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Ep 02 - Quem ocupa a praia

Cavaleiros do mar de aruanda

[Som de navio no mar: Fade In]

[Caetano Veloso / Triste Bahia (looping na percussão): Fade In]

Loc 1: Desde 1415 os portugueses vinham navegando pela costa ocidental do continente
africano. Em 1500 eles (tom irônico) “descobrem”, ou melhor, invadem um território que já
se encontrava ocupado por milhões de pessoas, que falavam milhares de línguas e
centenas de etnias.

Loc 2: Então, o colonialismo uniu violentamente as duas pontas do Atlântico. Nesse


processo, surge a cultura brasileira e nosso país com nome de brasa.

Loc 1: Foi pelo mar que vieram para o Brasil povos como os iorubás e os bantus,
arrancados de suas nações na África.

Loc 2: E foi pelo mar que tupinambás, tremembés e outros povos originários da América
viram os portugueses chegando pela primeira vez.

Loc 1: Pavoroso mar: desse encontro entre litorais tão distantes, surgiram novas formas de
espiritualidade. Afinal, o mar que exila é o mesmo que pode carregar de volta pra casa.

Loc 2: Apesar da repressão da Igreja e da Coroa portuguesa, religiões africanas como o


Candomblé e religiões afro-brasileiras como a Umbanda floresceram em nossas terras, e
elas têm, como você ouviu, um longo histórico de relação com o mar.

Loc 1: O Laboratório de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará apresenta, Quem


ocupa a praia - cavaleiros do mar de aruanda.

[Som total: Fade out]

[Legend of Legaia OST / World Map Theme: Fade In]

Pai Wagner [00’00’-00’57]: A praia é lugar de lazer; a praia é lugar de obrigação; a praia é
lugar de buscar a vida. Porque onde tem água tem vida. Porque você sai na praia, andando
na areia, nós temos o que comer. E quando não temos o que comer temos o que buscar,
temos um marisco no mar, um caranguejo. A gente pega aquele caranguejinho, bota numa
isca, e ali já é isca para pegar um peixe para alimentar uma família.

Loc 2: Imaginem que nós gravamos essa voz numa concha do mar. O dono dela é Pai
Wagner.

Loc 1: Ele é pai de santo e coordena um terreiro de Umbanda em sua casa no Centro de
Fortaleza.
[Legend of Legaia OST World Map Theme: Fade out]

[Os Tincoãs / Deixa A Gira Girá (looping na percussão): Fade In]

Pai Wagner [00’57”]: Eu sou daqui de Fortaleza. Inclusive, nasci perto da praia. Eu sou da
Barra do Ceará, eu sou do tempo que a Barra do Ceará era selvagem, muito morro, eu vou
fazer 57 anos, 50 dedicado a Umbanda.

Pai Wagner [03’35’’-04’10’’]: Minha mãe era crente, protestante. A umbanda entrou na
minha vida, eu tinha seis pra sete anos. Eu tinha um tio e uma tia que frequentavam a
umbanda, mas naquele tempo era escondido.

Pai Wagner [04’10”-04’48”]: A Umbanda, ela já sofreu vários preconceitos. Até eu peguei
preconceito da Umbanda. A pessoa, se entrasse na minha casa pra falar com o orixá,
tivesse doente, uma precisão, rezasse, dizia comigo, ‘se você me ver na rua, não fale
comigo não, porque se você falar comigo vai ligar porque você é macumbeiro, eu não sou.
Então ninguém queria ter amizade com macumbeiro.

[Os Tincoãs / Deixa A Gira Girá (looping na percussão): Fade out]

[Os Tincoãs / Ogundê: Fade in]

Loc 1: Conforme o estudo de Linconly Jesus Alencar Pereira, babalorixá e pesquisador, os


primeiros registros de religiosidade afro-brasileira em Fortaleza remontam aos anos 30, e
guardam as marcas desse preconceito relatado por Pai Wagner.

Loc 2: Podemos ler em uma matéria de 8 de abril de 1934:

Voz glitch: ‘O Arraial Moura Brasil está apresentando quasi todas as características de uma
favela Carioca. Samba, bebedeiras, lutas, complicações e agora para completar a
equivalência, surge, com toda a sua altivez pagã, a Macumba filha da ignorância e do
desespero’

Loc 1: Os bairros litorâneos Barra do Ceará, Moura Brasil e Pirambu são o berço da
Umbanda em Fortaleza.

Loc 2: Historicamente marginalizado pelo poder público desde o século XIX, esse trecho do
litoral fortalezense concentrava uma vida cultural própria, reprimida pelas elites locais que
mantinham ao mesmo tempo distância e controle sobre esse espaço.

[Os Tincoãs / Ogundê: Fade out]

[O Mar Serenou / Clara Nunes (canta os dois primeiros versos, depois looping na
percussão): Fade in]

Loc 1: Filha de mãe de santo e pesquisadora, Sheila Sousa Araújo conta em sua
dissertação que, nos anos 60, houve um movimento de federalização dos terreiros de
Umbanda.
Loc 2: Mesmo com o contexto do regime militar favorecendo o conservadorismo e o
preconceito, os terreiros se organizaram politicamente para conseguir registro nos
departamentos de polícia.

Loc 1: Dessa maneira, tinham uma base legal mínima para funcionarem.

Pai Wagner [0”-04’48”]:Olha que foi o tempo da ditadura para conseguir o liberar uma
religião foi fogo nós fizemos passeata antes, se você fizer a pesquisa / quantos macumbeiro
era preso mutilado? / Aí a gente tem que brigar até para ir para praia, minha filha.

Pai Wagner [11’14”]: Foi a primeira religião a acolher homossexuais, que ninguém acolhia.
Foi a umbanda. Foi a primeira religião a acolher mulheres que tinham filho que não era
casada.

Pai Wagner [02’06”]: A umbanda é uma religião que louva a vida. A água porque Iemanjá é
a mãe de todas entidades, tanto faz, o preto velho, o orixá da Mata, o orixá do mar, até Exu
se curva a Iemanjá, é uma força muito grande.

Pai Wagner [02’57”]: Porque Iemanjá é a mãe, é acolhedora, é a protetora… é aquela que
nos defende, aquela mãe que na precisão você Iemanjá, me ajude, minha mãe, me proteja,
quando a gente tem uma precisão… nós vivemos, Por acaso você, você tá passando uma
fase ruim, não tem dinheiro, não tem o que comer, garanto que na casa de sua mãe tem. E
se ela tem ela não vai lhe faltar. Né verdade? E assim é Iemanjá para a Umbanda.

[O Mar Serenou / Clara Nunes (canta os dois primeiros versos, depois looping na
percussão): Fade out]

[Legend of Legaia OST Ra-Seru Speaking: Fade in]

Loc 1: O nome dessa divindade que representa a mãe das águas para o Candomblé e para
a Umbanda vem do iorubá: Yèyé Omo ejá (mãe cujos filhos são peixes).

Loc 2: A origem de Iemanjá está na mitologia dos Egbá, uma das nações iorubás da
Nigéria, e seu culto é muito popular no Brasil.

Loc 1: Os adeptos de Iemanjá usam colares de contas de vidro transparente e vestem


preferencialmente o azul-claro.

Loc 2: O axé da divindade, ou seja, sua energia, está presente nas conchas e pedras
marinhas.

Loc 1: Pai Francisco, babalorixá de um terreiro de Candomblé na Granja Lisboa, bairro da


região oeste de Fortaleza, também conversou com a gente e comentou sobre essa figura do
mar para a sua tradição religiosa.

Pai Francisco: O mar é um lugar sagrado, ele é puro certo o mar, ele é abençoado porque
ele só foi das águas do mar que foi salvo o reinado do nosso grande rei Xangô, já no
candomblé / ele pega o carrego e devolve para fora certo toda a impureza ele bota para
fora. Ele não fica com nada de impureza dentro dele.

Pai Franscisco 35’45”: Até a terra que a gente pisa lá é sagrada, porque a terra que a gente
pisa a gente traz pra dentro do nosso sagrado, porque a gente precisa pros nossos
assentamentos, existe um orixá dentro do Candomblé, que ela pega a areia de praia, os
exus pegam a terra de praia, então até a areia da praia onde a gente pisa ela é sagrada.
Ela é usada para o Encantado, ela é usada para o sagrado.

Loc 2: Apesar de o Candomblé ser mais antigo que a Umbanda, ele só começou a ser
praticado em Fortaleza a partir da década de 70.

Pai Francisco [44’50”]: Não existe como a gente comparar com outra religião / o Candomblé
para terminar e a Umbanda são duas religiões que aceitam os excluídos

Loc 1: Pai Wagner explicou ainda que as giras, que são como se chamam os cultos na
Umbanda, possuem uma energia diferente se acontecem no espaço do terreiro ou se
ocorrem no espaço praiano.

Pai Wagner [15’45”]: Porque o mar, tem mais vida no mar do que na terra. O mar tem tanta
vida que ninguém ainda descobriu o potencial dele. E é a coisa mais indomável, o mar e a
Lua trabalham igual. E o vento. Sabia? Quando a lua tá cheia, a maré é cheia.

Pai Wagner [15’45”]: O culto aqui dentro, ele é bom, mas é fechado. O culto na praia é
aberto. Você tá ali com aquele cheiro da maresia. Você tá vendo Deus na sua frente, não é
imagem de ninguém, né? De nada. Porque Deus a gente não vê num pedaço de gesso.
Para mim, isso é um pedaço de gesso. Apesar de eu gostar de ter uma imagem bonita aqui,
meus bibelôzinhos (risos). Mas [aqui] você tem a representação, e lá você tem a realidade,
na beira da praia. É lá que você vê aonde Deus mostra o poder dele, e a Natureza mostra
toda força, porque não tem poder maior do que das Águas.

Pai Wagner O poder do fogo é muito grande, mas o poder das águas é maior. A água, ela é
tão poderosa que ela cai. Entendeu? Deus manda a chuva, porque a água não é só o mar,
é todas as chuvas, não é verdade? Quando a água cai na quantidade certa nós temos um
um bom inverno, que ele alimenta que ele frutífera. Todo mundo tem tudo.

Pai Wagner Quando ela vem em demasia, como esse ano ela veio, destruindo várias
cidades lá no Maranhão, aqui mesmo no Ceará. E a água também o povo pega fechando
uma lagoa, canaliza um corrente. O poder dela quando vem destrói tudo porque ela vem
buscar o que é dela. Não adianta, é a única força do mundo maior é a força da água. Que
ela é a força que constrói e a força que destrói. A água alimenta e a água destrói, a água
cura e a água mata.

Pai Wagner Nós podemos passar três dias sem comer, mas sem beber nós não
aguentamos um dia.

[Ponto de Iemanjá / Eu fui na beira da praia: Fade In - Fade out]

[Vinheta Marés: Fade In]

Loc 1: Então, meus povos do mar, termina aqui mais um episódio do Quem Ocupa a Praia.
Loc 2: A gete espera que vocês tenham gostado dessa experiência e, se curtiram,
compartilhe nosso trabalho pra outras pessoas pegarem essa mesma onda.

Loc 1: O quem ocupa a praia faz parte do projeto Marés, desenvolvido pela turma de
Laboratório de Jornalismo II

Loc 2: Do semestre 2023.1

Loc 1: Da Universidade Federal do Ceará

Loc 2: Com orientação das professoras Rosane Nunes e Naiana Rodrigues

Loc 1: Continuem navegando nessa praia, porque no próximo episódio, vamos falar sobre
como a praia do Pirambu serve de inspiração pra quem produz arte.

Loc 2: Até a próxima maré!

[Som: Fade out]

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