arte de nuestra época, es entre otras cosas el producto
de la ironía […]. (RISK, 2001, p.40)
38
Jardín de Pulpos es una obra contra el olvido, que aquellos que desaparecieron imaginando un
mundo más justo no sean reducidos a la crónica policial de una época, para que vivan en el jardín de
las utopías, felices para siempre.

118
Os reflexos de...

nos reconhecermos na tentativa de assumir e refletir a realidade que nos


circunda.
A partir deste pequeno panorama, podemos observar como os anseios,
olhares, vontades, tentativas, poéticas dos teatristas no Equador tentam dis-
cutir e colocar em evidência um ser humano. O grupo como forma de tra-
balho constitui-se como um berço de experimentações artísticas, técnicas e
estéticas. Este teatro que reflete a realidade social do continente encontra
novas formas de expressão e compõe uma luz refratada, onde a perspectiva,
o olhar e o sentido dos acontecimentos vão criando mapas possíveis de
compreensão.

BIBLIOGRAFIA

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119
Consuelo Maldonado

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n.122, 2001, p.8-10 .
VARGAS, Arístides. Jardin de Pulpos. Arquivo pessoal. Quito, 1992

120
O GRUPO DE TEATRO NO PERU:
A transformação dessa prática cênica nos últimos trinta anos

Manuel Guerrero

Ator pela Escola de Teatro da PUC do Peru e Diretor pela


Universidade do Rio de Janeiro. Mestrando no programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA

Com respeito às minhas queridas Micaelas:


vocês no seu tempo e eu no meu. Tempo de merda este,
mas é o único que tenho e há que vivê-lo.
(ARRAU, 2006, p. 382, tradução nossa)1

Para ser artista tem que se ter vontade de provocar.


(DE MARIA, 1999, tradução nossa)2

Sala de ensaios do espaço Xisto Bahia, Salvador. Como uma das ativi-
dades programadas dentro do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia,
em setembro de 2008, aconteceu um debate do qual participaram atores,
diretores e pesquisadores de teatro de diversos países da América Ibérica.

1
En cuanto a mis queridas Micaelas: Uds. en su tiempo y yo en el mío. Tiempo de mierda éste, pero
es el único que tengo y hay que vivirlo (ARRAU, 2006, p. 382) Frase extraída da peça Micaelas.
2
Para ser artista hay que tener ganas de joder (DE MARIA, 2008)

121
Manuel Guerrero

Durante o encontro o diretor do grupo peruano Yuyachkani3 afirmava que


é própria ao teatro de grupo a idéia de que “o teatro, nós podemos inventá-
lo [...] o projeto de teatralidade pode ser inventado por qualquer grupo”4. A
noção de grupo de teatro a partir da qual Rubio fez essas afirmações
corresponde a um modo de organização, criação e produção teatral que
grupos das décadas de 60, 70 e 80 desenvolveram e praticaram na América
Latina. O presente texto apresentará, mediante exemplos representativos,
as transformações da noção de grupo no interior dos coletivos teatrais pe-
ruanos nas últimas décadas. Principalmente, a atividade na capital, a cidade
de Lima.
Para a pesquisadora de teatro cubana Magaly Muguercia existia, nos
finais da década de 80, um princípio democratizador no que ela chamou de
autóctone “brechtianismo” latino-americano (MUGERCIA, 1991, p. 88).
Esse princípio, na opinião dela, transcendia o nível programático e se intro-
duzia nos próprios criadores mediante os conceitos de dramaturgia coletiva
e grupo. No caso da atividade teatral no Peru, é preciso indicar que nos
anos 80 o termo grupo era empregado para uma determinada forma de
coletivo teatral denominada teatro de grupo e cuja gênese pode ser encon-
trada nas duas décadas passadas. O surgimento desta forma de organização
se explicaria no momento social e político do país nos finais da década de
70, pelo processo de transformações liderado pelo presidente do Governo
Revolucionário das Forças Armadas do Peru, General Juan Velazco Alvarado
(1968-1975), e que seria a única experiência de ditadura militar latino-ame-
ricana com tendência de esquerda.
No programa de governo houve uma reforma educativa que tinha como
meta a alfabetização da população em 10 anos. Entre os educadores e artistas
que fizeram parte da implementação das políticas educativas estavam os bra-
sileiros Paulo Freire e Augusto Boal. O Teatro do Oprimido, as experiências
com o teatro brechtiano do uruguaio Atahualpa del Cioppo, a teorização
prática sobre a técnica da Criação Coletiva do Teatro Experimental de Cali e o
grupo La Candelaria da Colômbia, foram inspiração e influência na atividade
teatral que encontrou no grupo uma alternativa revolucionária, desde o uni-
verso da cultura, a uma ordem social, econômica e política que requeria mu-
danças tanto morais, quanto estéticas. (PEIRANO, 1995, p. 51).

3
Voz em língua quéchua – idioma andino pré-Inca- que significa Estou lembrando ou estou pensando.
4
“el teatro nos lo podemos inventar [...] el proyecto de teatralidad puede ser inventado por cualquier
grupo”.

122
O grupo de teatro...

Diferentes foram as histórias e percursos dos grupos Yuyachkani e


Cuatrotablas, ambos nascidos em 1971 e de inquestionável importância no
teatro peruano. Nas palavras do fundador de Cuatrotablas, Mario Delgado:

Em 1971 aparecem Cuatrotablas e Yuyachkany, dois projetos de Teatro de


Grupo que marcaram, cada um ao seu modo; com eqüidistâncias e
complementaridades, uma nova maneira de produção de Teatro no Peru: O
Laboratório e a Criação Coletiva. Enquanto Cuatrotablas funda-se em 16 de
setembro apoiado pela experiência latino-americana de Mario Delgado com
Carlos Giménez e El Juglar de Córdoba, Argentina (68-70), e que se traduziu
no fenômeno teatral de 71, “TEU PAÍS ESTÁ FELIZ”; o grupo
YUYACHKANI é fundado pelos primeiros dissidentes do fecundo YEGO,
grupo paradigma do Teatro Engajado de finais dos 70. Em Julho de 1971,
Yuyachkani inicia o processo que, meses depois, irromperia com um clássico
do Teatro Político: “PUNHOS DE COBRE”. (DELGADO, 2008, p. 1,
tradução nossa)5

Delgado faz uma distinção entre o projeto de ambos os grupos:

YUYACHKANI, subterrâneo, marginal ao mercado do espetáculo, feito em


sindicatos, comunidades camponesas, organizações de comunidades,
apoiado diretamente pelo partido político no qual militam alguns dos seus
principais condutores... CUATROTABLAS, preenchendo o espaço
vanguardista e alternativo da programação teatral, político e sem partido,
tributário do teatro, da ação e, graças a esta oposição dialética, ambos
submersos na procura de um teatro nacional, nas profundezas do laboratório
e na melhor estirpe da criação coletiva. (DELGADO, 2008, p. 2, tradução
nossa) 6

No ano de 1978, realizou-se o Encuentro Ayacucho, uma atividade pro-


gramada dentro do marco do Festival Mundial de Teatro das Nações, patro-
5
En 1971 surgen, Cuatrotablas y Yuyachkany, dos proyectos de Teatro de Grupo que han de marcar
cada uno a su modo; con equidistancias y complementariedades, una nueva manera de producción de
Teatro en el Perú: El Laboratorio y la Creación Colectiva. Mientras Cuatrotablas se funda, el 16 de
septiembre apoyado por la experiencia latinoamericana de Mario Delgado con Carlos Giménez y El
Juglar de Córdoba Argentina (68-70), y que se traduce en el fenómeno teatral del 71, “TU PAIS
ESTA FELIZ”; el grupo YUYACHKANI es fundado por los primeros disidentes del fecundo YEGO,
grupo paradigma del Teatro Comprometido de los finales de los 70. En Julio de 1971, Yuyachkani da
inicio al proceso que meses después, irrumpiría con un clásico del Teatro Político: “PUÑOS DE
COBRE”. (DELGADO, 2008, p. 1)
6
YUYACHKANI, subterráneo, marginal al mercado del espectáculo, hecho en sindicatos, comunida-
des campesinas, organizaciones barriales, apoyado directamente por el partido político en el cual
militan algunos de sus principales conductores... CUATROTABLAS, llenando el espacio vanguardista
y alternativo de la cartelera teatral, político y sin partido, tributario del teatro, de la acción, Y gracias
a ésta oposición dialéctica, ambos sumergidos en la búsqueda de un teatro nacional, en las profundi-
dades del laboratorio y en la mejor estirpe de la creación colectiva. (DELGADO, 2008, p. 2)

123
Manuel Guerrero

cinado pela UNESCO na cidade de Ayacucho,7 na serra central do Peru e


que juntou grupos e mestres de teatro do mundo todo. Este evento pode ser
considerado um marco na prática de teatro de grupo no Peru: foi o momen-
to do encontro com as pesquisas do polonês Jerzy Grotowsky e do italiano
Eugenio Barba. O investigador teatral Hugo Salazar del Alcázar afirma que
foi nesse momento que Yuyachkani mudaria de projeto, depois de anos na
atividade político-militante, o grupo optaria pelo compromisso com a pes-
quisa artístico-estética (SALAZAR DEL ALCAZAR, 1990).
O encontro de 1978 estimulou a formação de muitos grupos teatrais
tanto em Lima quanto no interior do país, nas cidades principais e em bair-
ros carentes. Começava a época áurea do teatro de grupo no Peru. Um dos
principais resultados dessa prática seria o Movimento de Teatro Indepen-
dente desse país, MOTIN-Peru: uma organização formada por grupos tea-
trais, críticos e diretores independentes, e que possibilitou outras formas
de produção, divulgação e consumo de teatro (PEIRANO, 1995). O MOTIN
aproveitou o esquema de organização desenvolvido por iniciativa da atriz,
autora e crítica teatral Sara Jofrée, na década anterior. Isto era a Muestra
de Teatro Peruano, um evento anual que reunia, e reúne até hoje, coletivos
teatrais de todo o país. O MOTIN organizou e dividiu o país em seis regiões
teatrais e cada região em sub-regiões, nos níveis provincial e distrital. Ele-
gem-se, em cada instância, os espetáculos que participarão na seguinte e,
assim, até chegar à seleção das montagens que se apresentarão no âmbito
nacional. Rotativamente, a responsabilidade pela organização da Muestra,
no nível nacional, passa de grupo para grupo. De acordo com uma tradição
andina milenar o Qarguyoc8 é levado para a cidade do eventual anfitrião. O
objetivo tem sido sempre o de possibilitar a circulação de espetáculos, e
discussões estéticas e éticas no interior do movimento.
Paralelamente à Muestra desenvolveram-se os chamados Talleres
Nacionales, cuja finalidade era permitir que se compartilhassem as investi-
gações e as experiências dos grupos participantes. Os Talleres Nacionales
eram conjuntos de oficinas oferecidas e tomadas pelos membros do movi-
mento e nelas se criava o espaço para divulgação, análise, crítica e avaliação

7
Palavra quéchua que significa Vale dos mortos. Foi a capital do império Wari, anterior aos Incas.No
século XVI surgira aí o primeiro movimento armado contra a conquista espanhola, o Taki Onkoi.
Nessa cidade também ficaria selada a independência das colônias espanholas na América do Sul. Em
Ayacucho formou-se, coincidentemente, o movimento terrorista Sendero Luminoso.
8
Tarefa, encargo.

124
O grupo de teatro...

dos saberes em desenvolvimento. As discussões e os debates eram registrados


por escrito, em fotografias e algumas vezes em fita magnética; inclusive,
ainda que raramente, em vídeo. O material circulava, e circula até hoje,
como publicação impressa na Revista MUESTRA, entre os grupos membros
do movimento e alguns não-agrupados. Procuras estéticas, posições políti-
co-ideológicas, desenvolvimento técnico, tratamento de tema, formas de
produção, entre outros assuntos continuam sendo matéria de artigos da
revista cujo principal gestor é o diretor do grupo Yawar, Tomás Temoche.
Desta forma, os grupos de teatro criaram uma alternativa às escolas de
teatro formais, como a Escuela Nacional de Arte Dramático e a Escuela de
Teatro de la Universidad Católica. É significativo mencionar que esta última
fez parte do MOTIN desde 1989 até a sua desaparição em 2003, estimulan-
do que os alunos entrassem em contato com os processos desenvolvidos no
interior do movimento.
No Peru, o início da década de 80 coincidiu com o retorno do país ao
sistema democrático e com a primeira ação armada do movimento de filiação
maoísta Sendero Luminoso. A violência provocada pelo enfrentamento en-
tre este último e as FFAA9 seria a marca daqueles anos. Porém, tendo em
vista que o conflito começou na serra central, Lima, a capital, demorou em
perceber a crueza do enfrentamento, mesmo já havendo informação
jornalística sobre ela.
Salazar del Alcázar percebeu que a história do Peru foi um tema recor-
rente na cena dos anos 80. Os coletivos teatrais durante o mencionado pe-
ríodo, seja com propósitos de divulgação ideológica ou de questionamento
ao discurso oficial veiculado pelos textos escolares, criaram espetáculos
sobre eventos e personagens históricos, tanto do passado remoto, como do
passado recente. O referido investigador, em Teatro e Violência: uma pers-
pectiva do teatro peruano dos anos 80, levanta a seguinte hipótese: sendo a
década de um resgate crítico da memória, os temas do teatro peruano se
agrupam em dois. No primeiro lustro o assunto foi a migração para as gran-
des cidades do litoral. No segundo, foi a violência (SALAZAR DEL
ALCÁZAR, 1990).
A crescente inflação, a falta de créditos na banca internacional e a
violência político-social no país obrigaram o presidente Alan García (1985-
1990) a adotar duas medidas em 1988: um ajuste econômico de grandes

9
Sigla que serve para denominar o conjunto das Forças Armadas do Peru: Exército, Marinha e
Aviação.

125
Manuel Guerrero

conseqüências recessivas e a entrega total da luta anti-subversiva às Forças


Armadas. Era um momento de definição política, o país se encontrava em
estado de sítio, implicando na suspensão de direitos dos cidadãos, este qua-
dro gerou uma forte repercussão na atividade teatral. Alguns membros do
MOTIN sofreram perseguições e foram presos, pela sua atividade ou vín-
culo com a subversão. Contudo, o movimento teatral continuou produzin-
do e se fez necessária uma revisão da atividade do teatro de grupo:

Durante a década de 80 superou-se, finalmente, a exaltação do grupo per se,


que foi uma das doenças que chamei de grupismo, para escândalo de alguns
amigos do teatro, e que apareceu como uma reação exagerada ao excessivo
peso do autor e do diretor, que tentavam se afirmar como autoridades
individuais, verticais e definitivas para ditar o sentido e a qualidade estética
de um espetáculo teatral. (PEIRANO, 1995, p. 51, tradução nossa)10

Nesse mesmo ano, em um debate organizado pelo grupo Yuyachkani,


representantes de grupos de teatro analisavam a situação do movimento.
Evidenciaram-se as grandes diferenças de posição perante o momento polí-
tico. Uma das conclusões daquele encontro foi que o seguinte Taller Nacio-
nal trataria sobre o humor, tanto como olhar crítico, quanto como relação
com o novo cenário social e político. Essa possibilidade já vinha sendo ex-
plorada no final da década de 80 pelo grupo La Tarumba, fundado em 1982,
pelo encenador Fernando Zevallos. A pesquisa deste grupo em cima da
tradição do palhaço, criou espetáculos que são lembrados entre o melhor
da década: Cállate Domitila (Cala a boca, Domitila), em 1986, e Upa, la
Esperanza (Arriba a Esperança) em 1989.
Com a capital sitiada pelo Sendero Luminoso e pelo Movimiento
Revolucionario Túpac Amaru11, com o desabastecimento de produtos de
primeira necessidade e com uma moeda que se desvalorizava dia-a-dia, o
povo peruano chega às eleições de 1990. No segundo turno das eleições o
escritor Mario Vargas Llosa, que liderava a coligação de direita e centro
direita Frente Democrática12, concorreu com um professor universitário,
10
Durante la década del 80 se superó, al fin, la exaltación del grupo per se, que fue una de las
enfermedades que llamé grupismo, para escándalo de algunos amigos del teatro, y que surgió como
una reacción exagerada al exesivo peso del autor y del director, que intentaban perfilarse como
autoridades individuales, verticales y definitivas para dictar el sentido y la calidad estética de un
espectáculo teatral. (PEIRANO, 1995, p. 51)
11
Movimento armado de filiação marxista-leninista que surgiu em Lima na metade da década de oitenta.
12
Organização política formada pelas elites vinculadas aos bancos privados como reação à nacionali-
zação do sistema financeiro decretada pelo presidente Garcia, em 1987.

126
O grupo de teatro...

desconhecido enquanto político, e que se candidatou como independente.


No meio do descrédito de todos partidos políticos existentes e com grande
quantidade de votos brancos e nulos, o ainda surpreso, Alberto Fujimori
era eleito Presidente da República (1990-1995).
O pacote, cujo anúncio em campanha determinou a derrota de Vargas
Llosa, foi executado por Alberto Fujimori. Paralelamente, uma carta bran-
ca foi entregue às Forças Armadas para enfrentar os movimentos subversi-
vos. A prisão do chefe do Sendero Luminoso, em 12 de setembro de 1992,
foi o golpe de popularidade que o governo precisava após a dissolução do
congresso em abril daquele mesmo ano. Nos comícios que elegeram os no-
vos representantes, os representantes do governo conseguiram uma ampla
maioria: começou a aplicação do modelo neoliberal sob a receita dos Chi-
cago boys,13 o que significou a volta, quase automática, do país ao sistema
financeiro internacional.
O novo modelo econômico acabou com a lei de isenção de imposto de
renda às empresas que apoiassem a produção cultural. Os coletivos teatrais
precisaram inventar, não só o teatro – como disse Rubio a respeito do tea-
tro de grupo – mas também os meios de produzi-lo. Foram os anos em que
muitos grupos teatrais viram a necessidade de se converter em pessoas jurí-
dicas, ou se vincularem com projetos desenvolvidos por cooperações euro-
péias mediante organizações não governamentais. Os novos coletivos tea-
trais formados por jovens tiveram dificuldades de sobreviver. Grupos se
formam por ocasião de algum festival ou algum concurso, e se desfazem
após uma ou duas produções. Com a lei de estabilidade laboral eliminada
pelo governo, os trabalhadores ficavam a mercé das empressas que os em-
pregavam. Não restava tempo nem energia para atividades não remunera-
das. O reconhecido dramaturgo peruano César De Maria opinou:

O sistema de produção mudou e a fome é maior. Nos anos 60 e 70 um grupo


não tinha muito a ganhar em dinheiro. Ia ser pobre de qualquer jeito, mas
ser pobre naquela época não era tão letal como é ser pobre na atualidade.
Então se trabalhava por ideais e pelo prazer de estar juntos em cena,
pensando num futuro comum. Hoje, quando um grupo de atores produz
um espetáculo, a única coisa que eles têm em comum é o afã de montá-la: se
renuncia à idéia de formar um grupo, uma família, porque para assumir um
compromisso desses é preciso querer alguma coisa indefinível e abstrata que
não te dará o que comer. Se se renuncia à “família” também se renuncia à
possibilidade de deixar uma “descendência”, à capacidade de formar, de

13
Apelido dado aos seguidores de Milton Friedman, da Escola de Economia da Universidade de
Chicago.

127
Manuel Guerrero

“criar” outros, a quem considerar família. A atual economia dilui a família


com o grito de “salve-se quem puder”. (DE MARIA, 1999, p. 1, tradução
nossa) 14

No meio do panorama descrito por De Maria, uma investigação a par-


tir da música, como manifestação da negritude no Peru, é a que vem desen-
volvendo o grupo Teatro del Milenio, dirigido por Luis Sandoval e fundado
em 1992. Resultado das suas pesquisas são os espetáculos: Karibu (anos
90), Chavelilla (anos 90), Callejón (2000), Noche de Negros (2003), Viento
y Ausencia (2004), Kimba-fá (2005) e Mama Negra, Mama Tierra (2006).
Caso particular é Pataclaun, grupo formado por July Natters e que foi
um fenômeno de bilheteria na década de 90. Após uma breve experiência
de workshop com o prestigioso diretor do grupo Clú del Claun, o argentino
Guillermo Angelleli, Natters conhece algumas técnicas e exercícios que,
pouco tempo depois, aplicaria em uma oficina ministrada por ela na Uni-
versidade de Lima.15 O seu primeiro espetáculo foi, precisamente, o encer-
ramento da mencionada oficina e se chamou Pataclaun y el Amor (1991).
Narizes vermelhos e personagens criados a partir de tipos urbanos, perten-
centes à classe média de Lima, exploravam situações reconhecíveis para
esse público específico. Pataclaun en la Ciudad (1992), o segundo espetá-
culo, já apresentado como uma produção de Pataclaun, é a consagração do
sucesso de bilheteria do grupo.
Pode-se observar uma outra forma de entender o trabalho de grupo.
Os membros deste coletivo eram treinados na convenção do claun16 pela
própria diretora – que acabaria desenvolvendo uma forma de trabalho par-
ticular desprovida da agudeza e vontade crítica dos argentinos – e se manti-
nham juntos pelo sucesso e pela bilheteria. Em 1993 se apresenta em longa

14
El sistema de producción ha cambiado y el hambre es mayor. En los 60 y 70 un grupo no tenía
mucho que ganar en dinero. Iba a ser pobre de todas maneras, pero ser pobre en esa época no era tan
letal como ser pobre actualmente. Entonces se trabajaba por ideales y por el placer de verse juntos en
escena, pensando en un futuro común. Hoy, cuando un grupo de actores pone una obra, lo único que
los reúne es el afán de montarla: se renuncia a la idea de formar un grupo, una familia, porque para
asumir un compromiso así hay que querer algo indefinible y abstracto que no te dará de comer.
Renunciando a la “familia“ se renuncia también a la posibilidad de dejar una “descendencia”, a la
capacidad de formar, de “crear” a otros, a los que consideras familia. La economía actual diluye a la
familia al grito de “sálvese quien pueda”. (DE MARIA, 1999, p. 1)
15
Instituição de ensino superior fundada em 1962 para satisfazer as necessidades das classes dominan-
tes do Peru.
16
Transformação da palavra inglesa clown que empregará a diretora para denominar os seus atores.

128
O grupo de teatro...

temporada Pataclaun enrollado, paradoxalmente, na casa de Yuyachkani,


enquanto os atores deste grupo saíram pelo mundo, em viagens individuais,
no que chamaram de ano sabático. A porcentagem da bilheteria ajudou a
pagar a diáspora. O Neoliberalismo veio para ficar. Além do dinheiro da
bilheteria, o Pataclaun lucrava com o seu crescente merchandising: camise-
tas, narizes com o logo do grupo, fotografias e com oficinas ministradas por
seus membros.
Outro exemplo de grupo de teatro que virou marca registrada, com
logo e direitos de propriedade intelectual foi o já mencionado La Tarumba.
Kalimando, espetáculo estreado no outono de 1996, foi o lançamento deste
grupo com duas transformações fundamentais: a linha de trabalho em cima
da fusão entre teatro e circo, e a forma de produção empresarial.
Na década de 90, vários grupos já existentes começam a enveredar por
outra atividade: a formativa, no sentido escolástico do termo. Maguey, for-
mado em 1982 pelo ator, músico e pesquisador Willi Pinto e que já vinha
desenvolvendo um trabalho pedagógico para atores na Escuela de Teatro da
Universidad Católica, em uma linha próxima do teatro antropológico, inicia
o projeto de escola Luna Nueva. La Tarumba começa a formar atores-
circences. Yuyachkani e Cuatrotablas precisaram formar escolas para in-
corporar novos atores aos seus respectivos elencos (PEIRANO, 1995).
Para finais da década de 90 La Tarumba consolidou-se como empresa,
Maguey criou um Centro Cultural e Yuyachkani constituiu uma pessoa jurí-
dica. Os primeiros investiram na divulgação dos espetáculos circenses, da
sua marca e das oficinas de circo na grande mídia. Com um financiamento
do Banco Interamericano de Desenvolvimento conseguiu adquirir a sua lona
de circo e em 2004, o empreendimento Mundo Tarumba obteve o prêmio à
Criatividade Empresarial. O reconhecimento na categoria Cultura foi con-
cedido pela Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas em associação com
o grupo de mídia RPP, com a empresa Andina de Televisión e com o jornal
El Comercio, de Lima. Caminho diferente é o de, Maguey que consegue
confrontar-se com o mercado justamente para manter a linha de coerência
ética e estética que mantinha desde a sua fundação. Por outro lado, a pessoa
jurídica que constituíram possibilita que Yuyachkani venda os espetáculos
dos seus alunos e os remunere sob a modalidade de prestação de serviços.
Durante o segundo mandato (1995-2000), a ditadura de Alberto
Fujimori intensifica o controle dos mass-mídia. Nestes anos assistimos a
um curioso fato dentro do conjunto das produções destinadas ao entreteni-
mento: dois casos de produtos originalmente pensados para a cena viram

129
Manuel Guerrero

programas na TV de sinal aberto com grande audiência: “Pataclaun”, ver-


são televisiva dos espetáculos do grupo; e “Los Cómicos de la Calle” (Os
Cômicos da Calçada), comediantes de rua que, sem mais pretensão do que
a de ganhar o sustento de subsistência, foram levados para tela pequena e
conseguiram espaços semanais em mais de uma emissora. No ápice do su-
cesso, programas deste tipo chegaram a ser concorrentes entre si. Sobre o
primeiro, De Maria comenta:

Mass-Mídia e teatro têm se encontrado em muitas áreas. Pataclaun é um


Risas en América17, com gente jovem e branca, para jovens que preferem que
a piada aconteça no dormitório e não no botequim. O seu humor é
“classemediano” e a sua posição cultural é jovem, quer dizer, ridiculariza o
crioulo, não fala como o gordo Casaretto18, não dizem coisas como “Ya pues
causita, no te metas con mi choche”19, mas modernizam o de sempre: o já velho
tapa na cara e o mesmo peido são engraçados quando feitos por Machín20 e
são ordinários ao serem feitos pelo Chato Barraza21. Pataclaun atraiu um
público muito dinâmico, que tem grana para passear, que pode eleger entre
“vamos para um concerto ou vamos assistir Pataclaun?”. Pataclaun fala a sua
linguagem, com piadas que remetem à sua realidade... Eu gosto deles, mas
não encontro neles o nível que muita gente quer ver no trabalho deles. O que
acho é que parecem com aquilo que todos querem ser hoje; mais modernos,
mais brancos, menos pé-rapados, mais filhos-da-puta. No boteco de Risas...
tem amigos e tudo é cinza; na família Pataclaun brigam todos contra todos...
(1999, p. 2, tradução nossa) 22

O início do milênio trouxe a queda da ditadura de Fujimori, pela divul-


gação de um vídeo probatório da corrupção do regime. Estando em Tóquio
17
Programa cômico que no Brasil pode ser comparado com o programa do SBT A praça é nossa.
18
Comediante muito popular no Peru.
19
Gíria limenha usada por pessoas de baixa renda.
20
Personagem de Pataclaun.
21
Comediante muito popular no Peru.
22
El medio masivo y el teatro se han tocado en muchas áreas. Pataclaun es un Risas en América con
gente joven y blanca, para jóvenes que prefieren que el chiste suceda en el dormitorio y no en la
cantina. Su humor es “clasemediero“ y su posición cultural es joven, o sea que se burlan de lo criollo,
no hablan como el gordo Casaretto, no dicen cosas como «Ya pues causita, no te metas con mi
choche», pero modernizan lo de siempre: la vieja cachetada y el mismo pedo son graciosos si vienen
de Machín y son vulgares si vienen del Chato Barraza. «Pataclaun» ha atraído a un grupo que es muy
móvil, que tiene plata para pasear, que puede elegir entre «¿vamos a un concierto o vamos a ver
Pataclaun?». Pataclaun le habla en su lenguaje, le da chistes que aluden a su realidad... A mí me
gustan, pero no les veo el nivel que mucha gente quiere verles. Lo que creo es que se parecen a aquello
que todos quieren ser hoy; más modernos, más blancos, menos resinosos, más hijos-de-puta. En la
cantina de Risas... hay amigos y todo es gris; en la familia Pataclaun pelean todos contra todos … (DE
MARIA, 1999, p. 2)

130
O grupo de teatro...

e, amparado na sua recém revelada cidadania japonesa, Fujimori renunciou


à Presidência da República via fax.
Já de volta ao estado de direito, o governo de transição convocou o povo
peruano às eleições, iniciou investigações contra dirigentes do antigo regime
e nomeou uma comissão para determinar a magnitude das perdas e as res-
ponsabilidades dos envolvidos na Guerra Anti-subversiva23. Como um cla-
mor, a história não escrita exigia um lugar. O gesto se elevou sobre a frivoli-
dade cúmplice da gargalhada imediata e carregada de preconceito que, esti-
mulada pela mass-mídia, tentou abafar a dor produzida por uma guerra
fratricida originada na indiferença do poder central às comunidades alto-
andinas. Depois de dois anos o texto final do informe da Comisión de la
verdad e la reconciliación (2002) é entregue ao então presidente Alejandro
Toledo (2001-2006), em uma cerimônia composta por criações artísticas de
diversos tipos. Yuyachkani apresentou, em homenagem às vítimas da guerra e
às famílias, Adiós Ayacucho, solo do ator Augusto Casafranca e que conta o
drama de um desaparecido que procura os seus restos durante o seu velório.
Na virada da década de 90 para o ano 2000 nasceram grupos jovens
com pouca ou nenhuma relação com o MOTIN. O movimento, muito en-
fraquecido em Lima, é ainda muito vivo no interior do país. Mas, aparece-
ram também outros eventos que permitiram a circulação das produções
teatrais, tais como o Festival Internacional de Teatro Callejero, em Comas24
e o Festival Internacional de Teatro Popular, gerido pelo Grupo de Teatro Sol
de MediaNoche.
Dos grupos de teatro formados em Lima no final da década de 90, três
serão mencionados devido à sua continuidade: La Tropa del Eclipse, Ópalo
e Cuer2. Talvez, um traço comum aos grupos mencionados seja o fato de
contarem cada um com um líder que escreve e dirige, assim como também
participa da produção e da divulgação.
Formado em 1997 por Alex Ticona, La Tropa del Eclipse se carateriza
por uma declarada rejeição à palavra. A sua proposta cênica harmoniza,
com singular e fino humor, técnicas de palhaço, mímica, habilidade circen-
se e música. Seus espetáculos Pandangán (1999), Esloquehay (2001),
Sincompaz (2005) e Lúdicus (2006) tiveram sucesso de público e bilheteria
tanto dentro quanto fora do Peru.

23
Conflito militar entre os movimentos subversivos e as forças militares do Estado. O assalto e
incêndio à delegacia de polícia do povo de Chucchis, Ayacucho, na serra central do Peru, em maio de
1980, é considerado o início deste conflito.
24
Bairro com muita população na zona norte da capital.

131
Manuel Guerrero

Ópalo formou-se em 1999, resultado da parceria de Jorge Villanueva e


Marcelo Rivera. Em Fosca (1999), um dos primeiros trabalhos do grupo,
revela-se o talento de Villanueva para a adaptação de romances à forma
dramática. Porém, as suas recentes encenações de textos dramáticos evi-
denciam também a competência de Villanueva como diretor e de Rivera
como ator. A montagem de Super Pooper (2006), de César De Maria ga-
nhou o primeiro prêmio do Festival de Teatro del Instituto Peruano-
Norteamericano – 2006. No ano seguinte, o grupo apresenta, em uma muito
bem sucedida temporada, Tus amigos nunca te harían daño, texto do jovem
e reconhecido autor peruano Santiago Roncagliolo.
A história de Cuer2 começou pela iniciativa de participar no Primer
Festival de Teatro Universitario Sanmarquino, organizado pelo Teatro
Universitario de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima no
ano de 1999. Juntaram-se dois estudantes, um de Letras e um de Comuni-
cação, e decidiram convidar o jovem diretor Roberto Sánchez-Piérola, que
acabava de ganhar, como encenador, o primeiro prêmio do Festival de Tea-
tro del Instituto Cultural Peruano-Norteamericano. Uma vez que a
convocatória era exclusivamente para grupos, eles decidiram constituir-se
como tal para aquela ocasião. O primeiro elenco de Cuer2 foi integrado por
Omar Guerrero, Karen Barredo e o diretor convidado. A experiência e
formação em dramaturgia de Sánchez-Piérola permitiu que o grupo se en-
caminhasse na construção, de maneira coletiva, de um texto teatral que
satisfizesse as inquietações artísticas dos seus integrantes. A excelente re-
cepção por parte do público na estréia de Víctimas, em 10 de Junho de
1999, deu início ao projeto de grupo desses artistas.
O coletivo produziu ainda mais um espetáculo sob o mesmo procedimen-
to: Seguros, texto escrito pelo diretor um ano antes. Após isso o grupo muda,
saem os dois atores iniciais e entram cinco atores novos. A equipe começa o
processo de Sobre el encierro y debajo (2000), texto de Sánchez-Piérola para
uma atriz. Com novos integrantes o grupo estréia Lo más resistente (2002) e
Máquina camino corazón (2003). Com as temporadas destes espetáculos con-
cluídas o jovem diretor se encontrava sem elenco. Porém, contava com um
projeto de trabalho grupal, com uma força de trabalho intensa e com uma
capacidade de liderança. O caso de Cuatrotablas serve de precedente: o grupo,
embora tenha passado por muitas dificuldades nos seus 37 anos, continua a
existir porque o projeto é gerido pelo diretor Mario Delgado. Atualmente,
Cuer2 está formado por Sánchez Piérola, José Luis Urteaga e Roly Dávila, e
eles mantém uma rotina de trabalho de nove horas por semana.

132
O grupo de teatro...

O coletivo decidiu não entrar na maquinaria publicitária das agendas


culturais. Optaram por construir um laboratório onde podem realizar as
suas investigações teatrais e configurar os seus discursos cênicos. Eles vêm
buscando o confronto pessoal com a platéia como um ato de resistência às
relações mediatizadas pela tecnologia das telecomunicações. Afirmam-se
como processo e não como produtos. Finalmente, reclamam e constroem
um espaço dentro do espectro teatral de Lima em confronto com o teatro
veiculado pelos círculos legitimados como cult pela crítica especializada.
Diferentemente do que já era costume entre os coletivos teatrais reunidos
com o interesse prioritário de participar em um evento por motivos econô-
micos, os integrantes de Cuer2 decidiram em 2004 seguir juntos após senti-
rem a necessidade de continuidade. Começavam a perceber entre eles a
vontade de ter um projeto artístico comum. Coisa pouco freqüente nos
jovens que cresceram sob a influência do Neoliberalismo.
Além dos espetáculos já mencionados, o grupo produziu: Palintópolis
(2006) e Interruptor (2008). Sobre esses espetáculos, o crítico peruano Ser-
gio Velarde escreveu:

Depois do genial Palintrópolis (no qual se retratava a nossa cidade como um


verdadeiro inferno na terra), os CUER2 arremetem contra a globalização
que, longe de conseguir melhorar a intercomunicação, produz um completo
isolamento no ser humano, preso a uma tela de computador, fones de
ouvido ou telinha, na qual a realidade aparece tão desfigurada como
longínqua. E tudo matizado com irreverente humor, que torna a encenação
muito mais direta e perturbadora.

Mais uma vez, José Luis Urteaga e Roly Dávila (atores em Palintrópolis) nos
presenteiam com uma contundente dupla na qual, ao contrário da realidade
que nos retratam, o equilíbrio, a sobriedade, a ação-reação e, sobretudo, a
capacidade de escuta recíproca, conseguem um resultado interpretativo
excelente, tanto no que diz respeito à técnica vocal quanto à corporal.
Definitivamente, Interruptor é um novo olhar, crítico e certeiro, para um
mundo que, aos poucos, se encontrará envolvido na total descomposição e
incomunicação. E não será num futuro muito distante. Está mais próximo
do que parece. (VELARDE, 2008, p. 1, tradução nossa) 25

25
Luego de la genial “Palintrópolis” (en la que se retrataba a nuestra ciudad como un verdadero
infierno en la tierra), los CUER2 arremeten contra la globalización que, lejos de lograr una mejoría
en la intercomunicación, produce un completo aislamiento en el ser humano, preso de un monitor,
audífono o pantalla, en el que la realidad aparece tan desfigurada como lejana. Y todo matizado con
irreverente humor, que vuelve el montaje mucho más directo y perturbador. Nuevamente José Luis
Urteaga y Roly Dávila (actores en “Palintrópolis”) nos regalan una contundente dupla en la que, a la
inversa de la realidad que nos retratan, el equilibrio, la sobriedad, la acción-reacción y sobre todo, la
capacidad de escucharse mutuamente, consiguen un resultado actoral excelente, tanto en la parte
vocal como corporal. Definitivamente, “Interruptor” es una nueva mirada, crítica y certera, hacia un
mundo que poco a poco se verá envuelto en la total descomposición e incomunicación. Y no será en
un futuro muy lejano, está más cerca de lo que parece. (VELARDE, 2008, p. 1)

133
Manuel Guerrero

Pode-se afirmar que não existe mais, no Peru, um único modelo de


fazer e produzir teatro a partir do grupo. A idéia de grupo deixou de ser
única. Ela está sendo reinventada. Os processos sócio-econômicos pelos
quais tem passado o Peru nesses últimos anos, com forte influência de um
pensamento neoliberal, tem provocado fortes abalos na concepção de tea-
tro de grupo. Esta concepção está sendo constantemente reinventada, resta
aguardar para ver como e sob quais inquietações sociais, políticas e, sobre-
tudo, cênicas, se organizarão, proximamente, os grupos teatrais peruanos.

BIBLIOGRAFIA

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de la Vega, 2006, p. 382.
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acesso em: 12 out 2008.
DE MARIA, César. Hemos pactado con los chanchos. Entrevista com o autor em
1999. Disponível em: http://www.andes.missouri.edu/andes/Cronicas/
MIG_DeMaria.html; acesso em: 14 Out 2008.
JOFRÉE, Sara. Críticos, comentaristas y divulgadores. Lima: Lluvia Editores, 1993.
MUGERCIA, Magali. Lo antropológico en el discurso escénico latinoamericano
Em: Revista Apuntes de Teatro N101 Primavera-Verano 1991, p. 88-100.
PEIRANO, Luis. Una visión del teatro peruano en la década de los ochenta Em:
Textos de teatro peruano N3 Diciembre de 1995 Instituto Nacional de Cultura p. 45-56.
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Peruano dos ochentas Lima: CENDOT, 1990.
SALAZAR DEL ALCÁZAR, Hugo. Marcas de la historia y la violencia de estos
días: el teatro peruano de los ochentas Em: Márgenes: Encuentro y Debate Nº 5-6
(Dic 1985) p. 63-83.
SÁNCHEZ PIÉROLA, Roberto. Respuestas de Cuer2 Guerrero.
alphaguerrero@aol.com 23 sep 2008.
VELARDE, Sergio. Interruptor, la globalización em el tapete Disponível em: http://
eloficiocritico.blogspot.com/2008/06/interruptor.html; El oficio crítico acesso em: out
de 2008.

134
A POÉTICA DO OCULTO
O teatro cubano como forma de expressão de
uma ilha cercada pela Utopia e Censura.

Luis Alberto Alonso.

Diretor de Teatro, formado pela Escola Nacional de Arte de Havana-Cuba.


Estudou Interpretação teatral no Instituto Superior de Arte de Havana-Cuba.
Integrante do Grupo internacional Ponte dos Ventos, sediado na Dinamarca,
no Odin Teatret. Diretor do Festival Latino-Americano de Teatro
na Bahia (FILTE) e Diretor teatral do Oco Teatro Laboratório.

Carta ao Leitor

O início dos anos 90 foram os meus primeiros anos no teatro, suscitan-


do em mim o debate entre a expressão e a realidade que me circundava. A
revolução cubana tinha começado em 1959, plena de altivez e de autentici-
dade marcada pela revolta contra um poder opressor que transformava a
ilha em um perfeito bordel. As expressões eram naquele tempo de uma
veracidade inegável. Segundo os meus estudos em teatro na Escola Nacio-
nal de Arte e depois no Instituto Superior da Universidade das Artes, em
Havana, homens e mulheres de teatro sentiam prazer ao ter a oportunidade
de poder se apresentar para um público heterogêneo, uma vez que o teatro

135
Luis Alberto Alonso

não era parte da elite capitalista daquele tempo. A cultura cubana começa-
va a ter seus maiores frutos. Filhos de uma conquista que provocou uma
rica miscigenação entre europeus e negros africanos, com uma herança
neocolonial norte-americana, a Cuba que nascia era plena de força e vigor
em tempos de referenciais comunistas. A União de Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) era a nossa mãe nos ideais e na economia. Foi o
dogmatizado pensar bolchevique que levantou bandeiras com fervor na
Revolução Russa. Tudo parecia perfeito aos olhos dos mais comuns dos
cubanos. Um mundo novo estava nascendo: Chegou a Utopia! Era o nosso
lema ante tanta aparente perfeição que não era mais que espelhismos1 de
um comunismo nascente. A explosão demográfica avançou, os jovens como
eu, nascidos nos anos 60 e 70, fizeram parte da juventude cubana prepara-
da, com diplomas e estudos. Um arsenal humano inquestionável.
Criamos ídolos, sem capacidade de destruí-los, pois eles eram parte da
nossa consciência coletiva, a qual gerou certa sublimação de virtudes que
serviram posteriormente para a manipulação. Foi derrubado o muro de
Berlim. No início dos 90, um país que não tinha desenvolvido economia
alguma entrou em colapso, era a ruína, o fim dos nossos dias, mas a resis-
tência nos fez vencer. E aí está, Cuba, bela ilha, semeada no centro do mar
do Caribe, sem possibilidades de escape, pois a ilha já tem a sua natural
condição isolada.
Gerou-se em Cuba uma natureza confusa, cheia de contradições, que
nem o próprio Hamlet poderia mostrar, “Ser ou não ser? Eis a questão”.
No final das contas o cubano se sentiu privilegiado ante o mundo desconhe-
cido que ele olhava. Grande paradoxo, em que muitos diziam: Meu filho,
não reclame, há outros no mundo que estão pior do que nós. E aos poucos
foi gerando um sentido de precariedade e conformismo no pensamento do
cubano, uma alma precária em destruição, onde admitimos tudo o que acon-
tece e não fazemos, contra o que nos reprime, absolutamente nada.
Gerou-se então um “intelectual engajado”, digo entre aspas, pois a
maioria dos intelectuais, nos quais incluo dramaturgos, diretores e atores,
tentavam e tentam dizer com sua obra sem parecerem óbvios, gerando uma
espécie de obra dramática onde os significados ocultos cobram vida daque-
les espectadores mais hábeis, onde não dá para dizer assim, direto, nem

1
Neologismo criado pelo autor na língua portuguesa. Já existente em espanhol como espejismos.
Palavra que designa a existência de um estado ilusório que provem do encontro de imagens recorren-
tes na mente de um povo acostumado à Utopia, a viver dentro de um sistema ilusório, imaginado,
sonhado. Também pode ler-se como multiplicidade de imagens.

136
A poética do...

com meias palavras. Há que dizer, mas sem ser dito. Uma poética que cha-
mo Poética do Oculto2, uma poética teatral com significados divergentes
entre versos e prosas. Uma poética que se faz cada vez mais rica, pois pro-
picia a multiplicidade de leituras e a universalidade de grande parte da arte
cubana. Isso em um povo cercado por fronteiras de censura que não permi-
tem a entrada de informações divergentes vindas do exterior, pois deve pre-
valecer o sentido unidirecional do pensamento oficial sem possibilidades de
oposição de idéias ou confronto destas.
A cultura teatral cubana é influenciada por vários fatores. Primeiro,
aqueles anteriormente explicitados, que formam parte da realidade na qual
nos inserimos como cubanos, realidade geo-política-social. A outra é a rea-
lidade cultural, sendo filhos da mistura de raças e crenças, dos costumes
negros e brancos, temos frutos como batucadas, os cultos iorubás, os rit-
mos caribenhos, la rumba, el guaguancó, el bembé, solares3, comparsas, as
danças nascidas dos crioulos cubanos, o gesto exacerbado de paixões e sen-
sualidade. Por outro lado forma parte da nossa cultura o idolatrar imagens
vivas fundadas no poder através de marchas patrióticas e passeatas de mul-
tidões desesperadas pela dicotomia de um discurso fervoroso em favor de
quem se está contra. Somos seres esquisitos, mas cheios de humanidade,
pois pelo menos algo de herança ficou em todos estes anos e foi o sonho por
alcançar um mundo ideal, um mundo melhor, uma Utopia. Podemos nos
considerar, em alguma medida, verdadeiros e autênticos humanistas.

Na Escola

Falar da formação artística, em especial, a teatral, em Cuba é continu-


ar vivenciando um paradoxo existencial. As escolas de arte em Cuba são de
uma inquestionável qualidade e possuem um altíssimo nível teórico, prático
e ético. Mas, como falava uma das minhas grandes mestras, da qual não me
sinto autorizado a mencionar o seu nome: Não sei para que formam tantos
artistas se depois lhes cortam as assas.
2
Denominação criada pelo autor. Designa a forma de construção do texto teatral que parte do
subliminar e sub-textual com a característica especial desta criação estar vinculada a uma maquinaria
repressora a qual obriga o artista a esconder, em uma poética comum a todos, os seus verdadeiros
pensamentos como ser social. Fugindo, assim, da perseguição, e alcançando grande parte da sociedade
que vai ao teatro ou lê as peças escritas.
3
Estruturas similares aos sobrados brasileiros. Chamados em Cuba de “Solares”.

137
Luis Alberto Alonso

Em Cuba existem duas grandes escolas de Artes. Radicadas na capital,


Havana, a Escola Nacional de Artes (ENA) e o Instituto Superior de Arte
(ISA), da qual somos fruto a maioria dos artistas jovens cubanos da atuali-
dade. O Instituto Superior de Arte de Cuba é uma singular instituição de
nível superior no continente latino-americano, com cursos de graduação e
pós-graduação em todas as expressões artísticas. Desde a sua criação con-
tou com professores que são destacados artistas e mestres de arte, repre-
sentantes das mais variadas tendências e linhas de pensamento, tanto na
ordem da pedagogia como na da criação artística. Têm determinado os ru-
mos ideológicos e estéticos grandes figuras da cultura cubana as quais rece-
beram graus honoríficos como Professor Emérito, Professor Convidado e
Doutor Honoris Causa. Prestigiam essa lista de criadores nomes como:
Alicia Alonso e Leo Brouwer4. Além destes altos expoentes da cultura cu-
bana, a categoria acadêmica do ISA tem recebido importantes figuras da
arte internacional como Alex Rosenberg, Peter Ludwig, Oswald Guayasamin
e Eugenio Barba.
A Escola de Teatro teve também uma herança russa, e creio que foi,
dentre os legados da extinta União Soviética, um dos mais importantes. O
chamado Método Stanislavski, do qual fomos legítimos seguidores, foi intro-
duzido em Cuba por criadores independentes, mas institucionalizado pelo
centro. Professores do Instituto e da Escola Nacional de Artes tinham estu-
dado em Moscou bebendo diretamente das fontes discípulas do Mestre.
Uma das características fundamentais do Instituto de Artes Cênicas é
a formação ética do profissional que se diploma. O departamento desta
faculdade dispõe de várias especialidades, entre elas, Interpretação (que
nos últimos semestres incursiona em vários meios, como televisão, rádio e
cinema), Direção, Teatrologia e Dramaturgia, Desenho (iluminação, figuri-
no e cenário). Todas com diploma superior na especialidade selecionada
pelo aluno. Destes cursos é parte fundamental o vasto arsenal teórico que
se há de vencer. Dentre estes encontram-se aquelas teorias vinculadas dire-
tamente à Pesquisa Teatral, os Textos Dramáticos, História do Teatro, Lite-
ratura Universal (com um currículo de seis semestres), Psicologia, Filoso-

4
Mario Rodriguez Alemán, Isaac Nicole, Enrique Monet, Argeliers León, Harold Gramatges Leite-
Vidal, Rine Leal, Fernando Alonso, Alberto Alonso e Adigio Benítez. Outros acompanharam o
desenvolvimento docente, grandes artistas de renome como Raquel Revuelta Planas, Ramiro Guerra
Suárez, Rogelio Martínez Furé, Leo Brouwer Mesquida, Alfredo Guevara Valdés, Graziella Pogolotti
Jacobson, Jesús Ortega Hirsuta, María Teresa Linares, Rita Longa Arostegui, Domingo Aragú Rodríguez
e Juan Jorge Junco Hortelano, entre outros.

138
A poética do...

fia (com quatro semestres), História da Arte (com seis semestres), etc. Nas
matérias práticas tem-se Interpretação, Voz e Dicção, Direção, Desenho,
Acrobacia, Dança Folclórica, Técnicas de Dança Moderna, Ballet, Canto e
também algo de Cultura Oriental como o Tai Chi Chuan.
Essa explicação é necessária para que se possa compreender o univer-
so teatral do meu país, as suas tendências e o artista cubano atual. Toda essa
verdade sem disfarces me ajuda a sentar as bases para eu poder escrever
sobre o teatro cubano que vivi, estudei e do qual sou fruto como criador.

Ação!

No começo da Revolução, anos 60, a mais relevante das criações foi o


espetáculo Santa Camila de la Habana Vieja (1962), do autor José Ramón
Brene5, que segundo Nancy Morejón, poeta e ensaísta cubana, Prêmio Na-
cional de Literatura, a Santa Camila é a ritualidade e a poética dos altares,
destacando Brene como criador da primeira obra do Novo Teatro Cubano.
Sob a direção de Adolfo de Luis, um dos mais exigentes e talentosos direto-
res cubanos da época, a peça foi uma produção que apontava fervorosa-
mente o esplendor e a lucidez dos começos da Revolução. Onde ficava ex-
plícito o pensamento do escritor quando falava que a verdadeira liberdade
seria alcançada por um processo cultural orgânico que mostrasse as neces-
sidades e contradições do cubano, e não por imposição. Já se vislumbravam
os ideais marxistas que viriam impostos, como latas de conserva, pelas ex-
periências dogmáticas do governo russo.
Nessa época surge também o Teatro de los Doce, encabeçado por Vicente
Revuelta, ganhando o mérito de, junto a Adolfo de Luis, serem os que in-
troduziram na ilha o chamado “Método” Stanislavski. Teatro de los Doce
estréia a controvertida peça La Noche de los Asesinos (1965), de José Triana.6
A obra conta a história de três irmãos: duas mulheres e um homem que
decidem brincar que matam os pais, refletindo sobre o conflito entre pais e

5
Quando triunfou a Revolução (1959), se criou no Teatro Nacional de Cuba o Seminário de Dramaturgia
para formar jovens amantes da cena, atores, diretores e dramaturgos. José Ramon Brene ingressou
nesse Seminário aos 34 anos, quando começou a sua vida como criador e artista de teatro.
6
La Noche de los Asesinos foi montada em diversos países da America Latina e em diferentes idiomas.
Foi estreada em países como Inglaterra, França e Estados Unidos. As obras de Triana têm sido
traduzidas para o inglês, francês, italiano, português, alemão, húngaro, polaco, sueco, fines, danes,
holandês, húngaro, hebreu e Catalão. Atualmente vive fora de Cuba.

139
Luis Alberto Alonso

filhos, a repressão a que estavam submetidos alguns adolescentes e adultos.


Chamada por Triana de uma obra patética, causou comoção nas altas esfe-
ras e conturbadas discussões, chegando a ser colocada na lista “negra” do
governo de Castro, o qual obrigou o autor a se exilar na Espanha no ano de
1980. Era uma das obras que lastrava a “Poética do Oculto”, ainda que
existissem controvérsias entre as intenções do autor e a multiplicidade de
leituras que esta provocava. Mas fica claro que a peça está cheia de símbo-
los e é um discurso oculto que se encaixava perfeitamente na situação do
país naquele momento.
No ano de 1967, acontece em Cuba a estréia do espetáculo Maria
Antonia, um texto que se converteria em um clássico da literatura dramáti-
ca nacional, pela sua força renovadora da tragédia clássica, convertendo-se
em uma tragédia clássica contemporânea. O seu autor, Eugenio Hernandez
Espinosa, é considerado um dos dramaturgos mais importantes do Caribe.
A montagem esteve a cargo de Roberto Blanco, um destacado diretor da
cena teatral cubana. Maria Antonia é um apelo à retomada do ser nacional,
do ser cubano. Criada sobre o conhecimento e vivência da cultura afro-
cubana do autor, é uma tragédia contemporânea atemporal, um grito que
convocava à apreciação dos valores autóctones da cultura cubana.
Na virada para os anos 70, se desenvolve um movimento teatral inte-
ressante, encabeçado pelo grupo Escambray, fundado no ano de 1968 por
Sergio Corrieri e Gilda Hernández, conhecidos artistas cubanos. Desenvol-
vendo um processo de criação coletiva, estes artistas decidiram emigrar
para a região montanhosa do centro-sul da ilha, a região de Escambray,
onde a resistência ao governo e as suas transformações eram latentes. E
onde não conseguia chegar, até aquele momento, o dogmatismo que tomou
posse sobretudo quando o governo cubano se alia ao Conselho de Ajuda
Mutua Econômica (CAME) dos países socialistas. Este grupo tinha como
conquista primordial o trabalho de criação coletiva que era desenvolvido
através das experiências recolhidas com os camponeses que se negavam a
formar cooperativas, finalizando este trabalho em um espetáculo. As mon-
tagens dessa época tratavam dos conflitos, das expectativas e realidades
deste setor da sociedade cubana. Eram, aliás, produções abertas que esti-
mulavam a intervenção do público. A evolução da sociedade obrigou a Com-
panhia a mudar com ela e na década de 80 teve de enfrentar uma realidade
que se tornava cada vez mais urbana. A partir dos anos 90, com a queda do
mundo socialista europeu, a Companhia vê-se na necessidade de repartir
com seu público mais interrogações do que certezas.

140
A poética do...

Um autor importante é Virgilio Piñera, reconhecido como um dos mai-


ores dramaturgos cubanos do século XX, vivenciou a impotência frente à
vida política e proclamou uma negação total a esta: “Misturar-nos com a
vida política seria tanto quanto contaminar-nos com a sua pestilência”.
Representante máximo de um texto de resistência, de supervivência. Ele se
consagrava no resultado da sua luta entre rebeldia e impotência: Electra
Garrigó (1941), Aire Frio (1959), Niñita Querida (1966), El No (1965), Dos
Viejos Pánicos (1968), Una Caja de Zapatos Vacía (1969), são entre tantos
textos os que refletem um ser em contradição. Situações que entram e saem
do real, que acabam ficando com a opção do absurdo como saída em um
universo que discute o real, mas que cai num vazio de solidão.
Outro dramaturgo é Abelardo Estorino, sendo considerado pela críti-
ca cubana, como um admirado discípulo de Virgilio Piñera e mestre indis-
cutível dos autores contemporâneos mais importantes. Dentre as suas obras
se destacam: La Casa Vieja (1964), Los Mangos de Caín (1965), Morir del
Cuento (1983), Parece Blanca (1994), Vagos Rumores (1999), El Baile
(2000), entre outras.
La Casa Vieja, como o próprio nome da peça indica, é o espelho de
uma sociedade que acreditava que tinha vencido os pré-conceitos e fórmu-
las retrógradas do capitalismo derrotado no ano de 1959. As personagens
principais de uma família de qualquer cidade do interior cubano, onde o
autor especifica nas primeiras didascálias “depois de 1959”, dois irmãos,
Esteban, de visita ao interior, e Laura, viviam na espera da morte do pai,
um símbolo de libertação dentro da peça, pois Laura namorava um homem
da qual era amante às escondidas por conta dos preconceitos da sociedade.
Esteban tinha migrado para a cidade para estudar arquitetura na Universi-
dade, sendo assim portador de um pensamento libertador. Não combinava
mais com aquela cidade e os seus pensamentos retrógrados. Em volta da
expectativa da morte do pai, La Casa Vieja se transforma em um dos tantos
discursos emblemáticos da Poética do Oculto, anteriormente citada, que
preconcebia a formação e o desenvolvimento de uma mimese bolchevique,
palavra que apesar de ter sido retirada do nome do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS) dessa época, em Cuba absorvia tudo o que de
radical conservava no seu significado.
Não pretendendo fazer uma cronologia teatral, dou um salto para os
anos 80, e pretendo me deter na destacada participação de um dos intelec-
tuais mais engajados desta época, Abílio Estévez, um romancista e drama-
turgo de força voraz no verbo e um construtor de discursos na base dos

141
Luis Alberto Alonso

pensamentos filosóficos. Tive a oportunidade de poder assistir a duas mon-


tagens dos textos de Abílio, Un Enano en la Botella7 e La Noche (1994). Un
Enano en la Botella não é mais que um discurso filosófico existencial. O
símbolo do anão e da garrafa dimensiona através da metáfora, em grande
escala, os valores do homem cubano e o fato de ele subsistir, em uma ilha
cercada pela sua dupla condição de isolamento, entre a condição natural e a
imposta. O autor reflete na condição que se impõe ao ser humano portador
de um discurso utópico quando diz:

“Vejo, em troca, pensamentos, lembranças, obsessões, terrores – sobretudo


terrores –, o que antes de viver na garrafa eu chamava comodamente de
‘subjetividades’. Converti-me num homem subjetivo, que é o melhor jeito de
viver dentro de uma garrafa”.(ESTÉVEZ, tradução nossa)8

Na construção do discurso do anão, o autor utiliza símbolos recorren-


tes que chamam à reflexão do percurso de construção do pensamento do
cubano atual. Faz uso bem marcado de referentes como a prisão, a mente, a
asfixia, a fome, dando uma conotação maior do que o valor semântico da
palavra, o tempo, o silêncio, as fantasias, o amor, a incerteza. Cria um ami-
go na garrafa que acaba emigrando, conversa com o pai que, no contexto se
assemelha a Deus, e é sugerido pelo autor como uma voz que produz ter-
ror. O Pai, por meio de perguntas, consegue confundir o anão, que fala que
seus questionamentos não são mais que palavras:

ANÃO: Bom, palavras, palavras, palavras.

VOZ: Eu não sou Polônio, astuto anão filho meu. Que palavras?

ANÃO: Orações insignificantes. Por exemplo: “Meu pai me ama. Eu amo


meu pai”. Ou esta outra: “Um anão é um homem que morre, meu pai é
imortal”.

VOZ: E dizer que você ama o seu pai e que o seu pai é imortal te parecem
orações insignificantes?

(Pausa. O Anão não sabe o que dizer)

7
Texto cedido pelos atores, ainda não publicado. Tradução para o português: Um Anão na Garrafa.
8
Veo, en cambio, pensamientos, recuerdos, obsesiones, terrores –sobre todo terrores-, lo que antes de
vivir en la botella yo llamaba cómodamente de “subjetividades”. Me convertí en un hombre subjetivo,
que es la mejor forma de vivir dentro de una botella. (ESTÉVEZ)

142
A poética do...

VOZ: Vai para o teu quarto. Não comerás por vários dias. Também não
verás a luz. Estás castigado. (ESTÉVEZ, tradução nossa)9

É evidente nos diálogos que compõem este trecho que o autor deixa
claro a magnificência do poder e a manipulação que este exerce, uma vez
que foi levantado como ídolo e sublimado. O autor também faz recorrências
durante o percurso do texto ao mito de Sísifo, como símbolo do nunca
acabar, um recurso intertextual que mostra o castigo por burlar as leis “di-
vinas” e o cíclico fechado como algo sem saída e sem progresso. No final,
aparece Aladim, a personagem mais aclamada pelo Anão, associando este
ao gênio que resolveria os seus problemas. Aladim lhe dá a oportunidade de
sair da garrafa, de viver uma nova vida. Destampa a garrafa. O anão, não
acostumado à luz, fecha o seu monólogo dizendo:

A luz! Eu não resisto à luz! Já não posso viver no ar nem na luz! Já não
saberia caminhar pela terra! Esqueci o que é uma flor, uma árvore, um rio,
um luar, uma montanha! Esqueci de falar do esquecimento, porque a sorte
do esquecimento se esquece. Não quero lembrar! Aprendi a viver preso. A
liberdade poderia me matar. Diga-me que faria eu? Aonde iria? A quem
contaria esta história sem começo e fim? Que faria com a liberdade? Não
quero viver num outro lugar. Preciso permanecer na garrafa onde aprendi
muitas coisas doces e amargas. Vá salvar outros Aladim! Me deixe, já não sei
viver no mundo! Meu mundo é a garrafa e eu quero que seja também o meu
sepulcro. E quiçá, algum dia dentro de milhões de anos – se é verdade que os
anos passam – alguém encontre a garrafa e um montinho de pó que serei e
diga comovido: “Aqui viveu um anão que enfrentou a vida nesta garrafa”. E
a jogue no mar. E então quem sabe possa chegar ao fim na Polinésia, na
África, na China, aos mares do sul. E, feito cinzas, terei cumprido o meu
sonho. (ESTÉVEZ, tradução nossa)10

9
ENANO: Bien, palabras, palabras, palabras. VOZ: Yo no soy Polonio, astuto enano hijo mío.
Cuales palabras? ENANO: Oraciones insignificantes. Por ejemplo: “Mi papá me ama, yo amo mi
papá”, o esta otra: “Un enano es un hombre que muere, mi papá es inmortal”. VOZ: Y decir que tu
amas a tu papá y que tu papá es inmortal te parecen oraciones insignificantes? (Pausa. El enano no
sabe qué decir) Ve para tu cuarto. No comerás por varios días, también no verás la luz. Estás castigado.
(ESTÉVEZ)
10
La luz! Yo no resisto a la luz! Ya no puedo vivir en el aire ni en la luz! Ya no sabría caminar por la
tierra! Me olvidé de lo que es una flor, un árbol, un río, un claro de luna, una montaña! Se me olvidó
hablar de el olvido, porque la suerte del olvido se olvida. No quiero recordar1 Aprendí a vivir preso .
La libertad podría matarme. Que haría yo? Adonde iría? A quien contaría esta historia sin comienzo
ni fin? Que haría con la libertad? No quiero vivir en otro lugar. Necesito permanecer dentro de la
botella donde viví cosas dulces y amargas. Vete a salvar a otros Aladino! Déjame, yo no sé vivir en el
mundo! Mi mundo es la botella y también quiero que sea mi sepulcro. Y tal vez, algún día, dentro de
millones de años –si es verdad que los años pasan- alguien encuentre la botella y un montoncito de
polvo que seré y diga conmovido: “Aquí vivió un enano que enfrentó la vida en esta botella”. Y la tire
al mar. Y entonces, quien sabe, pueda llegar al fin a la Polinesia, al África o a la China, a los mares del
sur. Y hecho cenizas habré cumplido mi sueño. (ESTÉVEZ)

143
Luis Alberto Alonso

Com influências de Lezama Lima e Alejo Carpentier e considerando


Virgilio Piñera como quem lhe abriu as portas do Universo da Literatura,
Estévez conta nas suas últimas produções com títulos como: Os Palácios
Distantes e Teu é o Reino. Ambos editados em Portugal. É considerado um
dos grandes nomes contemporâneos da língua espanhola. Abílio Estévez
mora atualmente em Espanha. Não resistiu, com todo o direito que tem
como ser humano livre e pensador, a continuar vivendo dentro da garrafa.
Outro dos grandes dramaturgos do qual é impossível não falar é Anton
Arrufat, autor de livros de poesia, romances, contos e peças de teatro. A
sua obra teatral mais significativa foi Los Siete contra Tebas (1968). Esta
peça o levou a se converter em um criador perseguido e a sua obra acusada
de contra-revolucionária; como conseqüência de 1968 a 1981 foi afastado
da literatura, desaparecendo das publicações e em troca foi obrigado a tra-
balhar durante nove anos amarrando pacotes de livros em uma Biblioteca
de um bairro de Havana, Marianao. Los Siete contra Tebas teve a sua pri-
meira edição recentemente (2001) em comparação com os 33 anos que
esteve proibida na ilha. Com as suas palavras Arrufat expressou:

Os sistemas políticos que o homem tem inventado não são perfeitos, e por
isto terão que ser sempre renovados e existirá a necessidade de fazer uma
revolução. Talvez não seja violenta no futuro, mas sim democrática. Isto
talvez seja uma ilusão. Mas o homem tem necessidade tanto da Ilusão quanto
da Utopia. (1994, tradução nossa)11

Poderia fazer uma longa explanação do Teatro em Cuba, os dramatur-


gos que não são poucos, os diretores, os investigadores mais importantes,
os críticos e teatrólogos. Mas a importância da informação sobre o teatro
latino-americano e o pouco espaço para publicações me obrigam a fazer
curtas menções que iriam servindo para futuras pesquisa e edições. Contu-
do, não poderia terminar esta resenha sem falar dos mais jovens e contem-
porâneos no Teatro Cubano. Dentre essas figuras sobressaem autores como
Joel Cano (Time Ball-1990) e Victor Varela (La Cuarta Pared - 1988 e
Ópera Ciega - 1991). Entre as agrupações temos El Ciervo Encantado, diri-
gido por Nelda Castillo, Teatro de la Luna, dirigido por Raul Martin, Danza
Abierta, de Marianela Boan e Teatro Buendia. Faltaria citar uma agrupação

11
Los sistemas políticos que el hombre ha inventado no son perfectos y por eso tendrán que ser
siempre renovados y existirá la necesidad de hacer una revolución. Tal vez no sea violento en el futuro,
mas sí democrática. Esto tal vez sea una ilusión. Mas el hombre tiene necesidad tanto de la Ilusión
cuanto de la Utopia. (ARRUFAT, 1994)

144
A poética do...

que foi eixo fundamental neste tema do Teatro “Político”, em Cuba, dirigida
pelo também autor teatral Victor Varela anteriormente mencionado, é o
Teatro Obstáculo, que na sua curta história de vida na ilha conseguiu produ-
zir peças de um alto nível profissional e investigativo, com um discurso de
conceitos profundos, estilo renovado e alta precisão.
Sendo o Teatro Buendia uma agrupação com vinte anos de existência,
quero me deter em um dos seus espetáculos mais significativos, Otra
Tempestad, uma versão de Raquel Carrió e Flora Lauten do clássico A Tem-
pestade, de William Shakespeare, com direção de Flora Lauten.
“Outra Tempestade” estreou no ano 1997 e tem no seu currículo uma longa
viagem que levou Buendia à Austrália, África, quase toda Europa, América e
Ásia. Não só por conter nas suas bases de pesquisa a cultura afro-cubana iorubá
e arará, mas pela apoteose de ilusionismo teatral que este espetáculo cria.
O discurso deste espetáculo está construído sobre as bases de uma
intertextualidade inimaginável, pois gira em volta desta produção uma pes-
quisa com dezenove fontes escritas, desde William Shakespeare até José
Martí. Proximidades orais através de entrevistas, conferências e palestras.
Além de um cabedal de informação já registrado no corpo dos atores atra-
vés de treinamentos que configuraram espetáculos anteriores. Toda uma
erudição de conhecimento, no sentido lato da palavra, que precisou de toda
uma perícia para conduzir este processo investigativo da cena e fixar suas
imagens teatrais e a sua dramaturgia. “Outra Tempestade” tem também a
seu favor a reflexão sobre a nossa formação como nação cubana e as
enramações culturais que entreteceram nosso etnos-nação, um resultado
de um longo, conturbado e contínuo processo de transculturação.
O espetáculo começa no cenário do Velho Mundo, onde, depois de um
naufrágio, passa ao Novo Mundo. Mediante um processo vai-se avistando o
encontro entre os protagonistas de ambos os contextos e como vão se sen-
tando as bases para um futuro projeto no mundo americano. Acabando
num mar de sangue. Tudo resumido às diversas lutas que o nosso continen-
te americano teve que empreender e continua empreendendo contra os
massacres coloniais e as suas sangrentas ditaduras.
Cito um trecho de Raquel Carrió que serve como sinopse e estudo do
intertextual no espetáculo.

Estruturado em quinze quadros, Outra Tempestade narra a história dos


encontros (imaginários e sonhados) entre personagens de Shakespeare e
figuras da mitologia africana no Caribe.

145
Luis Alberto Alonso

Das ruas do Velho Mundo – como uma representação da época – saem


MacBeth, Hamlet, Shylock, Otelo, o Mago Próspero e a sua filha Miranda
num jogo de representações que os caracteriza.

Paralelamente, Sicorax na ilha convoca o oráculo. Mãe de Ochun, deusa dos


rios; de Elegguá, que abre e fecha os caminhos, de Oyá, rainha dois mortos,
e de Calibán, filho de Changó, Sicorax desata tempestade por uma ação
ritual. A expedição de Próspero ao Novo Mundo naufraga no litoral da ilha
e os navegantes são resgatados pelas filhas de Sicorax.

Como num labirinto em que os personagens “não sabem se estão mortos ou


dormidos” se sucedem os encontros e feitiços provocados por Sicorax.
Próspero confunde Elegguá dos montes cubanos com o Ariel do seu reino
perdido; Hamlet sofre a alucinação de Ochun com Ofélia; Otelo reencontra
a Desdémona, Shylock acredita estar na terra prometida e retorna aos dias
da sua juventude, Oyá seduz a MacBeth através da sua mutação em Lady
MacBeth, e Miranda e Calibán encontram o amor numa curiosa subversão
da fábula.

Trata-se de mutações e visões que subvertem a ordem lógica - causal dos


relatos e transgridem os limites das personagens e da ação. Mas no
cruzamento de referências, sonoridades e imagens européias e africanas
não há “vencedores” nem “vencidos” senão o intercâmbio de ritos e ações
que caracterizam o sincretismo cultural próprio de América Latina e do
Caribe. O “Laboratório de Próspero” é o reino da Utopia americana; o
sonho da República Ideal e o universo de contradições que se desatam num
espaço mítico onde todos estão condenados a representar, uma e outra vez,
as suas visões. Daí as mortes rituais e o uso simbólico das máscaras -tipos
num final que nos adverte: “Herdei uma terra arrasada pela Utopia e o
Sangue”. No entanto, o espetáculo quebra o trágico implícito em seus
referentes apelando à figuração de uma Mascarada que cria a possibilidade
das mutações, o jogo intertextual, a mistura, a ironia, a paródia e a hibridação
dos gêneros.

É este contraponto o que faz de Outra Tempestade uma reflexão sobre a


herança e a apropriação cultural. Mas também uma “festa da alma e do
corpo”, um estranho ritual carnavalesco e autofágico e, no final, uma
enramação cheia de metáforas, confissões e relações surpreendentes. (1997,
p. 18, tradução nossa)12

12
Estructurado en quince cuadros, la Otra Tempestad narra la historia de los encuentros (imaginarios
y soñados) entre personajes de Shakespeare y de la mitología africana en el Caribe. Del retablo del
Viejo Mundo como una representación de la época salen Macbeth, Hamlet, Shylock y Otelo. El Mago
Próspero y su hija Miranda en un juego de representaciones que los caracteriza. Paralelamente,
Sicorax, en la isla, convoca al Oraculo. Madre de Ochun, diosa de los rios, de Elegguá, que abre y
cierra los caminos, de Oyá, reina de los muertos y de Calibán, hijo de Changó. Sicorax desata la
tempestad por una acción ritual. La expedición de Próspero al nuevo mundo naufraga en las costas de
una isla y los navegantes son rescatados por las hijas de Sicorax. (continua...)

146
A poética do...

O Teatro Buendia conta com 22 anos. Dentre os espetáculos que estão


atrelados à produção textual se encontram: La Cândida Eréndira (1992),
Las Ruinas Circulares (1993), Otra Tempestad (1997), La Vida en Rosa
(1999), Bacantes (2001), Charenton (2005), Woyzeck (2007) e outras tan-
tas que têm levado Buendia a ser uma agrupação representativa do Teatro
Cubano atual.
As Doutoras Flora Lauten e Raquel Carrió são fundadoras da Escola
Internacional de Teatro de América Latina e do Caribe (EITALC). Desen-
volvem uma pesquisa permanente com o ISTA (International School of
Theater Antropologic) e o Magdalena Project. Flora Lauten foi condecorada
com o título Doutora Honoris Causa da Universidade das Artes de Cuba e
a distinção da Cultura Nacional. Raquel Carrió também tem obtido vários
prêmios pela sua obra como teatróloga, dramaturga e crítica teatral.

A Utopia
Finalmente, qual é a força que a Utopia como eixo central do pensa-
mento de uma nação tem sobre a formação teatral cubana e qual é o legado
que a censura e a repressão têm deixado nesta formação? Um teatro sem
fronteiras, no que diz à sua expressão e à leitura das suas obras? Parece
uma conclusão paradoxal, mas o artista cubano se move dentro do parado-
xo da sua própria existência e isso gera, por conseqüência, uma obra para-

Como en un laberinto, donde los personajes “no saben si están muertos o dormidos” ocurren los
encuentros y hechizos provocados por Sicorax. Próspero confunde Elegguá de los montes cubanos
con Ariel de su reino perdido; Hamlet sufre la alucinación de Ochun Con Ofelia, Otelo reencuentra
a Desdémona, Shylock cree estar en la tierra prometida y retorna a los días de su juventud. Oyá seduce
a Macbeth a través de su mutación en Lady Macbeth, y Miranda y Calibán encuentran el amor en una
curiosa subversión de la fábula.

Se trata de mutaciones y visiones que subvierten el orden lógico-causal de los relatos y transgreden los
límites de los personajes y de la acción. Pero en el cruce de referencias, sonoridades e imágenes
europeas y africanas, no hay “vencedores” ni “vencidos” sino el intercambio de ritos y acciones que
caracterizan el sincretismo cultural propio de América Latina y el Caribe. El “Laboratorio de Próspe-
ro” es el reino de la Utopia americana; el sueño de la República Ideal y el universo de contradicciones
que se desatan en un espacio mítico donde todos están condenados a representar una y otra vez sus
visiones. Por eso las muertes rituales y el uso simbólico de las máscaras-tipos en un final que nos
advierte: “Heredé una tierra arrasada por la Utopia y la Sangre”. Sin embargo el espectáculo rompe lo
trágico implícito en sus referentes apelando a la figuración de una mascarada que crea la posibilidad
de las mutaciones, el juego inter-textual, la mezcla, la ironía, la parodia y la hibridación de los géneros.

Es este contrapunto que hace de “La Otra Tempestad“ una reflección sobre la herencia y la apropiación
cultural. Pero también una “fiesta del alma y del cuerpo”, un extraño ritual carnavalesco y autofagico.
(CARRIÓ, 1997, p. 18)

147
Luis Alberto Alonso

doxal no seu complexo enredo de símbolos e significados, ao mesmo tempo


em que a enriquece com a multiplicidade de leituras que oferece. É como se
conseguíssemos olhar uma imagem que projeta um prisma o qual vai dar a
cada imagem projetada um valor diferente em função do ângulo de coloca-
ção tendo como referencial uma parede.
Por outro lado, o teatro cubano mais engajado, investigativo e laboratorial
desenvolve, de alguma maneira, um novo surrealismo, pois está permeado
por um universo carregado de sonhos e de loucura que a própria Utopia e
Censuras geram.
Um teatro de multiplicidades geográficas, de multiplicidades étnicas e
de uma riqueza conceitual elevada, junto a um pensamento pós-dramático
que engatilha a palavra tanto falada como gestuada13 dentro de um Univer-
so de múltiplas idéias e leituras.

La Habana, 2003.
Atualização, tradução e revisão. Salvador, 2008.

13
Neologismo do autor criado a partir do substantivo gesto, transformando-se em particípio que
significa palavra transformada em gesto, palavra gestuada.

148
A poética do...

BIBLIOGRAFIA

ARRUFAT, Antón. La Muerte en Vida - Virgilio Piñera: entre él y yo. La Habana,


Ediciones Unión, 1994.
CARRIÓ, Raquel. Ironias y Paradojas del Comediante. In: Teatro y Modernidad:
siete ensayos de ficción. La Habana, editora 1997.
ESTÉVEZ, Abilio (em entrevista). De lo que se habla no se escribe. La Habana,
Periódico Juventud Rebelde, 2001.
ESTÉVEZ, Abilio. El Enano en la Botella. (texto não publicado).
ESTORINO, Abelardo. Teatro Escogido. La Habana, Editorial Letras Cubanas, 2003.
GUEVARA, Alfredo. Revolución es lucidez. La Habana, Ediciones ICAIC, 1988.
HANS-THIES, Lehmann. Teatro Pós-Dramático. São Paulo, Editora Cosac Naify,
2007.
LAUTEN, Flora e CARRIÓ, Raquel. Otra Tempestad. La Habana, Ediciones Alarcos,
2000.
MATEOS-VEGA, Mónica. Un escritor vale si se prepara para morir con sus
palabras: José Triana. Periódico La Jornada, 2001.
PAVIS, Patrice. Diccionario de Teatro. São Paulo, Editora Perspectiva, 2003.
PIÑERA, Virgilio. Teatro Completo. La Habana, Editorial Letras Cubanas, 2002.
RODRÍGUEZ, Carlos Rafael. Letra con filo. La Habana, Editorial de Ciencias Sociales,
1983.
SEVILLA, Eugenia. Cultiva Arrufat el Olvido Como Cura. México, Periódico Refor-
ma, 2001.

REVISTAS

El Caimán Barbudo, La Habana, 1966.


La Gaceta de Cuba, La Habana, 1962.

149
SOBRE OS AUTORES

Inés Pérez-Wilke

Venezuela

Possui graduação em Artes Visuais (Venezuela, 1998), professora na


área de comunicação na Universidad Bolivariana de Venezuela nas discipli-
nas de Semiótica e Comunicação Popular, com trajetória em teatro comu-
nitário e social. Atualmente é mestranda junto ao Programa de Pós-Gradu-
ação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.

Paula Fernández

Argentina

Atriz, professora de jogos dramáticos, Professora Superior de Teatro


e Licenciada em Teatro, formada pela Faculdade de Arte da U.N.C.P.B.A.
(Tandil- Argentina). É Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, é diretora
de teatro. Atualmente trabalha como pesquisadora no CID (Centro de In-
vestigações Dramáticas) e como professora nas disciplinas de Direção Tea-
tral e Prática Integrada II da carreira de Teatro, na Facultad de Arte de la
Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires.

151
Héctor Andrés Briones Vásquez

Chile

Doutorando e Mestre (2005 – 2006) em Artes Cênicas pelo Progra-


ma de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia,
Ator e Licenciado em Atuação pela Pontifícia Universidad Católica de
Chile (1994 – 1999), vem se especializando no âmbito acadêmico na teo-
ria e história do teatro do século XX e seus desdobramentos no teatro
latino-americano.

Angela de Castro Reis

Brasil

Atriz e pesquisadora do teatro brasileiro, Doutora e Mestre em Teatro


pela Uni-Rio. Professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, é autora dos livros
Cinira Polônio, a divette carioca (1999) e A tradição viva em cena: Eva
Todor na Companhia Eva e seus artistas (2007).

Leonardo Sebiani Serrano

Costa Rica

Possui graduação em Atuação pela Universidad Nacional Costa Rica


(2003), Licenciatura em Docência pela Universidad Estatal a Distancia
(Costa Rica, 2006), Mestrado em Ciências do Movimento Humano pela
Universidad de Costa Rica (2007) e atualmente é mestrando do Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da
Bahia.

152
Consuelo Maldonado Toral

Equador

Possui especialização no Ensino da Arte Teatro - Universidade Federal


de Alagoas e graduação em Bacharelado em Artes - Universidad San Francis-
co de Quito (1995). Ministrou aulas como professora substituta no curso de
Licenciatura em Teatro – Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e no
Curso Técnico Profissionalizante do Ator-Atriz da Escola Técnica de Artes
- UFAL (2007-2008). Tem experiência na área de teatro e dança, atuando
principalmente em: improvisação, ação cênica e dramaturgia do ator.

Manuel Guerrero

Peru

Ator pela Escuela de Teatro de la Pontifícia Universidad Católica del Perú


(ETUC). Bacharel em Artes Cênicas, Hab. Direção Teatral pela Universida-
de do Rio de Janeiro (UNI RIO). Docente nas disciplinas de Interpretação
e Direção em universidades e ONG no seu país. Atualmente é Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da
Bahia, onde desenvolve uma pesquisa sobre literatura dramática peruana.

Luis Alberto Alonso

Cuba

Diplomado pela Escola Nacional de Arte de La Habana, Cuba. Integrou o


Instituto Superior de Arte (ISA), de Havana Cuba durante três anos. Formou
parte da primeira companhia de teatro de Cuba, Teatro Buendía. Integra o
grupo Internacional Ponte dos Ventos, sediado na Dinamarca, dirigido pela
atriz fundadora do Odin Teatret, Iben Nagel Rasmussen. Ingressou na Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA) como aluno especial na Escola de Teatro.
Atualmente é aluno do curso de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da
UFBA. Diretor do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia (FILTE).
Presidente do Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste (NORTEA).

153
COLOFÃO

Formato 17 x 24 cm

Tipologia Dutch801 Rm BT

Papel Alcalino 75 g/m2 (miolo)


Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)

Impressão Setor de Reprografia da EDUFBA

Capa e Acabamento ESB - Serviços Gráficos

Tiragem 000 exemplares

154

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