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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

´´Júlio de Mesquita Filho´´


Câmpus de Araraquara

Kananda Emanuela Novaes da Silva


Lorraine Duran Beduschi
Paulo Henrique Pimenta
Renan Paes Nascimento

“ALEGRANDO AS ESTRELAS” , POEMA KASHINAWÁ: UMA ANÁLISE

Segunda entrega do relatório de análise do poema


solicitado para a disciplina Linguagem da Poesia,
ministrada pela Profª Drª Fabiane Borsato, no
período noturno, realizada no segundo semestre de
2019.

Araraquara
2019
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO p. 2

1 COMENTÁRIOS p. 2

1.1 DIVISÃO ENTRE SEXOS p.4

1.2 A ARARA VERMELHA p.4

1.3 NAMBU E SAMAÚMA


p.6

1.4 YUBE - VERSÕES DO MITO FUNDADOR


p.7

2 ANÁLISE DO POEMA p.8

3 INTERPRETAÇÃO p.15

REFERÊNCIAS p.17

ANEXOS
p.18
Alegrando as estrelas

1
INTRODUÇÃO

O presente trabalho desenvolveu-se a propósito da disciplina Linguagem da Poesia,


ministrada pela Profª Drª Fabiane Borsato, na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara.
Nossos objetivos são propor algumas interpretações para o poema “Alegrando as estrelas”, da
tribo Kashinawá, a partir da tradução feita por Daniel Bueno. Tratando-se de um poema
ameríndio e do apagamento de suas histórias e culturas na identidade cultural brasileira,
especialmente nos espaços de produção científica, à guisa de introdução e a fim de
fundamentar nossas análises, expusemos algumas das principais informações que concernem
à história e à cultura Kashinawá.
Como recurso metodológico, nos valemos do método proposto por Antonio Candido
na obra “O Estudo Analítico do Poema” (1996) sedimentando nossas hipóteses a partir dos
processos de i. dados contextuais e comentários para situar o poema como um produto
cultural kashinawá; ii. análise do ritmo e da forma da poesia e , por fim, iii. interpretação a
partir dos resultados obtidos nas análises e nas informações contextuais.

1 COMENTÁRIOS

Os kashinawás habitam a região fronteiriça do Brasil com o Peru, na Amazônia. No


Brasil estão localizados no estado do Acre. Apesar dos kashinawás brasileiros e peruanos
terem se separado no começo do século XX, ainda mantém alianças e a mesma denominação.
No entanto, possuem características culturais que divergem entre si.
O povo kashinawá tem como tradição sagrada o xamanismo, cujos rituais apoiam-se
em bebidas enteógenas, como nixipae (ayahuasca), que faz uma ponte desses indivíduos com
o sagrado. Durante seus diversos rituais, a tribo geralmente utiliza-se de cantos e danças que
são estruturadas de forma cíclica e repetitiva, que diferem-se para finalidades específicas1.
Um de nossos principais referenciais teóricos foi a tese de doutoramento de Guesse
(2014), que transcreve o relato de um kashinawá, Isaías Sales Ibã Kaxinawá, sobre o consumo
da bebida sagrada e os cantos que acompanham o ritual. Convém transcrever abaixo:

[...] eu vou falar sobre o Hunimika. Hunimika pra Huni, pra tomar huni
(Huni é o homem Kaxinawá que surgiu pra beber cipó), tu vai pro mato e tira
o cipó, e tira com a folha junto, e volta pra casa e prepara separado. Não

1
Essas informações foram extraídas do site <www.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Huni_Kuin_(Kaxinawá)​>, essa fonte é uma importante referência para
buscas sobre comunidades indígenas brasileiras.
2
mostra pra ninguém[...] mostra só quando pronto [...] Tem umas casas
próprias pra preparar. Não mostra comida pra ninguém. Cipó é coisa mais
sagrada. É o espírito mais seguro. Está perto com a gente. Nós estamos
falando dele, ele está aqui com a gente. O preparo começa às 7 horas. E o
trabalho é com sol. Cozinha até 7, até 8 horas. Vai preparando ela.
Esperando pra não subir mais a pressão, a temperatura do fogo. E tem que
secar. Pode botar assim uns oitenta litros, cem litros de água. Pode ir
apurando, vai cozinhando, vai cozinhando até dar tarde. Fica assim um litro
ou dois litros. Bem apurado. Aí vocês convidam o povo que já tomou com
vocês. É só a equipe. Essa é uma festa maravilhosa também. É festa de
miração. Festa de uma noite bem clara. Você fica rodeando assim sentado.
Nós temos um banco comprido pra receber a força da lua. A lua saindo você
pode começar a tomar. Sem lua também você não pode mexer no cipó. Cipó
é uma coisa do claro. [...] Aí você vai tomando assim no silêncio. Começa às
9 e pode ir até demanhecer. É uma festa muito grande também. ​Os lugares
são preparados. [...] Dentro do cipó quem tem medo de cobra e lagarto
também não pode nem entrar nesse meio. Mostra tudo. O cipó, ele traz
cobra, jibóia, lagarta, até que você vai gritar, percebe que é verdade mesmo.
E vomita também. [...] Esse ritual é de limpar, de curar. Enquanto não tem
vômito, fica ainda a mesma coisa. Então você recebe do vômito muita saúde,
você recebe mais energia do cipó. A realidade de cipó é só um canto que está
rodando, segura pelo braço assim e fica sentado cantando. [...] ​Nai kawa é
música pra não deixar o cipó dominar o corpo da gente. Você tem que
dominar junto, trocando uma idéia. Você fala com ele. Cantoria do cipó, eu
falo com o cipó. Por acaso, a igreja onde vocês freqüentam, vocês pedem a
força do verdadeiro, de Deus. Então é a mesma coisa, você está pedindo
força e conversando com ele. Nai é o céu. Nawa é nai. Nai é o céu. Basa é
macaco. Maxeri é o urucum. Você está mirando junto com o cipó, você vê as
cores. Todo um arco-íris. [...] Na hora em que vocês tomam cipó, vocês
sentem muito frio. Vocês têm que pôr uma roupa bem protegida. Senão pode
ficar adoecendo mesmo. Tem que falar junto com eles. [...] Você toma o cipó
e se não sente nada, a força, tem que chamar, né? Essa pode agüentar, tem
que segurar mesmo, na rede mesmo. Essa aqui você chama a força e depois
tem que mandar tirar também, abrandar a força ( KAXINAWÁ;
KAXINAWÁ apud GUESSE, 2014, p. 184, grifos nossos).

Ademais, o mito fundador do povo kashinawá consiste na história de Yube, que


também explica o uso de nixi pae em rituais:

“Segundo as crenças kaxinawá, Yube é a detentora dos conhecimentos,


símbolo da sabedoria e responsável pelo ensinamento e transmissão desses
conhecimentos para os homens. [...] Também foi Yube, metamorfoseada em
uma linda jovem, quem ensinou ao homem o preparo e as canções do nixi
pae” (GUESSE, 2014, p. 188)

Acrescenta ainda que:

O dono do nixi pae é a mesma sucuri que deu às mulheres o desenho, mas
desta vez ela é uma jovem mulher cuja aparência leva o homem a se esquecer

3
da caça e da família para deixar-se levar para o mundo embaixo d’água.
Através da aventura que o levou quase à morte, ele aprendeu e trouxe para seu
povo o segredo da bebida que dá acesso aos mundos invisíveis dos seres da
água, do céu e da floresta (apud GUESSE, 2014 p. 188)

Guesse (2014), com base nos estudos de Lagrou, afirma que Yube teria dado aos
homens o nixi pae e para as mulheres o kene, que seria o desenho corporal, e o desenho
geométrico para estampar objetos, remetendo as escamas de uma cobra e simbolizando a
ciclicidade
No que se refere à ciclicidade, o tempo para os kashinawás não é entendido de forma
linear e sim cíclica, pelo fato desses povos observarem a passagem do tempo a partir dos
recursos da natureza, a exemplo: mudanças climáticas, o desenvolvimento da vegetação, fases
da lua, etc.

1.1. DIVISÃO ENTRE SEXOS

A organização social do povo kashinawá tem como base a divisão e separação entre os
gêneros masculino e feminino, se tornando mais acentuada do que a separação por faixa
etária, isso de deve ao fato de que a socialização de gênero é iniciada muito cedo entre os
kaxinawás e define as tarefas que serão realizadas pelos indivíduos.
As mulheres ocupam-se da preparação do alimento, o plantio e a colheita do algodão e
também a preparação de cestos de uso doméstico, dentre eles “ ​hewe tawa (​para guardar suas
penas). Segundo Lagrou, a mulher só faz cesto para seu próprio uso e não pode fazer cesto
para o homem guardar suas penas de jeito nenhum.” (GUESSE, 2014, p. 172) . Além disso,
são responsáveis por atividades artísticas como o desenho geométrico, corporal, a produção
de cestos e a estampa dos mesmos, e atividades cotidianas relacionadas ao dia-a-dia da
comunidade interna. Já os homens, se ocupam de atividades externas relacionadas à proteção
da tribo, a caça, lidar com o perigo provindo do contato com outras tribos e não-índios. .
A relação com o espiritual e o sagrado também se divide por gênero, segundo Guesse,
a tribo considera características de produtividade intimamente ligadas ao gênero, como:

“segundo a crença kaxinawá, a capacidade produtiva dos homens está


relacionada à sua função de lidar com os perigos do mundo externo – a
floresta, o sobrenatural, a cidade. Já a mulher tem sua capacidade produtiva
relacionada aos afazeres internos da comunidade, trabalhando dentro das
aldeias e transformando elementos exteriores, trazidos pelos homens, em

4
elementos propriamente kaxinawá (alimento e artesanato, por exemplo).
Enquanto as funções masculinas exigem coragem, nas femininas os perigos
são poucos e a coragem menos necessária; de acordo com McCallum (1996,
online), apenas ao dar à luz as mulheres são consideradas mais corajosas do
que os homens. “ (GUESSE, 2014 p.178)

E ainda:

“O destino dos mortos é tornarem-se Nai Yuxibu (“Deuses do Céu”) e essas


capacidades produtivas, diferentes entre homens e mulheres, vão determinar
processos também diversos pelos quais os mortos passarão até atingirem seu
objetivo. ” (GUESSE, 2014 p.179)

De acordo com Guesse (2014), para os kaxinawás haveria uma diferença entre a alma
de homens e mulheres, e isso se daria pelas “vivências, experiências e conhecimentos
adquiridos ao longo da vida”, ou seja, não seria absolutamente pela diferença biológica e sim
pelas atividades atribuídas e exercidas durante a vida.

1.2. A ARARA VERMELHA

Durante nossas pesquisas acerca dos termos que nos faltavam referências do canto
“Alegrando as estrelas”, nos deparamos com uma outra tribo denominada “araras vermelhas”
e em conjunto decidimos adicionar as informações que coletamos. A tribo dos Arara é
essencialmente guerreira e de acordo com o que encontramos, formulamos uma hipótese do
canto remeter aos araras, devido a um possível encontro dessas tribos. É importante reiterar
que formulamos apenas hipóteses e sugestões acerca da interpretação dos termos, pelo fato de
não ter sido possível o estudo do poema na sua língua de origem.
Na cultura da tribo dos Arara, há o mito de origem da vida terrena, ou seja, o chão.
Isso porque houve um grande conflito entre parentes no céu, gerando um cataclisma (grande
inundação). Assim, o mundo terreno foi o espaço no qual foi firmado um acordo político entre
esses parentes. No entanto, como forma de punição, aqueles que foram considerados
causadores do conflito inaugural, foram condenados a morar no mundo terreno. Como forma
de prevenir um novo conflito, foi criado um pequeno subgrupo para as temporadas de pescas
e festas. Desse modo, deu-se origem à vida fixada no chão. 2

2
Encontramos informações sobre os Araras Vermelhas em: <​https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Arara​>
5
O mito também faz referência ao mito de origem Ukarãngmã, que em uma tradução
bem próxima, significa “povos das araras vermelhas”. Isso se dá de modo a referenciar essas
aves que, tentavam levar de volta ao céu aqueles que de lá caíram logo após a tragédia que
originou a vida no mundo terreno.
É importante destacar que os Araras são uma tribo guerreira que retiravam de seus
inimigos partes de seu corpo como troféu. No entanto, suas interações com o mundo exterior
mostraram-se pacíficas e atualmente mantém uma boa relação com a comunidade não
indígena. A maioria dos índios da tribo Arara hoje em dia está em uma aldeia criada pela
FUNAI.

1.3. NAMBU E SAMAÚMA

Ambos os elementos são característicos da região onde se localizam tribos indígenas,


no norte do país. Guesse, coloca o significado dos dois elementos com a finalidade de
informar e auxiliar o leitor ao ler narrativas indígenas.

Para nambu há a seguinte definição:

“nambu: inhambu; inambu; ave da região amazônica, parecida com a galinha


d'angola, possui ovos azuis e um cantar muito bonito; tem a ausência de
cauda como a característica principal, anda no chão e quase não voa; são 14
as espécies brasileiras, variando apenas no tamanho e no colorido (algumas
têm a cor uniforme e outras apresentam linhas escuras no dorso e nas asas);
os dois sexos também quase não se distinguem; alimenta-se de frutos e
sementes; sua carne é muito apreciada pelos indígenas.” (GUESSE, 2014,
p.219)

E samaúma:

“samaúma: árvore rainha da floresta, de crescimento rápido; a mais alta


árvore da Amazônia e alcança até 65 m de altura; considerada sagrada por
várias tribos indígenas e cultuada como a mãe da Humanidade; sua copa
grandiosa abriga um pequeno ecossistema.” (GUESSE, 2014, p. 219)

Ainda, segundo a lenda da “Mãe Samaúma”, a árvore tem uma porta invisível aos
olhos dos homens em sua base. Essa porta serve para conectar o mundo humano com o
universo espiritual. Na lenda, o marido de uma curandeira foi picado por uma cobra, e ela,

6
nada conseguiu fazer a respeito. Passado o período de luto, ela se dedicou para achar um
remédio que curasse picadas de cobra. Empenhada em sua busca, descobriu que o tubérculo
de uma planta curava e imunizava o veneno da cobra. Mas, o filho da curandeira foi picado
por uma cobra e o remédio de nada adiantou. Desesperada, temendo pela vida de seu filho,
usou rapé (pó resultante da folha tabaco) para se conectar com o espírito da planta e suplicar
para que seu filho vivesse. Como proposta, ela disse que viveria na base da árvore como
espírito. O pedido foi atendido e ela se transformou na Mãe Samaúma, aquela que protege as
plantas e os animais da natureza.3

1.4 Yube - Versões do mito

Os mitos são narrativas sagradas que geralmente retomam o tempo da criação do


universo e as coisas do mundo. Possuem uma amplitude coletiva para explicar versões do
mundo e do povo, que implica em crença, manifestadas em ritos e situam-se fora do tempo
humano e cronológico. Para a tribo Kashinawá, nas pesquisas encontram-se duas diferentes
versões da divindade Yube.
A primeira, anteriormente exposta, concebe Yube como uma entidade feminina,
detentora dos conhecimentos e responsável por transmitir os conhecimentos aos homens.
Além de ensinar o preparo e as canções do cipó. Essa versão, na análise do poema e na
interpretação, nos pareceu mais coerente.
Outra versão, é que segundo o mito criador da tribo Kashinawá, Yube se apaixona por
uma mulher cobra, após vê-la copulando com uma anta e retornar às águas como uma sucuri.
Então, fascinado, também sente o desejo de copular com ela e a atraí fora do rio quando joga
um jenipapo na margem. Após o ato, decidem se casar e , assim, ao acompanhá-la no fundo
do rio, Yube também se torna uma sucuri. No entanto, ele não conta a nova esposa que tem
uma uma família humana.
Yube e a mulher sucuri, então, tem filhos. Após um tempo, um peixe que estava sendo
caçado por sua esposa, o convida para subir até a margem do rio. Ao aceitar e retornar à
margem, ele se transforma novamente em humano. A mulher-sucuri, juntos a seus filhos, vai
até a margem e pede para que o marido retorne para o rio, mas a resposta de Yube é negativa.

3
​Essas informações foram retiradas do site
<​https://www.xapuri.info/cultura/mitoselendas/a-lenda-mae-samauma/​>
7
Então, seu sogro, tenta engoli-lo para que ele retornasse ao rio a força. O homem consegue
segurar em um galho de árvore e pedir ajuda a sua família humana que aparece para tentar
ajudá-lo, cortando o pai da mulher sucuri com uma faca. Embora estivesse a salvo, estava
muito ferido e pede para que fosse preparada para ele um chá de ayahuasca, como forma de
cura. Apesar do esforço, Yube acaba morrendo.
Para Guesse (2014), no entanto, acrescenta que Yube era a figura de uma anaconda
mítica que transmitia conhecimentos aos homens. Yube quem também se transformou em
uma jovem para ensinar ao homem canções e preparação no ​nixi pae.​ É a partir desse mito
que também explica o uso do chá de ayahuasca.

2 ANÁLISE DO POEMA

Guesse na tese intitulada ​Shenipabu Miyui: literatura e mito (2014) a partir dos
estudos de Lagrou (1996) afirma que as canções das quais a tribo Kashinawá chama de ​Huni
Meka,​ fazem parte da segunda fase dos efeitos da bebida feita pelo cipó, a chamada ​nixi pae.​
De acordo com a autora, a bebida faz com que o indivíduo comece a enxergar coisas que
antes não via, numa transe provocada pela bebida sagrada, que faz uma conexão dos corpos
com o sagrado e a ancestralidade da tribo.
Utilizando o texto de Matos (1999) em ​A canção da serpente: poesia dos índios
kaxinawá , afirma que é possível identificar dois tipos de gêneros discursivos nas canções da
tribo: em prosa, que são as narrativas, e em verso, que são os cantos, sendo essa última uma
“floresta obscura e inexplorada” (MATOS, 2008, p. 176), e que por isso, resolveu começar
um trabalho sobre a poesia dos Kashinawá. Sublinha-se que essas duas modalidades de cantos
e ritos são práticas da tradição oral.

Em texto intitulado “A canção da serpente: poesia dos índios kaxinawá”


(1999), Matos trata, de forma mais específica, das características dos ​Huni
Meka​. A autora diz que ‘Como em outras culturas indígenas, a poesia
kaxinawá é basicamente uma poesia cantada, ou, como diz Antonio Risério,
uma ‘poemúsica’. Nela se podem distinguir vários gêneros e linhas
temáticas: cantos de trabalho, de festa, de sedução, ____” Joaquim Mana
Kaxinawá (2008) nos diz que há os cantos de festa (chamados pelos
kaxinawá de ​Katxa ​e cantados na festa do plantio e da colheita, ​Katxanawa​),
os cantos de cura (utilizados especificamente pelos pajés), os cantos
religiosos (cantos sagrados, utilizados para afastar o espírito de alguém que
morreu; só os velhos sábios sabem ainda cantá-los) e os cantos de

8
provocação entre homens e mulheres (cantados na festa denominada ​Kaxi
ixaka​). (apud GUESSE, 2014, p. 187)

Os cantos em versos dos Kashinawá são fortemente relacionados com o consumo da


bebida alucinógena ​nixi pae,​ do cipó. Os poemas, na maioria das vezes, surgem como
consequência das visões espirituais dos kashinawás que a bebem, o que explica os elementos
subjetivos e fantasiosos e as próprias imagens trazidas nos cantos, que se relacionam com
seus mitos, sem dúvidas.

Guesse (2014) afirma que os cantos do cipó são os mais significativos dentre os
demais, que após o consumo da bebida ​nixi pae,​ um kashinawá, geralmente um membro
mais mais velho e mais experiente, a figura do ancião que consagra os conhecimentos
ancestrais da tribo, auxilia os demais na transe espiritual provocada pela bebida sagrada,
guiando-os nas visões e na condução do ato.

O velho indígena representa a circularidade da tradição: ele transmite os


ensinamentos para os jovens de hoje que, no futuro, quando também velhos,
assumirão a função de passar para outros jovens os mesmos conhecimentos.
Assim, os indígenas respeitam os velhos como seus mestres por saberem que
um dia serão eles a serem respeitados pela sabedoria adquirida com os anos
vividos. É através da palavra narrada por cada sábio velho das aldeias que a
tradição se mantém e que as histórias indígenas continuam vivas. (GUESSE,
2014, p. 40)

As canções exploram a subjetividade, a memória histórica e ancestral, o sagrado e,


sobretudo, o espaço celeste, podendo também abranger conteúdo erótico. Geralmente esses
cantos ritualísticos são acompanhadas de danças e todo um movimento corporal e
caracterização cênica. A autora afirma que as visões espirituais e as epifanias desencadeadas
pelo consumo de nixi pae​, tomam protagonismo no que tange aos principais temas narrados
nas produções líricas dos kashinawás que “celebram a interação entre corpo e espírito, visão e
som” (MATOS, 1999), numa experiência sensorial dos corpos com a força da poesia oral e a
natureza que os cercam, como um todo em comunhão.

Ainda de acordo com Guesse, os movimentos cíclicos dos cantos kashinawás durante
o ritual, e a entoação dos cantos sagrados durante a transe provocada pela bebida sagrada
fazem alusão à transferência da consciência para o estado xamânico e à viagem espiritual e
então desenvolvem o papel de demarcar as próprias etapas da transe, sendo elas: o processo

9
de clímax ( das visões, da memória e da conexão com o divino) e de declínio (o retorno à
própria realidade, à consciência coletiva).

Campbell afirma que o mito se relaciona diretamente ao ritual, pois o ritual é


o cumprimento de um mito. Ao participarmos do ritual, participamos do
mito e a ausência do mito pode significar o fim do ritual. Para que os rituais
se mantenham vivos, é preciso, portanto, manter vivos os mitos. (GUESSE,
2014, p 146)

Partindo para uma análise do poema kashinawá adotado como objeto de estudo é
preciso ter-se em vista que esses textos kashinawas pertencem a uma tradição oral e, com isso,
lidamos com uma tradução feita a partir de trabalhos de uma equipe interdisciplinar, com
antropólogos, linguistas, poetas, entre outros. No que tange à forma do poema, na
representação gráfica que adotamos como material de análise, feita por Daniel Bueno, alguns
aspectos são fundamentais para compreensão do ritmo que, por sua vez, contribui para uma
interpretação semântica desse poema.
Lê-se o poema, com a escansão dos versos e a marcação das sílabas tônicas
(sublinhadas) para algumas considerações:

Alegrando as estrelas pa​/ra/ Mas/​pan


Can/​tan​/do
Que/​bra​/do/que/​bra​/do o/ ​can​/to /de I​/bã
gi/​ran​/do e /​cain​/do/ no/​ chão Can/​tan/​do
Que/​bra​/do /que/​bra​/do o /​can​/to /de /​nam​/bu
gi/​ran​/do e /​cain​/do /no /​chão Can​/tan​/do
A /​fo/​lha/ de /​sa​/ma​/ú​/ma o/ ​can​/to/ de/ ​nam​/​bu
que/​bra​/da/ gi/​ran/​do
e /​cain​/do/ no /​chão Que​/bran​/do/ que/​bra/​do
O /​ces​/to/ de/ ​fo​/lhas gi​/ran​/do e ​/​cain/​do/ no/​ chão
que/​bra​/do /gi/​ran/​do A/ ​ár/​vo/re/ ​de Yu​/be
e /​cain​/do/ no /​chão que/​bra/​da e /gi​/ran/​do
e /​cain/​do /no/ ​chão
A /​plu​/ma A/​ ár​/vo/re /​do​ /pen/sa/​men​/to
da/ ​be​/la a/​ra​/ra /ver/​me​/lha que/​bra​/da/ gi/​ran​/do
A /​plu​/ma e /​cain​/do /no /​chão
da/​ be​/la a/​ra​/ra/ ver/​me​/lha O /​ces​/to/ de/​ fo​/lhas
A /​plu​/ma que/​bra​/do /gi​/ran​/do
da/ ​be​/la a/​ra​/ra/ ver/​me​/lha e /​cain/​do/ no /​chão
O /de/​se​/nho Que/​bra​/do/que/​bra​/do
da /​plu​/ma /can/​tan​/do gi/​ran/​do e /​cain/​do/ no/ ​chão

10
A/ ​gran​/de/​ sa​/ma​/ú​/ma da/ ​be​/la a​/ra/​ra /ver​/me/​lha
que/​bra​/da /gi/​ran/​do O /de/​se​/nho
e/ ​cain​/do /no/ ​chão da /​plu​/ma /can/​tan​/do
A/ ​plu​/ma
Pis/​can​/do/ pis/​can​/do da/ ​be​/la a/​ra/​ra/ ver/​me/​lha
fa/​zen​/do /bri/​lhar​/ as/ es/​tre​/las O /de​/se/​nho
Pis/​can​/do /pis/​can​/do da/ ​plu​/ma /can/​tan​/do
fa/​zen​/do/ bri/​lhar​/ as /es/​tre/​las pa​/ra /Mas/​pan
Fa/​zen​/do /bri/​lhar​/ as/ es​/tre​/las
gi​/ran​/do e /​cain​/do/ no/ ​chão A/​ plu​/ma
da/ ​be​/la a/​ra​/ra /ver/​me​/lha
A/​ ár​/vo/re/​ de Yu​/be Can/​tan/​do
que/​bra​/da /gi/​ran​/do o/ ​can/​to /do I/​bã
e /​cain​/do/ no/​ chão Can​/tan/​do
o/​ can/​to /do /​nam​/bu
A/​ be​/la a/​ra​/ra Can​/tan/​do
que/​bra/​da/ gi​/ran/​do o/​ can/​to /do/​ nam​/bu
e /​cain​/do / no /​chão
Tradução de Daniel Bueno
A/​ plu​/ma
COHN, S. (org.) Poesia. br: cantos ameríndios. ​In
da/ ​be​/la a​/ra/​ra /ver​/me​/lha
Seção Kashinawá. Rio de Janeiro: Beco do
A/​ plu​/ma
Azougue, 2012, p. 29- 31.
da/ ​be​/la a/​ra​/ra /ver/​me​/lha
A /​plu​/ma

Na escansão dos versos, observa-se que foram adotadas algumas escolhas formais no
registro escrito do poema. Quanto ao ritmo, ao longo do texto , conta-se que os versos
predominantemente possuem uma variação de cinco a sete sílabas poéticas, numa estrutura
reiterativa de versos em diferentes estrofes. Um recurso estilístico adotado é, portanto, a
redondilha menor ( com cinco sílabas poéticas ) e maior (com sete sílabas poéticas).
Quanto aos acentos, as tônicas desses versos estão predominantemente na i. 2ª e 5ª
sílabas- a redondilha menor , como nos versos [ Que/​bra​/do/que/​bra​/do] e [e /​cain​/do / no
/​chão​]; ii. 2ª, 4ª e 7ª sílabas - redondilha maior, como nos versos [ gi/​ran​/do e /​cain​/do/ no/
chão​] e [ da/ ​be​/la a​/ra/​ra /ver​/me/​lha]; ou, ainda, iii. 2ª, 5ª e 7ª sílabas, como no verso [ A
/​fo/​lha/ de /​sa​/ma​/ú​/ma].
Em alguns versos, identificamos algumas exceções destoantes do padrão rítmico dos
demais, como i. sílaba tônica na 3ª, tendo em vista que a maioria versos estavam com a

11
marcação da tônica na segunda sílaba poética, um exemplo [ O /de​/se/​nho ]; ii. tônicas na 1ª e
4ª, recurso da anacruse, como no verso [​pa​/ra /Mas/​pan], ​mantendo-se, ainda o acento binário
na 4ª; iii. acentos na 2ª 5ª e 8ª sílaba, tendo-se em vista que a maioria dos versos possuem
cinco ou sete sílabas poéticas, vê-se em [A/ ár​/vo/re /​do /pen/sa/​men​/to] e [ Fa/​zen​/do
/bri/​lhar​/ as/ es​/tre​/las] e , por fim, dois acentos binários num verso com somente quatro
sílabas poéticas, como [A/ be​/la a/​ra​/ra]. A partir dessas considerações, afirmamos que os
acentos são predominantemente binários.
Sobre o ritmo dos cantos kashinawá ​huni meka​, acrescenta Guesse (2014):
Os ​huni meka ​são cantos longos, podendo desenrolar-se indefinidamente,
acompanhando o ​tempo ​da viagem [ da transe provocada pela bebida
sagrada] . Estruturados de modo reiterativo, freqüentemente em redondilhas
maiores, podem ou não apresentar refrão propriamente dito. Freqüentemente,
o papel do refrão é desempenhado por versos ou segmentos constituídos pelo
que os índios chamam simplesmente de “som”: seqüências rítmicas de
sílabas não significantes, onde pululam sons vocálicos e aspirados, com
efeitos hipnóticos e encantatórios. ( Matos apud GUESSE, 2014, p. 187)

Durante o corpo do poema, reitera-se alguns versos como [...] quebrado girando/ e
caindo no chão [...], [...] da bela arara vermelha [...], [...] fazendo brilhar as estrelas [...]. Isso
sugere traços da própria oralidade do canto, em que essas repetições acompanham a condução
do ritual em toda duração do ato mediado pela transe da bebida sagrada.
À moda dos aedos, na antiguidade clássica, as repetições dos versos fazem parte da
estrutura formulaica dos cantos orais, já que sua transmissão é geracional, perpassando as
diferentes faixas etárias e por serem utilizados durante o ritual, momento em que estão
embevecidos pelas sensações da bebida enteógena. Infere-se, portanto, que esses versos
reiterados auxiliam na memorização do canto pelo grupo e, como sugere Guesse acima,
possuem efeitos hipnóticos e encantatórios já que dão uma ideia de ​continuum ​ao ritual
sagrado. Acrescenta ainda sobre a autoria coletiva:

No âmbito da oralidade, as narrativas são de domínio da coletividade; são


herança dos antepassados, transmitida de geração para geração. E o narrador
desse legado oral é, assim, o transmissor, o repetidor das histórias. Visto que
a grande maioria das narrativas escritas indígenas tem sua origem nas
histórias orais, a autoria dessas obras não é individual, mas sim coletiva ou
comunitária e seus narradores são os mais velhos, aqueles que dominam os
saberes vivos da tradição, como já dissemos anteriormente. (GUESSE, 2014,
p. 53)

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Algumas questões concernentes à sintaxe do poema também são fundamentais. No
início do texto, os versos iniciais [Quebrado quebrado/ girando e caindo no chão… ] atuam
como complementos nominais de um sujeito. No entanto, esse sujeito não é nomeado nesse
verso, sabe-se, pela morfologia, que remete a um nome masculino. Nos versos que sucedem
nessa mesma estrofe, alguns sujeitos são colocados para essa mesma estrutura reiterativa do
complemento nominal, como [...] a folha da samaúma [...] e depois [...] o cesto de folhas [...].
Pelo título do poema, sabemos que se trata de uma presentificação da tribo às estrelas. A não-
nomeação nos primeiros versos poderia remeter-nos a um sujeito coletivo, os próprios
kashinawá em transe [quebrado quebrado/ girando e caindo no chão] ? No mais, a relação do
canto com as estrelas se justifica pela citação trazida anteriormente com o relato de Isaías
Sales Ibã Kaxinawá, que o consumo da bebida acontece somente à noite sob a luz da lua.
Ainda observando a estrutura sintática do poema, é recorrente em todas as estrofes a
ruptura na sintaxe por meio dos ​enjambement.​ Os versos, apesar de haverem cesuras entre si,
estabelecem relações semânticas para composição do sentido. Essa sintaxe bastante
fragmentada somada à própria diagramação do poema na página, denotam um processo que se
faz por etapas. Ou seja, toda condução do ritual com apoio dos cantos , que pouco a pouco,
levam os membros à transe, às visões, ao encontro com o sagrado e ao retorno à consciência.
O canto utiliza elementos visuais, sinestésicos e a representação do movimento pelo uso de
repetições, aliterações e refrões com pequenas alterações sintáticas.
Quanto à ortografia, pontuação e ao próprio registro da linguagem, observa-se que não
há no corpo nenhuma pontuação gráfica , seja pontos finais, vírgulas, exclamações ou
interrogações. Há somente marcações em maiúscula que registram o início de uma nova
sentença. As cesuras, entretanto, são primordiais, pois marcam a estrutura sintática, separando
o sujeito e verbo dos complementos.
O considerável número de verbos reiterados nos versos são em sua maioria grafados
na forma do gerúndio ( a exemplo: girando, caindo, cantando, piscando) e locução verbal
(fazendo brilhar). Esse registro verbal, dá a ideia de continuidade e movimento, em que as
fronteiras do passado, presente e futuro são rompidas e o ritual é capaz de integrar os
membros à memória histórica e à (in) consciência coletiva. É como se houvesse uma anulação
do tempo cronológico, linear e sucessivo (tipicamente ocidental e da cultura do colonizador)
e, consequentemente, da visão do homem como um ser histórico, para o retorno ao tempo dos
mitos num presente contínuo durante a transe.

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Há também uma oposição de espaço fundamental no texto que reforça o encontro com
o divino. No início, o topo da árvore e as coisas que dela caem, como a folha da samaúma, o
cesto de folhas, as plumas da bela arara vermelha, o céu e as coisas do mundo e, de outro
lado, o chão, a terra onde acontece o canto para Ibã. É na terra, no chão, onde tudo cai é,
portanto, o lugar que consagra a ancestralidade da tribo que não esvaiu-se no tempo.

a sacralização da paisagem local é uma função fundamental da mitologia; os


povos estão integrados em suas paisagens e cada elemento desse mundo é
sagrado para eles, representam poderes, forças e possibilidades mágicas de
vida. As tradições primordiais santificam sua própria paisagem natural
(GUESSE, 2014, p. 145)

Uma força desumana também se mostra no texto nos versos [...] ​A árvore de Yube/
quebrada girando/ e caindo no chão/ A árvore do pensamento/ quebrada girando/ e caindo no
chão [..] A grande samaúma/ quebrada girando/ e caindo no chão [...]. Nos versos destacados,
há um paralelismo, ou seja, uma correspondência na mesma estrofe da árvore de Yube, árvore
do pensamento que remonta ao mito fundador da tribo. A samaúma, árvore sagrada, devido
seu tamanho é vista como a mãe da humanidade e é capaz de aportar um pequeno ecossistema
na copa, como as araras vermelhas também mencionadas. Sua altura, numa perspectiva dos
mitos indígenas, permite também o contato com as divindades que consagram os
conhecimentos da tribo.
A cadência sucessiva dos sons e das palavras, ao final do poema, provocam um
acúmulo de imagens. Essas imagens transcendem para além de si, criando um novo corpo e
uma imagem interna ao poema. Os atos de quebrar, girar, cair e piscar, reiterados em diversos
momentos , na estrofe que fecha o poema, dão lugar ao canto, aludindo ao próprio ato
coletivo.
Essa substituição das ações expressas por verbos a um substantivo no final do texto,
suscita uma observação sobre o natural ​versus ​o cultural na tribo. No âmbito do natural estão
todas os recursos que provém da natureza e a ela retornam. O canto, ao final, está no âmbito
da cultura kashinawá, que faz menção às coisas da natureza. Nesse sentido, natural e cultural
no poema mostram-se como aspectos indissociáveis que integram um todo e uma harmonia
do homem com a terra e o divino.
A diagramação, o ritmo e as imagens reiteradas dão ao poema um movimento em
espiral, o que lembra passos e gestos dos indivíduos no ritual (talvez nos entornos da grande

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árvore samaúma). Para além disso, o movimento espiralado lembra também o movimento da
cobra movimentando-se na árvore, a samaúma, que retoma o mito de Yube exposto
anteriormente.
Na cultura kashinawá, como nas demais tribos indígenas, alguns rituais são
primordiais para a significação da tribo no mundo, como o ​nixpupimá,​ que é o “batismo” do
povo, a iniciação no mundo. O ​katxinawá, que é o rito da fertilidade. O ​txidin,​ o ritual da
morte. A finalidade do ​txidin é fortalecer a fé no mundo e reerguer a alegria após a morte de
um kashinawá. O indivíduo que lidera o canto dança enquanto o seu acompanhante, que
geralmente é um aprendiz, sapateia com búzios.
As semelhanças do ritual com o poema em questão se dá com o destino de boa parte dos
elementos do canto, tanto a bela arara vermelha, quanto a folha de samaúma, o cesto de
folhas, a árvore do pensamento, entre outros, vão ao chão, lugar onde , segundo o mito da
tribo Arara, a vida terrena começa e termina, num movimento cíclico. Então o chão seria o
lugar de origem e fim de tudo, dando uma ideia de ciclo e ancestralidade.O texto reitera
constantemente a imagem da arara , que no ritual txidin está presente na vestimenta do líder
do ritual, seu cocar utilizado é feito de penas da cauda da arara.

3 INTERPRETAÇÃO

A característica formal e temática mais marcante de “Alegrando as estrelas” é a


reiteração de termos e a invocação pictórica de elementos da natureza num movimento
circular. Sabemos que no xamanismo kashinawá os cantos servem de modo a guiar as viagens
durante o uso do nixi pae, deste modo seguem uma estrutura quase que hipnótica, repetitiva e
de acordo com Guesse (2014), “podem desenrolar indefinidamente”.

Supomos então, que “Alegrando as estrelas” seja um canto-guia, cantado de modo


cíclico durante esse ritual, no qual se utilizam do nixi pae, como forma de guiar o percurso de
viagem espiritual nos preceitos xamânicos. Um canto coletivo que teria como finalidade
principal, induzir a conexão com o divino e com o todo da tribo, e induzir também um
esclarecimento com a visão de mundo da tribo.

O que nos traz a hipótese do canto ser cantado repetidamente, em ciclo, ou seja, ao
chegar no final poderia-se voltar ao começo. Isso é evidenciado também pela estrutura seguir
um mesmo ritmo, alterando apenas alguns vocábulos e formas verbais, que denotam ainda
uma mudança na narrativa do canto, desenvolvendo um ciclo, num percurso construído por
etapas. E ainda, a não nomeação no começo do poema, sugere um chamado ao divino, já que

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ao longo do poema as figuras indefinidas chamadas vão se delineando, compondo uma
estrutura de começo, meio e fim.

Ao girar, cair, quebrar e piscar, temos imagens que remetem ao movimento do corpo,
talvez uma dança que acompanharia o canto. Alegrar as estrelas nos diz que seu canto seria
realizado a noite, quando as estrelas estão visíveis, que é também quando os kashinawás
utilizam do cipó. A invocação de Yube e da árvore de sumaúma, ou árvore do pensamento,
evoca novamente a figura do cipó e do conhecimento espiritual, de acordo com o mito
fundador. O que nos leva novamente ao nixi pae que traria a clareza, conhecimento, luz, a
verdade sobre todas as coisas.

É importante também destacar que temos alguns interlocutores durante o canto, Ibã,
Maspan, Yube, que são nomes indígenas. Não necessariamente estão aqui como figuras
divinas, exceto Yube que remete claramente ao mito fundador da tribo4.

Ao passo que o canto vai se desenvolvendo, os verbos vão mudando e o quebrado


deixa de aparecer, sendo trocado por girando, piscando e cantando, o que remete ao fato dos
huni meka serem uma forma de guiar pela viagem espiritual, mantendo uma conexão com o
terreno para não se perder e não sofrer no estado de consciência xamânico. Por focar em uma
imagem da pluma, talvez seja um foco visual para manter o foco consciente e guiar o transe.

Pela sequência e alteridade verbal, podemos perceber uma estrutura de início lento e
um processo de andamento até uma síntese positiva onde se troca o quebrado/girando por
piscando e cantando, trazendo uma certa ideia de calmaria e não mais o sofrimento de algo
quebrado ou perdido, fora de sintonia. Talvez seja uma metáfora para a própria consciência do
usuário de nixi pae que está sendo guiado pelo canto, como uma forma de obter clareza
mental sobre as verdades do universo de acordo com a sua cultura xamânica.

4
​ Não encontramos referências de divindades com esses nomes, exceto Yube.

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REFERÊNCIAS

GUESSE, Érika Bergamasco. ​Shenipabu Miyui:​ literatura e mito. 2014. 426f. Tese de
doutorado – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014.

HUNI KUIN (KAXINAWÁ). ​Povos indígenas no Brasil​. Disponível em: <www.


https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Huni_Kuin_(Kaxinawá)> Acesso em: 24 nov. 2019

LAGROU, Elsje Maria. ​Xamanismo e representação entre os Kaxinawá​. In: LANGDON, E.


Jean Matteson (Org.). ​Xamanismo no Brasil:​ novas perspectivas.​ ​Florianópolis: UFSC,1996.

MATOS, Cláudia Neiva de​. ​A poesia popular na República das Letras:​ Sílvio Romero
​ io de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
folclorista​. R

OLIVEIRA, Alice Haibara de. ​'Já me transformei': modos de circulação e transformação


de pessoas e saberes entre os Huni Kuin (Kaxinawá)​. 2016. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2016.

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ANEXOS

Alegrando as estrelas e caindo no chão


A árvore do pensamento
Quebrado quebrado quebrada girando
girando e caindo no chão e caindo no chão
Quebrado quebrado O cesto de folhas
girando e caindo no chão quebrado girando
A folha de samaúma e caindo no chão
quebrada girando Quebrado quebrado
e caindo no chão girando e caindo no chão
O cesto de folhas A grande samaúma
quebrado girando quebrada girando
e caindo no chão e caindo no chão

A pluma Piscando piscando


da bela arara vermelha fazendo brilhar as estrelas
A pluma Piscando piscando
da bela arara vermelha fazendo brilhar as estrelas
A pluma Fazendo brilhar as estrelas
da bela arara vermelha girando e caindo no chão
O desenho
da pluma cantando A árvore de Yube
para Maspan quebrada girando
Cantando e caindo no chão
o canto de Ibã
Cantando A bela arara
o canto de nambu quebrada girando
Cantando e caindo no chão
o canto de nambu
A pluma
Quebrando quebrado da bela arara vermelha
girando e caindo no chão A pluma
A árvore de Yuhe da bela arara vermelha
quebrada e girando A pluma

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da bela arara vermelha o canto do nambu
O desenho Cantando
da pluma cantando o canto do nambu
A pluma
da bela arara vermelha
O desenho Tradução de Daniel Bueno
da pluma cantando
para Maspan COHN, S. (org.)​ Poesia. br: cantos
ameríndios. ​In Seção Kashinawá. Rio de
A pluma
Janeiro: Beco do Azougue, 2012, p. 29-
da bela arara vermelha
Cantando 31.
o canto do Ibã
Cantando

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